FACULDADE SETE DE SETEMBRO ─ FASETE
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS COM HABILITAÇÃO
EM LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA INGLESA
ALEXSANDRO DE LIMA PEREIRA
O SUICÍDIO FEMININO EM MADAME BOVARY,
DE GUSTAVE FLAUBERT
PAULO AFONSO - BA
NOVEMBRO/2011
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ALEXSANDRO DE LIMA PEREIRA
O SUICÍDIO FEMININO EM MADAME BOVARY,
DE GUSTAVE FLAUBERT
Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura
em Letras com Habilitação em Língua Portuguesa
e Língua Inglesa, da Faculdade Sete de Setembro
– FASETE, como requisito para avaliação
conclusiva. Sob a orientação da Profª Ms. Maria
do Socorro Pereira de Almeida.
PAULO AFONSO - BA
NOVEMBRO/2011
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Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)
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DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho as mulheres mais importantes da minha vida: Paula Fernanda Lima
Pereira, minha esposa e, Euzélia Alexandre de Lima, minha Mãe (e Heroína, de mútua
admiração), as quais sempre acreditaram em meu potencial. Sem a presença delas na minha
vida com seus empenhos e incentivos a conclusão deste trabalho não seria possível.
Dedico também a minha professora-colega e orientadora Maria do Socorro Pereira de
Almeida. A esta eu não dedico eu oferto. Receba-o. Ainda faço menção aos meus professores
Luís José e Sandra Marcula, tão amados e queridos por mim. Jamais poderei esquecer suas
palavras de incentivo, não apenas para a academia, mas para a vida.
Dedico a Socram Silva, amigo mais chegado do que irmão, por tudo que disse e diz a meu
respeito e por tudo que representa para mim. Amigo de valor inestimável, de palavras
sinceras; alter ego.
Aos meus amados e queridos irmãos Anderson de Lima Pereira e Andreison de Lima Pereira,
que vi crescerem e tornarem-se homens, pelos quais nutro grande amor.
Aos meus saudosos Vovô Zizo (Dionísio) e Vovó Dete (Maria Bernadete), a meu Bisavô Pai
(Inácio) ─ in memoriam ─ a Vovô Vavo (Rosalvo) e a Vó Nana (Ana Maria), figuras de
caráter exemplar. E a todos familiares.
A minha equipe dos anos de Faculdade, tão única e ajustada: Marla Franciara, Tatiane
Cristina e Marluce Mendes, sobre a qual palavras não são o bastante para expressar o
quanto foi importante para mim. Mulheres de Deus!
A todos que me ouviram falar tão entusiasmado deste trabalho, como do meu livro, e
torceram para que o momento da conclusão fosse especial. Dedicação e agradecimento a
todos.
Deus seja louvado. A Ele toda honra, glória e louvor. Iesus, Dominus Dominorum per secula
seculorum.
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RESUMO
Este trabalho objetiva analisar o suicídio em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, a fim de
identificar acontecimentos na vida da personagem que a levaram ao suicídio. Sabemos que o
número de casos de suicídios aumenta a cada ano em todo o mundo e que, apesar de a morte
por suicídio no sexo masculino ser quatro vezes maior que no feminino, a taxa de mulheres
suicidadas tem se elevado nos últimos anos. A partir do cruzamento dessa realidade com a
devida representatividade do suicídio na literatura, especialmente das mulheres no século
XIX, nasceu a intenção de se elaborar este estudo. A metodologia adotada para a elaboração
foi o estudo da obra em questão e de outras obras da literatura universal e a pesquisa teóricobibliográfica acerca do tema na Bíblia, em artigos e em outros materiais de pesquisadores
voltados para a área de literatura e das ciências sociais. A primeira parte do trabalho apresenta
um conceito de Literatura a partir da relação que ela possui com a realidade, considerando o
seu caráter mimético. Em seguida, a partir das pesquisas de Durkheim, conceitua-se o
Suicídio e suas tipologias. Na terceira parte é feito um panorama de como está representada a
figura feminina na literatura desde o Trovadorismo até o Realismo. E, por fim, uma análise
psicossocial da vida de Ema Bovary. Ao término deste trabalho, observou-se que Flaubert nos
apresenta a mulher como ingênua e impotente para satisfazer seus desejos e seus objetivos,
haja vista Ema possuir uma visão idealizada do mundo e não conseguir adequar seus anseios à
realidade de sua época, tampouco evitar que sua vida se resuma a uma frustração total de suas
expectativas.
Palavras-chave: Literatura; Mulher; Suicídio.
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ABSTRACT
This work aims to analyze suicide in Madame Bovary, Gustave Flaubert, to identify events in
the life of the character that led her to suicide. We know that the number of suicides is
increasing each year worldwide, and that although the death by suicide in men is four times
higher than in females, the rate of female suicides has risen in recent years. From
the intersection of reality with due representation of suicide in literature, especially women in
the nineteenth century, was born the intention of preparing this study. The methodology
adopted for the preparation of the work was the study in question and other works of world
literature and theoretical and research literature on the subject in the Bible, articles and other
materials of researchers focused on the area of literature and social sciences. The first part of
the paper presents a concept of Literature from the relationship she has with reality,
considering its mimetic character. Then, from the research of Durkheim, Suicide is
conceptualized and their types. In the third part is made an overview of how the female
figure is represented in literature from the Troubadours to the realism. And finally, a
psychosocial analysis of the life of Emma Bovary. Upon completion of this work, we
observed that Flaubert shows us a woman as naive and powerless to satisfy your desires and
your goals, considering Emma has an idealized vision of the world and unable to adjust their
expectations to the reality of his time, nor prevent your life is reduced to a total frustration of
their expectations.
Keywords: Literature; Woman; Suicide.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 08
1.
CONCEITUANDO LITERATURA .......................................................................... 10
1.1.
2.
CONCEITUANDO SUICÍDIO .................................................................................. 14
2.1.
3.
Literatura x Mímesis ..................................................................................... 11
Suicídio x Sociedade ...................................................................................... 17
A MULHER NA LITERATURA SOB A ÓTICA MASCULINA .......................... 21
3.1.
3.2.
No Trovadorismo ........................................................................................... 22
3.1.1.
Cantiga de Amor ............................................................................ 22
3.1.2.
Cantiga de Amigo ........................................................................... 23
No Humanismo .............................................................................................. 24
3.2.1.
3.3.
No Arcadismo ................................................................................................. 27
3.3.1.
3.4.
3.5.
4.
A Inês Pereira, de Gil Vicente .................................................... 25
A Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga ................... 28
No Romantismo ............................................................................................. 30
3.4.1.
Na poesia – As Mulheres Idealizadas ........................................... 30
3.4.2.
Na Prosa (Romance) – As Mulheres de Alencar .......................... 34
No Realismo/Naturalismo ............................................................................. 38
O SUICÍDIO DE EMA BOVARY ............................................................................. 47
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 61
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 64
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INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar o suicídio feminino na obra Madame Bovary. Essa
obra, que inaugura o movimento realista na França, em 1857, levou cinco anos para ser
concluída e tornou-se polêmica porque teve sua publicação censurada e suspensa, por ter sido
classificada, na época, como subversiva, uma ofensa à moral e à religião, o que resultou em
vários processos contra o autor, Gustave Flaubert, que ao sentar no banco dos réus, usou em
sua defesa, a frase que se tornaria célebre "Emma Bovary c'est moi" (Emma Bovary sou eu).
Nessa obra, Gustave Flaubert faz uma descaracterização da mulher idealizada do
Romantismo: retrata toda a beleza feminina sem deixar de revelar o caráter instintivo que as
mulheres também possuem. Ema é uma mulher de educação requintada, cheia de sonhos e
que se deixa levar pelo mundo de fantasias e ilusões que conhece através dos livros que, após
se casar, entra em contato com o mundo real e se dá conta de que a realidade é bem diferente
da vida retratada nos romances. No afã de gozar ao menos um pouco da vida que sempre
sonhou, essa mulher se tornará adúltera e perderá o controle de suas ações e viverá um grande
dilema: viver a vida do jeito que ela é ou se negar totalmente a viver.
Nesse contexto, considerando a forma como Ema Bovary dá cabo da própria vida, esta
monografia traz o tema ─ O Suicídio Feminino. Para melhor embasar uma ideia a respeito
desse tema, busca-se observar a condição da mulher no seio da sociedade de em cada época,
através do contexto literário, bem como a luta em favor de sua emancipação e,
consequentemente, a realização de seus próprios anseios de liberdade.
Para atingir o objetivo proposto, este estudo está dividido em quatro partes. No capítulo
inicial será construído um conceito sobre Literatura a partir da mímesis aristotélica para
compreender a relação que há entre a Literatura e um dos seus objetos de representação, no
caso deste trabalho, a sociedade, portanto, dentro de uma perspectiva sociológica.
O segundo capítulo tratará do conceito de Suicídio e de suas tipologias, exemplificando-as.
Haja vista ser um campo de estudo muito amplo, visando não tornar este trabalho enfadonho,
as discussões tomarão como base para a fundamentação teórica as contribuições do sociólogo
alemão Émile Durkheim, que são essenciais para iniciar qualquer pesquisa que vise discutir
assuntos concernentes a essa temática.
10
No terceiro capítulo será traçado um panorama acerca de como está representada a figura
feminina, pela ótica do masculino, desde o Trovadorismo na era medieval até o Realismo no
final do século XIX. Esta parte analisará a condição e o comportamento feminino frente ao
contexto sociocultural de cada época, ou seja, como a mulher era vista pela sociedade e como
reagia na busca pela realização e satisfação de seus sentimentos.
O quarto e último capítulo analisará a vida de um dos grandes ícones da literatura francesa e
universal: Ema Bovary. Nesta seção do trabalho, a vida de Bovary será esmiuçada e terá cada
uma de suas ações analisadas, procurando-se captar os objetivos da personagem frente a seus
interesses e a contribuição que cada resultado frustrado teve para sua decisão de praticar o
suicídio.
A partir dessa perspectiva, associada a várias análises bibliográficas e, em conjunto com
nossos conhecimentos, busca-se construir uma visão crítico-reflexiva sobre o suicídio
feminino na obra analisada.
11
1.
CONCEITUANDO LITERATURA
Como este trabalho aborda questionamentos concernentes a Literatura, faz-se necessário saber
como a Literatura pode ser conceituada, para um melhor entendimento da proposta do mesmo,
uma vez que neste se pretende abordar o suicídio de Emma Bovary, ocorrido na obra Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, obra literária do período Realista.
O entendimento sobre o que é Literatura, contudo, não é tão simples, haja vista a Literatura
ser um objeto amplo e o seu conceito ser de difícil sistematização em definições precisas, o
que resulta em tantos conceitos. Então, conhecer a etimologia da palavra, isto é, a origem da
palavra, é o ponto de partida para os estudos sobre Literatura. Sendo assim, a palavra
Literatura provém do latim, litteratura, e significa a arte de escrever, literatura; a partir da
palavra latina, littera(ae), o ensino das primeiras letras, letra.
A Literatura surgiu antes mesmo da escrita e era empregada através da oralidade e
disseminada pelos povos nômades, ou seja, povos que não têm uma habitação fixa, que vivem
permanentemente mudando de lugar, e estava ligada mais ao aspecto sociológico do que ao
aspecto estético.
O Homem pré-histórico buscou se comunicar através de desenhos feitos nas paredes das
cavernas ─ pinturas rupestres ─, e assim, comunicava-se com seus semelhantes e,
concomitantemente, registrava suas mensagens, ideias, desejos e necessidades, passando-as da
oralidade para uma forma de escrita na qual ideias são transmitidas através de desenhos,
denominada pictografia. Posteriormente, na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C., a escrita
foi elaborada e criada. Os sumérios utilizaram objetos pontiagudos ─ cunhas ─ e tabuletas de
barro nas quais cunhavam a escrita, dando origem a escrita cuneiforme. Papiros (um tipo de
papel, feito da planta de mesmo nome) e pergaminhos (feitos de couro de animais) também
foram utilizados para o registro das primeiras obras literárias advindas da tradição oral. Dessa
forma, a Literatura se constitui com a saída do relato oral para o escrito e sobre isso Moisés
(2000, p. 20) diz o seguinte:
12
Na verdade, somente procede falar em literatura quando possuímos
documentos escritos ou impressos. A rigor, trata-se de transmissão, de
comunicação oral do texto literário escrito ou impresso: depois que este
surge, é que se processa a sua manifestação em voz alta.
O que é a Literatura? Incontáveis são os conceitos. O termo pode assumir significações
diversas. Alguns teóricos ─ René Wellek e Austin Warren, por exemplos ─ defendem a ideia
de que a obra literária, em sentido amplo, constitui um modo de representação da realidade.
Segundo Meira (1974, p. 22), ―A Literatura é um produto da sociedade, é um fenômeno social
e, por tal forma, pertence à Sociologia.‖ Dessa forma, compreendemos que a Literatura, é
ciência, uma ciência social, e está intimamente ligada aos fenômenos da vida quotidiana e
engajada em retratar através das palavras tanto as virtudes quanto as mazelas da sociedade.
1.1. Literatura X Mímesis
Este trabalho, como já foi dito, visa investigar o suicídio de Emma Bovary, em Madame
Bovary, de Gustave Flaubert. E, que, por se tratar de uma obra que faz parte do período
Realista, retrata fielmente um acontecimento costumeiro da vida real: o suicídio. No entanto,
há uma questão que perpassará por muito tempo dentre as discussões acadêmicas: A arte imita
a vida ou a vida imita a arte?
Para melhor compreensão do questionamento entenda Arte não como a entende o senso
comum ─ obras de arte: pintura e escultura, apenas ─, mas como téchne, o conceito grego que
é traduzido por Arte. Mas não apenas como a realização dos artistas, pois o termo não faz
alusão ao compromisso estético nem ao valor de genialidade que lhes é atribuído hoje. Antes,
téchne é uma atividade humana fundada num saber fazer. E nisto empreendemos o sentido da
palavra Arte e, nele, enquadramos a Literatura.
Por sua vez, esta capacidade humana de saber fazer, através das mais variadas artes e, também
da Literatura, na maioria das vezes é concebida pela imitação do real. Esta forma de fazer arte
como mímesis, ou seja, imitação ou representação do real, é apresentada por Aristóteles
13
(2004, p. 23) que afirma que ―A epopeia [sic] e a poesia trágica e também a comédia, a poesia
ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se
enquadram nas artes de imitação.‖
E, acerca das personagens de uma obra, numa perspectiva de arte mimética, Aristóteles (2004,
p.26) comunica que assim:
Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser
senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase só nestas duas
categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta
que as personagens são representadas ou melhores ou piores ou iguais a
todos nós.
Nessa mesma linha de raciocínio Bakhtin (1996, p. 385) afirma que ―por trás das mais
fantásticas imagens desenham-se acontecimentos reais, figuram pessoas vivas, residem a
grande experiência pessoal do autor e suas observações precisas‖. Bakhtin agrega à
observação aristotélica o conhecimento de mundo e as vivências do autor, além de chamar
atenção para a capacidade de percepção da qual é dotado o artista.
Em estudo sobre a relação literatura x sociedade, corroboram Wellek e Warren (1971, p. 113),
afirmando que ―a literatura « representa » a « vida »: e a vida é, em larga medida, uma
realidade social, não obstante o mundo da Natureza e o mundo interior ou subjectivo do
indivíduo terem sido, também, objeto de « imitação literária ». [sic]‖ Com esta contribuição,
os citados teóricos, acrescentam às observações de Aristóteles e às de Bakhtin, a imitação que
acontece também do meio onde se dá a imitação das personagens.
Wellek e Warren (1971, p. 113), também asseveram que ― uma grande maioria das questões
suscitadas pelo estudo da literatura são, pelo menos em última análise ou implicitamente,
questões sociais: relativas às tradição e à convenção, às normas e aos gêneros‖. Aqui, os
teóricos vão além das reflexões acerca das imitações que envolvem os caracteres das
personagens e o meio onde se dão e pontuam, em sentido amplo, as temáticas que abarcam
toda a mimese literária.
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Em contribuição as discussões sobre esse objeto, a relação literatura x mímesis, Coutinho
(1978, p. 9-10) diz que
A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade
recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para
as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova
realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor
e da experiência de realidade de onde proveio.
Sendo assim, compreende-se que a Literatura, enquanto Arte, não é mero fruto do acaso ou
pura imaginação e de funcionalidade resumida à apreciação estética, mas sim uma
reconstrução de significados, um fruto da interação do ser humano com o meio em que vive e
a retransmissão através da arte literária do que realmente significa o mundo a sua volta. A
Literatura é uma livre expressão do saber fazer e está intimamente ligada à relação que existe
entre as naturezas humana e social. E mesmo pensando assim, não se exclui da construção
literária a porção de ficção que esta possui e, que é parte indispensável para a coroação desse
processo.
As discussões sobre a relação literatura x sociedade são por demais longas. Dessa forma, por
não ser objetivo deste trabalho analisar os termos desta relação, e sim, apenas fazer menção a
tal, não nos prolongaremos nesse sentido.
15
2.
CONCEITUANDO SUICÍDIO
Este trabalho visa o estudo do suicídio de Ema Bovary, em Madame Bovary, de Gustave
Flaubert, sendo, portanto, indispensável buscar o entendimento do que seja o suicídio.
O suicídio é...
"... um ato de heroísmo." (Sêneca)
"... a destruição arbitrária e premeditada que o homem faz da sua natureza animal." (Kant)
"... admitir a morte no tempo certo e com liberdade." (Nietzsche)
"... uma fuga ou um fracasso." (Sartre)
"... a positivação máxima da vontade humana." (Schopenhauer)
Etimologicamente, a palavra suicídio vem do latim sui = si mesmo e caedes = ação de matar,
portanto, significa a morte de si mesmo. Mas, por mais sucinta que pareça esta definição,
sabemos que as discussões sobre o assunto para a tentativa de conceituar o suicídio são bem
mais abrangentes. A literatura sobre este fenômeno é sempre enfática, assegurando ser um
fenômeno complexo (BORGES; WERLANG; COPATTI, 2008, p. 109).
Dessa forma, como não é objetivo deste trabalho uma discussão mais aprofundada acerca
deste objeto de estudo e como utilizaremos como base para o referencial teórico para a nossa
pesquisa as contribuições de Durkheim (2008, p. 15), adotaremos, apenas, a definição de
suicídio estabelecida por este sociólogo: ―Definitivamente, diremos, pois: chama-se suicídio
todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo
praticado pela própria vítima, ato que a vítima sabia dever produzir esse resultado.‖
Pelo exposto, entendemos, de forma prática, que o suicídio é o ato pelo qual um indivíduo põe
fim a sua própria vida, e isto ele querendo ou não o fim de sua existência. Utilizamos por
exemplos para entendermos esta afirmativa os soldados que marcham para uma batalha, uma
mãe que dá a vida em favor de um filho ou até mesmo um mártir religioso que morre em
nome da fé. Em todos esses casos o indivíduo sabe que por meio de suas ações voluntárias a
sua vida foi posta em iminente fim, contudo, não se pode afirmar que eles desejassem o fim
de suas existências. Absolutamente, não há como falar em estudos sobre suicídio sem
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consultar as pesquisas de Durkheim, haja vista ser um grande contribuidor aos estudos no que
diz respeito às causas e atos suicidas.
Para traçar um breve histórico sobre o suicídio, o caso mais antigo que se conhece aconteceu
por volta de 2.500 a.C., na cidade de Ur, na Mesopotâmia, onde doze homens ingeriram uma
bebida envenenada e se deitaram para aguardar a morte.
Em 399 a.C., o suicídio do filósofo grego Sócrates recebe relevado destaque nas discussões
acerca do assunto. Sócrates é denunciado por Meleto, Licon e Anito, os quais acusaram o
filósofo de criar novos deuses e os adorar, além de perverter a mocidade. Após ser julgado e
condenado, Sócrates tem como pena o autoenvenenamento por cicuta. Alguns discípulos de
Sócrates negociaram sua fuga com o carcereiro, no entanto, o filósofo se recusou a fugir, sob
a alegação de que, se agisse dessa forma seria uma negação de todas as suas ideologias, o
sepultamento de seu pensamento.
Sócrates não morreu por um regime político, mas por um princípio mais alto
do que todos os regimes ─ o da dignidade humana. O que ele não tolerava
era opressão do pensamento, fosse da Multidão, fosse do Estado, fosse em
nome dos Deuses, fosse em nome da onipotência da Razão, da Violência ou
do Número. (LIMA apud BERENCHTEIN NETTO, 2007, p. 18).
Sócrates se martirizou conscientemente, e sabedor de que só assim as suas palavras se
perpetuariam e ganhariam força na História e tornariam o seu nome conhecido. Em seu
julgamento, diante de 501 juízes e do povo ateniense presente, o filósofo desbanca as
acusações sofridas e em seu discurso diz que um dia todos aqueles que o acusavam seriam
acusados de terem matado o homem mais sábio de toda a Grécia. Convictos ou não de sua
inocência ou se sentindo ofendidos, optaram por condená-lo.
O tipo de morte sofrido por Sócrates é, por muitos, comparado com a morte de Jesus Cristo,
que de certo modo, também foi um suicídio, conforme Berenchtein Netto (2007, p. 25), ―até
mesmo a morte de Cristo foi considerada por Tertuliano ─ um padre considerado o mais feroz
entre seus pares ─ uma forma de suicídio.‖ Decerto, ambos aceitaram suas condenações,
advindas por tornarem públicas as suas ideologias, isto é, o seu modo de enxergar o mundo,
contrários a ordem social vigente em cada uma de suas épocas.
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Na Bíblia, livro sagrado para os cristãos, não há nenhuma evidência para condenação do ato
suicida. Há, entretanto, por extensão do sexto mandamento (Êxodo 20.13) ─ o que diz: ‗não
matarás‘ ─, a compreensão de que o indivíduo não deva cometer o suicídio, pois seria
cometer a morte de si mesmo. Nesse livro consta vários casos em que pessoas, até de renome
e relevada importância, ─ o Rei Saul, por exemplo ─, cometeram suicídio.
No Antigo Testamento, o primeiro suicídio bíblico foi o de Abimeleque (Juízes 9.54), que ao
ser ferido com gravidade por uma pedra, lançada por uma mulher, pediu ao seu escudeiro que
o matasse com um golpe de espada, para que não dissessem que foi morto por uma mulher.
O segundo suicídio registrado é do famoso juiz Sansão (Juízes 16.30), que ficou conhecido
pela sua enorme força, advinda de sua obediência em não cortar os cabelos, uma das
ordenanças do Voto de Nazireu, feito quando era criança. Sansão havia perdido suas forças
após ter o seu cabelo cortado por Dalila, quebrando o seu voto, então os filisteus o fizeram
prisioneiro, furaram seus olhos e o puseram junto às colunas do templo, entre as quais Sansão
invocou forças a Deus para empurrá-las e caírem sobre todas as três mil pessoas presentes.
Enquanto derrubava o templo, Sansão disse: ‗Morra eu com os filisteus‘.
O terceiro caso é o do Rei Saul (1 Samuel 31.1-5), que na iminência de ser morto pelos
inimigos pede ao seu escudeiro que o transpasse com sua espada, negando-se o rapaz, Saul se
atira sobre a própria espada. Vendo que Saul estava morto, o escudeiro também se lança sobre
a espada e morre com o Rei, configurando o quarto suicida bíblico.
Aitofel (2 Samuel 17.23) é o quinto suicida bíblico. Foi um conselheiro, que não teve um de
seus conselhos seguido, e que, por causa disso, foi para sua casa, organizou suas coisas e em
seguida se enforcou. O sexto caso das escrituras sagradas é o de Zinri, rei de Israel (1 Reis
16.18), que ao ver a cidade de Tirza sendo tomada pelos inimigos, foi até o seu castelo e o
queimou, morrendo carbonizado.
No Novo Testamento, consta apenas o suicídio de Judas Iscariotes (Mateus 27.5), que após ter
traído Jesus, tocado de remorso, tenta se enforcar, mas a corda o corta ao meio e todas as suas
entranhas se derramam (Atos dos Apóstolos 1.18).
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Na Idade Média, no âmbito político-religioso, o suicídio era visto como um ato criminoso ou
como um atentado contra o Estado. O suicida era privado dos ritos fúnebres e de sepultura,
tinha seu cadáver maltratado ou arrastado pelas ruas ou ainda era queimado publicamente. E
por fim, sua alma era condenada ao Inferno. A partir do Renascimento, com a separação da
Igreja do Estado, passou-se a descriminalizar o ato suicida.
No final do século XIX, Freud (1856-1939), criador da, Psicanálise acreditava no suicídio
como transtornos psiquiátricos, ou seja, desenvolvimento de quadros de doenças mentais.
A Sociologia, através dos estudos de Durkheim (1858-1917), descobriu a influência das
forças coletivas sobre o ato suicida.
2.1.
Suicídio X Sociedade
As pesquisas de Durkheim constataram que o suicídio é uma ação praticada pelo indivíduo,
mas motivada por razões sociais, exteriores ao indivíduo, e que estas podem ser de natureza
variada. Diante dessas peculiaridades que impulsionam o sujeito ao suicídio, segundo Oliveira
(2008, p. 36-37), Durkheim sistematizou o suicídio em três grupos distintos, conforme síntese
abaixo:
a) Suicídio Egoísta, o qual se desenvolve a partir do enfraquecimento das
regras sociais, de maneira que o indivíduo passa cada vez menos a depender
do seu grupo social, levando-o a conduzir seus atos tão somente em relação a
seus interesses particulares e não em razão do interesse coletivo, afastandose e desintegrando-se da sociedade. O suicídio egoísta é o tipo que Durkheim
considera como resultante ―de uma individuação descomedida‖ b) Suicídio
Altruísta, em oposição ao egoísta, se refere àquele indivíduo que depende
demais da integração social, de maneira que esta passa a exercer extrema
pressão sobre o indivíduo, coagindo-o à autodestruição. Nesses casos,
segundo Durkheim, ―é preciso que a personalidade individual, então, tenha
muito pouca importância‖. Como exemplos do suicídio altruísta, cita o autor:
―homens que chegam ao limiar da velhice ou são afetados por doenças,
mulheres por ocasião da morte dos maridos, clientes ou servidores por
ocasião da morte de seus chefes‖, ou seja, a perda de uma obrigação e de um
dever social leva o indivíduo à autodestruição pelo sentimento de desonra
em relação às regras sociais; c) Suicídio Anômico, relativo à ausência de
regras sociais ou o conflito delas, carecendo ao indivíduo a indicação de uma
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determinada conduta moral a ser seguida, de maneira que a ele sejam
impostas novas condições que exijam um ajustamento que para ele seja
extremamente penoso. Como exemplos, Durkheim cita as crises relacionadas
ao crescimento econômico, aumento brusco de poder, de riqueza, ou de
pobreza, estado de viuvez (anomia doméstica) e a questão do divórcio
(anomia conjugal).
Para uma melhor fixação dos conceitos acerca dos tipos de suicídio definidos por Durkheim,
apresentaremos alguns exemplos mais claros, sem se ater, contudo, a minúcias que porventura
tenham resultado ao ato suicida, remetendo-se apenas aos fatos de forma superficial. Vale
ressaltar que o suicídio estaria ligado diretamente à condição de integração dos indivíduos em
sociedade e, que, quando o indivíduo secciona ou tem seccionado seu elo com o meio social
ao qual está ligado se torna mais vulnerável a se suicidar. A ausência desta coesão social é,
portanto, fator determinante para o indivíduo optar por continuar a viver ou não.
O Suicídio Egoísta, de forma sucinta, pode ser entendido como aquele que é praticado em
razão da ausência do outro. Relatemos o caso de uma relação amorosa dada como imprópria,
na qual os pais não aceitem por ser uma relação homossexual, entre a filha e outra jovem.
Neste caso, descoberta a relação indesejada, os pais resolvem não aceitar o relacionamento e
proibir o contato entre as garotas. Então, em razão da censura paterna, a filha por não poder
direcionar sua fúria contra os pais e por sentir muito a falta de sua amada, resolve em seu
quarto por fim a própria vida se enforcando com um lençol. Dizemos, então, que a garota
passou a ―conduzir seus atos tão somente em relação a seus interesses particulares e não em
razão do interesse coletivo, afastando-se e desintegrando-se da sociedade‖ (OLIVEIRA, 2008,
p. 36). Este suicídio aconteceu como uma resposta dos sentimentos da garota aos pais e a
sociedade, que fez com que os pais agissem de tal forma. É a individuação descomedida, o
lançamento da culpa da morte sobre os pais e, concomitantemente, sobre a sociedade. É uma
espécie de ‘Morro, mas a culpa é de vocês’.
O suicídio pode ser considerado Altruísta quando por trás desse tipo de morte há a intenção de
se enunciar uma causa, no sentido de ideologia. Há por parte do indivíduo um apego muito
forte ao que se acredita, que o desejo de comunica-lo é maior do que o apego à própria vida. É
o que aconteceu no caso dos kamikazes japoneses durante a Segunda Guerra Mundial (19391945), que lançavam suas aeronaves sobre os alvos inimigos. A personalidade individual tem
pouca importância diante da causa a que se propõe. O que virou sinônimo de loucura no
20
mundo ocidental, entre os nipônicos virou símbolo de nacionalismo e fé, haja vista por trás do
ato kamikaze haver toda uma crença de que na outra vida, isto é, na vida após a morte, estes
patriotas ─ nacionalistas radicais ─, seriam reverenciados pelo próprio imperador o que para
os soldados japoneses era considerado um ato de heroísmo. É a morte como representação de
um ideal que é maior que o indivíduo e que é realizada para chamar a atenção da sociedade
para uma determinada ideologia.
O Suicídio Anômico acontece quando o indivíduo alimenta a crença de que todo um mundo
desmorona-se em torno de si. O crack da bolsa de Nova Iorque, em 1929, é um bom exemplo,
pois produziu vários suicídios. Quando a crise econômica despontou no fim da década de
1920, muitos investidores viram suas finanças serem reduzidas a débitos, um ônus
incalculável com o qual nem todos souberam lidar. A falência trazia consigo novas condições
que exijam um ajustamento, um novo status social, o que para muitos era extremamente
penoso. Esse desajuste social fez com que muitos optassem por dar cabo da própria vida.
Durkheim fez suas contribuições para a compreensão deste objeto de estudo apenas no campo
da sociologia, através de análise da relação sociedade-indivíduo que leva ao suicídio,
considerando fatores culturais, religião e diferenças de sexos e, não levando em consideração
fatores extrassociais como clima, temperatura, hereditariedade, raça e loucura.
Comumente esses motivos são apenas a gota d‘água, o desencadeante
último, o elo final de uma longa cadeia de eventos que interagiram entre si
ou com componentes individuais, levando a conflitos, a rede de conflitos, e
esses conflitos sempre remontam a conflitos primitivos, que se originaram na
infância. Como tudo isso permanece em nível inconsciente o paciente pouco
sabe desses conflitos ─ ele apenas percebe algumas características dos
desencadeantes finais e um sofrimento intenso, que atribui a esses
desencadeantes. (CASSORLA apud GOMES; ROSA, 2002, p. 28).
Atualmente, a Organização Mundial de Saúde (2000, p. 3) tem tratado o suicídio como um
problema de saúde pública e vem tentando preveni-lo com a ajuda dos países.
O impacto psicológico e social do suicídio em uma família e na sociedade é
imensurável. Em média, um único suicídio afeta pelo menos outras seis
pessoas. Se um suicídio ocorre em uma escola ou em algum local de
trabalho, tem impacto em centenas de pessoas.
21
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (2006, p. 3), aproximadamente um milhão
de pessoas tenham cometido suicídio em 2000, e que pelo menos outras vinte milhões de
pessoas tenham tentado suicidar-se, colocando o suicídio entre as dez causas de morte mais
frequentes em muitos países do mundo. Acredita-se, no entanto, que os números reais sejam
ainda mais elevados. As taxas de suicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde
(2006, p. 3), aumentaram aproximadamente 60% nos últimos 50 anos. O problema é tão grave
que este número representa uma morte a cada 35 segundos. A Organização Mundial de Saúde
projeta para o ano 2020, aproximadamente, um milhão e meio de suicídios em todo o mundo,
o que representa uma morte a cada vinte segundos.
No Brasil, em 2004, foram registrados 7.987 suicídios, uma taxa entre 3,9 a 4,5 suicídios por
100.000 habitantes, números suficientes para colocar o Brasil entre os dez países com maiores
números absolutos. O número de suicídios de homens ainda é maior do que o feminino, mas
em análise sobre o número de suicídios entre 1994 e 2004, a Organização Mundial de Saúde
(2006, p. 9-10) constatou um aumento proporcional das taxas de 16,4% para os homens e de
24,7% para as mulheres. Poucos países têm a taxa de suicídios feminino maior que a taxa de
masculinos, com destaque para a China.
Nesta seção muitas outras discussões poderiam ser realizadas, contudo, em virtude da
brevidade desta monografia não temos tempo para irmos além, ficando, entretanto, a
possibilidade desse objeto de estudo ser retomado para estudos em outra ocasião.
22
3.
A MULHER NA LITERATURA SOB A ÓTICA MASCULINA
Esta monografia se propõe a analisar o suicídio feminino em Madame Bovary, de Gustave
Flaubert. Por se tratar de obra do período do Realismo que apresenta como principal
característica uma visão diferenciada da mulher, isto é, da mulher não mais idealizada do
Romantismo, e sim da mulher real, que tem virtudes e defeitos, para melhor entendimento,
por parte do leitor, faz-se indispensável uma viagem pelos períodos da literatura para a
percepção de como era apresentada a figura feminina em cada época.
A história da literatura tem sua produção dividida em momentos distintos que podemos
chamar de períodos literários, os quais nos permitem estudar e conhecer a sociedade de cada
época enfocando sua cultura, linguagem e ideias. O estudo destes períodos literários nos ajuda
a compreender e a acompanhar melhor as mudanças que aconteciam na sociedade e a visão de
mundo do homem em cada momento histórico, pois
Os períodos literários correspondem à fases histórico-culturais em que
determinados valores estéticos e ideológicos resultam na criação de obras
mais ou menos próximas no estilo e na visão de mundo [...], englobando
circunstâncias como as condições do meio, as influências filosóficas e
políticas, etc. (GONZAGA, 2010, p. 1).
Dessa forma, entende-se que os períodos literários são determinados segmentos de uma época
em que predominaram valores que influenciaram na literatura. E, que as obras literárias
produzidas nesses períodos possuem identidades indissociáveis com a realidade social.
Assim, com a finalidade de observar a figura feminina ao longo dos períodos literários,
traçaremos neste trabalho um panorama geral de como a mulher é representada a partir do
Trovadorismo até o Realismo. Esta escolha foi feita por ser aquele o primeiro movimento
literário, que influenciará os períodos seguintes, e este, o recorte histórico-literário que abriga
a obra de nossa análise: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, obra do Realismo francês.
23
3.1.
No Trovadorismo
No final do século XII, tem-se início os períodos literários e o Trovadorismo é o primeiro
deles. Também conhecido como Primeira Época Medieval, o Trovadorismo é marcado pelo
Teocentrismo ─ teoria na qual se defende que Deus é o centro de todas as coisas ─, pelo
feudalismo ─ sistema econômico e político caracterizado pela relação entre senhor feudal e
servo ─, e pela vida extremamente voltada para os assuntos relacionados aos valores
espirituais. Estas influências são oriundas da Igreja, uma vez que o clero católico era o
detentor máximo do poder político e econômico.
No Trovadorismo a mulher é vista como uma deusa, um ser superior e inalcançável por seu
amante, que é inferior e submisso a ela em todas as coisas, proporcionando uma relação de
senhor (mulher) e vassalo (homem). O amante tem total zelo e receio de magoar a sua amada,
então cuidadosamente escolhe as palavras a serem ditas, uma vez que a amante é merecedora
de todas as gentilezas possíveis. Os poetas dessa época eram chamados de trovadores e os
poemas recebiam acompanhamento musical, sendo, portanto, feitos para serem cantados.
Data de 1198 a Cantiga da Ribeirinha ou Cantiga de Guarvaia, composta por Paio Soares
Taveirós dedicada a Maria Paes Ribeiro ─ concubina de Sancho I de Portugal ─, trata-se da
obra inaugural do Trovadorismo, na qual se pode ver a posição da mulher superior em relação
ao homem na poesia lírico-amorosa. A poesia lírico-amorosa da época é dividida em Cantigas
de Amor e Cantigas de Amigo.
2.1.1. Cantiga de Amor
As cantigas de amor exprimem através de um eu-lírico masculino o sentimento amoroso do
trovador à amada de difícil acesso, a qual se refere como ‗senhor‘. O trovador canta as
qualidades de sua amada, a dor e o sofrimento amoroso pelo qual passa em virtude de seu
amor perante essa mulher idealizada e distante, por ela ser pertencente a uma classe social
superior a sua. Dessa forma, diante de um amor impossível, o trovador vive uma ‗vassalagem
amorosa‘, ou seja, torna-se vassalo, servo de sua amada e a ela se submete inteiramente.
24
A dona que eu am’e tenho por senhor
A dona que eu am'e tenho por Senhor
amostrade-me-a Deus, se vos en prazer for,
se non dade-me-a morte.
A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus
e porque choran sempr(e) amostrade-me-a Deus,
se non dade-me-a morte.
Essa que Vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-me-a morte.
(Bernardo de Bonaval)
Os versos em grifo mostram claramente como o trovador se sente em relação a mulher que
ama: inferior, submisso e dependente, haja vista esse amor ser uma idealização do trovador
que dificilmente terá seu amor correspondido. O mesmo a trata na primeira estrofe como
‗Senhor‘, isto para manter preservada a identidade de sua senhora e para expressar a
submissão típica de um vassalo. Já na segunda estrofe, a senhora é tratada como ‗lume destes
olhos meus‘, reforçando, ainda mais, a total condição de dependência que o amante possui
desse amor. A vassalagem amorosa, ou seja, a submissão do trovador a sua senhora é tão forte
nesta cantiga que o trovador prefere a morte a ficar sem o simples fato de apenas ver a sua
senhora, o que fica evidanciado nos versos da última estrofe que dizem: ‗fazede-me-a veer, se
non dade-me-a morte.‘ Sobre a cantiga de amor Moisés (2004, p. 19) diz que ―contém a
confissão amorosa do trovador, que padece por requestrar uma dama inacessível, em
conseqüência de sua condição social superior‖ [sic].
2.1.2. Cantiga de Amigo
As cantigas de amigo, assim como as de Amor, são de autoria masculina, mas possuem um
eu-lírico feminino, a voz ─ ou choro ─ de uma mulher apaixonada que sofre pela ausência do
bem-amado, ao qual se refere como ‗amigo‘. As cantigas de amigo apresentam a mulher
como uma figura inexperiente para os assuntos amorosos. Sendo, por vezes, ingênua, a
mulher é representada como aquela que sofre com a ausência de seu amado ou de tristeza
porque ele partiu para uma guerra ou que a tenha deixado por outra. Diferentemente das
25
cantigas de amor, nas cantigas de amigo o amor é algo possível, realizável, haja vista não
haver diferenças sociais entre os amantes, sendo a mulher uma figura do povo que confessa a
outras mulheres ─ muitas vezes a mãe ou a irmã ─, ou a uma amiga, ou até mesmo à natureza
todas as suas lamentações amorosas.
Como vivo coitada, madre, por meu amigo
Como vivo coitada, madre, por meu amigo,
ca m'enviou mandado que se vai no ferido,
e por el vivo coitada!
Como vivo coitada, madre, por meu amado,
ca m'enviou mandado que se vai no fossado,
e por el vivo coitada!
Ca m'enviou mandado que se vai no ferido,
eu a Santa Cecilia de coraçón o digo,
e por el vivo coitada!
Ca m'enviou mandado que se vai no fossado,
eu a Santa Cecilia de coraçón o falo,
e por el vivo coitada!
(Martin de Ginzo)
O eu-lírico feminino confessa à mãe, por que não dizer, de forma dramática o sofrimento pela
ausência do amigo, isto é, o amado. Em todas as estrofes repete que ‗e por el vivo coitada‘, ou
seja, que vive como uma coitada sofrendo de saudades do namorado que foi à guerra. Como
se vê na cantiga acima, a mulher sofre e até reza por seu amado ausente. As cantigas de amigo
são cânticos enfadonhos que chegam a ser dolorosos e desesperadores, um verdadeiro
melodrama pela ausência da pessoa amada.
3.2. No Humanismo
O Humanismo é considerado uma fase de transição, a passagem da Idade Média para a Idade
Moderna. Mas não apenas uma passagem de eras, antes o início da mudança de valores
culturais. É o período de transição entre a decadência dos valores feudais e o surgimento do
26
Renascimento, movimento de renovação social, política e artística, que se inicia na cidade de
Florença, na Itália, no século XV. O período humanista é marcado pela humanização da
cultura, ou seja, o Homem passa a ser o centro das atenções em todas as áreas do
conhecimento. É o início do pensamento antropocêntrico e o declínio do teocentrismo.
Nesse contexto histórico surge Gil Vicente (1465-1536), o pai do teatro português, que com
sua obra, de forma humorada e crítica, aponta as mazelas da sociedade de sua época,
criticando desde o alto clero até as classes mais baixas da sociedade.
3.2.1. A Inês Pereira, de Gil Vicente
Gil Vicente escreveu 44 peças, dentre elas, A farsa de Inês Pereira, uma comédia doméstica
que representa de forma satírica o comportamento da sociedade da época e conta a história de
Inês, moça bonita, solteira e burguesa que vive num cotidiano enfadonho, bordando, fiando,
costurando, assim como tantas outras mulheres de seu tempo. Contudo, Inês se recusa a viver
sob este modelo de mulher imposto pela sociedade de seu tempo. Inês, que se aborrece com o
trabalho doméstico, deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que
queira também aproveitar a vida, que tenha um comportamento refinado e que saiba cantar e
dançar. Diz ela:
que tão mau é de aturar! Oh, Jesus, que enfadamento e que raiva e que
tormento, que cegueira e que canseira! Eu hei de buscar maneira de algum
outro aviamento. Coitada! Assim eu hei de estar encerrada nesta casa como
panela sem asa, que está sempre num lugar? [...] E assim hei de estar cativa
em poder de desfiados? [...] já tenho a vida cansada [...] Esta vida é mais
que morta. (VICENTE, 2003, p. 19-20).
Percebe-se na obra de Gil Vicente, através de Inês Pereira, a revolta da mulher pelo estilo de
vida que lhe é empreendido no século XV, isto é, uma vida de confinamento, voltada
unicamente aos afazeres domésticos, entediante, pior que a morte. Inês acreditava que um
bom casamento, com um homem culto e bem sucedido era a solução para fugir da monotonia
27
na qual se encontrava e vir a possuir uma vida social, no entanto, seu casamento com
Escudeiro só veio decepcioná-la ainda mais.
ESCUDEIRO - Será bem que vos caleis. E mais, sereis avisada que não me
respondais nada, em que ponha fogo a tudo; porque o homem sisudo traz a
mulher sopeada. Vós não haveis de falar com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja não vos quero eu deixar. Já vos preguei as janelas,
porque não vos ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão
fechada, como freira de Odivelas.
INÊS - Que pecado foi o meu? Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO - [...] Vós não haveis de mandar em casa somente um pêlo
[sic]. Se eu disser: ―Isto é novelo‖, havei-lo de confirmar. E mais, quando
eu vier De fora, haveis de tremer; (VICENTE, 2003, p. 49-50).
No casamento Inês tem todas as suas expectativas frustradas. Agora ela estava ainda mais
encerrada em casa, sem vida social e tem privado até o seu direito de opinar sobre qualquer
coisa que seja, chegando ao ponto de se questionar sobre o que teria feito para merecer ‗tal
prisão‘. Com o casamento pôde conhecer, assim como outras mulheres do seu tempo, o que
realmente a sociedade esperava que fosse a mulher do século XV: um ser ‗sopeado‘, ou seja,
posto debaixo dos pés do homem, dominado, reprimido, rebaixado, humilhado ─ forma de
pensar que perdurou por muitos séculos. Foi o casamento a concepção de um formato de
família que Inês não esperava, e que tampouco aceitava.
Segundo Brasil (2007, p. 21), ―À mulher, dentro da família medieval, cabia, essencialmente, o
papel de procriadora [...] O cuidado da casa, do marido e dos filhos era ainda a sua principal
função‖. Brasil (2007, p. 21) destaca outro ponto ―[...] Um fato que muito chama a atenção
em relação à família medieval é a falta de afetividade que existia entre seus membros.‖ E é
com essa falta de afeto que Escudeiro trata Inês, encerrando-a em casa, como se fosse um
bicho enjaulado. Sendo, portanto, para Inês, como declara Brasil (2007, p. 23), ―o interior da
casa o seu ambiente natural‖.
A partir das declarações de Brasil, vê-se que há no Humanismo um ranço da Idade Média, a
tentativa de submeter, socialmente, a mulher ao homem. A mãe de Inês, que defende as bases
do casamento tradicional, torna-se submissa à sociedade patriarcal de sua época, contudo, ao não
aceitar a perpetuação desses costumes medievais, Inês Pereira se torna o símbolo do
28
Humanismo, um ícone que retrata o rompimento com a Idade Média e o início da Idade
Moderna.
No Humanismo a idealização feminina não deixa de existir, no entanto, não é como no
Trovadorismo. Na Idade Média, a idealização acontecia pela impossibilidade de alcançar a
mulher amada, era o amor platônico, isto é, não correspondido. Percebe-se, no entanto, que no
Humanismo a idealização é pela mulher perfeita, a mulher ideal, ou seja, que se submete aos
caprichos da sociedade patriarcal do século XV, e isto, sem questioná-los, o que não acontece
em nenhum momento com Inês Pereira que a todo instante se mostra certa do que quer e
busca realizar os seus próprios anseios, contrapondo-se a ótica masculina de seu tempo.
3.3. No Arcadismo
Também denominado como setecentismo ou neoclassicismo, o Arcadismo é o período
literário que compreende a segunda metade do século XVIII ─ o século das luzes, do
Iluminismo.
O espírito árcade é motivado pela recuperação de valores antropocêntricos, pela busca da
racionalidade (um olhar mais racional para o mundo e para a vida) e pelo bucolismo que
exalta a vida despreocupada e idealizada nos campos. No Arcadismo é comum aparecerem
expressões latinas como: fugere urbem (fugir da cidade) e locus amoenus (local ameno), para
expressar o ideário árcade denuciador do dissabor da vida na cidade, repleta de hipocrisias e
desordens sociais e para colocar a vida no campo como a única possível; carpe diem
(aproveite o momento), diante da efemeridade da vida e ciente da brevidade do tempo, é um
convite a gozar o momento presente sem medo do futuro; aurea mediocritas (mediocridade
áurea), que simboliza a valorização das coisas cotidianas, focalizadas pela razão; e inutilia
truncat (cortar o inútil), oposição aos exageros e rebuscamentos do Barroco, haja vista a
poesia árcade propor uma literatura mais equilibrada e espontânea, buscando harmonia na
pureza e na simplicidade das formas clássicas greco-latinas, como o soneto, por exemplo.
29
3.3.1. A Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga
No Arcadismo as mulheres continuam sendo vistas como seres idealizados, divindades
inalcançáveis, figuras altivas e sublimes como nos mostra o poema de Tomás Antônio
Gonzaga (1744-1810), a seguir:
Marília de Dirceu, Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? Se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores:
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim, e as outras flores.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Mas não se esmoreça logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
Da minha Ninfa adorada
Pérolas não valem nada,
E nada valem corais.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Só no Céu achar-se podem
Tais belezas, como aquelas,
Que Marília tem nos olhos,
E que tem nas faces belas.
Mas às faces graciosas,
Aos negros olhos, que matam,
Não imitam, não retratam
Nem Auroras, nem Estrelas.
Ah! Socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
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Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera,
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera,
Porém não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu.
Percebe-se no poema o enquadramento da figura feminina dentro de uma atmosfera sublime,
elevada, superior a todos os planos físicos da natureza (terra, céu e mar), mais bela que todas
as flores ‗Vence o lírio, vence a rosa, O jasmim, e as outras flores‘, mais preciosa que pérolas
‗Pérolas não valem nada, E nada valem corais‘; e entronizada acima das divindades olímpicas,
sendo mais bela que a Deusa de Citera ─ Vênus ou Afrodite, deusa do amor e da beleza.
No Arcadismo os poetas se utilizam de pseudônimos (nomes falsos, apelidos) para representar
o par de amantes nos poemas, então há sempre um Dirceu e uma Marília. Dirceu é um pastor
apaixonado que convida a pastora Marília para juntos aproveitarem a vida em meio à natureza
sem as preocupações citadinas do dia a dia, é o carpe diem.
Marília de Dirceu, Lira XIV
Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
(Tomás Antônio Gonzaga)
Com essa postura, o poeta árcade fica longe do passionalismo romântico e vai à busca de
Marília, utilizando um conjunto de frases feitas para falar sobre as qualidades do pastor
Dirceu, sobre os encantos da amada, e sobre a felicidade do futuro relacionamento entre
ambos.
31
3.4. No Romantismo
O Romantismo tem início nas últimas décadas do século XVIII, na Alemanha e Inglaterra,
tem seu auge na Revolução Francesa (1789) e perdura até o final do século XIX. Trata-se de
um período que tem sua produção literária marcada pelo lirismo, pela subjetividade, pelo
sentimentalismo exarcebado e pelo egocentrismo.
No Brasil, o Romantismo se inicia em 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e
Saudades, de Gonçalves de Magalhães, e finda em 1881, e teve ampla representatividade no
cenário literário nacional através de duas vertentes, a poesia e a prosa. O Romantismo
brasileiro por convenção é dividido em três gerações: Nacionalista ou indianista (Primeira),
Ultrarromântica ou do Mal-do-século (Segunda) e Condoreira (Terceira).
A figura feminina no Romantismo ainda é idealizada, inalcançável como uma virgem frágil
ou uma deusa, intocável e marcada por descrições minuciosas e muitos adjetivos. Mas que,
através da prosa romântica, de José de Alencar, começa a perder essa roupagem celestial e a
ganhar tons de realidade, sendo o Romantismo, portanto, na sua última geração, um período
de transição para o Realismo.
2.4.1. Poesia – As Mulheres Idealizadas
No cenário artístico poético do romantismo brasileiro, o poeta é motivado pela imaginação e
pelo individualismo e passa a idealizar tudo, principalmente a figura da mulher. Fecha os
olhos para a realidade das coisas, que perdem o sentido real e ganham novos de acordo com a
ótica do poeta. E sobre esse estado de espírito pelo qual é envolvido o poeta, Cademartori
(2002, p. 39) diz que ―é, ainda, pelo individualismo que o romântico se apresenta como um
homem só. Produz uma arte que não se rege por critérios objetivos, mas obedece a critérios
próprios, arte de expressão peculiar que fala de uma realidade particular.‖
Muitos foram os poetas que mereceram destaque no Romantismo brasileiro, contudo,
analisaremos apenas, um texto por geração: Desejo, de Gonçalves Dias, Por mim, de Álvares
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de Azevedo e Onde estás?, de Castro Alves, pertencentes a primeira, segunda e terceira
gerações, respectivamente.
A mulher, fonte inspiradora dos poetas deste período, era tratada como uma deusa, uma
intocável obra divina, vista como uma pálida virgem formosa da qual jamais poderia desfrutar
de suas características puras e angelicais, tornando assim o seu amor espiritualizado e
inalcançável. Esta mulher idealizada é vista em todas as gerações românticas conforme os
excertos a seguir:
Primeira Geração
Desejo
Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!
(Gonçalves Dias)
Neste poema se vê, claramente, na primeira estrofe, o poeta no afã de ser amado da forma
como ele ama nem que seja por um instante e, em seguida, conforme grifo acima, faz pedido
para que se dê a ele ‗Um anjo, uma mulher, uma obra tua,‘(obra de Deus), portanto,
evidenciando a mulher idealizada como uma obra divina. Nota-se ainda a espiritualização do
amor através do desejo de remontar, ou seja, ascender com essa mulher aos céus, lugar de
onde veio a amante tão sonhada e desejada pelo poeta, e isto, ‗Num êxtase de amor!‘.
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Segunda Geração
Por mim?
Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?
Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido...
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?...
Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava...
Ouvi outro suspiro... d'esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava...
Oh! não eram por mim.
(Álvares de Azevedo)
A poética de Álvares de Azevedo é de um poeta que vive uma constante decepção amorosa,
acentuada por uma profunda angústia; é um poeta melancólico e sofredor, mas de belos
versos. Apesar das desilusões amorosas, no poema apresentado, a figura feminina aparece de
‗face pura‘ como um anjo serafim e, dona de seu amor. Contudo, essa mulher tão idealizada é
colocada no mundo dos sonhos, está distante e inacessível, indiferente aos sentimentos do
poeta, não se deixando ser cortejada por ele, antes, indo em busca de outro olhar que fita os
seus olhos luminosos. Assim como na Primeira geração romântica, a mulher também é muito
idealizada pelos poetas da geração Ultrarromântica.
Terceira Geração
Onde estás?
Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
34
Com teu lânguido abandono! ...
'Stá vazio nosso leito...
'Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu'eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh'amante, onde estás? ...
Estrela — na tempestade,
Rosa — nos ermos da vida;
lris — do náufrago errante,
Ilusão — d'alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu! ...
... E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
"Oh! minh'amante, onde estás?..."
(Castro Alves)
Expoente maior da geração condoreira que é marcada também pela causa abolicionista, Castro
Alves é o Poeta dos Escravos, contudo, seus versos não se limitaram as denúncias contra a
escravidão. As mulheres também foram objeto de seus versos e eram mostradas como a razão
de ser feliz, como a presença que faltava para que tudo se completasse e fosse perfeito, e a
ausência delas causa grande vazio, como se vê nos versos da primeira estrofe ‗'Stá vazio
nosso leito... 'Stá vazio o mundo inteiro‘.
No poema acima, pode-se contemplar ainda as metáforas utilizadas para a representação da
figura feminina: ‗Estrela ─ na tempestade, Rosa ─ nos ermos da vida, Iris ─ do náufrago
errante‘ e ‗Ilusão ─ d‘alma descrida‘, sendo, portanto, representada por figuras altivas ou
singelas e, dessa forma, apresentada como a razão de ser, a esperança para continuar vivendo.
A ausência desta mulher tão importante faz com que o eu-lírico mergulhe numa melancolia, o
que fica evidenciado no saudosismo presente no último verso ‗Oh! minh'amante, onde
estás?...‘.
Na poesia romântica temos a mulher objeto, ou seja, aquela que está distante, como em uma
vitrine, e a todo instante é almejada, sem nunca ser tocada ou possuída, uma vez que está
35
investida de uma imagem pura, altiva, divina. É como se o eu-lírico vivesse, mesmo a custo
de muito sofrimento, apenas para contemplar a figura feminina, não sendo-lhe, permitido o
desfrute daquele ser tão místico.
2.4.2. Na Prosa (Romance) ─ As Mulheres de Alencar
A prosa literária brasileira começa a nascer no Romantismo, através de folhetins, que eram
histórias publicadas em capítulos nos jornais. Quando essas histórias eram bem vistas pela
crítica literária da época eram lançadas em forma de livro. E assim nasceu a maior parte dos
mais importantes romances do século XIX no Brasil.
A prosa é um gênero literário abrangente no que diz respeito à propriedade descritiva de uma
obra literária, haja vista ser um tipo de texto narrativo, que proporciona descrições mais
elaboradas, diferentemente da poesia, que é limitada ao uso dos versos. Não que em versos
não se possa fazer descrições precisas, mas enquanto a poesia utiliza a sua potencialidade
semântica, pois a poesia é dotada de multissignificação, a prosa se utiliza das minúcias da
descrição para prender o leitor à trama.
O maior expoente da prosa brasileira é o romancista José de Alencar (1829-1877). Em sua
obra, Alencar faz, praticamente, um estudo de certas figuras femininas das quais analisaremos
Lúcia, do romance Lucíola e Aurélia, de Senhora.
José de Alencar, considerado o fundador do romance nacional e o maior prosador do
Romantismo brasileiro, procurou, em suas obras, distanciar-se do modelo português de fazer
literatura, criando uma literatura mais próxima da realidade brasileira, engajada em
representar a cultura e os costumes de sua época.
O romance, do tipo urbano, de Alencar são tramas tecidas por amor e desejo, defeitos e
virtudes e, por críticas à hipocrisia, à ambição e à desigualdade social, sentimentos presentes
na sociedade fluminense do Segundo Reinado. Em virtude dessa combinação de fatores, a
obra de Alencar se encontra permeada pelas características realistas, daí dizermos que já
chega a ser um período de transição para o Realismo.
36
A primeira mulher alencariana a ser analisada é Lúcia, de Lucíola, uma bela cortesã do Rio de
Janeiro, jovem de 19 anos, rica, cobiçada pelos homens e invejada pelas mulheres, que se
deixa envolver por Paulo Silva, 25 anos, recém-chegado ao Rio de Janeiro, com pouco
dinheiro e ingênuo e, que se apaixona a primeira vista por Lúcia.
Alencar, em Lucíola, apresenta, de um lado, Lúcia, uma mulher com independência financeira
e prestígio, porém com máculas sociais que a sociedade não vê com bons olhos, e a coloca no
centro das atenções. De outro, Paulo, um homem extremamente romântico que se recusa a
enxergar o real papel de Lúcia na sociedade: uma cortesã. E isto é denunciado pela própria
cortesã: ―Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os poetas, embelezou o seu quadro.
Viu o que sentia; mas não o que era.‖ (ALENCAR, 1988, p. 29).
O enlace deste casal é a representação, através de Paulo, da visão de mundo romântica vigente
até então, que via a mulher como um ser sublime, divino e perfeito. Mas, que dá lugar, através
de Lúcia, a um novo modo de enxergar o mundo a sua volta, ainda enaltecendo a beleza e a
virtude feminina, contudo, retirando o véu da cegueira romântica que escondia os desvios de
conduta que a mulher também possui.
É com a prosa romântica que a figura feminina deixa de ser uma musa idealizada e começa a
apresentar os contornos de uma mulher real, de carne e osso, portanto, desejada e desejosa e
com o afã de mútua saciedade.
Em Lucíola, Alencar nos apresenta a mulher satânica, que, segundo Cademartori (2002, p.
40), é ―a que se dirige o desejo e cuja voluptuosidade torna ameaçadora e nociva.‖ Paulo,
apesar de enxergar Lúcia como uma mulher com aspectos de menina angelical e pura,
também a vê com essa ardente voluptuosidade, isto é, desejo sexual profundo.
A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e
quase tímida, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe
frescor e viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros.
Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava os véus ligeiros e desnudava
as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios. As sensações
amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma veemência
extraordinária. Eu sofria a atração irresistível do gozo fruído, que provoca o
desejo até a consunção; e conheci que essa mulher ia se tornar uma
necessidade, embora momentânea, da minha vida. (ALENCAR, 1988, p. 17).
37
E, ainda:
Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha frenesi
de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes, sufocando-a
nos meus braços, gozando-a uma última vez, deixando-a já cadáver e
mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse. (ALENCAR,
1988, p. 65)
Lucíola não deixa de representar uma crítica à sociedade fluminense do século XIX, quando
apresenta como personagem principal do romance uma cortesã, que só é aceita no seio da
sociedade se for para saciar a sede de imoralidade que esta possui. Alencar critica a sociedade
que condena a promiscuidade e os vícios, mas por outro lado, ela mesma é quem os alimenta
(FARIAS, 2008, p. 23).
Lúcia até tenta lutar para viver seu amor com Paulo. Mas a sociedade preconceituosa e
hipócrita, da qual também é fruto, não permitirá que essa heroína desfrute dessa nova vida tão
almejada. Não conseguindo viver publicamente seu grande amor, haja vista o estereótipo que
carregava ─ prostituta ─, Lúcia vendeu tudo o que possuía e foi morar numa casinha simples
de Santa Teresa, em companhia da irmã Ana, uma jovem de apenas 12 anos. Longe da cidade,
retomou o uso do seu verdadeiro nome ─ Maria da Glória ─ e deixou a vida mundana para
receber apenas a visita de Paulo. Naquele bairro viveram uma vida simples e feliz como dois
namorados. No entanto, esta felicidade durou pouco, Lúcia estava grávida de Paulo, mas
sofrera um aborto. Recusando-se em tomar remédios para expelir o feto, morre de infecção.
Neste episódio, Alencar também tece críticas à sociedade de seu tempo. Todas estas coisas
que Lúcia faz são em busca de se desprender do seu passado e recomeçar uma nova vida,
redimir-se consigo mesma e ser uma nova pessoa. Lúcia purifica-se pelo amor que nutre por
Paulo. Mas com a perda do filho fica claro que aquilo era fruto do amor carnal entre um
homem e uma prostituta, proibido e condenado pela sociedade, não poderia, então, vingar. A
sociedade jamais esqueceria o passado sujo de Lúcia, então sua morte representa a redenção
apenas espiritual.
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Em Senhora, a obra relata a dramática história de amor entre Fernando Seixas e Aurélia
Camargo. Aurélia, filha de uma pobre costureira e órfã de pai, apaixonou-se pelo ambicioso
Seixas, a quem namorou. Seixas, um pobre mancebo, que trabalhava como jornalista e que
vivia na pobreza, terminou seu namoro com Aurélia, movido pela vontade de se casar com
Adelaide Amaral, uma moça rica, que possuía um dote o qual teria direito de receber.
Aurélia ficou órfã de mãe e recebeu uma herança do avô fazendeiro, o que a torna muito rica.
Agora, a jovem, bela e rica, decide ‗comprar‘ um marido. Ainda ferida, ela encarrega Lemos,
seu tio-tutor, de negociar seu casamento com Fernando por um dote de cem contos de réis.
Seixas, de olho no dote que era maior que o de Adelaide, prontamente aceita, e ao descobrir
que a noiva é Aurélia, fica muito feliz, pois nunca deixou de amá-la.
Nas núpcias, Aurélia diz a Seixas que ele era um marido comprado e passam a viver um
casamento de conveniência. Onze meses depois de casados, Fernando, com seu trabalho,
adquiri o valor que devia a Aurélia e, que, garantia-lhe o direito ao divórcio. Com essa
atitude, Aurélia acredita que Fernando Seixas está regenerado, então confessa que o ama de
verdade, e suplica pelo o amor dele. Vencidos pelo amor, ambos descobrem que realmente se
amam.
Em Senhora, José de Alencar tece crítica à sociedade fluminense do Segundo Reinado, que
tem suas relações sociais incitadas pelo dinheiro. A própria divisão do romance se assemelha
a uma transação comercial, como é observado em suas quatro partes: preço, quitação, posse e
resgate. Este romance representa bem como se davam as relações conjugais burguesas da
época, além de aliar à trama a contradição entre o dinheiro e o amor.
Aurélia era uma mulher muito distinta em relação às outras mulheres que viviam naquela
época, principalmente pela sua maneira de agir e de pensar, opondo-se a algumas regras
determinadas pela sociedade que não lhe agradavam. Aurélia, de forma alguma, aceitava que
as relações sociais se dessem fundamentadas por interesses financeiros, pois sabia que toda
bajulação que recebia era em razão do dinheiro que possuía e não pela pessoa que era.
As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que
lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas,
39
receberia como rainha desdenhosa, a vassalagem que lhe rendiam. Por isso
mesmo considerava ela o ouro, um vil metal que rebaixava os homens; e no
íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente
que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que
tributavam a cada um de seus mil contos de réis. (ALENCAR, 1999, p. 13).
Aurélia não vive apenas um conflito entre o amor e a rejeição sofrida, mas também, entre o
amor que sente por Seixas e o orgulho ferido, uma vez que ela não concorda com o sistema
social de sua época, capitalista, mas acaba recorrendo a ele quando investe na compra de seu
marido-objeto Seixas. Contudo, se Aurélia se utilizou de seu status social para comprar
Seixas é porque ela também foi vítima daquela sociedade e ao agir dessa forma estava
reagindo ao meio no qual estava inserida, atitude inerente ao ser humano. Tanto Aurélia
quanto Seixas eram vítimas das mazelas da sociedade burguesa do século XIX.
Percebe-se ainda que Aurélia não é apenas educada, delicada, corajosa, elegante e inteligente,
mas que também possui uma grande capacidade de domínio sobre os homens, o que fica
evidenciado na declaração de seu tio-tutor Lemos: ―Você é uma feiticeirazinha, Aurélia; faz
de mim o que quer.‖ (ALENCAR, 1999, p. 26). Aurélia amava Seixas, mas a sua investida na
compra dele não foi apenas uma busca de reconquista do seu grande amor, antes foi um gesto
de vingança. Não era apenas uma mulher perfeita, possuía também seus defeitos.
Personalidade forte, domínio sobre os homens, beleza e dinheiro são características que
Aurélia e Lúcia possuem em comum. Mais do que isso, estas mulheres de Alencar, são
engajadas na busca pela realização de seus objetivos e dotadas de um desejo fremente por
aceitação social pelo que são enquanto pessoa, não aceitando que a sociedade faça delas
meras peças de um tabuleiro hipócrita que é a sociedade de suas épocas.
3.5. No Realismo/Naturalismo
Em meados do século XIX, surge o Realismo, movimento literário que se contrapõe ao
Romantismo, é um período abertamente antirromantismo. Surgiu na Europa, mais
especificamente na França, com a publicação de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, em
1857.
40
As situações do cotidiano, a realidade social era o objeto a ser retrado pelos autores realistas,
e isto, com precisão rigorosa. A sociedade burguesa, antes vista como a superação dos valores
medievais, passa a ser considerada um universo problemático e hipócrita. Intituições de
grande poder político, como a Igreja Católica, também passam a sofrer ataques contudentes.
No Realismo, as personagens heróicas do Romantismo dão lugar a novos protagonistas: as
pessoas comuns, cheias de problemas e limitações que vivem em ambientes urbanos.
Os realistas queriam retratar a realidade da sociedade e acabar com a idealização, desprezando
a imaginação romântica. O objetivo era desmascarar toda a hipocrisia da sociedade e mostrar
o que está acontecendo de verdade no dia a dia das pessoas: adultério, egoísmo e falsidade.
Há nesse período um engajamento em descrever, analisar e criticar a realidade, encarando-a
sem se evadir como faziam os românticos.
No Realismo, a figura feminina é vista pela ótica masculina como um ser equivalente ao
homem, isto é, dotada de virtudes e defeitos e que mostra toda a sua ganância, o seu desejo de
realizar todas as suas vontades e anseios. A mulher já não é idealizada como um ser sublime,
superior e inalcançada pelo homem, mas real, viva e objeto de prazer.
A literatura realista, de certa forma já abre está perspectiva quando mostra a
mulher dentro da condição de realidade e não de idealização. A mulher como
um ser imbuído de virtudes e defeitos como qualquer outro e esta nova
mulher não contém mais seus anseios sexuais, escolhe o parceiro que mais
lhe agrada e não o que é obrigado por convenções sociais, como veremos na
obra Madame Bovary de Gustave Flaubert (francês) e Primo Basílio de Eça
de Queiroz (português) [Grifo do autor.] (FARIAS, 2008, p. 25).
Percebe-se que a mulher não é mais apenas um ser desejado, passivo, mas também desejoso,
ativo, ou seja, não apenas os homens a deseja, mas ela também passou a expressar o seu
desejo, o seu querer.
Muitos foram os romances que tiveram relavado destaque na crítica acerca do Realismo,
contudo, faremos sucinta análise, apenas, das obras O Primo Basílio, de Eça de Queirós e Ana
Karenina, de Léon Tolstói.
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Luísa, personagem principal de O Primo Basílio, uma linda jovem burguesa, que contraiu um
casamento de conveniência com o engenheiro Jorge. Tendo de viajar ao Alentejo, a trabalho,
deixa a mulher entregue a uma rotina entediante, apenas desfeita pelo aparecimento de
Basílio, antigo namorado de Luísa, recém-chegado de Paris. Luísa e Basílio tornam-se
amantes, mas Juliana, criada de Luísa, apropria-se de algumas cartas amorosas enviadas por
Basílio. De posse delas, começa a realizar chantagens e a dominar Luísa, que obedece para
que Jorge não fique sabendo de sua traição. Quando Jorge retorna da viajem, fica sabendo do
ocorrido, mas perdoa a esposa adúltera, haja vista amá-la muito. Luísa é perdoada, mas está
muito debilitada física e psicologicamente, o que a leva a morte. Enquanto isso, Basílio segue
impune e inconsequente, a sua vida de bon vivant, conquistador barato.
Como na maioria dos casamentos da época, Luísa e Jorge não se casam por amor, mas por
conveniência. Ela precisava se casar e esquecer a paixão da juventude por Basílio, e Jorge
precisava de uma esposa bonita e inteligente para apresentar a sociedade. A figura feminina se
apresenta na obra realista O Primo Basílio como uma mulher inteiramente dependente do
homem, e no caso de Luísa, até com certa covardia, no sentido de nunca contrariar as opiniões
do marido, nem mesmo quando ele se referia ofendiosamente contra sua amiga Leopoldina.
─ Ouve lá, é necessário que deixes por uma vez de receber essa criatura. É
necessário é a acabar por uma vez! Luísa fez-se escarlate.
─ É por causa de ti! É por causa dos vizinhos! É por causa da decência! [...]
─ Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece! É a Quebrais! É a Pão-eQueijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: O Carlos Viegas, o magro, de
bigode caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos Madeira, o
picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um jingão
desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme
boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça, dos calos! Tutti quanti!
[...]
─ Como se eu não percebesse que ela esteve aqui! Só pelo cheiro! Este
horrível cheiro de feno! Vocês foram criadas juntas, etc.; tudo isso é muito
bom. Hás de desculpar, mas se a encontro na escada corro-a! Corro-a!
Parou um momento, e comovido:
─ Ora, vamos, Luísa, confessa. Tenho ou não razão? Luísa punha os brincos,
ao espelho, atarantada:
─ Tens ─ disse.
─ Ah! Bem!
E saiu furioso. [sic] (QUEIRÓS, 2010, p. 35).
42
Todavia, Luísa não deixou de buscar a realização de seus desejos, viver um grande amor, ou
ao menos, uma efêmera paixão, que é o máximo que ela consegue com seu primo Basílio. No
afã de realizar seus desejos, Luísa comete um crime: o adultério ─ algo comum na burguesia
lisboeta do final do século XIX. Aqui, neste fato, reside a crítica social do romance à época.
Segundo Santos e Strothmann (200 - ?, p. 7), ―o escritor Eça de Queirós, ao criar a personagem
Luísa que se envolve em adultério, expõe publicamente a representação de um problema
típico da burguesia lisboeta.‖
Um conjunto de fatores faz com que Luísa adoeça gravemente: a chantagem e os maus tratos
impostos por Juliana, o abandono de Basílio e o medo que tem da reação de seu marido Jorge.
Juliana morreu e Basílio se foi, restando apenas seu maior temor ─ Jorge ─, que a perdoa.
Mas nem mesmo o perdão dele é suficiente para que Luísa melhore.
A morte de Luísa foi uma escolha feita por ela mesma, por medo da nova vida que teria ao
lado de Jorge. Pois, se antes de se tornar adúltera Luísa já era dominada por Jorge,
certamente, a partir da traição, mesmo sendo perdoada, levaria uma vida de total submissão a
seu marido. A morte de Luísa é, portanto, a representação de uma escolha feita por uma
mulher que não admitia ter que viver a vida sendo regida pelas vontades de um homem, que
diante da possibilidade de ter que viver uma vida apenas para satisfazer os interesses de um
homem, prefere se entregar a morte.
Ana Karenina é outra figura feminina vitimada pela sociedade patriarcal e hipócrita de seu
tempo. Casou-se com o conde Karenin sem amá-lo, por pura conveniência. Sem nunca
conseguir amar seu próprio marido, apaixonou-se por Vronsky. Karenina confessa ao marido
essa paixão por outro homem, mas ele não aceita a dissolução do casamento. Por receio de
como ficaria a sua imagem diante da sociedade, Karenin até sugere a esposa que mantenha
seu amante, desde que ninguém mais fique sabendo desta relação adúltera.
No entanto, Ana Karenina se rebela, abandona o marido e o filho, e vai viver um namoro
ardente com Vronsky na Itália. Com essa atitude, Ana passa a ser uma mulher separada e
automaticamente excluída da sociedade, que não aceita que uma mulher se separe e muito
menos que venha contrair um novo casamento.
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De volta à Rússia, ambos se deparam com uma sociedade hipócrita que não
aceita a união dos dois, porém, Vronsky poderia frequentar os salões nobres
sozinho, enquanto Ana tem que se manter presa em casa, privada da
liberdade. Esse era o castigo imposto pela sociedade para a mulher que
ousou viver seus sentimentos, sua sexualidade, romper com os padrões
estabelecidos às mulheres naquela época. (FARIAS, 2008, p. 26).
Este castigo imposto pela sociedade a Karenina faz com que ela viva dias de angústia e
revolta, uma vez que Vronsky é abraçado pela sociedade enquanto ela tem que viver
confinada em casa, sendo julgada como o mais claro exemplo de mulher pervertida e imoral .
Mas isso foi uma paga em razão de sua honestidade em não querer se submeter a uma relação
de aparências ou pelo seu adultério? Incrivelmente, foi em razão da primeira proposição, pois
segundo Farias (2008, p. 27), ―a sociedade aceitava a mulher que vivia a dualidade entre
amante e esposo, porém não aceitava aquela que optou pelo amor, por não viver de mentiras e
aparências.‖
Esse trato dispensado pela sociedade a Karenina faz com que ela mergulhe numa profunda
depressão, e seja tomada pelo sentimento de não pertencimento a sociedade que a rodeava, o
que a leva a cometer suicídio se jogando na frente de um trem. O suicídio de Ana Karenina
representa a última voz encontrada por ela para protestar contra a sociedade que lhe excluía.
Quando Ana se sente sufocada pelo casamento de conveniência com Karenin ela pôde pôr um
fim nele e mostrar a sociedade qual era sua vontade, mas diante daquele confinamento
estressante, a única forma de ela gritar que queria liberdade foi tirando a própria vida, e isto,
em local público, para que muitos soubessem da sua morte e pudessem refletir sobre o
tratamento que era dado a mulher na sociedade de sua época.
Ana Karenina e Luísa são filhas de sociedades diferentes ─ russa e portuguesa,
respectivamente ─, mas de uma mesma época ─ final do século XIX. Dessa forma, possuem
muitas características em comum: casamento de conveniência, anseios por um grande amor,
adultério e a morte. Em razão dessas semelhanças muitos pesquisadores chegam a defini-las
como figuras homogêneas, o que observando do ponto de vista do Determinismo, de
Hippolyte Taine (1828-1893), é um equívoco.
O Determinismo é uma corrente filosófica do final do século XIX, que prega que o homem é
produto do meio, isto é, o homem age da forma como o meio social no qual está inserido lhe
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induz às ações. Nesta perspectiva reside o ponto antagônico entre essas heroínas. Ambas
traem seus maridos, no entanto, enquanto Luísa faz de tudo para que Jorge não descubra sua
traição, Ana Karenina age totalmente diferente, indo a Karenin e falando-lhe do seu amor por
outro homem. Luísa reconhece a autoridade de Jorge enquanto marido, mas Karenina enfrenta
seu marido e a opinião da sociedade.
Luísa acaba se tornando cúmplice da sociedade quando procura manter em secreto seu
relacionamento adúltero com Basílio, mas Karenina se nega a fazer parte de uma sociedade
hipócrita, não teme enunciar os seus sentimentos e o seu desejo de se separar de seu marido, o
que a torna um símbolo da transgressão feminina à época.
É no Realismo, numa versão mais crua do período, que a figura feminina ganha contornos
ainda mais reais e ‗desejáveis‘. Essa fase, que ocorre dentro do período realista, chamada de
Naturalismo, surge na França em 1880, com o Romance experimental, de Émile Zola. Este
momento literário é marcado pela influência das ciências biológicas e sociais, o que fará com
que as obras literárias apresentem um retrato fiel do comportamento do homem e de sua
natureza animalesca, enfatizando as mazelas do caráter humano. Na literatura naturalista,
dava-se ênfase ao instinto, à hereditariedade e ao meio ambiente como forças determinantes
do comportamento dos indivíduos.
No Brasil, a obra O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo é o grande expoente do Naturalismo.
Esta obra retrata o quotidiano de um grupo de pessoas que vive em um cortiço. É uma obra
inovadora do ponto de vista que, retrata o proletariado e sua busca por ascensão, e trata de
temáticas como o lesbianismo, além de revelar todo o instinto animal e sexual, do qual o ser
humano é dotado.
Aluísio de Azevedo apresenta personagens femininas investidas de grande sensualidade, e na
mulata Rita Bahiana ―feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e com
muito de mulher‖ (AZEVEDO, 2008, p. 77), vai depositar toda uma carga de sensualidade,
que acarreta em estereótipo acerca da mulata brasileira, tornando-a símbolo de beleza e objeto
do desejo masculino. Rita Bahiana é uma mulher extremamente sensual, o que a torna,
também, alvo de disputa entre Firmo, seu namorado, e o português Jerônimo. Há em torno
dessa mulher uma força destrutiva, pois foi por causa dela que Firmo assassinou Jerônimo.
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O sensualismo desenfreado da mulata surge com toda força em O cortiço, de
Aluísio Azevedo, encarnado na figura de Rita Bahiana, ―fruto dourado e acre
dos sertões americanos‖. Aqui, a dupla adjetivação aponta para a natureza
ambivalente da personagem, ao mesmo tempo sedutora e destrutiva. Eros e
thanatos se associam em sua composição dramática, fazendo-a se destacar
pelos ―meneios‖ de uma ―graça irresistível, simples, primitiva‖, que dão
destaque à sexualidade animalesca pela qual o signo da serpente se inscreve
na cadeia semântica da mulher. O poder destrutivo da mulata ―feita toda de
pecado‖ acarreta o assassinato de Firmo, seu amante capoeirista, e a
desagregação da família de Jerônimo, o imigrante cuja esposa torna--se
alcoólatra e a filha, lésbica e prostituta. [sic] (DUARTE, 2009, p.9).
Se por um lado Aluísio Azevedo apresenta Rita Bahiana independente e certa de sua
sexualidade, por outro nos revela Pombinha, a flor do cortiço, uma jovem bonita, enfermiça e
muito nervosa, loira e muito pálida ─ praticamente uma pintura romântica ─, que vai ser
transformada ao ser seduzida por sua madrinha, a prostituta Léonie, e se tornar lésbica.
Rita Bahiana representa uma quebra do pensamento hegemônico da época, que via a mulher
como um objeto que o homem devia possuir, e, por conseguinte, símbolo de oposição à lei do
casamento. Mas é importante lembrar que este período literário é marcado pela oposição ao
Romantismo. Dessa forma, a figura de Pombinha, de descrições aparentemente românticas,
vem representar o abandono total da idealização feminina em favor da realidade sensual e
profana que muitas mulheres possuem e o Romantismo se negava revelar. Segundo Ferreira
(2010, p. 24):
Pombinha, ainda vai descobrir os prazeres do sexo, seguido de uma
transformação de comportamento radical, atirando-se nas coisas mundanas
como, prostituta, um meio que encontrou para realizar seus desejos e lucrar
com eles logo depois que cometeu adultério e lesbianismo.
Na obra O Cortiço outra personagem feminina que merece ter sua representação analisada é a
negra Bertoleza. Crioula trintona, escrava e muito trabalhadeira, que se mostra muito ingênua
ao confiar a João Romão suas finanças, todo o dinheiro que possuía para comprar sua alforria.
João Romão, ganancioso e avarento, ‗amiga-se‘ com a negra e consegue enganá-la, primeiro,
fazendo dela uma empregada que trabalhe para ele de graça, segundo, mentindo ter pagado a
carta de alforria da escrava ao seu antigo dono.
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Depois que o cortiço foi destruído por um incêndio, João Romão o reconstrói para a classe
média, passa a viver uma vida mais refinada e se interessa em se casar com a filha de
Miranda, vizinho rico de Romão. Mas havia um problema: Bertoleza. Para se livrar deste
empecilho, Romão denuncia Bertoleza a seu verdadeiro dono, que prontamente vai buscá-la.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio
percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a
situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre:
adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma
mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao
cativeiro. [...] A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com
uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de
cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres.
Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um
salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e
fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa
lameira de sangue. [grifo meu] (AZEVEDO, 2008, p. 224-225).
Neste episódio, Azevedo nos apresenta a mulher com características animalescas,
zoomorfizada, isto é, a personagem tem seu comportamento equiparado ao dos animais, haja
vista, ser comparada a uma ‗anta bravia‘, e, rugir e esfocinhar serem ações pertinentes ao
comportamento dos animais. A descrição do ambiente onde Bertoleza se encontra e a sua
postura de quatro pés no chão também corroboram para a visão de que ela nos é apresentada a
semelhança de um animal. A cena denota que ela está de quatro pés no chão às vésperas de
comer o peixe que está tratando. Até a sua reação quando ‗olhou aterrada para eles, sem
pestanejar‘ remota a ideia de um animal assustado diante de seu algoz. Absolutamente,
Bertoleza era um animal que procurava se alimentar quando os ‗caçadores‘ acuaram-na.
Constata-se, ainda, neste excerto, a influência de uma das teorias que inspirava os naturalistas,
a Evolucionista, de Charles Darwin (1809-1882), que acreditava no pricípio da Seleção
Natural, a qual prega que sobrevive no meio apenas os mais fortes. Nesta perspectiva,
Bertoleza estava na iminência de sucumbir pelos sabres dos soldados, mas agindo como um
animal que prefere se lançar em um abismo a ser posto em um cativeiro, suicida-se, não
aceitando a escravidão na qual se encontrava e lutando até a morte por seu direito de
liberdade.
47
Se o Realismo procura combater a idealização feminina presente no Romantismo, mostrando
a mulher como um ser real, de carne e osso, sujeito aos desvios de caráter, o Naturalismo vai
além, quando confere a figura feminina todo um instinto animal. Realismo e Naturalismo são
diferenciados apenas por uma linha muito tênue. Segundo Coutinho (2001, p. 185), ―só
distingue o Realismo do Naturalismo o aparato cientificista deste último, sua união à biologia
e ao determinismo da herança e do ambiente.‖
Dentro da perspectiva do Realismo nos propomos a analisar o suicídio feminino, em Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, obra precursora do movimento realista.
48
4.
O SUICÍDIO DE EMA BOVARY
Este capítulo se propõe a investigar os acontecimentos na vida de Ema Bovary que a levaram
a cometer suicídio, identificando quais motivos fizeram com que uma mulher jovem, de belos
olhos castanhos, tão bonita e inteligente tirasse a própria vida.
A vida de Ema não foi nenhum conto de fadas, antes, foi marcada por muita infelicidade e
insatisfação, desde sua juventude. Logo após receber uma educação esmerada em um
Convento, vai morar com seu abastado pai Rouault em uma fazenda, lugar do qual não
gostava. Pra completar esse desgosto, o próprio pai de Ema deseja se vê livre da filha. ―O
velho Rouault não se desgostaria de o livrarem da filha, que de nada lhe servia em casa‖
(FLAUBERT, 2003, p. 36). Vale lembrar que as mulheres nessa época eram criadas para
casar, formar uma família e viver ao lado de um marido, uma vez que não trabalhavam. Neste
porquê reside o interesse de Rouault para que Ema o deixe.
Absolutamente, a vida bucólica não era apreciada por Ema, por isso ela ansiava por morar na
cidade. A realização deste desejo pôde se tornar realidade a partir do momento em que Ema
conhece Carlos Bovary, médico viúvo com o qual se casa. Carlos, que vivera catorze meses
de sua vida ao lado de uma mulher feia e fria como o gelo, ―agora, possuía, para toda a vida,
aquela mulher bonita, a quem adorava. Para ele o mundo não ia além da sedosa circunferência
das suas saias‖ (FLAUBERT, 2003, p. 48). O médico, certamente, estava muito satisfeito com
seu casamento.
Ema, no entanto, era muito influenciada pelas leituras dos romances românticos que fazia e se
deixava envolver por elas: fantasia um mundo apenas de felicidade, sonha com um ‗príncipe
encantado‘ e com uma vida de glamour. Dessa forma, quando Ema entra em contato com a
realidade ─ totalmente diferente da dos romances que lia ─, se vê cada vez mais distante da
possibilidade de realizar seus anseios romântico-idealizados e começa a refletir sobre o que
realmente seria a felicidade da vida de casada.
49
Antes de se casar, julgara sentir amor; mas, como a ventura resultante desse
amor não aparecia, com certeza se enganara, pensava ela. E procurava saber
qual era, afinal, o significado certo, nesta vida, das palavras ‗felicidade‘,
‗paixão‘ e ‗embriaguez‘, que nos livros pareciam tão belas. (FLAUBERT,
2003, p. 48).
Não bastassem as dúvidas acerca da possiblidade de ser feliz, Ema agora passa a enxergar em
Carlos, costumes e hábitos que não lhe encantam de forma alguma. Percebe que o seu
‗príncipe‘, pelo qual ela gostaria de nutrir algum encanto, na verdade, é um homem
exageradamente simples, com poucos requintes, que come, dorme e que ronca,
impossibilitado de fazê-la viver uma vida embalada por uma ardente paixão. Nem mesmo
todo o fascínio que Carlos tem por Ema é suficiente para fazer com que ela passe a vê-lo com
bons olhos.
Um homem não devia, ao contrário, primar em múltiplas atividades, saber
iniciar uma mulher nos embates da paixão, nos requintes da vida, enfim, em
todos os mistérios? Mas aquele não ensinava, nada sabia, nada desejava.
Supunha-a feliz; e ela não podia perdoar aquela tranquilidade [sic] tão bem
assente, aquela gravidade serena, nem a própria felicidade que ele lhe dava.
(FLAUBERT, 2003, p. 56).
Carlos tinha Ema por feliz, e assim julgava pelo fato de a mulher de nada se queixar a ele. Por
outro lado, Ema aspirava por um homem que a encantasse com coisas novas a cada dia, que a
fizesse muito feliz. Mas o que se pode perceber é que Ema com toda a sua elegância e fineza é
uma mulher com muita carência afetiva e expectativas, as quais não são percebidas nem
correspondidas por Carlos. Deveras, Ema não era uma mulher feita para viver ao lado de um
homem tão sem sofisticação, feito Carlos.
Com o passar dos dias a vida de Ema se torna monótona e até a paixão de Carlos já não era
mais tão excessiva. Os dias se tornaram frios e entediantes, Carlos não se importava com os
pensamentos de Ema, não lhe dava a atenção devida que justificasse todo o amor que julgava
possuir por sua esposa e mesmo as poucas carícias que dispensava a sua mulher pareciam
obrigações quotidianas. ―Beijava-a em horas certas. Era um hábito como os outros e como
que uma sobremesa prevista com antecipação, após a monotonia do jantar.‖ (FLAUBERT,
2003, p. 58).
50
Diante dessa situação, Ema era tomada de profunda angústia, sofria muito e se sentia solitária,
principalmente quando refletia sobre o caminho sem volta que havia escolhido para sua vida:
o casamento. Casamento no qual ela havia posto toda a sua esperança de felicidade, mas
aquela rotina monótona a tornava ainda mais infeliz. Ema não pensava em separação, mas
estava arrependida de ter casado e repetia para si mesma: ―─ Mas, meu Deus! Para que me
casei? ─ E perguntava para si mesma se não haveria um meio, por quaisquer combinações do
acaso, de encontrar outro homem‖ (FLAUBERT, 2003, p. 59).
Ema Bovary estava fadada aos afazeres domésticos, sem uma vida social e condenada a ver
seus anseios serem soterrados pela postura medíocre de seu marido Carlos. Ema queria um
status social elevado e sabia que para isto acontecer dependia do querer de seu marido, como
faltava a ele essas ambições, Ema se enfurecia, ficava nervosa. Para amenizar seu
descontentamento, Ema pegava um livro e ali devaneava sobre aqueles romances, aquelas
histórias lindas, mas quando retornava a realidade de sua vida frustrada, desejava até a morte.
Ema ―tinha desejos de viajar, de voltar para o convento. Ambicionava, ao mesmo tempo,
morrer e residir em Paris.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 78).
Diante de tantos desejos, Ema parece estar confusa e não saber o que quer, mas segundo
Farias (2008, p. 31), ―ela sabia sim! Queria ser feliz, queria uma vida viva, não uma vida
medíocre e sombria‖. Se a sociedade do final do século XIX permitisse, certamente, Ema
lutaria com as próprias forças para realizar os seus sonhos e conquistar, enfim, a tão almejada
felicidade.
A cada dia Ema se encontra mais angustiada e deprimida, e começa a se desprender das
coisas. A mulher que outrora era tão caprichosa e zelosa, com a casa, com o marido, agora se
mostra desleixada de tudo, e até de si mesma. ―Agora ela deixava tudo em casa ir ao léu, [...]
sendo ela outrora tão cuidadosa e delicada, passava agora dias inteiros sem se vestir.‖
(FLAUBERT, 2003, p. 84) Ela era sufocada por aquela mesmice, estava muito cansada de
nada de diferente acontecer em sua vida, que se tornava cada vez mais monótona e entediante,
chegando a crer que Deus a injustiçava.
De repente, Ema engravida. Agora essa heroína possuía um bom motivo ─ um bebê ─ para
repensar em novos objetivos para sua vida, e começa a vislumbrar como seria a criança que
estava prestes a nascer:
51
Desejava que fosse um menino; havia de ser forte e moreno e chamar-se-ia
Jorge; esta idéia [sic] de ter um filho varão era como que a desforra, em
esperança, de todas as suas impotências passadas. Um homem, ao menos, é
livre; pode percorrer as paixões e os países, saltar obstáculos e gozar dos
prazeres mais raros. Uma mulher anda continuamente rodeada de
empecilhos. Inerte e ao mesmo tempo flexível, tem contra si as fraquezas da
carne e as dependências da lei. (FLAUBERT, 2003, p. 110).
Ema desejava que a criança que estava pra nascer fosse um menino, porque sabia o quanto era
sofrido ser mulher na sociedade em que vivia, o quanto era difícil ter que passar toda a vida
presa por um casamento e submissa aos quereres de um homem. E sabia que ser homem, era
justamente o contrário, era sinônimo de liberdade, isto é, de tudo querer e poder fazer.
Tamanha foi a decepção da mãe quando lhe nasceu uma menina, a qual foi batizada de Berta.
Era para Ema como se o seu sofrimento estivesse se perpetuando em sua linda Berta.
No ínterim da gravidez surge o escrevente Léon Dupuis, homem culto, que gosta de viajar, de
admirar o pôr-do-sol e o mar, que almeja concluir seu curso de Direito na capital francesa,
Paris, além de ser amante da música, da pintura e da literatura. Léon era totalmente o oposto
de Carlos. Estava diante de Ema o tipo de homem com o qual ela havia sonhado se casar.
Léon é homem, solteiro, pode fazer o que quiser, então, demonstra interesse pela senhora
Bovary, queria conhecê-la melhor, saber de seus pensamentos e, enfim, pouco a pouco,
deixava-se envolver pela simpatia que existia entre os dois. Ela até percebe o interesse de
Léon, mas não se envolve fisicamente com ele. ―─ É encantador! encantador!... [sic] Mas não
amará alguém? ─ Perguntava a si mesma. ─ A quem? Ora, a mim!‖ (FLAUBERT, 2003, p.
126).
Diante desse convencimento, Ema Bovary começa a viver um grande dilema em sua vida
desgostosa: se entregar ao amor do homem que sempre sonhou ou dar seguimento a sua vida
ao lado do simplório marido. Ela queria ser feliz, mas Carlos não a fazia se sentir assim, nem
lhe trazia, ao menos, esperanças para que viesse a viver essa tão sonhada felicidade, enquanto
que Léon lhe fazia animar o coração, despertava-lhe desejos, fazia com que vivesse um
verdadeiro tormento.
52
Ema chegava a uma doce e dura conclusão: Amava Léon. Doce porque, enfim, encontrou um
homem que demonstrava interesses pelo que ela sentia e dura porque estava presa por um
casamento que não lhe dava ânimo a vida. Mas, o que mais a incomodava era o
comportamento indiferente de Carlos a tudo que ela sentia, foi quando pensou em traí-lo e
fugir com Léon em busca de uma nova vida.
O que a exasperava era Carlos não lhe dar o menor sinal de que suspeitasse
da sua agonia. A convicção dele de que a fazia feliz parecia à moça um
insulto imbecil, e sua segurança a maior das ingratidões. Para quem, pois, se
conduzia ela ajuizadamente? Não era ele, Carlos, o obstáculo de toda a sua
felicidade, a causa de toda a sua miséria, e como que a fivela pontuda dessa
complexa correia que a prendia de todos os lados? [...] A própria doçura do
marido lhe causava revolta. A mediocridade doméstica arrojava-a a fantasias
custosas, a ternura matrimonial a desejos adúlteros. [...] Tomavam-na
tentações de fugir com Léon para qualquer parte, muito longe, e
experimentar uma nova vida. (FLAUBERT, 2003, p. 132-133).
No entanto, não possuía forças para pôr em prática seus desejos de fuga e, por conta disto, se
sentia ainda mais amargurada. Afinal, era uma mulher casada, como poderia fazer tal coisa.
Léon, então, cansa-se desse amor platônico, isto é, de amar e não ser correspondido. ―Léon
estava cansado de amar sem resultado; além disso, começava a sentir a depressão que nos
causa a repetição da vida, quando nenhum interesse a dirige, nenhuma esperança a estimula.‖
(FLAUBERT, 2003, p. 142). Não bastasse a desistência de Léon pelo amor de Ema, o rapaz
vai embora para Paris.
O dia seguinte à partida de Léon foi para Ema muito sombrio e cheio de obscuridades. Nesse
ponto do romance é feita, pelo narrador, uma descrição muito tenebrosa acerca da dor que ela
está sentindo. Várias palavras de conotações negativas que produzem toda uma imagem de
assombro são utilizadas pelo narrador. É como se o estado de espírito de Ema estivesse
contaminando toda a atmosfera à sua volta, com um aspecto, praticamente, lúgubre, ou
mesmo, fantasmagórico:
O dia seguinte foi para Ema um dia sombrio. Tudo lhe parecia envolto em
negra atmosfera que pairava confusamente sobre as coisas, e a tristeza
engolfava-se em sua alma com bramidos lamentosos, como o vento de
inverno nos castelos abandonados. Era o devaneio do que não voltaria mais,
a lassidão que nos toma depois de cada fato consumado, a dor, enfim
(FLAUBERT, 2003, p. 149).
53
A partida de Léon faz com que Ema mergulhe de vez em um grande sofrimento. De repente,
ela vê a oportunidade de ser feliz ir embora e a única coisa que pode fazer é sofrer a perda
daquele que lhe deu alguma alegria naqueles dias de leituras, sozinhos, à sombra, sentados
num banco rústico, no fundo do jardim, além de lamentar por não ter aproveitado a
oportunidade de viver uma bela história de amor com Léon.
―Ah! Ele partira, o único encanto de sua vida, a única esperança possível de
uma felicidade! Por que não agarrara aquela ventura, quando ela lhe
aparecera? [...] E ela se maldisse de não haver possuído Léon; teve sede de
sua boca. Tomou-a o desejo de correr para ele, de lançar-se em seus braços,
de dizer-lhe ‗Aqui estou! Sou tua!‖ (FLAUBERT, 2003, p. 150).
Com a ausência de Léon, Ema perde, novamente, a ventura de viver e se entrega a tristeza. A
oportunidade veio e se foi, levando consigo a esperança de felicidade, restando a ela apenas os
dias maus, cheios de uma amargura profunda e um sentimento de desgraça.
A senhora Bovarry deixou de viver um romance com Léon por conta de sua condição de
mulher casada. Ela sabia que não podia se separar de Carlos senão seria excluída pela
sociedade, da qual fazia parte. Como em resposta a essa sociedade, que a privou de viver ao
lado do homem dos seus sonhos, ela adota hábitos contrários aos costumes femininos da
época, passando a ter um comportamento que se assemelha ao comportamento masculino.
[...] penteava-se à chinesa, com caracóis, em tranças; repartia o cabelo de
lado e envolvia-o para baixo como homem. Apostou um dia com o marido
em como era capaz de tomar meio copo de aguardente; e, como Carlos
cometesse a tolice de desafiá-la, engoliu a aguardente até o fim.
(FLAUBERT, 2003, p. 151).
É em meio a essa demonstração de revolta frente à sociedade, vivendo um momento de saúde
física e psicológica bastantes debilitada, que surge Rodolfo Boulanger, um homem de
inteligência perspicaz e sedutor, um grande conhecedor da alma feminina. Rodolfo se encanta
pela beleza de Ema e percebe o quanto a moça é carente de afeto e o quanto o marido é
ausente nesse sentido. No entanto, Rodolfo não se apaixonou por Ema, queria apenas se
aproveitar sexualmente dela, tinha-a como algo a ser usado e depois jogado fora.
54
─ É encantadora essa mulher do médico! [...] Parece-me bem estúpido o
marido. Ela está decerto, cansada. Que grosseiro! Traz as unhas sujas e uma
barba de três dias. [...] Pobre moça! Suspira pelo amor como uma carpa pela
água [...] Com três palavras de galanteio aquilo será posse adorável, tenho
certeza! Seria delicioso, encantador! Sim, mas como desembaraçar-se dela,
depois? [...] ─ Hei de consegui-la! (FLAUBERT, 2003, p. 156-157).
Em Rodolfo, Ema viu suas esperanças se renovarem, viu novamente a possibilidade de gozar
um amor que a fizesse viver a felicidade que seu marido nunca havia lhe proporcionado. No
início das investidas de Rodolfo, Ema até tenta resistir, ou melhor, tenta fingir nada querer,
mas é puro charme feminino. Na verdade, ela não estava disposta a correr o risco de perder
Rodolfo, aquele homem encantador, como perdeu Léon. Ema queria desfrutar com
intensidade aquele momento de conquista amorosa empreendido por seu amante. Então, numa
cena como nos seus sonhos românticos, entrega-se.
Arrastou-a mais longe, perto de uma lagoa, onde as lentilhas d‘água
refletiam sua verdura nas ondas.
Nenúfares murchos jaziam imóveis entre os juncos. Ao ruído dos passos na
hera, as rãs saltaram para se esconder.
─ Faço mal, faço mal ─ dizia ela. ─ Sou louca em dar-lhe ouvidos.
─ Porquê?... Ema! Ema!
─ Oh! Rodolfo!... ─ disse a jovem lentamente. Reclinando-se em seu ombro.
O pano de seu vestido prendeu-se ao veludo do casaco dele. Curvou o alvo
pescoço, que se dilatou com um suspiro; e, semidesfalecida, banhada em
pranto com um frêmito longo, ocultando o rosto, ela entregou-se.
(FLAUBERT, 2002, p. 189).
A narrativa que em seguida se faz sobre as sensações de Ema, mais uma vez se funde com a
paisagem a sua volta, retratando a confluência que há entre o ambiente e a personagem.
Agora, diferentemente, de quando Léon partiu, os sentimentos de Ema são de prazer e
realização. Ema é tomada por um grande êxtase que só pode ser descrito associando-o a
beleza das imagens que são suscitadas a nossa mente através da seguinte narrativa:
Caíam as sombras da tarde. O sol poente, atravessando os ramos, ofuscava
os olhos da moça. Aqui e ali, à sua volta, nas folhas ou pelo solo, tremiam
manchas luminosas, como se colibris tivessem espalhado suas penas, ao
voar. [...] Alguma coisa de doce parecia emanar das árvores. Ema ouvia o
coração, cujo palpitar recomeçava, e o sangue circulava pelo corpo como um
rio de leite. (FLAUBERT, 2003, p. 189).
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Parecia que Ema, enfim, estava diante da felicidade que tanto almejou conhecer. No entanto,
para Rodolfo, Ema era apenas mais uma em sua longa lista de conquistas. Mesmo assim ela
estava radiante e feliz. O sangue que corria em suas veias parecia ser uma nova vida que ela
sentia fluir em seu corpo, renascia. E, estava satisfeita por ser uma adúltera. Ter um amante,
para ela, era como que uma vingança, primeiro, contra Carlos, que não lhe dava a vida dos
seus sonhos, segundo, contra a sociedade, que não lhe permitia a separação. Então,
[...] dizia consigo mesma: ─ Tenho um amante! Um amante! ─ deleitando-se
com essa idéia [sic], como se fora uma nova puberdade que lhe sobreviesse.
Ia, afinal, possuir as alegrias do amor, a febre da felicidade, de que já
desesperara. Entrava em algo de maravilhoso onde tudo era paixão, êxtase,
delírio; [...] Ema experimentava uma sensação de vingança. Pois não sofrera
já bastante? Triunfava. (FLAUBERT, 2003, p. 191).
Em razão de toda a felicidade que sente, Ema está muito envolvida pelos sentimentos que
Rodolfo Boulanger finge possuir por ela. Afinal, ele era o homem que ela havia sonhado
para a sua vida. Mas, esse envolvimento exacerbado faz com que ela não perceba o quanto
está invadindo a vida de Boulanger e o quanto tem cobrado a fidelidade dele. Agora, se
sentia dona dele e ele tinha que mudar hábitos, para poder administrar a relação entre os
dois, o que faz com que ele a julgue sentimental. ―[...] ela se tornava muito sentimental. Fora
preciso trocarem-se miniaturas, cortarem madeixas de cabelo; e ela pedia agora um anel, um
verdadeiro anel de casamento, em sinal de estima eterna.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 200).
A separação de Rodolfo era iminente, certamente ele não aceitaria se submeter aos caprichos
de Ema. É, então, nesse momento de sua vida, logo após receber uma carta do pai, que Ema
faz uma análise dos acontecimentos que marcaram sua vida desde a sua infância, de todas as
aspirações, até as frustações do casamento que a fizeram alternar entre momentos de
esperança e tristeza, chegando a conclusão de que, realmente, era uma mulher infeliz.
Que felicidade a daquele tempo! Que liberdade! Que esperança! Que mundo
de ilusões! Nada mais havia dele agora! Ela consumira tudo nas aventuras da
sua alma [...] na virgindade, no casamento, no amor ─ perdera todo, assim,
continuamente, no transcorrer de sua vida [...] Mas quem a fizera tão infeliz?
(FLAUBERT, 2003, p. 202-203).
56
Essa triste constatação, no entanto, faz com que Ema, pela primeira vez, dedique um
momento de carinho, de atenção e ternura à sua filha Berta, que vivia largada aos cuidados
dos criados. ―E ela ouvia a filha que ria alegremente. A pequenina estava na relva, entre o
capim espalhado para secar. ─ Traga-me! ─ ordenou Ema, precipitando-se para beijá-la. ─
Como eu te amo, minha pobre filha, como eu te amo!‖ (FLAUBERT, 2003, p. 203).
As coisas entre Ema e Rodolfo se acalmaram, o princípio de rusgas se dissipou e, como em
toda relação amorosa, o retorno dos amantes é sempre mais intenso e o desejo de
permanecerem juntos, ainda mais profundo. Nesse intuito, ela propõe a Rodolfo fugirem para
Paris, a cidade dos sonhos dela. Rodolfo a princípio fica pensativo, mas, como que para
agradá-la, acaba aderindo ao plano.
Ela estava decidida: fugiria com Rodolfo e, enfim, livrar-se-ia do marido medíocre que possui
e será feliz. A moça via nessa viagem a possibilidade de um recomeço para a sua vida e para
buscar os dias felizes que ao lado de Carlos, durante quatro anos, nunca vieram. Mas, Rodolfo
repensou sobre a ideia de fugir e concluiu: ―[...] não posso expatriar-me, ter uma criança ao
meu cargo. [...] E, depois, as dificuldades, as despesas... Ah! Não, não, mil vezes não! Isso
seria bem estúpido!‖ (FLAUBERT, 2003, p. 232).
Rodolfo, na véspera de fugir com Ema, acovarda-se e desiste do plano que havia acordado
com ela. Sem coragem para lhe falar que desistiu de fugir, Rodolfo apenas escreve uma carta
cheia de desculpas esfarrapadas.
E escreveu:
―Coragem, Ema! Coragem! Não quero fazer a desgraça de tua existência...‖
[...]
―Já pesaste maduramente a tua resolução? Sabes o abismo para onde eu te
arrastava, pobre anjo? Não, não é verdade? Ias confiante e louca, crendo na
felicidade, no futuro... Ah! Desgraçados, insensatos que somos!‖ [...]
Pensou, pensou e acrescentou:
―Não te esquecerei, podes crer, e votar-te-ei sempre uma dedicação
profunda; mas, um dia, cedo ou tarde, esse ardor (é o destino das coisas
humanas) decresceria, sem dúvida; seríamos tomados de fadiga e quem sabe,
mesmo, não teria eu a dor atroz de assistir a teus remorsos e eu próprio deles
participar, pois que eu os causara. Só a idéia das tuas aflições tortura-me.
Ema! Esquece-me! Por que havia eu de conhecer-te? Para que havias de ser
tão bela? É minha a culpa? Oh, meu Deus, não, não! Não acuses senão a
fatalidade!‖
─ Eis uma frase que sempre produz efeito ─ pensou.
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―Ah! Se tu fosses uma dessas mulheres frívolas, como se vêem por aí, eu
poderia certamente, por egoísmo, tentar uma experiência, então sem perigo
para ti. Mas essa exaltação deliciosa, que é ao mesmo tempo encanto e
tortura, não te deixou compreender, adorável mulher que és, a falsidade da
nossa posição futura. Também eu não pensei em tal, no começo: deixei-me
ficar ao abrigo dessa ventura ideal, como ao da mancenilheira, sem prever as
consequências.‖ ─ Ela talvez pense que é por avareza que renuncio... Ora!
Que importa! Tanto pior, é preciso acabar com isso!
―O mundo é cruel, Ema. Por toda parte onde estivéssemos, ele nos
perseguiria. Tu terias de sujeitar-te a perguntas indiscretas, a calúnias, ao
desprezo, ao ultraje quem sabe. O ultraje, a ti! Ah... E eu que te queria fazer
sentar em um trono! Eu que trago tua lembrança como um talismã! Porque
eu me puno com o exílio de todo o mal que te fiz. Parto. Para onde? Não sei,
estou louco! Adeus! Sê boa! Conserva a lembrança do infeliz que te perdeu.
Ensina meu nome a tua filha ─ que ela repita em suas preces‖. [...]
Parece-me que é tudo. Ah! Mais uma coisa; tenho receio do que ela ainda
venha procurar-me:
―Quando tu leres estas tristes linhas, estarei longe; quero agir o mais
depressa possível, para evitar a tentação de rever-te. Nada de fraquezas! Eu
voltarei. E, mais tarde, talvez nós conversemos friamente sobre nossos
velhos amores. Adeus!‖ [...]
―Teu amigo‖.
Releu a carta. Pareceu-lhe boa. [sic] (FLAUBERT, 2003, p. 234-236).
Ema ver sucumbir novamente todas as suas esperanças e agora o seu único desejo é a morte.
Ela possuía as razões, a cólera, a oportunidade e o desejo necessário para tal, no entanto,
ainda lhe faltava a coragem para tirar a própria vida.
Apoiara-se no vão da janela e relia a carta com acessos de cólera. [...] Lançou
os olhos em volta, no desejo de que a terra desmoronasse. Por que não daria
fim a tudo? Que a sustava, ainda? Avançou e olhou para a calçada, dizendo
consigo mesma: ─ Vamos, vamos! (FLAUBERT, 2003, p. 237-238).
Diante da incapacidade de pôr um fim na própria vida a senhora Bovary adoece gravemente e
passa vários dias aos cuidados do marido-médico, que nem desconfiava porque sobreveio
tamanha moléstia sobre a esposa.
Nesse momento tão crucial de sua vida, entregue a doença, ela recebe a visita do padre
Bournisien, que a exorta à prática da religião, o que só acontece após uma forte crise que a fez
pedir o sacramento da comunhão. Enquanto esse sacramento era preparado Ema sente seu
corpo sendo curado. A partir disso ela busca refúgio para sua vida sofrida na religião e enterra
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de vez as lembranças que tem de Rodolfo. ―Quis tornar-se santa. Comprou rosários e
começou a trazer amuletos; aspirava ter em seu quarto, à cabeceira da cama, um relicário
emoldurado de esmeralda, para beijar todas as noites. [...] Quanto à lembrança de Rodolfo,
enterrara-a bem no fundo do coração‖. (FLAUBERT, 2003, p. 246-247).
Quando Ema se encontra curada da doença que quase a levou à morte e feliz com as
novidades da religiosidade, um fantasma do passado reaparece: Léon, que mesmo após três
anos sem vê-la, não havia perdido a esperança de possuir a mulher do médico. Esse
reencontro é marcado por confissões amorosas de ambos sobre acontecimentos entre eles no
passado e por incisivas investidas de Léon contra Ema, no afã de conquistá-la.
A narrativa não deixa claro o ato, mas permite o transparecer da ideia de que Ema trai Carlos,
se entregando a Léon após um encontro numa igreja, durante um demorado passeio de
carruagem por quase toda a cidade, que durou das onze horas da manhã até quase às seis
horas. ―[...] os burgueses abriam muito os olhos, ante aquela coisa tão extraordinária na
província: uma carruagem, com as cortinas descidas, e que reaparecia continuamente, mais
fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 279).
Ema não se deixou perder a nova oportunidade que a vida lhe dava, de viver uma grande
aventura amorosa com Léon. Logo após a morte de seu sogro achou pretexto para ir à cidade,
e lá, encontrar-se com seu amante. ―Foram três dias cheios, raros, esplêndidos, uma
verdadeira lua-de-mel.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 293). E ela teve sucessivos encontros com ele.
Esses encontros eram repletos de beijos e carícias apaixonadas e de palavras de ternura,
marcados por uma mútua felicidade e alimentados por um desejo áspero recíproco. Ema se
deliciava quando estava com Léon, mas uma desconfiança pairava sobre sua mente, afinal, ela
já havia vivido momentos de encanto e felicidade como esse e viu tudo se dissipar
repentinamente. ―Ema saboreava aquele amor de modo discreto e absorto, alimentava-o com
todos os artifícios da sua ternura e temia um pouco que ele se perdesse mais tarde.‖
(FLAUBERT, 2003, p. 308).
Ema quando se sentia segura de sua paixão começava a querer moldar seu amante à
semelhança dos homens pelos quais ela suspirava. Assim como fez com Rodolfo, ela também
começou a dominar as maneiras e os hábitos de Léon.
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Ema quis que ele se vestisse todo de preto e deixasse crescer a pêra para se
parecer com os retratos de Luís XIII. Desejou conhecer-lhe o quarto e achouo medíocre; [...] Pediu versos, para ela, um poema de amor em sua honra;
Léon [...] Não discutia as idéias [sic] dela e aceitava-lhe todos os gostos; ele
era mais amante dela do que ela era sua. [grifo do autor] (FLAUBERT,
2003, p. 317).
Léon, como todo homem livre que reluta a não se deixar governar por uma mulher, não gosta
das exigências feitas por sua amante, mas Ema exerce um grande domínio sobre ele, o que o
acovarda e lhe impede de fazer qualquer queixa ou expressar qualquer insatisfação a sua
exuberante amante. ―[...] Revoltava-se contra a absorção, cada vez maior, da sua
personalidade. Não perdoava a Ema aquela vitória permanente; esforçava-se até por não a
amar; depois, ouvindo-lhe o ranger das botinhas, sentia-se covarde‖. (FLAUBERT, 2003, p.
324). Léon estava insatisfeito com a relação que tinha com a mulher da qual não conseguia se
desenvincilhar.
O amor entre os dois já não era mais tão envolvente ao ponto de causar uma paixão de total
dependência entre os dois, como outrora. O sentimento que a dominava agora era o de que
Léon é igual a todos os outros homens que ela conheceu: incapazes de heroísmo, fracos,
banais, avarentos, pusilânimes e medíocres, longe dos que ela conhecia nos livros e que
idealizava. Ema começava a ser dominada por um enorme vazio, apesar de amar o escrevente.
―E Léon apareceu-lhe, de súbito, tão remoto como os outros. ─ E contudo eu o amo! ─ dizia
consigo. Apesar disso, não era feliz, nunca o fora. De onde vinha, pois, aquela insuficiência
da vida, aquele apodrecimento instantâneo das coisas em que se apoiava?‖ (FLAUBERT,
2003, p. 324).
Da mesma forma, Ema tenta romper com Léon, a vida de adúltera não a seduz mais, contudo,
ela não sabe como pôr um fim nessa relação.
Ela sentia-se tão desgostosa dele, como fatigado dela ele estava. Ema
reencontrava no adultério toda a insipidez do lar conjugal. Mas como
desembaraçar-se? [...] Acusava Léon das suas esperanças malogradas, como
se ele a tivesse atraiçoado; e desejava até uma catástrofe que trouxesse
consigo a separação, visto não ter ela a coragem de se decidir. (FLAUBERT,
2003, p. 331).
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Não bastassem todas as amarguras de sua vida: o casamento de frustrações e os abandonos de
seus amantes. Ema se vê afundada em uma dívida que soma oito mil francos, fruto de seus
caprichos com compras de coisas desnecessárias para casa, livros que não lia e presentes para
seus amantes ─ uma vez ela comprou um chicote de cabo de prata dourada para Rodolfo. As
promissórias de suas dívidas, na maioria das vezes feitas sem o consentimento de Carlos, se
amontoam e começam a ser cobradas pelo comerciante L‘Heureux e culmina na penhora dos
bens de sua casa.
Desesperada e sem dinheiro, Ema procura Léon para poder ajuda-la, sugere até que ele desvie
dinheiro do cartório em que ele trabalhava, em vão, ele não pôde ajuda-la. Tentou conseguir
mil escudos emprestados junto ao tabelião, mas esse quis possuí-la em troca do dinheiro, no
entanto, naquele momento, ela não se submeteu a ter relações sexuais sem afinidade com
aquele homem, muito menos vender seu corpo por dinheiro, como se fosse uma prostituta.
[...] quando ela lhe pediu 1 000 escudos, cerrou os lábios e em seguida
declarou-se penalizadíssimo de não haver tido em tempo a direção dos seus
haveres, pois havia cem meios muito cômodos, para uma senhora, de fazer
render o dinheiro. [...] e ao mesmo tempo ia avançando as mãos pela manga
de Ema para lhe apalpar o braço. Ela sentia na face o sopro de uma
respiração ofegante. Aquele homem a constrangia horrivelmente. [...] O
senhor aproveita-se imprudentemente da minha aflição! Eu sou para
lastimar, mas não para vender! (FLAUBERT, 2003, p. 345-346).
Mas, em seguida, Ema se oferece ao preceptor Binet, que a rejeita. ―Ema propunha-lhe, sem
dúvida, uma abominação, porque o preceptor [...] de repente, como se visse uma serpente,
recuou para longe, exclamando: Minha senhora! Pensou nisso!‖ (FLAUBERT, 2003, p. 348349).
A última esperança de Ema Bovary era Rodolfo Boulanger lhe emprestar o dinheiro. Mas,
apesar de lhe fazer juras de amor, ajoelhado diante dela e de estar cercado pelo luxo de seu
castelo, Boulanger, disse não ter a quantia que ela precisa. Ema lhe volta toda a sua decepção
e revolta, afinal, ele dizia amá-la e justo no momento em que ela necessita dele ele lhe repele.
―─ Não os tenho! ─ respondeu Rodolfo com perfeita serenidade com que se cobrem como um
escudo as cóleras resignadas.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 355).
61
Ema Bovary não possuía mais nenhuma saída, ninguém mais a recorrer. Até aqueles que lhe
juraram amor abandonaram-na, estava só. Havia chegado ao mais profundo abismo e não
sabia como sair de lá. É nesse momento que ela tem um acesso de loucura e sente um total
desprendimento à vida. ―A loucura invadiu-a, teve medo e afinal conseguiu retomar posse de
si, de maneira confusa [...] e conhecia que a alma a abandonava [...] como os feridos, ao
agonizar, sentem que a existência se lhes vai pela chaga que sangra.‖ (FLAUBERT, 2003, p.
355).
Desiludida, sem esperanças, sem dinheiro e sem amor, até por si mesma, Ema invade a
farmácia, encoraja-se e come arsênico como quem tem pressa para se ver livre da situação que
tanto aflige, procurando na morte por envenenamento pôr um fim no sofrimento de sua triste
existência, uma fuga para longe de sua vida infeliz. Mas a morte não veio imediatamente, o
que fez com que Ema, mesmo em face ao suicídio e à morte, zombasse desse momento
lúgubre: ―Ema analisava-se curiosamente, para ver se sofria ou não. Mas não! Por enquanto,
nada! [...] ─ Que coisa insignificante é a morte! ─ pensava ela. ─ Vou adormecer de novo e
tudo acabará!‖ (FLAUBERT, 2003, p. 358).
Mas de súbito o sofrimento final veio, arrebatando-a de maneira horrível. ―Depois, começou a
gritar horrivelmente. Amaldiçoava o veneno, invectivava-o, pedia-lhe que se apressasse‖.
(FLAUBERT, 2003, p. 362). A isto ―Seguiu-se uma convulsão; que a fez de novo deitar.
Todos se aproximaram. Ema não existia mais.‖ (FLAUBERT, 2003, p. 368).
Nesse contexto, percebe-se que o suicídio de Ema Bovary encontra guarida nas reflexões de
Durkheim (2008) como suicídio egoísta, uma vez que a protagonista Flauberniana transgride
as ―normas‖ sociais, ou seja, vai de encontro à hegemonia social, se desviando do seu ―lugar‖
no seio da sociedade. Ema, na impossibilidade de lutar para transformação de uma situação
em que ela era apenas um elemento, em que não poderia ser um agente, resolve morrer, ou
seja, sair dessa ―guerra‖ em que ela jamais seria vencedora. Para isso ela não pensa nas
consequências dos seus atos para outras pessoas, como para a filha, por exemplo, o que não
deixa de ser um fator egoísta, além de ter se preocupado, o tempo todo, com o próprio prazer
e com a realização de suas idealizações. Essa seria a visão da sociedade para as atitudes da
jovem senhora.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo proposto por essa monografia foi analisar o suicídio de Ema Bovary, em Madame
Bovary, identificando e analisando os acontecimentos na vida dessa personagem que
contribuíram para seu suicídio.
Para que fosse possível atingir os objetivos desta pesquisa, foi necessário, antes, conceituar a
Literatura. Nesse ponto, percebeu-se que a Literatura é um objeto de estudo amplo e de difícil
sistematização em definições precisas, haja vista sofrer a influência de muitas ciências, como
a Psicologia e a Sociologia, por exemplos, o que a torna um objeto com muitos significados a
depender do ponto de vista a partir do qual é analisada, podendo ser conceituada desde arte
até à ciência. Dessa forma, podemos, também, sob a égide da Sociologia, que compreende a
Literatura como uma ciência social, que a vê como uma arte que transfigura o real, figura-la
como sendo, uma realidade social recriada por seu autor.
Após o estudo do que vem a ser o ato suicida, sob a perspectiva da sociologia de Durkheim,
tornou-se possível entender, de forma prática, que o suicídio é o ato ‗positivo ou negativo‘
pelo qual um indivíduo põe fim a sua própria vida, ou seja, o indivíduo realiza um ato
querendo ou não o fim de sua existência, mas que sempre resulta em sua morte, diferente da
visão do senso comum que acredita que o suicídio é, apenas, o ato ‗positivo‘ realizado pelo
indivíduo voltado contra ele mesmo. Quanto às motivações para o suicídio, as causas são
várias, por isso as tipologias Anômico, Altruísta e Egoísta. E o ato suicida está ligado
diretamente à condição de integração do indivíduo à sociedade, quando há a ausência de uma
coesão social entre sociedade e indivíduo, este se torna mais vulnerável a se suicidar.
No panorama traçado acerca de como está representada a figura feminina, pela ótica do
masculino, desde o Trovadorismo até o Realismo, analisando a condição e o comportamento
feminino frente ao contexto sociocultural da época nos quais estão inseridas, viu-se que a
mulher, por séculos, viveu em uma condição de total submissão ao homem. E que até o
Romantismo a figura feminina era apresentada de forma idealizada, perfeita e inalcançada por
seu amante, tornando-a um ser sublime. Havia, também, uma idealização moral, a qual visava
a mulher perfeita, segundo os interesses masculinos.
63
Mas a literatura, nesse período, também ficou marcada pelas mulheres que não se submeteram
ao modelo de mulher imposto pela sociedade vigente em cada época, a exemplo Inês Pereira,
de Gil Vicente. No entanto, é no Realismo que o sexo feminino se apresenta rebelado de uma
vez, opondo-se a ótica de seu tempo e buscando a plena realização e satisfação de seus
sentimentos, mesmo que para isso fosse necessário ultrapassar até as regras do casamento,
como fizeram Luísa, de O Primo Basílio, e Ana Karenina, do romance de mesmo nome.
É nesse contexto de rompimento com os padrões sociais estabelecidos, que a obra Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, está situada. Nela foi estudado o comportamento de Ema
Bovary, mulher sonhadora, romântica e ingênua que está inserida em um contexto histórico
em que se combatia a fantasia e a idealização em função de uma nova visão de mundo
baseada na realidade e na racionalidade, mas Ema não se dá conta disso e sofre em razão de
tentar viver sob sua visão de mundo idealizado.
Ema teve sua personalidade muito influenciada pelos romances que lia quando estava no
isolamento do convento e fantasiava uma vida de muito glamour, mas a tão sonhada sensação
de felicidade não vem. Ainda em sua lua-de-mel começa a se decepcionar com seu apático
marido Carlos e, logo se vê entediada, angustiada e arrependida de ter se casado. É, para ela,
uma realidade muito contrastante com a qual ela conhecia nos livros e sonhava viver.
Na tentativa de viver essa tão almejada felicidade ela se apaixonou por Léon Dupuis, mas se
revolta por não poder desfrutar desse novo amor, haja vista ser uma mulher casada. No
entanto, quando ela é cortejada por Rodolfo Boulanger ─ homem cheio de requintes, muito
diferente de seu marido, na verdade, um bon vivant que queria apenas se aproveitar
sexualmente dela ─, encoraja-se e se entrega ao adultério no afã de sair da monotonia
deprimente que se encontrava, até se encontrar novamente entediada. Concomitante a isso, as
muitas dívidas contraídas por Ema, que culminaram na penhora de todos os seus bens,
também tiveram grande peso para seu suicídio.
Ema Bovary, ou Madame Bovary, procurou de diversas formas preencher o seu vazio
existencial, mas não conseguiu. O casamento com Carlos, suas aventuras amorosas ilícitas, as
compras que a endividaram e até a religião não a satisfaziam. Dessa forma, diante desse não
contentamento com a vida, Ema mostra-se ingênua e impotente para satisfazer seus desejos e
seus objetivos e, por não conseguir adequar seus anseios à realidade de sua época, tampouco
64
evitar que sua vida se resuma a uma frustração total de suas expectativas, deixou claro que
prefere morrer a enfrentar as situações difíceis que a vida a todos proporciona.
Flaubert nos apresenta uma mulher ingênua que se deixa levar pelo mundo de fantasia dos
livros e que se encontra presa a uma condição social, mas que almeja uma ascensão social,
embora, sem sucesso. Sua árdua luta no intuito da concretização de seus anseios e de
experimentar a felicidade é frustrada porque Ema sempre procura em outra pessoa o amparo
para o êxito, no entanto, é sempre abandonada e se encontra entregue ao sofrimento de sua
vida insatisfeita.
O suicídio é um tema que mete medo em muita gente, por, geralmente, ser praticado de forma
brutal e que, infelizmente, tem aumentado consideravelmente o número de mulheres que têm
recorrido a esta prática para tentar pôr um fim às dores provocadas por suas existências
sofridas. Espero que este trabalho possa contribuir para uma reflexão acerca do papel da
mulher em nossa sociedade, bem como, atender às expectativas daqueles que se interessam
por Literatura e pela discussão do gênero.
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