AS ONDAS DO MAR TIN VIGO: UMA PERSPECTIVA SIMBÓLICA DO ACERVO
LITERÁRIO DE MARTIN CODAX
Tatiane Santos de Araújo (Mestranda / UEFS)
Assim como ocorre à grande maioria dos autores da lírica medieval galegoportuguesa, são poucos também os dados biográficos que chegaram até nós sobre Martin
Codax. Acredita-se que o mesmo tenha sido um jogral ou segrel de origem galega. Tal
inferência acerca da sua naturalidade se constrói à luz das recorrentes referências a Vigo,
cidade do sul da Galiza, nas suas cantigas. Esse dado leva a crer também que Vigo tenha sido
o principal cenário de sua atividade poética.
Considerando-se o estilo e a temática das composições codaxianas, bem como da
posição por elas ocupada nos cancioneiros collocianos, Giuseppe Tavani (GRLMA) situa a
atividade poética de Martin Codax em meados ou no terceiro quartel do século XIII. Já
Resende (1994), acredita que outros estudiosos a situem nesse mesmo período, próximo ao do
Cancioneiro da Ajuda, mas de acordo com outro critério: o tipo de notação musical e os
aspectos paleográficos do documento. JJ Nunes (2003) supõe que o poeta tenha frequentado a
corte de Afonso III, em função da inserção de suas cantigas no Livro das trovas que o Conde
de Barcelos mandou colecionar em 1365, a Afonso XI, rei de Castela e Leão.
As cantigas de Martin Codax, sete ao todo e exclusivamente de amigo, foram
encontradas no Pergaminho Vindel1 e posteriormente aparecerão nos cancioneiros italianos
(da Biblioteca da Vaticana e no da Biblioteca Nacional de Lisboa, respectivamente com os
números 884 a 890 e 1278 a 1284), na mesma ordem com que aparecem no manuscrito.
A transcrição das cantigas que serão aqui utilizadas é a edição crítica de Celso Ferreira
da Cunha, tirada do pergaminho do século XIII e publicada em 1956. Esse pergaminho é tido
por muitos estudiosos como o que representa uma tradição textual menos deficiente do que a
dos apógrafos italianos. É inegável o reconhecimento da relevância dada a esse pergaminho,
em função da presença da notação musical das cantigas as quais se referem, afinal são as
únicas da lírica trovadoresca acompanhadas da respectiva notação musical.
ISBN: 978-85-7395-211-7
O que mais chama a atenção de muitos estudiosos no cancioneiro desse poeta é a sua
suposta unidade sequencial, ou seja, as sete cantigas desenvolveriam uma história, uma
sequência narrativa. Há quem refute tal possibilidade como Ana Carolina Michaelis e há
quem a defenda como Tavani (1983) e Azevedo Filho (1996)2. Para alguns como Azevedo
Filho (1996), essas cantigas têm inclusive caráter dramático, considerando o aspecto impuro
do gênero cantiga de amigo.
Mesmo estando consciente das discussões e divergências que circundam o caráter
narrativo e, portanto sequencial de tais composições, o presente estudo compreende as
cantigas de Codax, assim como Tavani (1983, p. 157): “são partes de um único texto”. Logo,
o objeto de análise em questão é a série completa e não a particularidade de cada cantiga.
Além disso, trata-se de um estudo que não visa buscar argumentos que fundamentem o caráter
narrativo das cantigas, pois já as compreende como um texto único.
As cantigas de Codax falavam ao seu tempo e ainda podem falar ao nosso, mesmo
diante de evidências de condições determinadas pela diglosia e pela ausência de uma
+normalização cultural que podem limitar ou distorcer a nossa recepção desses textos. É nessa
perspectiva que propomos uma análise do texto codaxiano, tendo por recorte temático as
evidências que conduzem a uma simbologia da água, latente nas ondas do mar de Vigo,
elemento tão recorrente nos referidos versos.
As cantigas de amigo são de origem popular e autóctone, isto é, na própria península
ibérica. Essa canção, imaginariamente feminina (afinal trata-se de uma expressão em bocas
femininas, de uma perspectiva masculina acerca da mulher), na esfera galego-portuguesa,
destaca-se entre outras razões pela variedade temática. É considerável o número de cantigas
que se referem à romaria que a amiga faz a um santuário, a exemplo de o Vigo. O fato é que a
suposta peregrinação servia de pretexto poético para o encontro dos amantes.3
De acordo com Lapa (1981, p.191), quem protagoniza as cantigas de amigo é uma
rapariga, aparentemente simples e ingênua. O advérbio aparentemente não se insere ao acaso
nesse discurso de Lapa, uma vez que a mulher tinha noção da sua feminilidade, e apesar da
suposta fragilidade que se cria em torno da paixão ou do ressentimento que sentia, ela
mostrava-se forte e determinada a defender seu amor.
Na cantiga de amigo, surgem outras personagens como a mãe, a irmã, as amigas e
também elementos da natureza, como é o caso do mar de Vigo. Há quem acredite que a mãe e
a confidente não passem de mero artifício literário para dinamizar as composições. Quem
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assim pensa, não está a considerar que no texto poético trovadoresco nada é gratuito, na
ausência dos homens em função da guerra, a proteção das mulheres recaía sobre a mãe e a
confidente exercia um forte papel de mediadora dos romances.
Na poesia lírica trovadoresca, especificamente nas cantigas de amigo, a natureza pode
ter uma mera função decorativa, pode servir como mensageira do sofrimento amoroso da
amiga, bem como sua confidente. Mas pode ter também um forte papel, estabelecendo com o
artista, como propõe Spina (1966, p.131), um jogo de relações do qual eclodem três
possibilidades: ou artista lança seus estados sentimentais sobre a paisagem, ou a paisagem
desperta nele estados de alma ou ainda, a presença do contraste entre a paisagem e o estado
emotivo do poeta.
No texto codaxiano, pode-se notar que além de confidente da amiga, a paisagem
suscita emoções nesta, despertando-a para as alegrias do amor, para a saudade, para a paixão,
para a angústia e também para a esperança. Lembrando que a função de mensageira das
notícias do amigo amado também é uma constante.
Numa leitura rasa das cantigas de Codax, as mesmas assim se resumem: na cantiga I, a
protagonista interpela as ondas e o amante ausente, provavelmente em função de uma
expedição a serviço do rei, para que ele volte depressa; na cantiga II, certa de que o amigo
voltará são e salvo, a mulher se dispõe a esperá-lo no porto, para tanto, pede em vão, na
cantiga III, a companhia da mãe e da irmã; na cantiga IV, ela estará sozinha e
angustiadamente esperançosa da volta do amigo, logo, convoca também em vão, na cantiga V,
a cumplicidade de todas as mulheres apaixonadas; diante de mais uma frustração, ela acaba
por realizar, na cantiga VI, diante da igreja de Vigo, uma dança solitária; e na última cantiga,
a VII, a mulher reinvoca as ondas para que estas justifiquem a demora do amigo.
Interpretar uma obra de arte sob uma perspectiva simbólica não constitui eliminar
dessa obra sua intelectualidade ou modo direto com o qual ela se expressa, pois o símbolo não
suplanta a realidade nem extingue o signo. O símbolo é polissêmico, por isso não aceita
reduções ou aprisionamentos. Dessa forma, ao estudá-lo estamos vulneráveis ao anacronismo.
Afinal, é natural do símbolo romper os limites estabelecidos e unir os extremos numa só
visão. De acordo com o Dicionário temático do ocidente medieval, na Idade Média, o símbolo
se dá numa relação de analogia:
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O pensamento analógico medieval esforça-se especialmente para
estabelecer um vínculo entre alguma coisa aparente e alguma coisa oculta;
e, mais particularmente ainda, entre o que está presente no mundo terreno e
o que tem seu lugar entre as verdades eternas do além. 4
Assim, tudo pode ser dotado de função simbólica, podendo, portanto representar,
evocar ou significar outra coisa além do que está literalmente exposto. No mundo simbólico,
sugerir é mais importante que dizer.
A ambivalência é necessária ao bom funcionamento do sistema simbólico, logo as
relações entre os mais diversos elementos são mais polissêmicas do que a soma de
significações isoladas que tem cada um desses elementos.
O aspecto representativo ou simbólico da linguagem, assim como bem lembra Paulus
(1975, p.2), remonta aos medievais através do culto aos santos e às imagens. Daí, o caráter
dual dessa prática: quem cultua imagens serve-se de duas realidades, a real e a representativa.
Ao analisar as cantigas, perceberemos as relações de imagens, de ideias, de crenças e
de emoções evocadas através das ondas do mar de Vigo, ou seja, discutiremos as influências e
representatividades do elemento aquático considerando, como já foi dito outrora, todas as
implicações decorrentes das distinções histórico-sociais e culturais entre o presente estudo e a
referida obra.
Os signos poéticos abarcam uma dupla significação, aquela subsidiada pelo
simbolismo medieval e aquela inevitável perspectiva simbólica de quem busca compreender
os sentidos de um texto medieval, estando no século XXI e sendo por este, muitas vezes,
inconscientemente influenciado.
Em Martin Codax, o mar de Vigo pode até ser um ponto de encontro dos amantes, mas
não é só, pode representar também um acalanto para a mulher que aguarda angustiadamente
notícias do amigo, podendo até corresponder a outras simbologias.
É de 1097 a primeira referência documentada de Vigo na Idade Média. No século XII,
essa aldeia pegada ao mar, dividiu-se em duas paróquias: Santa Maria de Vigo e Santiago de
Vigo. Tais santuários eram propositalmente construídos na beira do mar como uma tentativa
de vencê-lo por meio de diversas imagens de Jesus e dos Santos.
Dançar em festas e romarias, dentro ou fora da igreja, era um hábito eclesiástico e civil.
Tanto a igreja quanto a praia eram ambientes coletivos e sociais, isso implica dizer que ,
assim como iam à igreja dançar, as raparigas também iam se banhar na praia com os seguintes
propósitos, ou melhor, pretextos: serem observadas ou participarem de um encontro amoroso.
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Diante do exposto, a forte presença do elemento aquático no códice de Martin Codax
torna possíveis interpretações simbólicas que envolvem elementos como água, ondas, mar,
oceano. Vejamos a primeira cantiga:
I - (N 1; B 1278; V 884)
Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo?
E ai Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
se vistes meu amado?
E ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro?
E ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado,
por que ei gram coidado?
E ai Deus, se verrá cedo!
Nessa primeira cantiga, a moça reclama às ondas a ausência do amante. O verso que
identifica o refrão é ao mesmo tempo uma pergunta e um desejo: ela quer saber se o amigo
voltará logo e deseja ardentemente que isto aconteça. A moça tem então uma relação
metonímica com o mar e, talvez, ter por confidente um elemento feminino a deixe mais à
vontade. Ela se dirige às ondas que podem simbolizar uma ruptura. Afinal, por dar ideia de
movimento, as ondas são as responsáveis pela separação, pelo distanciamento. Ao levar seu
amado, as ondas rompem a relação de proximidade entre o casal dando início à coita amorosa.
II - (N 2; B 1279; V 885)
Mendad’ ei comigo
ca vem meu amigo:
E irei, madr’, a Vigo!
Comigu’ ei mandado
ca vem meu amado:
E irei, madr’, a Vigo!
Ca vem meu amigo
e ven san’e vivo:
E irei, madr’, a Vigo!
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Ca vem meu amado
e ven viv’e sano:
E irei, madr’, a Vigo!
Ca ven san’e vivo
e d’el-rei amigo:
E irei, madr’, a Vigo!
Ca ven viv’ e sano
e d’e-rei privado:
E irei, madr’, a Vigo!
O tom da segunda cantiga é de esperança, euforia e ansiedade, pois a moça recebe
boas novas do amado que está vivo e são e se dispõe a esperá-lo no porto em Vigo. Como já
vimos, os objetivos de quem ia às ermidas eram previsíveis e neste caso a moça prepara-se
para um reencontro amoroso, que em função do seu longo sofrimento, pode ser avassalador e
não se limitar apenas a fortes abraços e juras de amor.
III - (N 3; B 1280; V 886)
Mia irmana fremosa, treides comigo
a la igreja de Vig’, u é o mar salido:
E miraremos las ondas!
Mia irmana fremosa, treides de grado
a la igreja de Vig’, u é o mar levado:
E miraremos las ondas!
A la igreja de Vig’, u é o mar salido,
e verrá i, mia madre, o meu amigo:
E miraremos las ondas!
A la igreja de Vig’, u é o mar levado,
e verrá i, mia madre, o meu amado:
E miraremos las ondas!
IV - (N 4; B 1281; V 887)
Ai Deus, se sab’ ora meu amigo
com’eu senheira estou en Vigo!
E vou namorada!
Ai Deus, se sab’ ora meu amado
com’ eu em Vigo senheira manho!
E vou namorada!
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Com’ eu senheira estou en Vigo,
e nulhas gardas non ei comigo!
E vou namorada!
Com’ eu en Vigo senheira manho
e nulhas gardas migo non trago!
E vou namorada!
E nulhas gardas non ei comigo,
ergas meus olhos que choran migo!
E vou namorada!
E nulhas gardas migo non trago,
ergas meus olhos que choran ambos!
E vou namorada!
Na terceira cantiga, a moça recorre à mãe e à irmã para acompanhá-las nesse momento
marcante, mas ela acaba sozinha e não por acaso faz questão de enfatizar isso na cantiga
seguinte. Ela interpela a Deus, não mais às ondas, de modo a, de certa forma, culpá-lo, pois é
provável que seja raro está só em Vigo e este é o momento propício para ela se entregar ao
amor sem ressabiar-se. As ondas simbolizam também o que se deixa levar pelos perigos da
sedução aos quais alguém se lança sem controle. As ondas salidas e levadas do mar de Vigo
podem também metaforizar o amor como uma força imperiosa. Sem falar que o próprio mar
também simboliza a hostilidade de Deus.
Nesta quarta cantiga, que pode ser tida como o núcleo da história, o eu lírico abandona
o tempo futuro, dominante nas três primeiras cantigas, e recorre ao tempo presente, momento
em que toma consciência de sua solidão. Nas cantigas seguintes, renova-se a esperança.
V - (N 5; B 1282; V 888)
Quantas sabedes amar amigo
Treides comig’ a lo mar de Vigo:
E banhar-nos-emos nas ondas!
Quantas sabedes amar amado
treides comig’ a lo mar levado:
E banhar-nos-emos nas ondas!
Treides comig’ a lo mar de Vigo
e veeremo’ lo meu amigo:
E banhar-nos-emos nas ondas!
Treides comig’ a lo mar levado
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e veeremo’ lo meu amado:
E banhar-nos-emos nas ondas!
VI - (N 6; B 12838; V 889)
Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido:
Amor ei!
En Vigo, no sagrado,
bailava corpo delgado:
Amor ei!
Bailava corpo velido,
que nunca ouver’ amigo:
Amor ei!
Bailava corpo delgado
que nunca ouver’ amado:
Amor ei!
Que nunca ouver’ amigo,
ergas no sagrad’, en Vigo:
Amor ei!
Que nunca ouver’ amado,
ergas en Vigo, no sagrado:
Amor ei!
Na quinta cantiga, há um misto de dor, alegria e esperança. Consciente do seu estado
de solidão, a donzela convoca aquelas que têm namorado e que sabem amar - pois só estas,
assim como ela, sabem a dimensão da dor provocada pela ausência do amado – para
partilharem uma espécie de dança da solidão. Por outro lado, essa dança coletiva sugere uma
afronta, um brado de esperança ao mar ou ao rei, responsáveis pela ausência do amigo, pode
representar também a alegria, a ansiedade decorrentes da certeza da volta do amigo.
O refrão dessa cantiga V traz consigo uma outra possibilidade de leitura: o movimento
das ondas, assim como o movimento da dança, sugere uma sensualidade. A excitação marinha
e erótica é marcada pela constituição lexical e morfológica das rimas pares. O erotismo surge
nas metáforas aquáticas. E o refrão da cantiga V sugere com a temática do banho, uma
espécie de ritual de amor. A água é então recuperada como uma força poderosamente viva e
simboliza, no pensamento mágico-religioso, renovação, transformação, vida. Assim, as ondas
do mar de Vigo como elemento erótico dá-se claramente na referida cantiga.
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Na sexta cantiga, o baile coletivo parece ser apenas uma evocação, pois a donzela está
novamente sozinha em Vigo, diante do oceano que simboliza primordialidade, sugerindo
então o lugar em que o casal encontra-se pela primeira vez. Ela passa a se auto-elogiar, a
contemplar o belo corpo até então intocável e fremente de desejo, prevendo talvez naquele
lugar o seio de sua entrega.
Nesse processo, a sedução está na espera. A longa e paciente espera é o centro da
motivação lírica. Assim, a donzela, deve sossegar e controlar seu corpo e suas emoções, o que
só vem a somar na sua arte de seduzir, da qual o amigo desfrutará num futuro incerto.
Na sétima e última cantiga, impaciente com a demora do amigo, a protagonista
reinvoca as ondas:
VII - (N 7; B 1284; V 890)
Ai ondas, que eu vin veer,
se me saberedes dizer
porque tarda meu amigo
sen min?
Ai ondas, que eu vin mirar,
se me saberedes contar
porque tarda meu amigo
sen min?
Esta última cantiga rompe formalmente com as demais cantigas. Afinal:
Transgredir uma seqüência, um ritmo ou uma lógica no interior de
determinada obra é um meio comumente utilizado para fazer intervir o
símbolo. Assim, certos autores sabem habilmente captar a atenção de seu
público rompendo bruscamente com o ritmo, o código ou o sistema
simbólico que eles próprios elaboraram e ao qual habituaram o leitor”5.
Muitos autores da Idade Média não julgam necessário esclarecer aos seus leitores a
intencionalidade simbólica de sua obra, isso demonstra o quanto para esses autores, o símbolo
é algo que se manifesta naturalmente. Logo, na cultura medieval, o símbolo manifesta-se das
mais variadas formas e também atua nos mais diversos campos da vida social.
Enfim, os elementos aquáticos têm, nas cantigas codaxianas, uma forte influência por
vezes contraditória: ora funcionam como confidentes ou mediadores do amor, ora como
elementos de rupturas ou de facilitadores e representadores da voluptuosidade do amor. O
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mar, na sua perspectiva de mensageiro, transporta, no seu intenso e eterno movimento de
ondas, promessas, as de que o amigo voltará são e vivo, e tristezas, a angustiante espera da
volta. As ondas do mar de Vigo conferem à cena um dramatismo que intensifica a saudade
sentida pela moça. O murmúrio do mar funde-se com o em vão lamento da donzela.
Ao interpretar o cancioneiro de Martin Codax por um viés representativo, foi possível
perceber que só por meio de uma leitura seqüencial pode-se superar a interpretação
fragmentária das cantigas consideradas isoladamente, logo as cantigas codaxianas não se
resumem a um mero canto de espera desiludida, mas expressa um desejo frustrado de uma
mulher que buscava realizar um sonho de amor.
Na coita derivada de um desejo frustrado, o mar deixa de ser um elemento tipicamente
figurativo nas cantigas para assumir uma função mediadora e simultaneamente repulsora,
além de sugerir uma eroticidade que está latente na forma como o mar, a água, as ondas são
evocadas. Os sentidos propiciados pela própria simbologia desses elementos são, embora
diversificados, próximos.
NOTAS
______________________
1
Pergaminho descoberto no mesmo período em que Pedro Vindel, no início do século XX, o
encontrou em sua biblioteca, servindo de forro a um exemplar do 'De officiis' de Cícero. Em
tal pergaminho, figura o nome de Martin Codax como autor das sete composições. Neste,
conserva-se também a notação musical de seis das referidas cantigas. Atualmente, o
Pergaminho Vindel encontra-se em Nova Yorque, para tanto, utilizaremos nesse trabalhão a
sigla N para designá-lo.
2
Analisando a questão pelo viés paleográfico e textual, Manuel P. Ferreira (O Som de M.C.)
considera a existência de duas versões do cancioneiro: uma primeira, constituída das seis
primeiras canções, e uma segunda versão em que a última cantiga, a VII, teria, na circulação
oral das composições, substituído a cantiga VI. Assim, o cancioneiro de Martin Codax seria
entendido como um ciclo que foi estruturado retoricamente e que teria existido em duas
versões, sendo que apenas a segunda é conhecida musicalmente.
3
Há quem acredite que Martin Codax não seria de Vigo e que o mesmo teria se transportado
imaginariamente para uma das citadas paróquias para cantar à sua amiga, pois muitos
entendem que era comum a muitos poetas se servirem de uma igreja românica ou simples
ermidas nas ribeiras do mar para ver o mar e dialogar com ele. Alguns estudiosos consideram
que a recorrente freqüência ao topônimo Vigo tenha cunho propagandístico por parte dos
custódios dos santuários e econômico por parte do próprio poeta.
4
Dicionário temático do ocidente medieval, p. 497.
5
Dicionário temático do ocidente medieval, p. 503.
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RESUMO
Compreendendo as sete cantigas de amigo de Martin Codax como sendo partes de um único
texto, o presente trabalho busca estudar o corpus literário desse provável jogral ou segrel do
século XIII, que também é um dos mais conhecidos poetas da lírica medieval galegoportuguesa. Trata-se de um estudo que traz uma perspectiva simbólica da interpretação das
cantigas, uma vez que o símbolo já norteava os mais diversos domínios da vida do homem
medieval, o que acaba também por distanciar esse estudo dos riscos de anacronismos. Além
disso, os signos poéticos são polissêmicos. Dessa forma, a água, o mar, as ondas, o santuário
de Vigo, tão recorrentes nos versos codaxianos, são aqui consideradas além do seu sentido
literal. Enfim, busca-se, na forte influência de elementos aquáticos, demonstrar que o mar na
Idade Média não era apenas sinônimo de temor e fascínio, ou apenas elemento figurativo das
cantigas de amigo medievais. O mar e seus elementos metonímicos são ativos e
representativos do não dito, de modo que, aos olhos de um leitor atento, se tornam essenciais
na expressão da coita amorosa.
PALAVRAS-CHAVE: Simbologia. Ondas. Mar. Vigo.
ABSTRACT
Understanding the seven songs from a friend of Martin Codax as parts of a single text, the
present work studies the literary corpus of probable or segrel minstrel of the thirteenth
century, which is also one of the most popular poets of the medieval Galician-Portuguese lyric
. This is a study that brings a perspective of symbolic interpretation of songs, once the symbol
norteava already the most diverse fields of medieval man's life, which also ends up distancing
the study of the risks of anachronisms. Furthermore, signs are polysemic poetic. Thus, the
water, the sea, the waves, the shrine of Vigo, as in verses codaxianos applicants are
considered here beyond its literal meaning. Anyway, looking up, the strong influence of water
features, demonstrate that the sea in the Middle Ages was not only synonymous with awe and
fascination, or just figurative element of medieval songs of friend. The sea and its elements
are active and metonymic representative of the unspoken, so that in the eyes of an attentive
reader, become essential in expressing coita loving.
KEYWORDS: Symbology. Waves. Sea. Vigo.
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