FORUM ABEL VARZIM Rua Damasceno Monteiro, n.º 1 r/c 1107 – 108 LISBOA MESA-REDONDA “UMA VISÃO SOLIDÁRIA da REFORMA da SEGURANÇA SOCIAL” DEBATE sobre o “LIVRO BRANCO” da SEGURANÇA SOCIAL Oradores: Dr.ª Maria Bento Eng.º Bruto da Costa Dr. Maldonado Gonelha 7 de Maio de 1998 Auditório do Montepio Rua Áurea, 223 LISBOA Patrocínios forum abel varzim DEBATE sobre o LIVRO BRANCO da SEGURANÇA SOCIAL ORADORES: MARIA BENTO, BRUTO da COSTA e MALDONADO GONELHA * INTERVENÇÃO do Eng.º ALFREDO BRUTO da COSTA 1 Eu quero começar por agradecer ao Forum Abel Varzim o convite para aqui estar. Gostaria de dizer que não vou falar na qualidade de um dos autores do livro que tem o título desta sessão, mas falar a título individual. Começo por reflectir um facto que se passa na Sociedade portuguesa (e, porventura, não só na Sociedade portuguesa): toda a gente defende uma reforma da Segurança Social. Defendem os trabalhadores, defendem os vários actores sociais, defendem os políticos de todos os quadrantes, os empresários, os grandes capitalistas. E a gente pergunta: o que é que haverá na Segurança Social que provoque a unidade de gente tão diferente e de gente de interesses tão diversos e por vezes tão contraditórios? O primeiro ponto portanto é este: verificar esta grande convergência e dar conta da grande divergência que está interna no sector da convergência, que são as motivações por que cada um defende a reforma da Segurança Social. Eu defendo a necessidade de uma reforma da S. S. porque a nossa S. S. é pobre demais. Há outros que defendem, com o mesmo vigor, a necessidade de uma reforma da Segurança Social porque é necessário reduzir a despesa pública. Portanto, são objectivos (pelo menos aparentemente) contraditórios (a meu ver, de facto contraditórios), que vale a pena termos em conta. Depois desta exposição da Dr.ª Maria Bento – muito técnica, muito concreta –, eu propunha-me sair deste campo de coisas institucionais e pensar um pouco o que é que está em causa quando pensamos na S. S. e quando pensamos na sua reforma. Eu não vou entrar em pormenores técnicos, vou apenas tentar salientar o que é que está em causa para além dos números e das instituições. Isto não quer dizer que os aspectos técnicos e os aspectos financeiros sejam secundários, não é isso. Qualquer reforma que se pense e seja qual for a intenção que se tenha, tem que ser tecnicamente consistente e tem que ser financeiramente viável, portanto não estou a subestimar ou sequer a muito menos ignorar a importância desses aspectos. Quero dizer é que se a discussão do debate público sobre a S.S. e sobre a sua reforma se limitar a esses aspectos, deixa a descoberto e passa ao lado de muita outra coisa extremamente importante para a S. S.. A Dr.ª Maria Bento disse uma coisa no final da intervenção dela e eu começo a minha por uma afirmação muito semelhante: o que está em causa nisto tudo, além do mais, são os valores * Transcrição das intervenções a partir de gravação. Editada. «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 forum abel varzim que queremos ver promovidos ou destruídos. Vale a pena estarmos conscientes desse facto. É que isto não é um aspecto menor da vida das sociedades ou do modelo de Sociedade que se quer. Eu começo por um conjunto de afirmações, para evitar equívocos na interpretação do que venha a dizer, tanto mais que aquilo que irei dizer será necessariamente muito reduzido e vale a pena evitarmos equívocos e mal entendidos que são evitáveis. Nesse sentido, gostaria de começar com quatro ou cinco afirmações. A primeira é esta: eu sou contra o liberalismo, tanto quanto sou defensor da liberdade e da responsabilidade individual; sou contra o estatismo, tanto quanto sou defensor da solidariedade e da responsabilidade social dos indivíduos. Há aqui afirmações que podem parecer altamente contraditórias – devo dizer que da minha perspectiva não o são, de forma nenhuma. A título de exemplo, uma aparente contradição está logo na primeira afirmação: sou contra o liberalismo, tanto quanto sou defensor da liberdade. Segunda afirmação: reconheço que, para além dos riscos e dificuldades que cada um é chamado a resolver por si próprio, existem ao longo da vida riscos e adversidades que as pessoas – uma grande parte das pessoas pelo menos – não podem resolver pelos seus próprios meios; a esse tipo de riscos eu dou o nome […...], a literatura dá-lhe o nome de risco social. Por outras palavras: um risco que é reconhecido, que é demasiado grande para ser suportado por uma única pessoa ou por uma única família. E um dos problemas centrais da nossa discussão é sabermos se cada um aceita – reconhece ou não reconhece – a existência de riscos sociais. Riscos que, por serem demasiado grandes para serem suportados por cada um, têm de ser suportados de alguma forma pela Sociedade. Terceira afirmação: eu penso que há que desenvolver (e na Sociedade portuguesa muito) todas as formas de solidariedade não estatais, que são frequentemente subestimadas entre nós. Isto sem prejuízo do papel da Sociedade em geral e do Estado em particular. Penso que estas afirmações colocam a minha perspectiva de filosofia política – digamos assim – que está subjacente ao meu pensamento sobre a S. S.. E não tenhamos ilusões: quer queiramos quer não – quer explicitemos quer não –, por detrás de cada uma das posições acerca da S.S. está uma filosofia política. Pena é que essa filosofia política muito raramente seja explicitada e vale a pena que seja. Eu penso que há consenso a esse respeito e que a aplicação dos instrumentos do Seguro Social a um número cada vez maior de pessoas – e abrangendo um número cada vez maior de riscos e adversidades – significou um progresso indiscutível no sentido da igualdade dos membros da sociedade europeia. Relativamente às consequências das adversidades, todos os que pertencem a um pool comum de risco – grupo que partilha em termos iguais o risco – estão em pé de igualdade. Neste aspecto de pool, existe pequena diferença entre um seguro qualquer ou um seguro social ou Estado previdência. A novidade do seguro social está no seguinte: alargamento de um pequeno círculo onde funcionava a solidariedade, para um grupo muito mais alargado e, «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 2 forum abel varzim eventualmente, para toda a Sociedade, incluindo seres humanos ainda não nascidos. Portanto nesse alargamento do âmbito de sistema de solidariedade que já havia em círculos muito mais restritos é que está a verdadeira novidade do seguro social. Em que termos é que se faz a distribuição e repartição desse risco? Em termos que cada sociedade considera como mais equitativos. Portanto, nisto, há a necessidade de um consenso verdadeiramente largo da Sociedade. Neste sentido, com este alargamento do círculo onde funciona a solidariedade, uma preocupação que era individual transformou-se numa preocupação política. E esta implicação é outra preocupação relevante do seguro social. As consequências que eram até essa altura arbitrárias, [à mercê] do acaso e das circunstâncias, deram lugar à regularidade, à previsão e à igualdade. Enquanto produtores e enquanto membros das classes sociais, o mercado e as hierarquias herdadas tratam as pessoas de modo diferente. Enquanto sujeitos a risco existe uma igualdade, independentemente da intenção que tenha estado por detrás. E falo da intenção porque alguns historiadores defendem (estou a pensar num concretamente) que a Segurança Social surgiu, não por um desejo de solidariedade, mas por motivações políticas dos governantes da altura. Portanto, independentemente dessas motivações subjectivas, é um facto que as pessoas enquanto produtores, enquanto membros de classes diferentes, são tratadas de maneira diferente pelo mercado, mas perante um risco num contexto de S. S. são iguais. Um outro ponto que vale a pena termos presente, que se retira da história dos Direitos Humanos, numa classificação do sociólogo inglês Marshall (há quem diga que ele não tem razão, mas admito que possa ter alguma), que divide a evolução do conceito de cidadania em três etapas: a dos Direitos Cívicos do Século XVIII, a dos Direitos Políticos no Século XIX e a dos Direitos Sociais no Século XX. Portanto, no final do Século XX, nós estamos prestes a destruir uma conquista de séculos, que redundou nos direitos sociais precisamente no Século XX. Portanto corre-se o risco de os direitos sociais nem sequer durarem um século. Este é um dos aspectos que está em causa na reforma da S. S.. No entanto, essa desigualdade, na prática, não se realizou em grau elevado, senão em muito poucos países, designadamente nos escandinavos. Tirando os países escandinavos, é hoje reconhecido que essa igualdade perante o risco (que está por detrás da ideia da partilha do risco), não foi conseguida pela grande maioria dos países europeus. Por outras palavras, o Estado previdência existiu em muito poucos países. Nós temos a boca cheia de Estado previdência em Portugal, como se estivéssemos a falar do Estado previdência na Suécia ou na Dinamarca. O Estado previdência propriamente dito existiu em muito poucos países, naqueles países que fizeram a transição de Bismark para Galbraith, naqueles que foram para a universalização dos direitos e que começaram por ter uma primeira preocupação do âmbito do Estado previdência – que era a preocupação do pleno emprego – portanto, não começavam com a preocupação do subsídio de desemprego, começavam a sua preocupação por evitar o próprio desemprego. E há mesmo um autor inglês que defende que a designação " Welfare State", que é o «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 3 forum abel varzim Estado previdência deve ser limitada apenas a esses países, aos países que tiveram a preocupação do pleno emprego, uma ampla cobertura, compreensiva cobertura de protecção social e um largo leque de benefícios de carácter universalista. Estão a ver? Essas três características, tirando os países escandinavos, não as encontramos em nenhum outro país da Europa. Portanto, falar de Estado previdência português, como se fosse um Estado previdência maduro e sem o qualificar de incipiente, é enganamo-nos a nós próprios e a quem nos ouve, se for uma pessoa desprevenida. Houve alguns factores que contribuíram para isso, para esse desenvolvimento da Segurança Social. A intervenção do Estado apareceu, dentro de certos limites, como necessária ao próprio funcionamento da economia, e a política social passou a corresponder a uma necessidade do próprio funcionamento da economia capitalista, quer do lado da produção, quer do lado do consumo. Portanto a política social, nesse sentido (e há autores que falam da política social para falar do Estado previdência), aparece como qualquer coisa necessária, benéfica à própria economia de mercado. Só que aconteceu que, a certa altura, o desenvolvimento da política social, por razões que só interessavam à Economia, passou a ser curto demais e então não houve um desenvolvimento da S. S., nem do Estado previdência de um modo geral. Então, não por exigências da Economia, mas por razões políticas, houve a consciência de que não eram só os pobres, mas também as classes médias e as classes médias altas, que estavam sujeitos a determinados riscos sociais, que eram riscos demasiado grandes para serem suportados por cada um. Algumas características desse modelo de sociedade, que é um modelo de sociedade europeia, e que pode estar em causa conforme a direcção que as reformas da Segurança Social e do «Estado de Bem Estar", tomem. 1.º Ponto – As políticas de solidariedade. As políticas de solidariedade, de que a S. S. é um exemplo iminente, tornaram-se aceites, legítimas e incontroversas só na medida em que foram tomadas como um direito e não como um gesto de benemerência ou de puro altruísmo. A tal ideia de direitos sociais de que fala Mason [?] e, por outro lado, como disse, o conceito de cidadania social (neste sentido noção de cidadania que engloba os direitos sociais) põem em pé de igualdade pessoas que, segundo outros critérios, têm estatuto diferente. A cidadania social confere a todos, benefícios que, num outro sistema de valores, teriam que ser justificados ou atribuídos em termos humilhantes, no sentido de assistência, por exemplo, marcando o beneficiário como sendo menos do que um membro pleno da comunidade. Este ponto é muito importante. Em Portugal (e a minha percepção é que em Portugal «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 4 forum abel varzim as coisas são diferentes, e é pena) eu penso que é um traço cultural. Alguns países europeus têm uma grande preocupação em perceber porque é que certas pessoas que têm direito a [determinados] benefícios não contributivos não utilizam esses [mesmos] direitos. E há uma certa convicção ou suspeita de que uma das razões principais é de que preferem passar sem esses benefícios para não correrem o risco de sofrer um estigma social. Porque os benefícios sujeitos à condição de recursos implicam, nesses países, um estigma social. Eu penso que esse problema não se põe em Portugal. Não sei porquê, tenho a sensação de que aqui as pessoas não sentem o estigma. E parece que até ao ponto de pessoas que não têm direito a esses benefícios, falsificarem declarações e passarem a recebê-los. Portanto, não só não têm receio do estigma, como até gozam à custa do outro. Sei de casos de pessoas que se vestem diferentemente conforme vão aos serviços assistenciais da Misericórdia ou vão para qualquer outro lado. É um traço cultural original. Não vi nenhum estudo sobre isso, mas enquanto vejo colegas meus lá fora preocupados com o chamado "non take up", com taxas elevadas de pessoas que têm benefícios e não levantam presumivelmente por causa do tal estigma social. Eu tenho que dizer que não me consta que haja esse estigma em Portugal, antes pelo contrário. Há quem defenda que um direito social à redistribuição do risco que seja limitado aos pobres (seja por condição de recursos ou por efeitos do estigma) é uma contradição nos termos. Efectivamente, porque uma das consequências – digamos assim – ou um dos princípios subjacentes a toda a ideia de solidariedade social, neste sentido de cidadania social, é que pessoas que são diferentes são tratadas de modo diferente noutros aspectos da vida social, neste do risco estão em pé de igualdade. Portanto, uma Segurança Social que reproduza a diferença e, eventualmente, até a consolide, é uma contradição nos termos. Medidas que interessem aos indigentes e aos desfavorecidos, raramente foram além da benemerência institucionalizada, sujeita aos caprichos da flutuação económica e da oportunidade política. Isto é dito por um historiador social inglês, mas penso que, por aquilo que temos acompanhado nas últimas décadas no nosso país, esta frase não nos é totalmente estranha. Para terminar, queria dizer que há grandes mudanças nas sociedades europeias e, inclusive, na portuguesa, desde os tempos em que a Segurança Social foi criada e se desenvolveu, nos anos 50 / 60, até hoje. Há muitas diferenças e diferenças importantes. Eu não vou citá-las todas, vou apenas referir duas ou três que são muito referidas. Eu tiro ilações diferentes daquelas que algumas outras pessoas tiram. O 1.º ponto é este: eu penso que as sociedades europeias têm que ter consciência de que estão a atravessar um período em que lhes é exigido mais um salto qualitativo na linha da «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 5 forum abel varzim solidariedade institucionalizada. Chamo solidariedade institucionalizada à Segurança Social, ao Estado previdência. Em que consiste este salto qualitativo? Consiste em reconhecer o [avanço] que foi a passagem da solidariedade entre pequenos grupos, para uma solidariedade de classe trabalhadora global e que deu lugar a um sistema de Segurança Social financiado fundamentalmente por contribuições sobre o rendimento do trabalho. Hoje estamos num ponto em que a Europa tem que optar por uma solidariedade que abranja toda a Sociedade, que ultrapasse os limites da classe trabalhadora, e uma consequência financeira directa disso, é que seja financiada não apenas por rendimentos do trabalho, mas por rendimentos de todas as fontes. Concretamente, também pelos rendimentos do capital. E a Europa tem de perceber que este é o desafio que enfrenta hoje. Porque se tenta qualquer solução do problema restringindo a solidariedade da S. S. à classe trabalhadora, não encontra solução e só pode tentar pequenos remendos de um sistema que já está a rebentar pelas costuras. O que também está a rebentar pelas costuras (não já...), é essa ideia de que a S. S. está falida. O Livro Branco foi um contributo importante para dizer que não. E porque ainda temos, pelo menos, uns 15 anos em que sabemos que o sistema não irá falir, a minha posição tem sido: vamos corrigir muita coisa que se pode corrigir sem grandes mudanças e aguardar uns cinco anos para termos uma percepção mais clara das mudanças que estão em curso e nessa altura (daqui a cinco anos) nós ainda teremos dez anos à nossa frente para fazermos uma reforma de fundo. Não vejo, no entanto, que possamos fugir a isto de a S. S. passar a ser uma instituição de solidariedade que abranja toda a Sociedade. O 2.º ponto é este (e termino com ele): os chamados 30 anos gloriosos, ou dourados, das economias europeias que permitiram um desenvolvimento muito grande da Segurança Social, e do Estado Previdência em geral, foi um tempo em que a economia cresceu tanto que gerou sobras, de modo que foi possível financiar uma política social com as sobras, que satisfizesse os menos ricos e que não afectasse os mais ricos. Hoje as taxas de crescimento, como sabem, são muitíssimo mais baixas e pelos modos baixas para durar. Quer dizer que já não há sobras e daí, mais uma vez, o desafio que se coloca perante a Europa: quer uma solidariedade a sério ou apenas acredita numa solidariedade que se resolve com sobras? Se continua a acreditar e não passa de uma solidariedade que se resolva com sobras, nessa altura não há solução para a S.S. e então vamos declaradamente por uma via liberalista, porque escusamos de pensar em salvar todo este conjunto de valores sociais que estão subjacentes ao modelo social europeu; ou então a Europa diz: “vamos levar a solidariedade a sério, porque uma sociedade solidária é melhor e mais humana que uma sociedade não solidária, porque uma sociedade mais solidária é uma sociedade mais feliz, uma sociedade mais autêntica, porque uma sociedade insolidária é uma sociedade sujeita a grandes rupturas e a grandes instabilidades que a todos prejudicam”. Eu espero que não seja preciso termos os sinais «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998 6 forum abel varzim (porventura alguns já existem, mas [refiro-me a] sinais mais claros dessa fase de instabilidade e de grandes rupturas), para nos darmos conta de que, sendo solidários com os outros, estamos a prestar um serviço a cada um de nós próprios. 7 «509» - “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” – Maio de 1998