Wilhelm Reich: dados biográficos e orientações básicas Marcus Vinicius de A. Câmara Abertura Wilhelm Reich, ao longo de sua obra, segue rotas que vão se desdobrando umas nas outras. De psicanalista e, a seguir, marxista, passando pela sistematização teórica da análise caractero-vegetativa e alcançando a proposição tanto de uma nova ciência denominada Orgonomia, como de um modo de produção social nomeado Democracia do Trabalho. Portanto, o Weltanschauung reichiano é complexo, contemplando, a um só tempo, aspectos psíquicos, biológicos, sociais e energéticos. Mas, de que lugar se expressa Reich? Vamos, inicialmente, dar uma visada em suas raízes. 1 - Raízes Familiares Reich (1922/1990) veio ao mundo em 24 de março de 1897, no então império austro-húngaro. Sua infância passou-se em uma granja, em profundo contato com a natureza. Possuía uma relação de maior proximidade com sua mãe do que com seu pai. Este era explosivo e, ao mesmo tempo, inteligente e amável. Tinha um irmão três anos mais moço, Robert, que reagia aos destemperos de seu pai, já Reich permanecia ressentido e introvertido. A vida amorosa de seus pais era conturbada, sua mãe era infeliz no casamento. Após uma fase depressiva, suicidou-se. O pai, aparentemente arrependido de suas ações com a mulher, veio a falecer alguns anos depois. Reich tornou-se um jovem intelectualmente curioso e vigoroso. Alistou-se voluntariamente aos 17 anos, e foi à guerra. Mais tarde, ingressou na Faculdade de Medicina em Viena. Reich era um estudante com dificuldades financeiras, vivia com sobras de sua herança e de aulas particulares para os demais estudantes. No meio acadêmico, além da 2 Medicina, interessou-se por escritos sócio-políticos. Por esta época iniciou sua formação em Psicanálise. 2 – O Encontro com a Psicanálise Em sua formação de psicanalista, Reich produz seu primeiro trabalho. Os Conceitos de Pulsão e Libido de Jung a Forel (1925/1976f). Neste, aborda diversos autores e enfatiza a teoria da libido de Freud. Já neste momento, Reich observa a necessidade de se fundamentar a teoria da libido em bases fisiológicas. Em 1920, Reich candidatou-se a membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Para tal, ministra a conferência O conflito da libido e a ilusão de Peer Gynt (1925/1976c). Nesta, ele analisa as facetas do personagem Peer Gynt, de Ibsen. Este personagem expressa o diferente, o ser solitário. Peer Gynt abarca ângulos da personalidade de Reich. Desde estudante permitia somente que uns poucos participassem de sua vida íntima. As diferenças entre os sexos com relação ao ato sexual é o objeto da pesquisa O Coito e os Sexos (1925/1976e) de Reich, em 1921. Assuntos como orgasmo, ejaculação precoce e frigidez são abordados. O autor estabelece a relação entre as perturbações sexuais e o sentimento de culpa, a cisão da ternura e da sexualidade, a valorização menor da vagina e maior do clitóris, a falta de diálogo entre homem e mulher, a carência de informação na área sexual, a atenção excessiva para com os filhos em detrimento do parceiro e a educação repressiva das mulheres. Reich, médico (1922) e primeiro assistente de Freud na Policlínica Psicanalítica, publica O Caráter Impulsivo – um estudo psicanalítico sobre a psicopatologia do Ego (1925/1976d), em 1925. Este caráter configura um quadro de impulsividade e instabilidade com frágil sentimento de culpa. A impulsividade não é observada pelo indivíduo como patológica e é expressa por meio de um comportamento desinibido. Reich, freudianamente, aponta que o caráter impulsivo sofre de uma deficiência no mecanismo de recalcamento ou, dito de outra maneira, no superego. A conclusão deste estudo estabelece que a relação 3 de força entre a afirmação da pulsão e seu recalque deve ser equilibrada, ou seja, deve haver um balanceamento entre a liberação de prazer e sua redução. Nestes primeiros escritos, Reich demonstra um posicionamento psicanalítico ortodoxo quanto à necessidade de repressão e ao estabelecimento da sublimação, a fim de que as relações entre as pessoas, a cultura e a civilização, se consolidem. Entretanto, tal ponto de vista teórico sobre estas questões se modificará, aos poucos, completamente. Já em 1924, entre Reich e Freud havia surgido uma primeira fissura por meio da noção de “potência orgástica” de Reich. Esta quebra se amplia com o trabalho de “análise das resistências” (1926) e a fratura definitiva ocorre com o estudo sobre o “masoquismo” (1932). Aqui há uma cisão irreparável. Vamos aprofundar, posteriormente, estes pontos. 3 – A Esquerda Psicanalítica 1929 é o ano de publicação da importante obra Materialismo Dialético e Psicanálise (1929/1983), Reich correlaciona marxismo e psicanálise por meio de pesquisas sobre três itens: a base materialista da psicanálise; a dialética na vida mental, a posição social da psicanálise. A base materialista da psicanálise é calcada na teoria da libido. Para Reich, a teoria da libido é o ponto mais concreto da psicanálise. A perspectiva dialética na vida mental proporciona a observação de Reich de que a imbricação mente/corpo deveria ser mais investigada, assim como outras antíteses, tais como: pulsão e inibição, tensão e relaxamento, libido narcísica e libido objetal, consciente e inconsciente, Ego e Id, amor e ódio, neurose e perversão, indivíduo e sistema sócio-político e outras mais. Segundo Reich, Freud, ainda jovem, cria que as neuroses eram resultantes da repressão social e sexual. Assim sendo, a psicanálise, para Reich, favoreceria uma tomada de consciência desta repressão e, deste modo, a posição social da psicanálise implicaria na articulação deste saber com o marxismo, visando a conscientização da classe explorada e auxiliando a criar uma sociedade mais justa e solidária, uma sociedade comunista. No entanto, Reich já produzia uma diferença em relação ás ortodoxias psicanalítica e marxista: a psicanálise deveria levar em consideração as 4 diferenças sociais resultantes da exploração da classe do proletariado pela burguesia na produção da subjetividade; o movimento marxista não poderia enfatizar o campo social em detrimento do aspecto sexual, até porque o recalcamento sexual é um fenômeno que englobaria tanto a classe dominante quanto a dominada. Observações como estas, marcam o pensamento nãoalinhado de Reich a grandes correntes do pensamento como a psicanálise e o marxismo. Embora estas tenham erigido as fundações do pensamento reichiano, Reich não era ingênuo e, com crivo crítico bastante apurado, já notava as limitações destas teorias, iniciando assim a dissidência destas grandes correntes do conhecimento. A independência e a originalidade de Reich marcam sua postura ao longo de sua obra. Para ele, a psicanálise e o marxismo deveriam sustentar a perspectiva de uma revolução social e sexual a um só tempo. É com este ponto de vista que Reich aproxima-se da juventude. Em O Combate Sexual da Juventude (1934/1986), Reich questiona mitos sexuais com viéses conservadores como: os malefícios da masturbação, a falsa moral que impedia encontros amorosos dos jovens, a distância afetiva e o autoritarismo dos pais em relação aos filhos. Desse modo, respectivamente, desvela a insatisfação dos jovens, repensa o contexto sócio-educacional repressor e coloca em xeque a cisão afeto/sexualidade, o embotamento afetivo e a sujeição a que são submetidos os jovens, respectivamente. O autor busca uma óptica sexual libertadora que associada a uma práxis social revolucionária, promova uma sociedade que ratificaria os valores humanos primordiais. Em Reich, o autoritarismo é incompatível com saúde emocional e assim ele passa a estudar como se originou a moral sexual conservadora (Reich,1932/1988a). Reich analisa os estudos de Malinowski sobre a sociedade trobriandesa e conclui que não havia distúrbios sexuais nas crianças ou adolescentes e nem dificuldades orgásticas nos adultos. A sociedade trobriandesa por ser matriarcal (propriedade comunal de terra e das cabanas, trabalho e distribuição de produtos comuns, propriedade privada limitada a pequenos objetos) quase não utilizava repressão sexual. Assim sendo, seria a sociedade patriarcal que, por meio de repressão sexual, promoveria a estase (acúmulo energético) e distúrbios sexuais. 5 As crianças trobriandesas podiam ter jogos sexuais entre si e somente o tabu do incesto era estabelecido. As crianças tinham menos insatisfação sexual e tornavam-se mais independentes. Na sociedade trobriandesa não havia disciplina compulsória, rapazes e moças podiam ter relações sexuais, homens e mulheres tratavam-se com respeito. Em seus estudos, o autor notava que à medida que as sociedades tornavam-se patriarcais, evoluíam a moral sexual conservadora, o sentido de propriedade privada, o casamento tradicional e a exigência de ascetismo para a juventude. O dote seria o mecanismo fundamental de transição do matriarcado para o patriarcado ou do comunismo primitivo (matriarcado) para a acumulação material de uma família (patriarcado). A acumulação material seria necessária para a constituição do dote. Desse modo, Reich alinhando-se a Marx e distanciando-se de Freud, concorda que são as condições sociais e materiais que determinam a moralidade vigente e não o parricídio primitivo investigado por Freud em Totem e Tabu (1914/1980). A ascensão do nazi-fascismo na Europa dos anos 30, faz Reich (1934/1988b) tentar compreender a relação entre estrutura psíquica e a estrutura social autoritárias. O nazi-fascismo se apóia na família, na igreja, na escola tradicional. Assim o homem é moldado e conformado a reproduzir tão somente valores morais conservadores: inibição da sexualidade, obediência cega às regras sociais, submissão à ordem vigente, e uma combinação de sujeição dócil, medo e ascetismo. A conseqüência deste processo é uma limitação da consciência crítica, da curiosidade, do questionamento de si e da realidade social. Surge um indivíduo oprimido, revoltado, que deseja o poder e que tem medo da liberdade. A repressão sexual produz estase e esta alimenta a moralidade conservadora. Ao longo da história percebe-se que todos os regimes de exceção pautaram-se na repressão sexual, isto enrijeceu a psique do indivíduo e este passou a temer a vida. Sentindo-se desamparado, o indivíduo oprimido busca equivocadamente um salvador que lhe possa restituir a dignidade e então abre mão de sua independência. O sistema autoritário aborta a autonomização dos grupos, incentiva o culto ao indivíduo e a força ditatorial. Reich finaliza: o autoritarismo está calcado nas organizações orgásticas não satisfeitas das massas, no embrutecimento de suas psiques. 6 Reich, em O que é consciência de classe? (1934/1976b), pergunta-se como transformar a revolta do povo oprimido em consciência revolucionária. Responde afirmando que deve-se simplificar as análises históricas e do cotidiano. A política revolucionária deve pautar-se na participação coletiva, para que se torne acessível a todos. Pequenas mudanças e grandes transformações sociais devem ser viabilizadas por meio da consciência social cunhada nos coletivos de pessoas. A partir de questões práticas do cotidiano como sexualidade, educação dos filhos, adolescência, fome, prazer, sofrimento, felicidade etc. é que se chegará aos grandes temas sócio-históricos, criando propostas alternativas à ideologia hegemônica. De acordo com Reich (1945/1976a), à medida que o autoritarismo for se transformando na autogestão das massas (comunismo), a repressão sexual se reduzirá ao mínimo. O fascismo ao reprimir o povo não só cria comportamentos sexuais “inadequados”, também produz, dialeticamente, comportamentos indesejados pelo próprio sistema autoritário. Estas expressões indesejadas, entre elas a revolta, são elementos facilitadores da revolução social, desde que devidamente canalizados para uma participação coletiva com consciência crítica. Em Reich, as relações sexuais duradouras devem substituir o casamento tradicional. Elas primariam pela independência da mulher, educação dos filhos pela sociedade e envolvimento amoroso genuíno. As relações duradouras são conseqüências da afirmação do desejo, da sexualidade espontânea e da alegria de viver. A teorização do referido autor no que concerne à construção social da subjetividade é, em parte, recuperada e enaltecida por autores contemporâneos como Felix Guattari (1987). Para este, a análise que resulta na afirmação de Reich de que o indivíduo rígido, realmente deseja o fascismo, enfim, o autoritarismo social, é brilhante. Contudo, de acordo com Guattari (1987), Reich não teria alcançado a compreensão do processo de produção social do desejo, a que se propõe o autor juntamente com Deleuze. Paul Robinson (1978) observa que Reich foi um importante inventor de linhas políticas. A assinalação que relaciona as perdas da espontaneidade sexual “natural” e da autonomia social das massas seria uma ferramenta de análise 7 fundamental para a compreensão de alguns processos sociais. Porém, Robinson crê que estes estudos reichianos devam estar associados com aprofundamentos teóricos sócio-históricos necessários, não realizados por Reich. De acordo com Robinson, nos estudos de Reich sobre o fascismo, há especificidades históricas alemãs, não levadas em consideração por Reich, que propiciaram o surgimento deste sistema sócio-político. De modo semelhante, Robinson nota que Reich reduziu a análise histórica da estrutura familiar ao matriarcado e ao patriarcado. Em Reich, a transformação do matriarcado (autogoverno) em patriarcado (governo impositivo) torna-se a razão para se compreender a relação entre estruturas psíquicas rígidas e regimes autoritários (patriarcado). Segundo Robinson, as análises históricas sobre a evolução do escravagismo para o feudalismo e deste para o capitalismo perdem, na teoria reichiana, a devida importância. Além disso, embora Robinson reconheça a relação estabelecida entre repressão sexual e caráter conservador, crê que Reich produziu uma redução da estrutura rígida de caráter ao mecanismo da repressão sexual, simplificando em demasia o binômio sexual-social. As críticas destes autores contemporâneos, assim como as de outros, não desprestigiam as obras sociais de Reich, ao contrário, apesar delas, estes autores restituem Reich a um lugar de destaque na produção do conhecimento. Eles reconhecem a importância da teorização reichiana, diferentemente de outros como Erich Fromm que, em Medo à Liberdade (1977) apesar de tratar de um tema esquadrinhado profundamente por Reich, não o menciona sequer em uma linha no referido livro. 4 – Análise Caractero-Vegetativa Nesta segunda fase, Reich vai se afastando das ortodoxias marxista e psicanalítica. Inventa seus próprios conceitos como o de potência orgástica. Em 1927, Reich havia lançado o livro “Psicopatologia e sociologia da vida sexual” (1927/1977), cujo título original em alemão era Die Funktion des Orgasmus ou A função do Orgasmo, que não deve ser confundido com sua obra homônima lançada em 1942 nos EUA, também denominada A Função do Orgasmo. Com o objetivo de evitar a confusão de nomenclaturas, a primeira obra é tratada neste 8 capítulo tão somente por Psicopatologia e sociologia da vida sexual. Este livro apesar de ter sido escrito em 1927 é comentado aqui na sessão correspondente a sua segunda fase, uma vez que lança fundamentos da análise do caráter e da vegetoterapia. Reich restitui a importância da teoria da libido, que estava sendo preterida pelos psicanalistas em favor da segunda tópica (Id, Ego e Superego) para a explicação de neuroses. Afirma o autor que se houver um equilíbrio entre carga e descarga da libido, será mais difícil o indivíduo adoecer. Desse modo, durante o processo terapêutico, enquanto os psicanalistas enfatizam a qualidade dos conteúdos simbólicos, Reich enfoca a quantidade de libido não descarregada como o alimento da neurose. Reich parte do pressuposto de que se há vários modos de descarregar a libido (socar, gargalhar, chorar, prática de exercícios etc.), só há uma forma plena de eliminar o excesso de carga energética: o orgasmo. Potência orgástica foi o termo que o autor atribuiu à capacidade do organismo descarregar completamente com freqüência o excedente de carga. O ato sexual satisfatório ou curva orgástica, implica quatro momentos: movimentos voluntários do corpo; pulsação involuntária do corpo; perda parcial da consciência; relaxação plena. Ao contrário, o conservadorismo da família, da escola, a repressão sexual/social produzem acúmulo de carga libidinal ou estase energética. O desequilíbrio energético associado aos conflitos entre o ID e o superego produz sintomas. Estes são pseudo-soluções para os conflitos e o desequilíbrio energético, já que mantém a neurose. Mas, a resolução genuína dos transtornos da potência orgástica passa pela instauração do primado genital. Se este não se afirma, o organismo regride à pré-genitalidade e o corpo não descarrega a estase energética. A teoria reichiana sobre a importância do primado genital como necessário para se alcançar o orgasmo e a saúde biopsíquica é questionável. Parece que esta posição resulta em uma normatização sexual ou, o que é mais grave, na naturalização de padrões sexuais e, conseqüentemente na patologização de atitudes não conformadas a esta expectativa. Contudo, observa-se que na fase seguinte de Reich (Orgonomia), o autor amplia a noção de orgasmo e a compreende como a capacidade de entrega, de envolvimento com o que se 9 estiver fazendo. Em suas palavras: “Viver na plenitude e se abandonar ao que se faz” (Reich, 1953/1987, p. 32). A seguir Reich (1933/2001), em uma atitude a mais de fuga da ortodoxia psicanalítica, afirma que, em um processo analítico, primeiro deve se analisar as resistências dos pacientes para depois, no momento apropriado, se fazer as interpretações dos conteúdos inconscientes. Desse modo, Reich oferece uma alternativa ao método freudiano de livre associação de idéias, em que o psicanalista analisava os conteúdos expressos na seqüência em que estes apareciam. Reich, seguindo outra via, se propõe a analisar os recursos que fazem com que os pacientes sabotem o processo analítico, ou seja, as resistências. É dessa maneira que ele passa a apontar como os pacientes resistem. Para isto Reich utiliza-se de várias ferramentas, entre elas, a imitação dos gestos de seus pacientes, sua forma de rir, chorar, cumprimentar, andar, silenciar, entre outras. Destas resistências manifestas chega às latentes: desconfiança, agressividade e outras. O trabalho com as resistências leva o paciente a cortar o excesso de proteção, a flexibilizar as defesas e então o paciente torna-se capaz de ouvir as interpretações, assimilá-las com menos resistência. Aos poucos ocorre a compreensão dos porquês dos comportamentos, ou seja, na análise reichiana, o porquê vem no bojo do como. Se Freud preocupavase com o porquê dos comportamentos, com Reich o como ganha ênfase no setting analítico. Assim, vai sendo construído um novo objeto de estudo, não mais uma alma destituída de corpo, mas um sujeito com uma psique que se traduz no gesto, na expressão corporal. Do como ao porquê é a equação reichiana. A proposta clínica reichiana configura uma espiral entre passado (porquê) e presente (como), onde caminham analista e analisando. A partir do “aqui e agora” (presente) chega-se ao “lá e então” (passado), refazendo a história do paciente e produzindo um novo sujeito. A rota é difícil: das resistências vencidas ao surgimento da angústia a ser trabalhada. Este percurso inclui a flexibilidade das fixações e assim o paciente se encaminha para rever suas relações arcaicas com aqueles que fizeram as funções de pais em sua infância. É no desenlace simbólico, e às vezes concreto, dos “pais”, que se consolida a direção da “cura”. Esta é a busca de um caminho próprio, singular, autônomo, com sua marca e 10 estilo, é o sujeito liberto dos grilhões, embora, se saiba, que esta imagem é menos uma possibilidade a ser alcançada e mais uma luta cotidiana, um norte ou direção. A típica conduta psicorporal chama-se caráter. Este representa uma blindagem erguida pelo Ego para lidar com as pressões tanto Id como do mundo exterior. Quando esta pressão torna-se intensa, o Ego enrijece e forma uma barreira de proteção. Esta blindagem se, de um lado, protege, de outro aprisiona. O caráter necessariamente está articulado ao momento sóciohistórico. Se o indivíduo aprende a lidar bem com os conflitos, faz-se presente um sujeito capaz de modificar a si e as situações sociais, caso contrário, tende a conservar a si próprio e a não enfrentar as condições sociais adversas. Reich descreveu algumas formas de caráter e suas fixações correspondentes, por exemplo, o caráter depressivo (fase oral); masoquista (fálica, sub-valorização do falus); fálico-narcisista (fálica, super-valorização do falus); histérico (fase “genital” incestuosa); compulsivo (anal-sádica). Seu trabalho sobre a tipologia da personalidade é minucioso, leva em consideração os aspectos estrutural, dinâmico e econômico (carga e descarga energéticas) e menciona vários outros tipos de caráter. Entretanto, a relação entre estrutura de caráter e a fase onde a energia foi fixada não é vista pelo autor de maneira determinista, ao contrário, o autor nos fornece a compreensão de que as estruturas de caráter são produzidas sóciohistoricamente e, por isto, guardam complexidades singulares. Assim, a histérica de Freud não é mais observada, ao menos naquele formato, nos dias atuais. De modo semelhante, há tantos possíveis caracteres quanto a produção social puder fabricá-los. Neste sentido, a tipologia reichiana não é fechada, nem restrita, mas dinâmica, aberta e potencializadora de modos diversificados de existir. Os estudos de Reich sobre um desses caracteres, o masoquista, produziu a ruptura com Freud de forma contundente. De acordo com o último, o masoquista busca o sofrimento pelo sofrimento, conduzido pela pulsão de morte. Para o primeiro, o masoquista porta um nível altíssimo de tensão e demanda sofrer, porque a cada ato de sofrimento ele alivia a tensão interna, gemendo, queixando-se, reclamando, etc. É assim que o masoquista diminui a estase energética, ou seja, a finalidade última de seu comportamento não é o 11 sofrimento em si. O sofrimento é um meio distorcido que faz com que ele tenha algum bem-estar temporário, uma vez que suas expressões são aliviadas da tensão energética. Em 1934, Reich desenvolveu a noção de contato. Este concerne à percepção das correntes vegetativas (energéticas), à percepção de si enquanto se executa algo, ao olhar atento e à profunda ligação afetiva consigo e com os outros. Durante a análise, as sensações de corrente vegetativa articuladas às primeiras sensações orgásticas – o brilho nos olhos, o sentimento de inteireza corporal, a graça do movimento do corpo, constituem uma condição de recuperação do contato a que o terapeuta deve estar atento. Na seqüência, Reich (1942/1984a) nota que a blindagem de caráter corresponde à contração de grupamentos musculares. A este conjunto muscular rígido ele denominou couraça muscular. Mas tarde, amplia o sentido deste conceito e passa a compreender que couraça diz respeito não só a contração, mas também a frouxidão dos grupos de músculos e finalmente, conclui que a couraça muscular corresponde à falta de pulsação vital (contração e expansão constantes de tudo que é vivo). É a liberação da expansão energética, ou seja, a potencialização da sexualidade que confronta o estado de contração e rigidez contínuas (angústia). Dessa maneira, estabelece uma antítese inicial da vida: sexualidade x angústia. Reich inicia, então, o trabalho direto sobre as tensões corporais (respiração, favorecimento de movimentos expressivos, manejo sobre as tensões corporais). À medida que este cresce em sua clínica, observa que quanto mais bem auto-regulado está o indivíduo, mais o organismo pulsa de maneira plena e “natural” isto é, contrai e expande de forma harmoniosa. A estase leva à tensões corporais, ao medo da entrega, ao desenvolvimento da falta de contato e de envolvimento, ao crescimento da angústia e do desequilíbrio entre os sistemas vegetativos simpático (geralmente responsável pela contração) e parassimpático (na maioria das vezes compreende a expansão). Reich estabelece assim sua meta terapêutica nesta segunda fase: a pulsação vital. A couraça muscular aprisiona o corpo, suprime a espontaneidade. A flexibilização da couraça proposta por Reich, traz à consciência a história e o significado daquela rigidez e, conseqüentemente, uma maior e melhor 12 circulação energética. Se o corpo pulsa plenamente, pode chegar ao reflexo do orgasmo. Este reflexo é uma onda energética que corre do centro vegetativo por todo o corpo. Para alcançá-lo, além do trabalho, Reich observa a respiração, os movimentos expressivos e maneja cada um dos sete segmentos corporais (ocular, oral, cervical, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico). A análise caractero-vegetativa segue, portanto, um caminho que vai da análise das resistências, passando por tornar consciente os conteúdos inconscientes juntamente com a flexibilização das couraças e a ab-reação emocional, ao estabelecimento da potência orgástica. O estudo de Claudio Mello Wagner (2003) sobre transferência na vegetoterapia caractero-analítica aprofunda as implicações do trabalho corporal na clínica reichiana. A análise de caráter vegetoterapêutica não é um percurso fácil. Reich relata que é comum, ao final da terapia, a força neurótica tentar capturar novamente seu espaço, podendo ser observadas a angústia do prazer, o medo da entrega e da vida. No entanto, recuperados o reflexo do orgasmo e o caminho da entrega, o sujeito permite-se seguir os fluxos da vida e aumentar o contato consigo e com os outros no trabalho e na vida amorosa. Dessa maneira, ele conclui que se há energia em todo o vivo e este contrai e responde obedecendo a uma fórmula de quatro tempos: carga – tensão – descarga – relaxação (curva orgástica), então todos os seres vivos devem ser regidos por um princípio que os regularia energeticamente, denominado pelo autor de Princípio de Funcionamento Comum ou PFC. 5- Orgonomia e Democracia do Trabalho Em Oslo, a produção do construto teórico “reflexo do orgasmo” motiva Reich a estudá-lo experimentalmente em microorganismos. Reich (1938/1979b) observou que existiam vesículas que pareciam estar vivas e pulsavam, denominou-as bions. Investigou-as e percebeu que as vesículas não vinham do ar. Concluiu que os bions são estágios primitivos da vida, formas transitórias entre o inorgânico e o orgânico. Alguns cientistas ratificam os experimentos de Reich, outros não. 13 No final dos anos 30, Reich já não era mais compreendido nem pelos psicanalistas, nem pelos comunistas. A análise vegetoterapêutica afastara-se da psicanálise, e a importância da sexualidade em um processo social revolucionário pregada por Reich o afastou da ortodoxia marxista. Naquele momento, Reich aceitou o convite para mudar-se para os EUA e lecionar na New School for Social Research em Nova York. Paralelamente, Reich iniciou pesquisas sobre o câncer e desenvolveu estudos sobre bions “sapa” (bions da areia da praia) que constituem a energia orgônica – energia irradiada pelos bions e que possui efeitos sobre o organismo. Segundo Reich (1948/1985b), contrariando a ciência tradicional, o câncer não é um tumor em si. É sintoma de uma patologia advinda da retração do sistema vital. Conjuntamente com as pesquisas sobre o câncer, Reich incrementa seus estudos sobre energia vital. Na fase psicanalítica de Reich a energia era conceituada como libido (expressão da energia sexual), na segunda fase ou análise caractero-vegetativa, a energia passou a ser por ele compreendida como bioenergia (energia do vivo), agora na terceira fase – orgonomia, recebeu a denominação de energia orgônica. Esta entendida como energia primordial porque precederia a matéria. Para Reich, no princípio tudo era energia e a matéria seria energia condensada. O autor chega a esta conclusão após uma pesquisa denominada “Experimento XX”. Nos EUA, Reich dedica-se cada vez mais à pesquisa da energia orgônica. Constrói um aparelho que armazenaria orgônio. Seu princípio de funcionamento era simples. O artefato era uma caixa constituída de material orgânico externamente (algodão e madeira) e de metal internamente. O material orgânico absorve energia e o metal reflete para dentro da caixa a energia, acumulando-a em seu interior. Ao articular a pesquisa do orgônio com a do câncer, Reich notou que o que há em comum é a importância da pulsação vital. Então, ele partiu do pressuposto de que a energia acumulada na caixa orgônica poderia ajudar a organizar melhor a energia das pessoas com câncer, uma vez que estas sofreriam de retração vital. Assim, passou a associar a utilização do acumulador de orgônio com a psicoterapia nos pacientes com tumores cancerígenos. Obteve reconhecida sobrevida em alguns dos pacientes. 14 De acordo com Reich não só o câncer, mas várias outras doenças como a hipertensão, a asma etc. são biopatias, ou seja, enfermidades resultantes de mau funcionamento de sistema vegetativo. O acumulador contribui para restaurar a capacidade de pulsação (contração e expansão) dos corpos retraídos das pessoas que sofrem de biopatias. Dizendo de outro modo, a orgonoterapia (naquele momento a associação da psicoterapia com o acumulador) favoreceria a auto-regulação dos indivíduos. No final da década de 40, Reich conclui a obra La Biopatia del Cáncer e toma a vereda de estudos existenciais-humanistas, cujo tema central seria o assim chamado Zé Ninguém (1948/1982). Abastado ou não, este indivíduo está paralisado de medo diante da tarefa de mudar o mundo. Não toma o destino em suas mãos, sente-se impotente, prefere submeter-se a lideranças autocráticas, agarra-se à segurança, não assume riscos que poderiam torná-lo mais feliz, aliena-se em um trabalho que embota sua criatividade. Reich fustiga o Zé Ninguém, visando uma sociedade melhor. Uma sociedade mais justa implica crianças educadas para este fim. O texto Crianças do futuro. Sobre a prevenção da patologia sexual (1950/1984b) caminha nesta direção. Os pais e educadores deveriam capacitar as crianças a cuidarem de si próprias e dos outros coletivamente. O sentido de um autogoverno deveria ser favorecido desde cedo nas crianças. Em 1949, Reich e outros profissionais fundam o Centro Orgonômico para a Pesquisa sobre a Infância – OIRC. Ali foram desenvolvidos trabalhos com gestantes, supervisões do parto e dos recém-nascidos, prevenção do encouraçamento até os 5 ou 6 anos e acompanhamento das crianças até depois da puberdade. A criança possui uma condição imanente de auto-regulação obstacularizada pelas sociedades autoritárias. Aos pais e profissionais da educação caberia propiciar um maior contato das crianças com seus núcleos ou centros vegetativos. Isto as habilitaria a lidar melhor com os impulsos secundários destruidores da vida, a flexibilizar mais suas couraças e a confrontar a repressão sexual. A criança em contato com seu centro vegetativo torna-se mais graciosa, alegre, solta, com olhos mais vivos, mais atenta a si e aos outros, enfim, potencializa-se sua existência. 15 De acordo com Reich (1951/1979a), a contrariar o sujeito em profundo contato consigo e com as correntes energéticas, que produzem sensação de bem-estar, surge o indivíduo místico, encouraçado, que distorce as sensações energéticas em seu corpo e as percebe com um sentido sobrenatural. De acordo com Câmara (1998), o pensamento de Reich a respeito de religião combate a institucionalização desta por se constituir em uma das ferramentas de alienação do Estado, e restaura seu sentido mais radical – re-ligação ao cosmo, a Deus, que para ele é a própria energia cósmica. Reich (1951/1979) incrementa seus estudos sobre Orgonomia. Para ele o homem e o planeta Terra são sistemas orgonóticos com um centro energético, uma membrana periférica e um campo de energia ou envoltório orgonótico. Teoriza que a descarga energética obedece a um princípio que a precede: a superposição. Esta concerne ao fenômeno em que os sintomas orgonóticos buscam fundir-se orgonoticamente, ou seja, o encontro de sistemas orgonóticos provocam uma superposição que, por ser universal, é denominada superposição cósmica. Procuramos conexões, seja conosco ou com os outros. A vida é conexão e desconexão para que uma nova conexão possa ser realizada um pouco mais adiante e assim sucessivamente. A entrega, o abraço genital, a união com Deus, a ligação com o cosmo, representa a inteireza, o contato energético e o sentimento de pertencimento ao Universo. O maior obstáculo a este fim é o encouraçamento da alma e do corpo. Na década de 50 a guerra fria entre os EUA e a antiga União Soviética sinaliza a possibilidade catastrófica de uma guerra nuclear. A radiação nuclear era tema corriqueiro nas casas, escolas e organizações sociais em geral. Vivia-se um momento de incertezas quanto ao futuro da existência terrestre. No princípio dos anos 50, Reich (1951) preocupou-se com a radiação nuclear e imaginou uma maneira de combater as possíveis doenças decorrentes do contato dos indivíduos com esta radiação. Iniciou uma experiência denominada ORANUR I (sigla que quer dizer Orgônio Antinuclear). Supôs que poderia usar a energia orgônica para combater os efeitos devastadores da radiação nuclear. Houve uma série de dificuldades ao longo desta experiência e seus resultados não foram conclusivos. 16 Paralelamente à pesquisa ORANUR I, Reich escreveu Pessoas em Dificuldade (1953/1978), uma autobiografia referente ao período entre 1927 e 1937. Aqui Reich formula seus princípios sociais: a Democracia do Trabalho é uma sociedade de trabalhadores que executa tarefas socialmente necessárias. Sua proposição é de um sistema onde funcione a autogestão social, favorecedor da auto-regulação individual. Em 1953, Reich escreve outro livro, na linha de Escuta Zé Ninguém (mencionado anteriormente), seguindo a vertente humanista. Denominou-o O Assassinato de Cristo (Reich, 1953/1987). Este versa sobre a estrutura do homem que se deixa tomar pela peste emocional. Esta, na compreensão de Reich, é uma doença emocional “contagiosa” que torna os indivíduos conservadores nos hábitos e costumes. As pessoas praguejadas tomam uma direção destruidora da vida. São rígidas e invejosas das mais saudáveis. Nesta obra o autor traça um paralelo entre o homem desencouraçado e Cristo. Este, para Reich, representa o contato com Deus – energia cósmica, em oposição ao homem paralisado, rígido e que é, às vezes, tomado pela peste emocional. Este último não conseguiria viver com alguém desencouraçado e por isto Cristo teria morrido. Nos dias 18 e 19 de outubro de 1952, Reich (Higgins e Raphael-Orgs.-, 1954/1979) foi entrevistado por um dos representantes dos Arquivos Sigmund Freud. Aqui Reich recupera algumas noções teóricas, analisa historicamente o percurso da psicanálise à orgonoterapia e emite opiniões a respeito das organizações pelas quais passou, das pessoas que conviveu, de suas desavenças e das condições sociais que as envolveu. Reich fala de Freud integra uma trilogia autobiográfica que se inicia com Paixão de Juventude, se estende em Pessoas em Dificuldade e finaliza com a primeira obra referida. A última obra de Reich é ORANUR II – Contato com o espaço (Reich, 1957/1985a). Reich constrói um aparelho – cloudbuster – que objetivava influenciar as nuvens pesadas e sem vitalidade. Realizou algumas experiências com este artefato, obteve alguns sucessos, mas, assim como em ORANUR I não alcançou resultados conclusivos. Contudo, no caminho do Maine (onde residia) ao deserto do Arizona, ele escreveu belíssimas palavras sobre o deserto terrestre e estabeleceu sua correspondência com o “deserto emocional” do homem 17 encouraçado. De modo semelhante, produziu comentários sobre a poluição ao redor de Washington. É interessante notar esta preocupação com a poluição nos idos dos anos 50. Não há como deixar de notar o olhar agudo e visionário de Reich. Assim como já havia sido um dos precursores da Psicologia Comunitária (Vasconcelos, 1985), nos anos 20, parece que, àquela época, era um dos poucos cientistas a assinalar os perigos da poluição para os seres vivos na Terra. Quando Reich (Sharaf, 1983) retorna ao Maine é preso por violação do mandado de segurança que exigia a destruição dos acumuladores e da literatura sobre energia orgônica. O parecer da FDA (Food and Drugs Administration) dos EUA era o de que os acumuladores eram ineficazes. Reich acreditava que os pesquisadores da FDA não teriam realizado pesquisas extensas e profundas nem com os acumuladores, nem com as pessoas que se beneficiaram de seu uso. Ademais, Reich recusou-se a comparecer ao tribunal porque imaginava que os seus integrantes não teriam condições de avaliar sua obra, particularmente, suas pesquisas sobre o orgônio e disto resultou sua prisão. Reich é condenado e morre na prisão, de ataque cardíaco, a três de novembro de 1957. 6 – Alguns Fios Condutores É importante observar que Reich, ainda psicanalista, vai realizando pequenas rupturas com a teoria psicanalítica até seu afastamento: o conceito de potência orgástica, a análise das resistências, a compreensão da estrutura masoquista e a descrença na pulsão de morte como força primária. Em oposição ao pensamento cartesiano no que concerne às instâncias psique-soma ou às dimensões indivíduo-sociedade, Reich utiliza a óptica dialética. Em sua primeira fase e, parcialmente, na segunda, emprega o método materialista dialético. Na vegetoterapia vale-se exclusivamente do método funcionalista-dialético. Já na terceira fase seu método de investigação passa a ser denominado funcionalismo orgônico. As observações de Reich a respeito da subjetividade fazem com que ele constitua o termo blindagem de caráter. A seguir, o corresponde à couraça muscular. A flexibilização do encouraçamento psicossomático ocorre por meio da restauração da pulsação vital que, por sua vez, pode desencadear o reflexo do 18 orgasmo (carga e descarga energéticas). Na seqüência, nota que a fórmula do orgasmo está presente em tudo que está vivo e assim cunha o Princípio de Funcionamento Comum (PFC) que organizaria a própria vida, ou seja, tudo que é vivo pulsa, contrai e expande. O conceito de energia vai sendo ampliado ao longo de sua obra: primeiro libido, depois bioenergia e, finalmente, energia orgônica. De energia sexual e energia da vida à energia primordial e universal. A circulação de energia no corpo propicia a pulsação plena e assim o sujeito se auto-regula, em um freqüente equilíbrio dinâmico, objetivo último da orgonoterapia. A entrada nas fileiras marxistas é seguida de dissidência e de sua proposta de democracia do trabalho. Esta compatibiliza auto-regulação individual e autogestão social, processos que devem ocorrer ao mesmo tempo e que são buscados no dia a dia. Reich, ao final de sua vida, continua a ser um revolucionário a sonhar com um homem que viva em condições justas e dignas. 7 – Breves Indicações de Rotas A obra de Reich em português tem seu início de publicação a partir da década de 70. Nos anos 80, a publicação dos livros de José Ângelo Gaiarsa e de Roberto Freire, com referenciais reichianos, constituíram propulsores fundamentais da produção teórica que, a partir daí, adviria. Nestes anos, a produção bibliográfica sobre a teoria e a clínica reichiana esteve centrada, principalmente, nas editoras e instituições de São Paulo. Na década de 90 e no século que se inicia contempla-se a disseminação do pensamento reichiano no Rio de Janeiro, Porto Alegre e em outras capitais por meio do lançamento de livros, artigos, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em 1997 o “Encontro Comemorativo do Centenário de Reich” realizado em São Paulo, sob a coordenação geral de Cláudio Mello Wagner, foi um importante disparador de produção teórica, aprofundamento e articulações da obra reichiana com autores contemporâneos. Um dos possíveis desenvolvimentos da teoria reichiana é sua contribuição para o campo da educação. Visando aprofundar tal conhecimento, o leitor pode 19 recorrer ao livro Reich: história das idéias e formulação para a Educação, de Paulo Albertini. Acreditamos que estudos sobre a noção de caráter podem auxiliar os interessados a compreender este conceito reichiano fundamental. Há uma variedade de livros e duas revistas reichianas em circulação com um grande número de artigos sobre este tema, são elas: Revista Reichiana, do Instituto Sedes Sapientiae, e a Pensamento Reichiano em Revista, promovida por um coletivo de profissionais reichianos. O objeto de conhecimento inventado por Reich, ou seja, a complexidade psicobioenergeticassocial, comporta atravessamentos e interfaces com outras ciências. Um sentido bastante abrangente e que contempla áreas diferentes pode ser encontrado em Reich em Diálogo com Freud: estudos sobre psicoterapia, Educação e Cultura, organizado por Paulo Albertini e que tem como autores o próprio organizador, além de Cláudio Mello Wagner, Ricardo Rego e Sara Matthiesen. A questão orgônica tem merecido o olhar atento de autores como José Guilherme Oliveira em seu escrito “Ser e Não Ser: a dinâmica do universo” e nos artigos de Nicolau Maluf Jr sobre Epistemologia e Orgonomia publicados nas revistas reichianas aqui citadas. Não são menos abordadas as temáticas de cunho clínico/social na obra reichiana e aí gostaríamos de mencionar a tese de doutorado Para Além do Claustro Bipessoal: proposições teóricas para uma psicoterapia grupal de base reichiana, de Marcus Vinicius de A. Câmara e, mais especificamente no campo social, o livro de André Valente Barreto A Revolução das Paixões e o artigo Possíveis relações entre religiosidade brasileira no contemporâneo e Psicologia de Massas do Fascismo de Wilhelm Reich, de Karina Siviero e Simone Aparecida Ramalho, publicado na Revista Reichiana no 15/2006 do Sedes Sapientiae. Em 1997, fomos co-organizadores do evento “Cem anos de Reich”, um seminário na UFRJ, que resultou em artigos publicados no número especial (v.49, no 2, 1997) sobre o centenário de Reich da prestigiosa revista Arquivos Brasileiros de Psicologia da UFRJ. Cremos que esta publicação foi um marco na produção teórica reichiana na cidade do Rio de Janeiro. A partir daí livros e artigos referenciados em Reich cresceram em quantidade e qualidade. Autorias 20 coletivas como as dos livros Reich Contemporâneo: perspectivas clínicas e sociais e Reich: o Corpo e a Clínica, ambos organizados por Nicolau Maluf Jr, sendo o primeiro associado a Luiz Gibier, incrementaram a produção teórica do final dos anos 90. Os artigos podem ser encontrados no CD-ROM Reich – O Saber em Movimento, organizado por José Guilherme Oliveira e Henrique Rodrigues, na Revista Reichiana da sociedade Wilhelm Reich do Rio Grande do Sul, na Revista Reichiana do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo e na atual Pensamento Reichiano em Revista, herdeira da primeira. A articulação da obra de Reich com teóricos contemporâneos pós-críticos, notadamente aqueles que compõem a denominada Filosofia da Diferença (Deleuze, Guattari, Foucault, Nietzsche), pode ser observada em livros e em artigos de autores como Amadeu Weinmann, Maria Zeneide Monteiro, André Valente Barreto, Marcus Vinicius de A. Câmara, Lorene Soares, Luis Gonçalves, Regina Favre, entre muitos outros. Na área clínica, algumas das referências importantes são o livro de Claudio Mello Wagner A Transferência na Clínica Reichiana e os livros do pós-reichiano Federico Navarro. São também recomendados os artigos de Ernani Trotta publicados na primeira e última revistas citadas no penúltimo parágrafo desse texto, além de uma dezena de outros escritos, produzidos por teóricos do campo clínico, facilmente encontrados utilizando-se as referências mencionadas neste capítulo. A relação da teoria reichiana com a Biologia atual e a Neurociência pode ser observada nos recentes trabalhos de José Ignácio Xavier Atenção a Si e Psicoterapia Corporal: efeito das estimulações somatossensoriais sobre o corpo, as emoções e a cognição (tese de doutorado pela UFRJ) e de Ricardo Rego Psicanálise e Biologia: uma discussão da pulsão de morte em Freud e Reich (tese de doutorado pela USP). Finalmente, gostaríamos de assinalar que, principalmente, nas duas últimas décadas a produção teórica reichiana tem ganho um fôlego novo. Já são dezenas de autores a escrever referenciados no pensamento reichiano. Se nas décadas de 70 e 80, houve o boom das clínicas reichianas e neo-reichianas, especialmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, o que se observa desde os anos 90 é uma produção de trabalhos escritos sem precedentes, que, sem dúvida, reoxigena e traz novas veredas teóricas pautadas na obra reichiana. 21 Referências ALBERTINI, Paulo. Reich: histórias das idéias e formulações para a Educação. São Paulo: Ágora,1994. (Org.). Reich em Diálogo com Freud: estudos psicoterapia, Educação e Cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. sobre ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSICOLOGIA Cem Anos de Wilhelm Reich. Rio de Janeiro: UFRJ/ Imago, v.49, no 2, 1997. BARRETO, André Valente. Annablume/Fapesp, 2000. A Revolução das Paixões. São Paulo: CÂMARA, Marcus Vinicius. Para Além do Claustro Bipessoal: proposições teóricas para uma psicoterapia grupal de base reichiana. Tese de doutorado, UFRJ, 1999. _____________________. Reich – O Descaminho Necessário: Introdução à clínica e a política reichianas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. FREUD, Sigmund. “Totem e Tabu.” In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, 1980 (original publicado em 1914). FROMM, Erich. Medo à Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987. HIGGINS, Mary e RAPHAEL, Chester (Orgs.). Reich fala de Freud. Lisboa: Moraes, 1979 (original publicado em 1954). MALUF JR., Nicolau e GIBIER, Luiz (Orgs.). Reich Contemporâneo: perspectivas clínicas e sociais. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. MALUF JR., Nicolau (Org.). Reich: O Corpo e a Clínica. São Paulo, 1999. OLIVEIRA, José Guilherme. Ser e Não Ser: a dinâmica do universo. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2000. OLIVEIRA, José Guilherme e RODRIGUES, Henrique (Orgs.). Reich – O Saber em Movimento. Rio de Janeiro: Sony, 2000 – CD-ROM. PENSAMENTO REICHIANO EM REVISTA. Rio de Janeiro: Publit, n o 1 , 2006. 22 REGO, Ricardo Amaral. Psicanálise e Biologia: uma discussão da pulsão de morte em Freud e Reich. Tese de Doutorado, USP, 2005. REICH, Wilhelm. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes: 2001 (original publicado em 1933). . A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1984a (original publicado em 1942). . A Revolução Sexual. Rio de Janeiro: Zahar, 1976a (original publicado em 1945). . As Origens da Moral Sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1988a (original publicado em 1932). . Children of the future. On the prevention of sexual pathology. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1984b (original publicado em 1950). . Contact with Space – Oranur, Second Report (1951-1956). New York: Core Pilot Press, 1985a (original publicado em 1957). . Escuta, Zé Ninguém! Lisboa: Dom Quixote, 1982 (original publicado em 1948). . Ether, God and Devil and Cosmic Superimposition. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1979a (original publicado em 1951). . La Biopatia del Cáncer. Buenos Aires: Nueva Vision, 1985b (original publicado em 1948). . Les hommes dans I’État. Paris: Payot, 1978 (original publicado em 1953). . Materialismo Dialético e Psicanálise: Lisboa: Presença, 1983 (original publicado em 1929). . O Assassinato de Cristo. São Paulo: Martins Fontes, 1987 (original publicado em 1953). . O Combate Sexual da Juventude. São Paulo: Epopéia, 1986 (original publicado em 1934). . O que é a consciência de classe? Porto: H. A. Carneiro, 1976b (original publicado em 1934). . Pasión de juventud. Una autobiografia, 1897/1922. Buenos Aires: Nueva Vision, 1990 (original publicado em 1922). 23 . Conflits de la libido et formation délirantes dans ‘Peer Gynt’ d’Ibsen. In: Premiers Écrits, tome I. Paris: Payot, 1976c (original publicado em 1925). . Le caracter impulsif: une étude psychanalytique sur la pathologie du moi. In: Premiers Écrits, tome I. Paris: Payot, 1976d (original publicado em 1925). . Le coït et les sexes. In: Premiers Écrits, tome I. Paris: Payot, 1976e (original publicado em 1925). . Les Concepts de pulsion et de libido de Forel à Jung. In: Premiers Écrits, tome I. Paris: Payot, 1976f (original publicado em 1925). . Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 1988b (original publicado em 1934). . Psicopatologia e sociologia da vida sexual. Porto: Escorpião, vols. 1 e 2, 1977 (original publicado em 1927). . The Bion Experiments. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1979b (original publicado em 1938). . The Oranur Experiment, Rangeley: The Wilhelm Reich Foundation, 1951. First Report (1947-1951). REVISTA REICHIANA. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, n o 1 a 15. REVISTA DA SOCIEDADE WILHELM REICH DO RIO GRANDE DO SUL: Porto Alegre: SWRRS, n o 1 a 5. ROBINSON, Paul A. A Esquerda Freudiana: Wilhelm Reich – Geza Roheim – Herbert Marcuse. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. SIVIERO, Karina e RAMALHO, Simone. Possíveis relações entre religiosidade brasileira no contemporâneo e Psicologia de Massas do Fascismo. REVISTA REICHIANA. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, n o 15, 2006. SHARAF, Myron. Fury on Earth. New York: St. Martin’s Press/Marek, 1983. VASCONCELOS, Eduardo M. O que é Psicologia Comunitária. São Paulo: Brasiliense, 1985. WAGNER, Cláudio Mello. A Transferência na Clínica Reichiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. XAVIER, José Ignácio. Atenção a Si e Psicoterapia Corporal: Efeito das estimulações somatossensoriais sobre o corpo, as emoções e a cognição. Tese de Doutorado, UFRJ, 2004. 24