hospi tais 2011–2012 PORTUGAL TEM EMENDA? A reflexão sobre um novo modelo de gestão hospitalar não pode deixar de ter em conta a enorme complexidade do sistema em que os hospitais se integram, bem como a coexistência de múltiplos factores que tornam mais difícil a aplicação das medidas de reforma estrutural da rede hospitalar. Adalberto Campos Fernandes © Augusto Brázio um novo modelo de gestão hospitalar 2011–2012 PORTUGAL TEM EMENDA? O contexto A reflexão sobre um novo modelo de gestão hospitalar não pode deixar de ter em conta a enorme complexidade do sistema em que os hospitais se integram, bem como a coexistência de múltiplos factores que tornam mais difícil a aplicação das medidas de reforma estrutural da rede hospitalar. De entre os mais relevantes vale a pena referir as assimetrias geográficas, com implicações na resposta às necessidades, a tendência para centralização e burocratização da gestão em unidades com diferentes práticas, valores e culturas, a que se associa, com frequência, a ocorrência de baixos índices de motivação com implicações no desempenho. Do ponto de vista político torna-se cada vez mais difícil conjugar as pressões financeiras com as crescentes pressões relativas ao acesso num contexto em que as práticas médicas, diagnósticas e terapêuticas, se afirmam progressivamente mais inovadoras e cada vez mais onerosas. A dinâmica social e económica, a evolução demográfica, a mobilidade e a concentração urbana, a alteração dos padrões epidemiológicos e a coexistência de um mercado global de inovação farmacológica, biomédica e tecnológica comprometem, em grande medida, a eficácia das políticas públicas em Saúde, particularmente, no que se refere à capacidade de ajustamento entre a oferta e a procura de cuidados de saúde num quadro de eficiente gestão dos recursos. De uma forma geral os cidadãos esperam, do sistema de Saúde, um elevado nível de acessibilidade a cuidados de saúde baseados em tecnologia e em profissionais altamente diferenciados. Por outro lado, os profissionais reclamam a perseveração da sua autonomia profissional e a máxima consideração pelos valores das profissões. Em ambos os casos não têm sido feitos os necessários progressos quer no maior envolvimento e responsabilização dos cidadãos, quer na recomposição dos espaços de intervenção profissional, através de um adequado equilíbrio na definição dos papéis e das responsabilidades. Ao analisarmos com detalhe as especificidades do sistema de Saúde constatamos que as características da presta82 XXI, Ter Opinião ção não são homogéneas e que ainda se concentra nos hospitais um forte poder de quasi-monopólio a que corresponde, em Portugal, uma componente de despesa pública, face à despesa total, superior em mais de dez por cento à média da despesa hospitalar dos países que integram a OCDE. Os hospitais, enquanto organizações complexas, têm um considerável impacto na prestação dos cuidados de saúde embora o paradigma de prestação de cuidados de saúde, em ambiente hospitalar, se tenha alterado profundamente nos últimos anos em resultado da rápida transformação do conhecimento técnico e clínico e da dinâmica da inovação. A complexidade do hospital moderno é hoje bem ilustrada pela multiplicidade de saberes e de competências que tem de incorporar, com implicações na organização, nos custos e nos respectivos modelos de financiamento. O hospital passou a ser visto pela comunidade como um centro de elevada diferenciação e de concentração de competências determinando, em muitos casos, a necessidade de investir em serviços destinados a um muito reduzido número de utilizadores mas com custos operacionais muito elevados. Nos diferentes países que integram a OCDE verifica-se a existência de uma grande variedade de modelos de organização quer na conformação institucional, quer nos modelos organizativos, sendo reconhecíveis, no entanto, experiências muito diversas em termos de financiamento e modelos de governação. Há que referir, no entanto, que a designação “hospital” tem diferentes significados e traduz realidades muito diversas, nos diferentes países. Desde os hospitais universitários, de grande dimensão e complexidade técnica até estruturas de muito pequena dimensão inadequadamente classificadas como hospitais. Este facto torna ainda mais difícil analisar e comparar as realidades existentes nos diferentes países, tal como acontece no nosso país. Em Portugal a rede hospitalar passou por diversas fases e diferentes ensaios de reforma quer ao nível do seu estatuto jurídico, quer ao nível da sua natureza corporativa, gestionária e funcional. Na década de noventa iniciaram-se as primeiras tentativas de transformação A empresarialização dos hospitais públicos melhorou as condições de negociação e de aquisição de bens e serviços, introduzindo alguma agilidade na contratação de recursos humanos © Augusto Brázio A transformação da rede hospitalar, o acesso, a eficiência e a qualidade da rede hospitalar pública em Portugal, tendo sido iniciadas algumas experiências-piloto com o objectivo de melhorar a organização e a eficiência. Em dois dos casos – Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, e Barlavento Algarvio – foram ensaiados modelos de descentralização e autonomia de gestão que introduziram regras de natureza empresarial. Num outro caso, foi concessionada a gestão de um hospital público a um grupo empresarial privado – Hospital Fernando da Fonseca. Em 2001 o enquadramento jurídico dos hospitais públicos foi novamente alterado, tendo sido transformados cerca de trinta hospitais, do sector público administrativo, em sociedades anónimas de capitais públicos – hospitais SA. Em 2005 os hospitais SA foram alvo de uma refundação estatutária passando a integrar o sector empresarial do Estado sob a forma de entidades públicas empresariais. Foram ainda contratadas quatro parcerias público-privadas integradas – financiamento, construção, equipamento e gestão clínica que se encontram em actividade ou em fase de conclusão: hospitais de Cascais, Braga, Loures e Vila Franca de Xira. Apesar das sucessivas alterações na natureza jurídica, são ainda escassos os resultados das diferentes experiências a nível organizacional e gestionário. Ainda assim podemos reconhecer que a empresarialização dos hospitais públicos melhorou as condições de negociação e de aquisição de bens e serviços, introduzindo alguma agilidade na contratação de recursos humanos. É recorrente a ideia de existir a nível dos hospitais uma grande margem de progresso no sentido de melhorar os níveis de acesso e qualidade num quadro de eficiência acrescida. Na verdade, apesar das sucessivas reformas ensaiadas nos últimos trinta anos, subsistem ainda muitos problemas nestas diferentes vertentes. Ao nível do acesso verificou-se nos últimos quinze anos uma melhoria global cuja natureza não foi uniforme no país. Em muitos casos persistem dificuldades de acesso quer por razões geográficas, quer por insuficiência de recursos técnicos e humanos. O país mantém um elevado nível de despesa pública hospitalar em detrimento da despesa em actividades ligadas à promoção da saúde e à prevenção da doença. Os recursos estão concentrados, em grande parte, nas grandes cidades e nas respectivas áreas metropolitanas, sem que a tal corresponda uma adequada articulação, seja por disfunção das redes de diferenciação, seja por problemas de organização que comprometem a resposta às necessidades dos cidadãos. Esta nova fase do hospital público tem sido marcada pela incapacidade em gerir os recursos humanos com sentido estratégico, desenvolvendo as carreiras profissionais no plano técnico e científico, promovendo a descentralização de competências ao nível da gestão e reforçando a autonomia. A expectativa de uma nova cultura de gestão orientada para a autonomia e para a responsabilização não se concretizou, persistindo a indefinição estratégica, o planeamento incipiente e a falta de transparência e de competição pela qualidade dos resultados entre as diferentes instituições. A rede pública acabou por ser incapaz de garantir projectos profissionais estimulantes e, nalguns casos, de reter os melhores profissionais. A experiência pioneira, desenvolvida em Coimbra, no Centro de Responsabilidade Integrada de Cirurgia Cárdio-Torácica, XXI, Ter Opinião 83 2011–2012 PORTUGAL TEM EMENDA? não conseguiu ser replicada. Nos últimos anos os hospitais regrediram na sua autonomia empresarial voltando a estar excessivamente dependentes das cadeias de comando e controlo político-administrativo. Algumas ideias para melhorar a resposta 1) Modelo de “Governação” Os hospitais deverão evoluir para modelos de organização flexíveis com envolvimento formal da componente clínica. Este modelo deve privilegiar a coesão interna através de um rigoroso alinhamento entre os processos e as pessoas. O desempenho global de um hospital está indissociavelmente ligado a resultados cujo suporte reside, em primeiro lugar, na qualidade dos actos e procedimentos realizados. Para alcançar os melhores resultados em termos assistenciais é fundamental que exista um compromisso estratégico entre as áreas executivas e as áreas clínicas e técnicas. Este modelo pressupõe a existência de um ambiente interno de cooperação inter-profissional ancorado em práticas de negociação interna permanente, sendo indispensável incorporar no modelo de governo institucional uma componente estratégica de valorização e desenvolvimento dos profissionais e de satisfação dos utentes através de práticas eficazes de avaliação do desempenho. A sustentabilidade das instituições de saúde e, em particular, da rede hospitalar depende, em grande parte, do desenvolvimento dos profissionais, apostando na qualificação profissional. A gestão intermédia deverá ser fortemente responsabilizada através da descentralização de competências e da autonomia responsabilizante numa óptica de efectividade e responsabilização pelos resultados. 2) Inovar na gestão para garantir objectivos e responsabilização pelos resultados A descentralização com reforço de competências nas estruturas de gestão intermédia dotadas de grande capaci84 XXI, Ter Opinião dade operacional reforça a responsabilidade e contribui para a melhoria da qualidade e da eficiência operacional. Neste sentido é fundamental reforçar os mecanismos de contratualização interna correlacionando produtividade com qualidade. As medidas de incremento da eficiência deverão ser orientadas para a aquisição de ganhos em saúde. Deverá existir uma prática regular, rigorosa e independente de avaliação externa que permita a comparabilidade entre instituições de dimensão e complexidade comparáveis. 3) O valor da transparência Os hospitais deverão garantir o mais elevado nível de transparência possível. Neste sentido os sistemas e as tecnologias de informação deverão ser encarados como um factor crítico de mudança, contribuindo para uma diminuição do recurso a processos administrativos, menores custos de relacionamento, menor assimetria de informação e para a produção de informação de gestão credível, atempada e auditável. É fundamental desenvolver o registo de saúde electrónico não apenas como instrumento de controlo de utilização, mas sobretudo como elemento fulcral no suporte à decisão. Considerações finais É reconhecido que os hospitais enfrentam hoje particulares e complexos desafios. Neste sentido é fundamental a implementação de mecanismos de gestão mais flexíveis, capazes de aprofundar uma cultura de gestão orientada para o controlo dos custos e a promoção da qualidade, conjugando produtividade com flexibilidade e, sobretudo, responsabilização pela efectividade dos resultados. A modernização do parque hospitalar, em curso, aliada à entrada na rede pública de gestão privada, no âmbito das parcerias público-privadas, constitui uma importante oportunidade para reconfigurar o modelo de gestão, apostando no reforço da gestão intermédia que corporize um ambiente de governação clínica suportado em objectivos credíveis, tecnicamente deline- ados e submetidos a avaliação externa e independente. O financiador deve estabelecer com as diferentes unidades hospitalares um compromisso estratégico formalizado num contrato-programa plurianual onde estejam explícitos os indicadores de desempenho a monitorizar num contexto de gestão por objectivos. A contratualização na rede hospitalar deve ter como premissas fundamentais a correlação entre produtividade e qualidade avaliada, de uma forma independente, através de mecanismos exigentes de informação regular e transparente. Ao nível interno os processos de contratualização deverão ter em conta os princípios de negociação num quadro de avaliação do desempenho dos profissionais e da satisfação dos utilizadores. A autonomia da gestão dos hospitais não deverá constituir obstáculo à reorganização da rede hospitalar, nem tão pouco à necessária articulação entre os vários níveis de cuidados, particularmente no que respeita à reorganização dos cuidados primários e dos cuidados continuados integrados. A expectativa de uma nova cultura de gestão orientada para a autonomia e para a responsabilização não se concretizou, persistindo a indefinição estratégica, o planeamento incipiente e a falta de transparência e de competição pela qualidade dos resultados entre as diferentes instituições © Augusto Brázio A contratualização na rede hospitalar deve ter como premissas fundamentais a correlação entre produtividade e qualidade XXI, Ter Opinião 85