Globalização, dependência e
neoliberalismo na América Latina
Carlos Eduardo Martins
Sumário
Introdução ......................................................................................................................................1
Testemunho do autor ...................................................................................................................5
Debate ...........................................................................................................................................16
Introdução
A tese Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina, defendida e
aprovada com distinção no Departamento de Sociologia da USP, em maio de 2003, por
banca examinadora formada por Sedi Hirano (orientador), Theotônio dos Santos,
Octávio Ianni, Ricardo Antunes e Ricardo Musse é parte de reflexões e preocupações
que desenvolvo de longa data e que pude aprofundar e sistematizar nos últimos anos.
Elas se iniciam nos anos 80 quando grande parte do Brasil e da América Latina se
movem em torno às expectativas de grandes reformas que promovam a
redemocratização, o aprofundamento das liberdades políticas, o desenvolvimento
econômico e a justiça social. A frustração de grande parte destas expectativas tornam
esta década um período de grande radicalização social e política. A maior capacidade de
organização popular que se alimenta do processo de redemocratização e ao mesmo
tempo o impulsiona se confronta com as resistências das classes dominantes à
distribuição da renda, da propriedade e à promoção da eqüidade. O lançamento
mundial da ofensiva neoliberal, desde os governos Reagan, Thatcher e Kohl, expõe a
fragilidade dos projetos de modernização desenvolvidos na região com o batismo da
potência hegemônica. À crise da dívida externa se articulam o incremento da
desigualdade, da pobreza, do subdesenvolvimento, da financeirização, da inflação, da
criminalidade que tornam a democratização uma experiência com precária substância
social. A problemática latino-americana apresenta alta convergência e os sonhos de
“milagre” dos anos 70 se desvanecem, criando as condições para uma maior
aproximação do Brasil à região. Em minha graduação em Sociologia e Política na PUCRJ, realizada entre 1984-89, encontrei ambiente estimulante e criativo que me permitiu
despertar para importância destas temáticas e dar meus primeiros passos na tentativa de
compreendê-las e sistematizá-las. Tive a oportunidade de ser aluno de grandes
professores como Theotônio dos Santos, Leandro Konder, José Nilo Tavares, Gisálio
Cerqueira Filho, Aluísio Alves Filho, Alberto Noé e Nelson Mello e Souza, para citar
apenas alguns. Aproximei-me do pensamento latino-americano e situei a problemática
da dependência e do capitalismo periférico como um tema central de pesquisa,
preocupação que mantive desde então. Movido pela radicalização da conjuntura
brasileira concentrei-me na questão das alternativas para realizar minha monografia de
fim de curso, dedicando-me à questão dos projetos para superar a desigualdade e
consolidar no Brasil uma democracia socialmente substantiva.
A vitória de Collor de Mello leva a aplicação das políticas neoliberais para o seio
do Estado brasileiro. Ele aprofunda a desindustrialização, iniciada na segunda metade
dos anos 80, com a brutal recessão de 90-92 e desmonta em grande parte a ofensiva
sindical que se acumulava na década anterior. Nesse contexto, ingresso em 1991 no
mestrado em Administração Pública da EBAP/FGV e redireciono em parte minhas
linhas de pesquisa anteriores. A vitória do neoliberalismo na América Latina com o
estabelecimento do Consenso de Washington e a retração do campo socialista com a
dissolução da União Soviética restringiu provisoriamente a questão das alternativas e
me levou a iniciar uma linha de pesquisa dedicada ao estudo da reorganização mundial
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do capitalismo e seus impactos na América Lati na e no Brasil. Para isso iniciei o estudo
da reestruturação tecnológica do capitalismo contemporâneo, eixo de sua reorganização,
apoiando-me nos conceitos de revolução científico-técnica, paradigmas tecnológicos e
organizacionais. Nesta época estabeleci ou solidifiquei contatos que foram decisivos em
minha vida acadêmica. Para a análise reestruturação do capitalismo foram
fundamentais as participações de Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini. De Marini
recebi orientação para a leitura de O Capital relacionando-o à conjuntura
contemporânea. De Theotônio dos Santos a orientação para o estudo dos ciclos longos,
da revolução científico-técnica e do sistema mundial, âmbito no qual considerava dever
ser inserida a problemática da dependência.
Também foi bastante importante no
período minha aproximação do Instituto de Economia Industrial da UFRJ. Este era um
dos principais centros de oposição às políticas neoliberais no Brasil e tomava como eixo
de sua crítica a ênfase nas políticas industriais e na sua reformulação paradigmática. Ali
fiz vários créditos ou assisti como ouvinte cadeiras ministradas por Fábio Erber, José
Ricardo Tauile, José Luiz Fiori, Luiz Carlos Prado, José Carlos Ferraz, Paulo Tigre e
Reinaldo Gonçalves. Minha dissertação de mestrado, sob a orientação de Paulo Emílio
Mattos Martins, intitulou-se Globalização e capitalismo: considerações teórico-metodológicas
sobre os novos padrões da acumulação de capital e seus impactos nas políticas científicotecnológicas. Nela mostrava o papel que as políticas de ciência e tecnologia ou industriais
cumpriam nos países centrais e nos países dependentes na reestruturação mundial do
capitalismo. Sugeria, tomando em consideração o caso brasileiro, que a reestruturação
na América Latina sob o signo do neoliberalismo deslocava em grande parte os
investimentos em ciência e tecnologia dos setores de maior valor agregado e dedicados
ao mercado interno, como bens de capital, para os de menor valor agregado e
articulação internacional.
A linha de pesquisa que havia aberto era colossal e seus desdobramentos teóricos e
analíticos bastante vastos. Será no doutorado que irei alcançar uma visão mais integrada
articulada de seus vários elementos. Para isso diversos fatores irão concorrer. Entre eles
está o meu ingresso em importantes redes de pesquisa internacionais como a REDEM
(Red de Estudios sobre Economia Mundial) e a REGGEN (Cátedra e rede Unesco/UNU
sobre globalização e desenvolvimento sustentável) A REDEM é uma rede iberoamericana sediada em Puebla, na Faculdade de Economia da Benemérita Universidade
Autónoma de Puebla, sob a direção de Jaime Estay Reino. Realiza encontros anuais dos
quais participei em Puebla (2000), Rio de Janeiro (2001), e Lima (2003). A REGGEN é
uma rede mundial dirigida por Theotônio dos Santos, está sediada no Rio de Janeiro e
realiza reuniões bi-anuais. Seu primeiro encontro foi realizado em 2003 no Rio de
Janeiro. Nesses seminários internacionais pude debater e estabelecer contato com
grandes expressões do pensamento científico mundial como Immanuel Wallerstein,
Giovanni Arrighi, Samir Amin, Aña Esther Ceceña, Orlando Caputo, Beverly Silver,
Anibal Quijano, Julio Gambina, Elmar Altvater, Gao Xian, Manorajan Mohanthy, Andre
Gunder Frank, Daniel Olesker, Vladimir Davidov, Sunanda Sen, Francisco Lopez
Segrera e Adrián Sotelo Valencia entre vários outros. Na USP, meu orientador, Sedi
Hirano, um dos herdeiros do pensamento de Florestan Fernandes, me abriu o espaço
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para a aproximação de importantes representantes da tradição crítica do pensamento
paulista como Octávio Ianni, Francisco de Oliveira, Emir Sader, Ricardo Antunes e
Luciano Coutinho. Todo este ambiente foi decisivo para o desenvolvimento de minha
tese.
Globalização, dependência e neoliberalismo está dividida em sete capítulos. Nos quatro
iniciais busco analisar as tendências contemporâneas do sistema mundial, lançando mão
de uma análise ao mesmo tempo prospectiva e retrospectiva. Para isso articulo as
tendências seculares e cíclicas do que Wallerstein chama de moderno sistema mundial.
Neste ponto a tese apresenta uma teoria original da conjuntura contemporânea que está
baseada na articulação das principais expressões de sua longa duração: a inflexão nas
tendências seculares da acumulação de capital, provocadas pela mundialização da
revolução científico-técnica, a nova fase que se apresenta desde os anos 70 nos ciclos
sistêmicos, teorizados pelo grupo do Fernand Braudel Center, e o novo período que se
apresenta desde 1994 nos ciclos de Kondratiev, teorizados pelo economista russo Nicolai
Kondratiev e resgatados pelos teóricos da dependência, sobretudo, por Theotônio dos
Santos. Os capítulos 5, 6 e 7 dedicam-se à rearticulação dos países dependentes no
âmbito do sistema mundial sob a hegemonia do neoliberalismo, focando o caso latinoamericano e, em particular, os de Brasil, Argentina, México e Chile. No capítulo 5 faço
uma ampla revisão das diversos enfoques sobre a questão do desenvolvimento
produzidos na região ou que sobre ela tiveram grande influência, situando-os a luz da
história. Liberalismo, nacional-desenvolvimentismo, teorias da modernização, teorias da
dependência, endogenismo, neodesenvolvimentismo, neoliberalismo e teorias do
sistema mundial são analisados e as teses de seus principais autores: David Ricardo,
Raúl Prebisch, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Walt Rostow, Gino Germani,
Roberto Campos, José Carlos Mariátegui, Paul Baran, Andre Gunder Frank, Theotônio
dos Santos, Ruy Mauro Marini, Orlando Caputo, Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, Enzo Falleto, Agustín Cueva, Francisco Weffort, Jorge Castañeda,
João Manuel Cardoso de Mello, José Luis Fiori, Antônio Barros de Castro, John
Williamson, Lídia Goldenstein, Gustavo Franco, Immanuel Wallerstein e Giovanni
Arrighi. Nesse contexto analiso a relação entre o capital estrangeiro e o desenvolvimento
periférico e aproximo as teorias da dependência e do sistema mundial para estabelecer
alternativas ao neoliberalismo e à dependência. No capítulo 6 busco teorização de uma
economia política da dependência e de suas formas atuais. Central para isso será o
conceito de superexploração do trabalho, desenvolvido originalmente por Ruy Mauro
Marini. Mostro sua pertinência no âmbito da teoria do valor marxista, matematizando-o,
e indico suas formas contemporâneas. No último capítulo abordo os efeitos do
neoliberalismo sobre o desenvolvimento econômico e social da região, apontando sua
dimensão cíclica. Indico um cenário bastante negativo de periferização,
desnacionalização, desindustrialização (salvo o caso mexicano), aprofundamento da
superexploração e insustentabilidade ambiental e afirmo que a passagem da América
Latina a um novo Kondratiev ascensional pouco alterará este quadro, como o
demonstram Chile e México, países que nele já teriam ingressado. Permeia diversos
capítulos da tese a busca das alternativas tanto no plano do sistema mundial quanto no
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nacional e regional. A retomada desta linha de pesquisa que pretendo desenvolver e
aprofundar em outros trabalhos é, em parte, expressão da crise política e econômica do
neoliberalismo na região que se desenvolve de maneira mais sistemática a partir de
1998, ano em que ingresso no doutorado.
Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina está sendo atualmente
preparada para publicação. Um de seus capítulos foi a base de um ensaio premiado pela
CLACSO no concurso “Ensayos (2003): los legados teoricos de America Latina y
Caribe”. A tese foi ainda objeto de um artigo de Theotônio dos Santos publicado na
Revista Aportes (México) e na imprensa internacional onde o autor afirma que ela
representa um “verdadeiro passo no avanço do conhecimento” e que “apresenta novos
elementos no enfoque da continuidade teórica e analítica entre as teorias da
dependência e do sistema mundial”.
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Testemunho do Autor
Considero realmente importante que se abra espaço para o pensamento acadêmico
e que o país retome a reflexão sobre sua relação com a América Latina e a economia
mundial. Fomos bem sucedidos quando ousamos tomar essa direção e o seu desmonte
tem trazido conseqüências muito negativas para a nossa inserção internacional. É
preciso se retomar no Brasil a tradição de pensar autonomamente e não apenas utilizar
visões do cenário internacional dadas externamente, algo que limita muito nossa
capacidade de nos relacionar com a economia mundial.
A tese se organizou basicamente em duas grandes partes, insinuando-se uma
terceira que a atravessa. Na primeira parte propõe-se uma interpretação da conjuntura
mundial contemporânea e de suas grandes questões – o que é globalização, o que é
neoliberalismo e o porque de sua força apesar de sua crise de legitimidade. A segunda
parte se concentra em analisar a maneira como nos inserimos no redesenho neoliberal
da economia mundial. Finalmente se ensaiam alternativas. Se nossa inserção
internacional é, como avaliada, bastante negativa perante uma globalização neoliberal, o
que nos resta fazer? Lamentar ou há possibilidade de se buscar um caminho diferente e
de se disputar os caminhos e a direção da globalização? Que força pode ter o processo
de regionalização? E o estado nacional é uma instância superada nesse processo de
construção de alternativas?
Na primeira parte da tese, foi feito um esforço em buscar uma interpretação
própria da conjuntura mundial contemporânea. Para isso dialogamos com outras visões
e propomos uma sistematização dos distintos enfoques sobre a globalização, nem
sempre tomados em consideração quando se utiliza esta expressão. Uma corrente, que
chamamos de globalista, vê a globalização como um fenômeno radicalmente novo, que
rompeu com o sistema interestatal e criou uma sociedade fundada em instituições
efetivamente globais. As corporações multinacionais e as instituições
intergovernamentais se tornaram atores supranacionais e decisivos para a gestão desse
sistema, o capital se desterritorializou e tende-se a identificar a forma financeira como
sua expressão mais adequada. Podemos dividir os globalistas entre uma corrente que vê
a formação desta sociedade global como um processo pacífico e harmônico, que se
expressa em autores como Francis Fukuyama e Kenich Ohmae, e outra, de socialistas,
que vêem na formação da sociedade global um processo no qual as lutas ainda se
desenvolvem e se produzem grandes conflitos. A revolução ainda seria uma
possibilidade, entretanto ela não ocorreria mais dentro do Estado nacional e sim no
espaço global. Octávio Ianni, talvez seja o grande representante brasileiro dessa visão,
mas devemos citar também os trabalhos de René Dreyfuss e no plano mundial os
escritos de Toni Negri e Michael Hardt.
Uma segunda corrente teórica é a que defende a tese da hegemonia compartilhada.
Entre seus principais autores estão Joseph Nye e Robert Keohane, que discordam dos
globalistas ao afirmarem que o Estado nacional ainda tem um papel decisivo na
organização da economia mundial, mas vêem na velocidade e amplitude dos fluxos do
capital a formação de certas redes, de certas parcerias, entre as próprias corporações
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transnacionais, de onde emerge a necessidade do Estado se adequar a esse formato. A
hegemonia não poderia mais se situar no plano exclusivamente nacional e teria que
abarcar a construção de redes internacionais, onde ainda poderia ter um papel
importante. Nye, por exemplo, ainda vê um papel de muita relevância para os Estados
Unidos nas relações internacionais, mesmo que a hegemonia não possa ser exercida de
forma unilateral como era anteriormente.
Uma terceira visão seria a dos neo-desenvolvimentistas, que também se dividem
em dois grupos: aqueles que apóiam uma reorganização do capitalismo; e aqueles que
acreditam que o desenvolvimento só pode ser retomado por meio de um enfoque
socialista do sistema mundial. O primeiro grupo, que conta com autores como Maria da
Conceição Tavares, José Luis Fiori e Susan Strange e o segundo com autores como Samir
Amin e François Chesnais. Ambos coincidem no diagnóstico do capitalismo
contemporâneo como um regime de acumulação financeirizado, havendo uma certa
aproximação com alguns globalistas, resguardada a fundamental diferença de que, para
os neo-desenvolvimentistas, esse regime financeirizado está muito correlacionado à
força do Estado nacional, materializada nos Estados Unidos, fundada no poder do dólar
e das armas. Segundos esses autores, não há muitas alternativas para o capitalismo
financeirizado. Este tende a criar uma trajetória progressivamente depressiva que
impediria o crescimento da economia mundial, crescimento este que pôde ser observado
de maneira exemplar no pós-guerra. Os socialistas apostam num processo
revolucionário que poderia partir de regiões ou Estados nacionais e os teóricos do
capitalismo organizado acreditam na possibilidade de se retomar um ciclo de
desenvolvimento dentro do capitalismo, desde que haja uma reforma do Estado
hegemônico, ainda que não se apresente uma proposta concreta de reforma e que haja
muito ceticismo para tal.
Outras duas visões nas quais me apoiei mais são as da teoria da dependência e da
teoria do sistema mundial. Ambas se separam dos enfoques que mencionei,
principalmente por levarem em conta, em suas análises da conjuntura mundial, a longa
duração. Para essas teorias a globalização é um processo ainda em curso. Mas há
diferenças entre essas duas visões de longo prazo. A teoria da dependência vê na
globalização uma força revolucionária que se expande dentro do sistema capitalista, a
partir de um certo momento, ligado a revolução científico-técnica. A revolução
científico-técnica faz da subjetividade a principal força produtiva, por meio da ciência, e
torna possível a gestão global do mundo. A teoria da dependência, vinculada a um
enfoque marxista, tem entre seus principais autores Theotônio dos Santos e Ruy Mauro
Marini. Theotônio dos Santos incorpora e desenvolve o enfoque tcheco de Radovan
Richta, que coordenou no fim dos anos 1960 o amplo conjunto de estudos que foi à base
do livro “La civilización en la encrucijada”, onde se procura mostrar que a revolução
industrial estava sendo superada pela revolução científico-técnica que impunha o
princípio da automação e iniciava um amplo processo de liquidação dos empregos
industriais. Criavam-se então possibilidades amplas para a humanidade, mas as
relações sociais que regiam a economia mundial não estavam ainda à altura destas
possibilidades. Essas relações sociais eram ainda de natureza capitalista, criadas a partir
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do século XVI, ganhavam amplo desenvolvimento com a revolução industrial, mas eram
insuficientes para gerir as novas forças produtivas que advinham da revolução
científico-técnica. Cria-se o espaço para uma transição civilizatória. Mas nela
desenvolve-se uma luta política dramática entre a tentativa de se apropriar dessas novas
forças produtivas conservando-se as relações sociais de produção, com resultados
profundamente negativos para o conjunto da sociedade, e a tentativa de ajustar as
relações sociais às novas forças produtivas e gerar a nova civilização. O enfoque da
teoria do sistema mundial traz o conceito extremamente fecundo de que a longa duração
é formada por ciclos. Esta longa duração inicia-se no século XVI, quando se estabelece o
sistema capitalista ou o que chamam de capitalismo histórico, baseado na articulação
entre uma economia mundial impulsionada por fluxos de capitais e mercadorias e uma
superestrutura política específica, que lhe é adequada. Esta superestrutura é o sistema
interestatal dirigido, não por impérios, mas por Estados hegemônicos que combinam
persuasão, coerção e consentimento. Para que essa hegemonia se materialize é
fundamental que esses Estados consigam ser os grandes centros produtivos, comerciais
e financeiros do mundo, o que lhes dá a capacidade de convencer outros a
implementarem suas políticas. Os ciclos da longa duração seriam ciclos de hegemonia,
também chamados de sistêmicos, e apresentam fases de expansão e crise mediadas por
períodos de caos, onde desenvolvem-se guerras sistêmicas e mundiais que resultam na
afirmação de um novo pais hegemônico que dirige a economia mundial para uma etapa
superior de expansão. As análises do sistema mundial situam a gênese do período atual,
entre 1967-73, quando teria se iniciado a crise de hegemonia dos Estados Unidos, que
coincide com a mundialização da revolução científico-técnica através da generalização
do paradigma microeletrônico. A visão desse grupo, onde despontam Immanuel
Wallerstein e Giovanni Arrighi, é que em 1945-50 começou um ciclo de hegemonia dos
Estados Unidos, que entrou em crise a partir de 1967-73, não havendo a possibilidade de
sucessão de um novo Estado hegemônico. Estaríamos rumando para um período de
caos sistêmico, no qual despontaria a questão civilizatória e o espaço para se reinventar
o sistema-mundo. Outro conceito interessante para se entender a conjuntura atual,
utilizado pela teoria da dependência, é o dos Ciclos de Kondratieff. Esses ciclos também
são de longa duração, uma duração menor que a dos ciclos de hegemonia, e se referem
às mudanças de paradigma tecnológico. Os paradigmas tecnológicos, de forma geral,
têm o alcance de cerca de 50 ou 60 anos, período ao fim do qual haveria uma mudança
na base tecnológica. Essas transformações tecnológicas exigiriam mudanças nos
paradigmas organizacionais. Os períodos onde a ruptura tecnológica encontra uma
forma de gestão adequada se constituem em períodos de desenvolvimento, enquanto
aqueles nos quais isso não acontece se constituem em períodos de crise. A partir daí
poderíamos caracterizar o período de crise que surge a partir de 1967-73 como uma fase
cíclica em que não há a disponibilidade de uma base institucional e gerencial para
impulsionar o paradigma microeletrônico que, entretanto, deve ser criada.
A partir desta discussão teórica procurei estruturar um enfoque próprio sobre a
conjuntura contemporânea. Esse enfoque reúne basicamente três movimentos de larga
duração. O primeiro deles é a revolução científico-técnica. Ao meu ver ela situa a
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globalização como uma força revolucionária, pois se confronta fortemente com as
relações de produção capitalista. E porque podemos dizer isso? Por uma razão básica: as
relações de produção capitalista sempre se basearam na geração de mais valia. O fator
motriz do desenvolvimento do capitalismo como sistema mundial foi sua capacidade de
produzir de maneira ampliada a mais-valia. Esta dependia de uma diferença
fundamental: a diferença entre o valor do trabalho e o valor da força de trabalho.
Quanto maior fosse essa diferença maior seria a taxa de mais-valia. Ora, a revolução
industrial permitiu de fato uma ampliação muito grande da taxa de mais valia, porque
foi criada uma forma de se gerar produtividade na qual a produtividade do trabalho
coletivo se desenvolvia a expensas da qualificação do trabalhador individual. O
processo de mecanização estabelecido pela revolução industrial é um processo de
simplificação do trabalho físico, onde a máquina se torna o grande eixo do sistema
produtivo e o trabalhador se converte em apêndice da máquina, tendo suas
qualificações progressivamente reduzidas, o que reduz também relativamente um
componente fundamental do valor da força de trabalho que é o seu tempo de formação.
Nesse sistema a produtividade do trabalho se desenvolvia com grande independência
da escolaridade do trabalhador médio que acompanhava com muito atraso e à distância
este movimento. Se a revolução industrial criou um processo onde se podia aumentar a
produtividade do trabalho desvalorizando a força de trabalho, a revolução científicotécnica ao substituir a mecanização pela automação como processo tecnológico
fundamental, transforma o trabalho físico não mais em algo a ser simplificado, mas sim
eliminado. Nesse novo contexto a desqualificação da força de trabalho já não pode mais
ser a base da produtividade. Produz-se um salto dialético que torna o conhecimento e a
qualificação a base da produtividade. A revolução científico-técnica inverte o sistema de
geração de produtividades da revolução industrial e estabelece um sistema onde a
produtividade depende do aumento relativo do valor da força de trabalho e não de sua
redução. Isso cria uma grande dificuldade para o capitalismo incorporar a revolução
científico-técnica, pois ameaça a taxa de mais-valia. A incorporação da força de trabalho
qualificada passa a exigir então condições muito particulares, como a sua
superexploração, que empurra os seus preços para abaixo do valor e a viabiliza. O
capitalismo não consegue transformar massivamente o trabalho físico e intensivo em
trabalho qualificado, motivo pelo qual uma das expressões dessa transição inconclusa
ser o desemprego em larga escala que nivela os preços da força de trabalho abaixo do
valor. Uma das expressões mais claras da superexploração no capitalismo
contemporâneo é a retração dos salários nos Estados Unidos que são hoje inferiores aos
níveis de fins dos anos 1960.
A revolução científico-técnica impulsiona, de fato, um componente fundamental
que é a tendência decrescente das taxas de lucro. Marx afirmou que haveria um
momento em que a taxa de mais valia avançaria de tal forma que comprometeria a
massa de mais valia, derrubando de maneira irrevogável a taxa de lucro. Isso ocorreria
porque a automação eliminaria a grande massa de trabalhadores explorados no
processo produtivo, em razão dos vínculos das relações de produção capitalistas e de
sua civilização com a força de trabalho desqualificada. Mas este cenário seria o ponto
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extremo de uma tendência de substituição da força de trabalho pela maquinaria que se
desenvolve através de um longo processo que ainda está em curso. Alguns autores
como Robert Kurtz acreditam que o capitalismo não já não pode mais gerar crescimento
por ter atingido estes limites. Diferentemente, acredito que essa tendência não criou
ainda uma limitação definitiva para a expressão de importantes contra-tendências. Marx
ao mencionar as tendências decrescentes da taxa de lucro, sempre ressaltou as suas
contra-tendências. As fases expansivas dos ciclos longos são um momento importante
de expressão dessas contra-tendências, pois elevam as taxas de lucro. Podemos
distinguir na fase expansiva dos Ciclos de Kondratieff, um segundo movimento de larga
duração que incide na conjuntura atual. Defendemos que se inicia uma fase A, isto é,
expansiva, a partir de 1994. Se, nos anos 1970, desata-se a fase depressiva do ciclo de
Kondratieff vinculada ao paradigma microeletrônico, a partir de 1994 observa-se uma
clara inversão desta tendência: aumentam as taxas de crescimento da economia mundial
e a taxa de lucro nos Estados Unidos sobe radicalmente, aproximando-se dos níveis do
pós-guerra, embora apoiada por componentes especiais como a superexploração da
força de trabalho, que não são normais no funcionamento dos centros do capitalismo e
que têm cumprido um papel importante na geração deste novo Kondratieff. Mas sobre
esse Kontradieff incidem movimentos depressivos. Um já mencionado é o
aprofundamento da revolução científico-técnica, e outro é a crise de hegemonia dos
Estados Unidos que constitui o terceiro grande movimento de larga duração que incide
sobre a conjuntura atual. Essa crise está vinculada ao fato de que os Estados Unidos está
perdendo capacidade produtiva para o restante da economia mundial, desde o final dos
anos 60, e uma das expressões disso é um déficit em conta corrente muito significativo
que grande parte da burguesia estadunidense busca neutralizar por meio de uma
política neoliberal. O neoliberalismo encontra sua força na condição de instrumento
para resolver a crise de hegemonia dos Estados Unidos e conta para isso com apoio de
segmentos muito expressivos da burguesia estadunidense. Esse é o motivo da força do
neoliberalismo na conjuntura atual. Entretanto, fracassa em sua tentativa e o máximo
que consegue é controlá-la a curto e médio prazo às custas de seu aprofundamento e
ampliação.
O neoliberalismo está vinculado, de um lado, à racionalização capitalista das
novas potencialidades microeletrônicas, que viabilizam a construção de escalas globais
de produção e consumo e permitem a construção de um comércio internacional
profundamente articulado, sem custos tarifários. Mas, de outro lado, ele também está
muito vinculado à crise de hegemonia dos Estados Unidos. Porque? Porque os Estados
Unidos têm entre os determinantes de sua crise a elevação de seus custos de produção
em relação ao restante da economia mundial. Uma das razões disso é a presença de uma
classe operária ativa, e uma das formas de se desmontá-la é utilizar o mercado mundial
para nivelar por baixo os salários domésticos. Os Estados Unidos, através de suas
frações burguesas mais ligadas aos oligopólios globais, defendem um enfoque favorável
à abertura dos mercados, buscando na força de trabalho superexplorada do terceiro
mundo um elemento capaz de pressionar para baixo os salários do país. As empresas
globais aproveitam essas condições para criar uma nova divisão internacional do
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trabalho, que é sensivelmente diferente de outras estabelecidas anteriormente, pois
através dela se utiliza a força de trabalho da periferia para exportar produtos que
competem com parte importante da especialização produtiva nos países centrais. No
período de hegemonia inglesa, a divisão internacional do trabalho situou a produção
industrial nos países centrais e a produção agrícola nos países periféricos. Durante a fase
expansiva da hegemonia dos Estados Unidos, havia uma divisão internacional do
trabalho na qual os Estados Unidos descentralizaram os segmentos atrasados da sua
indústria para países periféricos, dirigindo sua produção, em larga medida, para o
mercado interno destes. Mas com as possibilidades de interconexão criadas pela
microeletrônica, que permitem que a gestão de uma firma possa ser realizada de
maneira global, descentraliza-se para os países da periferia tecnologias bastante
sofisticadas que exportam para o mercado mundial, a preços mais competitivos,
produtos que são elaborados nos próprios países centrais. As empresas capazes de se
organizar transnacionalmente para internalizar esta redução de preços, atingem
reduções de custos e elevações das taxas de lucro e beneficiam-se profundamente desta
situação. A abertura do mercado dos Estados Unidos é uma forma de diminuir os custos
de produção, principalmente nivelando por baixo salários domésticos, destruindo
sindicatos, pequenas e médias empresas ou empresas de base nacional e criando uma
situação de desemprego crescente. O neoliberalismo também gera uma abertura
financeira que possibilita aos Estados Unidos manter um poder para sua moeda, que é
extremamente artificial, e com isso cobrir o déficit em conta corrente sem ter necessidade
de ajustar o câmbio no plano mais imediato. Isso também permite que a burguesia
estadunidense mantenha sua massa de riqueza inflada por um período considerável,
algo que não aconteceria se fosse necessário um ajuste mais imediato. Mas essa aventura
neoliberal é muito arriscada. A fase de crise do ciclo de hegemonia pressiona para baixo
o Kondratieff porque cria no sistema uma bolha especulativa, decorrente do fato de
que os Estados Unidos mantêm o dólar num valor insustentável. Nesse aspecto discordo
fortemente do grupo neo-desenvolvimentista que afirma que os Estados Unidos podem
manter sem problemas a sua hegemonia em razão de sua liberdade para poder fixar o
dólar no valor que quiserem. Em verdade não podem. A idéia que dá fundamento a este
raciocínio é a de que os Estados podem criar qualquer dívida se possuírem a moeda com
a qual as dívidas são pagas. Mas essa é uma idéia que só pode ser manejada em termos
virtuais. Se os Estados Unidos começassem a imprimir dólar na proporção necessária
para pagar suas dívidas, gerar-se-ia uma corrida mundial violentíssima contra o dólar,
que implicaria numa desvalorização descontrolada e brutal dessa moeda. Isto limitaria a
possibilidade de uma desvalorização planejada que somada à resistência da burguesia
estadunidense em aceitá-la, impulsionaria o paradoxo de que o déficit em conta corrente
cresce ancorado ao dólar que se mantém num patamar insustentável a longo prazo. A
valorização do dólar cria ainda problemas sérios para o crescimento da economia dos
Estados Unidos. Um dos problemas que inviabilizou a continuidade do crescimento
econômico durante a gestão Clinton foi o fato de que o dólar valorizado implicou num
bombardeio de mercadorias do mercado internacional, a preços subsidiados
internamente pelo câmbio, que obrigou os empresários domésticos a manterem seus
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preços em níveis muito baixos. Isto determinou um baixíssimo poder de negociação com
suas classes trabalhadoras, pois quando o crescimento econômico reduz
substancialmente os níveis de desemprego, a mais leve pressão salarial derruba as taxas
de lucro nos Estados Unidos, justamente porque os empresários não têm margem de
manobra para elevar preços. Nesse arcabouço macroeconômico os Estados Unidos são
um país que não podem gerar inflação e tem suas perspectivas de crescimento
econômico bastante limitadas.
Essa aventura neoliberal se torna ainda mais arriscada porque não desponta um
sucessor capitalista para resolver as questões advindas da crise de hegemonia, como
houve em outras situações. Em outras ocasiões o país em crise de hegemonia, a partir de
um certo momento, passou a investir em um sucessor, investimento que garantiu a
continuidade do sistema interestatal e garantiu que a posição do Estado em decadência
fosse pacífica e não imperialista. Hoje, a ausência de um país em posição de substituir os
Estados Unidos está levando uma parte de sua burguesia a flertar fortemente, ou
mesmo realizar um projeto de cunho imperialista e fascista. A vinculação entre
neoliberalismo e fascismo não é nenhuma aberração e está inscrita como possibilidade
no próprio quadro teórico do pensamento neoliberal. Autores como Milton Friedman
dizem o seguinte: “Porque somos neoliberais e não liberais? A diferença em relação ao
liberalismo do século XIX é que ele partia da liberdade política para chegar à liberdade
econômica. Nós fazemos o contrário”. Então, eles podem apoiar ditaduras desde que
estas ditaduras criem o arcabouço de funcionamento da economia neoliberal. Isso
explica o apoio desse grupo ao Pinochet e a outros representantes de idéias abertamente
fascistas. Esse é um dos riscos que presenciamos no sistema mundial. Quais as
alternativas para essa crise de hegemonia? As ameaças de retorno do imperialismo e
fascismo são parte do desenho do cenário mundial no qual nos encontramos. Mas toda a
crise sempre implicou em alternativas. Se verificarmos o que se exigia para que um
Estado se tornasse hegemônico, veremos que se tratava de internalizar um diferencial de
liderança produtiva, comercial e financeira sem paralelo no mundo. Na formação dessa
liderança o poder chave era o poder produtivo. Mas hoje em dia, em relação à produção
por exemplo, a própria natureza das novas tecnologias impede uma incorporação
similar de poder num Estado nacional, ou numa região, porque um dos grandes
problemas da nova base tecnológica para a gestão do capitalismo é que as inovações são
profundamente ricas em difusão. Estudos da OECD sobre inovações tecnológicas
mostram que os maiores esforços para se criar uma legislação sob patentes estão
vinculados ao fato de que o inovador não consegue se apropriar dos principais
resultados econômicos de sua inovação. Isto é, a inovação tecnológica hoje tem tal
capacidade de gerar externalidades, que alguém que esteja perto da fronteira
tecnológica consegue imitar essa inovação sem incorrer nos custos nos quais o inovador
incorreu. Vê-se assim que há muita dificuldade em se cristalizar uma outra hegemonia.
Então a solução não é outra hegemonia, e se fosse provavelmente teríamos que aceitar a
idéia de uma nova guerra mundial em proporções mais vastas que a anterior já que todo
o período de caos sistêmico foi regido por guerras de trinta anos – de 1618 a 1648 houve
transição da hegemonia espanhola-genovesa para uma holandesa: depois, de 1792 a
11
1815, houve a disputa entre França e Inglaterra que decidiu a transição da hegemonia
holandesa para a inglesa; entre 1914 e 1945 houve a disputa entre o bloco dos Estados
Unidos e o bloco capitaneado pela Alemanha fascista pela sucessão inglesa. Assim, se
esse sistema for seguir adiante é possível que a humanidade não sobreviva. Então a
solução é um sistema pós-hegemônico. Parece-me que a grande encruzilhada com a qual
nos defrontaremos nos próximos anos é que se tende para a construção de uma
bifurcação na economia mundial, que segundo cálculos baseados em medições das
durações dos ciclos, deve se abrir por volta de 2015. Que bifurcação é essa? Sempre
quando se inicia um período de crise hegemônica, se conforma um bloco competidor,
antagônico, com vocação pra suceder a hegemonia. Se pensarmos, por exemplo, na crise
da Inglaterra, que começa em 1870, veremos que esse é o período no qual surgem as
unificações: a unificação alemã; a Guerra da Secessão dos Estados Unidos que
reestrutura o país; e a Revolução Meiji. Aí estão se formando as bases políticas dos
grandes competidores da hegemonia inglesa. Da mesma forma o período em que estala
a crise de hegemonia dos Estados Unidos, 1967-73 é chave para se pensar as alternativas
e os termos da bifurcação. Entre 1967-73 o que ameaça politicamente a hegemonia é o
grande confronto entre o imperialismo e o antiimperialismo no Vietnã que marca os
termos de uma nova bifurcação. De um lado estão as forças pós-hegemônicas, que
encontram, em certa medida, seu primeiro sinal, no movimento antiimperialista que
reuniu interesses transnacionais, não do ponto de vista das corporações, mas do ponto
de vista das populações e que constituiu um poder social e político capaz de derrotar o
imperialismo estadunidense. A derrota dos Estados Unidos no Vietnã foi uma derrota
política e não militar, afinal ali morreram mais de um milhão de vietnamitas contra 57
mil estadunidenses. Foi uma derrota política. O Vietnã mostra a formação de uma força
política alternativa que busca um mundo não mais pautado na competição e na
liderança hegemônicas, mas sim pautado na solidariedade entre os povos. Esse espírito
reaparece nos fóruns sociais mundiais quando se sugere que é possível uma outra
globalização e um outro mundo que não seja o dirigido por um punhado de burocratas
e empresários, volta nos movimentos pela paz que ganharam proporções vastíssimas a
partir da intervenção dos Estados Unidos no Iraque. No outro lado da bifurcação, está a
posição oposta de buscar o protagonismo a partir da dominação territorial e do império.
Ela já é claramente desenvolvida no governo Bush que é um governo cuja doutrina de
política externa, a doutrina da ação preventiva, é claramente fascista. Se substituirmos
onde se lê “terroristas” por comunistas ou judeus, tem-se a doutrina de Hitler, de guerra
total contra o inimigo, que deve ser destruído. Então esse é o patamar onde está em
curso o destino do mundo. Agora, o que nós da América Latina temos a ver com isso?
Parece-me que a América Latina está jogando um dos piores papéis no mundo de
hoje, pois se trata de uma zona de hegemonia regional dos Estados Unidos, que é um
país hegemônico decadente. Os Estados Unidos utilizam a América Latina como uma
instância regional justamente para prorrogar a decadência da sua hegemonia e a leva a
praticar políticas insustentáveis, que são aceitas não por causa da força dos Estados
Unidos, mas sim por causa da dependência de nossa burguesia em relação aos Estados
Unidos. Isso significa que essas políticas neoliberais, do Consenso de Washington, que
12
levam ao desmonte a arquitetura macroeconômica de crescimento da América Latina,
na verdade, têm apoio interno na região. Por que podemos afirmar que as políticas
neoliberais são insustentáveis e desmontam a arquitetura macroeconômica de
crescimento econômico da região? Isso está relacionado com um dos pontos principais
dessa tese, que está no capítulo 5 – Dependência e desenvolvimento no moderno
sistema mundial –, que é a análise do papel do capital estrangeiro para o
desenvolvimento latino-americano. O que representa o capital estrangeiro? Uma
poupança externa que impulsiona o nosso desenvolvimento ou um fator de
descapitalização? Fiz uma revisão da literatura teórica e dos dados empíricos e percebi
que o resultado final é muito negativo. O capital estrangeiro saiu muito mais do que
entrou no período de 1950 até hoje, o que em números representa 1 trilhão e 227 bilhões
de dólares de remessas de capital enquanto as entradas foram de apenas 989 bilhões,
significando uma taxa de lucro de cerca de 25% para os proprietários não-residentes.
Isso se desenvolve ciclicamente, pois há períodos de predomínio das entradas seguidos
de períodos de saídas que superam as entradas. O capital estrangeiro não é uma força
capitalizadora da nossa região, o que obriga a América Latina a ter superávits
comerciais estruturais para poder financiar o seu desenvolvimento. O neoliberalismo
levou a América Latina, nos anos 90, a ter déficits comerciais violentíssimos. Na
tentativa de compensar os custos dessa aventura e gerar novamente superávits, a
América Latina avançou brutalmente no processo de superexploração do trabalho, de
maneira a promover de fato a redução dos salários. Ruy Mauro Marini que teorizou a
questão da superexploração do trabalho, distinguiu três mecanismos pelos quais
funcionavam a superexploração. Um era o aumento da jornada de trabalho sem o
aumento equivalente da remuneração; outro era o aumento da intensidade do trabalho,
novamente, sem o aumento equivalente da remuneração; e por último, havia a redução
salarial. Ruy Mauro Marini quando descreveu esses mecanismos concentrou-se nas
formas mais abstratas e puras através das quais a superexploração operava. Por isso não
se estendeu muito sobre sua combinação com certos elementos históricos como o
aumento do valor da força de trabalho ligado ao nível de escolaridade. Ao tomar-se em
consideração que a força de trabalho pode ter seu valor incrementado, é factível pensar
que a superexploração pode promover um certo aumento do consumo interno se a
expansão dos salários for inferior à expansão conjunta do valor da força de trabalho e da
intensidade do trabalho. Esta parece ter sido a experiência do período de substituição de
importações, mas o que estamos vivenciado é um processo distinto. Ele se caracteriza
por uma violação tão profunda da sustentabilidade de nossa arquitetura
macroeconômica que exige a superexploração nas suas formas mais dramáticas, isto é,
combinando regressão salarial com aumento da qualificação da força de trabalho e da
intensidade do trabalho. Isso tem se manifestado brutalmente na juventude latino
americana e pode ser percebido ao se observar a taxa de desemprego entre a juventude
no Brasil, que está acima dos 30%, enquanto a taxa de desemprego média se mantém
entre 10% e 12%. Vê-se, então, que a juventude é o segmento mais superexplorado, com
regressão salarial nítida, constituindo-se também na força de trabalho mais qualificada.
Tem-se, aí, uma arquitetura econômica de perspectivas muito negativas. O câmbio
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flutuante como mecanismo para manter a economia aquecida, visando resolver o
problema do déficit comercial, não é uma saída sustentável. Esta autocrítica do grupo do
Consenso de Washington é insuficiente, porque o câmbio flutuante se desvaloriza em
momentos de crise, quando o capital está saindo, e combinado com o aprofundamento
da superexploração da força de trabalho restabelece um certo equilíbrio
macroeconômico. Mas quando se reestrutura a economia e se criam novamente
condições para a entrada de capital, o câmbio irá se valorizar e o saldo comercial obtido
durante a crise se transformará novamente em déficit. O câmbio flutuante pode ser um
instrumento útil num momento de crise para se recuperar uma certa organização
econômica, mas num momento de entradas de capital vai alcançar novamente um
patamar supervalorizado, e isso é um reflexo de que continuamos dentro de uma
arquitetura macroeconômica insustentável, vinculada ao neoliberalismo. Outra
conseqüência deste padrão é a que a América Latina está claramente aprofundando sua
periferização e se aproximando mais da África que dos países centrais. Neste sentido,
estamos repetindo ciclicamente o desempenho das colônias britânicas durantes suas
crises – que foram os espaços da periferia de pior desenvolvimento na economia
mundial. Uma demonstração disso está no desempenho do PIB per capita da América
Latina. Em 1980 representava cerca de 33% dos países centrais e hoje está próximo aos
20%. Por outro lado, a relação do PIB per capita da América Latina com o da economia
mundial variou no mesmo período de 120% para menos de 100%. A América Latina tem
crescido abaixo da economia mundial e rumando para uma periferização brutal. É
curioso se notar que o fenômeno da droga também se repete na América Latina, tal
como a Índia, que para se sustentar como uma periferia capaz de equilibrar as contas
britânicas, tinha que vender ópio para a China. O fenômeno da droga em escala massiva
na América Latina é uma forma de se tentar equilibrar as contas, e mesmo de
sobrevivência de parcelas mais desprovidas da população. Seguindo com os efeitos do
neoliberalismo para a América Latina, pode-se dizer que ele está destruindo o nosso
parque industrial, fazendo com que a industria como um todo tenha seu valor
fortemente reduzido perante o PIB, e não se pode atribuir isso simplesmente a revolução
científico-técnica, já que as atividades do setor de serviços que mais se desenvolvem
aqui não são as relacionadas à alta tecnologia, mas as relacionadas às drogas, a
prostituição, etc. O que tem acontecido diante dessa destruição do segmento industrial é
que temos nos inserido em segmentos de baixo valor agregado internacional cuja
competitividade só pode estar fundada na superexploração da força de trabalho.
Estamos ajustando nosso setor produtivo impulsionando a exportação de commodities.
No caso brasileiro tem-se feito bastante propaganda do agrobusiness e da importância
de se exportar soja, suco de laranja, frango, etc. Mas no Chile há um exemplo terrível
das conseqüências de se seguir esse tipo de reestruturação que encontra seus limites na
deterioração dos termos da troca. Ali houve uma baixa brutal do preço do cobre em
relação aos preços internacionais.
O cenário é bastante negativo. E quais são as alternativas para a América Latina?
São alternativas políticas, mas que são freadas por uma dependência que está
profundamente ligada ao fato de termos uma burguesia que, parece-me, não tem
14
nenhuma pretensão de competir no sistema internacional e que é responsável pela
dívida interna nas proporções atuais, sendo ela mesmo a grande beneficiária dessa
dívida – 97% da dívida interna está nas mãos de atores nacionais. A nossa burguesia não
tem, então, a pretensão de criar um segmento produtivo significativo no mundo, mas
tem a pretensão de ter alta rentabilidade, não importando que a origem da renda seja a
superexploração da força de trabalho, ou o seu controle monopólico sobre o Estado. Mas
é importante dizer que não há apenas a burguesia, há uma parcela do movimento dos
trabalhadores que se articulou ao neoliberalismo, formada pelos gestores do fundo de
pensão e que é, hoje, um dos principais investidores da dívida pública e que não tem
interesse que a taxa de juros caia. Assim, é fundamental romper com a dominação
desses grupos, mas não considero que essa seja uma posição defensiva perante a
globalização, pelo contrário. O exemplo da China mostra claramente que hoje é possível
que um país periférico ganhe projeção na economia mundial a ponto de pretender ser
centro, um movimento que não foi possível durante grande parte do desenvolvimento
do capitalismo. Isso acontece exatamente porque o capitalismo vive uma crise estrutural
profunda, na qual ele não é capaz de se adaptar a revolução científico-técnica, não é
capaz de desenvolver totalmente uma nova divisão internacional do trabalho. Os
centros do capitalismo têm grandes dificuldades em se apoiarem internamente, de
forma ampla, na força de trabalho qualificada e se a periferia lhes puder dar uma força
de trabalho qualificada e mais barata poderá ser beneficiada por uma grande migração
dos investimentos que concorrerá com a força de trabalho e com as empresas dos
próprios países centrais. Se os países periféricos enfrentarem a financeirização do
sistema internacional e de seus Estados, se enfrentarem a captação de seus excedentes
para pagamento de dívida externa interna, remessas de lucros, etc., com o objetivo de
investir na qualificação da sua força de trabalho, na elevação dos salários dessa força de
trabalho, podem criar não apenas um padrão econômico internamente exitoso, mas
podem atrair o capital estrangeiro para participar deste padrão e gerar taxas de
crescimento econômico extraordinárias. O Brasil pode se destacar dentro deste esquema.
Um país semi-continental e heterogêneo como o Brasil tem um enorme mercado interno
a ser conquistado e poderá fornecer força de trabalho qualificada, bem remunerada
diante dos seus padrões históricos e ainda barata em níveis internacionais. Por isso
considero leviana a hipótese de nos lançarmos ao neoliberalismo como única alternativa.
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Debate
Comentário
É difícil se ter uma discussão sobre globalização sem que se faça uma
sistematização do discurso, e você fez isso muito bem, imagino que a tese seja ainda
mais interessante pela quantidade e profundidade das leituras incorporadas a ela.
O seu trabalho levanta uma diversidade incrível de temas e sub-temas.
Particularmente não considero a decadência do país hegemônico tão evidente, acho que
ele tem uma capacidade adaptação e readaptação inédita na história, o que é
preocupante para alguns e benéfico para outros.
Pergunta
Você traçou um cenário muito preocupante do mundo contemporâneo, diante dele
como ser otimista e acreditar na infância, na juventude e na renovação?
Comentário
Gostaria de falar sobre a formulação teórica. Entendi que o capitalismo, para você,
é uma totalidade sem um sujeito definido, na qual não se encontra um agente ao qual se
possa reportar, seja a corporação transnacional, sejam os movimentos sociais
transnacionais, ou mesmo o próprio conjunto de Estados nacionais. Mas nessa visão sem
sujeito do capitalismo você se endereça ao Estado nacional, e a partir do Estado nacional
ao conceito de hegemonia, especificamente à hegemonia dos Estados Unidos e à
utilização que se faz de mecanismos econômicos como o câmbio para manutenção do
ciclo hegemônico. Tendo dito isso, gostaria de ponderar o fato de você não ter feito, em
nenhum momento, uma separação entre a instância ética e a instância econômica. Existe
hoje uma instância ética global que se manifesta na sociedade civil, mas no sistema
interestatal essa instância ética era o Estado nacional, o que Marx chamava junta
administrativa da burguesia. Uma vez que a economia se torna transnacional, o Estado
fica pequeno demais para comportar as transações, então não há uma instância ética
multinacional que permita verdadeiramente a reformulação do sistema internacional,
mas para que haja isso é preciso se propor teoricamente que o Estado está se
modificando, e não encontro isso no seu discurso. Vejo apenas a idéia do capitalismo em
processo, mas não vejo a idéia do Estado em processo.
Uma segunda observação é relativa aos mecanismos de manutenção da
hegemonia dos Estados Unidos, tópico no qual acho que você não dá a importância
devida à União Européia, ou seja, à área do euro, como também não dá importância à
idéia de um capitalismo atlântico versus um capitalismo da Ásia-pacífico, que são bem
distintos.
Pergunta
Gostaria de fazer uma comparação numérica. Você disse que no Vietnã morreram
um milhão de vietnamitas enquanto morreram 57 mil americanos. Minha pergunta é se
no Iraque os Estados Unidos já não teriam sofrido também uma derrota política, uma
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vez que morreram cerca de mil americanos e um número desconhecido, mas sem
dúvida superior de iraquianos?
Outra questão é a respeito do que você falou sobre a fascistização dos Estados
Unidos. Ontem a “Newsweek” divulgou uma reportagem, que foi endossada pelo
“Washington Post”, sobre uma tentativa de se encontrar uma forma legal de postergar
as eleições de novembro dos Estados Unidos com a justificativa de um possível atentado
da Al-Qaeda. Isso não seria um Coup d’État dos neoconservadores para prolongar a
administração Bush? Será que a Al-Qaeda faria um atentado anunciado com três meses
de antecedência?
Pergunta
Também gostaria de fazer comentários sobre o papel que a União Européia tem no
seu trabalho. Em um dado momento você se referiu a uma aliança entre o
neoliberalismo econômico e a fascistização do comportamento dos Estados Unidos, com
apoio a ditaduras e etc. Tenho a impressão de que isso não é uma novidade, e que não
está necessariamente vinculado ao neoliberalismo. Em tempos anteriores, no período do
próprio liberalismo de começo do século, viu-se uma recorrência de uma certa
preocupação dos Estados Unidos em primeiro lugar com a estabilidade, e em segundo
lugar com questões democráticas ou decorrentes desta, preocupações essas
possivelmente vinculados ao papel de potência hegemônica. Assim, levanto a questão
de porque, sendo a União Européia também capitalista, ela vêm ocupando uma posição
tão diferente daquela dos Estados Unidos? Na minha opinião, a União Européia,
sobretudo quando consegue agir coletivamente, tem uma projeção externa de um
modelo interno no qual se tem determinados princípios ligados a questões da
democracia e do capitalismo um pouco diferentes dos princípios neoliberais dos Estados
Unidos. Então gostaria que você explicasse qual papel a União Européia ocupa
realmente nesse processo, e em que medida um grupo de países também capitalistas e
que tem ganhos com o neoliberalismo pode ter uma posição diferente daquela dos
Estados Unidos.
Pergunta
Gostaria de saber sua opinião sobre as possibilidades de relacionamento entre o
Mercosul e a Comunidade Andina e de que forma isso pode se constituir numa resposta
econômica da região.
Pergunta
Qual a melhor maneira de inserção do Brasil na economia mundial tal como ela
existe e tal como ela pode existir nesse turbulento século XXI, e quais são as políticas
públicas fundamentais que devem ser adotadas para aumentar o espaço de inserção e
tirar melhor proveito dela?
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Pergunta
Queria fazer uma diferenciação dos momentos, entre o momento dos países de
vanguarda e da crise sistêmica desse capitalismo financeiro e o momento da América
Latina. Se imaginarmos um trem no qual a locomotiva está em crise, temos uma saída
baseada nesse modelo de antagonismo que você espera para 2015, ou no modelo
nacionalista da década de trinta, similar ao que a China promove ou ao que Europa, que
está muito preocupada consigo, faz? Qual alternativa você vê para o vagão da
locomotiva nesse tumulto? Seria uma reestruturação baseada numa revolução de valor,
no qual, talvez, o componente ecológico seja o novo valor a ser mensurado?
Dr. Carlos Eduardo
Agradeço as perguntas e vou tentar satisfazê-las minimamente, pois são perguntas
complexas.
Comecemos com a questão do otimismo e da ética. Quando exponho essa situação
dramática do sistema mundial não tenho a intenção de desanimar aqueles que buscam
alternativas transformadoras, iniciativas que possam levar a humanidade a um lugar
sustentável e pacifico. Entretanto, é importante saber que a história não é produto de
uma razão e de uma ética que se desenvolva em si mesmo, ela é produto de lutas. Os
momentos de reacionarismo já foram bastante significativos para mostrar que podem
prevalecer e criar processos de destruição brutais. Wallerstein, um autor que aborda a
questão da crise do moderno sistema mundial capitalista, sugere recorrentemente que
devemos lutar por um outro mundo, mas sabendo que esse outro mundo não está
garantido e que ele depende de lutas. Isso é fundamental para que mobilizemos toda a
subjetividade possível para alcançá-lo. Se partirmos do principio de que a história
naturalmente desembocará na ética, na paz, etc, estamos dando aos nossos antagonistas
a possibilidade de se anteciparem na organização para estabelecerem seus objetivos e
isso pode nos ser fatal. Claro, acho que temos que acreditar na infância, nos jovens, nos
fóruns sociais cada vez mais expressivos, nos movimentos pela paz, mas há que se fazer
mais. Não há dúvida que hoje vivemos um período no qual as forças imperialistas estão
muito mais articuladas que as forças antiimperialistas. Mas esse espírito antiimperialista
existe e está crescendo rapidamente, e devemos saber que temos que fazer mais do que
estamos fazendo, porque o amanhã que desejamos ainda não está garantido.
Em relação ao capitalismo, entendo-o como uma totalidade, mas como uma
totalidade contraditória, complexa, na qual existem as empresas transnacionais, os
Estados, mas também uma lógica sistêmica. As relações internacionais não são relações
entre Estados ou empresas dispersos, mas relações entre Estados e empresas que se dão
dentro de um sistema, no qual há lutas para se organizar esse sistema, tanto que cada
reorganização sistêmica foi precedida de guerras mundiais nas quais se disputou
violentamente a hegemonia. Então, o fato de eu ver o capitalismo como uma totalidade
contraditória que funciona com uma lógica sistêmica e objetiva, não significa dizer que
esta lógica objetiva não esteja fundada em subjetividades – ela está. Concordo com a
idéia de que, para se reestruturar o sistema mundial, deve haver uma força ética
transnacional, e me parece que o que falta para isso é justamente a construção de um
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sistema interestatal radicalmente democrático, o que não está a vista e nem tem sido
sugerido claramente pelos movimentos sociais, porque estes, em geral, mantêm uma
posição muito defensiva, supondo que as organizações internacionais, onde estão os
Estados nacionais, são inerentemente negativas. É necessário se avançar além dessa
posição defensiva e postular a democratização radical das relações internacionais,
fazendo da ONU um organismo democrático e não um organismo que seja expressão de
hegemonias e de forças relativas de Estados nacionais. É necessário que as instituições
financeiras internacionais sejam expressão da democracia mundial e não das
hegemonias nacionais, o que privilegia os Estados Unidos e se expressa na discrepância
do poder de voto. Por que isso é possível hoje? Porque, na verdade, falar em controle
dos Estados Unidos sobre um organismo internacional não significa falar em algo que
beneficie sua população no conjunto. Esse controle é exercido por uma classe social,
cada vez mais em confronto com os interesses da maioria da população. Por exemplo, o
controle que os Estados Unidos exercem hoje sobre o FMI é feito em beneficio das
grandes corporações transnacionais. Isso tem feito com que certos organismos, que
sempre estivem atrelados a hegemonia, como o movimento sindical AFLCIO, adotem
posições de reformulação dos organismos financeiros internacionais descoladas de
posições vinculadas a políticas patrocinadas pelo neoliberalismo estadunidense,
buscando utilizar esses organismos como fontes de elevação da renda dos trabalhadores
dos países periféricos. Isso acontece porque a divisão internacional do trabalho
promovida pelas corporações multinacionais, na qual elas descentralizam tecnologia de
ponta para os países periféricos – sem medo de perder o monopólio da tecnologia, já
que este está cada vez calcado no conhecimento e não nos equipamento físico –
permitindo que eles produzam para os países centrais, nivelando os salários destes
países pelos salários da periferia e, portanto gerando uma situação que não interessa as
populações dos paises centrais. As centrais sindicais estão começando a perceber isso, e
estão estreitando os relacionamentos com os movimentos de trabalhadores e outras
organizações da sociedade civil dos países periféricos. Dessa forma, vejo a possibilidade
dos Estados reinventarem o sistema internacional, criando algo que o sistema
interestatal do capitalismo histórico nunca criou, uma centralização democrática, mas
que estará profundamente vinculada a lutas políticas transnacionais. Infelizmente, até
hoje, o Estado, apesar de todas as modificações que sofreu e sofre, não fez emergir
nenhuma proposta que seja mais efetiva para a criação dessa força ética internacional.
Por exemplo, será que propostas recentes, como a de se ampliar o Conselho de
Segurança da ONU com a entrada das potencias derrotadas da Segunda Guerra e alguns
países periféricos, são realmente tão relevantes e capazes de nos conceder poder? Será
que o sistema internacional seria profundamente modificado a ponto de criar uma força
ética? Com isso pode-se atribuir algum poder de barganha a mais a alguns paises, mas
isso não significa, por exemplo, que haverá uma homogeneização de posições ou um
fortalecimento político dos países periféricos. Uma cadeira brasileira no Conselho de
Segurança não faz do Brasil porta-voz da política latino americana, podendo ter um
efeito adverso no posicionamento brasileiro, fazendo-o defender, como tem feito, a
ocupação do Haiti, inclusive mandando suas próprias tropas para substituir as dos
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Estados Unidos. O argumento do governo brasileiro, do Marco Aurélio Garcia, é
justamente baseado nisso: se queremos entrar no Conselho de Segurança, como
poderíamos nos posicionar contra. Então, essa ampliação do Conselho, assim como
iniciativas correlatas, não vão necessariamente criar uma força ética internacional, e por
isso creio que a bandeira da democratização deve ser defendida da mesma forma que foi
para os Estados nacionais. Se a sociedade civil visse o Estado como instrumento do
capital, tal como acontecia durante as revoluções liberais, antes do sufrágio universal, o
Estado até hoje seria apenas o comitê executivo da burguesia, como diria Marx.
Contudo, o esforço do movimento social exigiu uma ampliação desse Estado, e esse
esforço também deve ser dirigido ao plano internacional, mas depende do
desenvolvimento das lutas políticas transnacionais.
Sobre a questão da União Européia, da Ásia-pacífico, como forças alternativas,
acredito que elas têm um papel importante a desenvolver, mas que depende do tipo de
gestão política que ali se exerça. Por exemplo, há uma diferença significativa entre a
Espanha do Aznar e a Espanha do Zapatero. A derrota do Aznar tem bastante a ver com
a questão do Iraque, com a luta política internacional contra a ocupação dos Estados
Unidos, e significou a primeira grande derrota política contundente desse grupo. Então,
a União Européia pode vir a ter um papel mais significativo, mas se hoje, ela tem
buscado uma formulação de políticas públicas que vão além do neoliberalismo, isso
ainda é muito restrito ao plano interno. A verdade é que as relações internacionais da
União Européia não têm sido muito contundentes no sentido de criar uma proposta
significativamente alternativa à que está presidindo o mundo, e assim, não vejo uma
maturidade política que a permita ser uma força contra-hegemônica. Entretanto, na
Ásia-pacífico há uma potencialidade contra-hegemônica grande, caso a região resolva
assumir uma posição de política externa mais independente, pois é nela onde se sustenta
hoje a hegemonia dos Estados Unidos. As grandes divisas da economia mundial estão
sob controle da China e do Japão, e é a aplicação dessas divisas em bônus do tesouro,
compras de empresas e ações estadunidenses que permite a continuidade desse modelo
neoliberal. A partir do momento que essa região decidir não mais financiar o déficit em
conta corrente dos Estados Unidos, o modelo neoliberal de políticas públicas
patrocinado pelos Estados Unidos entrará em grave crise. Se a Ásia-pacífico assumir um
modelo de regionalismo mais avançado, ela passará a representar um questionamento
sério à hegemonia estadunidense, pois hoje esta depende bastante de que as fórmulas
regionais não avancem suficientemente. Isto tem implicações em relação ao Mercosul: se
decidirmos direcionar nossos excedentes de exportação para o nosso próprio
desenvolvimento, isso pode se tornar uma ameaça significativa à hegemonia dos
Estados Unidos. O Mercosul é possível desde que não represente uma real oposição à
arquitetura de políticas públicas internacionais de natureza neoliberal. Mas o Mercosul
não tem avançado nisso, tanto que as discussões continuam principalmente no plano do
comércio, e não evoluem nas áreas de investimento, de cooperação científica, que devem
ser os eixos de um bloco institucionalizado que ultrapasse o neoliberalismo, no qual se
discuta aspectos além da abertura financeira e comercial tal como a direção conjunto dos
investimentos, e aí o regionalismo tem um papel fundamental. Nesse sentido, o leste
20
asiático vem se demonstrando o foco do dinamismo econômico do mundo, e assim tem
ocupado o espaço do grande desafiador à economia estadunidense. E qual são as
características da gestão dessas economias? Elas são intensivas em nacionalismo e
regionalismo, intensivas em controle de capital – a China, por exemplo, não mantém sua
moeda conversível ao dólar –, têm uma força de trabalho bem qualificada, com nível
secundário completo, conseqüência de investimento em educação, investimento esse
que pode ser realizado sem muita demora. Educação, como saúde, são elementos
básicos para que haja uma força de trabalho qualificada. Acredito que devemos investir
num sistema de ciência e tecnologia poderoso e depositar esforços na cooperação sulsul, principalmente impulsionando estes pontos e agregando outros, como o
planejamento de investimentos conjuntos. A China, a Índia, são países de grande
dinamismo na economia mundial e capazes de atrair toda uma rede comercial e de
investimentos que pode funcionar sob diretrizes mais cooperativas do que aquelas que a
União Européia ou os Estados Unidos querem nos oferecer. Essa é uma iniciativa
importante que pode, inclusive, condicionar os países centrais a reformularem suas
próprias políticas. Já se pode vislumbrar, nos Estados Unidos, segmentos cuja
mentalidade não é unilateral como a do Bush, que estão preocupados com o isolamento
do país, havendo inclusive parcelas da burguesia que defendem a tese da hegemonia
compartilhada, e era essa uma inspiração da comissão trilateral do Carter que vinha
acompanhada da idéia de se manejar o mundo com mais flexibilidade. Livros como
“Made in America”, que diz que a hegemonia dos Estados Unidos não tem que estar no
mesmo nível do pós-guerra, ainda continuam tendo projeção, e esse especificamente,
escrito em 1988 por um grupo de assessores econômicos durante a crise do governo
Reagan, foi importante para as políticas do Clinton. Eles afirmam que o natural é os
Estados Unidos perderem poder, e que devem se planejar para isso, abandonando a
idéia de que podem se manter nessa posição tão excepcional que desfrutaram no pósguerra, que foi, na verdade, fruto de circunstâncias. A rearticulação dos países
derrotados e dos próprios países vencedores os leva forçosamente a uma redução nos
diferenciais de produtividade. Então, esse grupo que defende a hegemonia
compartilhada, um grupo centrista, vem demonstrando aproximação de uma posição
mais democrática, ligada aos movimentos sociais, que pode ser fundamental para que os
Estados Unidos venham a ter um papel progressista nessa transição. Não acho que os
Estados Unidos estão obrigados a ter um papel fascista no mundo, mas isso acontecerá
se o grupo imperialista prevalecer internamente. É importante ressaltar que essa
transição não pode ser resolvida predominantemente por meios militares, pois se a
proposta é buscar uma força ética transnacional não se pode derrotar a hegemonia por
métodos que não os políticos. As forças imperialistas têm que ser isoladas dentro dos
Estados nacionais, eticamente e politicamente isoladas, e já há uma iniciativa no mundo
nesse sentido. O filme do Michael Moore, que se tornou uma peça chave na campanha
eleitoral, demonstra a criatividade da sociedade civil em buscar interconexões, e as
tecnologias de comunicação facilitam a disseminação das idéias, a transferência e
mundialização de iniciativas que coloquem o movimento social numa etapa mais
21
avançada, de maior confiança subjetiva. Assim, vejo com otimismo a possibilidade de
construção de uma força ética transnacional.
Falando sobre a questão ecológica, considero-a fundamental, porque é necessário
se buscar uma fonte sustentável de energia para a economia mundial. A revolução
industrial e a hegemonia dos Estados Unidos criaram uma situação excepcional no
mundo que é a fundamentação da energia sobre uma matéria prima não renovável, o
petróleo. Dessa forma, a ciência e tecnologia dos trópicos têm papel importantíssimo,
pois é uma região do mundo que detém dois componentes fundamentais, a
biodiversidade, fonte energética do futuro, e petróleo, fonte energética atual. Se
olharmos no mapa mundial, vemos que as regiões tropicais são limitadas, formadas
basicamente por ilhas da Ásia, uma faixa na África e nós, uma região que vai do
Pantanal até o sul do México, e isso define uma grande necessidade de haver um esforço
regional para se resguardar esses espaços geopolíticos e utilizá-los para nossos
interesses, do contrário eles vão ser progressivamente internacionalizados e passar ao
domínio das forças mundiais que promovem a desigualdade.
Comentário
Acho que agora você chegou perto de delinear uma estratégia para o Brasil. Há
países que não estão nem no bloco dos Estados Unidos nem no bloco europeu, são os
chamados países baleias como China, Índia, o próprio Brasil, etc. O Brasil tem algumas
vantagens perante outros países com tremenda densidade populacional e recursos
limitados de produção agropecuária, e pode utilizar essas vantagens, mas não vai ter
grandes progressos sem investir na sua população para elevar o nível do seu capital
humano e esse é o fundamento do futuro desses blocos regionais.
Comentário
Sobre a questão da crise sistêmica, parece-me que política externa brasileira, por
causa dessa crise sistêmica, é muito cautelosa, chegaria a dizer que uma política, talvez
intencionalmente contraditória, de não se fazer nada. Um exemplo seria a contradição
que há entre os discurso internos e externos sobre a questão agrária, principalmente a
respeito dos subsídios. Na parte dos investimentos diretos e captação de recursos, a
disciplina orçamentária rígida do nosso governo é completamente contraditória em
relação à questão da transparência fiscal, que é eternamente postergada, não passando
confiança e segurança ao investidor internacional. Essas contradições me passam a
impressão de que o governo evita tomar uma posição externa mais firme justamente por
causa da crise sistêmica, com medo de ter sua participação no cenário político mundial
ainda mais comprometida.
Pergunta
Gostaria que você fizesse um comentário sobre uma reflexão das relações
internacionais. Acho que temos que celebrar sua tese, apesar de todas as críticas, pois
representa um esforço de reflexão perante a realidade que muda rapidamente, um
esforço da academia latino americana, da academia brasileira, e da academia das
22
relações internacionais, uma disciplina que pretende compreender o processo na sua
abrangência.
Comentário
Ouvindo sua exposição e a discussão, confesso que meu maior problema com a
teoria hoje em dia é que não consigo ver grandes idéias de alternativas ao
neoliberalismo, neobobismo, neointeligismo, ou qualquer outro nome e definição que
queiram dar. Vejo um debate que quer simplesmente sair desse sistema, mas a verdade
é que o sistema é esse, e enquanto estivermos nesse planeta teremos bastante
dificuldade. Assim, na inércia disso, creio que há facilidade de se criar algumas ilusões,
dentre as quais considero a maior a que fala da Ásia. Supormos que a Ásia pode ser um
modelo para nossa convivência mundial, claro que não culturalmente, perece-me um
argumento vazio. A China, por exemplo, é o país mais egoísta, mais pragmático, que
tem um ministro da agricultura capaz de mandar parar um navio brasileiro no meio
oceano para renegociar um contrato, tendo o presidente brasileiro Estado lá apenas duas
semanas antes. É um país absolutamente interesseiro, que não respeita nenhuma lei
trabalhista, não respeita nenhuma lei ambiental, não respeita, na verdade, nenhuma lei.
A China consegue ser comunista e capitalista ao mesmo tempo, e mais o que quer que
ela queira, porque ela é um mosaico. Mas a realidade é que há 900 milhões de pessoas
completamente excluídas do que identificamos como uma espécie de milagre chinês.
Assim, não vejo a China como a representante de um grande paradigma, vejo um país
que está rapidamente fazendo o que pode de uma maneira bastante egoísta. Então o
problema para mim é justamente a dificuldade de se dizer que há um paradigma que
confirme o completo erro do neoliberalismo e apresente a solução, e acho legítimo que
seja difícil, porque o fluxo histórico nos levou para uma posição de extrema
complexidade. Pode-se até dizer que em 1900 o grau de globalização era maior, e há
dados sobre isso, mas hoje o nível de complexidade ao qual chegaram as relações
humanas, interestatais, dos movimentos sociais transnacionais, etc., é algo nunca visto
na história, e ainda conta com uma intensificação dada a partir do fluxo de informação e
do valor dessa informação, seja valor financeiro ou valor moral. Dessa forma, considero
legitimo que não haja um paradigma alternativo. Entretanto, ao não ter esse paradigma,
ter a ilusão de que haja modelos e de que a China desponta como ícone desse modelo é
um completo absurdo, e gostaria que, pelo menos nessa parte do mundo, não
tivéssemos mais essa euforia. A China é um país que não tem vocação mundial, tem
vocação absolutamente chinesa e já deixou isso claro ao longo dos séculos.
Dr. Carlos Eduardo
Uma das grandes questões que permeiam esse debate é justamente a falta de
modelo. A própria idéia de modelo é algo negativo e inaplicável, pois significa se
transplantar uma realidade alheia para outra experiência histórica. Modelos realmente
só podem ser ilusões, porque as experiências concretas da sua aplicação implicam em
reformulações tais que se acaba construindo uma realidade histórica especifica. A
respeito da China, não se deve tomá-la como modelo, mas a observação de algumas
23
práticas pode trazer algum aprendizado. Há aspectos interessantes na experiência
chinesa, obviamente não o autoritarismo ou a desconsideração dos limites ecológicos,
mas não se pode ignorar que a China abriga cerca de 30% da população mundial e tem a
responsabilidade de alimentar toda essas população, e ainda tem méritos pelo esforço
de qualificar a força de trabalho, além do que nós conseguimos, de fornecer um padrão
mínimo de saúde, enfim conseguindo, mesmo com a forte vocação chinesa, uma
projeção significativa na economia mundial, buscando ainda novos espaços. Então,
concordo que não se deve adotar nenhum modelo estanque, até porque, como foi dito, o
movimento de reconstrução do sistema mundial é muito complexo e não vai poder se
basear somente em Estados ou num Estado específico, será necessário unir Estados,
organismos internacionais, movimentos sociais, etc. Esse é um dos motivos para que o
Fórum Social Mundial tenha esse formato aberto, havendo, inclusive, uma relação difícil
com a categoria Estado, por causa da idéia de que ele é um poder capaz de limitar a
capacidade autônoma da sociedade civil de se articular. Estamos no início desse
processo, e temos que fazer um esforço na busca de alternativas, e aí se deve visualizar
exemplos. Cuba, por exemplo, tem muito que não deve ser tomado como exemplo, mas
será que não há algo na sociedade cubana que possa servir como experiência positiva
para a América Latina? Um dos pontos chaves nesse processo histórico de reconstrução
do sistema mundial é a criação, a novidade, e por isso o modelo não serve, e aí se entra
num processo utópico, no sentido positivo do termo, porque utópico é aquilo que ainda
não existe, então se trata de construir o que não está em lugar algum, mas que se
insinua.
Sobre o que foi dito em relação à política externa, acho que ela tem sido cautelosa,
mas menos por medo e mais por determinação interna, porque esse governo está
comprometido com o sistema internacional, há forças internas que apóiam políticas do
sistema, e isso é o que os leva a nos conduzir assim. Há elementos interessantes da
política externa, como por exemplo, a questão de se lidar com um mundo onde as forças
neoliberais estão livres, sem se isolar das discussões, porque trazer um paradigma
distinto pode causar um isolamento. Nesse sentido há alguns expedientes interessantes
na política externa brasileira. O Wallerstein sugere que uma das formas de luta dos
movimentos anti-sistêmicos é propor ao centro certos elementos da sua própria doutrina
que eles não são capazes de praticar e que deveriam presidir uma sociedade neoliberal,
que funciona com livre circulação de mercadorias e capitais, como por exemplo, a livre
circulação de mão-de-obra. Um acordo nos termos neoliberais deveria ter isso como
disposição, mas provavelmente paralisaria as negociações com os países centrais.
Elementos como a questão da abertura dos mercados, do controle dos subsídios, são
estratégias interessantes do governo brasileiro para não se posicionar completamente
fora das expectativas vigentes e ainda são capazes de fornecer alternativas ao que está
paralisado. Essa posição de uma certa ambigüidade perante o neoliberalismo, desde que
dirigida por uma concepção alternativa, parece-me razoável e pragmática nesse
momento. O problema é que há um descompasso entre uma política externa que tenta
abrir caminhos de cooperação e uma política interna de absoluta fidelidade à
hegemonia. De um lado há as iniciativas de cooperação e de outro uma política interna
24
de superávit primário, comandada pelo FMI, que leva à liquidação das perspectivas de
desenvolvimento. A revista Exame publicou dados que dizem que o governo Lula, em
2003, aumentou os lucros das 500 maiores empresas do país em 1048%. Um modelo de
crescimento centrado nisso é de uma insustentabilidade total.
Sobre o regionalismo, considero que seja realmente uma alternativa e deve ser
buscado, mas depende de como ele é manejado. O Mercosul não é necessariamente uma
força contra-hegemônica, mas buscar internalizar os excedentes comerciais para seu
próprio desenvolvimento, como podem fazer os blocos asiáticos, é uma característica
claramente anti-sistêmica.
Gostaria de falar novamente agora sobre a Ásia. O que é a transferência de
dinamismo para a Ásia? É a transferência para um tipo de Estado que nunca foi
parâmetro para hegemonia nenhuma. Os Estados hegemônicos sempre tiveram não
mais do que 5% da população mundial, como no caso dos Estados Unidos, e agora se
está transferindo a hegemonia para uma área onde está cerca de 40% da população
mundial, o que revela, desde que essa população se organize, uma possibilidade de
controlar politicamente o sistema econômico que nunca foi possível no capitalismo. O
que o Wallerstein dizia que era específico do capitalismo era o fato de que se criava um
sistema político no qual o econômico tutelava Estados nacionais, então se criava uma
economia mundial que atravessava os Estados nacionais, limitados em suas
hegemonias, controlando-os com entradas e saídas de capital para que seguissem
políticas que lhe fossem favoráveis. Quando se transfere o dinamismo para uma região
onde está 40% da humanidade, é muito provável que a gestão política passe a
corresponder à vontade desses 40%, e ai está o embrião de uma nova organização
internacional, onde o social será muito mais capaz de condicionar o econômico. Todos
esse são cenários que vão sendo construídos, que estão em curso e que provocarão
transformações colossais.
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O CEBRI Tese é uma publicação baseada
na apresentação e no debate, no CEBRI, de
teses acadêmicas em relações internacionais e
política externa brasileira, elaboradas por
brasileiros e defendidas e aprovadas em
instituições de ensino superior no Brasil ou no
exterior.
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Globalização, dependência e neoliberalismo na América