FINGERMANN E OS DILEMAS DA PINTURA ATUAL
Daniel Piza
Artista inaugura mostra e lança livro
para reclamar da falta de debate no país.
A carreira de Sergio Fingermann é exemplar dos desafios que a pintura
brasileira, e não só ela, enfrenta atualmente. Fingermann, 48 anos, tem um trabalho
desenvolvido com integridade desde 1975, como se verá na exposição que o Instituto
Moreira Salles inaugura no Rio no dia 18 ( e que vem a São Paulo em novembro), e
tem um consciência crítica sobre esse trabalho e sobre a pintura em geral, como se lerá
no livro que escreveu, Fragmentos de um dia extenso, editado pela Bei Comunicação para
ser lançado simultaneamente à exposição. E Fingermann está incomodado com a falta
de rumo e de debate no meio artístico brasileiro.
“Acho que é hora de me comunicar mais diretamente”, diz Fingermann em seu
ateliê na Vila Madalena, o qual pertenceu a Yolanda Mohalyi, artista de origem húngara
que foi sua professora de desenho no início dos anos 70. “Sinto falta de uma
interlocução maior entre a pessoas interessadas em arte aqui no Brasil”. Fingermann,
que estudou em Veneza, freqüentou a escola de arte Brasil, se formou em arquitetura
na USP e é professor de pintura, além de ser casado com uma psicanalista francesa, é
um dos mais bem articulados artistas brasileiros. O que estará disposto a fazer agora é
sair do ateliê e lançar discussões sobre arte no espaço público, rompendo o que vê
como um crescente ensimesmamento do pintor brasileiro.
O livro nasceu dessa reação. É como uma colagem de reflexões sobre a pintura,
sobre seu campo específico, mas partindo de um princípio concreto, livre de
conceitualismos que dominam a área: “A prática da pintura”, escreve, “contém um
questionamento contínuo da experiência de seu fazer”. Com citações de Jorge Luís
Borges e Clarice Lispector, o texto discute a “essência” da pintura como uma procura
de relações incertas entre o que se olha e o que se sente, entre o reino das coisas e o
reino da memória. Fingermann acredita que o papel da arte é desestabilizar o
observador, tirá-lo do hábito, evocar o não dito. “O que eu vejo”, diz numa das frases
aforísticas do livro, “está além daquilo que a imagem me informa”. E, adiante: “Tudo
está entre o fazer e o ver”
Como se pode deduzir, a pintura de Fingermann tem essa ambição, a de
“recolher fragmentos” assinalando a “passagem do tempo” e vivendo, assim, num
estado de dúvida – mas que não impede a ação. À primeira vista, suas telas parecem
apostar demais na textura , no jogo de camadas que dão impressão de tempo, que
sugerem a questão da memória. Essa crença na textura é um dos problemas da pintura
contemporânea, que se aproxima demais dessa vontade de “sugerir”, que se esquece
que, mesmo quando se está “além” da imagem, ela continua a ser informação, a ser um
recurso para comunicar com o observador. Em Fingermann, a textura é fundamental,
mas não auto-suficiente.
O que dá à sua pintura o poder de captar o olhar do observador para tentar
desestabilizá-lo é o uso de elementos gráficos que decorrem de sua fase figurativa,
desde o período em que estudava com Mohalyi. Formas como o trapézio aberto, o
triângulo vazado, a grelha, a elipse e a bifurcação permitem a Fingermann indicar ao
público que seu assunto, a memória, é um momento transitivo: ele está tentando
recolher mas não congelar, captar mas não fixar. Vendo seu trabalho desde os
primeiros desenhos e gravuras, o espectador descobre a coerência interna, aquilo que
Fingermann chama de “minha poética”. É isso que ele diz dissociar sua pintura da de
outros contemporâneos, a qual considera no limite do autismo, do ascetismo, de acordo
com certa teorização muito vigente nos departamentos de arte da USP.
O trabalho com desenho, gravura e arquitetura deu a Fingermann um vasto
instrumental, numerosas pontes de contato com a percepção visual comum. A “fatura”
de suas telas é sempre convidativa e surpreendente ao mesmo tempo. O uso da cor
ferrugem, por exemplo, aparece com freqüência para apontar o registro em negativo
das coisas na lembrança. A superfície parece ao olhar mais rugosa, mais acidentada do
que é ao tato. A harmonia das cores e a distribuição de elementos gráficos pela tela
negam qualquer automatismo, qualquer sujeição ao “gestual” que, para certa corrente
moderna, seria a expressão máxima do inconsciente. Fingermann sabe o que está
fazendo, ainda que não faça o que já sabe; há um intervalo entre o projetado e o
executado, mas ele não se perde nesse vazio.
Mesmo assim, a pintura de Fingermann ainda sofre um pouco da timidez , o
medo de afirmar, da perambulação pelas incertezas. Tem uma comunicação tanto
sensorial como intelectual com o observador, mas é reservada demais; tende ao
hermético, ao cabalístico. Fingermann está ciente disso: “É como se tivesse um véu por
cima da minha pintura. Mas há uma tentativa de encantar, de causar sensações”. O
problema talvez sejam as noções teóricas de Fingermann ou – o que dá na mesma- o
status encurralado da pintura hoje.
Quando Paul Klee disse que o que importa é a formação, mais que a forma,
estava resumindo essa busca da pintura moderna pelo que não é visível, pelo que não é
linear. Mas o que acontece com a pintura recente é que, nela, a formação tenta negar a
forma, como se fosse impróprio – na era do audiovisual, em que cinema e TV criam
visões da realidade em abundância – a partir do visível e do linear. A angústia de
Fingermann é também sintoma do que critica. Sua integridade criadora, porém,
encoraja novas saídas.
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Fingermann e os dilemas da pintura atual