11-10-2015
Voos de borboleta
DR
O
Debate Juventude e sociedade
Elísio Estanque
s percursos fluídos e instáveis
que caracterizam a juventude
podem comparar-se aos voos
incertos da borboleta. Mas se a
instabilidade e a contingência
ilustram as trajetórias juvenis
de hoje, as tonalidades
coloridas e perfumadas dos
seus movimentos furtivos
talvez não compensem a
vulnerabilidade e a curta duração da
aventura. Houve um tempo em que a
condição juvenil podia viver nas asas da
liberdade, voar sem um destino definido,
mas com a certeza de que teria um porto
seguro à sua espera. Hoje, a juventude
passa por uma fase particularmente
difícil e milhões de jovens têm o seu
futuro hipotecado. As perplexidades do
presente empurram-nos para a evasão ou
para a fuga permanente, saltam de um
pouso para outro, de lugar para lugar, por
caminhos menos coloridos. O sentido de
aventura permanece mas a construção
do destino é um labirinto armadilhado,
repleto de riscos e ameaças.
A profissão de professor oferece-nos o
imenso privilégio de lidar diariamente com
a juventude — beneficiando do contágio
dos “eternamente jovens” que se sentam
à nossa frente — e ao mesmo tempo poder
interferir nas suas trajetórias educacionais
e profissionais. Os percursos juvenis,
mesmo considerando apenas os segmentos
mais qualificados, têm sofrido alterações
substanciais nas últimas décadas não só
devido à intensificação geral dos fluxos de
mobilidade internacional mas, em especial
nos últimos anos, devido aos efeitos da
crise, que, em países como Portugal, tem
empurrado para a emigração largos milhares
dos nossos melhores jovens.
O Hugo é um desses jovens, hoje um
“jovem-adulto” e a constituir família, que
acompanho há cerca de dez anos. Vive
há dois anos no Brasil mas adora o seu
país. Assume com toda a naturalidade o
seu jeito de falar (sem sotaque) apesar
de ser casado com uma brasileira, que
conheceu em Coimbra há cerca de dez
anos. Acompanha com toda a atenção e
interesse a política portuguesa e europeia,
mas ao mesmo tempo sente-se cada vez
mais envolvido com os problemas do Brasil.
Estando lá, e gostando embora da vida que
leva e da carreira profissional que iniciou
após concluir o doutoramento, queria
estar por cá. Não lhe perguntei mas tenho
a certeza que o Hugo gostava de andar
por aqui, no último mês, provavelmente
participando ativamente na campanha
eleitoral, pelo partido em que militou e
ainda milita (mesmo à distância). Aí está um
exemplo concreto do que falei no início: a
mobilidade, o acesso a um doutoramento, a
ausência de futuro no seu país, tudo isto se
junta às contingências da vida atual, sejam as
oportunidades profissionais que precisam de
ser cada vez mais “trabalhadas”, seja o amor,
onde os encontros e desencontros também
se fazem de incerteza e do acaso. Sim, de
certo modo sempre assim foi. Mas hoje a
escala mudou e funciona cada vez mais sob
fluxos transnacionais e transcontinentais.
Neste Verão convivi de perto com diversos
grupos de jovens ligados à universidade,
falantes de português. Mestrandos e
doutorandos brasileiros olham para a
Europa e para Portugal com um misto de
apreensão, curiosidade e interesse. Sente-se
o desejo de compreenderem o mundo em
que vivem, de compreenderem o seu país,
também ele no meio de uma encruzilhada e
sem rumo definido. Muitos destes estudantes
foram ou são militantes de causas sociais
diversas, querem evitar desastres maiores,
mas sentemse impotentes.
A urgência dos
seus problemas
individuais é mais
forte. Confrontam-se
com o desencanto
de quem nasceu
num país
eternamente adiado,
mas não desistem
de construir as suas
oportunidades,
de consolidar um
padrão de vida. Há
três anos estavam
eufóricos; há dois,
perguntavam-me,
já preocupados,
como estávamos
a suportar a crise
em Portugal; no
ano passado,
Quando se
aperceberem
que o sistema
os instrumentaliza, talvez
novas metamorfoses
ppossam ocorrer
após uma acesa disputa eleitoral, a coisa
piorou abruptamente; hoje, mais do que a
apreensão é a revolta contra a elite dirigente
que se advinha em cada pergunta, em cada
comentário que vem da plateia.
Curiosamente, o que pressinto na atual
juventude académica do Brasil é uma
atitude ambivalente em relação ao sistema:
criticam o poder do capital ocidental e
dos EUA, mas admiram o modelo social
europeu. Apesar da crise, olham-no ainda
como uma referência para um projeto
desenvolvimentista brasileiro, mas o excesso
de mercantilismo que domina hoje a Europa
é visto como expressão de um capitalismo
à rédea solta que nos empurra para a
catástrofe. Porém, gozam dos benefícios da
sociedade de consumo: como li no muro de
uma universidade, “O sistema é mau, mas
minha turma é legal...”. Nas subjetividades
desta juventude, no seu sentido lúdico, nas
suas atmosferas de convivialidade, na sua
vontade de aventura, podem vislumbrar-se
o sentido de realização e de iniciativa que
emanam do seu elevado capital cultural e
educacional. Cultivam, como os portugueses
e outros europeus, o hedonismo e o fruir de
uma sociedade de consumo cujos símbolos
de prosperidade, porém, se tornaram para
a maioria deles miragens intangíveis. A
ambição pessoal destes jovens está patente
no constante “networking”, talvez um
modo brasileiro de ser “empreendedor”.
Eles sabem bem que um estágio numa
universidade europeia, uma bolsasanduíche, um doutoramento numa
instituição prestigiada, lhes poderá abrir as
portas de uma futura carreira (no seu país ou
fora dele). Os jovens brasileiros circulam pela
Europa, parte deles usando Portugal como
trampolim e, de caminho, aproveitam para
conhecer um pouco melhor a morfologia das
suas raízes lusitanas (ou outras).
A Ana fez mestrado em teatro na França,
mas ainda está sem um emprego decente.
Trabalha num bar. Emprego precário,
pois claro. Os patrões, eles próprios exestudantes universitários, abriram o
negócio (experimental) antes de concluir o
curso, mas o projeto comercial prevaleceu
sobre o académico. Provavelmente gente
socialmente empenhada, valores de
esquerda, etc. O curso está por concluir mas
o sucesso económico parece assegurado. E
hoje comportam-se como qualquer patrão.
A Fabiana faz doutoramento em Campinas,
mas vai estagiar na Inglaterra, talvez
passando algum tempo em Portugal. Do
lado de cá, a Dora, é mais uma portuguesa,
entre muitos milhares, que está à beira de
concluir o doutoramento, sonhando com o
Brasil como hipótese de um emprego digno.
A Polina é ucraniana e estuda na Polónia
e o Marius, seu namorado, é da Lituânia e
emigrante na Suécia. Ambos se debatem por
um futuro em qualquer país da UE que os
acolha e os valorize.
Nestas redes e atmosferas informais, a
juventude cultiva valores democráticos
e uma convivialidade cada vez mais
cosmopolita. Mas nem sempre a consciência
social floresce nesses ambientes. São
borboletas com dificuldades de voar em
clima sombrio e nebuloso. Estes jovens
tecem hoje o futuro de uma sociedade, de
um modelo de emprego fundado em fluxos
transnacionais, onde elevadas qualificações
se conjugam com uma precariedade
estrutural. Quando se aperceberem que o
sistema os instrumentaliza para alimentar
uma lógica económica cada vez mais
perversa, exploradora e desumana, talvez
novas metamorfoses possam ocorrer e
os voos dispersos de borboleta possam
reverter-se, de novo, na força gigantesca da
rebelião coletiva.
Professor da Faculdade de Economia e
Investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra
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