Raio de luz entre sombras
Mário Luiz Frungillo*
Resumo
Neste artigo procuramos ressaltar os temas mais constantes dentro da grande diversidade que caracteriza
os contos de Moacyr Scliar. Através do estudo de alguns de seus contos mais significativos, abordamos o
humor e o fantástico presentes em suas narrativas, bem como as relações de sua ficção com a cultura
judaica. e com os acontecimentos históricos que marcaram o século XX.
Palavras-chave: Narrativa fantástica, Contos Brasileiros, Autores gaúchos.
M
oacyr Scliar nasceu em Porto Alegre a 23 de março de 1937. É
descendente de judeus russos que imigraram para o Brasil. For
mou-se em medicina em 1962 e trabalha como médico sanitarista.
No mesmo ano em que se formou, publicou seu primeiro livro, Histórias de
médico em formação. Alcançou o reconhecimento com os livros O carnaval dos
animais (1968) e O exército de um homem só (1973). Já publicou mais de 60
títulos, entre romance, conto, ensaio, biografia, infanto-juvenis, etc. Recebeu
vários prêmios literários importantes e recentemente foi eleito para a cadeira
n.º 31 da Academia Brasileira de Letras.
A obra de ficção de Moacyr Scliar apresenta uma grande diversidade
temática. Muitos de seus contos e romances se enquadram dentro do gênero
da narrativa fantástica. Dentro do universo fantástico do autor, encontramos enredos de caráter mitológico (O centauro no jardim), outros de natureza
alegórica (“Os leões”), narrações de fatos inusitados (“Estado de coma”,
(“Rápido, rápido”). Outra das predileções do escritor é revisitar, as narrativas bíblicas, do que dão exemplos os contos “As ursas”, “No seio de Abraão”,
“Diário de um comedor de lentilhas” e o romance A mulher que escreveu a
Bíblia. Com freqüência também Scliar faz com que personagens históricas
compareçam em suas páginas de ficção, quase sempre em situações cômicas,
deslocadas de seu contexto original. No romance O exército de um homem só o
pai de Mayer Guinzburg aproveita a presença do Dr. Freud no aeroporto de
Porto Alegre para consultá-lo a respeito das esquisitices do filho. Em Majestade do Xingu a família do protagonista hospeda o escritor Isaac Babel, que
se revela um homenzinho inquieto e comilão.
Em suas obras Scliar transita com desenvoltura da descrição de destinos individuais para a narração de histórias que abrangem a vida de toda
*Professor da UFG.
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uma comunidade. Em alguns outros percebemos que os destinos do indivíduo e da comunidade são indissociáveis.
Sendo descendente de imigrantes judeus, e tendo passado a infância
no Bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, Moacyr Scliar se situa, como escritor, entre dois mundos. O poeta e crítico José Paulo Paes propôs para escritores com experiências dessa natureza o termo “anfíbio cultural”, que ele
define da seguinte maneira:
Anfíbio não no sentido figurado de quem “tem sentimentos opostos, ou segue
duas opiniões diferentes” – embora essa acepção possa ser também pertinente –
e sim no sentido próprio de quem foi criado dentro de duas línguas-culturas
diversas. Num país como o nosso, aonde aportaram variados contingentes
imigratórios, a figura do anfíbio cultural é assaz comum. Entretanto, poucos,
pouquíssimos deles tiveram sensibilidade e talento para dar um testemunho literariamente qualificado de sua experiência de duplicidade. Grifo o advérbio para acentuar que o que tenho em vista não é o mero depoimento acerca de peculiaridades
da vivência anfíbia e sim a sua transfiguração ficcional.1
Esta experiência entre dois mundos marcam profundamente a ficção
de Scliar, e sua expressão literária mais acabada talvez seja o romance A
majestade do Xingu.
Outro elemento importante advindo de suas raízes judaicas é a forma muito peculiar de humor que caracteriza as obras do autor gaúcho. O
humor judaico vem assim definido em uma antologia de que Moacyr Scliar
foi um dos organizadores:
Os teólogos judeus costumavam dizer que é mais fácil descrever Deus em termos
do que Ele não é. O mesmo processo pode ser útil para a compreensão do humor
judaico. Ele não é escapista, não é grosseiro, não é cruel; ao mesmo tempo, também não é polido ou gentil.
O humor judaico geralmente versa sobre temas como: a comida, a família, negócios, o antisemitismo, a riqueza e a pobreza, a saúde e a sobrevivência. Há nele
uma fascinação com a lógica; mais precisamente, pelo tênue limite que separa o
racional do absurdo.
O humor judaico costuma produzir “não uma gargalhada, mas um
sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro. Possui também um
caráter antiautoritário e democrático, por enfatizar a dignidade do cidadão
comum. “ Ele recorre à familiaridade, à intimidade; e neste sentido dá margem à ternura. Por fim, muito importante, não falta a este humor uma dimensão utópica:
Se o judeu luta com seu humor contra o ambiente hostil, contra a tradição congelada, contra a defecção dos assimilacionistas, é por que tem em mente o medelo
de uma sociedade em que tais pragas não existam mais. O humor não luta só
contra, ele luta também por: por uma sociedade mais justa, e pela liberdade de cada
1
PAES, José Paulo. Os dois mundos do filho pródigo. O lugar do outro. Rio de janeiro: Topbooks, p.68.
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qual ser como é sem temer a ação insidiosa do preconceito. Em todo o ceticismo,
em toda a desconfiança, em todo o conhecimento da transitoriedade das coisas
“importantes” aos olhos dos homens, ressoam no fundo das melhores piadas
judaicas, ecos proféticos e messiânicos, ainda que às vezes pálidos e secularizados.2
Embora confira uma grande leveza à maior parte de suas narrativas,
trata-se na verdade de um humor amargo, que não esconde, antes torna
evidente a grande melancolia que perpassa toda sua obra. De fato, a leitura
de seus romances e contos dá a impressão de uma paisagem humana desolada. As personagens de Moacyr Scliar são quase sempre marcadas pela
incompletude, pela insatisfação, pela perda de algo que nem sempre se pode
definir numa única palavra. Trazem em si a marca do exilado, embora nem
sempre se possa dizer com exatidão de onde foram banidos. O fantástico e o
humor em suas obras não têm, portanto, uma função de mero entretenimento, antes revelam de maneira mais eficaz a desolação de sua paisagem humana.
Um exemplo muito característico do uso desses recursos é o conto
“Trem fantasma”: o menino Matias está morrendo de leucemia. Já não haverá tempo de realizar o seu sonho de passear de trem fantasma. Por isso, a
família organiza, com a ajuda de um amiguinho dele, uma espécie de trem
fantasma doméstico. Colocado num carrinho de bebê, ele é empurrado pela
casa pelo outro garoto. No salão a mãe, fantasiada de bruxa, persegue-os. No
banheiro, o pai faz-se de enforcado no cano do chuveiro. Num dos quartos,
o irmão se veste de esqueleto. No gabinete, as irmãs, com as caras lambuzadas de sangue de galinha, aparecem apunhaladas. O menino grita de susto e
prazer. No entanto, a brincadeira é feita sobre o fundo sombrio da morte
inevitável. Bem observada, a realidade se torna uma versão mais cruel que a
ficção inventada para distrair o menino, o que salta aos olhos quando observamos que a casa onde ele vivia é mais assustadora que qualquer trem fantasma: num velho palacete do bairro porto-alegrense dos Moinhos de Vento,
móveis escuros e cortinas de pesado veludo cor de vinho compõem um
ambiente sombrio, o piso de mármore do saguão lembra a laje de um túmulo,
e a tristeza desse ambiente ainda é acentuada pelo frio minuano que assobia
por entre as árvores.
Esse conto exemplifica bem um procedimento constante do escritor.
O que nos seus contos parece fantástico, insólito, absurdo mesmo, serve
para acentuar, por contraste, o absurdo da própria realidade. É uma literatura eminentemente crítica de seu tempo e da realidade em que se insere.
Como dissemos acima, a condição judaica é uma das preocupações
constantes do escritor. Muitos de seus contos tratam, de maneira explícita
2
SCLIAR, Moacyr; FINZI, Patricia; TOKER, Eliahu (org.). Do Éden ao divã. Humor judaico. São Paulo:
Shalom, 1990, p. 1-2.
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ou velada, de temas ligados à dolorosa experiência histórica do provo judeu.
Temas ligados a essa experiência, como a emigração, o exílio, as perseguições, os pogroms, o holocausto, o messianismo e a busca da terra prometida
preenchem muitas de suas páginas. Freqüentemente se combinam em suas
narrativas a atmosfera mítica com a histórica. O romance A estranha nação de
Rafael Mendes (1983) inicia com Jonas no ventre da baleia, e termina com um
seu descendente vivendo na Porto Alegre de hoje. Como pano de fundo, a
ditadura militar. Apresentando quase sempre personagens que, como ele
próprio, vivem entre dois universos culturais, as narrativas de Scliar se firmam decisivamente no chão conturbado da experiência histórica do “breve
século XX”3 . As catástrofes dessa “era dos extremos” universalizaram experiências como as perseguições, o extermínio, o exílio, e nas histórias do escritor gaúcho é uma humanidade inteira que se vê perseguida, exilada, ameaçada.
Dá bom exemplo disso o conto “ Os leões”. Narrado à maneira de
uma parábola, conta como os leões, responsabilizados por todos os males da
terra, são exterminados. Quando todos pensam que finalmente serão felizes,
começa a guerra da Coréia. A idéia de extermínio de um determinado grupo
como bode expiatório de todos os males pode remeter diretamente ao
holocausto, o que se torna ainda mais evidente pela referência à guerra da
Coréia, iniciada poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. No
entanto, em vez de falar em judeus, o escritor prefere falar em leões, o que
permitiria em princípio estender o significado da narrativa a outros grupos
perseguidos. Mas mais importante que isso é o fato de que a felicidade não
pode ser alcançada pela eliminação do inimigo responsabilizado por todos
os males, pois no dia seguinte virá uma nova guerra, com novos males e um
novo bode expiatório se fará necessário.
Na aparência menos sombria, mas no fundo ainda mais atroz é a
história narrada no conto “Cão”. O senhor Armando mostra a seu amigo
Heitor o cãozinho que trouxe de uma viagem. O bichinho é resultado de
uma insólita combinação entre a arte japonesa da miniatura, a genética e a
alta tecnologia. A descrição do animalzinho e a narrativa toda lembram muito de perto um desenho animado:
Era um cão, um pequeno cão, talvez o menor cão do mundo. O senhor Armando
colcou-o sobre a mesa, onde o animalzinho ficou a palpitar. Era menor que os
copos de uísque.4
Quando um mendigo aparece pedindo esmolas, Armando aproveita
para demonstrar a eficiência do bichinho. E, como aquelas gracinhas de bichinhos dos desenhos animados, o cãozinho se revela violento e letal: Engo3
Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
4
SCLIAR, Moacyr. Cão. O carnaval dos animais. Porto Alegre: Movimento, 1978, p. 21.
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le o mendigo inteirinho, sorvendo ao mesmo tempo todo o sangue, de modo
a não deixar vestígio de sua passagem sobre a terra. Heitor propõe então
ficar com o cão a título de pagamento de uma dívida. Inicia-se uma discussão que termina quando Heitor chama Armando de ladrão e marginal. Imediatamente o cão devora Armando sem deixar vestígio e Heitor se apossa
dele. É a vez de sua esposa aparecer e acusá-lo de haver roubado o animal.
Ao ouvi-la chamar o marido de ladrão e marginal, o cão imediatamente repete a operação com a mesma eficiência e limpeza.
Por baixo da superfície dessa história engraçada encontramos uma
realidade aterradora. Uma das mais duvidosas realizações da ciência do século XX foi o desenvolvimento de técnicas cada vez mais eficientes de matar.
O orgulho de uma civilização tecnológica, que combina eficiência, precisão e
higiene, quando colocado a serviço de objetivos que remontam aos períodos
mas bárbaros e primitivos da humanidade resulta num pesadelo, que assusta
pelo contraste entre os objetivos bárbaros e os meios empregados para
alcançá-lo:
Sobre pranchetas, penas esboçam,
Sem que ninguém se aterrorize,
A nova cruz do Gólgota,
Móvel, sobre rodas,
Lustrosa, com buchas e tubos,
Precisa, confiável,
E parafusos apertados por engenheiros
Fixam nela àquele que será executado.5
Aqui temos um instrumento de extermínio perfeito. E o perigo reside
justamente em sua perfeição. Por trás de sua aparência inofensiva, esconde-se
a eficiência cega dos artefatos de morte. Para que ele funcione, basta etiquetar
o adversário do momento, e ele cumprirá as ordens recebidas. Esta arrepiante
história sobre a “banalidade do mal”6 ecoa todo o horror das guerras
tecnológicas, das maneiras limpas e eficiente de matar sem sujar as mãos.
A ironia da história é que o feitiço acaba por virar contra o feiticeiro.
À fé cega nas maravilhas tecnológicas corresponde a cega eficiência da
tecnologia que não sabe distinguir amigos de inimigos.
Colhidas diretamente no universo judaico são aquelas histórias em
torno do messianismo. “A balada do falso Messias” é uma dessas narrativas
a respeito da eterna busca da terra prometida. Como outras narrativas de
Scliar, essa transporta algumas personagens históricas para o Rio Grande do
Sul. Trata-se de Shabtai Zvi e Natan de Gaza. Shabtai Zvi foi o fundador de
5
BROCH, Hermann. Os inocentes. Romance em onze contos. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Rocco,
1988, p. 248.
6
Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens
siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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um movimento messiânico conhecido como sabatianismo. Aqui ele acompanha um grupo de emigrantes judeus que vem começar uma vida nova no
Brasil, instalando-se inicialmente na colônia Barão Franck. Ali Shabtai Zvi se
proclama o Messias, que vai levar seu povo de volta a Jerusalém. Atendendo
a seu chamado, os colonos começam a construir uma embarcação para a
viagem de volta. Quando um dos capangas de Chico Diabo, um bandido que
assolava a região, vem buscar o Messias para que cure seu chefe de uma
enfermidade, os colonos resolvem abandonar os projetos de viagem e ir para
Porto Alegre. Curiosamente, aceitam até mesmo a versão cristã da vinda do
Messias para confirmar a falsidade de Shabtai Zvi:
Que Messias, nada! Acaba com essa história – isto ainda vai provocar os antisemitas. Não ouviste o que o padre disse? O Messias já veio, está bom? Transformou a água em vinho e outras coisas. E nós vamos embora.7
Pouco tempo depois o próprio Shabtai Zvi vai se juntar a eles. Em
Porto Alegre, alguns dos antigos colonos começam a prosperar. O próprio
Messias acaba por ir trabalhar na firma do sogro. Integrando-se na vida da
cidade, todos esquecem seus antigos anseios utópicos.
Este conto deixa muitas perguntas sem resposta. A primeira delas é:
seria mesmo Shabtai Zvi um falso Messias? O título do conto parece afirmar
que sim. No entanto, o depoimento dos soldados que prenderam o bando
de Chico Diabo parece indicar outra coisa. Eles afirmam que toda a água do
local fora transformada em vinho. Sendo assim, a vitória sobre Chico Diabo
não seria prenúncio de uma vitória sobre o mal? Mais inquietante ainda se
tornam essas perguntas quando o narrador do conto nos diz que, ocasionalmente, ao ir com Shabtai Zvi beber vinho num bar, este transforma, com um
gesto, o vinho em água. Seria Shabtai Zvi um Messias que – tendo encontrado um mundo em que não há mais lugar para ele, em que todos abandonaram a esperança e foram cuidar da vida – se degrada em prestidigitador? Ou
seria ele um simples charlatão que, realizando truques de mágico de feira,
procura explorar a credulidade das pessoas?
A mesma oscilação encontramos na versão profana desse tema, no
romance O exército de um homem só. Nele, Mayer Guinzburg, descendente de
judeus russos emigrados para Porto Alegre, afronta a fé e as tradições familiares e dedica-se a fundar uma sociedade socialista. Em princípio se poderia
pensar que Mayer está simplesmente louco, pois escolhe como parceiros de
sua aventura alguns animais, a quem chama de companheiros: a Companheira Cabra, o Companheiro Porco, a Companheira Galinha.
Mas quando Mayer abandona seus projetos e vai viver uma vida “normal”, torna-se um sujeito deplorável. Fazendo sociedade com outro morador do mesmo Bairro do Bom Fim, por quem até então não demonstrara
7
SCLIAR, Moacyr. A balada do falso Messias. São Paulo: Ática, 1988, p. 19.
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maior consideração, torna-se um grande empresário, inclusive tomando como
amante a secretária, filha de um antigo companheiro de infância e de sonhos
revolucionários. Aqui também devemos perguntar se ele estava mais louco
quando queria mudar o mundo ou quando resolveu aderir a ele. A loucura de
Mayer tem algo de utópico, enquanto sua sanidade tem muito de cinismo.
Mas nada nesse romance é tão simples. O sonho socialista de Mayer
é ambivalente, pois não esconde o fato de que a experiência histórica do
socialismo produziu seus horrores. As acusações e exigências de autocrítica
que Mayer faz a seus “companheiros” não deixam esquecer o terror estalinista.
Também não podemos deixar de sentir pena de seu pai, que vê com tristeza
seu filho dar as costas aos seus sonhos de vê-lo transformado num rabino.
Como ao final Mayer, retomando ainda uma vez seus sonhos utópicos começa a misturar a visão socialista com a leitura dos livros sagrados, fica claro
o caráter messiânico desses sonhos.
Essa visão de um messianismo que, seja em sua versão religiosa, seja
em sua visão profana, se degrada ao encontrar um ambiente adverso à utopia
nos leva de volta a um tema que já mencionamos de passagem anteriormente – o exílio.
O sentimento do exilado é o de ter sido expulso de um paraíso. Em
Moacyr Scliar esse sentimento adquire muitas facetas diferentes. Tanto os
colonos da Balada do falso Messias quanto Mayer Guinzburg representam
formas de exílio de alguém que perdeu o chão em que seus sonhos se poderiam realizar. Também o esquecimento de suas raízes judaicas por Rafael
Mendes pode ser visto como uma variação sobre esse tema.
Em outras narrativa esse sentimento de exílio adquire formas inusitadas. Em Shazam, o Capitão Marvel já não encontra lugar no mundo depois
que o crime foi abolido. Sua única razão de ser desapareceu. Ainda consegue
chamar um pouco a atenção ao publicar seu livro de memórias, mas depois é
definitivamente esquecido. Por fim, entrega-se à bebida e, numa tentativa
das mais melancólicas de encontrar um pouco de calor humano, leva para a
cama uma mulher muito pouco atraente que encontrara no bar. Mas vê-se
roubado até mesmo dessa última esperança, pois tudo o que consegue é ferila com seu membro de aço. Só uma palavra mágica, da qual ele há muito não
consegue se lembrar, poderia restituí-lo sua identidade humana. O esquecimento dessa palavra mágica condena o Capitão Marvel ao eterno exílio na
sua forma de super-herói obsoleto.
Muitos dos temas que procuramos apontar até agora nos contos de
Scliar podem ser encontrados no conto “Estado de coma”, variação sobre o
tema de Rip van Winkle, bem mais amarga que o conto de Washington Irving.
Sem razão aparente, um menino de treze anos de idade adolescente entra em
coma no ano de 1902. Nenhum dos recursos empregados para despertá-lo
surte efeito. Uma irmã para quem a idéia de trazê-lo de volta à normalidade
se tornou uma obsessão termina por suicidar-se. Certa noite o pai, despertado por um pressentimento, dá-se conta da excitação sexual do rapaz, agora
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com 22 anos de idade. Sai em busca de uma prostituta que aceite satisfazê-lo,
mesmo naquela situação inusitada. Um ano depois ela volta com um garoto
no colo, que afirma ser filho do rapaz. A família adota o guri, que é rejeitado
pela avó e criado pela tia. O pai morre, a irmã se casa com um marginal e
desaparece depois que este é preso. O filho vai para a guerra como pracinha
da FEB. Um dia a mãe sente que a morte se aproxima. Faz um carinho no
filho e morre, sem ter tempo de ver que este desperta naquele exato momento. Embora tenha agora 55 anos de idade, é com voz de nenê que ele diz: “ai,
gente, dormi um bocado”8 .
Ao lado dessa atmosfera fantástica, temos no conto, também o procedimento comum na ficção do autor de situá-lo claramente no tempo histórico. De fato, a narrativa se organiza quase que sob a forma de um calendário que registra tanto as datas mais importantes da vida do garoto adormecido, como as datas mais importantes para a história do período que dura o
seu sono: o início e o fim da Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Revolução Russa (1917), o crack da bolsa de Nova Iorque (1929), etc.
Embora de uma extensão incomum na ficção do autor, que cultiva de
preferência o conto curto, de duas ou três páginas, e apesar da ausência da
temática fundamental do judaísmo, “Estado de coma” é muito representativo da ficção de Scliar, por combinar elementos que encontramos dispersos
em vários contos diferentes.
Trata-se de um conto fantástico, que não considera necessário explicar ao leitor as razões do acontecimento inusitado: o longo sono de seu
protagonista. E este longo sono acaba sendo, inevitavelmente uma forma
muito peculiar de exílio. Em primeiro lugar, exílio da própria vida. O rapaz
adormecido perde a vida toda dormindo. Causa, embora não possa ser culpado disso, a morte de uma das irmãs. Vez por outra um dos irmãos, ou a
mãe, em desespero, chegam a expressar o desejo de que ele morresse. De
certa forma, sua enfermidade acaba por decidir os destinos da família. Quando
o médico que o atendeu desde o início morre, seus papéis revelam que ele
também tinha como obsessão despertar o rapaz. E este, naturalmente, não
participou de maneira nenhuma da vida da família. Vida que transcorre, aliás, em direção a um declínio inevitável. Ao longo de toda a narração, vemos
a sua família se desagregar, e sua mãe enfim morre numa quase total solidão
– já que a presença do filho não pode ser considerada propriamente uma
companhia para sua velhice.
Paralelamente a este exílio da vida, o conto demonstra como o longo
sono do rapaz também significa um exílio da história. Se considerarmos o
que afirma o historiador inglês Eric Hobsbawm, para quem o século XX
incia-se realmente em 1914, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, ao
adormecer no ano de 1902, o rapaz ainda se encontrava espiritualmente no
8
SCLIAR, Moacyr. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 420.
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século XIX. E permanecendo em coma até o ano de 1944, perdeu todos os
grandes conflitos que marcaram a primeira metade do século XX e dos quais
os outros que estavam por vir seriam um desdobramento.
Por isso mesmo não deve causar estranheza que ao despertar o rapaz
fale com voz de nenê. Duplamente exilado, da vida familiar e da história,
duas experiências fundamentais na formação de uma pessoa (e cuja simultaneidade a alternância de datas registradas pelo narrador só faz acentuar), ele
aos 55 anos ainda é uma criança. Se em vários contos do autor encontramos
as crises familiares como fator de sofrimento para o ser humano, e se, como
se procurou demonstrar acima, boa parte da história contemporânea e vivida como pesadelo, o conto “Estado de coma” parece afirmar que a solução
não está em buscar uma fuga para essa realidade.
Uma espécie de contraponto aos tempos lentos de “Estado de coma”
oferece o conto “Rápido, rápido”, outra forma de exílio da história, desta
vez por que seu protagonista não tem tempo de vivê-la. Sofrendo de progéria,
uma doença que provoca o envelhecimento precoce, o protagonista do conto vê-se obrigado a viver todas as experiências da vida num dia só. Também
aqui encontramos o registro de cada momento importante da vida da personagem, mas em horas, não em anos. Nascido pela manhã, o protagonista
morre de velhice ao fim do dia. Com aquele humor característico de Scliar, o
ritmo acelerado do conto oferece uma imagem divertida mas trágica da vida
moderna, com sua supervalorização do tempo. Obrigado a levar a imediatez
de suas preocupações ao absurdo, o protagonista do conto não encontra
tempo para viver a infância, para encontrar o amor de sua vida, para nada,
enfim. Vive à margem da existência por causa do seu excesso de atividade,
no polo oposto ao da personagem de “Estado de coma”, que viveu à margem por sua total inatividade. Se este, ao acordar é um nenê de 55 anos, o
personagem de “Rápido, rápido” torna-se velho com apenas um dia de vida.
Como se pode ver nos contos focalizados acima, a leitura das obras
de Moacyr Scliar passa um sentimento de profunda melancolia. Mas escondida num cantinho mal iluminado do conjunto de sua obra, quase imperceptível, podemos encontrar, inesperadamente, a esperança de uma saída do
labirinto. O conto “Uma casa” trata de mais um desses exilados, um aposentado órfão e solteiro que, vendo aproximar-se a morte, procura adquirir uma
casa onde morrer. Compra uma quase em ruínas, passa nela uma noite, ouvindo vozes de pessoas mortas há muito: “Não, o homem não se assusta.
Seu coração – um pedaço de couro seco, ele imagina – bate no ritmo de
sempre. Ele dorme, a vida se apaga, e já é de manhã.”9
O homem acorda em um país distante: “Sim, é outro país – conclui o
homem. – E tenho de começar tudo de novo.”10 E começa tirando o sobretudo.
9
SCLIAR, Moacyr. Cão. O carnaval dos animais. Porto Alegre: Movimento, 1978, p. 50.
10
Id. p. 51.
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O conto “Uma casa” chega a surpreender pela sua atmosfera luminosa – especialmente se comparado com “No seio de Abraão”, em que o
exílio continua até mesmo depois da morte de um homem que, estando no
seio esquerdo de Abraão não pode reencontrar a amada, que foi para o seio
direito. “Uma casa”, ao contrário, sugere que o exílio não é necessariamente
irremediável. Por isso, essa narrativa quase isolada merece atenção especial.
Através dela o médico, escritor e humanista impenitente Moacyr Scliar deixa
entrever um raio da luz que brilha por trás de suas histórias tão sombrias.
Recebido em setembro/2003
Aprovado em setembro/2003
Abstract
Some of the most common themes running through the narratives of Moacyr Scliar are examined in this
study. His most significant short stories are analysed in terms of the presence of humour and the fantastic.
Relations between his fictional works, Jewish culture, and some of the most significant historical moments
of the 20th century will be highlighted.
Key words: The Fantastic, Brazilian short stories, Authors from Rio Grande do Sul.
Referências
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HOHLFELDT, Antonio. O fantástico e sua função em Moacyr Scliar. Correio do povo. Porto Alegre, 25
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MACHADO, Suzana Yolanda Lenhardt. O labirinto em (O ciclo das águas) de Moacyr Scliar. Dissertação
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SCLIAR, Moacyr. A balada do falso Messias. São paulo: Ática, 1988.
SCLIAR, Moacyr. O carnaval dos animais. Porto alegre: Movimento, 1978.
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SCLIAR, Moacyr. A estranha nação de Rafael Mendes. Porto Alegre: L&PM, 1983.
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ZILBERMANN, Regina. Moacyr Scliar: da fantasia ao real. Correio do povo, Porto Alegre, 14 set. 1974.
Caderno de sábado, p. 14-15.
Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.161-170, jul/dez. 2003
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