Projeto de Crítica Cinematográfica do 22º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo MINISTério DA CULTURA e PETROBRAS apresentam E D L a n o i C a o n L r U e a T P n I O L ã a S V i E t D s e S f n e G a r t e M S a t r CU MINISTÉRIO DA CULTURA e PETROBRAS apresentam UM ESPAÇO PARA A CRÍtica do curta metragem Há sete anos, o projeto Crítica Curta propõe a alunos de cursos de audiovisual uma imersão no universo do curta-metragem, com a missão de redigir textos críticos e reflexivos sobre os filmes exibidos na Mostra Brasil, Panorama Paulista, Mostra Latino-americana, Oficinas Kinoforum e Mostra KinoOikos, que integram a programação do Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo. Em 2011, 23 alunos de dez escolas contribuíram com este tabloide, participando pela primeira vez do projeto. Os integrantes das edições anteriores são convidados a retornar e escrever para o blog do Crítica Curta (http:// kinoforum.org.br/criticacurta). Este ano, oito “veteranos” compõem a equipe do blog. Acompanhe nas páginas a seguir as críticas da safra 2001. Na última página, o leitor encontra os filmes mais votados pelo público durante o Festival. o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo carta ao leitor Em sete anos, Crítica Curta teve cerca de 180 participantes Sérgio Rizzo Durante os cinco primeiros dias de programação do 22º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo – Curta Kinoforum, 23 alunos de universidades, faculdades e escolas livres de audiovisual do estado de São Paulo tiveram uma missão, como participantes da sétima edição consecutiva da oficina Crítica Curta: assistir a centenas de filmes latino-americanos – com destaque para a produção brasileira – espalhados por diversos programas, acompanhar os debates realizados em seguida às sessões e escrever textos reflexivos sobre essa imensa amostragem. O jornal que você tem agora em mãos, e que circula antes do encerramento do Festival, é o resultado desse trabalho. As páginas seguintes trazem 51 textos (editados a partir de um total de 112) sobre 51 filmes exibidos pelo Curta Kinoforum. A equipe de 2011, presente à reunião introdutória na Cinemateca Brasileira. Seus autores, como a leitura mais atenta revela, têm ideias muito distintas em relação ao cinema e, de maneira mais ampla, ao audiovisual contemporâneo. Essa diversidade ajuda a compreender as principais tendências de pensamento hoje em circulação nas escolas paulistas de audiovisual e, talvez, alguns dos valores políticos e estéticos mais caros à geração que chega neste momento ao cenário da produção. Neste ano, o projeto Crítica Curta retomou seu perfil original, que prevaleceu nas EQUIPES 2011 as escolas participantes Tabloide Blog ExpEDiENTE Alexandre Wahrhaftig Amanda Castro André Almeida Beatriz Sperandelli Brunno Schiavon Bruno Temóteo Dandara Bacelar Diego Bitencourt 2 primeiras quatro edições: atuar em parceria com os cursos de graduação em audiovisual e comunicação do estado de São Paulo, que indicaram alunos para participar da oficina. O princípio é o de promover a reflexão em torno da produção latino-americana no formato de curta-metragem, estreitando laços com instituições de ensino públicas e privadas das quais saem realizadores do audiovisual. Desde a segunda edição da oficina, os “veteranos” do jornal são convidados a participar novamente do Crítica Curta, desta vez escrevendo textos para um blog, hospedado no web site do festival. Cerca de 180 jovens participaram das sete edições. O processo de seleção para a próxima oficina terá início no primeiro semestre de 2012, com visitas a universidades, faculdades isoladas e escolas livres de audiovisual. Fábio Santos Fernando Catto Gabriel Ribeiro Gilberto Xis Ignácio Ito Isabela Maia Lucila Maia Luiza Conde Marcelo Félix Matheus Rufino Priscila Castilho Rafael Marcelino Rodrigo Ferro Rodrigo Oliveira Thaiana Bitencourt Beatriz Macruz Camila Fink Carlos Alberto Farias Henrique Gois de Melo Letícia Mendes Mariana Serapicos Mirrah Iañez Renato Batata • Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) • Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) • Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) • Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) • Universidade Metodista • Universidade Anhembi-Morumbi • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) • Escola Livre de Cinema de Santo André • Centro Universitário SENAC • Universidade Santo Amaro Este jornal foi produzido por alunos de cursos de graduação das escolas parceiras participantes da oficina Crítica Curta, realizada pelo 22º Festival de Curtas-metragens de São Paulo em agosto de 2011. Coordenação da Oficina e Edição Sérgio Rizzo Produção do tabloide Coordenação editorial e revisão Lizandra Magon de Almeida Edição de arte Marcio Soares Diretora do Festival Internacional de Curtas metragens de São Paulo Zita Carvalhosa Diretora adjunta Beth Sá Freire Coordenação dos Programas Brasileiros e Produção da Oficina Crítica Curta William Hinestrosa Coordenação da Mostra Latino-americana Marcio Miranda Perez Coordenação das Oficinas Kinoforum Jorge Guedes e Vânia Silva Coordenação da Mostra KinoOikos Moira Toledo, Vanessa Reis e Lorena Ribeiro realização [email protected] Tel. (11) 3034-5538 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Nena”, por Alexandre Wahrhaftig Dúvidas sobre os rumos do cinema contemporâneo Nena, movimentando-se por um parque, carrega uma potência corporal imensa, ainda que muitas vezes desajustada. Ela escala, corre, machuca-se, anda de bicicleta, confronta outras pessoas; sempre em movimento, nem que seja apenas um movimento de boca ao mascar chiclete. Tudo se preenche de sexualidade e de desejo, graças a uma atriz menina-mulher muito expressiva e, vale dizer, de pernas descobertas, em combinação com um olhar muito consciente, que sabe quando se afastar e se aproximar, enquadrar e desenquadrar; sabe transformar um machucado na perna em expressão sexual de um corpo vivo. As relações com os outros personagens só nos interessam na medida em que afetam Nena. Não precisamos (e nem podemos) entendê-las completamente. Quem é esse pai de quem quase só vemos a cintura e contra quem Nena esbarra no espaço apertado da cozinha? Quem é esse menino pequeno que a chama para perto de si? Quem é esse senhor em flertes pedófilos no parque? Não importa. O que temos é a ação de Nena sobre essas pessoas e a ação dessas sobre ela. O plano final, com Nena boiando na água, me lembrou excessivamente do longa “A Menina Santa” (2004), de Lucrecia Martel. Percebi depois que todo o curta lembra o universo de Lucrecia, e aqui há um problema. A entrega do olhar a uma fisicalidade dos corpos e a uma realidade não organizada em torno de significados e comportamentos precisos, sob um tempo esticado, elíptico e ambíguo, parece ter se transformado em uma matriz estética. Seguindo alguns de seus caminhos fundamentais, ainda que não de simples realização, parece que se chega a um olhar que pode englobar qualquer tema, personagem e Nena, de Maria Florencia Alvarez Latinos 04 - Argentina/Espanha/Itália - 15’, cor, 35mm, 2010 conflito cotidiano. Um modo de filmar (montar, escutar e atuar) que é, por natureza, interessante, rico e belo. E isso é assustador, não por uma questão de originalidade (alguém copiou alguém), mas porque chegamos, de uma estética de aberturas e liberdade, a uma estética fechada e funcional. E aqui não falo de “Nena”, mas de uma tendência do cinema contemporâneo. “Tijereto”, por Dandara Bacelar “Xetá”, por Diego Bitencourt Sensual sem ser vulgar A mão terrível e a mão bondosa O curta da diretora colombiana Camila Jimenez Vila conta a história de um casal que decide passar um fim de semana numa ilha do Caribe com apenas um morador. Então, acontece o inesperado: o interesse de ambos pelo escritor que vive na casa onde estão hospedados, e que está isolado ali há seis meses. Focando em partes do corpo, na troca de olhares, a câmera subjetiva do filme vai construindo a tensão sexual entre os três. Essa tensão também é construída com a ajuda da trilha sonora – em sua totalidade, composta O homem branco e o indígena. silêncio aparece para O embate que formou os países acentuar a do continente americano é dramaticidade), o que capturado neste documentário acaba por exotizá-los sobre os índios Xetá. mais do que os Provenientes do noroeste do identificar. território paranaense, eles O papel dos foram dizimados devido ao antropólogos presentes Xetá, de Fernando Severo processo de colonização da no filme acaba sendo o Mostra Brasil 01 – Brasil (PR) - 20’, cor, região na década de 1940. O mesmo dos cineastas: 35mm, 2011 filme caminha pelo caso traçar uma diferença ouvindo os índios entre o branco destruidor sobreviventes, além de recorrer a e o branco acadêmico – este último, consciente de ter em depoimentos de antropólogos e a sua etnia o peso dessas ações terríveis ao longo da história e imagens de arquivo, feitas pelo tentando remediá-las unindo-se aos historicamente cineasta Wladimir Kosac. reprimidos. O documentário abraça uma visão maniqueísta, Num interessante paralelo, vemos o se privando, por exemplo, de colher o depoimento de retrato do desmatamento da floresta pessoas ligadas aos colonizadores. de origem da etnia junto aos Ao longo de “Xetá”, os destinos desses poucos índios depoimentos sobre o genocídio. Com sobreviventes são mostrados. Ao final, os “brancos a intenção de diferenciar a cultura esclarecidos” levam os índios remanescentes ao seu local de indígena, o filme se utiliza do clichê origem na esperança de que possam então “retornar às de uma música que entrecruza flautas raízes”. Assim, os índios Xetá têm seu destino traçado e “sons de floresta” sobrepostos pelos primeiro pela mão terrível do homem branco e, depois, pela depoimentos dos remanescentes (com sua mão bondosa, sendo esse o verdadeiro genocídio de sua a exceção de momentos em que o cultura, à mercê da bondade e da maldade da “civilização”. pela sensualidade das músicas latinas. Outro fator que ajuda na composição do triângulo está nas cores das roupas dos personagens; cores quentes completam esse ambiente permeado pelo desejo. O quarto e a varanda da casa ajudam na formação da ligação entre eles, sem tirar a importância das cenas no mar, onde acontecem os primeiros contatos sexuais. A cena final vale por todo filme – a consequência desse interesse, um silêncio constrangedor, até para os que assistem, e um enquadramento que valoriza o rosto dos personagens. “Tijereto” é sensual sem ser vulgar. A relação dos três tem a sensibilidade da experimentação do desconhecido; o silêncio é constrangedor, mas gostoso de se sentir, e o melhor: nós, espectadores, conseguimos Tijereto, de Camila Jiménez Villa intuir tudo o que os atores se Latinos 03 – Colômbia - 22’, cor, 35mm, 2011 propõem a passar. 3 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Cores e Botas”, por Fábio Santos “A Janela (ou Vesúvio)”, por Priscila Castilho Ah, isso não pode A realidade vista de dentro (ou de fora?) No início, pode-se imaginar que o curta da diretora Juliana Vicente – sobre uma garotinha negra que tem o sonho de ser paquita – é somente uma cópia do longa norte-americano “Pequena Miss Sunshine” (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris. Mas, com o desenrolar Cores e Botas, de Juliana Vicente da trama, vem à cabeça a frase de Paulo Panorama Paulista 03 – Brasil (SP) - 15’, cor, 35mm, 2010 Emilio Salles Gomes: “Eu sinto que existe entre nós uma espécie de incapacidade de copiar, que me parece bom sinal. Sinal de uma final da década de 1980, quando o politicamente personalidade nacional, que é difícil de definir, correto ainda não predominava. Assim, faz com mas que a gente sente que existe”. que esse pensamento atrasado fique mais forte Sim, ela existe. Felizmente, não sabemos copiar e ainda. Não é, portanto, uma cópia; fala de isso sempre vai estar latente dentro de nós e em problemas relacionados a um pensamento nossas obras. Ao mostrar a família da garota como tipicamente brasileiro. A inspiração do filme negra e bem sucedida, vem o pensamento de que gringo aparece no lado descontraído que o isso está “errado”. Onde já se viu um negro bem curta possui e na personalidade de Joana, que sucedido? E a menininha querer ser paquita? Isso se parece muito com a da protagonista de não pode. Juliana deixa bem claro esse traço “Sunshine”, além de ser finalizado com uma preconceituoso de nossa cultura. música de programa infantil mais inteligente Outra sacada da diretora foi ambientar o filme no que o show da rainha. “O Céu no Andar de Baixo”, por Gilberto Xis Para manter as aparências O curta de Leonardo Cata Preta apresenta contundentes personagens animados. O recortado e metonímico olhar do protagonista parece denotar um mundo mais verdadeiro e que, por essa razão, e estimulado por sua condição física, faz com que ele se mantenha recolhido à clausura. Ao contemplar nos céus, de modo aleatório e indireto, a inconstância dos movimentos das nuvens e objetos que àquele lugar não pertençam, o surgimento de um elemento nunca dantes visto estimula sua curiosidade de modo a fazê-lo refletir sobre uma possível condição de vida semelhante à sua. No entanto, num mundo em que as aparências embora efêmeras são prevalentes, o receio do contato com o novo acaba por fazer com que o protagonista desista de sua busca. Com traços que marcam uma estética mais suja, a qual remete às obras em quadrinhos de Lourenço Mutarelli, “O Céu no Andar de Baixo” aparenta suscitar a um pessimismo na medida em que todos os personagens estão descontentes consigo 4 Os seis curtas da Mostra Brasil 9 tinham o intuito comum de fazer um recorte da realidade – de costumes, de fatos, de histórias ou personagens. “A Janela (ou Vesúvio)” evidencia visões e hábitos da típica família de classe média brasileira. No início, um senhor toma diversos remédios, remetendo à questão da manutenção de vidas debilitadas e ao enriquecimento de laboratórios. No quarto, a televisão, depois de passar por diversos canais que nada tinham a dizer, começa a gritar palavras revoltadas de algum dos tantos apresentadores sensacionalistas que temos no ar. Quem mudou de canal é um personagem jovem, talvez neto do senhor. Ele abre a janela do quarto e ambos passam a olhar para fora. O plano é filmado do exterior, enquadrando parte do jardim e a janela que tem uma grade. Surgem aqui, em contraponto a uma imagem tranquila, barulhos de guerra. Uma mensagem de que, como janela para a realidade, a televisão – os noticiários que procuram avidamente notícias que espetacularizem a morte, roubos e tudo que cause impacto e dê audiência – passa a impressão de que o mundo virou um campo de guerra. A câmera volta-se para cima e revela outra grade – um portão. Mais uma barreira entre as pessoas e o mundo afora. Eles olhavam por essa janela real, tendo em mente a ideia passada pela televisão, protegidos demais por sua “trincheira” para enxergar a realidade. Próximo ao horário da novela, diversos outros membros do que seria uma família chegam da rua, alguns feridos, enfaixados – como se voltassem de uma guerra. Todos se acomodam em frente à televisão, sem dizer uma palavra. Passam a absorver, como zumbis, aquela falsa realidade alheia, deixando de viver a sua própria. O senhor fecha a janela, cortando assim o som da guerrilha e isolando o mundo exterior e os problemas que ele traz. Seria um retrato da família como instituição falida? Um recorte da sociedade há muito tempo manipulada como rebanho? Cabe a nós olhar através da tela de projeção como terceira janela e tirar nossas conclusões O Céu no Andar de Baixo, de Leonardo Cata Preta Mostra Brasil 03 – Brasil (MG) - 14’, cor, 35mm, 2010 mesmos e com o mundo, mas hipocritamente se esforçam para manter as aparências. Mas, ao pontuar que o anti-herói conseguiria seu objetivo se não tivesse, no último momento, optado por acomodar-se em conviver com a mentira, o narrador acaba pontuando, com uma gota de otimismo, esse universo amargo. A Janela (ou Vesúvio), de Leonardo Amaral e João Toledo Mostra Brasil 09 – Brasil (MG), 8’, cor, vídeo, 2010 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “A Felicidade dos Peixes”, por Luiza Conde “Contagem”, por Matheus Rufino Onde o outro não cabe O peso das convenções Antes da sessão, ouvi o diretor Arthur Lins dizer que o filme foi feito com apenas R$ 1 mil. Por ser um dos curtas mais longos da Mostra Brasil, essa informação me chamou a atenção. Cuidados com cenário, numerosas locações e detalhes que parecem brincar com a concepção de arte. No início, um bobo mosaico de peixes na área da piscina, uma cerveja, um fast food, depois Tom Jobim e natureza morta, tal qual um quadro. Tudo parece documental, como se a câmera estivesse morando junto com o homem tão comum que acompanhamos. Sem falar quase nada, a não ser com uma prostituta, ele passa o dia ao som de uma televisão. E só mesmo uma carta de sua distante filha é capaz de tirá-lo da rotina, mesmo que por pouco tempo. Atendendo a seu pedido, ele se mobiliza para buscá-la e lhe compra um presente, um peixe dourado. Na loja de animais, enquanto todos os bichos estão inquietos, os peixes estão sempre calmos, silenciosos. Só se agitam quando o corpo estranho da rede entra para pescar o escolhido, que serviria para pedir desculpa por anos de distanciamento e indiferença. Novamente, no meio do caos do aeroporto, o peixe ali se encontra calmo e à parte de todos aqueles sentimentos, apesar de estar preso, sozinho, num espaço pequeno onde outro companheiro não caberia. Na conversa com a prostituta, não se sabe se o protagonista está falando a verdade ou se apenas não sente que aquela conversa vá levar a algum lugar. “Lembranças, apenas lembranças”, como se não sentisse falta ou não tivesse sido feliz naquela época. Percebe-se depois que ele está falando a verdade, não sofre mais, ou simplesmente se conformou, ficou calmo e silencioso, como o dourado, dentro do saco. No aquário em que ele está, não cabe outro companheiro; só fica ali, apreciando a vista, e se divertindo, às vezes sim, às vezes não. A Felicidade dos Peixes, de Arthur Lins Mostra Brasil 08 – Brasil (PB), 24’, cor, vídeo, 2011 Trabalho de Conclusão de Curso. Muitos desses filmes-trabalhos surgem exclusivamente da necessidade acadêmica de se realizar um filme. Redundante. Mas importante ao perceber que uma das características de um trabalho desse porte (seja no curso que for) se constitui, de certa forma, da execução de um levantamento de temas, autores, ideias que se aproximam do seu pensamento atual e que foram referência para sua formação ao longo de todo o processo na universidade. Após quatro anos (em alguns casos, mais) no curso de cinema, tomando conhecimento dos mais diversos conceitos estéticos e técnicos adotados por uma infinidade de diretores estudados na história do cinema em sala de aula, em cineclubes etc., chega o momento em que nós (graduandos) efetivamente temos a oportunidade de colocar tudo isso em prática, experimentar. E esse é o grande peso que “Contagem” carrega. O peso de estar preso às convenções de um gênero. O filme de ação de narrativa “complexa”, com idas e vindas no tempo e espaço; certa atmosfera misteriosa, reiterada pelo som muito presente e pela predileção ao planosequência; uma pitada de denúncia social, deixando o Contagem, de Gabriel Martins e Maurilio Martins “mundo externo” Mostra Brasil 02 – Brasil (MG), 18’, cor, 35mm, 2010 invadir e afetar o microcosmo de seus personagens. Tudo isso carimbado pelo selo de qualidade “cinefilia”, enchendo o filme de uma porção de referências. E poderia dar muito certo, se essa orquestração não fosse tão estrangeira e inorgânica àquilo que os diretores estão filmando. A construção fica forjada; os caminhos que se cruzam, os encontros e diálogos marcados, as ações previsíveis, pois psicologizadas. A ação discursiva precede e se sobrepõe à situação. Entretanto, existe a cena em que o casal namora e discute se terão filhos catarrentos ou não quando forem pro coração do mundo. Nesse momento, a genialidade de “Fantasmas” (que conta com a participação dos dois realizadores) mostra reverberações e nos presenteia com a vivacidade idiossincrática daquela região, daquelas pessoas, daquele sotaque. “Pra Eu Dormir Tranquilo”, por Rodrigo Oliveira Sonhador “full time” “Nada de historinha hoje, está bem grandinho.” Dessa maneira começa o curta de Juliana Rojas. A mãe prestes a dar a luz adverte o filho, mas não compreende a falta que a criança sente de sua finada babá. Dar asas a uma fértil imaginação é a saída que o garoto encontra de imediato. Ele, portanto, se agarra ao que lhe conforta, trazendo à tona Dora, a doce babá responsável por protagonizar seus constantes devaneios. Dora começa a pedir favores ao garoto, pois não suporta a ideia de sair do armário – local onde ele a encontra devido aos seus ininterruptos chamados. O rapazinho, então, inicia as estripulias em busca de comida para a babá. Dentre as peripécias praticadas, estão o roubo do poodle da vizinha para matar a fome de Dora e recolher minhocas, embrulhadas num papel toalha no meio de um punhado de terra, para alimentá-la novamente. O tom atribuído a cada personagem e a argúcia ao trabalhar com opostos (a morte da babá e o nascimento de um novo “rebento”), além da inserção de signos, como o pingente de coruja, simbolizando a sabedoria da criança ao agarrar a oportunidade de se sentir acolhida novamente, são os pontos altos do curta. E o diálogo inicial do filme cumpre o seu papel. “Pra Eu Dormir Tranquilo” está longe Pra Eu Dormir Tranquilo, de Juliana Rojas de ser uma historinha. Mostra Brasil 02 – Brasil (SP), 15’, cor, 35mm, 2011 Num átimo, percebemos que o enredo elimina o clima pueril dos primeiros instantes, graças aos pontos de virada do roteiro inventivo e ousado. A canção de ninar cantada por Dora tem o objetivo de fazer a criança adormecer e consequentemente sonhar, mas o garoto é um sonhador em tempo integral. Poético, mas acima de tudo espirituoso, o curta acerta por não ter uma história crível. Prova de que sonhar sempre – principalmente acordado – traz bons resultados. 5 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Cotidianos”, por Rafael Marcelino Para bagunçar as certezas Um filme que ridiculariza clichês e estereótipos – da fala tranquilizadora sobre um assunto tabu (o diálogo familiar sobre sexualidade), da imagem idílica da televisão folhetinesca (família de novelas e comerciais de margarina), do próprio dispositivo de produção de imagens em metalinguagem (“no apagar dos holofotes”, tudo muda). Também é capaz de bagunçar “certezas de gênero” (um documentário estruturado em torno de extensas cenas descaradamente ficcionais): não há pureza, pessoal ou fílmica. O que seria apenas um indicativo espacial (a placa indicando o bairro Paraíso) vira ironia ácida e provocação de classe. A reiteração da caricatura patética da família pseudoliberal de classe média ao método televisivo, querendo o público inerte. Já alta, vivendo o mundo que brinco de imaginar, até acho lógico que o Orson publicitário do “diálogo Welles de “Verdades e Mentiras” (1973) assistisse a aberto”, fortalece, por “Cotidianos” com um sorriso: a “família ideal” recebe contraste, o que será dito Cotidianos, de Gustavo Viana e Eduardo Inácio uma ordem de “corta!” de um diretor. diante da câmera livre, na Oficinas Kinoforum 2 – Brasil, 9’, cor, vídeo, 2011 Mostra-se o aparato, mas a denúncia da “realidade” rua, por pessoas vivendo não existe, a exibição prossegue (aproveitando o “do lado de cá” do aparato clichê: pequena “janela” onde o curta permanece, durante os créditos, como nos técnico rebuscado da TV e do “cinemão” comercial. erros de gravação das comédias-pipoca), apenas indo de uma sátira a outra, de Dos depoimentos, uma conclusão: falar ou não de extremo a extremo: o pai legal, que compra absorventes para a filha, é sexo não basta, existem diálogos possíveis, mas alcoólatra; a mãe que apoia a filha “azarando” meninas é adúltera consumista. A nenhum é livre de pudores inconfessáveis e adolescente que amou os pais, minutos depois, diz apanhar deles. Não hipocrisias. Existem formas de dizer (na boca e na acreditamos, e é isso que o filme quer. Duvide do diálogo simplista, do retrato câmera) e todas correm o “risco do real”, de Jean-Louis Comolli, que falaria desse filme, e creio, idílico e da “franqueza” autorreflexiva. Tudo na vida e na imagem é mais difícil do que parece. Welles ensinou, “Cotidianos” aprendeu. bem, ao menos no que se baliza pelo aceno mordaz “Casa Afogada”, por Rodrigo Ferro “BraXília”, por Lucila Maia Memórias que se vão Poesia reinventada Como fazer um documentário sobre um poeta Qual é a melhor companhia para a solidão além de nossas próprias memórias? Essa foi a pergunta que me fiz depois de ter assistido ao curta de Gilson Vargas usando a linguagem cinematográfica? É do que sobre um homem que vive sozinho em uma casa à beira de um rio. Um homem trata esse filme. Fazer poesia pode ser mais simples, menos caro. O cinema, ao contrário. Porém, o filme simples como qualquer outro, que tenta preservar fotos, livros, panelas e outras surpreende pela simplicidade, poética e coisas em um pequeno espaço que, com certeza, já dividiu com alguém. Agora, profundidade. Tanto uma linguagem como a outra está sozinho ali por algum motivo. BraXília, de Danyella Proença brotam nas telas e nas mãos de seus autores, o A conexão que o diretor fez entre as memórias do homem e a casa que está Mostra Brasil 09 – Brasil (DF), 17’, cor, 35mm, 2010 poeta, a cineasta e sua equipe. desaparecendo é muito interessante para conhecermos um pouco do passado Nicolas Behr, o poeta, desce as escadas. Nesse desse personagem que está prestes a ficar sem nada. Fotos, livros e cartas momento, a pintura “O Nu Descendo as Escadas”, de Marcel Duchamp, vem à minha mente. O poeta não flutuam na água durante a batalha que o morador trava para manter a casa em pé. Ao mesmo tempo, luta para não deixar que suas memórias se vão junto com está nu. Contudo, é nas entranhas da cidade que ele vai revelando essa BraXília reinventada. No início, vemos a palavra “arte” grafitada nas paredes ao lado da escada enquanto Nicolas desce. Até chegar à terra e o fluxo do rio. Após muita luta, o homem acaba perdendo a consciência e cavar com as mãos sua própria sobrevivência, a arte. consequentemente perdendo a luta para a natureza, que também está A câmera acolhe o espectador e transporta-o nessa caminhada pela cidade que pulsa nas linhas. Grafismo. destruindo suas memórias. Blocos. Pessoas. Luz e sombra. Comunicação dos artistas que fazem desse documentário a razão de A imagem do homem acordando e levantando à beira rio, todo coberto de lama, para uma realidade totalmente diferente daquela de alguns minutos atrás, estarem vivos. Dessa forma, fica difícil não se apaixonar pela arte, pela história do poeta que narra sua juventude e rebeldia. A maneira como fez seus primeiros livros, um deles “Chá com Porrada”, e é linda. O homem está em estado de choque enquanto observa suas coisas especialmente o modo de quebrar a distância com seu público em 1977. Naquela época, tudo espalhadas juntamente com os destroços de madeira era mais orgânico; os poetas escreviam, imprimiam e vendiam seus livros. O processo para que durante muito tempo foram sua casa e o único criar a capa utilizava carimbos e criava mais dinamismo. reduto de suas memórias. Com planos abertos, detalhes, câmera na mão, travellings, belíssima fotografia e outros A cena que mais marcou foi a aparição de uma foto recursos de linguagem cinematográfica, a poesia é reinventada na cidade utópica, escrita nos antiga de uma mulher com crianças, provavelmente cantos da tela, nas paredes dos monumentos, até voltar à terra de onde ele retira letras, subir sua família no passado, indo embora junto com a os degraus em que a pintura das sílabas forma um novo poema. correnteza do rio. O homem fica um tempo imóvel e sem olhar para trás deixa o lugar; deixa suas memórias e vai atrás de novas, talvez. Apenas com a roupa do Casa Afogada , de Gilson Vargas corpo e a natureza a sua volta. A mesma natureza Mostra Brasil 10 – Brasil(RS), 14’, cor, de que tanto precisa e que será sua destruidora. 35mm, 2011 6 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Vê se Você Escuta”, por Ignácio Ito “Você Vê o que eu Vejo?”, por Bruno Temóteo Musicalidade aguçada Jovens dispostos a experimentar Os ruídos da periferia, mostrados em planos gerais relativamente longos, introduzem o curta. A dona de casa, em sua rotina de lavar a roupa, é responsável pelo prelúdio da ópera suburbana com sua melodia de “noite feliz” assoviada e acompanhada pelo canto das galinhas, que funcionam como o som das trombetas da anunciação precedendo a chegada Vê se Você Escuta, de Celso R. da dos carros cujos motores substituem as Trindade, Eduardo S. de Paulo, Janilson queixadas e a voz de um beat box. Ap. da Silva, José J. Lucas da Silva e Esse belo e divertido trabalho musicalRodrigo R. do Nascimento imagético demonstra com destreza Oficinas Kinoforum 1 – Brasil (SP), 4’, uma musicalidade aguçada aliada a um cor, vídeo, 2006 inteligente emprego do papel criador da câmera. “Vê se Você Escuta” brinca com o trocadilho de sua denominação em seu conteúdo, fazendo alternâncias entre sons ambiente, combinados com o som em off ligados a signos fílmicos referenciados nos sons e vice-versa. Veja se você escuta ou escute se você vê. Mãos imageticamente justapostas, por meio de um trabalho primoroso de montagem, compondo um ritmo tipicamente brasileiro, tocado pelas próprias mãos daqueles que constroem a nossa vida ao som de suas ferramentas. O ritmo da música é cheio de células “pilantras”, no bom sentido, ganhando muita cor com o tamborim e as cuícas artificiais. Podemos ouvir um mugido de boi interpretado por um sax barítono, enquanto olhamos para o próprio bicho a dublar. Da mesma forma, o latido do rottweiler é produzido de forma sonoplástica pela voz de um jovem, enquanto um grupo de semicolcheias acentuadas produz uma espécie de trem em aceleração cada vez mais elevada, isso tudo acompanhado pela sucessão cada vez mais rápida de imagens, dando uma impressão de pressa. Muito bom gosto e regionalismo contextualizado a cada situação apresentada nos dão a oportunidade de ter sensações diversas nessa bela produção. Pensar sobre o futuro do expõem seus cinema brasileiro é criar sofrimentos e bases para que os jovens pontos de vista de hoje se tornem sobre a questão realizadores audiovisuais. abordada (e é Trazer a cultura do conveniente notar cinema para a nova neste exemplar geração se torna uma como os necessidade essencial, e moradores da tem trazidos bons frutos, favela sentem como se pode verificar sofrer preconceito Você Vê o que eu Vejo?, de Eulmer Araújo Silva, em “Você Vê o Que dos seus entes Eu Vejo?” e em outros Fernando Ribeiro de Lima, José Artenio de Alencar, Elaine próximos e entre Alves de Souza, Girlene Santos Silva vídeos realizados nas si, criando um Oficinas Kinoforum 2 – Brasil, 5’, cor, vídeo 2010 oficinas da círculo vicioso de Kinoforum. autodepreciação As escolhas temáticas dos curtas desses novos que só agrava o problema). cineastas revelam uma corrente interessante. O Mas temos também inserções de dramatização, documentário é a expressão que mais se destaca a busca por diferentes ângulos de imagem, a dentre os filmes criados. É como se eles utilização de narração, do humor e de outros estivessem utilizando o cinema para investigar elementos da linguagem audiovisual, criando os fatos que os rodeiam, para expor suas um produto rico de forma e significado. Esse preocupações e propor soluções para o empenho em trazer elementos diferenciadores conturbado mundo em que vivem. Assim, se permeia toda a produção vista nas oficinas. E temos aqui um recorte sobre o desemprego por mais que algumas vezes a qualidade técnica entre os moradores de favelas, é um indício do esteja aquém do que gostaríamos de ver, é tipo de assunto que os preocupa, estando eles reconfortante saber que temos jovens dispostos próprios ingressando no mercado de trabalho. a experimentar, a expor sua realidade, a buscar Um fenômeno importante desse e de muitos aquilo que a câmera precisa ver. Se o futuro do outros filmes realizados nas oficinas é que eles cinema está nas mãos (e nos olhos) deles, não vão além da linguagem documental comum. poderia estar melhor. Temos entrevistas com personagens que “Oferenda”, por Brunno Schiavon O filme-oferenda Como registro etnográfico da cerimônia dedicada a Iemanjá, “Oferenda” tem pouca força. O que vemos na primeira metade do filme são imagens batidas do ritual filmadas sem nenhuma vaidade estética e com pegada realista (planos longos e fixos). Também se evita olhares próximos; não há interesse em se aproximar dos fiéis, buscar particularidades, histórias ou significados das relação espirituais que ali se estabelecem. Observamos tudo à distância – a preparação dos trajes, as preces, as danças e as oferendas. Porém, na metade, há uma surpresa. Em um corte para dentro da sala de edição, vemos a diretora em frente ao computador finalizando seu filme. Nessa troca, do documentário expositivo para o autorreflexivo, sentimos que uma discussão mais densa sobre o próprio processo de realização do filme está prestes a começar. Mas fica devendo. O que se segue é apenas uma explicação simplista sobre os motivos (todos pessoais) que a levaram a fazer o filme e, no meio do processo, dedicá-lo fisicamente (em forma de DVD) como presente a Iemanjá. Temos um filme-oferenda. Além da sacada, é inegável que haja uma certa beleza singela no ato de oferecer um filme a Iemanjá. No entanto, fazer da experiência parte do próprio filme pode soar um pouco exibicionista e umbilical. Afinal, o que veio primeiro: a vontade de fazer a oferenda, ou a necessidade de filmá-la e exibi-la? Mesmo alternando para a primeira pessoa, por não se aprofundar nessas questões e na relação afetiva da diretora com o tema, o que se oferece para o espectador é um filme sem vida. Oferenda, de Ana Bárbara Ramos Mostra Brasil 04 – Brasil (PB), 17’, cor, vídeo, 2011 7 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Actus”, por Marcelo Félix Gravando a cena Em “Actus”, somos surpreendidos por um exercício de metalinguagem que propõe uma reflexão sobre a natureza e a forma de se gravar uma cena para um filme. Acompanhamos a discussão de um casal à mesa, e percebemos Actus, de Kika Nicolela então que a cena é cíclica. A partir disso, temos Panorama Paulista 01 – Brasil (SP), 16’, cor, vídeo, 2010 outras formas de ver o material bruto. A mulher diz ao marido que o bolo vai estragar. Ele não está preocupado, continua a trabalhar está estragado e começa a pintar a própria mão de em sua máquina. A mulher insiste, ao que ele vermelho. E tudo recomeça sem cortes, no mesmo retruca que só gosta de bolo quente. Ela se irrita, plano-sequência. ele coloca o bolo no microondas, e o queima. Ela Com essa situação absurda, percebemos que o que reclama das muitas opções de esmalte vermelho, ele está realmente em foco é a forma. E esta se altera a diz a ela para usar o preto; ela então grita que esse cada vez que passamos por um ciclo, como a simular as mudanças pelas quais uma cena pode passar até o “take” final. Seja em relação ao enquadramento – que, aberto, se aproxima de seus personagens – e aos tons avermelhados de luz que se alteram, ou à quebra da quarta parede, ao mostrar toda a equipe de filmagem por trás da câmera. Ações tão banais, mas que refeitas várias vezes ganham força e nos mostram pequenos detalhes em cada momento, ou as expressões de um ator que em outro enquadramento não pudemos perceber. Um exercício que funciona tanto para o ator quanto para o diretor, que podem tirar a prova de seus trabalhos, assim como a equipe, que pode perceber o que está certo e o que precisa ser melhorado nas diversas áreas que compõe uma produção. Longe de ser mero exercício estético, propondo pensarmos como uma cena é filmada em vários “takes” até o melhor resultado, o filme ainda consegue criar certa tensão por nos levar a acreditar que algo vai acontecer ao final, sem deixar de ser fiel à lógica de uma gravação na qual o corte é o final derradeiro. “El Mundo de Raúl”, por André Almeida “A Redação”, por Gabriel Ribeiro O prazer de observar Criatividade e beleza “O Mundo de Raúl” é um filme ousado. Não tanto A página em branco é, ao mesmo tempo, um lugar cheio de possibilidades e na forma, como o adjetivo geralmente é usado, mas uma intimidação para a criatividade. Para Andréa Midori Simão, uma suposta no conteúdo, de uma coragem raramente vista. O experiência desagradável com esse encontro metafórico em sua infância levou-a curta narra a história de “um homem bom”, a tirar um zero. Mas também a ter uma ideia diferente que, alguns anos depois, trabalhador, respeitado em sua cidade, que cuida da lhe serviria de referência para escrever o roteiro magnífico de “A Redação”. casa e da mãe doente. A empatia é imediata com Ela pensa “... e se eu escrevesse uma redação sobre escrever uma redação”, a esse personagem aparentemente típico. No entanto, básica metalinguagem. Passando para o audiovisual, contudo, se tornou um aos poucos Raúl revela sua segunda face, aquela ousado retrato de sua vida amorosa, familiar e profissional, com diversas que esconde de sua mãe e de todos de sua vila. camadas e diferentes linguagens, como a do documentário, a da ficção e a do Ele é um “voyeur”, e se excita observando mulheres making off. – de preferência, jovens – em suas atividades O filme é narrado por Andréa, a personagem que representa a roteirista na El Mundo de Raúl, de Jessica Rodriguez Sanchez rotineiras de casa, como lavar e varrer. Ele se história de maneira direta; ela, por sua vez, é representada por outra atriz em e Horizoe Garcia masturba vendo-as e gosta particularmente se elas uma reconstituição dos fatos. Este seria o terceiro curta feito por ela e seu Latinos 02 – Cuba, 20’ cor, vídeo, 2010 o veem fazendo. O choque no espectador cresce à namorado, Thiago (codiretor do filme), e também o que faria eles se separarem medida que Raúl dá detalhes de sua estranha tara. devido a uma leitura “errada” dele sobre a forma como ela o via. Há também Após um tempo, o desconforto chega a ser físico, imagens de depoimentos do pai de Andréa, figura importante em sua vida, fazendo-nos mexer na cadeira. comentando sobre as suas histórias, os filmes da A força do filme vem justamente do fato de se dar voz a esse homem que, em filha e a sua separação. qualquer outra situação, seria considerado louco ou perturbado. A familiaridade Difícil de entender? Talvez, no início. Porém, a inicial e a constante vergonha de Raúl pelos seus atos nos mostram que estamos maneira como as passagens ilustrativas “ficcionais” diante de uma pessoa comum, consciente do que faz, que “não sabe por que é são montadas e a explicação da prerrogativa que assim”, mas que não consegue se controlar – “é mais forte do que ele”. comentei previamente tornam as coisas mais O filme é subjetivo, não levanta nenhuma bandeira, apenas dá voz a alguém que claras. Para ajudar no entendimento, ainda há não a teria de outra forma. Há um forte questionamento dos limites dos desejos toda a construção da arte e da pós-produção. humanos e do autocontrole por parte do espectador. Tais questionamentos não O que precisamos captar é o que sobressai na poderiam se dar senão pelo cinema, arte “voyeurista” por excelência. junção das duas histórias. O amor, em relações A Redação, de Andréa Midori Simão e Ao final, o que fica são inquietações onde outrora havia certezas. Nós, sem nos que em princípio não deram certo e que não Thiago Faelli darmos conta, assumimos a posição de “voyeurs”; ficamos com a sensação de precisariam ter dado, até onde é registrado, pois, Panorama Paulista 01 – Brasil (SP), 25’, cor, pegos no flagra, como Raúl se masturbando com suas mulheres. No entanto, a diferentemente de um filme, não tiveram um fim. vídeo, 2011 sensação aqui não é nem um pouco excitante. Pelo menos no caso de uma delas. 8 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Taba”, por Beatriz Sperandelli Relação de estranhamento As cenas iniciais dos grafites que representam o corpo – e mais marcadamente rostos e olhares – nos muros de uma cidade precária, e uma câmera que observa o movimento banal de sujeitos e animais conferem àquela arquitetura destruída características humanas, e uma ideia de que a cidade, o inanimado presente, é vivo e nos observa sem que seja notado. O documentário utiliza na maioria do tempo uma câmera em recuo da realidade, uma câmera estática que pretende apenas registrar o que acontece sem interferir na realidade do mundo que se apresenta diante dela. Uma câmera que espreita as relações entre os seres humanos e o que ele próprio produz. Para tanto, há uma composição dentro das cenas que busca nos momentos banais dos sujeitos em seu cotidiano uma relação com os grafites nos muros da cidade, “outdoors”, manequins, bonecos. Essa relação é de estranhamento entre a realidade viva – os indivíduos – e uma realidade muda e parada – as representações, que mesmo assim são vivas –, porque ambas coexistem. Mas o modo desatento e indiferente dos transeuntes em relação à câmera e a essas representações cria uma noção de Taba, de Marcos Pimentel alienação perante suas próprias Mostra Brasil 06 – Brasil (MG), 16’, cor, vidas e o que os cerca, e sugere 35mm, 2010 muitas vezes a sensação de “voyeurismo” daquela presença imagética marcante. Os indivíduos parecem não ter consciência da força do que eles próprios criam como representação de si e, assim, a representação ganha mais força que o representado. O documentário mostra o lado degradante do embate do ser humano com o que ele produz, e que se percebe nas cenas de agressividade da arquitetura urbana, a segurança que cerceia a liberdade, a poluição visual, o lixo em toda a parte, lugares abandonados e destruídos, moradores de rua esquecidos em qualquer lugar. As representações se materializam em lugares da cidade e no próprio corpo humano. Mesmo naquela aparente imobilidade do que foi produzido, há significados latentes e tão fortes que existem por si só e também coexistem. “Ella y Todo lo Otro”, por Thaiana Bitencourt Sincero e despretensioso O mais encantador em filmes como “Ela e Tudo Mais” é a sua sinceridade e simplicidade expostas sem medo, escancaradas de uma forma tão despojada que a conexão imediata feita com o espectador torna-se algo inegável. Ouso dizer aqui que tal fato se dá não apenas pela identificação com o público jovem e seus devaneios em relação aos tais romances contemporâneos, mas também – e talvez principalmente – por passar bem longe de algo pretensioso. Quem nunca teve um primeiro encontro ruim? Criou expectativas com alguém ou mesmo se deixou levar por uma conversa com divagações sem o menor sentido? Em uma história moldada por uma estrutura meio quebra-cabeça, os realizadores Damián Vicente e Rodrigo Lappado contam como uma sucessão de acontecimentos banais entre um rapaz e uma garota irá direcionálos a um futuro primeiro encontro, podendo este ser bem sucedido ou não. Durante todo o filme, tive a sensação de permear por duas linhas narrativas completamente diferentes, cada uma delas com seus fragmentos únicos e inteligentes sacadas. E estes, quando trabalhados em um denominador comum e organizados dentro de nossas cabeças, remontam uma única comédia Ella y todo lo otro, de Rodrigo Lappado e Damián Vicente romântica com Latinos 01 – Uruguai, 6’, cor, vídeo, 2011 começo, meio e fim, dando-nos uma nova percepção para o filme e a inexplicável vontade de querer assistir a ele novamente. Além da estrutura divertida, a espontaneidade torna-se um fator contribuinte para que exista a troca entre realidade e ficção. Dessa forma, muitos se encontram em diferentes pontos do filme, que consegue por sua vez arrancar gargalhadas do público durante seus curtos seis minutos. Para mim, são filmes assim que nos mostram a existência de uma possível nova geração de jovens realizadores, despretensiosos, que não extrapolam seus limites ou tentam surpreender o público de forma alegórica. Ao final da sessão, tive a oportunidade de trocar algumas palavras com os dois e confirmar assim meu pensamento inicial: Damián e Rodrigo colocam sua própria identidade em um roteiro, dirigem com precisão e sem grandes firulas. Simples, sagazes, com vontade de fazer filmes e contar histórias, dessas que vão fazer você se lembrar dos momentos mais engraçados e constrangedores da sua vida. “A Dama do Peixoto”, por Amanda Castro Quem é essa mulher? Ela anda de salto alto, é bonita, está sempre bem vestida, pinta suas unhas todos os dias, cuida dos animais, não atrapalha a vizinhança, é amiga de todos, só é mal educada com aqueles que podem vir a perturbar sua paz. Tem sempre uma mala ao seu lado e há um imaginário imenso que cerca a figura de Elizete Regina Alvares, uma moradora de rua que vive no bairro do Peixoto. Onze minutos é tempo suficiente para provocar a sensação no espectador de que, quanto mais conhecemos nossa personagem, menos sabemos sobre ela, e dessa forma estabelecer as linhas incertas sobre as quais o documentário se desenvolve. Ela não se apresenta, é tímida frente às câmeras. Quem é a mulher que os moradores apresentam? Não vemos sua imagem, ouvimos apenas depoimentos a seu respeito. Não sabemos quem fala, só vemos imagens do bairro, uma ambientação tranquila e sempre pacificadora que nos faz acreditar que Elizete não é apenas uma personagem. Ela é parte integrante do espaço que frequenta. Não é uma personagem individual, embora seja única; ela é mais que nosso assunto do documentário, ela é parte da criação do imaginário das pessoas que vivem no Peixoto. Acima de tudo, ela é real. A Dama do Peixoto, de Douglas Soares e Allan Ribeiro Mostra Brasil 05 – Brasil (RJ), 11’, cor, 35mm, 2011 9 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Meu Barraco é na Favela”, por Isabela Maia “Territorio”, por Fábio Santos O policial também é trabalhador Sair da rotina é bom ou ruim? favelas? Nos últimos anos, o circuito audiovisual brasileiro Por possuir uma tradição infantil, a animação, ao tem sentido muito mais a presença da imagem da retratar uma realidade extremamente dura, pobreza, da violência e da favela, graças a uma provoca um desconforto, um mal-estar, um onda de “retorno à realidade” que vem com a estranhamento. O choque se dá pelo contraste de retomada – falando muito resumidamente sobre se verem imagens tão violentas um assunto por vezes em desenhos tão simples e polêmico. Com isso em coloridos, que poderiam mente, torna-se perfeitamente ter sido interessante ver concebidos por uma criança. produções como “Meu Dessa forma, o filme denuncia Barraco é na Favela”, um tipo de abuso de de Márcio Nogueira. autoridade e despreparo da Em uma estrutura de classe policial no trato com os videoclipe, o curta fala cidadãos, principalmente de sobre a realidade de baixa renda. O policial diz que um morador de favela, também é trabalhador, e então que é “confundido” Meu Barraco é na Favela, de Márcio Nogueira fica a questão: de quem é a com bandido e não KinoOikos - Brasil (RJ), 4’, cor, vídeo, 2011 culpa? De um governo que “dá possui documentos O chileno “Território” começa com um pequeno plano-sequência que pautará, até o fim, todo o seu ritmo. O filme mostra o cotidiano de Alfonso, um pai de família que vive uma vida simples, de maneira calada e supermonótona, como empregado de uma pousada. Ao receber um jovem hóspede, ele começa a perceber que sua vida irá sair da rotina. Isso será bom ou ruim? Os diretores Ignacio Arnold e Nimrod Amitai se utilizam do ritmo lento para nos fazer sentir, junto com Alfonso, toda a sua frustração na vida, sua falta de habilidade com a filha e com a esposa. Já com as atitudes do hóspede, os realizadores fazem com que nós também possamos compreender em parte as dores de Alfonso, já que não somos Alfonso para compreender suas dores por inteiro. “Território” trabalha de maneira magnífica com o tempo e com espaço; sabe perfeitamente nos engolir dentro de seu clima frio e angustiante, que aos poucos vai sendo quebrado até que se alcance toda sua magnitude na catarse final. De maneira tão sutil quanto o vento ao balançar uma rosa com sua brisa, ele nos mostra que até mesmo na mais enfadonha forma de se viver é possível quebrar a rotina. Assim, tira de nossa face um sorriso Territorio, de Nimrod Amitai e Ignacio Arnold honesto e inocente. Latinos 03 - Chile, 13’, cor, vídeo, 2010 para provar o contrário e nem dinheiro para se defender, como diz a própria letra da música. Não é um caso isolado; o ritmo e o desfecho da obra denotam a circularidade do cotidiano da população da qual esse personagem faz parte. Quantas vezes isso já se repetiu? Com quantas pessoas? Em quantas as ordens” e permite que a situação se mantenha? De uma tradição de violência que se perpetua de ambos os lados, em resposta à outra? Já não fugiu do controle? E o mais importante: quem sofre mais com isso? Certamente, quem não tem o tal do “dinheiro pra se defender”. “Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo”, por Fernando Catto Cão da depressão Quando você é abandonado pela única pessoa que persiste em dar sentido à sua vida, o que lhe resta? O sucesso da animação gaúcha “Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo” em diversos festivais justifica-se pela provável identificação instantânea do espectador com o homem-cão retratado. Por meio de imagens fortes e com carga metafórica impactante, em contraste com a estética suave de desenho animado infantil, o filme é uma rica fábula sobre o homem urbano contemporâneo. A escolha de um animal domesticado e manso para representar o ser humano aponta para um possível diálogo com a ideia de “morte do sujeito”, ou seja, a consciência e aceitação de que o sujeito é fruto de uma realidade construída. O fim, como com o 10 coração – que não cabe mais no corpo – e o irônico @caodadepressao, cérebro, do qual não precisa para exercer sua personagem com quase função robotizada. 120 mil seguidores no Quando volta para o lar, encontra-se twitter, não tem como bombardeado pela cidade, que permeia o curta ser feliz. através de um áudio incômodo e bem feito. Na No curta, o personagem Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo, de Rodrigo John Mostra Brasil 06 – Brasil (RS), 7’, cor, vídeo 2011 tentativa de melhorar, devora suas partes vitais central é deixado pela – se consome. Se antes cantava na chuva, agora cadela amada e então dança no sangue – sangue seu que evapora e, nada lhe sobra, já que em junto a muitos outros corações na mesma situação, se precipita sobre cabeças si próprio não é capaz de encontrar nada que lhe dê segurança ou que o faça sentir vivo. Passa então vazias, até alagar e afogar. “As coisas ficam muito boas quando a gente esquece”, escreveu Lupicínio a uma vida triste, sem ter para onde fugir. Na Rodrigues, autor da canção “Loucura”, que norteia o filme. Mas, como tentativa de escape, abre a janela-mídia de sua casa e o que encontra é o apocalipse gradativo. Vai esquecer a si mesmo? Só arrancando o próprio sexo, ouvidos e olhos. E então a vida se torna nula, inexistente – até que surja um novo amor. ao trabalho por obrigação, mas deixa em casa o ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Oma”, por Alexandre Wahrhaftig Encontros mediados Apesar de estar sempre com a câmera muito próxima do rosto de Gerda Wahrmann, há uma distância intransponível entre o personagem-diretor Michael Wahrmann e sua avó imigrante. O abismo entre os dois se dá em inúmeros aspectos, dos quais os mais gritantes seriam as diferentes idades e nacionalidades de ambos. O filme constrói, com graça, repetições de desentendimentos entre os dois, mas que não vamos exemplificar aqui. Vale mais falarmos de uma outra distância, de um outro desentendimento, que perpassa todos encontros que “Oma” nos apresenta. Ao produzir imagens de sua avó, Michel assume uma posição distanciada. Ele é sujeito e ela, objeto: uma relação quase de dominação. O microfone, os reflexos e o movimento da câmera nos revelam o Michael-personagem da filmagem, e o trazem para dentro do jogo, mas sua imagem, que aparece como por entre frestas, não se compara à imagem de Gerda, recorrentemente em primeiro plano, como que investigada sob uma lupa. A distância se agrava Gerda posa e atua ao percebermos que ela está para Michel. ficando cega – cresce o Ela resiste na medida do domínio do olhar de Michel. possível, contribuindo Entretanto, não estamos no ainda mais para a graça terreno de uma relação fascista- Oma, de Michael Wahrmann Mostra Brasil 02 – Brasil (SP) / Uruguai, 22’, do jogo. A tensão entre patológica entre nossos dois p&b, vídeo, 2011 o neto e a avó, que já personagens. Longe disso. perpassa inúmeras A única maneira pela qual questões – língua alemã, imigração, décadas de Michael consegue se aproximar de sua avó é idade , ganha, com o processo da filmagem, trabalhando em seu registro. Para refletir sobre outros desdobramentos. No fundo, é a filmagem o vazio que o separa da avó e se aproximar dela, que constrói os encontros entre eles. Encontros é preciso criar uma outra separação: a distância sempre mediados (pelo aparato), mas não, por da filmagem. E a unilateralidade da relação isso, menos verdadeiros. sujeito-objeto ganha outras dimensões conforme “Qual Queijo Você Quer?”, por Dandara Bacelar “Cachoeira”, por Diego Bitencourt Angústia e solidão Contraste entre duas visões Um tema recorrente quando o cinema se propõe a retratar idosos é falar do cotidiano deles e de como esse dia-a-dia é opressor. Em “Qual Queijo Você Quer?”, da diretora Cintia Dommit Bittar, uma única frase desencadeia todos os problemas dos dois personagens principais, que deixaram de ser discutidos com o tempo. Uma mulher que, após anos lidando com o cotidiano, os sonhos não realizados, a falta de planos para o futuro e a sensação de ninho vazio, se rebela e procura entender o porquê de sua vida ser somente um jogo de truco à noite com o marido e o porquê da sua insatisfação. Com diálogos carregados de angústia e desagrado, e com experientes atores, o filme consegue passar a solidão do casal de idosos e o quanto o cotidiano os afastou. A montagem, que soube contrastar os diálogos fervorosos com momentos de silêncio extremos, conseguiu dar o clima de solidão em que esse casal, como tantos outros casais, vive. Intensifica e nos mostra como a vida pode ser amarga e cruel, mostrando situações em que até a visita dos filhos no domingo se torna rotina. A sensação de ninho vazio é intensa, o cotidiano acaba com os planos feitos durante a vida e o presente dói por não ser nem de perto o que foi imaginado no passado. O filme também se destaca pela preocupação com os detalhes do cenário e o estudo das cores, que concordou com o roteiro, reforçando o afastamento gradual em que esses idosos vivem. Encontram-se no filme referências ao melodrama, confirmado por sua trilha, e pelas Qual Queijo Você Quer?, de situações criadas no roteiro, lembrando Cíntia Domit Bittar um pouco o cineasta espanhol Pedro Mostra Brasil 01 – Brasil (SC), 11’, Almodóvar. cor, vídeo, 2011 indígena, tendo os mesmos problemas que Mesclando as linguagens do documentário e da assolam o restante do mundo em seus vários ficção, “Cachoeira” é um filme sobre o embate embates de preservação das culturas nacionais e entre a tradição e a modernidade, o velho e o tradições frente a uma humanidade de tendência novo, e o progressivo esfacelamento de uma irrefreavelmente globalizante. cultura. Os rituais praticados pelos jovens índios A mescla de documentário com ficção casa na beira do Rio Negro, no Amazonas, tem perfeitamente com a oposição entre as duas visões. justamente essa intercalação/oposição: temos o Os anciãos aparecem documentalmente, rock e a beberagem, símbolos da penetração da defensores de uma tradição organizada e refletida, cultura urbana entre eles, mas também o caráter enquanto as imagens místico do ritual. dos mais jovens são O espanto e a majoritariamente incredulidade dos encenadas, em cenas mais velhos perante a rápidas, mostrando a tais rituais, que se busca suicida por um configuram na morte prazer instável, de seus praticantes, fornecendo uma têm paralelo com uma oposição de geração que se vê comportamentos, em fracassando ao tentar que a forma conta uma passar suas tradições Cachoeira, de Sergio J. Andrade história nas entrelinhas aos mais novos e Mostra Brasil 07 – Brasil (AM), 13’, cor, 35mm, 2010 do discurso fílmico. observando essas Seu protagonista corre mesmas tradições, ao longo do curta em dependentes de uma busca de novas respostas, que ele crê não haver na cultura oral e hereditária, morrerem. tradição. Contudo, seu caminho é traiçoeiro e O filme tem o poder de incomodar por nos tomado pela morte de seus amigos. A fuga da mostrar o que seria o último resquício de uma realidade cobra seu preço. cultura intocada pela modernidade, a cultura 11 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Los Crímenes”, por Matheus Rufino Tentativa frustrada de espetacularização Diante da tendência contemporânea de convergência midiática e da hibridização dos meios, o espectador, “cansado” do comportamento passivo e da leitura linear consolidados secularmente pelos americanos, se viu presenteado pelo que vem se denominando “narrativas complexas”. A ideia é que a imagem linear do integral dê lugar à livreassociação do espectador. Complexidade. Interatividade. Videogame. Assim, a mesma Hollywood tem produzido uma série de filmes baseados nesse tipo de construção. Filmes estritamente narrativos, que preenchem sua escassez em relação à abordagem e à problematização de temas com a masturbação tecnológica de efeitos especiais. Histórias que são “verdadeiros” quebra-cabeças, cheios de idas e vindas no tempo, sempre envoltas por certo “mistério” e desvendamento, por questões “em aberto”, sendo que o filme inteiro serve senão para que, no fim, com a “viradinha final” (câncer da publicidade), o espectador fique espantado com a inteligência e a capacidade de manipulação narrativa do realizador, e para que o realizador fique espantado com a inteligência e a capacidade de manipulação narrativa dele mesmo. Assim se constrói o argentino “Os Crimes”, de Santiago Esteves. “Um policial conta a história de um caso antigo”, informa a sinopse no catálogo do festival. “Uma jovem viúva, um executivo insone, um cavalo deixado para fora do estábulo. A cidade como cenário de uma armadilha.” Uma tentativa frustrada de espetacularizar uma história policial banal. Los Crímenes, de Santiago Esteves Latinos 04 - Argentina, 19’, cor, vídeo 2011 Depois do segundo plano do filme, o assassínio no café, que possui um frescor bastante interessante; o resto é previsibilidade ingênua e infantil. Uma história (ainda que desgastada) com fôlego para render um longa-metragem é comprimida verborragicamente em 20 minutos. As imagens ficam a serviço de ilustrar uma fala ou outra. “Close-up” no charme presente na inteligência dos bandidos que assaltam o banco. A face da mulher fatal que engana a todos até o último segundo da projeção. Fim. “Rivellino”, por Rodrigo Oliveira “Sala de Milagres”, por Luiza Conde Paixão desmedida Para consertar o “rio de buracos” Mascarenhas em relação a Jonas desaparecem, O que move grande parte dos seres humanos do cedendo espaço às suas histórias de memória gênero masculino neste país é o futebol. afetiva com o craque. Independente de etnia, religião e classe social, o interesse por esse esporte afeta homens diferentes, As exaltações do discurso, o tom de voz, a empolgação na fala são alguns dos artifícios mas de uma maneira muito parecida. Em encontrados pelo diretor para retratar a “Rivellino”, o que poderia terminar em um atentado acaba em uma discussão sobre o ídolo do importância que esse esporte tem para o povo em nosso país. Além, é claro, do poder que somente esporte que cede seu nome ao título do curta. ele possui, conseguindo juntar a elite intelectual Jonas acaba de cumprir uma pena correspondente ao pouco favorecido. a uma década de privação “Eu também chorei de sua liberdade. Solto, ele quando ele foi pro decide procurar Fluminense”, diz o Dr. Mascarenhas, o promotor Mascarenhas, expondo a responsável pela sentença decepção após o ocorrido equivocada. O encontro em tempos idos. Desabafa ocorre durante uma com Jonas, esse que agora viagem de ônibus, com mais parece um colega de destino não informado. partida de gamão do que No início da história, a Rivellino, de Marcos Fábio Katudjian alguém que veio vingar-se. impressão que temos é de Panorama Paulista 04 – Brasil (SP), 16’, cor, Quem diria que o que o ex-detento, sem 35mm, 2011 Rivellino, ou melhor, o nenhum tipo de “curió das Laranjeiras”, o cerimônia, liquidará o “maloca”, o “Riva”, seria homem. Quando capaz de promover a paz – mesmo que descobrem que têm uma forte paixão em comum, momentânea – entre dois homens com um porém, o rumo da prosa muda. passado marcado. Em uma parada prevista no itinerário, eles “Rivellino” é um fiel retrato de uma paixão avistam o ex-jogador Rivellino e logo percebem desmedida. Realmente, o mundo nunca viu um que ele é um dos passageiros do ônibus. Após canhoto como esse cara. reconhecê-lo, o desconforto e o medo de Apesar de ter me parecido comum assistir no festival a curtas brasileiros que apresentam uma mistura de documentário com ficção, esse foi um dos únicos em que as duas partes se confundem. O ficcional parece documental. A voz que se sobrepõe às imagens, fazendo rezas e apelos, parece ter sido pescada no mar daquela gente que faz sempre os mesmos pedidos. São requeridos homens bons, bonitos e muito ricos, um dos milagres que o título nos introduz. Além desses pedidos, a voz conversa com “Bom Jesus da Lapa”, como alguém muito próximo, um companheiro. Agradece, conta, pede. Enquanto isso, as imagens vão nos mostrando a realidade do homem que fala, indo do todo para o particular, explicando a razão pela qual cada pessoa vai, e que é sempre um motivo pessoal. Como se fosse através de seus olhos, vemos os bailes, as ruas, as praias. A Bahia acontecendo e seus pensamentos voltados para os seus próprios problemas e a sua dor, que o levam a apelar para uma carta a Jesus todo ano, pois é a única saída que existe. Depois de cumprir o papel de fiel e dedicar horas à reza, é hora de festejar; esquecem-se os problemas e dança-se o forró, aproveita-se o mar e sol. Tão inalcançável como ser atendido por entidades superiores é ser atendido pelo governador da Bahia, pedindo melhoras em uma estrada, o que os coloca quase no mesmo patamar. Ambos são convocados a consertar o “rio de buracos”, da vida e da estrada, e são tratados com o mesmo respeito e com uma igual superioridade – tornando, mais uma vez, questionáveis a fé e os motivos religiosos particulares de cada um. Não importa a quem pedir, mas os Sala de Milagres, de Marília Hughes problemas precisam ser resolvidos, e a e Cláudio Marques única forma é, respeitosamente, pedir Mostra Brasil 08 – Brasil (BA), 13’, cor, um milagre e esperar. vídeo, 2011 12 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Acercadacana”, por Lucila Maia “Jibóia”, por Brunno Schiavon Dona Francisca Coragem Melobrega O documentário começa com a entrevista de um rapaz no interior do carro. Conta a história de famílias que foram perdendo seus sítios em Pernambuco por causa da valorização do etanol e da expansão do latifúndio. Até esse momento, são informações comuns, pois vemos muitas injustiças nos meios de comunicação. Ficamos indignados, e infelizmente acostumados com isso, mesmo sabendo que essas notícias são manipuladas por esses meios. Contudo, existem grandes diferenças entre um filme e as notícias dos meios de comunicação. O filme laça o espectador quando o narrador começa a falar de uma mulher, a personagem principal desse enredo. Todas as famílias tiveram que deixar sua terra por valores irrisórios. As únicas pessoas que não saíram foram Dona Maria Francisca e sua família. O filme nos leva para conhecer essa figura simples e verdadeira. O diretor e sua equipe mostram essa beleza crua, a fibra dessa mulher sem medo de enfrentar qualquer um que desrespeite o que lhe é de direito. Se nós tivéssemos metade dessa coragem, com certeza o nosso país seria completamente diferente. Na casa de Dona Francisca, vamos entendendo sua luta, Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros observando sua família, Mostra Brasil 09 – Brasil (PE), 19’, cor, 35mm, 2010 seus objetos cuidadosamente retratados na construção da linguagem cinematográfica. Vemos cenas iluminadas com luz de lamparina e recortes delicados de seus filhos. Sua espontaneidade. De repente, uma agitação. Dona Francisca rapidamente sai da casa, a câmera na mão a acompanha. Parece um guarda florestal. Ela diz para ele que está tudo bem, mas, quando ele vê a câmera filmando, dá no pé. D. Francisca vai atrás dele e a equipe de filmagem junto. A coragem é expandida. É incrível. Uma noite, a filha registra as imagens de um incêndio na mata provocado pelos latifundiários. Dona Francisca delata a ocorrência no mesmo instante. Na conversa após a apresentação do filme no festival, ficamos sabendo que o diretor teve a sabedoria de deixar a câmera com a menina durante dois meses. D. Francisca já foi ameaçada de morte várias vezes. Felizmente, está viva – e temos artistas no cinema que transmitem o valor que pode ter um ser humano. “Ovos de Dinossauro na Sala de Estar”, por Gilberto Xis Retroalimentação cinematográfica De caráter documental, “Ovos de Dinossauro na Sala de Estar” mostra de uma maneira dinâmica e bem humorada como é viva, presente e conservada a memória da personagem, dona Ragnhild Borgomanero, com relação ao seu falecido esposo, Guido Borgomanero. A senhora Ragnhild faz uso de todos os recursos que lhe são possibilitados pela tecnologia atual para, usando o cinema, manter vivo para si o espírito e o amor por seu marido. Tem-se, parece, algo que transcende a metalinguagem, vai além, está mais para algo como uma retroalimentação cinematográfica: a necessidade (ou a oportunidade) de o audiovisual apresentar-se da maneira mais particular possível para a mais pública, e tudo somente numa única via reta, a tela da sala de exibição. Mais um elemento que corrobora esse pensamento é a forma como o diretor Rafael Urban mostra a fala da personagem, com a protagonista apresentando os seus relatos em sequências que são trocadas em velocidade análoga aos quadros das fotos que a própria monta em seus vídeos. Há aqui algo muito interessante que denota a interrelação que o cinema proporcionou para diversas pessoas, e não apenas as vivas, ou seja, atendeu, satisfez as necessidades, os desejos de falar e de ser ouvido tanto dos realizadores para com a entrevistada, como desta para com o público. “Ovos de Dinossauro na Sala de Estar”, como o título sugere, eleva ao mesmo nível passado e presente, sendo, paradoxalmente, um registro para o futuro. Por fim, cabe uma pergunta: quem sabe o resultado do curta tenha inspirado a própria senhora Ragnhild a tornar-se, ela própria, divulgadora dos seus Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, trabalhos pessoais, visto que já é, como apresentado, de Rafael Urban Mostra Brasil 03 – Brasil (PR), 12’, cor, vídeo 2011 uma realizadora? Jibóia, de Rafael Lessa Mostra Brasil 10 – Brasil (SP), 17’, cor, 35mm, 2011 Quarentona, cabeleireira de um salão furreca na rua Augusta, lésbica, ex-condenada, e ainda por cima pedófila. Nem mesmo despejando todas essas condições em sua protagonista Aurora, “Jibóia” consegue fugir de ser raso. No entanto, é no entorno da relação de Aurora com Greice Quéli, de apenas 14 anos, que o filme se desenrola e tenta, de maneira excessiva e brega, comover o espectador. Situado em terreno delicado, o curta é ingênuo e não se compromete com as questões que o tocam: as sociais (do espaço), sexuais (das personagens) e éticas (do próprio ato de filmar). Logo, estão presentes ali apenas como cenário, mero contexto. Sua atenção está voltada somente para Aurora. Filma-se tudo do seu ponto de vista; suas emoções afetam o curta. Melhor exemplo disso é a cena em que Aurora se distrai e acaba cortando sua cliente ao observar que Greice massageia seus seios com os pés de outro cliente. Contudo, isso levado ao extremo acaba causando desconforto, pois se Aurora é pedófila e obcecada pela menina, o filme acaba abusando da nudez de Greice, que em várias cenas acaba pagando peitinho (até em primeiríssimo plano). Quanto ao drama da protagonista, o espectador pouco se envolve devido aos excessos intencionais de roteiro e linguagem. Aposta-se demais nas singularidades e bizarrices de Aurora. Nesse sentido, o filme dá um tiro no próprio pé, pois, se tenta utilizar desses artifícios para causar comoção, acaba criando um abismo. No final das contas, o que resta de interessante é apenas a história narrada pelo radialista no início, sobre a jiboia que comeu uma criança. 13 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “O Barraco e o Menino”, por Rafael Marcelino Em zona cinzenta É cinema de poesia. Não digo isso só por conta da voz onisciente que narra em versos a trajetória do protagonista. Temos aqui um filme todo construído em figuras de linguagem comuns ao mundo textual. Os personagens não falam por eles mesmos, o que reforça o caráter dado pelo poema, de que as figuras na frente da câmera cumprem uma função “metonímica, representando genericamente o tipo social do favelado e/ou do traficante de drogas. Há alguma coisa de Pasolini aqui. Os personagens não são indivíduos definidos, mas também não são meras caricaturas. O filme tem a sutileza de chegar até uma “zona cinzenta” na qual podemos quase “sentir” a singularidade dos personagens-símbolo. Em “O Barraco e o Menino”, não tocamos essa interioridade, mas fica a sensação de que seria O Barraco e o Menino, de Rodrigo Sousa & Sousa Mostra Brasil 10 – Brasil (SP), 7’, cor, vídeo, 2011 possível fazê-lo se tivesse outra duração, mais longa. Metáfora e montagem andam juntas, como em Eisenstein. Mais do que isso: a edição carrega em si, simultaneamente, a função elíptica que lhe é atribuída na narrativa clássica (menino como criança/corte/menino adolescente = passagem de tempo) e a função metafórica do choque de imagens comum ao realizador soviético (construção em blocos de brinquedo/corte/construção do barraco real = repetição de processo, “edificação” de projetos, talvez até de vida, que não se concluem). Voltemos a Eisenstein, criando um terceiro entendimento a partir de “colagem” entre duas imagens, de significados diversos quando isoladas. Associação de ideias, característica comum da poesia, que se faz pelas estrofes. Mesmo a poesia épica, de pretensões narrativas, fragmenta seu “relato maior, não só em nome da orientação do leitor (como os capítulos da prosa tradicional), mas para que esse leitor usufrua de experiências singulares, lendo o fragmento e o unindo a outro, mas também sentindo a força de sua relativa independência. Independência: essa palavra também pode iniciar uma condenação ao curta, sobretudo pelas limitações significativas que a voz externa ao momento da tomada oferece, tanto na relação entre atores e equipe quanto entre obra e público. A organização unívoca do discurso (já que os atores “não têm voz, literalmente), ao mesmo tempo em que dá liberdade aos corpos para agir, pode conotar certo autoritarismo. Uma hierarquização que chega ao público, “levado” pelo fluxo de ideias dadas pela voz. Mas creio que essas escolhas tenham sido soluções criativas (e francas, como uma brincadeira de polícia e ladrão) para que o conceito, rico, se sobreponha à simplicidade técnica. “Passeio de Família”, por Thaiana Bitencourt “Todo Silêncio me Incomoda”, por Rodrigo Ferro Olhar de fotógrafo curioso Peixes em aquários Confesso que por muito tempo acreditei que filmes embarcando em uma tentativa utópica de remontar dependiam muito mais de uma linha narrativa uma possível linha cronológica, repleta de densa e exposta do que da junção de belas imagens fragmentos imagéticos desconhecidos que foram para que uma boa história pudesse ser contada. Até amarelados pelo papel, mas que mesmo assim – e então, tinha a total certeza de que um começo, de uma maneira quase inexplicável – despertam meio e fim bem alinhados eram os principais certo saudosismo em quem as observa, mesmo que responsáveis por um filme conseguir tocar o este não tenha vivido o momento capturado. público. A preocupação se dá aqui Sendo assim, após a com o registro do quadro e exibição do curta de o que ele pode representar Maria Clara individualmente. Talvez Escobar, minhas esta seja a sua grande afirmações foram sacada: a capacidade de completamente criar um vínculo dissolvidas. Pela sentimental com o primeira vez pude espectador apenas por entender que nem imagens e sutis diferenças sempre a ficção de comportamento em Passeio de Família, de Maria Clara Escobar necessita da total seus personagens, Panorama Paulista 01 – Brasil (SP), 9’, cor, 35mm, 2010 exposição de um deixando que o mesmo enredo ou mesmo decida do que elas tratam, de uma verdade absoluta para que este seja criando sua própria percepção para o filme. absorvido. “Passeio de Família” funciona como o olhar de um O sentimento que se tem ao final da sessão é o fotógrafo curioso, pronto para imortalizar mesmo de abrir um álbum de fotografias e arriscar momentos únicos enquanto aventura-se em adivinhar o que cada uma das pessoas ali fez, viveu desvendar gestos e sorrisos, dando sua própria ou mesmo sentiu. Ou quem sabe ir até mais além, interpretação para uma possível nova história. O silêncio de fato incomoda, e incomoda tanto que preferimos ficar acomodados. O curta de Felipe Barros é simples, sem muita produção, porém com um profundo apelo significativo para com a vida, aquela que acontece ao nosso redor e que teimamos em não ver. Acabamos sempre presos no mesmo aquário, o aquário pessoal, o mental, o do comodismo. Filmado em uma das praias da Bahia, o curta é comovente a partir do momento em que percebemos o que aquilo tudo significa. E é tão simples como a vida, porém com uma complexidade que nem nós mesmos conseguimos distinguir. A ideia é simplesmente genial. Felipe pegou um aquário com um peixe dentro e colocou à beira-mar. Conforme a maré ia subindo, o peixe ficava cada vez mais perto de se livrar do pequeno espaço e ganhar o mar de assalto. Isso foi incrível, pois a relação que se cria com a vida é simplesmente impressionante. O peixe dentro do aquário representa cada vida que está presa em um pequeno espaço, seja ele qual for, e não consegue sair e ganhar o mundo por diversas razões. Medo de se perder na imensidão do mundo, de ficar sozinho – enfim, fica a critério do espectador. Será que nossas próprias limitações fazem com que sejamos o peixe? Essas e muitas outras questões foram levantadas na cabeça de cada pessoa que estava assistindo ao curta e, se essa era a ideia dos realizadores, parabéns, vocês conseguiram. E afinal, qual é o som do silêncio? O silêncio não existe ou existe apenas para cada um de nós? São inúmeras questões que me faço depois de ter visto esse belo curta, muito bem trabalhado desde o título até a pequena, porém inteligente produção. Mais uma vez, cineastas do Nordeste mostram como se faz. 14 Todo Silêncio me Incomoda, de Felipe Pereira Barros Mostra Brasil 10 – Brasil (BA), 5’, cor, vídeo, 2011 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Soy Tan Feliz”, por Marcelo Félix “Praça Walt Disney”, por Bruno Temóteo Felicidade e frustração Stonehenge nordestina Com planos extremamente belos, nos quais a câmera parece se esconder Composto por momentos de extrema para observar seus personagens, o filme investe nas expressões para sensibilidade, “Sou Tão Feliz” conta uma história investigar o que pode ser visto e descoberto em cada semblante. Percebemos de desejos contidos e incontidos. Percebemos o então a frustração de Bruno; com imagens desfocadas e sons sentimento de identificação estranhos, cria-se uma sensação de sublimação que se de Bruno ao observar seu desenvolve até o clímax deste conto. primo cortando o cabelo É um filme de pequenos gestos, mas significativos e com por meio do espelho. Temos imagens expressivas. Os irmãos vivazes que dançam não então um quadro delineado fazem parte da vida de Bruno. Percebemos isso quando a partir do olhar que desvela Camilo passeia com os primos e se interessa por uma santa suas intenções mais íntimas. Soy Tan Feliz, de Vladimir Durán na beira da estrada. O contexto da terra devastada como Em casa, a vontade de se Latinos 01 – Argentina / Colômbia, pano de fundo da história traz uma complexidade ainda aproximar cresce, assim 14’, cor, vídeo, 2011 maior para o drama. como a intenção de se Enquanto os primos correm um atrás do outro, uma relação parecer com o primo, que complicada se apresenta. O primo pede a Bruno que o avise vem levar Bruno e seu quando for cortar o cabelo, dando-lhe intimidade. Ele instiga Bruno, as irmão Camilo para a casa de campo. O primo brincadeiras se tornam carinhos que viram carícias íntimas por parte deste. conquista as crianças com suas brincadeiras A frustração irrompe quando Bruno é interrompido por seu primo, que lhe enquanto, diante do espelho, Bruno corta seu impõe um limite e o deixa no chão. Camilo observa tudo, Bruno se ajeita e próprio cabelo. Estão presentes novamente o não sabemos o que vai acontecer. Mas é como se a felicidade dependesse espelho e o desejo de ser aquilo que se deseja, desses pequenos momentos de carinho. sentimento tão forte e intrínseco ao protagonista. Quando um lugar, enraizado no meio da cidade, oferece as mais diferentes reflexões sobre a relação do homem com o espaço urbano, ele merece virar filme. E quando esse lugar se chama Walt Disney, é certeza de que algo ali está fora do lugar. Temos então um exemplar do tipo de curta no qual existe certa investigação e necessidade de resgate da memória de um espaço. Uma espécie de acerto de contas entre o realizador e seu objeto de estudo diante do público. Permeado por música alegre, momentos de humor e personagens “fofos”, “Praça Walt Disney” poderia ser uma alegre celebração do divertimento proporcionado por filmes que fizeram a história de muitas crianças (e por que não, adultos) durante os anos. Mas não há espaço para celebrar quando tantas disparidades são expostas na tela. Pequenos esquetes sobre os personagens que vivem e andam por ali nos levam a uma série de questões sobre a convivência do homem e do concreto: que tipos de transformação o espaço urbano sofreu com o passar dos tempos? Que tipo de intervenção o homem e sua presença impõem ao lugar? O que seria a Praça Walt Disney? Ao final, fica a impressão de que a praça é a representação maior de um mundo um tanto quanto confuso. Quase uma reprodução dos famosos subúrbios americanos, com seus grandes carros e caixotes de luxo, nos quais o homem que pouco tem mora ao lado do que tem muito. E continuamos girando em círculos; o tempo passa e nada saiu do lugar. Um colorido microcosmo da nação, logo ali, na cidade do Recife, com direito a seu próprio monumento em comemoração. Talvez a Praça Walt Disney seja mais um mistério da humanidade a ser iluminado. Parafraseando um momento de humor do filme, só posso imaginar estarmos diante de uma espécie de Stonehenge moderna. E nordestina. “Calma Monga, Calma”, por Gabriel Ribeiro Circo de aberrações conclusão sobre isso. E a monga continuaria Viaturas policiais, cinemas pornô, um anão e uma “macaca” atacando os atacando homens que, de uma maneira bizarra, pervertidos que lhe aparecem. Com um roteiro digno do cinema marginal, vêm ao encontro dela em busca de prazer, mas esses são os elementos importantes de “Calma Monga, Calma!”, um thriller que acabam encontrando a morte. regado a música brega, referências culturais e sátiras à sociedade recifense, Mesmo satírico e marginal, a linguagem do filme ou mesmo nacional. é convencional e bem executada. Destaque para a O filme acompanha a investigação policial de diversos assassinatos ocorridos cena do primeiro ataque da Monga em um nos cinemas de filmes adultos de Recife, ou “Hell-cife”, como é colocado. A cinema, percebido a partir das silhuetas de um principal suspeita é a Monga, uma mulher simiesca, repleta de pelos por casal assistindo a um filme trash todo o corpo e que se porta como um animal ao ser ao som de uma música latina abordada pelos homens. A quantidade de referências chorosa. explícitas no filme é gigantesca, desde as músicas e os Particularmente, acho Recife filmes que aparecem sendo projetados até os nomes de uma nova capital cultural em personagens. São tantas e tão diversas que às vezes não nosso país, talvez mais criativa do conseguimos acompanhar, principalmente se você não que São Paulo, nos meios é daquela região. musicais e cinematográficos. Ver Porém, as mensagens mais básicas do curta, se é que esse curta no festival foi uma elas realmente existem, são mais fáceis de perceber. agradável surpresa que me abriu Dentre elas, as sátiras aos programas de TV. Um, Calma Monga, Calma, de Petrônio os olhos para os filmes sensacionalista e popular; o outro, pseudo-intelectual, de Lorena produzidos tanto por Petrônio de com diversas “autoridades” falando do assunto sobre Mostra Brasil 05 – Brasil (PE), 18’, cor, Lorena como por outros autores óticas diversas como ciências, filosofia e sociologia. No 35mm, 2011 daquela cidade. fim, nada interessa; ninguém iria tirar nenhuma Praça Walt Disney, de Sergio Oliveira e Renata Pinheiro Mostra Brasil 08 – Brasil (PE), 21’, cor, 35mm, 2011 15 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “Ponto de Equilíbrio”, por Isabela Maia “A Fábula das Três Avós”, por Diego Bitencourt Os limites do suportável Jornada alegórica O curta “Ponto de Equilíbrio” coloca ao espectador questões incômodas. Tendo a cidade de São Paulo como cenário – mais especificamente a região da avenida Ibirapuera –, o filme contrapõe as áreas verdes e bucólicas encontradas no parque às cenas cinzentas e caóticas do trânsito paulistano, num clima de desconforto e suspense provocado pela trilha musical. A mesma duração de planos estáticos curiosamente denota tempos diferentes a esses dois cenários, trazendo o contraste entre eles ainda mais à tona. A sequência de abertura nos prepara para uma entrevista hipnotizante com Zé Mortadela, morador de rua que vive embaixo de um viaduto. O próprio “personagem” diz que não é alfabetizado, mas que um dos dons que possui é Ponto de Equilíbrio, Realização coletiva KinoOikos – Brasil (SP), 20’, cor, vídeo, 2011 falar, e não qualquer coisa, mas falar a verdade – e assim o é. Há praticamente uma ausência de cortes que envolve o espectador numa aura de realidade impressionante; a câmera poderia muito bem se camuflar nessa quase ausência de montagem, porém o discurso do indigente a revela a todo momento, ao clamar pelo que se “esconde” atrás dela. Dessa forma, os realizadores não ficam im(p) unes. Enquadrar Zé Mortadela e excluir-se do quadro foi uma escolha estética e ética, mas o rumo da fala e da encenação de Zé foge do controle. O poder dessa escolha poderia ter sido retomado na edição, por meio de cortes que retirassem ao máximo a presença dos entrevistadores. Mas quão mais interessante é o fato de que permanece essa esfera reflexiva e, arrisco, autocrítica? “Ponto de Equilíbrio” dá visibilidade a questões caras ao realizador, principalmente o documentarista: qual a função social e a relevância da obra que se está produzindo? Como se aborda e se cuida de um objeto tão delicado quanto o discurso de uma pessoa tão maltratada socialmente, sendo que quem faz e quem assiste possivelmente fazem parte desse mau trato? Como se portar diante da dor do outro? Nas palavras do próprio Zé Mortadela: “Essa entrevista que vocês tão fazendo aí... vai me ajudar em alguma coisa?” A fábula, volta e meia, acaba por retratar a fuga ou a tentativa de uma criança de absorver um fato traumático em sua vida utilizando o aspecto lúdico tão próprio da idade. Além de ter por muitas vezes essa característica, a própria história pode servir de alegoria para qualquer um de nós que a utilizemos para instruir uma criança, um de nossos filhos, primos ou irmãos com uma linguagem que se aproxime do mundo infantil, possuindo, assim, uma estrutura interna que se relaciona com a nossa experiência frente a esse tipo de narrativa. “A Fábula das Três Avós” se apropria dessa característica muito presente nesse tipo de história, ao narrar a trajetória da menina Natália – que, ao perder a mãe, recebe a visita de uma estranha criatura de nome A Fábula das Três Avós, Ora-Ora-Ora, auto-intitulado “Fadode Daniel Turini Madrinho”. O “Fado” guiará a garota para Panorama Paulista 03 – Brasil (SP), uma jornada em busca de suas três avós. A 17’, cor, 35mm, 2010 alegoria é muito clara, como deve ser em uma história do gênero; para tentar compreender e aplacar um pouco da dor que sente pela perda da mãe, Natália se envolverá e se identificará com cada uma das avós. As três exibem traços marcadamente maternos, como a Avó do Norte, que aparece de repente nos lugares, e a Avó do Sul, que só consegue falar quando se cala, tudo com um humor delicado e singelo. Belamente filmado e impecável na construção de seu mundo mágico, o filme consegue envolver o espectador apostando numa seara muito pouco explorada atualmente, o que lhe confere mais méritos ainda. Além do apuro visual e técnico, a beleza de suas locações e o cuidado na construção dos diálogos, “A Fábula das Três Avós” se destaca em relação às interpretações, na medida – algo difícil num gênero um tanto traiçoeiro para os atores como o fantástico. “Simiente”, por Fernando Catto Semente sa(n)grada Ao deparar-se com o curta chileno “Simiente”, o espectador é levado a migrar da metrópole para um belíssimo ambiente campestre. Em uma cabana simples, vê-se sozinho na companhia da bela e jovem personagem que ali vive. Reforçado por elementos como a ausência de trilha sonora, a constante presença de planos longos com acontecimentos simples, o ritmo lento e a direção de arte com tons suaves, esse estado de isolamento físico pode ser encarado como uma metáfora à sensação de isolamento psicológico – que, paradoxalmente, independe da companhia de pessoas. 16 Simiente, de William Vega Latinos 02 – Colômbia, 14’, 2011 Muitas vezes ignorado ou mal julgado, o isolamento, ou o voltar-se a si, é uma necessidade humana que deve ser respeitada, principalmente diante de sensações intuitivas que antecedem mudanças marcantes. No caso de “Simiente”, subentende-se que a trajetória da personagem até esse local – que na verdade é uma viagem para dentro de si – foi voluntária. Ana quer estar ali, por fuga ou espera, já que no mundo em que vive não há quem respeite o tempo que as mudanças levam. Depois de uma tentativa frustrada de comprar fósforos, a jovem se depara com uma criança, a qual ela não reconhece, pois é o que está deixando de ser. Acolhe-a em sua casa para uma noite de sono. E então a vela que custou a ser acesa no início do curta acende após uma prece – como símbolo de renascimento de um novo “eu” e ao mesmo tempo luto de sua criança que está para desaparecer. Após um sonho no qual, em um barco, passa pela criança e se enrosca no matagal do mundo adulto, um estímulo do mundo externo em forma de batida na porta acorda a menina. Ela se dirige para o exterior de seu refúgio e dá origem a sua primeira semente. A menstruação é representada sutil e lindamente por uma gota de sangue que escorre em um plano próximo dos pés, até o chão. Em tempos de Feminino Plural, não faria mais sentido um curta tão emblemático sobre o acontecimento mais simbólico e divino da feminilidade humana. ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “Minuto 200”, por André Almeida “Pais Separados”, por Alexandre Wahrhaftig Um filme colombiano Um estranho no ninho “Minuto 200” é um curta colombiano, e assim sentada em sua cadeira de balanço como não poderia deixar de ser. A aura do realismo Aureliano Buendía “espera seu funeral passar”, fantástico está expressa de uma forma única ali. sentado em frente à casa. A arte está perfeita na Tudo nesse filme remete ao universo do também caracterização de uma Colômbia interiorana e colombiano Gabriel García Márquez. A começar simples, de uma beleza peculiar e tipicamente pelos personagens. Um casal idoso, ambos já latina. viúvos e vizinhos. Ele insiste em um amor, ela A impressão é que estamos dentro de uma casa espera a morte. de Macondo ou de qualquer outra cidade A relação lembra muito a de uma dos mais imaginária do universo de García Márquez. E populares romances de García Márquez, “O não é no roteiro e nos diálogos que se encerra a Amor nos Tempos do Cólera”, e a comparação aura poética do filme. Com uma capacidade com Florentino Ariza e notável, o diretor cria a partir Fermina Daza é inevitável. O de todos os elementos clima também é algo cinematográficos uma notadamente comparável. O verdadeira prosa-poética “silêncio mortal do calor”, tão audiovisual, assim como seu citado pelo escritor, é conterrâneo faz tão habilmente “transcriado” para a tela pelo na literatura. diretor Frank Benitez com Se a riqueza do gênero uma capacidade ímpar. A “realismo-fantástico” é Minuto 200, de Frank Benitez fotografia clara, que explora a congênita nos cidadãos Latinos 02 – Colômbia, 18’, cor, vídeo, luz típica dos trópicos, é arma colombianos ou é fonte de uma 2011 fundamental para a criação inspiração inesgotável devido dessa aura, além dos sempre ao gênio literário que lá nasceu, lentos movimentos de câmera e os personagens não sabemos. O que podemos afirmar é que de lá em um constante abanar. brotam as melhores obras de arte que por esses Outro elemento primordial dos romances, caminhos adentram. “Minuto 200” é um exemplo também presente no filme, é o fatalismo do delas. destino. A personagem principal espera a morte Parece-me que uma das únicas coisas interessantes de “Pais Separados” é o fato de ele estar presente no Curta Kinoforum, em choque direto com os outros filmes de sua sessão (e do restante das mostras). É possível que ele esteja no festival apenas como um elemento a mais para compor a diversidade do Panorama Paulista, que, como panorama, talvez queira dar conta da diversidade da produção, incluindo filmes de caráter caseiro e amador ao seu conjunto. Se fôssemos buscar qualidades em “Pais Separados”, encontraríamos talvez alguns toques de humor, mas não ultrapassaríamos muito essa constatação, porque, de resto, a história é contada de maneira muito simplista. O personagem parece estar a serviço de uma tese e tudo está sempre sendo contado por meio de palavras escritas sobre a tela, não havendo espaço para a imagem construir seus significados – a imagem é uma ilustração de uma ideia, ao invés de um terreno em que as ideias se construam (ou mesmo entrem em choque com as palavras escritas). É curioso que, talvez por ingenuidade, talvez por um desejo de chocar-se contra seus filmes-colegas, o curta exponha, nos seus créditos, os “softwares” e a câmera que utilizou para ser produzido, como que afirmando, em tom manifesto, que sua presença no festival (e no mundo) independe de bons equipamentos e de uma equipe profissional. Assim, marca uma espécie de caminho inverso ao que estamos acostumados: ao invés da “cinematografização” do “universo youtube”, estamos diante de sua expansão para a sala de cinema. Ainda que a absorção das estéticas de internet possa ser um Pais Separados, de enriquecimento do universo cinematográfico, em Washington Carvalho “Pais Separados” – um filme de imediatez na Panorama Paulista 04 – transmissão de sua ideia, em que a mensagem vale Brasil (SP), 3’, cor, vídeo, mais do que o filme – o que encontramos, acredito, é 2011 a limitação e a negação de uma potência. “Mirantes”, por Beatriz Sperandelli Expressão pessoal de cidadãos comuns Três jovens se apresentam diante da câmera falando seus nomes, onde trabalham, o que gostam de fazer e o que pensam sobre a comunidade em que vivem. Eles aparecem individualmente em frente à câmera no movimento habitual das ruas, onde carros passam, crianças empinam pipas, pessoas andam nas calçadas e, fundamentalmente, em cenas em mirantes, locais com vista panorâmica e mais elevados; ali, se revela a paisagem na qual cada um observa o lugar onde mora. Mas esses mirantes não apresentam apenas imagens belas de cada paisagem, pois são o ponto de partida para cada um refletir o “estar no lugar”. Nas cenas em que eles falam, sempre há a presença do corpo que enuncia e também o lugar de que se fala ao fundo; a narrativa é conduzida pelos sujeitos e a câmera nunca os abandona, o que confere uma forte carga pessoal a todo o documentário. As reflexões sobre a experiência de estarem inseridos ganham maior significação quando vistas de outro local, porque eles saem do lugar comum de vivência. Ao falarem em primeira pessoa diante da câmera sobre suas sensações, trazem um caráter mais subjetivo ao curta. A trilha sonora, inclusive, é composta de músicas feitas por dois desses jovens. O que se percebe é a experiência do mundo e não o mundo; há mais subjetividade que objetividade. Apesar de o curta ser um documentário essencialmente subjetivo e reflexivo, por ser focado no “eu” que enuncia, não é necessariamente fechado em si mesmo por ter um alcance social na valorização da diversidade cultural, no incentivo da expressão pessoal de cidadãos comuns e na democratização de produções audiovisuais. Os três jovens pertencem a comunidades de classe baixa, falam sobre a sua situação no mundo e, ao se portarem Mirantes, de Realização coletiva na frente da câmera, ganham KinoOikos – Brasil (MG), 25’, Cor, 2010 representação perante o outro. 17 o fi c i n a d e crí ti ca ci n emato g rá fi ca d o 2 2 º f estiva l i ntern acion a l de curtas -met rag ens de s ã o pau lo “2 e Meio”, por Marcelo Félix Num labirinto social Com um começo ágil, ambientando os mecânicos de elevadores Hernani e Júlio num grande estacionamento de carros, “2 e Meio” nos traz uma visão da classe média baixa que vive no sobe-e-desce social, entre a chance de ganhar a vida sozinha e o perigo do desemprego ou da ilegalidade. Hernani tem o carro que usa para trabalhar roubado. Sua mulher implica por ele não ter pago o seguro. Nervoso, pensa em voltar para a firma, trabalho formal com carteira assinada. Mas hesita diante das oportunidades maiores fora de lá e da chance de o irmão aprender uma profissão trabalhando com ele. São situações cotidianas, naturalidade e até bons momentos de humor, e outros esquemáticas até, mas que dão em que há certo exagero, provavelmente por causa dos volume. atores vindos do teatro. Exceto o “Gordo”, personagem O que conta mesmo é a tensão que vive entre um ferro velho e seus contatos escusos, diante da impossibilidade de tudo “na medida do possível legal”. continuar levando a vida de Como num labirinto, Hernani precisa seguir pelos becos maneira digna. Os personagens 2 e Meio, de Alexandre Serafini da periferia, atravessando a comunidade e seus vivem na periferia, estão Mostra Brasil 05 – Brasil (ES), 18’, cor, moradores, para procurar seu carro. O ladrão guia o imersos em uma extensa e 35mm, 2010 mecânico observando o trajeto do alto, artifício ramificada pobreza horizontal, inteligente que ajuda a manter a tensão até o final. em que os transportes têm Entretanto, mais interessante que a recompensa é a deixa que o clímax da papel fundamental. Sem carro, eles precisam ir história propõe: para o ladrão, isso é mais um serviço. É assim que o trabalhar de ônibus e a “correria começa mais “sistema” funciona, não é nada pessoal. O problema maior, tão grande cedo”, a vida complica. quanto o horizonte cinza da periferia: e agora, para onde ir? As atuações oscilam entre diálogos precisos, com “Gisela”, por Rodrigo Oliveira “Cão”, por Lucila Maia Loucura inofensiva Em construção Seria uma saída fácil dizer que “Gisela” é mais um filme de personagem. Sim, ele é uma obra cuja protagonista envereda por situações que fazem as atenções se voltarem para ela, mas a responsável por isso é a sua sandice, que a acompanha em cada cena do curta de Felipe Sholl. Ouvimos um barulho que desperta curiosidade, não pelo incômodo causado, mas pela intensidade do conteúdo proferido. Luiza, empregada de Gisela, assiste a um culto de igreja protestante, no qual são proferidas palavras contra o gramunhão; um exorcismo televisionado que atiça o interesse da patroa, perturbada devido à constante ausência do marido Roberto. Durante a história, o espectador percebe a mescla de sensações da protagonista: a notória bipolaridade (vide os ataques de mau humor com a empregada), mas também um lado dependente, quando pede auxílio a Luiza, que cede demonstrando se importar com a patroa. “Gisela” é o tipo de obra que não interpela o espectador de imediato. O filme deixa nas entrelinhas se o que a protagonista tem é de fato algo patológico ou um capricho por se sentir preterida em um ambiente em que possui apenas a atenção da empregada e, ainda assim, somente quando requisitada. A história tem como cenário somente um apartamento, que é o grande prejudicado com os ataques de Gisela, pois ela promove a desorganização da cozinha, quando começa a checar a geladeira e escreve centenas de rabiscos nas paredes sempre com a mesma inscrição: puta. O único fator que inspira cuidados ao assistir ao filme é a proposital, porém irritante, derradeira ação da protagonista. De resto, Gisela, de Felipe Sholl até os seus atos de loucura superamos, por Mostra Brasil 02 – Brasil (RJ), soarem inofensivos, flertando com a certeira 15’, cor, vídeo, 2011 atmosfera de delírio tão presente na obra. “Não entendi bem a mensagem do filme, você seu corpo mesclando-se no ambiente. Ele passa um poderia explicar?” Com essa pergunta, uma pessoa dado importante que vamos entender mais adiante na plateia inicia o debate com os diretores. Será – “trabalha numa construção”. Seria uma nova que um filme precisa passar uma mensagem? essência do filme? Sua própria construção? Deve seguir todas as regras ou pode reinventar-se? Nesse diálogo, ela diz para ele: “aquele homem “Cão” não tem mensagem específica. No início, carrega muito peso nos sapatos. Precisa carregar o parece falar de muitas coisas e mostra isso na peso certo”. Vamos entender isso também mais à própria dinâmica cinematográfica. Pessoas frente. O filme é muito bem construído, passam por uma catraca e aparecem da cintura intercalando ações dos personagens, suas falas, para baixo; não importa quem objetos de cena e são os personagens. Pelas roupas contrarregra, direção de arte, percebemos que uma piscina fotografia e planos, de tal será o cenário. E é nesse local forma que somos conduzidos que surge um casal de idosos. a um campo aberto de Eles encaram a câmera, ou seja, imagem, tensão e natureza. o espectador. Depois, crianças Passagens jogam o brincam na água. E a essência do espectador para longe e filme está dada, um convite aos perto. Por exemplo: duas Cão, de Iris Junges sentidos, ao olhar. Mostra Brasil 09 – Brasil (SP), 19’, Cor, pessoas numa ponte, depois Aos poucos, somos introduzidos à a jovem em primeiro plano 35mm, 2011 história. Uma jovem com blusão e sua imagem num espelho; azul, num fundo vermelho, narra no jóquei, o rapaz olhando uma paixão antiga e comenta sua distração através de um binóculo faz um movimento e é a relacionada a um defeito nas mãos daquele que foi câmera que leva o espectador a ver o que ele vê. seu namorado. Ela fala e olha para o espectador. Em uma cena, ele olha os dentes dela, um plano Depois, um movimento de câmera segue a parede de detalhe e o som da largada na corrida dos vermelha, entra num café e um rapaz olhando para a cavalos mostrada numa cena anterior em câmera câmera fala com ela. Ela responde, mas não aparece. lenta. É assim que as imagens ficam gravadas no Assim, a conversa continua até que ela vai embora, espectador. 18 ofic ina de crí tica ci n ematog rá fica do 2 2 º f esti va l i n t ern acio n a l d e curtas- metrage ns de s ã o pau lo “La ducha”, por Isabela Maia “Calle Última”, por André Almeida Despedida sem adeus A beleza triste dos subúrbios Uma despedida sem hesitação, sem lágrimas, sem “tchau”. Ao menos é o que encenam uma para outra as personagens do curta chileno “O Chuveiro”, mas o espectador sabe que não é bem assim: a câmera revela apenas a nós algumas sutilezas e segredos sobre o casal Elisa e Manuela, em meio a gestos e diálogos talvez forçosamente comuns e cotidianos. A “câmera-confessionário” promove uma aproximação e uma identificação extremamente comoventes entre público e personagem, a partir do momento em que estes compartilham um instante muito íntimo e triste. O choro de Elisa, escondido de Manu pelas cortinas do chuveiro, é um exemplo muito claro desse efeito que o filme provoca. A estrutura em plano-sequência traz sensações de fluidez e realismo, numa dança muito bem ensaiada entre atrizes, cenário e câmera. A predominância do branco na arte dita um tom frio e asséptico, justamente como as (ex-)amantes, em vão, planejam a sua despedida sem adeus. La ducha, de Maria Jose San Martin Outro efeito estético bem-sucedido é Latinos 02 – Chile, 10’, cor, 35mm, o jogo de foco e composição com os 2010 reflexos do espelho. Mas esse efeito também produz um significado: elas se olham predominantemente através dele, e não de maneira direta, o que pode demonstrar tanto o afastamento precoce entre as duas quanto uma latente dificuldade em dizer adeus, implícita ao se evitar o contato “olho no olho”. A posse e o cuidado com o gato podem ser interpretados como uma grande metáfora do amor e do relacionamento das mulheres. Como diz Elisa, não basta só ter por perto e acariciar às vezes, quando convém. É preciso alimentar e “levar ao veterinário”; estar presente também nos momentos ruins e mundanos. “Mas eu amo aquele gato!”, diz Manu. São jeitos diferentes de expressar o amor que não são plenamente compreendidos e muito frequentemente entram em conflito, numa contradição insolúvel. E o gato ficou... “Vó Maria”, por Gilberto Xis Forma desmistificada O curta de Tomás von der Osten demonstra bem o poder de síntese narrativa, utilizando o cinema como ferramenta. Faz isso ao dispor de fragmentos de apenas uma antiga imagem, aliados a um sincero depoimento de pessoas ligadas à personagem retratada na foto. Esse representante do minimalismo tem um papel sutil, porém importante para as próximas criações cinematográficas, que é o de desmistificação da forma. Assim, age como um atrativo para novos realizadores, principalmente, aqueles com poucos recursos técnicos e/ou financeiros, sendo que foi exatamente esse último, ou seja, o roubo de seu equipamento, um dos motivos que levou o diretor à escolha estética. “Vó Maria” suscita uma reflexão a respeito da memória ao dialogar com os seus parceiros, os demais curtas da sessão, quando traz um registro histórico não muito preciso da personagem retratada em virtude dos parcos meios da época, enquanto que os demais filmes selecionados apresentam a relação do homem atual e o modo com que ele registra as suas memórias, pensamentos e ideias por meio das vastas possibilidades a que lhe são disponibilizadas em seu tempo. Por outro lado, sugere também buscar no campo da imaginação os elementos que faltam para preencher as lacunas deixadas pelos relatos passados oralmente por aqueles que conviveram com a pessoa retratada, mas que, devido à perda, na modernidade, do costume do contar histórias oralmente, quando o fazem acabam por não transmitir a história com a consistência de detalhes devida à memória do retratado. Vó Maria, de Tomás von der Osten Mostra Brasil 03 – Brasil (PR), 6’, Cor, Vídeo, 2011 Na sessão em que assisti a “Rua Última”, tivemos o privilégio de contar com a presença do diretor Marcelo Martinessi, que falou sobre o filme, produto de uma experiência realizada com adolescentes de rua no Paraguai. O roteiro era deles e alguns ainda atuavam. Esse tipo de informação geralmente justifica interpretações ruins e um roteiro um pouco fraco, e rebaixa nossas expectativas em relação ao filme, pois, afinal, são pessoas “sem instrução”. Assistimos com olhos complacentes. Mas “Rua Última” é um exemplo de como esses filmes podem nos surpreender. O roteiro impressiona pela abrangência e singeleza. Conta a história de Myriam, uma garota chacoteada na escola por seus chinelos de borracha, e a sua procura por um sapato mocassim preto. No entanto, o filme vai bem além. Percorre o abuso familiar, o trabalho nas ruas, a precariedade em casa, o uso de drogas, a maternidade precoce. Tudo isso em um roteiro inteligente, coerente, com diálogos e silêncios primorosos. Cada aparição é pensada, enriquecedora, completa e ao mesmo tempo aberta. A direção apuradíssima de Martinessi revela com uma beleza triste os subúrbios paraguaios. Há uma constante aura melancólica, obtida pela direção e fotografia impecáveis, além dos atores que estão perfeitos em uma encenação de sua própria vida. O guarani, falado durante quase todo o filme, traz uma localidade especial a uma história que poderia se passar em qualquer país da América Latina. A melancolia só é quebrada na cena final, que, lembrando Gene Kelly em “Cantando na Chuva” (1952), nos faz pensar sobre como a felicidade, muitas vezes e para muitas pessoas, pode estar nas coisas mais simples. Calle Última, de Marcelo Martinessi Latinos 02 – Paraguai, 20’, cor, 35mm, 2010 19 Os 10 preferid os d o públi co programas brasileiros (em ordem alfabética) assunto de família BRAXÍLIA DOCE DE COCO JIBOIA L Caru Alves de Souza Danyelle Proença Allan Deberton Rafael Lessa Thais Fujinaga Brasil (SP), 2011 12’, cor, 35 mm Mostra Brasil 07 Brasil (DF), 2010 17’, cor, 35 mm Mostra Brasil 09 Brasil (CE), 2010 20’, cor, 35 mm Mostra Brasil 07 Brasil (SP), 2011 17’, cor, 35 mm Mostra Brasil 10 Brasil (SP), 2011 21’, cor, 35 mm Mostra Brasil 03 ovos de dinossauro na sala de estar PRA EU DORMIR TRANQUILO PRAÇA WALT DISNEY QUANDO MORREMOS A NOITE TELA Rafael Urban Juliana Rojas Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro Eduardo Morotó Brasil (PR), 2011 12’, cor, vídeo Mostra Brasil 03 Brasil (SP), 2011 15’, cor, 35 mm Mostra Brasil 02 Brasil (PE), 2011 21’, cor, 35 mm Mostra Brasil 04 Brasil (SP), 2011 15’, cor, 35 mm Mostra Brasil 06 Brasil (RJ), 2011 20’, cor, 35 mm Mostra Brasil 06 Carlos Nader Os 10 preferid os d o públi co mostra i n t e r n a c i o n a l e l a t i n o - a m e r i c a n a EL MUNDO DE RAÚL Jessica Rodriguez Sanchez e Horizoe Garcia (em ordem alfabética) JE POURRAIS ÊTRE VOTRE GRAND-MÈRE KHOUYA KWA HERI MANDIMA L’ACCORDEUR Bernard Tanguy Yanis Koussim Robert-Jan Lacombe Olivier Treiner Argélia/França, 2010 16’, cor, 35 mm Mostra Internacional 04 Suiça, 2010 10’, cor, vídeo Mostra Internacional 05 França, 2010 13’, cor, 35 mm Mostra Internacional 05 Cuba, 2010 20’, cor, vídeo Mostra Latino-americanal 02 França, 2010 19’, cor, 35 mm Mostra Internacional 03 LAS PALMAS MINUTO 200 SUIKER UN NUEVO BAILE VIAGEM A CABO VERDE Johannes Nyholm Frank Benitez Jeroen Annokkée Nicolas Lasnibat José Miguel Ribeiro Suécia, 2010 13’, cor, 35 mm Mostra Internacional 06 Colômbia, 2011 18’, cor, vídeo Mostra Latino-americanal 02 Holanda, 2010 7’, cor, 35 mm Mostra Internacional 04 Chile/França, 2010 23’, cor, 35 mm Mostra Latino-americanal 01 Portugal, 2010 17’, cor, vídeo Mostra Internacional 10