Prefácio
Existe um limite para o amor que Deus tem por nós?
A resposta é não! São João nos revela a essência de Deus:
Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é
amor (João 4,8). Se o amor em Deus encontrasse um limite,
isso indicaria que Deus não é pleno.
As atitudes de Jesus, relatadas nos evangelhos, mostram com clareza a verdadeira face de Deus, as parábolas
exaltando a misericórdia divina contadas por Jesus, de modo
especial a do filho pródigo, dão-nos uma dimensão real do
amor infinito que Deus tem por cada um de nós.
Este livro do Papa Francisco, intitulado Deus não se
cansa de perdoar, quer resgatar em cada cristão a certeza
de que Deus jamais, nunca virará sua face quando estivermos em sua presença. Independentemente do que tenhamos
feito, do que façamos ou fizermos, Deus estará com a mão
estendida para nos levantar, nos tirar das piores situações,
nos arrancar do lodo, do pecado.
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Deus não se cansa de perdoar!
É celebre a frase “Deus ama o pecador, mas odeia o
pecado”, esse é o segredo e a garantia de que todos nós podemos recomeçar, teremos uma nova chance, o coração de
Deus não guarda rancor.
Jorge Mario Bergoglio, antes de ser papa, desempenhava um ministério de acolhida e de inclusão na Arquidiocese
de Buenos Aires; essa marca de seu apostolado também
está presente na sua missão atual, desde quando assumiu a
cátedra de Pedro. Temos em mãos uma célebre coletânea
de mensagens, homilias e reflexões do Papa sobre a misericórdia infinita de Deus. A maioria delas faz referência ao
tempo quaresmal, mas podem ser lidas diariamente, como
um estímulo cotidiano.
A Igreja, mais do que nunca, precisa de novo vigor
profético, que nos desinstale, que nos faça ter convicção da
mensagem salvífica e universal de Cristo. Jamais seremos
anunciadores do amor de Deus se antes não fizermos a experiência desse amor.
Somente uma Igreja que ama e que perdoa, poderá
anunciar que Deus é amor!
Pe. Luís Erlin
Editor
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Apresentação
Este não é um livro para nos fazer sentir culpados, pecadores irrecuperáveis.
É, ao invés disso, uma recopilação amável e inapreciável das propostas que, durante anos, o Papa Francisco, antes
mesmo de assim ser escolhido, vem nos oferecendo para nos
ajudar a tomar consciência de que o pecado é, sim, parte da
humanidade, mas que, se aprendermos a pedir perdão ao
amigo, ao companheiro, à família, ao vizinho e, principalmente, a Deus Pai, teremos ganhado o Reino...
As palavras do autor, neste livro, são o fruto de muitos
anos de oração profunda, e de ter a sensação de ser pecador, reconciliado e reconciliador incondicional de todos os
que se aproximavam para pedir-lhe ajuda; são um pedido
para a reflexão...
O agora Papa Francisco continua pedindo para que nós
o tenhamos presente em nossa oração diária. Não percamos,
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porém, a oportunidade de rezar também por nós mesmos,
para que possamos, assim, estar cada dia mais próximos da
experiência da misericórdia de nosso Pai, Deus da Vida e
da Verdade, que está sempre disponível, nos esperando para
nos dar o verdadeiro abraço do perdão.
A esperança
não ficará defraudada
Queridos irmãos e irmãs:
Há alguns anos, pedi a vocês que se dedicassem a
cuidar da fragilidade de nosso povo, encarregando-se dela
como se encarregariam da fragilidade de Jesus, o Deus
encarnado. Sendo forte, Jesus se fez fraco; sendo rico,
se fez pobre; sendo grande, se fez pequeno (cf. Missal
Romano). Nesse sentido, em algumas comunidades, foram realizadas ações concretas: mais orações, mais gestos
de proximidade, mais tarefas solidárias... Em outras, porém, pouco se fez ainda. Mas, certamente, podemos dizer
que, pelo menos, essa profunda preocupação pastoral foi
instaurada.
Querer cuidar da fragilidade de nosso povo é um anseio
de magnanimidade que só poderá se aninhar em corações
generosos e solidários, simples e atenciosos.
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Deus não se cansa de perdoar!
Perseverar nesse propósito será o fruto da graça do
Espírito Santo que nos impulsiona a estar próximos de toda
carência e dor e nos sustenta na constância.
Temos presenciado e até mesmo vivenciado graves situações que nos levam ao desânimo e, com frequência, ao
desalento. Assim, clamamos a todas as comunidades que o
assunto toque o coração de cada um. Aos que não realizaram
um itinerário, peço-lhes, por favor, que o realizem durante este
ano para que todos fiquem em sintonia com essa abertura da
alma, tomando aos seus cuidados a fragilidade de nosso povo.
Far-nos-á bem perscrutar tais fragilidades. Como exemplo, cito
aquelas que dizem respeito à fé (quantas crianças não sabem
rezar!, quantos jovens estão sem horizontes...!), à vida familiar
(falta de diálogo, abandono dos mais velhos...), à vida social
(desemprego, fome, injustiça...).
Diante da dor e da decepção, nós, os cristãos, somos chamados à esperança. E não como busca de ilusão fantasiosa, mas
com a confiança do discípulo e apóstolo de que a esperança não
ficará defraudada, “porque o amor de Deus foi derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (Romanos
5,5). Essa esperança é a âncora que já está cravada nos céus e
à qual nos agarramos para continuar caminhando. O mesmo
Jesus vem ao nosso encontro para reafirmar com serenidade e
firmeza: “Não tenham medo” (Marcos 6,50). “Eu estarei sempre com vocês até o fim do mundo” (Mateus 28,20). “Vão
e anunciem” (Mateus 28,19). Ir para anunciar, estar próximo
de quem sofre fragilidade, sendo o anunciador ele próprio frágil, é possível somente confiando nessa promessa do Senhor
Ressuscitado – “Eu estarei sempre com vocês” (Mateus 28,20).
E porque não somos super-heróis, nem lutadores valentes que
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A esperança não ficará defraudada
confiam cegamente em suas próprias forças, atuamos com a
audácia própria dos discípulos de Jesus, membros de sua família. Audácia de irmãos do Senhor.
Este ano, peço-lhes que trabalhem com tal audácia, com
intenso fervor apostólico. Ao tomarmos a nosso cargo a fragilidade, tanto a nossa quanto a do nosso povo, demonstramos
que queremos caminhar com audácia – a mesma atitude que
o Espírito Santo suscitava nos Apóstolos, fazendo-os anunciar Jesus Cristo. Audácia, coragem, falar com liberdade, fervor
apostólico... Tudo isso faz parte do significado do vocábulo
parrhesia, palavra com a qual São Paulo externa a liberdade
e a coragem de uma existência que é aberta em si mesma
porque se encontra disponível para Deus e para o próximo.
Paulo VI mencionava que, entre os obstáculos para a
evangelização, se encontrava precisamente a carência de
parrhesia: “A falta de fervor, tanto é mais grave quanto o que
vem de dentro, manifestada na fadiga e desilusão, na acomodação ao ambiente, no desinteresse e, sobretudo, na falta de
alegria e de esperança” (Evangelii Nuntiandi, 80).
João Paulo II nos fala de ardor, zelo apostólico, valentia, impulso missionário (Redemptoris Missio, 30, 67, 91).
Então recordemos os discípulos de Emaús em seu encontro
com o Senhor ressuscitado: “Não se abrasava nosso coração
enquanto nos falava no caminho?” (Lucas 24,32). Convicção
na obra do Espírito e ardor que brota do encontro com Cristo
vivo. Convicção e ardor que são necessários em nós, os discípulos, tanto para tomar a nosso cargo as fragilidades como
para anunciar Cristo ressuscitado.
Com frequência sentimos fadiga e cansaço. Tenta-nos
o espírito de azedume, de preguiça. Também olhamos tudo
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Deus não se cansa de perdoar!
o que há por fazer e o pouco que somos nós. Como os
Apóstolos, nós dizemos ao Senhor: “Que é isto para tanta
gente?” (João 6,9). Quem somos nós para cuidar de tanta
fragilidade? E aí justamente é que se enraíza nossa fortaleza:
na confiança humilde de quem ama e sabe que é amado e
cuidado pelo Pai, na confiança humilde de quem sabe que é
escolhido gratuitamente e enviado.
A experiência de São Paulo foi levar “um tesouro em
vasilha de barro” (2Coríntios 4,7) e transmiti-la a todos nós. É
o olhar sobre si mesmo e sobre os outros. Não tenha medo
de olhar para a vasilha de barro porque precisamente o tesouro que ela leva está fundamentado em Jesus Cristo, e é
dele que vêm a coragem, a audácia, o fervor apostólico.
Quantas vezes nos sentimos forçados a permanecer na
comodidade da margem! Mas o Senhor nos chama para navegar mar adentro e para atirar as redes em águas mais profundas
(Lucas 5,4). Chama-nos para que o anunciemos com audácia e
fervor apostólico, para gastar nossa vida a seu serviço.
Agarrados a Ele, animamos-nos a segui-lo de perto –
cada um de nós colocando nossos carismas a serviço da
comunidade na Igreja arquidiocesana. E o fazemos utilizando diversos instrumentos pastorais harmonizados por nosso
Plano Pastoral, que termina uma nova etapa ao finalizar este
ano. No Conselho Episcopal, vimos a conveniência de realizar uma Assembleia Diocesana que nos permita crescer em
sentido de pertença eclesial e participar na reelaboração de
nosso Plano Pastoral, tendo em consideração as orientações
de “Navegue mar adentro”1.
1 As citações de arquidiocese, Plano Pastoral, Conselho Episcopal e Assembleia Diocesana
estão relacionadas à capital da Argentina, Buenos Aires, onde o autor, antes de se tornar
Papa Francisco, foi arcebispo. (N.T.)
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A esperança não ficará defraudada
Gostaria de concluir exortando-os uma vez mais ao
fervor apostólico com as palavras de Paulo VI: “Conservemos
a doce e confortadora alegria de evangelizar, inclusive quando é preciso semear entre lágrimas. Façamo-lo – como João
Batista, como Pedro e Paulo, como os outros Apóstolos,
como essa multidão de admiráveis evangelizadores que se
sucederam ao longo da história da Igreja – com um ímpeto
interior que ninguém nem nada sejam capazes de extinguir.
Seja essa a maior alegria de nossas vidas entregues. E queira
Deus que o mundo atual possa assim receber a Boa-Nova,
não por meio de evangelizadores entristecidos e desanimados, impacientes ou ansiosos, mas por meio de ministros
do Evangelho, cuja vida irradia o fervor dos que receberam,
antes de tudo em si mesmos, a alegria de Cristo e aceitam
consagrar sua vida à tarefa de anunciar o reino de Deus e
implantar a Igreja no mundo” (Evangelii Nuntiandi, 80).
Peço ao Senhor que todos nós nos sintamos ungidos
por seu amor (2Coríntios 5,14) e possamos dizer com São
Paulo “Ai de mim se não evangelizo!” (1Coríntios 9,16). Que
a Mãe do Senhor, que experimentou a peculiar fadiga do
coração (Redemptoris Mater, 17), nos acompanhe e sustente em nossas fadigas cotidianas e nos obtenha a graça da
audácia evangelizadora e o fervor apostólico.
Peço-lhes, por-favor, que rezem por mim. Com fraternal afeto.
Quarta-feira de Cinzas –
25 de fevereiro de 2004.
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Caminhar
na presença de Deus
Queridos irmãos e irmãs:
Gostaria de retomar alguns dos pontos que oportunamente foram citados no início deste “estado de Assembleia”,
e que eles possam nos iluminar neste momento no qual nos
dispomos a viver o santo tempo da Quaresma.
A Assembleia se apresenta como “um momento eclesial de encontro no Senhor, sendo espaço de afirmação de
nossa identidade e de tomada de consciência de nossa missão”, “não com preconcepções funcionais”, e, sim, guiados e
harmonizados pelo Espírito. É um convite a “mover-nos com
a liberdade do Espírito”.
Essa atitude de liberdade é uma graça que temos de pedir e para a qual temos de nos dispor. É como o fundamento da
Assembleia. Uma liberdade obediencial a Jesus Cristo e à sua
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Deus não se cansa de perdoar!
esposa, a mãe Igreja. E, pelo fato de fazer referência ao Senhor
e estar no seio da Igreja, será uma liberdade para enfrentar
purificações, correções; uma liberdade criativa em fecundidade apostólica; uma liberdade cujo horizonte é a santidade.
É a liberdade que Deus pediu a Abraão: “Ande em minha
presença e seja irrepreensível” (Gênesis 17,1).
Queremos que este tempo da Quaresma seja vivido
como um “caminhar na presença de Deus”, colocado em
situação de luta espiritual. O espírito de Assembleia “irá
se construindo assim: prestando atenção ao que acontece
em meu coração; ver o que produz em mim tal ou qual
ideia, tal ou qual proposta. Estar atento ao movimento dos
diversos espíritos (o bom, o mau, o próprio) em meu coração. E tudo isso para poder discernir e encontrar a vontade
de Deus”.
Colocar-nos em estado de Assembleia foi, de certa maneira, um convite a desinstalar-nos. A proposta para “algo
mais”, para um passo adiante entre acertos e desacertos, nos
colocou em “movimento espiritual”. De acordo com o modo
como temos reagido diante das diversas propostas, evidencia-se o “espírito” que nos anima.
Esta missão que Deus nos confia exige lutar contra
nossas inclinações egoístas e contra qualquer desânimo.
A riqueza da Boa Notícia exige evangelizadores convictos
e entusiastas, como os primeiros cristãos que davam testemunho de sua fé com clara coerência (Novo Millenio
Adveniente, 16).
Convido-os a viver este sagrado tempo como uma graça de chamado a uma “conversão eclesial”; que possamos
nos renovar no espírito de “comunhão e participação”, permitindo que a busca da unidade, imprescindível para uma
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Caminhar na presença de Deus
evangelização fecunda, presida nosso discernimento pessoal
e comunitário.
Por último, com a certeza de que “a Assembleia se
amassa em oração”, peço-lhes que, antes da celebração de
cada Eucaristia, rezemos a oração por nossa Arquidiocese
em Assembleia; façamos o possível para dispor de um tempo
semanal de adoração comunitária por esta intenção, e façamos orar nossos anciãos e enfermos, de modo que todos nós
nos sintamos comprometidos e responsáveis por seu desenvolvimento e realização.
Desejo-lhes uma Santa Quaresma e lhes peço, por favor, que rezem por mim. Jesus os abençoe, e a Virgem Santa
cuide de vocês. Afetuosamente.
Quaresma de 2006.
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Com o Espírito Santo,
pousemos o olhar
em nosso povo
Queridos irmãos e irmãs:
Começamos o caminho para a Páscoa. Nosso peregrinar torna-se mais intenso ao contemplar, desde já, o Mistério
que nos restaurou a Vida, o Mistério de nossa reconciliação
com Deus por meio de Cristo Jesus, que padeceu, morreu e
ressuscitou por nossos pecados.
Vamos nos preparar caminhando, e todo caminhar implica uma partida, uma saída. Como a de Abraão, como a dos
profetas, como a de qualquer um daqueles que um dia, lá na
Galileia, se puseram a caminhar para seguir Jesus. A história
do povo de Deus e da Igreja está marcada desde sua origem
pela ruptura, pela partida e pelos deslocamentos: Abraão,
Moisés, Elias, Jonas, Rute, São Paulo, Antão, o grande pai
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Deus não se cansa de perdoar!
dos monges, Domingos e Francisco, Inácio, Teresa de Jesus
e tantos outros. A intuição, resposta à graça desses grandes,
tornou fecundas suas vidas e alimentou com seu espírito o
caminhar da Igreja durante muitos séculos.
Essa característica, não simplesmente geográfica, tem
muito de simbólico: é um convite a descobrir no transe da
itinerância o movimento do coração que, paradoxalmente,
necessita sair para poder permanecer, mudar para poder ser
fiel. Nessa tensão, não obstante, nosso coração não deixa de
sentir as consequências do medo.
Sem lugar para dúvidas de que os tempos mudam e
as situações não voltam a se repetir, temos consciência de
que os modos de enfrentar a vida têm traços muito comuns,
e isso pode se converter, para nós, em fonte constante de
inspiração e sabedoria para enfrentarmos nosso momento.
Gostaria de pedir-lhes que vivam intensamente como
Igreja orante, aquela que reflete, penitente e adoradora
neste tempo de Quaresma, para que a graça da Páscoa se
derrame abundantemente sobre todos nós e todo o povo
santo de Deus. Necessitamos responder com maior fidelidade evangelizadora ao desafio que esta cidade e sua gente
nos apresentam. Fidelidade que vamos procurando descobrir desde o que se chamou, há alguns anos, “estado de
Assembleia”.
Nesse caminhar para a Páscoa, penso agora em
Jonas – um ícone profético pascal que o mesmo Jesus empregou para anunciar sua morte e sua ressurreição. Creio
que a figura desse profeta fujão, desconforme, lamuriento,
mas finalmente fiel, pode nos ajudar em nosso peregrinar
quaresmal-pascal.
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Com o Espírito Santo, pousemos o olhar em nosso povo
Com o profeta, descobrimos dois elementos que estão
presentes no dinamismo de cada deslocamento: a ruptura e
a vinculação. O livro começa com uma ordem de “saída”
dirigida por Deus a seu profeta: “Levanta-te e vá a Nínive, a
grande cidade, e proclame nela que sua maldade chegou até
mim” (Jonas 1,2).
Jonas vivia tranquilo e organizado, com ideias muito
claras sobre o bem e o mal, sobre como Deus atua e o que é
que quer em cada momento; sobre quais são fiéis à aliança
e quais não o são. Tanta ordem o levou a enquadrar com demasiada rigidez os lugares onde devia profetizar. Jonas tinha
a receita e as condições para ser um bom profeta e continuar
a tradição profética na linha de “o que sempre se havia feito”.
Inesperadamente, Deus, porém, desmontou sua ordem, irrompendo em sua vida como uma torrente, tirando-lhe
todo tipo de seguranças e de comodidades para enviá-lo
à grande cidade a fim de proclamar o que ele mesmo lhe
diria. Era um convite a avançar para além da borda dos
seus limites, ir para a periferia: Nínive, a grande cidade,
era símbolo de todos os separados, afastados e perdidos.
Jonas experimentou que lhe fora confiada a missão de
recordar a toda aquela gente, tão perdida, que os braços de
Deus estavam abertos e esperando que voltassem para poder, assim, curá-los com seu perdão e alimentá-los com sua
ternura. Mas isso ia muito além de tudo o que Jonas podia
compreender, e ele fugiu. Deus o mandara a Nínive, e ele
tomou direção contrária, para Társis, para o lado da Espanha.
As fugas nunca são boas. A aflição leva-nos a não estar demasiado atentos, e tudo pode se tornar um obstáculo.
Jonas, para fugir da presença de Deus, entrou em um navio
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Deus não se cansa de perdoar!
que ia para Társis. Logo uma tempestade se levantou, e os
marinheiros atiraram Jonas à água por ele ter confessado ser
culpa dele o acontecido. Na água, é engolido por um grande
peixe, e ali permanece um tempo. Jonas, que sempre havia
sido tão claro, tão cumpridor e organizado, não havia levado
em consideração que o Deus da Aliança não se arrepende
de seu juramento, e é teimosamente insistente quando se trata do bem dos seus filhos. Por isso, quando nossa paciência
se acaba, Ele espera, fazendo ressoar muito suavemente sua
palavra afetuosa de Pai.
E, pela segunda vez, com o mesmo frescor da primeira, foi dirigida a palavra do Senhor a Jonas nestes termos:
“Vá a Nínive, a grande cidade, e proclame o que eu lhe disser” (Jonas 3,2). Jonas, então, agora sim, vai a Nínive, e ali
prega. Quando Nínive se converte, Jonas, estranhamente,
em lugar de alegrar-se, apresenta a Deus sua queixa: “Ah,
Javé!... Foi por isso que eu corri, tentando fugir para Társis,
pois eu sabia que Tu és um Deus compassivo e clemente,
lento para a ira e cheio de amor, e que voltas atrás nas ameaças feitas” (Jonas 4,2). Jonas negava-se a deixar para trás
todas as suas ideias sobre Deus, para poder, assim, voltar
a se vincular com Ele, que o conduziria mais para além do
que conhecia e acreditava que podia. Jonas não tinha medo
de Nínive, tinha medo era de Deus e de seu amor desconcertante e desmedido.
Jonas era um cabeça-dura. Havia cercado sua alma
com o alambrado dessas certezas e convicções as quais, em
vez de ter liberdade com Deus e abrir horizontes de maior
serviço aos outros, acabam por aprisionar o espírito e ensurdecer o coração. Sua pertinácia o fazia prisioneiro de si
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Com o Espírito Santo, pousemos o olhar em nosso povo
mesmo, de seus pontos de vista, de suas valorizações e seus
métodos. Custava a ele descobrir a voz de Deus.
Nesse microclima existencial, havia isolado sua consciência da marcha do povo de Deus. Não sabia da intervenção
de Deus no meio de sua gente, da capacidade de conduzir
seu povo com seu coração de Pai. Para ele, já estava tudo
dito, e as coisas eram assim e nada mais. Como endurece o
coração a consciência isolada! Desconhece a alegria, o gozo
do Espírito Santo, que sustenta a esperança. A pressão interior de seu isolamento habitualmente encontra um caminho
de saída: a queixa. Quem isola sua consciência é lamuriante
da alma. Parece que, como as crianças da parábola (Lucas
7,32)2, nada lhe corre bem. Santa Teresa advertia a respeito
disso a suas monjas: “Ai da que diz: feriram-me sem razão”.
Os colecionadores de injustiças, os insatisfeitos constantes,
os que não entendem a felicidade de abrir seu coração ao
Senhor que sempre está vindo.
Queira Deus possamos nos identificar com Jonas em
muito do que hoje vivemos na Igreja, e muito especialmente
em nossa Igreja Arquidiocesana neste desconcertante “estado de Assembleia”. O encontro com a realidade particular
de nossa cidade e suas exigências, com sadio interesse, nos
interpelou a buscar “como ser hoje Igreja em nossa cidade”. Mas também, recorrendo a uma memória repetidora,
esperávamos e procurávamos no estado de Assembleia
um tempo para decidir e planejar. Não obstante, o Senhor
ignorou nossos preconceitos e foi nos levando com seu Espírito a pousar nosso olhar sobre o povo: para não ver o
2 “Nós tocamos flauta, mas vocês não dançaram; cantamos um lamento, mas vocês não
choraram.” (N.E.)
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Deus não se cansa de perdoar!
que queremos ver, mas ver aquilo que é. Assim reconhecemos experiencialmente as feridas e as fragilidades de nosso
povo, as quais também são as nossas. Porque na medida
em que nos envolvemos com a vida de nosso povo fiel
e a sentimos em suas feridas mais profundas, podemos nos
colocar, à luz do Evangelho, a pensar e a discernir do que
necessitam. Um pensar e discernir diverso: não o daquele
que, à maneira funcionalista, busca soluções rápidas e pré-organizadas, mas sim o daquele que desde a ruminação em
um coração que busca se deixar iluminar e transformar pela
oração e, desde a confrontação com os outros, permite que
seja Deus quem fale, e não os velhos conhecimentos, as receitas mágicas ou as manhas habituais.
Pelas feridas e fragilidades, Deus nos falou pedindo-nos o bálsamo da graça que cura, a força do Evangelho que
se faz Boa Notícia que anima e presença fraterna que sustenta. O povo fiel de Deus nos pediu a ternura do Pai que só
podemos nos aproximar dele na medida em que renovamos
nosso fervor apostólico, sendo ousadas testemunhas do amor
daquele “que nos amou primeiro”.
Tal qual Jonas, a realidade para a qual somos enviados
se apresenta difícil e avassaladora para nós. Aparecem novas exigências que nos pedem respostas inéditas. Enquanto
antes podíamos nos organizar muito bem sozinhos, fazendo
as coisas do nosso jeito, a fragmentação que nossa sociedade vive nos coloca diante da exigência evangelizadora de
uma identidade eclesial que brote de uma maior comunhão.
Esse espírito de comunhão fortalecerá nossa unidade com a
harmonia do Espírito Santo e também nos defenderá da vertigem com que somos tentados ao ver que se nos arruínam as
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Com o Espírito Santo, pousemos o olhar em nosso povo
seguranças, e que até mesmo o sistema de trabalho pastoral
– que provamos há muito tempo e que o sentimos como
inamovível – pode ter de adquirir uma nova forma.
Em nosso caminhar eclesiástico, fizemos e continuamos a fazer enormes esforços por diversos caminhos,
sustentamos e continuamos a sustentar as diversas formas
de pastoreio, enfrentamos e continuamos enfrentando crises e sacudidas, vimos e continuamos vendo como muitos
dos projetos aos quais dedicamos tempo e esforço se nos
revelam incapazes de sustentar nossos anseios e boas expectativas evangelizadoras, à medida que muita de nossa
gente vai ficando pelo caminho.
Não obstante, uma vez e outra, começamos tudo
novamente depois de cada tormenta. Mas, quando acreditamos estar tranquilos no ventre da baleia, surpreende-nos
a evidência de que tudo o que realizamos não foi mais que
uma etapa, e que agora a baleia nos vomitou na Nínive de
um mundo no qual Deus parece estar mais ausente que momentos antes, e ao qual nós, com as palavras que dizemos,
não lhe interessamos. Além disso, os valores que procuramos
anunciar resultam-lhe sem importância e fora de moda. Esta
realidade nos chamou, como Igreja Arquidiocesana, a procurar um modo de acolher a todos novamente, fazendo de
nossas paróquias e geografias pastorais santuários nos quais
se pode experimentar a presença de Deus que nos ama, nos
une e nos salva.
Nossa identidade e valorização sentem-se ameaçadas;
não exercemos como antes a liderança moral nem temos um
lugar social de relevância. Apresentam-se a nós problemas
para os quais aparentemente não temos a resposta. Somos
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Deus não se cansa de perdoar!
minoria e resistimos a ser um dentro de muitos. Continua sempre latente a tentação de fugir para uma “Társis” que pode ter
muitos nomes: individualismo, espiritualismo, encerramento
em pequenos mundos, dependência, instalação, repetição
de esquemas já fixados, dogmatismo, nostalgia, pessimismo,
refúgio nas normas...
Desde a queixa pelos problemas que temos: faltam leigos comprometidos; o povo não entende – nem mesmo o
bispo entende –; o povo vem para nos usar – o bispo também
–; não se pode tudo; ninguém se dá conta do que está acontecendo; ninguém se preocupa... Talvez estejamos resistindo
a sair de um território que nos era conhecido e controlável.
Não obstante, as mesmas dificuldades podem ser como a
tormenta, a baleia, o verme que secou a mamoneira de Jonas
ou o vento e o sol que lhe queimaram a cabeça; e tal qual
aconteceu a ele, podem ter a função de nos forçar a regressar de nossas evasivas “Társis” para nos aproximar de Nínive
e, sobretudo, perder o medo desse Deus que é ternura e vem
a nós para nos buscar com sua graça e nos levar para uma
itinerância constante e renovadora.
Tal qual Jonas, podemos escutar um chamado persistente que nos convida de novo a percorrer a aventura de
Nínive, a aceitar o risco de protagonizar uma nova evangelização, fruto do encontro com Deus que sempre é novidade e
que nos estimula a romper, partir e nos deslocar para ir mais
além do conhecido, para as periferias e as fronteiras, ali onde
está a humanidade mais ferida e onde os homens, por baixo
da aparência da superficialidade e do conformismo, continuam buscando a resposta à pergunta pelo sentido da vida.
Na ajuda para que nossos irmãos encontrem uma resposta,
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Com o Espírito Santo, pousemos o olhar em nosso povo
também nós encontraremos de maneira renovada o sentido
de toda a nossa ação, o lugar de toda a nossa oração e o
valor de toda a nossa entrega.
Procuremos caminhar este ano com o olhar ao longe e
depois encontrar, bem dentro de nós, o que temos de deixar
atrás para que Jesus, como mestre, evangelize; para chegar
aonde chegou nosso olhar a partir do Espírito. Desloquemonos sem medo para toda a periferia, para toda beirada,
unidos na Igreja, Assembleia unida e sustentada pelo Deus
da Vida. Que este andar saiba discernir aquilo do que se necessita; e cada passo novo nos incite a saber o que teremos
de dar, sem previsibilidades nem receitas mágicas, mas com
abertura generosa ao Espírito que vai conduzindo a história
pelos caminhos de Deus.
Peço-lhes, por favor, que rezem por mim. Jesus o abençoe, e a Virgem Santíssima cuide de vocês. Afetuosamente.
Quarta-feira de Cinzas –
21 de fevereiro de 2007.
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