A Ciência Política em Portugal, trinta anos depois Marcelo Camerlo e Andrés Malamud Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa No início de 1985 publicou-se o número fundacional da primeira revista portuguesa de ciência política.1 No editorial, o diretor fazia uma avaliação da investigação a nível nacional e constatava: (a) a inexistência de um ensino estruturado ao nível da licenciatura; (b) um forte auto-didactismo e ausência de teoria; (c) a falta de estudos empíricos rigorosos, predominando o estilo ensaístico de tradição francesa ou o comentário jornalístico; (d) a falta de estudos comparados; (e) a pouca abertura ao exterior, sendo os intercâmbios com instituições estrangeiras baseados em contactos pessoais; (f) o pendor ideológico, com forte clivagem entre estudiosos de esquerda e de direita (Barroso 1985). Neste breve artigo realizamos um balanço da disciplina trinta anos depois. Apresentamos as conclusões em quatro secções: o ensino universitário, a edição de revistas académicas, os congressos nacionais e a produção bibliográfica. O ensino Durante o período 1975-1998 foram criados catorze cursos em doze universidades, sobretudo em Lisboa (Moreira 2006: 320-1). A partir de então, os dados evidenciam um importante crescimento na quantidade e variedade de cursos e no número de alunos. De acordo com os dados disponibilizados pela Direcção Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC), em 2012 ofereciam-se 70 cursos de ciência política nos 1 Este artigo sintetiza os resultados apresentados em Camerlo e Malamud (2015) e Camerlo et al (2015). 1 três ciclos de ensino (licenciatura, mestrado e doutoramento). Entre eles havia uma ligeira vantagem das universidades públicas (37 contra 33), particularmente nos ciclos de pós-graduação. Diferente é a distribuição dos alunos, onde as universidades públicas são claramente prevalecentes. Nos cursos de licenciatura a proporção é de 2630 contra 1088, nos de mestrado de 662 para 265, e no doutoramento de 234 face a 87. O Gráfico 1 mostra a distribuição dos alunos nas diferentes instituições portuguesas, evidenciando a superioridade numérica das instituições públicas sobre as privadas – e em particular do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Por sua vez, o Quadro 1 mostra a oferta académica para o ano 2014/2015, com um incremento de 22 cursos em relação a 2012. Gráfico 1 Alunos matriculados em cursos de ciência política, por instituição, 2012-2013 (cinzento claro = instituições privadas; número de cursos entre parêntesis) Fonte: DGEEC 1485 (8) 608 (6) 466 (5) 361 (5) UTL U. Minho UNL UA 353 (5) U. Coimbra 323 (6) Aberta 317 (7) 225 (5) ISCTE UCP Quadro 1: Cursos de Ciência Política em 2014/15 Instituição Licenciatura Master ou inferior Doutoramento ICS-ULisboa Politica Comparada Ciência Política Ciência Política Ciência Política 2 Administração Pública e e Defesa Internacionais de Segurança e Relações História, Estudos História, Defesa Relações Internacionais Estudos Internacionais ISCTE-IUL História, Defesa Políticas Públicas Políticas Públicas Economia e Políticas Públicas Ciência Política Ciência Política Relações Gestão Internacionais ISCSP-ULisboa fundiram-se em 2013) Políticas Administração e do Relações Internacionais Ciências Sociais Estudos Pública e Políticas do Ciência Política Relações Território Administração Território Pública Administração Pública Públicas Administração Administração Pública e Políticas Pública (A UTL e a UL Internacionais Administração e Políticas Públicas* Europeus Gestão Relações Interculturais Sustentabilidade Social e 3 Universidade Autárquica Aberta Modernização* Estudos e Desenvolviment o do Património Estudos sobre as Mulheres Relações Interculturais Internacionais Universidade Autónoma Relações de Lisboa Gestão Relações Internacionais e Estudos da Paz Administração e da Guerra nas Pública Novas Relações Internacionais Universidade Ciência Política Ciência Política Ciência Política e e e Relações Internacionais Católica Internacionais Portuguesa Relações Relações Internacionais Governance, Leadership and Democracy Studies Administração Pública Administração e Gestão Pública Universidade Aveiro de Ciência Política Políticas Públicas Ciência Política Território, Risco e Políticas 4 Públicas Relações Internacionais Estudos Internacionais Europeus Universidade de Política Estudos Internacional e Resolução Administração Território, Risco Democracia e e Governação - Públicas Roads de Conflitos Pública Relações Internacionais, Europeus Coimbra Relações Políticas to Democracy (IES) Política Cultural Autárquica Universidade Relações Internacionais de Évora Relações Internacionais Política e Relações Estudos Europeus Teoria Jurídicoe Internacionais Políticas Públicas e Projecto Universidade de Lisboa (Letras) Europeus Universidade Estudos da Comparada Ciência Política e Relações Política Ciência Política Relações Ciência Política (associação UA- 5 Beira Interior Internacionais Internacionais UBI) Filosofia - Ética e Política Administração Pública Universidade do Minho Administração Pública e Ciência Política Ciência Política Relações Estudos Internacionais Ciência Política Relações Internacionais Europeus Filosofia Política (luso- espanhol) Relações Internacionais Universidade do Porto Línguas e História, Relações Relações Internacionais Internacionais e Cooperação Universidade Fernando Pessoa Ciência Política e Relações Internacionais Universidade Lusíada de Lisboa Universidade Relações Internacionais Internacionais Ciência Política Ciência Política e - Cidadania e Relações Internacionais Lusófona Relações Estudos Relações Internacionais Governação Diplomacia e 6 Europeus e Relações Relações Internacionais Internacionais e Universidade Ciência Política Estudos Relações Internacionais Eleitorais Lusófona do Porto Estudos Europeus, Estudos Lusófonos e Relações Internacionais Universidade Nova de Lisboa Ciência Política Ciência Política Ciência Política e e e Relações Internacionais Relações Internacionais Relações Internacionais * Curso de Pós-Graduação. Fonte: Associação Portuguesa de Ciência Política (www.apcp.pt). As publicações periódicas O Quadro 2 propõe um mapa das revistas portuguesas mais relevantes que publicam artigos de ciência política. Quatro aspetos merecem ser assinalados. O primeiro é a presença de publicações que não são específicas da disciplina. De um total de treze revistas, três são ‘interdisciplinares’ e duas estão associadas a outra disciplina. Entre as oito revistas específicas, quase metade pertence à subdisciplina de Relações Internacionais. O segundo aspeto é a posição ocupada pelas revistas da ciência política no ranking Scopus: só duas delas delas recebem avaliação neste sistema. O terceiro aspeto foca-se nas trajetórias das revistas da disciplina Por um lado, são de 7 criação bastante mais tarde que as revistas interdisciplinares e de sociologia. Por outro lado, são irregulares: com exceção da Relações Internacionais, apresentam falhas de periodicidade e a frequência dos seus números é baixa, sendo difícil na maioria dos casos encontrar evidências da sua existência pela internet. Note-se também que a primeira revista da disciplina, criada em meados dos anos 1980, teve uma vida de apenas quatro anos. Finalmente, a última coluna mostra que as revistas melhor classificadas, com uma trajetória consolidada e uma presença contínua são geridas por centros de investigação e com presença significativa nos congressos da APCP, nomeadamente o ICS e o CES (com revistas interdisciplinares), o CIES (uma revista de sociologia) e o IPRI (uma revista de relações internacionais). Quadro 2: Revistas portuguesas de ciência política e afins Revista Disciplina Scopus Criação- (2014) Fim Números Pertença por ano institucion al Análise Social Inter- 0,059 1963 4 ICS-UL 0,059 1978 4 CES-UC 0,042 1986 3 CIES-IUL 1992 Irregular CESNOVA Portuguese Journal of Inter- Accepted 2002 Irregular ISCT-IUL Social Science in 2013 disciplinar Revista Crítica Ciências Sociais de Interdisciplinar Sociologia - Problemas e Sociologia Práticas Fórum Sociológico Sociologia disciplinar 8 Relações Internacionais RI 2004 4 IPRI-UNL Res Pública Ciência 2005 Irregular ULHT 2010 Irregular NICPRI- Política e RI Perspectivas Ciência UM Política e RI Revista de Ciência Ciência Política Estudos - e Ciência Sociais Inactiva IEP-UCP Irregular ISCSP- 1989 Política Políticos 1985- - 1990 UTL(UL) Política Janus.net RI Accepted 2010 2 UAL Irregular FCHS- in 2013 Lusíada. Internacional Política RI - 2008 e U.Lusíada Segurança Revista Portuguesa de Ciência Ciência Politica - 2011 1 Política Observató rio Político Source: Raquel Vaz-Pinto et al. 2015 Os congressos da Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP) 9 Os congressos da APCP tiveram o seu inicio em Lisboa em 1999 e consolidaram-se com frequência bienal a partir de 2004. Em duas oportunidades tiveram lugar fora da cidade capital: em 2010 (Aveiro) e 2014 (Coimbra). A APCP tinha-se constituído em Setembro de 1998, escolhendo como presidente um doutorado em ciência política pela primeira vez em 2010. Em 2012 elegeu a sua primeira presidente mulher.2 Desde a primeira convocatória, a participação registou um crescimento progressivo. O número de participantes cresceu de 89 em 1999 até 507 em 2014, com um pico de 548 no congresso de Aveiro (2010). A participação de académicos afiliados a instituições estrangeiras é flutuante, mas a média aproxima-se dos 30%. Os países com a maior representação são o Brasil (14% de participações), Espanha (6%) e GrãBretanha (2%). Outros países com presença significativa são Alemanha e Estados Unidos, seguidos por Itália e França. O conteúdo das apresentações divide-se em quatro grandes áreas (Gráfico 2). Por um lado se encontram as subdisciplinas política comparada (que funciona como ‘chapéu de chuva’) e relações internacionais (incluindo estudos europeus), que representam conjuntamente 74% do total das 2040 participações (com 37% cada uma delas). Por outro lado aparecem as subdisciplinas políticas públicas e teoria política, com uma participação média de 12% e 13% respetivamente. Se descontarmos o pico de 2010, que afetou todas as subdisciplinas de modo similar, observa-se que as duas últimas começam de modo modesto e experimentam um lento mas progressivo crescimento. Pela sua parte, relações internacionais é a que cresce de modo mais acentuado, passando de 19% das participações em 1999 para 47% em 2014, quando se converteu na subdisciplina com maior afluência. Em contraste, política comparada teve um melhor começo mas estagnou nos últimos dois congressos, apresentando uma tendência quase sempre em queda, passando de 58% em 1999 para 27% em 2014. 2 Desde a sua criação, a APCP teve um único presidente da Assembleia-Geral, Adriano Moreira. No entanto, foram presidentes da Direção Manuel Braga da Cruz (1998-2002), João Carlos Espada (20022006), António Costa Pinto (2006-2010), João Cardoso Rosas (2010-2012) e Raquel Vaz-Pinto (desde 2012). 10 Gráfico 2. Participação por subdisciplina nos congressos da APCP (1999-2014) 250 RI 200 Política Comparada Políticas Públicas Teoria Política 150 100 50 0 1999 2004 2009 2014 Fonte: programas dos congressos da APCP (www.apcp.pt). A produção bibliográfica em Portugal Uma analise exploratória da produção académica na revista Análise Social (ICS) durante o período 1986-2014 oferece os seguintes resultados (Gráfico 3). Primeiro, observa-se uma importante participação da ciência política em relação ao conjunto das disciplinas sociais: 180 sobre 775 artigos, um 23% do total. Segundo, a política comparada confirma a sua posição dominante, com 95 dos 180 artigos de ciência política (53%). A seguir vem relações internacionais com 23%, teoria política com 13% e políticas públicas com 10%. Terceiro, os temas predominantes correspondem a participação política (31%), democracia (19%) e partidos políticos (22%), seguidos por poder executivo (11%) e parlamento (8%). Gráfico 3: Artigos de ciência política publicados em Análise Social (1986-2014) por tema democracia participação executivo grupos sist. electoral parlamento partidos políticos poder judicial Fonte: Camerlo e Malamud (2015). Uma análise recente de nove revistas para o período 2000-2012 chega a conclusões similares (Cancela, Dias Coelho e Ruivo 2014). De 300 artigos observados, os temas mais estudados são democracia e desenvolvimento (58), opinião pública (54) e eleições e comportamento político (41), seguidos por partidos e organizações (28), parlamentos, executivos e burocracia (17) e constituições e poder judicial (13). Os autores concluem que a política comparada portuguesa tem-se focalizado mais no comportamento político do que nas instituições formais, expressando assim a importância da sociologia política e o afastamento definitivo do direito. Futuras investigações deveriam incluir a produção editorial em livros, assim como publicações realizadas no estrangeiro. Por exemplo, nos últimos quinze anos politólogos baseados em instituições portuguesas publicaram em revistas de alto impacto tais como American Journal of Political Science, Comparative Politics, European Journal of Political Research, West European Politics, Latin American Politics and Society, Party Politics e Cambridge Review of International Affairs. Conclusões Trinta anos depois do lançamento da sua primeira revista, (a) o ensino da ciência política em Portugal está fortemente estruturado, tanto na graduação como na pósgraduação; (b) o exercício da disciplina está institucionalizado e expressa-se em uma associação profissional; (c) estudos empíricos rigorosos são cada vez mais frequentes, embora sempre convivam com artigos ensaísticos – e se complementem com comentários jornalísticos; (d) os estudos comparados, sobretudo com a Europa do Sul, são abundantes; (e) a abertura ao exterior é enorme devido a três fatores: o perfil de carreira dos principais politólogos, as crescentes necessidades de financiamento e o estímulo da FCT à internacionalização da ciência; e (f) o pendor ideológico já não é relevante na produção académica. Tem alguma ironia, mas também paraleliza a evolução e internacionalização da ciência política portuguesa, que o diretor da sua primeira revista (e autor daquele famoso editorial) tenha chegado a presidir a União Europeia. Referencias Barroso, José Durão (1985) “Editorial”, Revista de Ciência Política 1: 3-5. Camerlo, Marcelo, Alexandre Homem Cristo e Canberk Koçak (2015) “Ciência Política em Portugal. O balanço de uma experiência recente”, em Conceição Pequito (org.), O Sistema Político em Portugal numa Perspetiva Comparada. Entre a Teoria e a Prática. Cascais: Editora Principia. Camerlo, Marcelo e Andrés Malamud (2015) “La Política Comparada en Portugal”, em Mirtha Geary, Juan Lucca e Cynthia Pinillos (eds), La Agenda de la Política Latinoamericana Comparada. Rosario: Editorial del Revés. Cancela, João, Thierry Dias Coelho e João Pedro Ruivo (2014) “Mapping Political Research in Portugal: Scientific Articles in National Academic Journals (2000-2012)”, European Political Science, advance online publication: doi:10.1057/eps.2014.18 Moreira, Adriano (2006) “Political Science in Portugal”, em H.-D. Klingemann (org.), The State of Political Science in Western Europe. Opladen & Farmington Hills: Barbara Budrich Publishers: 311-23. Vaz-Pinto, Raquel; Costa-Pinto, António; Camerlo, Marcelo; Homem-Cristo, Alexandre; e Koçak, Canberk (2015) "Political Science in Portugal in the 21 st Century: A Critical Appraisal", in Barbara Krauz-Mozer (ed.)Political science in Europe at the beginning of the 21st century, Jagiellonian University Press, Cracóvia (no prelo).