Da Queda [fragmentos]
Uirá dos Reis
I
Andei por todas as ruas possíveis, acariciei rapazes em silêncio e com o olhar,
sorri futilidades plenas – mas meu peito, batucado incapaz, meu peito
arremessava singelezas àquele que tenho distante agora [suas ruas são ruas
opostas, pois nunca que eu o vejo, nunca que o encontro tropeçando em pedra ou
madeira, chutando areia pro vento, arrancando folhas das árvores como uma
criança] / àquele que me viu morrer.
“Senhora”, perguntei quase apático, quase como quem dorme, perguntei:
“Senhora, esse papel é seu?”.
- Ó, sim, meu filho e muito obrigado.
- Não há de quê. – e a paisagem era quase marrom, era como um silêncio, um
tremor silencioso / a paisagem era turva e era quase marrom / era um ir e vir do
nada pra lugar algum – e eu no meio – e ele no meio – e nós numa mudez de
defunto no meio daquilo tudo, daquele nada potente, daquele vácuo infeliz: eu de
pé naquela encruzilhada e ele deitado em meu pensamento.
“Não há de quê”.
E as ruas eram infinitas, eram, iam para tantos lugares e queriam e teimavam
e chamavam, belas ou não, elas me chamavam, acariciando minha cegueira
como quem guarda um tesouro, como quem devora a caça – carros deliquentes e
sem face, esquinas com cheiro de merda, meu peito inutilizado, rapazes que me
mostrariam a bunda por qualquer dinheiro, motocicletas que se arremessavam ao
topo da rua que subia, bicicletas arredias e pilotos surdos: 3.000 pensamentos e
nenhum caminho de volta. Era o Candeia somente quem sussurrava alguma
esperança em meu ouvido, era ele quem movia o tempo, quem me ensinava que
a volta era depois da curva e que uma curva não é uma espiral, era o Candeia
somente – de resto? de resto era velocidade ao redor e uma sensação vazia no
estômago, um frio nos dedos dos pés e das mãos e essa minha vida de vulto
agitado, fantasma que não desencarna, que vive no limbo como quem vive a vida.
O desespero fantasiado de força, a solidão virada em mistério, o abandono
vestido de superioridade. Eu e meus dentes amarelos atravessando a rua numa
velocidade tão mínima que quase inexistente [atravessando a rua com a certeza
de nunca chegar]. Eu e meu lugar algum que teima, que ultrapassa minha vida,
arremessando-me ao espaço. Eu, que tenho somente a certeza de estar perdido.
“Não há de quê” e nenhum outro estranho me olhou nos olhos, me perguntou
como vai?, nenhum outro estranho me quis como amigo, me disse bobagem,
tocou minhas mãos, nenhum outro estranho além daquela senhora que não via
nada ao redor – e ela não tocou minhas mãos, nem viu meu olhar sobre as lentes
grossas ou mesmo sentiu meu cheiro: as ruas são sinfonias mudas quando é
deserto o peito, quando a alma queda-se amuada e sem saber como fazer pra
novamente se fazer de pé: Candeia, Nelson Cavaquinho, tudo misturado e meu
corpo que não se mexia. Somente os faróis que me ultrapassavam me mostravam
vida, movimentavam minhas retinas como alegoria morta, como paisagem
borrada, somente os faróis e a velocidade das ruas. Meu corpo era continente
sem hemisfério caminhando soberano sobre o asfalto escaldante da avenida.
O que perfura o estômago, agora sei, está aqui dentro, e é em mim que o
monstro surge para alcançar o outro, é em mim. Sem autocomiseração, sem o
vitimismo cotidiano, sem o sonho de causar piedade e, assim, encontrar o amor
[rosas roxas te esperam no pátio, criança], sem nada disso agora, por favor.
Tomemos a razão pelas mãos e caminhemos pelas ruas como quem traz no peito
a vontade da certeza e o desejo de seguir. O céu passa o dia mudando de cor, os
carros sempre mudam de lugar, pessoas cruzam seu caminho miserável durante
todo o dia: a movimentação é regra natural e imposta, as mudanças hão de
chegar mesmo que você tenha partido já, já não esteja, já não seja, ó: Caminhar,
caminhar, caminhar e não ter borda, o mundo, não ter banco de espera, não ter
sombra de arvoredo, não ter pacificador de peito [as vozes são tão velozes que às
vezes penso não poder suportar, ai], não ter ninho certo nem abrigo inodoro: Se
assim é, se assim está, é porque peguei o caminho mais curto, talvez, ou talvez
tenha eu saltado no meio do caminho, segurado em mãos erradas, abraçado os
fantasmas de merda que me ridicularizam e me fazem errar e errar e errar
caminhando a esmo na esperança de encontrar a mim próprio e, assim, rever os
olhos famintos do rapaz que me alucina.
Piso no asfalto com dor e prazer. Acaricio meus dedos dentro dos tênis e
penso em remover-me do lugar de origem, mudando a paisagem, pintando de
azul o marrom que me cerca, deixando pra trás a confusão robusta onde me
afogo agora, sonhando com campos elíseos onde minha alma selvagem possa se
deitar. Piso no asfalto tateando minha existência como quem engole pregos, como
quem remove pedregulhos, como quem escava cavernas enormes ou escala os
infinitos andares de Sete Cidades com mãos desnudas e só. Gostaria de me
propor uma meta, mas não posso e não consigo e não o faço. Atravesso mudo a
avenida e chego cego ao outro lado. Sigo caminhando [passos firmes sobre o
chão] como quem flutua, voa, como quem entorpecido lança o corpo para o alto
na tentativa de nunca cair. Tento rir de mim mesmo mas nada eu faço. Não
enxergo o mundo, só o sinto e sei que ele me cerca, como sei que faço parte do
desconhecido. “Não preciso de você” e eu gostaria de ter dito isso enquanto nos
engolíamos, mas é mentira, e eu preciso, eu preciso sim.
Enquanto o asfalto me confunde, enquanto as estradas me circundam,
enquanto os esbarrões me mudam de lugar, vejo em minha memória o rosto
deformado pela tristeza do rapaz que me alucina. Procuro suas mãos, seus dedos
miúdos, fecho os olhos procurando o seu pescoço de carne triste e branca, ergo
as mãos tentando alcançar suas costas, seus ombros largos e
- Porra! Sai do caminho, imbecil! – alguém me grita feroz.
“Desculpe”, quis dizer mas nada eu disse. Lancei meu corpo contra o muro
onde fiquei por alguns instantes ainda, fitando o invisível como quem toca um
cometa, beijando a fumaça dos carros velozes como quem beija a amada,
sugando o tempo que corre como um mergulhador atrás de se manter vivo no
fundo de um mar revoltado. Depois torno a caminhar lentamente, passos duros e
pesados sobre o chão-asfalto, lentamente, sem saber aonde ir – depois: Por hora
me enfio no muro.
...
-...então porque diabos falar em suicídio, se o temor não é tão grande e nem é
grande o seu amor por mim ou por você mesmo, porque fingir que é profundeza o
que é superfície e só?
- Você não entende nada. Nunca entendeu nada.
- E você nunca me falou a verdade.
O tempo que se leva para compreender o outro [envolto em paisagens
enganadoras, confusões fincadas como mastro em rocha lunar] é o tempo que se
leva para caminhar até a morte. Sustentar uma mentira por horas a fio é coisa de
artífice – e por dias inteiros é coisa que só os deuses conseguem fazer.
- Acontece que a confusão é criada por esse silêncio arrogante e por todas as
nossas mentiras.
- Não lhe devo explicações, nem você me deve explicações, nem...
- Nem ninguém se deve explicações e nem é isso, nem é disso que falo agora,
porra, nem é nada disso que falo. Acontece que é preciso um cuidado, caralho,
somos frágeis e morremos e sofremos e ficamos tristes e fazemos mal um para o
outro quando nos fudemos dessa forma, camarada.
- Quem começou não fui eu.
- Quem começou não fui eu também – e agora? Vamos culpar a quem? Culpar o
calor incessante desta cidade, o céu que é branco e que cega, ou talvez culpar o
mar por ser verde, verde escuro, verde-oliva-escuro-quase-gótico, o mar, ou talvez
culpemos aquele senhor por nunca vender Hollywood nem nunca vender cachaça
fiado pra nós, ou ainda podemos culpar toda a sorte de miseráveis filhos da puta
que cruzaram nossos passos ao longo desse ano e do outro e de todos os outros
ainda. Não vou perder tempo culpando ninguém, eu só queria entender...
- Mas você nunca entende nada! Se acha sensível, etc., mas nunca sai de si,
nunca toca o outro tão profundamente, nunca se despe de fato, nunca me despe
também! Você nunca entende nada!
Silêncio, mudez, apatia. E ele volta:
- Podemos começar um jogo: Eu falo a verdade se você me fala a verdade
também. O jogo do ouro: Te entrego meu ouro se tenho seu ouro nas mãos. Que
tal?
Minha boca muda quis pedir silêncio, mas não poderia. Então manteve-se
quieta enquanto, mirando a boca gostosa do amor-algoz, meus olhos
arremessavam flechas de cupido assassino em direção aos lábios que moviam-se
com a costumeira fúria, com a eterna velocidade, com o cinismo constante, com o
desejo latente de estar, permanecer e de fugir, partir para bem longe, vezes a
meu lado, vezes tão sozinho e ele era assim e era assim que ele era sempre. Não
podia compreende-lo nem queria também aceitar a distância que parecia se
aproximar agora. Não queria jogar meu peito repleto de amor e de angustia contra
as rochas na beira da praia. Não queria o risco de não conseguir nadar, de não
sobreviver, de ficar imóvel, engolido pelas ondas incessantes, musculosas, tão
maiores que meu peito e muito menos cansadas que eu.
Ele sabia me ferir e esse era um jogo que ele adorava.
Ele sabia atirar pedras contra mim, ele sabia arranhar meu pescoço enquanto
minha boca engolia o chão, ele sabia colocar seu pé como pedra invisível em meu
caminho só pra me ver cair. Ele sabia, pois aprendeu. Eu ensinei. Eu ensinei e me
arrependo. Mas não queria estar sozinho, não queria deixar de tocar seus olhos e
de ouvir sua voz, nem queria também deixar de sentir sua fúria, perceber seu
medo, seu carinho, espanto, tudo. Não queria não tê-lo por perto, mas não sabia
faze-lo ficar.
O sol, espantosa bola de fogo sobre nossas cabeças, o sol mudava de lugar
no céu, indicando a passagem de tempo, dizendo que o dia acabava, mostrando
que o escuro rondava e nada tinha a fazer. “Irremediável a chegada do escuro”,
dizia o sol enquanto se movia para o horizonte, pintando de vermelho o azul tão
branco do céu lá no alto, deixando rubras as cândidas nuvens enormes, criando
sombras fantásticas entre os edifícios, enegrecendo as praças com sua partida
involuntária. “Irremediável, filho, irremediável”, e eu lamentei.
É preciso coragem para olhar firme o céu enquanto o sol se põe. É preciso
coragem de soldado para isso. Perceber que a mudança e você não são a mesma
coisa, perceber que a natureza não se enluta por você chorar, perceber que o céu
muda de cor e o tempo corre mesmo quando você quer paralisá-lo, mantê-lo ali
onde você está. “É preciso coragem”, falei quase alto.
- Quê?
- Coragem, eu disse.
- Sim, isso eu entendi. Mas...
- Pensei que é preciso coragem para manter-se vivo mesmo afogado em
adversidades. Não acha?
- Se você fala de nós...
- Nem sei se de nós, ou se de nós apenas, nem sei! Falo de perceber com muita
dor que as coisas existem com ou sem você – e assim também são as pessoas –
também elas sobrevivem a sua partida. Nelas existe a vida para além da sua – e
isso às vezes dói.
-...
- Estar a seu lado é o que quero agora, mas não consigo, nada eu consigo fazer.
-...
- Parece que tudo repele quando nos fitamos, nos avistamos de longe, parece que
chega o inferno, que os demônios são liberados para brincar seu carnaval quando
nos aproximamos um do outro! Os demônios brincando seu carnaval fatídico
enquanto o sol se põe.
- E tudo às nossas custas! – falou sorrindo e brincando, olhando com olhos de
enigma para frente, como eu.
- É, tudo às nossas custas... – repeti quase engasgando, fingindo um pouco de
alegria, tentando partilhar de seu sorriso estranho.
Um silêncio gigantescamente breve até que eu disse: “Queria te dar um beijo”,
ao que ele não respondeu. Se fez silêncio cansado, se fez mouquidão milenar, se
fez tristeza aparente, se fez defunto no mar.
Ai, a dor que o silêncio traz, a dor que me toma agora, a dor que me quebra os
ossos! Acendi um cigarro e enfiei a garrafa entre os lábios como quem engole
cobras. E ele não se mexeu. Gostaria de ter-me levantado, correndo, gritando
como uma fera contra os grilos cantadores que azucrinavam minha vida
irrompendo naquele silêncio infernal – só pra mostrar toda minha angustia, minha
fúria inadequada, minha raiva masculina, meu desejo homicida de amor e de
amá-lo e de ser por ele amado ad infinitum e muito mais, mas nada eu fiz, nada
mesmo. Bebi uns goles enormes, fumei com sede o cigarro e mantive meus olhos
no outro lado do lago. “Grilos filhos da puta!”, pensava de vez em quando.
A lua começou a despontar no céu e não trouxe consigo, em seu colo, ela não
trazia novidades. As nuvens desapareciam pouco a pouco e o céu ficava belo e
ficava grande e estrelado. A natureza estava feliz, parecia. Brindava com alegria
não sei quem por não sei quê, mas não era eu. “Grilos filhos da puta”, pensava. “E
ainda esse céu que não traz em si nenhum vestígio de chuva, de trovão, de
arrepio, medo, febre!”. Queria que o mundo ruísse. Queria as trevas reveladas
agora para todos nós – e eu gritaria meu amor sublime para ele enquanto o chão
se abria, nos daríamos as mãos, nos beijaríamos demoradamente antes de
sermos sugados para baixo, cada um para o seu lado, cada um com seu enxofre,
sua fogueira e seu temor, pediríamos mais tempo, tocaríamos a face um do outro
em silêncio, os olhos juntos, teríamos o poder de mover a história, de guiar a
humanidade para o alto e para o claro e
- Preciso ir – ele me disse, tocando brevemente em meu braço.
- Certo. Também me vou.
- Tchau.
- Até breve.
- Tchau.
E o céu era de grande beleza naquela noite de perda.
...
O gosto do tempero na boca – nutro desde minha infância um fascínio não
pelos alimentos em si, mas pela permanência do sabor em minha boca e decerto
por isso até hoje não gosto de escovar os dentes, mas o gosto de tempero na
boca – me deixa estático, me faz permanecer sobre este chão desconhecido,
entre cheiros invisíveis e transeuntes invisíveis também. As cores que corroem
minha mente agora são: marrom opaco de madeira sem verniz e velha, azul
escuro quasi-nada e um róseo, róseo de parede, aquela coisa sem vida – mas o
semáforo mistura tudo e brilha e pisca e sobe e desce com suas luzes que
indicam um ir e vir de gente e automóveis que nada têm a me dizer. E nada eles
dirão. O muro onde entro tem pontinhos de cimento que arranham minha pele
mas eu não me importo: sinto os arranhões de quando em quando e continuo
entrando, atravessando a parede com força atroz, vontade faminta de
invisibilidade. Na maior parte do tempo sinto somente frio, um frio de febre, de
dentro do corpo para a epiderme e só, como quando caminhava pelas ruas de
Teresina, aquele calor seco e bom queimando meus órgãos intactos,
transformando o quente num frio gostoso de febre que subia e me tomava,
entorpecendo a mim e aos meus passos que, deriva constante, seguiam sem se
preocupar. Penso por um segundo que “meu deus! Que horas são agora?” e
depois me esqueço de pensar. Sou devorado por nuvens de areia que cintilam em
minha mente ruidosa, devorado por rostos que surgem e desaparecem com
velocidade e também sou devorado por minha rua da infância, lá no Rio de
Janeiro, onde fui feliz e triste e onde fui criança e tive meus olhos fincados no
céu / Abrupto, meus olhos se abrem, minhas mãos reverberam os movimentos do
peito, tremendo num palpitar oscilante, erguendo e reerguendo o medo e a
solidão. O dia tem horas demais. Estou aqui por uma eternidade e não tenho mais
certeza de que eternidade falo. Talvez minutos, segundos – horas não e disso eu
tenho a certeza: o céu ainda tem a mesma cor de antes agora, ainda as mesmas
nuvens no céu, ainda o mesmo transeunte nervoso que me quis distante do seu
caminho [ainda vejo suas costas ali seguindo adiante; carregando seus dias
dentro da sacola de plástico verde que sua mão forte segura]. Decido caminhar
pelas ruas, sem rumo como sempre estive, movimentar minhas veias, mostrar aos
músculos que eles não são estátuas esquisitas que servem somente pra manter
de pé meu corpo – sua morada.
Queria abrir minha pele, dissecar meu corpo, descobrir como é meu peito, meu
baço, intestino, ossos, perceber de fato como funciono e porque funciono assim,
tão estranho [corpo de avalanche], tropeçando sobre mim todo o tempo,
derrubando louças como quem derruba árvores, pisando em canteiros como
quem bombardeia uma cidade.
Queria abrir meu corpo, dissecar minha vida que é tão mais longa já do que eu
esperava, do que eu pressentia, do que eu desejava, essa vida vulcânica, de
lavas que repelem quem tenta se aproximar – essa é minha prisão, esse vulcão
inóspito. Tem beleza sim mas causa tanto medo, sabem não poder pisar, sabem
que se permanecem algo forte há de acontecer, mas o quê? ninguém sabe: não
há aquele que tenha assistido a uma erupção de lavas incandescentes de dentro
de um vulcão e tenha sobrevivido – e por isso todos fogem, todos temem, todos
preferem desaparecer a descobrir o que há aqui, nesse vulcão-prisão que é minha
vida. Devastadora e devastada, ai.
Na minha solidão toco o mundo inteiro como se tocasse a mim mesmo, numa
masturbação contínua e involuntária, masturbação em calvário sujo, chão de
piçarra e areia, corpos defuntos se desfazendo para todos os lados, multidões de
cães embriagados latindo vezes em minha direção e vezes em direção alguma,
paredes flácidas que combinam peso e levitação, cortinas de cetim rasgado,
corroído, podre já de tantos anos de uso. Na minha solidão faminta sinto o mundo
jorrar sua porra sobre o meu cadáver. “Perversão amena”, diriam os fascistas do
meu tempo e de tempos outros que já não existem e que ainda existirão. O
mundo é uma bola de neve com mil olhos que testemunham seu próprio final – e
eu no meio – e ele no meio – e todos no meio, cansados, sem braços ou pernas
ou mãos: somente olhos e bocas proferindo sons que não guardam sentido,
palavras sem forma que se desmancham num fragor sobre as rochas invisíveis
que flutuam pelo ar.
As ruas têm mistérios – mas como desvendá-los? As ruas têm mistérios e
meus pés estão cansados – mas não consigo parar. Outra encruzilhada. Outro
semáforo empoeirado piscando um destino que não me diz nada – a placa indica
“por aqui” mas meu peito não ganha certeza ao lê-la. “Por aqui é por onde?” e é o
que pergunto enquanto minhas pupilas dilatadas rodopiam para cima e para baixo
como quem pede um descanso, um desmaio, um partir rápido e pra longe, um
sumir pra não voltar. Então eu paro, confuso. Talvez meus pés se decidam e
desloquem meu corpo para a esquerda ou direita ou talvez meus olhos sujos se
desmanchem como os corpos no calvário imaginário e tão real, que me conduz,
que me cerca, que me engole e alimenta. Alimento assassino, de venenos
tumefactos, frutas velhas, carnes podres, pães mofados, queijos se virando em
leite coalhado, tripas cruas e ainda com cheiro de sangue e de fezes, tudo junto e
ao mesmo tempo enfiado com força em minha garganta infeliz. Assim é o meu
tempo. “Se você não pode partilhar dessa porcaria que é o seu tempo, que ao
menos morra de barriga cheia!”, as vozes gritam em minha cabeça fixada sobre o
pescoço inútil. De nada vale meu corpo. De nada meu peito também. “De que é
feita a existência?”, pensei em perguntar ao homem que passava ali, mas não o
fiz. Olhei em seus olhos [uma serenidade, uma tristeza pacata, melancolia
assistida], movi meu corpo para frente, mas nada eu disse. “A existência, de que é
feita?”, perguntei para mim mesmo.
- O que disse?
- Hã? Nada, nada. Falava comigo mesmo.
Ele parou dois instantes e me olhou bem nos olhos – sei pois fitei-o fazendo
isso – enquanto eu baixava a cabeça com velocidade.
- A existência é feita de muito – ele me respondeu. E é por isso que sofremos
tanto.
Sorri um sorriso idiota, os olhos fincados no chão, e disse um nada, uma
merda qualquer, talvez tenha dito obrigado, nem sei. Senti sua mão em meu
ombro. Fitei-o nos olhos e eles diziam nada. Pensei em pedir-lhe um beijo. “Me dá
um beijo de língua?”, mas isso seria estranho. Então fiquei onde estava com ele
onde não deveria estar, mas fiquei, ficamos ali. Fechei meus olhos querendo
senti-lo sumir, mas nada eu senti. Se ele não parte, se sua mão não cai no chão e
se ele não me diz nada [sua boca movimentava uns movimentos mudos e aquilo
me dava medo] preciso partir eu mesmo, sem velocidade nem suavidade, forjando
uma normalidade, uma comunhão com meu mundo, meu tempo, minha gente.
Serei assim: brasileiro, morador de capital praiana, caminhando pelas ruas do
centro, normalmente, normalzinho, caminhando apenas. Deixarei esse esquisito aí
falando sozinho, com sua mão sobre os ombros do ar, sei lá. Vou sair. Tenho
medo, porra!, vou sair. E saí. Coloquei minhas mãos nos bolsos, desviei meu
ombro de sua mão ossuda e caminhei, sem olhar para trás, imaginando-o
perdendo o foco na paisagem diminuta que meus passos geravam às minhas
costas.
Enquanto eu caminhava, minhas mãos tremiam um tremor de morte, de
acidente, de lesão desesperada – meus olhos não viam nada: o mundo era uma
nódoa, uma mancha imaginária incendiando minha mente que rodopiava e
rodopiava num sem-fim de confusões.
Ai, meu tempo de miséria, minha vida arrebatada, minha existência louca,
minha alma estrábica, minhas mãos desesperadas, minhas costas sem afeto,
minha lâmina na boca, minha língua estrangulada. Ai, os dias aturdidos que,
parece, para sempre serão meus.
“É por isso que em mim o monstro mora”, pensei sem muita surpresa. “É por
isso que minha vida é lava espessa, é por isso que tateio o corpo amado como
quem tem pregos nos dedos e é por isso que beijo sua boca como quem vai a um
enterro”. Não sei amar nem saberia. Sei vislumbrar, imaginar, fingir, forjar, mas a
vida real me é inimiga. Tudo o que for real será terrível para mim. Tal qual para o
meu tempo. Por isso os templos hedonistas e os deuses e os jogos de
computadores têm tanta força e importância, por isso meu tempo me entrega
como grande loteria a tolice acumulada, por isso o gosto de merda na boca do
meu tempo, por isso o cheiro de lixo devora as cidades do real nesse tempo de
nada, tempo de merda esse, tempo de lugar algum! Por isso sentimos como se
uma esfinge sagrada adentrasse nosso corpo pelo ânus, pelo cu, com muita
velocidade, por isso as atrocidades são expostas com real normalidade, por isso
carregamos como emblema a saudade e a solidão.
Não vou sequer flertar com este tempo, é o que gostaria. Quero que ele passe,
quero que ele morra: Nego o meu tempo agora como um suicida nega sua vida.
Nego meu tempo agora como o inferno nega o seu oposto. Nego meu tempo
agora como sempre negarei a cruz. Nego meu tempo agora como o rapaz que me
alucina nega o meu amor.
O meu amor, que tenho, tenho sim, mas não sei dar nem ofertar, não sei viver
o meu amor, ai / Meu amor é como veia aberta: implode o corpo, mas nunca
chega ao outro e, parece, nunca chegará.
Meus pés alcançam uma velocidade como se procurassem alçar vôo para o
infinito, como se nos calcanhares eles tivessem asas, como se meu corpo fosse
pluma solta entre os prédios da cidade. Rodopio muitas vezes, giro o corpo em
torno de mim mesmo para um lado e para outro, sigo as cores que minha mente
vê – arremesso minha existência contra tudo e contra todos enquanto ninguém
me vê: tenho agora cor nenhuma, sou espaço alucinado sem tempo de volta ou
de ida e não sei o que será, o que serei, o que virá depois de agora, dessa
confusão robusta, confissão desesperada, eu não sei.
Quando percebo, estou sentado no chão, calçada úmida e larga, e eu sentado
sem nenhuma cerimônia olhando os outros passarem. O dia tem horas demais,
mas agora a hora é outra. Muitos infinitos se passaram, eternidades muitas se
passaram e eu aqui, sentado, o mundo girando ao redor, barulhos velozes,
crianças com seus parentes, mulheres solitárias, homens que não dizem nada,
olhos e bocas e pernas e bundas e muitas roupas de marca: Tantas eternidades e
o que mudou foi somente a hora, que agora é outra / Vejo o sol se pôr – sem
beleza, entre os prédios mesmo, sem beleza alguma – da calçada eu vejo o sol se
pôr.
...
Ele me acorda:
- ... dormindo?
- Hum... Não, não. Que foi? – meus olhos estão fechados.
- Preciso ir.
- Tá bom. Deixa a porta aberta. Fecho depois. Beijo.
- Tchau – e seu vulto atravessava a porta e a outra porta e tocava o asfalto com
os pés. Seu vulto queria tudo que não fosse eu, mesmo que não soubesse me
dizer adeus. “Tchau” e sempre um “Tchau” e nunca um “Beijo” – às vezes um
“Falou” mas nunca um “Beijo”, nunca mais. Demoro a entender os processos
alheios pois sou entupido de mim. Demoro a sanar-me também. Não posso
conduzir a orquestra e sempre me jogam de fraque a frente da desafinada
orquestra e é sempre assim, esse jogo interminável, desleal e sem sentido.
“Tchau”. A porta batendo suave. O dia começando torto. A boca com gosto de
espasmo. As roupas jogadas no chão.
Lavei meu rosto mergulhado na pia como se ela fosse uma banheira gigante,
uma piscina olímpica, um oceano, uma cachoeira enorme, um lavabo imperial.
Acariciei minha face com a água entre os dedos pedindo carinho a mim mesmo e
depois caminhei pela casa, ouvindo a vida do lado de fora, renitente, matinal,
alvoroçada. “A vida do lado de fora”, pensei, acendendo um cigarro. Nunca me
lembro de comer assim que acordo, mas sempre que ele dorme aqui me lembro
de fumar um cigarro ou dois. Depois vou catando meus cacos, minhas roupas,
meus discos, depois vou me recompondo, me distribuindo, me arrumando, ao
longo da manhã. “A vida do lado de fora”. Aqui dentro o silêncio era grande, era
como uma morte, essa solidão sem fim. O que havia acontecido que fez de nós
esse silêncio, essa dor, essa violência contida adornada por cores insossas, eu
não sei. O que sabia, e o que sei, é que agora assim nós éramos – agora assim:
sem cor.
Queria tomar dez comprimidos de qualquer remédio, mas não tinha nada em
casa nem dinheiro pra comprar. Queria falar com alguém mas na verdade queria
era falar com ele, com ele somente – aos outros eu dava o silêncio que ele me
dava, me entregava impune, aquele silêncio que era violência e mais nada. “De
onde tiramos tanta brutalidade?”, pensava repetidas vezes e a resposta não
chegava. “De onde, de onde?” e caminhava pela casa como se limpasse o chão,
buscando a resposta nos móveis, no espelho da sala, na pia, na privada, na
geladeira vazia, mas nada me respondia. Limpando a casa mantive a manhã
inteira aquele diálogo esquizofrênico com a mobília do lugar: passei pela manhã e
cheguei na tarde iluminada. O dia lá fora era lindo, como sempre é aqui – folhas
verdes, crianças a caminho de casa ou da escola, pipas coloridas no céu dessas
férias, vizinhos ouvindo o rádio e cantando junto, automóveis – sempre eles,
automóveis – que rugiam com potência, indicando mesmo algum tipo de vida lá
fora. Mas dentro dessas paredes onde meu corpo teimava nada mais tinha cor. O
que havia de sublime aqui já tinha atravessado as portas, já caminhava sobre o
asfalto da cidade lá de fora, já errava com seus passos de silêncio e de volúpia
pelas ruas cintilantes da cidade iluminada. Eu não: permanecia no mesmo lugar,
com minha dor intacta, pulsante, minha dor silenciosa, minha dor tão companheira
nesses dias miseráveis que teimavam em existir.
“Hoje não saio de casa!”, falei alto para o espelho como se desse uma ordem a
um vassalo invisível. “Ouviu bem? Hoje não saio e pronto!”. Me permitia a
fantasia, pois me fazia sentir melhor. Ouvir meus gritos, minhas ordens
enlouquecidas – “É melhor limpar os pés antes de varrer a casa!” – me fazia
esquecer o silêncio que me engolia e engolia novamente. Passei a brincar comigo
virando-me em dois, em duzentos, em trezentos e cinquenta! Lembrei de Mário de
Andrade e então comecei a ler poemas em voz alta e também a aplaudir minha
leitura, a vaiar, a pedir versos – improvisos da loucura para amansar a mesma.
Descobri uma garrafa de cachaça pela metade, já velha, e então pus-me a beber
e a brincar comigo mesmo. Cantei canções soluçantes, reli poemas da infância,
escrevi asneiras toscas em pedaços de papel, datilografei seis cartas, lavei a
louça e o banheiro, fiquei nu, troquei de roupa, me masturbei várias vezes, até
quedar-me, cansado. Chorei por algumas horas, depois gritei sorridente – “Um
demente! Um demente! Você é mesmo um demente!”, eu gritava para mim. “Um
demente! Um demente!”, e me enchia de orgulho de mim mesmo, por saber-me e
compreender-me, pessoa estranha que sou, e por ter o peito aberto a ponto de
gostar de mim. “Obrigado”, disse chorando ao espelho. “Obrigado mesmo, viu?”,
falei, trêmulo [a voz enrouquecida ecoando sozinha pela sala até a cozinha].
Abracei o meu reflexo querendo em mim o outro. Fingi sentir minhas mãos
querendo o toque do outro. Celebrei minha vida louca fingindo ouvir as palavras
saídas da boca do outro – e depois caí no chão, de costas, como um soldado
morto num front de merda qualquer. Senti dor em minhas costas, em minha
cabeça assanhada, em meus braços da ancinho, em minhas pernas de idiota e
depois dormi por horas, até chegar madrugada.
Na manhã seguinte parti para o centro da cidade em busca de um paraíso,
algo novo, uma luz que arrebatasse, um veneno que cortasse a pele astuciosa, o
peito aveludado. Caminhei por todas as ruas novamente, toquei com os olhos mil
pessoas, mil mulheres, mil rapazes e mil senhoras de olhares tristonhos.
Caminhando loucamente percebi um olhar cruzando o território de minhas retinas.
Retribuí o olhar silencioso e depois retribuí o sorriso silencioso também. Sua pele
parecia gemer – era um rapaz bonito, que me entregou um papel. “Daqui a
algumas horas”, ele disse. Eu disse que tudo bem. Fiquei parado observando ele
desaparecer na miríade faminta que compõe as ruas. E caminhei. Caminhei,
fazendo passar o tempo, rolar as horas, uma após a outra, em passos largos,
velozmente.
Depois de horas, enquanto olhava cego as vitrines, percebi um reflexo imóvel
fincado atrás de mim. Olhei e era ele, o rapaz do papel e do sorriso e do olhar. Ele
pegou em minha mão e me guiou para um lugar desconhecido – subimos uma
escadaria de degraus pequenos, uns cinco lances até a porta de ferro onde ele
bateu e bateu. Depois de alguns minutos [silêncio desgovernado] abriram para
nós a porta. “É ele?”, o anão que havia nos atendido perguntou. O rapaz então lhe
respondeu que sim com um gesto mudo e o anão olhou para mim e sorriu. Me
guiou, suas mãos em minhas mãos, me guiou para uma sala um pouco mais
acima, outros lances da mesma escada esquisita, de degraus pequenos e
amarelos.
- É aqui que você fica – ele me disse.
- E faço o que? – perguntei, gaguejando, com medo, mas curioso e sedento por
descobrir. E então? Eu faço o que.
- Tem um papel naquela mesa, ao lado do microfone. Só precisa ler o que está
escrito no papel. O microfone está ligado, portanto não digamos improvisos,
somente o que o papel mostrar.
- Certo.
- Boa sorte – ele me disse, com um sorriso aberto na boca bonita, gigante, de
dentes fortes e beges – ele me disse, enquanto batia na minha bunda com um
certo carinho, uma intimidade camarada que estranhamente me tranquilizou.
Tudo era escuro lá embaixo e nada eu podia ver, mas sabia algo existir, pois
ouvia um murmurinho repleto de pecado e medo, um pulsar de luxúria e de
amamentação, “algo entre a libertação e a praga”, eu pensava, “algo entre o
desejo de viver e de morrer”. Mesmo não podendo ver, minha curiosidade
convulsiva entortava minhas retinas para lá e para cá [nos outros lá embaixo, eu
suspeitava, os olhos se moviam lentamente buscando nas silhuetas uma
resposta, um messias, um milhão, um oceano – os olhos são como plumas – a
suavidade das retinas elásticas. As mãos que tateiam o ar escuro como quem
procura a caça, as mãos querem sucumbir, mas o corpo não desarma a arma
amarga que é o pouco coração: oco, imensidão vazia, deserto nunca aprazível,
silêncio e solidão].
As luzes acenderam. Era um teatro velho e imundo, uma platéia atenta.
Ruídos de garganta tensa e a hora de eu entrar, ler o texto no papel.
- “Queridos” – e eu lia gaguejando, tropeçando nas palavras – “Nossas almas
guardam treze mil sabores, e aqui vivenciaremos alguns deles, enroscaremos
nossas existências umas nas outras, seremos mais que carne ou pó. As portas
estão trancadas agora e...”
- Cale a boca, ô seu idiota!
- Vá se fuder, imbecil! – e todas as vozes da audiência começaram a me xingar.
Por alguns instantes eu não soube o que fazer e por isso nada fiz. Fiquei imóvel
ouvindo as vozes, imaginando “quem serão os donos dessas bocas que me
xingam? Eles andam pelas ruas, talvez até tropecem em mim ou me ajudem num
momento de pânico ou não sei, sei lá!” – e eu não sabia de nada. Resolvi então
ler rapidamente o que estava por vir e gritei “Entre o primeiro ator!” e o anão
entrou. Enfiado numa calcinha vermelha ele girava num monociclo, espartilho
colorido, os braços abertos em cruz, sorrindo aquele belo sorriso gigante de
dentes fortes e beges, ele se movia de uma ponta a outra do palco e assim,
rodopiando velozmente, assim ele ficou por horas. Seu rosto se transfigurava. No
seu sorriso agora havia somente a tontura, o corpo boiando sobre os pedais do
monociclo – os braços sempre em cruz. A música era uma canção de cinco notas,
tocada por um trombone invisível que ressoava e ressoava e ressoava naquele
sem fim de horas onde o anão se encontrava. Ele mudava de cor, ficava amarelo,
estranho, parecia querer desmaiar – a platéia queria mais. Quanto mais fraco ele
ia ficando, mais tonto, mais sem cor, mais a platéia urrava, pedia, queria,
aplaudia, gostava.
Por fim, o anão queria desistir. Começou a pedir ajuda – “Não, porra!” e “Fica,
seu filho da puta!” eram os gritos mais constantes diante de seu pedido. Meu
medo, por sua vez, crescia e crescia e crescia: mais turvo e mais turvo ainda era
como tudo ficava ao redor de mim. Minhas mãos tremiam e meu peito realmente
se desesperava. Minha voz saía pouca, as palavras se despedaçavam no ar.
Quando enfim tentamos substituir o ator anão por outro, ouvimos as vozes de
“nunca!” e também de “vá à merda, cidadão!”. Quando o ator, exausto, exaurido
do esforço físico, nos pediu chorando que o tirássemos dali ouvimos um tiro e o
ator caiu no chão. Pás gigantes o removeram do palco e passaram velozmente
panos pelo chão, deixando o tablado intacto. Fiquei tomado por sentimento
indizível e fiquei mudo e minha pele parecia já não existir: derretia, grudava na
mesa, no microfone, no chão. Até que, pendurado por grossas correntes cravadas
em seus mamilos, eis que surge um novo ator. “Comediante! Comediante!
Queremos o comediante!”, a platéia urrava insensível enquanto as luzes piscavam
poucas sobre o palco entre as cortinas rasgadas e a débil fumaça de gelo seco.
Flechas rompiam o corpo franzino do ator principiante que logo foi retirado. Eu
pedia nervoso que “mais paciência, tenham calma, ele virá!” mas a minha vozfantasma não era ouvida lá embaixo. Algumas cadeiras voaram para além do
palco e em mim que, sobre suas cabeças, nada pude fazer. “Que entre o
comediante!”, minha voz amplificada berrou tão desesperada quanto louca para
baixo. A platéia fez silêncio. Ninguém moveu braço ou perna. “Deve ser a grande
estrela”, era o que eu pensava. Percebi então que esperavam o tal comediante
como quem espera um mágico, um sábio, um revelador de casos, de mistérios
suntuosos, um maestro da beleza, cheio de sabedoria; esperavam com ardor a
presença do Ministro. “Que entre o comediante!”, repeti mais satisfeito. Uma
música canhestra, cinco palmos de fumaça, uma luz vermelha ao fundo, outra
branca sobre o microfone e o ator que, grande como um rinoceronte, abancou-se
lá no meio do palco absurdo de frente aos urubus famintos e disse, sereno:
“Podem me matar agora. Antes de morder essas algemas que arrancam o sangue
de meus braços desejo pedir que me matem”. E a platéia aplaudia numa histeria
quase infantil diante daquele homem. “Quem vem cá chutar-me os fundos?”, e um
moço mui hermoso subiu e fez o favor. Tambores na hora do chute. A platéia ia
abaixo. “Quem vem cá cuspir-me a cara?” e um outro, seminu, fez as vezes de
soldado e cuspiu-lhe as faces largas, boca aberta, bochechas que escorriam
como lavas, olhos vermelhos que clamavam por torpor. “Quem vem cá fuder-me
duro?”, e uma moça loira e branca disse “Eu vou! Mas antes preciso que diga a
mim e aos outros todos onde mora o seu pudor”. O ator-rinoceronte diante
daquele silêncio [gente babando na espera, dedos que se retorciam avidamente]
pensou por mais de um instante e disse: “Quando era faminto e leal não havia
quem olhasse em meus olhos e quando queria um olhar pedia rolando no chão.
Agora não tenho pudores – como nunca tive amores – mas também agora
desconheço a solidão”. Então a dama felpuda arrancou sua saia colorida, tirou do
ator sua calça, deu-lhe um soco na cara borrada e enfiou seu grande membro
entre as pernas e por trás. A platéia delirava, gritando faminta por “mais!” e
também por “mata ele! Queremos saber como é!”. O ator, profissional que era,
pedia gritando “Enfia mais rápido, moça!” enquanto seus olhos lambiam o chão. O
palco, estrutura velha, caibros corroídos, chão de cera e nojo, o palco era seu lar
e sua redenção. “Enfia mais rápido! Mais rápido, porra!”. Um homem mascarado e
sem nenhuma peça de roupa sobre o corpo subiu ao palco enquanto ele berrava
suas ordens à dama que o fodia – “Enfia esse caralho com força e depressa!” – e
começou a chutar-lhe a cara. Já com os pés vermelhos e sem proferir palavra, o
Homem Nu pediu a moça que se retirasse, o que ela fez de pronto. Então pegou o
ator pelos pés, algemou seus pés e estendeu-os por duas grossas correntes que
pendiam do teto. A cara vermelha de sangue. Parecia caído de um prédio, de um
automóvel veloz. E gemia. A platéia num delírio de felicidade arremessava coisas
sobre o palco – cadeiras, cigarros acesos, rosas com espinhos, cusparadas
verdes – enquanto ele, suspenso pelos pés, sorria um sorriso tonto, lunático,
repleto de luxúria. Cada vez mais alto, ele gemia transgressões incompreensíveis;
começou a bater com os punhos em sua própria face. Gemendo e sorrindo e
chorando, ele começou a morder as algemas que mantinham seus punhos juntos.
Como quem deseja roer o metal ele se pôs a morder ferozmente as algemas e
também suas mãos prisioneiras. Os dentes rangiam, a boca sangrava mais e
mais. Uns dentes quebraram e ele cuspiu os pedaços sobre a platéia que retribuiu
com aplausos e gritos de “muito foda!” e “perfeito, perfeito assim!”. Tentando
arrancar as algemas com os dentes o ator-rinoceronte rodopiava no ar, gritava
palavras que não existiam, saídas de sua demência, expunha a língua vermelha
como quem deseja o mundo e expunha as mãos trêmulas de dor e de coragem.
Depois de horas tentando e tentando e tentando o comediante começou a parecer
repetitivo àqueles que o consumiam. Cada vez mais pessoas iam embora,
cansadas mas satisfeitas, com aquele sorriso na face que o prazer proporciona
aos que o sentem. Aos pares e depois aos montes eles iam deixando o lugar. A
música parou. A fumaça de gelo seco já não existia e algumas luzes foram
apagadas, mas o ator-rinoceronte, o Comandante D’Alegria, o Ministro da
Felicidade, o Grande Mago da Luxúria e da Demência, ele permanecia em seu
posto, de ponta-cabeça no ar, gemendo e sorrindo e chorando, reclinando
eternamente de um lado a outro como quem procura a si, rodopiando sozinho
entre as fezes que escorriam e juntavam-se ao sangue que cobria sua face.
Sem saber como, de noite já, eu não estava mais lá. Caminhava pelas ruas,
pelas mesmas e infinitas ruas. Ainda ouvia os gritos, os sussurros, os gemidos,
ainda eu via as cadeiras voadoras e as cusparadas verdes e os xingamentos
inúteis. Nada eu pude compreender. Acendi um cigarro e segui em direção a
casa. “Encontrar o rapaz que me alucina”, era tudo o que eu pensava.
...
-...e enquanto eu corria, eles na minha cola, enquanto eu corria a vida parecia
louca, parecia interminável, a vida, sentia-me com a potência de um búfalo
desgovernado, um ganso gritando pro ar [queria que você tivesse me visto ali!],
eles com as mãos estendidas e os pés no meu encalço! Mas fui como o vento e
fui veloz e fui possante como um touro faminto diante de um pano vermelho!
- Não deve ter sido fácil. – e seus olhos miravam o infinito como se lá eu me
encontrasse.
Meu ritmo mudou. Meu coração era frio agora. As unhas assassinas do rapaz
que me alucina estavam ainda fincadas em mim. O céu virava-se em verde e a
grama era cinza e azul. As águas dos oceanos todos me levavam para longe e
para perto e nunca me deixavam, nunca!, nunca elas paravam de afogar-me,
aturdir-me, aliciar-me. Sentia-me molestado e sem afeto naquele instante
cortante.
- Seus olhos – eu disse, mirando-o avidamente.
- Que tem meus olhos?
- Seus olhos mudaram de cor.
- Meus olhos mudaram de cor? – e aquele sorriso de nada na cara bisonha do
amado.
- Sim. Agora as pupilas são tão grandes que tudo é negro em seus olhos, tudo é
escuro e pavor. Seus olhos são tristeza e ódio agora.
- Agora e ontem e sempre.
- Mas já vi o vermelho e o branco em seus olhos também. Já vi a dúvida em você
e também já vi o amor – falei.
-...agora e ontem e sempre... – repetia tomado por um tédio e por uma infelicidade
que lhe eram comuns diante de mim
/e as paredes de todos os prédios pareciam querer ruir, oscilavam demagogas
para um lado e para outro, sem afeto nem sabedoria. As paredes de todos os
prédios guardavam em suas entranhas, em suas ferragens malditas, elas
guardavam ruídos que agora se apresentavam ao mundo que me digeria. Agudos
e graves tão inconstantes, vezes num trêmulo louco e vezes numa retidão atroz;
notas dissonantes voavam para todos os lados no ar, tomando a cidade com
pressa, com força, como um tétano volátil, sobrevoando minha cabeça louca,
buscando pousar em meus ombros – e meu peito, que era mais que febre e
angústia, meu peito se entornava sobre si próprio enquanto meu corpo cavalgava
imaginário entre os meus rins, sobre meu coração leviano, meu corpo seguia
cavalgando, escorrendo em meu sangue espesso qual malte, esbarrava agoniado
em meu nervo radial, minha horta, minha artéria putrefacta, minhas glândulas
todas, minha boca, minha língua, minha uretra, meu reto de mistério e medo. Meu
corpo me invadia como se alma ele fosse, transformando a mim e a minha vida
numa gruta ensandecida, num deserto ao avesso, caverna sem mamíferos a beira
de um mar sem fim.
- Não adianta. – eu disse quase em silêncio.
- O que? – ele perguntou, de soslaio, apontando como arma os seus olhos para
mim.
- Não adianta. Nada. O frio nunca passa. O frio nunca vai passar. O vento bate as
portas, arromba as fechaduras, apavora as crianças e os velhos das calçadas. Ai,
o frio nunca passa e nem nunca vai passar!
- Agora os olhos que mudam são os seus e não os meus.
- Decerto que sim, posto que o fogo me toma. O fogo e a dúvida e o medo
movimentam minha mente para o claro e para o escuro e não sei o que sentir ou o
que fazer agora, por hora, meu caro, eu não sei.
Depois de algum silêncio ele acendeu um cigarro e o pôs em minha boca.
Agradeci e voltamos ao silêncio original – fumaça no ar. Nossos olhos vítreos
acumulavam derrotas e nossos dedos tremiam, clamavam por “Vitória! Vitória! Ó,
vitória!” – nossos ombros reclamavam. O ar havia se tornado mais leve naqueles
instantes seguintes. O silêncio já não trazia consigo o peso do chumbo ou do aço
ou o peso das paredes de concreto armado: o silêncio era silêncio apenas, sem
facetas, naqueles instantes aprazíveis que chegavam para aquecer o frio que se
instaurou em nossas veias, tamanha era a nossa solidão.
Quis abraçá-lo, dizer carinhos, bobagens, mas a coragem era pouca. “O que
aquele silêncio queria dizer?”, depois pensei, solitário. “Talvez a paz ou talvez” – e
bem provável – “ou talvez somente a morte mesmo, o esgotamento último, como
saber?”, pensava solitário caminhando pelas ruas enquanto o mundo girava.
“As casas têm muros altos, cercas elétricas, cães, maridos ensoberbados,
tevês que vomitam gente e vomitam quasi-gente também [tipos que regrediram e
fincaram-se como heróis na história derrotista do pensamento humano], crianças
que passam o dia flutuando tontas, tocando com os pés o teto de seus quartos e
também de suas salas, meninas invisíveis a espreitar rapazes que tocam a si com
a mesma fragilidade que tocam o seu camarada / As casas são um amontoado de
farpas e poeira e desejos infindáveis / As casas são fauna atordoada, floresta
enlutada, carnaval de trás pra frente, circo matando palhaços / As casas são
mistério e medo”, assim meu peito pensava.
- Precisamos respirar – ele falou [e as cores eram fortes, as paredes se curvavam
para um lado e para outro, o chão era de esponja e seus lábios se moviam
lentamente]. Precisamos respirar antes de tudo ruir.
- É. Precisamos compreender pra onde nos leva o limbo.
- Eu tenho medo...
- Eu e você.
- É: Eu e você – ele repetiu tal-qual.
Não sei por quanto tempo mais ficamos ali, mudos, naquela posição, o olhar
horizontal espiando o nada com afinco e com paixão. Não sei por quanto tempo
ainda nossos corpos mantiveram-se inertes, por quantas horas, por quantos dias /
e de repente o sol desponta sobre mim, em minha cama, invadindo com
velocidade a janela aberta – O sono acaba – Ele me acorda:
-... dormindo?
- Hum... Não, não. Que foi? – meus olhos estão fechados.
- Preciso ir.
- Tá bom. Deixa a porta aberta. Fecho depois. Beijo.
- Tchau – e sempre um “Tchau” e nunca um “Beijo”...
- Precisamos compreender pra onde nos leva o limbo! – gritei sonolento enquanto
a porta fechava.
Enquanto a manhã passava, meu corpo sentia frio e tremia e girava em torno
de si sobre o colchão. O mesmo vazio na mesma manhã. A dor era a mesma
também. Elizete Cardoso poderia ser real agora para gritar em meus ouvidos a
força que era dela e que eu não tinha, nunca tive em mim. Uma vontade de
desistir, de descansar, desencarnar suavemente e depressa.
Caminhava pela casa tateando os móveis como se fossem eles mamilos,
lábios, pernas, pêlos, coxas, nádegas, unhas, narizes, como se o mogno e o aço
guardassem em si um afago, um carinho, um calor, uma pulsação febril, algum
tipo de vida que soprasse [respire fundo, criança] em mim, pra mim, assim... Meus
olhos caminhavam nervosos sobre o mundo e minhas mãos não tinham lar. Entrei
na despensa e lá fiquei por muito tempo. Pensei em nada, cantei baixinho
canções, para ver se apaziguava o peito, tremi como as palhas dos coqueiros
tremem no céu marítimo de qualquer praia, qualquer mar. Sussurrei no ouvido do
escuro meus indizíveis segredos, rosnei asneiras para as paredes da despensa,
tateando-as levemente. Bati em meu rosto cinco vezes com os punhos cerrados.
Peguei a panela de pressão e esfreguei-a em meu corpo, até empurra-la com
força contra minha pele, contra meu corpo franzino, minha vida de toco de árvore
queimando na caatinga, minha existência medíocre, meu ser que nada valia e que
nada valerá. Durante horas gemi e tremi e chorei dentro da despensa. Acendi
cigarros e fumei-os e bebi toda bebida que encontrei na tentativa de achar a
morte, mas não é fácil encontra-la quando se quer encontra-la – então nada eu
achei.
Ai, meu peito inconstante, meu coração leviano, minha vida-maremoto, meu
corpo de paralisia e escárnio, minha libido de veludo e medo, meu desejo de
entrega e desdém, ai, meus dias inúteis e sem fim – queria acabar com aquilo,
com aquela merda toda, aquela merda, isso tudo aqui, que teimava e teimava e
teimava e era em mim!
Pensei em rezar, mas que reza eu sabia?! Misturava Pai Nosso com Ave Maria
– e os dentes tremiam, a língua enrolava, os lábios pareciam feitos de gesso, as
articulações todas, a garganta moribunda, a fala atabalhoada, as letras que não
saíam. Então cantei Billie Holiday. Deitado no chão com a cabeça entre as
pernas, cantei Billie Holiday e salvei minha vida. Lembrei que quis ser padre na
infância, quis ser padre e quis ser maestro e quis ser traficante também. Na
infância. Usei minha roupa de padre para me vestir de Morte no carnaval – e era
boa aquela infância! Minha máscara de Clóvis em meu corpo de menina e aquela
roupa de padre cobrindo a nudez curumim. Querubim de pernas abertas aqui e
ali, era eu, roubando o tempo dos homens, fingindo entregar o meu. Querubim de
pernas abertas e peito sem soluções.
“Se me mato um dia, me mato enforcado” e isso era uma promessa antiga, da
época de escola ainda. Promessa que eu me fazia sempre, todos os dias, sempre
em silêncio. O problema agora era o mesmo da época do colégio: Não há nunca
uma corda potente ao redor de mim, perto de mim, assim, em mãos, fácil de dar
um nó, de pendurar nalgum armador de rede, ritualisticamente, seriamente,
santificadamente, o corpo trôpego de demência e de prazer. Um banquinho
pequeno até que há agora, aqui perto de mim, só tirar as panelas de cima dele e,
bam!, tenho um banquinho pra jogar pra trás na hora de não mais respirar. Tudo
bem, tudo bem, mas a corda? Sempre o mesmo problema de falta de grana. Não
posso ir num mercado e pedir “me dá um pedaço de corda que quero morrer, por
favor?”. Decerto eles vão querer que eu pague. “O que você vai fazer com ela não
me interessa, mas ela custa tanto”, eles dirão, eu sei. Prendi meus joelhos junto a
meu peito, segurei meus braços com a força cega de minhas mãos, enfiei minha
cabeça entre meu corpo todo [o queixo em meu peito] e prendi o ar para ver o
quanto era possível antes de morrer ou desmaiar. Prendi o ar naquela posição e
contei os segundos. Em dois minutos eu já me tremia, me debatia, ainda
prendendo o ar, mas sem me deixar sair. Súbito, respirei. Demente, rindo e com
medo do escuro ao mesmo tempo, abri a porta tropeçando nas bolinhas coloridas
que flutuavam pela casa, me arrastando, respirando fundo, de quatro, segui até o
forno, onde deitei minha cabeça atordoada. Acendi o forno já dentro dele, sem
rituais, somente mesmo uma vontade, uma vontade veloz de morrer. O fogo
começava a esquentar minha cabeça, os pêlos ao redor de meu rosto pareciam
queimar. Lembrei-me que não havia música ali. Levantei-me, os cílios fora do
lugar, as sobrancelhas menores do que costumavam ser, as orelhas queimadas.
Enquanto procurava um disco apropriado – querendo respeitar-me, inventando
rituais – lembrei que não acendiam o fogo: abriam o gás e morriam de inalar
aquela porra: ninguém se fritava. Meu rosto já estava um pouco queimado do
calor e eu sentia muitas dores. Encontrei um disco e, após um esforço que só os
cegos conhecem, me olhei no espelho e comecei a chorar. Tentei tocar minha
face, mas não pude. Caminhava cego, o cheiro de cílios fritos no ar. Me
arremessei sobre as coisas, sobre a mesa, sobre a estante de livros, joguei-me no
chão aos prantos, gritando com medo de mim. Queria ser outra pessoa, queria
não estar ali, queria não ter-me visto, queria um veneno pra ratos, queria estar
morto já.
Enfim chegou o desmaio. Tensão no peito demente. Os sons de uma explosão
e depois o silêncio. O silêncio sem cor. O mundo como um alfinete onde eu cabia,
e ficava confortável, ali, naquele alfinete de bronze que era o mundo comprimido
que me abrigava, circense. Depois, era madruga, quando acordei com um peso
em meus músculos todos, os olhos grudados ainda – doía senti-los, te-los, doía
ser eu, ali, naquele chão lamacento que eu não saberia limpar. Estendi meus
braços e pensei tocar o teto. Sorri. Pensei flutuar – ouvia uma canção estranha,
algo que eu não entendia, num crescendo instantâneo, dominante, que devorava
meus tímpanos aturdidos, como um fragor de automóveis, um acidente veloz:
Maria Bethânea arranhada na vitrola e era minha vida que girava ali. Lembrei do
forno ligado e também da asneira que eu havia começado sem forças pra
terminar. Minha cabeça girava, aguda [como doía!], e minhas pernas tremiam sem
conseguir sustentar o peso de toneladas que minha vida carregava como se
levasse um mar, uma duna de areia branca e preta, uma falésia gigante, um
rochedo sob as ondas, um milharal bem distante, uma floresta daninha, arranhacéus natimortos, estradas embrutecidas, ruelas de medo e nojo sobre os ombros
de minha vida.
Enfim passou o desmaio. Tensão no peito demente. A vitrola rouca e gaga, os
gemidos na minha face – minha carne era pouca e minha pele era menor ainda.
Amores não guardo no peito somente: se não me deixam marcas, assim, com
mãos de lâminas rápidas, me fazem deixa-las em mim próprio, desenhar em mim
o medo, como um container de dor, um alicerce isolado, servindo de nada nunca,
uma besta horrorizada com suas cruezas mortais – um asno que, aos pinotes,
chuta a si mesmo no vento, assassinando a si próprio como se fosse ele um
outro, bicando a própria carne no oposto de uma águia, esperando a morte vã,
lamentando o vão da vida, que leva a lugar algum.
Tentando me-ver-não-vendo, olhei enjaulado o espelho, querendo-me livre e
claro e mais alto e bem mais silencioso também. A vitrola gaga e rouca repetia a
minha vida. Três frases e nada mais. “E nesse dia então / Vai dar na primeira
edição / Cenas de sangue no bar da Avenida São João”, e foi assim todo o dia.
Não toquei na vitrola, não troquei o disco, não troquei as roupas. Olhava minhas
mãos e nada eu conseguia pensar. Olhava minhas pernas [ainda trêmulas] e nada
eu conseguia pensar – o espelho eu quebrei, por nada eu querer pensar.
II
O ronco em uníssono de todos os motores indicava que os soldados voltavam
para casa do trabalho, bem como indicava que o contingente de medíocres ao
meu redor era crescente, mas lá estava ele, taciturno como um jabuti,
caminhando em minha direção, os olhos para o chão e sem me ver, sem perceber
que eu o notava, o apanhava, o agarrava, para estrangular minha vontade.
“Quando ele chega peço um beijo e se ele me diz não lhe mostro a faca na
mochila e sei bem que lutaremos e depois nós choraremos, pois somos frágeis e
inúteis”. Mas era como um remédio aquela paisagem tarja-preta se movendo em
minha direção. Não há ternura que caiba naquele ser, mas como eu o amo. Ele
tem tanto medo. Ele quer salvar o mundo escondendo-o de si e ele quer salvar a
si escondendo-se do mundo. E como seus olhos brilham um brilho fosco, uma
alucinação imberbe, como aqueles olhos de catástrofe cantam canções
sincopadas e infelizes. A cada passo uma nota de piano se espalha pelo chão –
ele pensa ser guitarra elétrica, mas é piano mesmo, notas graves e agudas
simultâneas pelo chão – e eu tento decifra-las, ergue-las a cada instante, eu tento
apalpa-las, senti-las, ouvi-las silenciosamente e cuidadosamente (o ronco dos
motores ajuda a compor a sinfonia barrocancestralautista daquele que caminha
em minha direção). “O lobo do homem é o medo. O medo é o lobo do homem – e
não há mais nada que se possa dizer sobre isso!”.
A miragem branca de cabelos negros, a miragem é miúda e quase frágil, mas
supõe em si uma violência espanhola, uma revolta ameríndia (os olhos têm a cor
da noite) e uma beleza sem fim. A miragem fala para cima e para baixo e tenta
xingar em silêncio. A miragem abre portas com os dedos e nunca toca as bordas
do corpo outro sem soluçar ou tremer. A miragem não sabe de si. E se esconde.
A miragem tem medo do alvo e a miragem tem medo da flecha – A miragem não
sabe de si. E se esconde.
No meu silêncio as palavras são muitas: cuidado, desejo, ametista. Carreta,
barganha, oceano. Moroso, medonho, amado. Soberba, futuro, engano. No meu
silêncio as palavras são muitas e o que posso expressar é nada. Nem vulto de
gozo, nem pá, cova rasa, retrato de parede, nada. Da miragem me ficam os olhos,
o toque nervoso, a voz intranqüila, os passos certeiros para lugar algum – e suas
mentiras. Tantas mentiras que a mim sobrou apenas o direito de estar confuso e
permanecer confuso e errar, errar, errar nos passos e nas previsões. Subi em
caminhões pensando subir em dunas e desci aos infernos a procura da miragem
(anjo lascivo), meu rapaz assustador. O que me fica da miragem é nada agora
que a paisagem revoltosa me toma com desdém: “O passado é aquilo que não
devemos tornar a ver e, mesmo que queiramos tateá-lo por demência, insistência,
arrogância ou afeto arrebatado, ele permanecerá passado, inerte diante de nosso
tato, nosso cheiro ou nossa dor”, foi o que ele me disse em silêncio enquanto se
aproximava atravessando os ruídos automobilísticos da hora imaculada. Nada ao
redor de mim traz a força da dor que eu tenho. Nada ao redor de mim traz consigo
o silêncio que é meu. Nada ao redor de mim me empresta a absurda e mentirosa
força que seus olhos têm. Nada. “O passado é aquilo”, etc. – e as nuvens
pairando sobre mim.
Vê-lo é quase como toca-lo. Senti-lo é quase como um inferno. Sabe-lo é
quase como um tesouro. Perde-lo é quase como um machado fincado em meu
peito sem brandura, em minha epiderme amarga, em minha vida absurda.
Sei que, como ele em mim, permaneço dentro dele. Ecôo também. Mas sei
que, diferente de mim, ele não tem a coragem de dizer: “Eu volto”, ou “Estou aqui
de novo – e é por ti”, nem mesmo se o peito pedisse. Sei que as horas passam
rápido no continente que é só dele, ao passo que no meu continente as horas são
elásticas e os dias reverberam para sempre.
Fosse onde estou uma praia, a calçada seria areia, o asfalto seria água. As
ondas seriam os transeuntes e os automóveis polissílabos que cruzam a estrada
de um lado a outro como um cão sem lar. Somente eu permaneço, somente eu
grudo no chão e permaneço, grudado na calçada úmida, vigiando a velocidade
que tonteia como se nela existisse a beleza, como se ela fosse dama prenhe ou
um rapazola. Porra nenhuma: essa velocidade é tudo menos bela, tudo menos
cativante. Se continuo vigiando-a (olhos para frente, fixos nos vultos circulares) é
porque estou vazio e nada mesmo me resta. A cidade é um cemitério que se
movimenta, que se autodigere e se autoflagela – e não há capital, essa ou outra,
que não seja de lixo feita, de profunda tristeza e banal alegria, não há essa capital
que não seja um mero ser ruminante disforme e sem cor.
Que outro lugar então? Eu não saberia dizer. Mas esse decerto não é /
(lembrei que quando criança bolava grandes cenas musicais enquanto seguia
minha mãe caminhando pelas ruas ou dentro dos ônibus passando a roleta e
todos, todos dançavam comigo e cantavam e como era bom! Agora não. Assim,
agora, criança do meu tamanho é gente débil e velha pensado reter no peito a
leve esperança da infância que um dia existiu e que não existe mais. Lembrei
também de quando assaltaram minha casa com um revólver na cabeça do meu
irmão / e sem mistério, sem vontade de mudança, a vida mudou, brutal, cruel,
descarrilou. Sem aviso prévio a vida jogava sobre nós seus dedos mofados de
veludo antigo. Sem aviso prévio minha vida descobria novos gostos, novos
sabores e eu não saberia dizer se gostava deles ou não. Sem aviso prévio minha
meninice se virava em mágoa e meu pai me chicoteava com suas palavras de
horror, sua infelicidade catastrófica, suas mãos adultas e dementes sobre o meu
destino – que não era meu, agora eu sabia, e nada eu poderia fazer. Partimos
mudos, de mudança, para longe, em busca de um outro mar).
Era como um remédio a visão dele atravessando a rua, as mãos sendo
jogadas para frente e para trás, os olhos carregando aquela tensão para baixo,
em direção ao chão, os pés desacelerados tropeçando a cada passo, era um
presente, era quase uma alucinação. Pensei: “Meu deus, porque ele não me
ama? Trago em mim tantas promessas de proteção e insanidade... Porque ele
não ama, meu deus – se podes me responder...” – e o dia era um dia qualquer,
com horas que escorriam, celofanes. E eu hoje as acariciava. Elas passavam
devagar sobre mim. /
Pedi calma ao meu peito e criei paisagens fugidias. Precisava de paz. Paz,
silêncio, mimetismo, harmonia – nada abrasador, nada, nada que rompesse com
essa falsa calmaria que eu pintava ao meu redor (eu a queria). Queria cores
plácidas, formas delicadas, um mundo de aquarela (minha vida é à óleo e isso
pesa). Quebrei quase todos os meus discos, mantendo intactos somente os
inofensivos. Acendi dez cigarros de uma vez e os posicionei como incensos pela
casa. Tranquei as janelas e portas, amontoei minhas roupas ao lado do fogão e
deitei-me no corredor, entre a sala e o banheiro, respirando fundo, catando o turvo
do ar, mastigando a fumaça espessa como se beijasse a relva. Meus olhos
fechados pintavam as desejadas aquarelas e minhas mãos espalmadas flutuavam
torpes.
Não poderia ser guache – nem acrílico poderia, pois não queria o deslumbre
feiticeiro de Chico da Silva pelo ar, ao redor de mim: Aquarela. Como uma dona
de casa pintando seu jardim de flores de muitas cores com afeto e entusiasmo,
com delicadeza e amor. Pintar o tolo da vida – ou a tolice de mi vida – como quem
inventa um mundo – era o que eu queria. Óleo não, pois a constância dessa
fórmula me leva a lugares por onde nunca eu não desejo ir. Pus-me a pintar
sorrisos infantis em minha face, numa cara que não era minha, mas que seria e
poderia ser.
Num desejo louco de reinventar-me deitei sobre o frio do chão e me pintei e
desenhei (olhos que rodopiavam fechados pelo ar) tão estimulado pela miséria e
vontade de viver que as cores eram mesmo amenas e os traços eram finos e
certeiros. Por trás de mim muitas cores, emotivas, solidárias, amorosas,
delicadas. Meu rosto eu pintava de ouro e pintava de claridade singela. Meu peito
não tinha cor: transparência imaginária. Minhas pernas eram leves e meus pés
mais flutuavam que tocavam o chão, enquanto minhas mãos removiam os
excessos de tinta, aqui e ali, com a delicadeza e a bondade que lhes era, hoje,
agora, tão fortemente peculiar. “Tarde demais”, meu peito me dizia, mas eu não
prestava atenção. Cantava uma canção qualquer buscando falar mais alto que
meu peito, calar sua voz com palavras de alento e respiração sublime enquanto
os cigarros queimavam.
Alimentei os patos todos, limpei meus pés e subi as escadas de volta a
cozinha da casa. Ninguém na cozinha, ninguém na sala. Apertei um cigarro sem
filtro e me despi para curtir deitado no chão o teto da casa: Caibros infinitos
criavam desenhos geométricos, cruzando aquele chão suspenso, de telhas de
barro marrom. Queria caminhar ali, me equilibrar astuto sobre os caibros,
brincando de cair-cair. Ergui minhas pernas, fechei um dos olhos e movimentei
meus pés no ar como se fosse possível o desejo de dançar ponta-cabeça, girando
fantasma, pisando no teto engraçado, avistando o chão como seu céu, olhando
para baixo como quem olha as estrelas.
Então segui por estradas desenhadas em minha mente. Ruas que eram
bonitas, com casas e árvores e flores nos jardins das casas, pessoas que me
cumprimentavam sorridentes enquanto passavam por mim, crianças que não
traziam o medo no olhar – e como era bom o mundo ali entre os caibros, como
era divertida minha alva fantasia, meu particular mundinho, meus caminhos
inventados, como era tênue, terna, a vida; como eram saborosas as frutas e como
era fresco o ar naquele mundo-falsete de ponta-cabeça e flutuação. Tenho
certeza que meus lábios sorriam sorrisos de leveza abstrata, de satisfação
endoidecida, imaginação exata. Tenho certeza, pois meu peito bate mais rápido
quando sorri minha boca (vozes infantis em minha cabeça alta!), quando
movimento meu corpo inteiro sem mover-me um dedo, pois gosto do mundo de
dentro, gosto de observar o mundo que invento, de sentir os seres, viver os
instantes do mundo que é meu, onde eu caibo. Onde a tirania do outro não me
alcança, onde o medo do outro não existe, onde o inferno do outro não queima ou
sufoca, nem a mim nem ao outro.
Mas às vezes sinto-me só nesse mundo imaginário – sempre menos só que no
mundo exterior, de cheiros cortantes e barbárie plena, mas às vezes sinto-me só
nesse mundo imaginário – então invento parceiros, amigos, amores, amantes,
invento sons, ruas, dunas, invento mares azuis, invento céus onde eu possa voar
e ondas que me mergulhem. Invento pescadores e invento o que pescar. Invento
sorrisos cúmplices, invento alegria muita, invento minhas ruas calmas, paredes de
azulejos, invento soldados nus, retiro o lixo das calçadas, liberto o mundo do mal,
amamento cem mil crias e danço no pôr-do-sol. Um inventor que inventa as coisas
para dentro. Um inventor que não deseja a utilidade das coisas, só mesmo dos
sentimentos. Um inventor que se esconde dentro de si por não saber como ser
estando do lado de fora. Um inventor que inventa porque é preciso. Um inventor
que inventa porque não sabe remar, não sabe viver a vida, não sabe ser fácil ou
pequeno, nem sabe ser mais do que é. Um inventor doidivanas que saboreia as
mentiras sentindo o cheiro da farsa e as vive com delicada esperteza (vontade de
sabedoria) e iluminada solidão.
...
Ele tinha os olhos turvos e repletos de apatia. Suas retinas miravam o chão
sem fúria ou delicadeza – grandiosa inércia – e suas palmas salivavam de suor –
seus passos duros. E seu corpo passou por mim, cruzou meu caminho como se
me atravessasse – as sirenes ao redor. Meu coração era velocidade atroz e meu
corpo era uma estátua. O mundo girou de um lado a outro e os dedos do rapaz –
os dedos, os dedos sim – eram facas luminosas transbordando o sangue em mim.
O céu era escuro e a chuva era pingo duro sobre meus ombros de musgo. Queria
saboreá-lo, queria sabe-lo, atá-lo, queria queimar sua neve, derreter seu gelo
inteiro, engolir o seu veneno clamando por deuses eternos, amor-tempestade que
não deixa leve mas tampouco mata, ó!, sentir sua fúria arrebatada em mim, e eu
dizendo sim, sim, sim, sim, sim, ó!, sim-sim, ó! mas nada me acontecia e nem
nada eu faria para que a paisagem fosse outra agora, para que a chuva que fazia
dos bueiros piscinas constantes deixasse de existir – nem nada eu poderia fazer.
O mundo tem mais vida que eu. A cidade tem mais gente que eu. As fazendas
têm mais gado que eu. O mar tem mais peixes, as casas mais latas, os corpos
mais sangue, as bocas mais dentes, as ruas mais carros – e então? Quem paga a
conta pelo meu desespero agora? Quem tira de minha existência esse câncer e
essa faca sem que nada me aconteça agora? / e vi suas costas sumindo na
multidão. Vi seus desejos gerando fumaça ao redor. Vi suas vontades me dizendo
não e vi suas retinas olhando pro chão.
“Teu peito é só meu”, falei para mim (a mão sob a blusa).
III
Sorvendo com candura o orvalho de sua boca.
Absorto (pó e musgo) diante de seus olhos de altar.
Ai, rapaz, que morbidez fedida a que me engole agora. Que vulnerabilidade
tacanha e volúvel é sua vida e como eu a quero e como eu a preciso e como eu
gostaria de querer o oposto do que pode me dar! Mas não. Permaneço tateando a
paisagem que era sua, tomando-a como minha, já que a minha eu não sei onde
ficou.
Na verdade desconheço tudo o que está ao meu redor. Desconheço sua
pisada marinha de fantasma, desconheço minhas costas moribundas, sua
cabecinha rala, bem como desconheço esse troço (troça! troça!) que reside aqui
em meu peito e que clama por você. Em nossas cabeças doentes giramos como
em espirais, carregando sobre os ombros (em nossas cabeças doentes) cada um
suas demências, um punhado em cada uma, e também os cemitérios e seus
defuntos. Em que residência noturna te verei novamente, rapaz? Em que boteco
ou puteiro te colocarei as mãos. Em que quarto enfumaçado nos olharemos nos
olhos novamente – eu com aquele olhar de fracasso que você odeia e você com
aquela culpa nos olhos, revoltada e revoltante que tanto te consome e quanto.
Lembrando daquela:
“17/10/05 – Idiota. Saudades. O vento engole o quintal. Onde estão as luvas que
eu deixava sobre o móvel homicida antes de queimarmos velas? E onde o teu
cheiro foi guardado quando de mim você foi levado (por si próprio) para longe e
nunca mais? E porque das últimas vezes tínhamos nos olhos a confusão robusta,
quando nos esbarrávamos pelas ruas venenosas da cidade furta-cor? Meu
silêncio é seu, mas é sua também minha voz. E onde eu resido em ti? O que
queres de mim que não o que eu possa lhe dar? Cordialmente, ***.” e o mundo
era pequeno demais e as chaves não abriam portas e os tremores eram
constantes e o sonho de ser dragado para dentro do rapaz de pernas maliciosas
era de uma presença infernal. E então me veio um bilhete, dias depois: “Seu
sorriso não me diz nada” e eu chorei. Abri as duas mãos e soltei-as brutamente
sobre meus peitos seguidas vezes, sem gritar, em silêncio. Depois é que gritei – e
as vozes me diziam: “Exorciza esse amor que tanto te fere essa porra de peito
minúsculo! Tira de ti estas vestes internas que fazem de ti alguém tão horripilante
y tosco! Arranca para fora de si essa porta emperrada que não te deixa caminhar
para adiante! Renega o que sente agora e grita mil vezes o seu próprio nome!” e
eu gritava, esmurrando minha face e todo o resto, esfregando minhas nádegas
sobre o chão frio de cimento, esmagando minha existência como a um inseto,
buscando destruir o passado como no poema antigo, fazendo liberto o caminho
para um tempo que ainda não chegou e que, espero, um dia virá - dejá Vu:
enquanto escrevo essas linhas, tenho a nítida impressão de já tê-lo feito. Jamais
saberei, no entanto. Bem: a carta para o espelho: “Soldado. O tempo é curto
demais e a guerra é grande, como toda guerra é, e é inútil como todas são.
Morreremos todos após mil deserções e cinqüenta corpos nus boiando em lagos e
esgotos-campanários, frutos de nossa imaginação. Te quero bem, mas te quero
morto. Te quero amarrado e seguro pero bem longe de mim. Saúdo sua presença
com o fogo e retalho os entraves com as tesouras que, assim, me salvarão”. O
inverno é longo. O mar é morno. As dunas só sabem subir e descer,
indefinidamente. Meus pés acariciam a areia da praia de minha cabeça e meus
dedos são como algas alongadas que, circulares, movimentam-se pacificamente
para tantos lados quanto for possível. No meu peito tem você. Tem você, que é a
cara do meu tempo (luxúria e lixo, desejo e inércia, rompante e morte), “Mas eu te
amo”, me lembro dessa frase na carta: “Mas eu te amo” e não sei o que foi dito
após.
Perdendo o controle:
- Atire para o alto! Atire em minha direção!
- Seu ritmo louco me alimenta a alma inerte e seus olhos de verniz detonam em
mim toda a sorte de guerras e mentiras.
- Somos destrutivos, acho, e acho que pra isso não há o remédio nem a cura.
- Veja! Atiro para o alto!
- Agora me alcança, criança, vá!
e nossos sorrisos tomavam o mundo, nossos corpos circulavam pelo ar numa
meninice linda e perigosa. Demenciados pelo desejo e pelo desejo de morte, nós
seguíamos, cientes de que a rota e a colisão caminham juntas quando juntos nós
estamos. E o adeus não existia. Decerto que o silêncio nos tomava com muita
constância e, sim, o medo também muito nos visitava naqueles dias de glória e
contínua rouquidão.
- Me empresta teu cigarro – os dois deitados, olhando o céu do quarto.
- Aqui.
- ...
- ...
- Agora podemos nos beijar – e a dança era língua e era dente de dentro pra fora,
num salto e num arremesso, mansidão ludibriada, selva cá dentro do peito. E
éramos eu e você, Pirilampo Vadio, naqueles dias de glória endiabrada, de paixão
embriagada, de lamentos similares e desejos soluçantes, éramos eu e você.
As horas passam como se o tempo caminhasse para trás e para frente, tão
eternamente que o passado é presente e o futuro já não está – e talvez seja
assim: talvez seja nesse ir e vir marítimo que o tempo transforma o frescor das
horas numa cilada iridescente e por isso o medo de sentir o peito transmutado por
um desejo animal te faça recuar e vir. Busco a solução nos soluços noturnos, nas
lágrimas nucleares, os olhos tal como são. Reconheço sua bruxaria, mas não sei
me livrar dela. Olho-me no espelho e finjo não me importar, gritando para mim
mesmo. E digo: “Nada disso no fundo me importa! De resto, quero saborear a
vida, esfregar meu lodo em tudo, minha nódoa errante em cada centímetro de
espaço. Quero saciar minha sede engolindo água – e que essa seja vida fresca e
só! Dou de ombros a cada misticismo que teime em me tocar, às suas pilhérias
malucas, à minha sandice soterrada, pois não me importo! Não reconheço o que
possa me importar nessas vontades lunares, nessas falsas salvações, nessas
bostas milenares, não-não! Sei que fugir do presente é tudo o que teimamos fazer
e sei que esses artifícios nos ajudam na jornada, mas sei também que é do
presente que gosto. É nele que fico pleno (a saudade mata aos montes e o futuro
é aquilo que posso apenas temer), pois é no presente que recrio o passado,
destruindo as horas fugidias, e também é aqui que monto o que o futuro será,
Meu Bruxo”.
As horas flácidas agarram meus pés e eu flutuo, engolido pela inconstância
das paisagens:
- Toque em minha mão.
- Sim.
- Acaricie cada falange e, para cada uma delas, me conte um segredo. /
e foi assim durante um ano.
...
Uirá dos Reis
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Na garupa da moto penso no mundo com velocidade [o vento engoli