LIVIA MARIN– TEXTOS CRÍTICOS
Objetos em circulação: o lugar de objetos nativos
O primeiro conflito baseado em objeto que caracterizou o meu trabalho foi à questão dos
objetos que estão em circulação constante e são eternamente substituíveis. Passeando pelo
Persa del Bío-Bío, eu pude identificar claramente quais os objetos fabricados na Ásia e quais no
Chile. Para mim, isso significa que os objetos produzidos em massa são marcados tanto pelo
sinal do substituível, como também pelo contexto político onde se encontram no presente.
Entretanto, essa possibilidade de contabilização de um lugar de origem tornou-se instável
devido ao comércio global e aos sistemas de produção e distribuição transnacionais. Este
fenômeno de circulação global em que as mercadorias locais e estrangeiras se encontram
tornou-se muito claro em Santiago do Chile a partir dos anos oitenta. Quando eu estava
fazendo o meu BA em meados dos anos noventa, costumava frequentar lugares como o
mercado das pulgas ou vendas nos porta malas dos carros. Em Santiago, havia um mercado
muito conhecido chamado Persa del Bío-Bío: era principal ou inicialmente um mercado de
segunda mão. No entanto, dois fenômenos se tornaram cada vez mais visíveis e mudaram a
natureza do mercado: não era mais um mercado onde você poderia encontrar um objeto
diferente, ou achar uma seleção excêntrica de itens de vários vendedores permanentes. De
repente, os objetos começaram a aparecer em grandes quantidades: eram coisas novas
importadas ou objetos de segunda mão que permaneceram após o fechamento de salas de
cinema e várias fábricas que outrora fizeram parte do comércio local. Muitas das pequenas
fábricas locais faliram porque não podiam competir com os baixos preços de importação. O
que começou a acontecer era mais um mercado de trocas. Como eu me lembro de Santiago
que até o final da década de noventa era uma superposição de mercados visualmente
compreensível: era um momento em que um mercado estava entrando e outro,
desaparecendo. O mercado local começou a sumir da cidade, enquanto o mercado novo, de
importados higiênicos, começou a colonizar em seu lugar.
Em 1999, esse cenário híbrido, formado pelo cruzamento de produtos locais e importados,
passou a ser objeto de uma tese que eu traduziria como Palimpsesto, de omissão à
hibridização. Ao desenvolver esse projeto, eu estava buscando, principalmente, uma
população de objetos, produtos do sistema de comércio global, que atingiu uma visibilidade
significativa nas cidades do Chile, em meados dos anos 80. O destaque da importação de
produtos asiáticos foi um dos efeitos gerados pelo fato do Chile se juntar à Cooperação
Econômica Ásia-Pacífico (APEC), em 1994. Criada em 1989, APEC tem como objetivo facilitar o
comércio entre os países do Oceano Pacífico e em colaborar na libertação financeira e
comercial dos países envolvidos. Até o ano 2000, objetos asiáticos baratos e de má qualidade,
produzidos em massa, invadiram as lojas e as ruas de Santiago e outras cidades do Chile, o que
marcou o colapso definitivo da produção local incapaz de competir com os preços obtidos pela
produção asiática. Produções locais começaram a desaparecer porque não podiam competir
com os preços das mercadorias importadas: era mais barato comprar produtos asiáticos, em
vez dos produzidos localmente. Este é um dos efeitos importantes do sistema econômico
neoliberal que acabou com a cultura. O mercado local, e com ele a cidade e sua paisagem
cotidiana, cada vez mais se enchia de novos produtos importados e se esvaziava dos produtos
de produção local.
Em relação a isso, dentro de um determinado corpo social capitalizado, os objetos se tornaram
mercadorias como coisas-em-circulação1. Geograficamente, não é fácil distinguir o local de
produção desses objetos globais, uma vez que atingiram uma distribuição global e, assim,
entraram para um mar ou uma população de objetos que perde o contato com suas matrizes
ou lugares de origem. Esses objetos globais poderiam ter sido feitos na China, Indonésia, Chile
ou Brasil, e, porque representam um comércio global ao invés de uma cultura local, continuam
usando em suas marcas, o conhecido rótulo lógico de "made in ...", para rastrear o seu lugar
de origem2. No entanto, dado o seu baixo custo e distribuição em massa, esses objetos globais
comuns com certeza atingem uma parcela muito grande da população mundial pois poderiam
ter sido comprados na China, Indonésia, Chile ou Brasil.
Quando em uma determinada ordem social ocorrem mudanças em sua economia, tais
mudanças afetam e modificam a cultura material e a experiência de vida daqueles que
participam dessa ordem social. Meu interesse é principalmente trabalhar com maior
profundidade a relação entre sujeito e objetos, a população de objetos que está ao mesmo
tempo presente e ausente no mercado, é parte das preocupações para fazer o meu trabalho.
No contexto da obra Palimpsesto, de omissão à hibridização e os elementos usados, a ideia de
"omissão" - entendida como passar em silêncio, despercebida, falta de prestígio - com a
1
Ver Susan Buck-Morss, “Envisioning Capital: Political Economy on Display” em Visual Display, Lynne
Cooke and Peter Wollen (eds), Nova York: The New Press, 1995, p.125.
2
Esta questão se torna muito mais complexa com objetos altamente tecnológicos e compostos, como
carros, por exemplo: algumas partes são produzidas em um lugar e montadas em outro.
finalidade de significar tanto a aparência dos objetos que eu selecionava para a realização da
obra, e a falta de atenção ou distanciamento que caracteriza a vida rotineira. O especial desvio
de atenção que ocorre no cotidiano foi delicadamente desatado por Martin Heidegger,
questionando sobre o que é uma coisa, o que é um artefato, o que é um objeto, o que é uma
obra de arte. O que é de interesse para o debate em curso e foi relevante para a realização da
obra Palimpsesto, a origem (à primeira vista) ambígua dos objetos importados e nativos. Em
certa medida, e por causa de sua aparência e serem muito comuns, a localização dos objetos
que reuni não estava inscrita neles. Neste contexto, o papel que certa ambiguidade de origem
e de funcionalidade na obra tinha a ver com o questionamento, visualmente, o papel do
reconhecimento, as relações que estabelecemos com objetos materiais. Como pode a
coisificação das coisas ser abordada se o objeto não pode ser situado? A relevância desta
questão não é sobre a autenticidade e a sua ligação com as origens, mas sobre a ontologia e
sua relação com a essência do ser das coisas. Seguindo estas linhas, desenvolvi um interesse
nos próprios objetos, e procurei entender a sua "lógica" e não apenas as suas aparências. A
"lógica" do objeto foi aqui entendida em relação à sua origem, talvez aquela parcialmente
perdida devido a uma produção global de mercadorias em que estava envolvida. A origem
desses objetos comuns foi explorada ontologicamente, através daquilo que Martin Heidegger
chamou de coisificação do Ser. Talvez os objetos que eu colecionava do mercado pareciam
mais com coisas do que objetos.
Centrando minha atenção nas mudanças que a crescente economia de comércio liberal e
global no Chile trazia para as cidades e sua cultura material em geral, desenvolvi um interesse,
tanto nos diversos registros estéticos entre o quase obsoleto e o produzido em massa, e na
forma como o "jogo estético" no objeto poderia demonstrar a história de um objeto. Mesmo
se em trabalhos posteriores esta investigação voltou a sua atenção para a presença do corpo
em contato com os objetos – entendendo o uso como um importante registro da história ou
do traço que alguma coisa aconteceu -, em Palimpsesto, de omissão à hibridização eu estava
explorando justamente a perda da singularidade, a perda da presença de um corpo, quer no
processo de produção, ou no seu uso ou apropriação. Ao justapor os objetos com uma forma
um tanto ambígua que eu coletava de diferentes setores do mercado baixo ou barato, o que
resultou foi um grupo de objetos híbridos, uma justaposição de materiais e formas que
aumentou ainda mais a possibilidade de ser reconhecido como ferramentas para algo, ou
como os funcionários de uma determinada tarefa. Dentro disso, a ocorrência da palavra
"hibridização" no título da obra, visando a identificar não só a mudança de objetos comuns
nativos e estrangeiros exibidos no mercado, mas também a reiteração da justaposição dada na
própria obra: pois com uma combinação de dois, três ou quatro objetos, formei um novo
conjunto. Cada um desses objetos combinados foi coberto com uma camada de plástico
translúcido (poliestireno) aplicado com calor para adotar o formato do objeto. Isso deu ao
objeto a aparência de um objeto novo, como se estivesse pronto para ser colocado à venda.
Um grupo desses objetos híbridos foram exibidos em uma mesa de venda colocada no meio da
sala. A mesa ou suporte poderia ser cercado e sua altura permitia que os objetos fossem
manipulados, integrando assim o espectador de uma forma física.
Texto de Livia Marin
Sutura
Sutura* se articula com uma seleção de obras de Livia Marin: três diferentes séries de
trabalho: Broken Things, objetos de louça com interferências, Drawings, imagens fotográficas
de objetos de louça, rasgadas e reconstruídas com fio de ouro, e Nature Morte, posta em cena
de naturezas mortas as quais são fotografadas, rasgadas e sofrem interferências com fios.
No seu trabalho de arte Livia Marin se dedica a suturar o material danificado com o qual
trabalha, e dessa forma a transformar esses objetos cotidianos e dar-lhes, a partir dessas
novas interferências/transformações mínimas, novos significados.
Um dos elementos que Livia utiliza para suturar os objetos e imagens com que trabalha é um
delicado e fino fio de ouro, cuja característica principal é a inalterabilidade.
Estas ações sutis e mínimas, executadas com e sobre objetos de uso cotidiano, nos permitem
estabelecer analogias múltiplas, entre as quais: os novos sentidos, a possibilidade de dar com a
“áurea”*2 da beleza o rasgado/danificado/descartado, junto a reflexão que realiza o artista: “...
o que das pessoas fica alojado nos objetos de uso diário...” , “como os objetos nos introduzem
no campo de sua particular poética”. Nos introduzem a um ponto em que obra e subjetividade
se fundem.
Se nos aprofundarmos nas dinâmicas que estão por baixo dessas relações que Livia constrói na
sua obra, entramos num campo de múltiplas possibilidades. Através da materialidade do que
vemos (objetos de uso cotidiano, danificados e depois resgatados) transpomos o limite do
dizível e entramos no campo do indizível.
É para esse deslocamento proponente que a obra de Livia Marin nos conduz, um labirinto
onde as suas vicências subjetivas penetram por cada ponto inalterável de fio de ouro que
transpassa sua obra, assim: erro/ dano/ quebra/ inércia/ fatalidade, se entrelaçam com :
possibilidade/ restituição/ cura/ onde a beleza*3 parece ser a chave que permite a coexistência
inalterável.
*1 sutura
(do latim sutūra: de sutum, supino de suĕre, coser).
1.
f. Bot. Cordãozinho que forma a junção dos gomos de um fruto.
2.
f. Med. Costura com a que se juntam os lados de uma ferida.
3.
f. Zool. Linha sinuosa, na forma de serra, que forma a união de certos ossos do crâneo.
*2 ouro (do latim aurum).
Elemento químico de núm. atôm. 79. Metal escasso na crosta terrestre que se encontra nativo e muito disperso. De
cor amarela e inalterável por quase todos os reativos químicos, é o mais dúctil e maleável dos metais, muito bom
condutor do calor e da eletricidade e um dos mais pesados. Usa-se como metal precioso em joalheria e na
fabricação de moedas e fundido como platina ou paládia, em odontologia. (Símb. Au).
Texto de Beatriz Bustos Oyanedel | 2011
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