ISSN 1415-2762 Revista Mineira de Enfermagem Nursing Journal of Minas Gerais Revista de Enfermería de Minas Gerais V O L U M E 1 3 . N Ú M E R O 1 . J A N / M A R D E 2 0 0 9 EDITORA GERAL Adelaide De Mattia Rocha Universidade Federal de Minas Gerais DIRETOR EXECUTIVO Lúcio José Vieira Universidade Federal de Minas Gerais Revista Mineira de Enfermagem EDITORES ASSOCIADOS Andréa Gazzinelli C. Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais Edna Maria Rezende Universidade Federal de Minas Gerais Francisco Carlos Félix Lana Universidade Federal de Minas Gerais Jorge Gustavo Velásquez Meléndez Universidade Federal de Minas Gerais Marília Alves Universidade Federal de Minas Gerais Roseni Rosângela de Sena Universidade Federal de Minas Gerais Tânia Couto Machado Chianca Universidade Federal de Minas Gerais CONSELHO EDITORIAL Adriana de Oliveira Iquiapaza Universidade Federal de Minas Gerais Alacoque Lorenzini Erdmann Universidade Federal de Santa Catarina Alba Lúcia Bottura Leite de Barros Universidade Federal de São Paulo – SP Aline Cristine Souza Lopes Universidade Federal de Minas Gerais André Petitat Université de Lausanne – Suiça Anézia Moreira Faria Madeira Universidade Federal de Minas Gerais Carmen Gracinda Silvan Scochi Universidade de São Paulo – RP Cláudia Maria de Mattos Penna Universidade Federal de Minas Gerais Cristina Maria Douat Loyola Universidade Federal do Rio de Janeiro Daclé Vilma Carvalho Universidade Federal de Minas Gerais Deborah Carvalho Malta Universidade Federal de Minas Gerais Elenice Dias Ribeiro Paula Lima Universidade Federal de Minas Gerais Emília Campos de Carvalho Universidade de São Paulo – RP Flávia Márcia Oliveira Centro Universitário do Leste de Minas Gerais Goolan Houssein Rassool University Of London – Inglaterra Helmut Kloos Universit of Califórnia, San Fransico – USA Isabel Amélia Costa Mendes Universidade de São Paulo – RP José Vitor da Silva Universidade do Vale do Sapucaí Lídia Aparecida Rossi Universidade de São Paulo – RP Luiza Akiko komura Hoga Universidade de São Paulo – RP Magali Roseira Boemer Universidade de São Paulo – RP Márcia Maria Fontão Zago Universidade de São Paulo – RP Marga Simon Coler University of Connecticut – USA Maria Ambrosina Cardoso Maia Faculdade de Enfermagem de Passos – FAENPA María Consuelo Castrillón Universidade de Antioquia – Colombia Maria Flávia Gazzinelli Universidade Federal de Minas Gerais Maria Gaby Rivero Gutierrez Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP Maria Helena Larcher Caliri Universidade de São Paulo – RP Maria Helena Palucci Marziale Universidade de São Paulo – RP Maria Imaculada de Fátima Freitas Universidade Federal de Minas Gerais Maria Itayra Coelho de Souza Padilha Universidade Federal de Santa Catarina Maria José Menezes Brito Universidade Federal de Minas Gerais Maria Lúcia Zanetti Universidade de São Paulo – RP Maria Miriam Lima da Nóbrega Universidade Federal da Paraíba Raquel Rapone Gaidzinski Universidade de São Paulo – SP Regina Aparecida Garcia de Lima Universidade de São Paulo – RP Rosalina Aparecida Partezani Rodrigues Universidade de São Paulo – RP Rosângela Maria Greco Universidade Federal de Juiz de Fora Silvana Martins Mishima Universidade de São Paulo – RP Sônia Maria Soares Universidade Federal de Minas Gerais Vanda Elisa Andrés Felli Universidade Federal de São Paulo – SP REME – REVISTA MINEIRA DE ENFERMAGEM Publicação da Escola de Enfermagem da UFMG Em parceria com: Escola de Enfermagem Wenceslau Braz – MG Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Fundação de Ensino Superior de Passos – MG Universidade do Vale do Sapucaí – MG Centro Universitário do Leste de Minas Gerais – MG Universidade Federal de Juiz de Fora – MG CONSELHO DELIBERATIVO Marília Alves - Presidente Universidade Federal de Minas Gerais Maria Cristina Pinto de Jesus Universidade Federal de Juiz de Fora José Vitor da Silva Escola de Enfermagem Wenceslau Braz Tânia Maria Delfraro Carmo Fundação de Ensino Superior de Passos Rosa Maria Nascimento Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí Sandra Maria Coelho Diniz Margon Centro Universitário do Leste de Minas Gerais Indexada em: BDENF – Base de Dados em Enfermagem / BIREME-OPAS/OMS CINAHL – Cumulative Index Nursing Allied Health Literature CUIDEN – Base de Datos de Enfermería en Espanhol LATINDEX – Fundación Index LILACS – Centro Latino Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde REV@ENF – Portal de Revistas de Enfermagem – Metodologia SciELO/Bireme - OPAS/OMS REV@ENF - Portal de Revistas de Enfermagem - Metodologia SciELO/ Bireme – OPS Formato eletrônico disponível em: www.enfermagem.ufmg.br/reme.php www.periodicos.capes.ufmg.br Secretaria Geral Vanessa de Oliveira Dupin – Secretária Geyzimara Reggiani Pereira – Bolsista da Fundação Universitária Mendes Pimentel (FUMP) Projeto Gráfico, Produção e Editoração Eletrônica Brígida Campbell Iara Veloso CEDECOM – Centro de Comunicação da UFMG Escola de Enfermagem Universidade Federal de Minas Gerais Revista Mineira de Enfermagem – Av. Alfredo Balena, 190 – Sala 104, Bloco Norte – Belo Horizonte - MG Brasil – CEP: 30130-100 Telefax: (31) 3409-9876 E-mail: [email protected] Editoração Quarto Crescente (Andréa Esteves) Impressão Editora e Gráfica O Lutador Normalização Bibliográfica Maria Piedade Fernandes Ribeiro Leite CRB/6-601 Revisão de texto Maria de Lourdes Costa de Queiroz (Português) Mônica Ybarra (Espanhol) Mariana Ybarra (Inglês) Assinatura Secretaria Geral – Telefax: (31) 3409 9876 E-mail: [email protected] Revista filiada à ABEC – Associação Brasileira de Editores Cientíicos Periodicidade: trimestral – Tiragem: 1.000 exemplares REME – Revista Mineira de Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. - v.1, n.1, jul./dez. 1997. Belo Horizonte: Coopmed, 1997. Semestral, v.1, n.1, jul./dez. 1997/ v.7, n.2, jul./dez. 2003. Trimestral, v.8, n.1, jan./mar. 2004 sob a responsabilidade Editorial da Escola de Enfermagem da UFMG. ISSN 1415-2762 1. Enfermagem – Periódicos. 2. Ciências da Saúde – Periódicos. I. Universidade Federal de Minas Gerias. Escola de Enfermagem. NLM: WY 100 CDU: 616-83 errata Errata: O editorial do v.12, nº 4 da REME foi publicado com autoria incorreta. Está sendo reapresentado no v.13, nº 1 com a autoria correta. Sumário 9 Editorial EDUCAÇÃO PERMANENTE: USO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO COMO FERRAMENTA PARA CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL Eliane Marina Palhares Guimarães Solange Cervinho Bicalho Godoy 11 Editorial BVS ENFERMAGEM E AS NOVAS PERSPECTIVAS Francisco Carlos Félix Lana 13 Pesquisas CARACTERIZAÇÃO CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICA DA CLIENTELA COM CRISE HIPERTENSIVA ATENDIDA EM UM SERVIÇO DE EMERGÊNCIA DE UM HOSPITAL MUNICIPAL DE FORTALEZA-CE CLINICO-EPIDEMIOLOGICAL FEATURES OF PATIENTS ATTENDED DURING A HYPERTENSIVE CRISIS IN THE EMERGENCY SERVICE OF A MUNICIPAL HOSPITAL OF FORTALEZA, CEARÁ CARACTERIZACIÓN CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICA DE LOS PACIENTES CON CRISIS HIPERTENSIVA ATENDIDOS EN EL SERVICIO DE EMERGENCIAS DE UN HOSPITAL MUNICIPAL DE FORTALEZA-CE Ana Célia Caetano de Souza Thereza Maria Magalhães Moreira José Wicto Pereira Borges Auzilene Moreira de Andrade Marcelo de Moraes Andrade Paulo César de Almeida 19 TRATAMENTO DE FERIDAS CRÔNICAS COM COBERTURAS OCLUSIVAS TREATMENT OF CHRONIC WOUNDS WITH OCCLUSIVE DRESSINGS TRATAMIENTO DE HERIDAS CRÓNICAS CON COBERTURAS OCLUSIVAS Flávia Sampaio Latini Gomes Daclé Vilma Carvalho Elenice Dias Ribeiro de Paula Lima 28 PERFIL DE FAMILIARES ACOMPANHANTES: CONTRIBUIÇÕES PARA A AÇÃO EDUCATIVA DA ENFERMAGEM PROFILE OF FAMILY COMPANIONS: CONTRIBUTIONS TO NURSING EDUCATIONAL ACTIONS PERFIL DE FAMILIARES ACOMPAÑANTES: CONTRIBUCIONES A LA ACCIÓN EDUCATIVA DE ENFERMERÍA Margrid Beuter Cecília Maria Brondani Charline Szareski Letice Dalla Lana Neide Aparecida Titonelli Alvim 34 EXPRESSÃO DA CODEPENDÊNCIA EM FAMILIARES DE DEPENDENTES QUÍMICOS EXPRESSION OF CO-DEPENDENCE AMONG RELATIVES OF CHEMICALLY DEPENDENT PATIENTS EXPRESIÓN DE CODEPENDENCIA EN FAMILIARES DE DEPENDIENTES QUÍMICOS Leila Memória Paiva Moraes Violante Augusta Batista Braga Ângela Maria Alves e Souza Mônica Oliveira Batista Oriá 43 OFICINAS DE RECICLAGEM NO CAPS NOSSA CASA: A VISÃO DOS FAMILIARES RECYCLING WORKSHOPS AT “NOSSA CASA” CENTER OF PSYCHOSOCIAL CARE: A VISION OF THE FAMILY TALLERES DE RECICLAJE EN EL CAPS NOSSA CASA: VISIÓN DE LOS FAMILIARES Luciane Prado Kantorski André Luis Alves de Quevedo Ariane da Cruz Guedes Valquíria de Lourdes Machado Bielemann Rita Maria Heck Luana Ribeiro Borges 49 CONCEPÇÕES DE CUIDADO DOS FAMILIARES CUIDADORES DE PESSOAS COM DIABETES MELLITUS FAMILY CAREGIVERS OF PEOPLE WITH DIABETES MELLITUS: CARE CONCEPTS CONCEPCIONES DE CUIDADO DE LOS FAMILIARES CUIDADORES DE PERSONAS CON DIABETES MELLITUS Ricardo Castanho Moreira Márcia Glaciela da Cruz Scardoelli Roselene da Cruz Baseggio Catarina Aparecida Sales Maria Angélica Pagliarini Waidman 56 CUIDAR A FAMÍLIA: DA CONCEPÇÃO À DOCUMENTAÇÃO DOS CUIDADOS* FAMILY CARE: FROM CONCEPTION TO DOCUMENTATION OF CARE CUIDAR A LA FAMILIA: DESDE LA CONCEPCIÓN HASTA LA DOCUMENTACIÓN DE LOS CUIDADOS Maria Henriqueta de Jesus Silva Figueiredo Sandra Maria de Jesus Moreira 65 ANÁLISE DAS BASES DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS PARA O ENSINO DA SISTEMATIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA ENFERMAGEM ANALISYS OF PEDAGOGIC-DIDATIC BASIS TO IMPROVE THE TEACHING SYSTEMATIZATION OF NURSING ASSISTENCE ANÁLISIS DE LAS BASES DIDÁCTICAS PEDAGÓGICAS PARA LA ENSEÑANZA DE LA SISTEMATIZACIÓN DE LA ASISTENCIA DE ENFERMERÍA Oriana Deyze Correia Paiva Leadebal Wilma Dias de Fontes Maria Mirian Lima da Nóbrega Galdino Toscano de Brito Filho 76 TRAÇO E ESTADO DE ANSIEDADE DE ESTUDANTES DE ENFERMAGEM NA REALIZAÇÃO DE UMA PROVA PRÁTICA TRAIT AND STATE OF ANXIETY AMONG NURSING STUDENTS DURING A PRACTICAL TEST TRAZO Y ESTADO DE ANSIEDAD DE ALUMNOS DE GRADO DE ENFERMERÍA AL REALIZAR UNA PRUEBA PRÁCTICA Mariana Deienno Luis dos Santos Luzia Elaine Galdeano 84 A AUTONOMIA DE PESSOAS HOSPITALIZADAS EM SITUAÇÃO PRÉ-CIRÚRGICA THE AUTONOMY OF HOSPITALIZED PATIENTS IN PRESURGICAL SITUATION AUTONOMÍA DE PERSONAS INGRESADAS EN SITUACIÓN PREQUIRÚRGICA Márcia Tonin Rigotto Carneiro Heloisa Wey Berti 93 COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL EM ADULTOS COM TUBO OROTRAQUEAL NONVERBAL COMMUNICATION OF ADULTS WITH OROTRACHEAL TUBE COMUNICACIÓN NO VERBAL EN ADULTOS CON TUBO OROTRAQUEAL Ana Lúcia De Mattia João Paulo Aché de Freitas Filho Cristiane da Silva Souza Kátia Cilene Gâmbaro Patrícia Ferreira Montassieur 99 AÇÕES DO ENFERMEIRO NA RECEPCÃO DO PACIENTE EM CENTRO CIRÚRGICO NURSING ACTIONS IN THE ADMISSION OF PATIENTS AT A SURGICAL CENTER ACCIONES DEL ENFERMERO EN LA RECEPCIÓN DEL PACIENTE EN EL CENTRO QUIRÚRGICO Eniva Miladi Fernandes Stumm Marieli Balestrin Zimmermann Nara Marilene O. Girardon-Perlini Rosane Maria Kirchner 107 ANALGESIA EM ACIDENTADOS DE TRANSPORTE: INDICADORES PARA UMA ATUAÇÃO SEGURA NA EMERGÊNCIA ANALGESIA IN VICTIMS OF TRAFFIC ACCIDENTS: INDICATORS FOR SAFETY IN EMERGENCY SERVICES ANALGESIA EN ACCIDENTADOS DE TRÁNSITO: INDICADORES PARA LA ACTUACIÓN SEGURA EN EL SERVICIO DE EMERGENCIAS Ana Maria Calil Sallum 115 ADOLESCÊNCIA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO PELA GRAVIDEZ ADOLESCENCE: AN ANALISIS OF THE PREGNANCY DECISION ADOLESCENCIA: UN ANALISIS SOBRE LA DECISIÓN ACERCA DEL EMBARAZO Octavio Muniz da Costa Vargens Celeste Ferreira Adão Jane Márcia Progianti 123 ACIDENTES COM MATERIAL BIOLÓGICO: A REALIDADE DE UMA INSTITUIÇÃO HOSPITALAR DO INTERIOR PAULISTA ACCIDENTS INVOLVING BIOLOGICAL MATERIAL: THE REALITY OF A HOSPITAL IN INNER SÃO PAULO STATE ACCIDENTES CON MATERIAL BIOLÓGICO: LA REALIDAD DE UNA INSTITUCIÓN HOSPITALARIA DEL INTERIOR DEL ESTADO DE SÃO PAULO Maristela Aparecida Magri Magagnini Jairo Aparecido Ayres 131 CORRELAÇÃO ENTRE ÍNDICE DE MASSA CORPORAL, DISTRIBUIÇÃO DE GORDURA E COMPOSIÇÃO CORPORAL EM FUNCIONÁRIOS DE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE-MG CORRELATION BETWEEN BODY MASS INDEX, BODY FAT DISTRIBUTION AND BODY COMPOSITION AMONG EMPLOYEES OF A UNIVERSITY HOSPITAL IN THE METROPOLITAN AREA OF BELO HORIZONTE-MG CORRELACIÓN ENTRE EL ÍNDICE DE MASA CORPORAL, DISTRIBUCIÓN DE GRASA Y COMPOSICIÓN CORPORAL EN EMPLEADOS DE UN HOSPITAL UNIVERSITARIO DE LA ZONA METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE-MG Carolina Ribeiro Ferreira Duarte Lucila Pires Botelho Marcelo Souza Machado Aline Cristine Souza Lopes José Divino Lopes Filho Ann Kristine Jansen Revisão Teórica 139 A ANTROPOLOGIA COMO FERRAMENTA PARA COMPREENDER AS PRÁTICAS DE SAÚDE NOS DIFERENTES CONTEXTOS DA VIDA HUMANA ANTHROPOLOGY AS AN INSTRUMENT TO ENHANCE COMPREHENSION OF HEALTH PRACTICES IN DIFFERENT CONTEXTS OF HUMAN LIVING LA ANTROPOLOGÍA COMO HERRAMIENTA PARA COMPRENDER LAS PRÁCTICAS DE SALUD EN DIFERENTES CONTEXTOS DE LA VIDA Felipa Rafaela Amadigi Evelise Ribeiro Gonçalves Hosanna Pattrig Fertonani Judite Hennemann Bertoncini Silvia Maria Azevedo dos Santos Reflexivo 147 CONCEITO DE INTEGRALIDADE NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA THE CONCEPT OF INTEGRALITY IN MENTAL HEALTH CARE IN THE CONTEXT OF PSYCHIATRIC REFORM CONCEPTO DE INTEGRALIDAD EN LA ATENCIÓN EN SALUD MENTAL DENTRO DEL CONTEXTO DE LA REFORMA PSIQUIÁTRICA Cíntia Nasi Adriana Serdotte Freitas Cardoso Jacó Fernando Schneider Agnes Olschowsky Christine Wetzel 153 Normas de Publicação 155 Publication Norms 157 Normas de Publicácion 8 Editorial EDUCAÇÃO PERMANENTE: USO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO COMO FERRAMENTA PARA CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL Profa. Eliane Marina Palhares Guimarães1 Profa. Solange Cervinho Bicalho Godoy2 O desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade atual vem causando transformações constantes nos ambientes de trabalho e conseqüentemente, exigindo um profissional capaz de adaptar-se às mudanças e motivado a continuar aprendendo ao longo da sua vida. Neste contexto, o aparecimento de recursos interativos e de bases de formação contribuem para potencializar a difusão do conhecimento e superar a relação tempo e espaço, oferecendo tanto oportunidades para construção e acesso ao conhecimento, como possibilitando interações individuais e coletivas de forma integrada e permanente. No processo de educação dos profissionais da saúde entende-se como educação permanente qualquer tipo de atividade de capacitação caracterizado pela relação com o processo de trabalho institucional. Desta forma, a educação permanente objetiva a transformação da prática e adota como pressuposto pedagógico a discussão da realidade a partir dos elementos que façam sentido para os sujeitos envolvidos no processo de busca na melhoria da qualidade dos serviços e das condições de trabalho. Neste processo de educação, a utilização de uma tecnologia de comunicação de ponta deve estar sustentada numa concepção de ensino que possibilite uma aprendizagem significativa, apoiada no pensamento reflexivo, dialógico, contextual, colaborativo e construtivo. O uso da tecnologia como ferramenta mediatizadora desses processos educacionais tem sustentado as iniciativas de capacitação, em especial, aquelas de educação à distância, apresentando-se como mais uma alternativa de atualização profissional. Na enfermagem, o uso das tecnologias de comunicação e informação é uma estratégia que está sendo empregada com o objetivo de responder as necessidades de capacitação definidas pelo cenário da profissão no país. É importante ressaltar a composição da força de trabalho, constituída na sua maioria por profissionais de nível médio, a distribuição geográfica dos profissionais, que usualmente concentram-se nos grandes centros urbanos, em especial nas regiões sudeste e sul, e a grande diversidade de ações desenvolvidas pelos profissionais que envolvem atividades de menor complexidade até aquelas de maior complexidade e risco para o paciente. Ressaltam-se ainda as oportunidades de capacitação oferecidas pelos órgãos formadores concentrando-se em regiões mais desenvolvidas do país, e utilizando-se de metodologias presenciais que exigem do profissional o seu afastamento do serviço, bem como, investimento financeiro. Portanto, a incorporação tecnológica vem responder à necessidade de ampliação das oportunidades de participação dos profissionais de enfermagem em programas de capacitação, possibilitando sua inserção em atividades de educação. Dentre as vantagens deste modelo são destacadas a utilização da World Wide Web como ferramenta para disponibilizar as atividades de capacitação; a possibilidade de um trabalho multiprofissional; a facilidade de acesso, especialmente, em lugares carentes de especialistas; a relação custo/benefício favorável, uma vez que tende a ser relativamente cada vez mais baixa; alcance de um grande número de pessoas ao mesmo tempo, em locais diferentes; a inovação no pressuposto pedagógico, que exige do profissional uma participação ativa e coresponsabilidade no processo de aprendizagem; a discussão de temas direcionados para os problemas do cotidiano de trabalho, na busca de soluções; a avaliação da atividade de aprendizagem e transformação da prática ao longo do processo de educação, ressaltando as oportunidades de retroalimentação, garantindo assim, a efetividade. Diante deste cenário, novas abordagens do processo de educação devem ser adotadas para garantir o acesso à formação daqueles que ainda não a possuem, como também educação permanente daqueles que atuam em unidades formadoras de recursos humanos e prestadoras de serviços de saúde. Acredita-se que estas tecnologias permitem visualizar novas formas de prestar a assistência, considerando as necessidades dos profissionais e, com isso, colaborando para a transformação das realidades práticas locais. 1 2 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected] Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Professora Assistente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected] 9 10 Editorial BVS ENFERMAGEM E AS NOVAS PERSPECTIVAS Prof. Dr. Francisco Carlos Félix Lana Editor Associado A BVS Enfermagem tem como missão a construção do patrimônio informacional em enfermagem, com fácil acesso, sem preocupações com tempo, espaço e fronteiras, impulsionando os processos da geração de conhecimento e contribuindo para a formação e a prática da enfermagem para atuar com compromisso ético-social na área da educação, pesquisa e atenção à saúde, bem como para elevar a qualidade de vida da população no Brasil e na região. Com o apoio do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Saúde, do Ministério da Saúde (BIREME) e da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), da liderança da Escola de Enfermagem da UFMG e de instituições parceiras, a BVS Enfermagem representa uma expansão do modelo de cooperação técnica ao promover a produção e operação descentralizadas de fontes de informação multimidiais, conectadas em rede, com acesso direto e universal, sem limitações geográficas e de horário. O objetivo é responder, organizada e eficientemente, às necessidades de produzir e operar fontes de informação em saúde integradas na internet. Do início do processo de construção em 2003, passando pelo seu lançamento em novembro de 2005 e sua validação em junho 2006, o Projeto BVS Enfermagem teve avanços consideráveis na sistematização das principais fontes de informação. Para tanto, foi fundamental restaurar o BDENF e, com ele, o controle bibliográfico da literatura técnico-científica da enfermagem brasileira. Esse movimento induziu as revistas e suas instituições mantenedoras a buscar estratégias para a redução de um enorme passivo de fascículos e volumes não indexados no BDENF e na LILACS. Foi um passo altamente estruturante e que permitiu aumentar a visibilidade da produção científica das revistas nacionais de enfermagem do Brasil. Paralelamente à intensificação do controle bibliográfico, há, ressalte-se, o esforço para a criação do Portal de Revistas Metodologia SciELO, sob a liderança da EERP-USP e o apoio da BIREME. O impacto mais visível é o de um movimento que começou pela decisão de aderirmos à metodologia SciELO em junho de 2006 e participarmos de uma avaliação coletiva de nossos títulos. Como resultado, ampliamos o número de revistas de apenas uma para cinco, que passaram a integrar a Coleção SciELO Enfermagem. Assim, com a criação desse core nacional e a recente inclusão de mais quatro revistas internacionais na coleção, caminhamos para a realização de outro subprojeto – a bibliometria de nossas revistas no âmbito da SciELO/BIREME –, o que trará informações importantes para a avaliação e a consolidação das revistas de enfermagem nos cenários nacional e internacional. Outra fonte de informação importante também e que vem se consolidando integra o Portal de Teses e Dissertações. Sob a liderança do CEPEN/ABEN e como substrato principal o seu acervo (mais de 5 mil títulos), juntamente com o apoio dos Programas de Pós-Graduação, a BVS Enfermagem tem avançado no controle bibliográfico dessa fonte. O fato de as teses e dissertações estarem sendo indexadas em texto completo – formato eletrônico – no BDENF e LILACS, contribuirá de forma decisiva para a difusão equânime do conhecimento produzido na pós-graduação da enfermagem brasileira. O indicativo aprovado na 5ª Reunião Regional da BVS, ocorrida no 8º Congresso Internacional de Informação em Saúde, de construção de uma BVS Enfermagem Regional, que envolva todos os países da América Latina, Caribe, Espanha, Portugal e países de língua portuguesa a partir da BVS Enfermagem Brasil, foi uma decisão ousada e que implica definir estratégias de sustentabilidade junto aos governos e instituições de ensino e serviço dos países envolvidos, no sentido de que a proposta ganhe corpo em cada um dos países, para que possam definir processos próprios, garantindo, desse modo, suas especificidades e, ao mesmo tempo, sejam capazes de aportar contribuições à BVS ampliada. Isso significará, sem sombra de dúvida, um avanço significativo na sistematização e disseminação do conhecimento científico da enfermagem. A BVS Enfermagem, uma vez ampliada e consolidada, conferirá ao conhecimento produzido na Enfermagem o imprescindível caráter contemporâneo e o inserirá no contexto globalizado, que é, atualmente, determinante do crescimento e da visibilidade, necessários à expansão da enfermagem do País. Enfermeiro. Doutor em Enfermagem. Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected] 11 Caracterização Clínico-Epidemiológica da clientela com crise hipertensiva atendida em um serviço de emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE 12 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 Pesquisas CARACTERIZAÇÃO CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICA DA CLIENTELA COM CRISE HIPERTENSIVA ATENDIDA EM UM SERVIÇO DE EMERGÊNCIA DE UM HOSPITAL MUNICIPAL DE FORTALEZA-CE* CLINICO-EPIDEMIOLOGICAL FEATURES OF PATIENTS ATTENDED DURING A HYPERTENSIVE CRISIS IN THE EMERGENCY SERVICE OF A MUNICIPAL HOSPITAL OF FORTALEZA, CEARÁ CARACTERIZACIÓN CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICA DE LOS PACIENTES CON CRISIS HIPERTENSIVA ATENDIDOS EN EL SERVICIO DE EMERGENCIAS DE UN HOSPITAL MUNICIPAL DE FORTALEZA-CE Ana Célia Caetano de Souza1 Thereza Maria Magalhães Moreira2 José Wicto Pereira Borges3 Auzilene Moreira de Andrade4 Marcelo de Moraes Andrade5 Paulo César de Almeida6 RESUMO A crise hipertensiva é uma elevação abrupta e sintomática da pressão arterial com possibilidade de deterioração aguda de órgãos-alvo, que pode envolver o risco de morte. Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo, realizado na emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE com 118 usuários que adentraram o serviço de emergência com crise hipertensiva no período de abril a julho de 2006. Os resultados demonstraram que a prevalência da crise hipertensiva foi de 0,3%, sendo maiores os casos de urgência hipertensiva (88,1%). A hipertensão arterial não tratada e a existência de comorbidades aumentam a possibilidade de ocorrência das crises hipertensivas. Apesar de a prevalência ser pequena, existe necessidade de conhecer o perfil clínico-epidemiológico da clientela que procura a emergência do hospital com a complicação no sentido de oferecer atendimento mais adequado. Palavras-chave: Pressão Arterial; Hipertensão; Epidemiologia. SUMMARY Hypertensive crisis is an abrupt and symptomatic arousal of the arterial pressure in which target-organs may suffer acute deterioration, resulting in death. This is a quantitative and descriptive study carried out in the emergency service of a municipal hospital of Fortaleza, Ceara. A total of 118 patients who entered the service during April and July/2006 were evaluated. Results show that prevalence of hypertensive crisis was 0.3% and hypertensive urgencies were 88.1% of the cases. Untreated arterial hypertension and having a clinical comorbidity increase the risk of suffering a hypertensive crisis. Although prevalence is small, it is important to recognize the clinico-epidemiological profile of these patients in order to offer a more adequate care. Key words: Blood Pressure; Hypertension; Epidemiology. RESUMEN La crisis hipertensiva es una elevación abrupta y sintomática de la presión arterial con posibilidad de deterioro agudo de órganos blanco, que puede incluir riesgo de muerte. Se trata de un estudio cuantitativo descriptivo realizado en el servicio de emergencias de un hospital municipal de Fortaleza-Ceará con 118 usuarios en crisis hipertensiva entre abril y julio de 2006. Los resultados demostraron que la prevalencia de la crisis hipertensiva fue del 0,3%, con más casos de urgencia hipertensiva (88,1%). La hipertensión arterial no tratada y la existencia de comorbidades aumentan las posibilidades de incidencia de las crisis hipertensivas. A pesar de la baja prevalencia es importante conocer el perfil clínico-epidemiológico de los pacientes que acuden a emergencias del hospital para ofrecerles atención más adecuada. Palabras clave: Presión Sanguínea; Hipertensión; Epidemiología. * Artigo extraído de uma pesquisa de dissertação do Curso de Mestrado Acadêmico Cuidados Clínicos em Saúde. 1 Enfermeira do Hospital Universitário Walter Cantídio da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Cuidados Clínicos em Saúde (CMACCLIS) pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)-CE. Membro do “Grupo de Pesquisa Políticas, Saberes e Práticas em Saúde Coletiva”. 2 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Curso de Mestrado Acadêmico Cuidados Clínicos em Saúde (CMACCLIS) e do curso de graduação em enfermagem da Universidade Estadual do Ceará (UECE)-CE. Líder do “Grupo de Pesquisa Políticas, Saberes e Práticas em Saúde Coletiva”. 3 Enfermeiro graduado pela Faculdade Integrada Grande Fortaleza (FGF). Enfermeiro do Hospital Universitário Walter Cantídeo. 4 Enfermeira graduada pela Faculdade Integrada Grande Fortaleza (FGF)-CE. Enfermeira do Hospital Geral de Fortaleza (HGF). 5 Enfermeiro. Especialista em enfermagem obstétrica. Aluno do Curso de Medicina da Facultad de Medicina Orlando Gutierrez Pérez. 6 Estatístico. Doutor em Saúde Pública. Docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Endereço para correspondência: Ana Célia Caetano de Souza. Rua Luis Tibúrcio, nº 105, bairro Vicente Pinzon, Fortaleza-CE. CEP: 60175-551. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 13 Caracterização Clínico-Epidemiológica da clientela com crise hipertensiva atendida em um serviço de emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE INTRODUÇÃO Nos últimos anos, o Brasil tem vivido um momento de transição epidemiológica no qual o perfil de morbimotalidade sofreu gradativamente mudanças: as doenças infecto-contagiosas deram lugar às doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Entre essas enfermidades encontra-se a hipertensão arterial, sério problema de saúde pública que acomete 28,5% da população.1 A elevada incidência da enfermidade tem levado ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e ao aumento nos índices de morbimortalidade, promovendo a realização de estudos e a elaboração de estratégias para prevenção e o controle, na tentativa de reverter o atual quadro do agravo em nosso meio. No entanto, apesar da realização de ações que visam diminuir os índices elevados da hipertensão arterial, estudos referem que ¾ das pessoas portadoras da doença mantêm a pressão arterial não controlada, mesmo utilizando terapia anti-hipertensiva. Desses, 1% desenvolve um ou múltiplos episódios de crise hipertensiva.2,3 A crise hipertensiva é uma elevação abrupta e sintomática da pressão arterial com níveis de pressão diastólica iguais ou superiores a 120 mm/Hg, possibilitando o acometimento de lesões em órgãosalvo (coração, cérebro, rins, córneas e vasos sanguíneos) com risco potencial ou imediato de vida.4,5 Além dos aspectos epidemiológicos da crise hipertensiva, a abordagem clínica figura como elemento indispensável na compreensão da problemática, sendo importante destacar neste estudo: valores da pressão arterial, comorbidades presentes nessa clientela, tratamento, sintomatologia, hábitos de vida e saúde, dentre outros. Nesse sentido, objetivou-se com este trabalho delinear as características clínico-epidemiológicas da clientela com crise hipertensiva atendida em um serviço de emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE. MATERIAL E MÉTODOS Trata-se de um recorte de uma dissertação de mestrado,6 que se configurou como uma pesquisa de natureza quantitativa, descritiva, realizada em um hospital público do município de Fortaleza-CE, no período de abril a julho de 2006. A população do estudo foi de 273 usuários e a amostra, de 118 pessoas. Como critérios de inclusão no estudo adotaram-se: usuários com diagnóstico médico de crise hipertensiva ou que apresentaram elevação abrupta e sintomática da pressão arterial; com níveis de pressão diastólica iguais ou superiores a 120 mmHg, com idade igual ou superior a 18 anos, e orientados quando da aplicação do instrumento de coleta de dados. 14 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 Para a análise dos dados foi utilizado o programa estatístico SPSS, versão 13.0, no qual foram calculadas as medidas estatísticas médias, bem como o desviopadrão e a prevalência da crise hipertensiva no serviço. Foi utilizado um formulário contendo questões relativas aos dados sociodemográficos, clínico-epidemiológicos, de conhecimento da clientela e de acesso ao serviço de saúde. A pesquisa respeitou os preceitos éticos definidos na Resolução n° 196/96,7 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, e todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A pesquisa foi financiada com recursos da Fundação Cearence de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). RESULTADOS E DISCUSSÕES Os resultados mostraram que 44,9% da amostra era do sexo masculino, 55,1% do sexo feminino, sendo a faixa etária predominante de 42 a 53 anos (37,3%). O grau de instrução da maioria foi analfabeto/fundamental incompleto, representando 78,8% da clientela. O estado civil de mais da metade dos pesquisados foi de indivíduos casados (61,8%), considerados nesse item aqueles com uma relação conjugal estável, seguidos pelos indivíduos viúvos (12,7%). A prevalência da crise hipertensiva no serviço em estudo foi de 0,3%, confirmando a literatura que aponta uma prevalência de até 1%.2,4,8 Do total de crises hipertensivas identificadas (118), 88,1% foram de urgência e 11,9% de emergências, o que é confirmado na literatura, que refere o maior número de casos de urgência.9 Os valores da pressão arterial encontrados foram divididos em duas categorias. A maioria (79,7%) apresentou pressão diastólica de 120 a 130 mmHg e menos de um quarto (20,3%) de 131 a 160 mmHg. Muitos autores relatam os valores da pressão arterial diastólica na crise hipertensiva e consideram que na urgência eles são maiores ou iguais a 120 mmHg e na emergência hipertensiva não são menores que 130 mmHg.9,10,11,12 Segundo a tabela de classificação da obesidade (OMS), 19,6% (22) apresentaram índice de massa corporal (IMC) menor que 25, indicando peso ideal ou normal; 40,1% (45) demonstraram sobrepeso com variação de 25|-30 no IMC; e mais de um terço (39,4%) possuíam de obesidade moderada a mórbida, indicando um fator de risco importante para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e outras complicações, pois 79,5% encontravam-se acima do peso ideal. No entanto, somente 15,3% demonstraram algum grau de obesidade e somente duas pessoas, das 90 acima do peso, disseram fazer algum tipo de tratamento. Total de participantes N=118 * Mais de uma resposta GRÁFICO 1 – Distribuição do número de pacientes segundo história familiar, tratamento das doenças e doenças presentes. Hospital X, Fortaleza-CE – abril a julho de 2006 No GRAF. 1, podemos constatar que a quase totalidade (95,8%) dos participantes relatou que era portadora de hipertensão arterial; 15,3% (43) referiram algum grau de obesidade; um terço (30,5%), de dislipidemia; a doença cardíaca esteve presente em um quarto dos participantes (25,4%); 22,9% (27) mencionaram serem portadores de doença vascular periférica; menos de um quarto (20,3%) teve acidente vascular cerebral; 15,3% (18) eram portadores de diabetes mellitus; e 13,6% (16), de doenças renais. Observou-se que há uma relação direta entre a ocorrência de crise hipertensiva e a presença de hipertensão arterial na clientela do estudo. A elevação abrupta dos níveis tensionais na hipertensão arterial, principalmente na não tratada, pode levar ao desenvolvimento de urgência ou emergência hipertensiva.3,13 Um dado relevante aponta para a existência de outras enfermidades na clientela. A associação de dois ou mais agravos possibilita maior adoecimento, risco aumentado para outras doenças e aumento na ocorrência de complicações, dentre elas a crise hipertensiva. A presença de comorbidades, como a obesidade, a dislipidemia, a diabetes e a hipertensão arterial, determina a síndrome metabólica, que representa um aumento 2,5 vezes maior no risco de doenças cardiovasculares e 1,5 vez maior na mortalidade geral.14 A obesidade, atualmente considerada sério problema de saúde pública, tem acometido 7% da população mundial e o sobrepeso chega a 20% (OMS). No Brasil, de acordo com dados da Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN) de 1989, o excesso de peso está presente em 27 milhões de pessoas.15 Associada a outras condições, como o sedentarismo, a obesidade promove o desenvolvimento de problemas de saúde, principalmente enfermidades cardiovasculares. Verificou-se que a existência de sobrepeso e graus variados de obesidade na nossa clientela não difere dos dados encontrados em outras pesquisas e que a enfermidade está presente, principalmente, nas populações de baixo nível de escolaridade e menor poder aquisitivo.16 A maioria das pessoas (73,7%) faz tratamento para algum dos problemas de saúde existentes. Quase a totalidade (95,3%) realiza tratamento para hipertensão arterial; 13,9% (12) tratam de diabetes mellitus; 10,5% (9) fazem tratamento para doença cardíaca (mas 25,4% possuem algum tipo de enfermidade do coração); 2,7% (3) referem tratamento para dislipidemia (embora 30,5% tenha dislipidemia); 1,8% (2) diz fazê-lo para doença renal; 1,8% (2), para acidente vascular cerebral (embora 20,3% já tenham tido AVC); e 27,9% (24) para outros agravos. O tratamento é uma etapa importante nas doenças crônico-degenerativas, especialmente nas enfermidades cardiovasculares. O termo engloba desde a realização de ações preventivas, quanto a utilização de fármacos adequados e a realização de exames complementares e tratamento cirúrgico, quando necessário. O uso regular de medicação nas pessoas com problemas de saúde é fundamental para sua remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 15 Caracterização Clínico-Epidemiológica da clientela com crise hipertensiva atendida em um serviço de emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE recuperação e para a prevenção de complicações. Uma vez que foi acentuada a relação entre a crise hipertensiva e a existência anterior de hipertensão arterial, o tratamento medicamentoso e não medicamentoso adequado e com regularidade para essa condição é indispensável para evitar a ocorrência de complicações. A dificuldade na realização do tratamento da hipertensão arterial está relacionada com a falta de adesão à terapêutica, seja farmacológica, seja não farmacológica. Segundo Moreira,17 um dos fatores que contribuem para a não adesão ao tratamento é a falta do estabelecimento de um pacto entre paciente e profissional de saúde que priorize preferências da pessoa na adoção do regime terapêutico. dor na nuca, todos ocorrendo de forma isolada ou associada a outro sintoma; 6,7% (8), precordialgia; 1,7% (2), epistaxe severa; e 2,5% (3), outros sintomas ou associações de sintomas. Os sinais e sintomas encontrados nas crises hipertensivas na nossa pesquisa foram semelhantes aos encontrados em outros estudos brasileiros e estrangeiros. Estudos sobre prevalência e apresentação clínica da crise hipertensiva encontraram sintomas de cefaleia, tontura, náusea, vômito, precordialgia, arritmia, dispneia, dentre outros associados à crise. A cefaleia foi o sintoma mais comum na urgência e na emergência hipertensiva.9,10 Vasconcellos18 afirma que as crises hipertensivas têm como uma das causas a presença de hipertensão arterial sem tratamento. O diagnóstico precoce e o tratamento permanente da doença visam atingir a pressão arterial diastólica igual ou inferior a 80 mmHg, evitando, assim, a injúria vascular, geralmente presente na emergência hipertensiva. A maioria das pessoas (82,2%) relatou história familiar de hipertensão arterial; 36,4% (43) mencionaram diabetes mellitus em membro da família; 7,6% (9) referiram morte súbita em algum ente familiar; 41% apresentaram história familiar de infarto do miocárdio; e mais de um terço (41%), de acidente vascular cerebral. Os pais foram os familiares mais acometidos por essas enfermidades. Sabe-se que o fator hereditário é importante no surgimento das doenças cardiovasculares e de outras enfermidades, pois exercem influência no desenvolvimento da hipertensão arterial, doença cardíaca, diabetes mellitus e dislipidemia.19 Total de participantes N=118 GRÁFICO 3 – Distribuição do número de pacientes segundo os hábitos de vida e saúde. Hospital X, Fortaleza-CE – abril a julho de 2006 Do total dos participantes, quase um terço (23,7%) possuía o hábito de fumar. Desses, 21,1% (25) fumavam cigarros, 3,8% (1) utilizavam cachimbo e 4,4% (17) costumavam tragar. Dentre os que fumavam cigarro, 9,3% (11) consumiam entre 1 a 5 cigarros por dia; 1,7% (2), entre 5 a 10; 4,2% (5), entre 10 a 15, diariamente; e 6,7% (8) mais de 20 cigarros por dia. Total de participantes N=118 GRÁFICO 2 – Distribuição da clientela segundo sinais e sintomas da crise hipertensiva. Hospital X, Fortaleza-CE – abril a julho de 2006 Os sinais e sintomas apresentados pelos participantes foram: 71,1% (84), cefaleia; 9,3% (11), tontura; 2,5% (3), parestesia; 2,5% (3), dispneia; 1,7% (2), náusea; 1,7% (2), 16 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 O tabagismo é considerado um dos principais fatores de risco modificáveis para doenças cardiovasculares. Juntamente com a hipertensão arterial, obesidade, inatividade física e níveis elevados de colesterol promovem o aparecimento da doença da artéria coronária. Smeltzer e Bare 19 relatam que o fumo contribui para o desenvolvimento da doença da artéria coronária (DAC), pois diminui o oxigênio circulante, aumenta a liberação de catecolaminas, promovendo a vasoconstrição e pode ocasionar uma resposta deletéria nos vasos sanguíneos, aumentando a adesão plaquetária, responsável pela formação de trombos. Sobre a prática de exercícios físicos, menos de um terço (21,1%) a realizava. Desses, 16,1% (19) faziam caminhada; 2,5% (2), ginástica; 1,7% (2) praticavam ciclismo; 0,8% (1) jogava futebol e 0,8% (1) utilizava a dança como atividade física. Dentre os que realizavam exercício físico 7,6% (9) relatavam um tempo de exercício/diário de até 30 minutos e 13,6% (16), de 30 ou mais minutos; 11,9% (14) faziam atividade física até três vezes por semana; e 10,2% (12), de quatro a sete vezes por semana. Gallo Júnior et al.20 descrevem que o exercício aeróbico (natação, corrida, caminhada, ciclismo, dança, dentre outros) promove queda na pressão arterial pela diminuição na resistência vascular periférica e redução do débito cardíaco, que está associado à diminuição na atividade do sistema nervoso simpático. A atividade física periódica, além de proporcionar diminuição nos níveis pressóricos, favorece a perda de peso, a queda nos valores do colesterol, triglicerídeos e níveis glicêmicos implicados diretamente na elevação da pressão arterial e em suas complicações. A prática de exercícios aeróbicos de intensidade moderada, três a quatro vezes por semana, entre 30 a 60 minutos, é recomendação indispensável a um estilo de vida saudável.21 O exercício físico associado a outras medidas não farmacológicas e ao tratamento farmacológico tornase coadjuvante no tratamento e na prevenção de complicações cardiovasculares, necessitando, portanto, de uma avaliação médica prévia para sua realização.22 Percebeu-se, ainda, que 89,9% (106) das pessoas consumiam alimentos gordurosos, 85% (101) utilizavam alimentos salgados e todos os participantes (100%) comiam frituras em sua dieta, apesar de a maioria relatar raro consumo dessas. Os alimentos gordurosos ingeridos pela clientela do estudo são carnes e vísceras, leite integral, margarina e manteiga, frios (principalmente a mortadela) e, em menor quantidade, as massas, consideradas alimentos caros pelos participantes. Entre os alimentos contendo parcela significativa de sódio e que podem elevar a pressão arterial estão os pães e biscoitos doces e salgados, os temperos industrializados e os alimentos adicionados de sal durante seu preparo ou cozimento. Observou-se que a ingestão desses alimentos e a falta de atividade física estão, provavelmente, relacionadas à ocorrência de sobrepeso e obesidade, favorecendo a elevação dos níveis pressóricos na clientela do estudo. O padrão alimentar, entendido como o perfil de alimentos consumidos pelo indivíduo ao longo de determinado período, deve ser considerado quando se estabelece a relação entre os nutrientes ingeridos e o risco de agravos à saúde.22 A alimentação da pessoa que já teve ou está em crise hipertensiva deve considerar o valor energético dos nutrientes, as diferenças individuais e o seu poder aquisitivo. A diminuição na ingestão de sal na dieta proporciona redução na pressão arterial e no risco de desenvolvimento de agravos cardiovasculares. A ingestão de gorduras saturadas e açúcares simples em menor quantidade promove diminuição no peso corporal e consequente queda na pressão arterial. Uma questão a ser considerada é que o desemprego e a baixa renda familiar dos sujeitos envolvidos dificultam a aquisição de práticas mais saudáveis, visto que os alimentos a serem consumidos são, às vezes, inacessíveis, restando a opção de alimentos mais calóricos e gordurosos, que facilmente saciam e são mais baratos. As frutas e verduras que devem ser consumidas diariamente ficam em segundo plano e os alimentos gordurosos, que deveriam ser evitados, integram a alimentação cotidiana da nossa clientela. Portanto, a prevenção de crises hipertensivas passa pela adoção de medidas farmacológicas e não farmacológicas cotidianas, de difícil seguimento rotineiro pelas restrições que impõem. Os profissionais de saúde devem adequar a abordagem desse problema de saúde ao acometido assumindo uma postura de maior envolvimento do paciente na manutenção de sua saúde. CONCLUSÃO O estudo demonstrou que a prevalência da crise hipertensiva no serviço de emergência do referido hospital foi de 0,3%, sendo maior a ocorrência da urgência (88,1%) do que de emergência hipertensiva (11,9%). A crise hipertensiva foi maior entre as mulheres (55,1%); em pessoas na faixa etária de 42-53 anos com 37,3%; com baixo nível de escolaridade (78,8%), sendo mais da metade (61,8%) da clientela casada; A hipertensão arterial é a causa mais frequente de crise hipertensiva na clientela do estudo, uma vez que 95,8% são portadores da enfermidade. A existência de comorbidades (obesidade, diabetes, dislipidemia, doença cardíaca e renal) e o tratamento inadequado têm contribuído para ocorrência da complicação, levando as pessoas à procura pelo serviço de emergência. Portanto, o conhecimento dos aspectos clínicos e epidemiológicos do agravo é extremamente importante e tem o intuito de oferecer maior compreensão da clientela e dos fatores que podem influenciar a ocorrência da crise hipertensiva, possibilitando a utilização de estratégias mais eficazes na abordagem das pessoas que procuram o serviço de emergência da instituição. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, jan./mar., 2009 17 Caracterização Clínico-Epidemiológica da clientela com crise hipertensiva atendida em um serviço de emergência de um hospital municipal de Fortaleza-CE REFERÊNCIAS 1. Machado CA. Definição, epidemiologia, fator de risco cardiovascular e classificação. In: Póvoa R. A hipertensão arterial na prática clínica. São Paulo: Atheneu; 2007. p. 25-36. 2. Varon J, Marik P.E. Clinical review: the management of hypertensive crises. [Citado em 2006 fev. 22]. Disponível em: http:// www.pubmedcentral.nih.gov/ articlerender.fegi?Artid=270718. 3. Varon J, Polansky M. 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Método: Este estudo prospectivo foi realizado entre os pacientes crônicos que tratavam de feridas em membros inferiores, de acordo com o protocolo que estabelecia o uso de coberturas interativas. Para a coleta de dados, foram realizadas duas culturas swab em dois momentos distintos: inicial, durante a primeira avaliação do paciente e, segundo, durante a 12 a troca de cobertura, aproximadamente, 45 dias após o início do tratamento. Resultados: Todas as feridas tinham duas a quatro colônias simultaneamente e apresentaram alterações na sua microbiota durante o tratamento. Nenhum paciente desenvolveu infecção na ferida durante o estudo. Conclusão: Este estudo contribui para a compreensão do tema tratamento de ferida. Os resultados sugerem que o protocolo de tratamento utilizado promoveu alterações na microbiota favoráveis para a cicatrização de feridas. Compreender que mudanças ocorrem nas feridas durante um tratamento específico é importante para os cuidados de saúde, especialmente quando o tratamento se revelar eficiente e de baixo custo. Palavras-chaves: Cicatrização de Feridas; Curativos Oclusivos; Infecção dos Ferimentos. ABSTRACT Purpose: This study aims to analyze the microbiota of chronic wounds in lower limbs. Basic Procedures: This prospective study was accomplished among patients who were in treatment for lower limbs chronic wounds according to a protocol which establishes the use of interactive dressings. Data collection and swab cultures were done in two different moments: first, during the patient’s first assessment, and second, during the 12th dressing change, approximately 45 days after starting treatment. Findings: All wounds had two to four colonies simultaneously and showed changes in their microbiota during the treatment. No patients developed wound infections during the study. Conclusions: This study contributes to the comprehension of wound topic treatment. Results suggest that the treatment protocol promotes changes in the microbiota which are favorable to the wound healing. It is important to healthcare providers to understand which changes occur in a wound during a specific treatment, especially when it proves to be efficient and low cost. Key words: Wound Healing; Occlusive Dressings; Wound Infection. RESUMEN Objetivo: Analizar la microbiota de heridas crónicas de las extremidades inferiores. Método: Este estudio prospectivo se llevó a cabo entre los pacientes tratados con heridas crónicas en las piernas, según el protocolo que estableció el uso de apósitos interactivos. Para la recogida de datos fueron realizados dos cultivos swab en dos momentos: inicial, durante la primera evaluación del paciente y, segunda, durante el 12a cambio de cobertura, aproximadamente 45 días después de iniciar el tratamiento. Resultados: Todos los pacientes tenían de dos a cuatro colonias y presentaron alteración de la microbiota durante el tratamiento. Ningún paciente desarrolló infección en la herida durante el estudio. Conclusiones: Este estudio contribuye a la comprensión de la cuestión del tratamiento de heridas. Los resultados sugieren que el protocolo de tratamiento utilizado promovió cambios favorables en la microbiota para la cicatrización de las heridas. Conocer qué cambios se producen en las heridas durante un tratamiento específico es importante para la atención de la salud, sobre todo cuando el tratamiento ha demostrado ser eficiente y de bajo costo. Palabras claves: Cicatrización de Heridas; Apósitos Oclusivos; Infección de Heridas. 1 2 Enfermeira, Mestre. Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Básica da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. Enfermeiras, Doutoras. Professoras do Departamento de Enfermagem Básica da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 13-18, 19-27, jan./mar., 2009 19 Tratamento de feridas crônicas com coberturas oclusivas INTRODUÇÃO O tratamento de feridas vem sendo realizado desde a PréHistória. No entanto, ainda no início do século XXI, há muitas controvérsias sobre a terapia tópica neste tratamento.1 Pesquisas dos últimos anos demonstraram que as soluções antissépticas utilizadas para limpeza das feridas vêm causando mais transtornos que benefícios ao processo de cicatrização, por serem citotóxicas para fibroblastos, interferindo na formação do colágeno, retardando a epitelização e diminuindo a força tensional do tecido neoformado.2,3 Em presença de matéria orgânica, como sangue, pus ou gordura, a ação bactericida dos antissépticos é reduzida ou inativada.4,5 Ressalte-se que pomadas à base de iodo, além de retardarem o processo de cicatrização, causam dor, mancham a pele e podem causar sensibilização, impedindo a avaliação fidedigna da lesão. Ainda existem muitas dúvidas entre os profissionais da saúde sobre como realizar a terapia tópica e o que utilizar para tal fim. Dentre essas dúvidas encontram-se as referentes à possibilidade de modificação da microbiota do leito da ferida, o que poderia propiciar o desenvolvimento de infecção. Tal indagação surge em decorrência da abolição do uso das soluções antissépticas, e da oclusão da ferida com coberturas impermeáveis ou semipermeáveis, o que supostamente acarretaria em um aumento do índice de infecções. Embora o uso de soluções antissépticas seja ainda preconizado por alguns profissionais, com o pretexto de manter o leito da ferida livre de microrganismos, a retirada dos anti-sépticos no tratamento de feridas significa uma quebra de paradigma nesse tratamento. No setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/UFMG), são atendidos pacientes portadores de feridas crônicas sobre a égide de um protocolo que preconiza, para tratamento tópico, a limpeza da ferida com solução salina isotônica e a utilização de coberturas oclusivas. Essas coberturas, denominadas interativas, garantem o meio adequado para facilitar o processo cicatricial. Esse protocolo recomenda a realização de alguns exames na primeira avaliação do paciente portador de ferida crônica, inclusive a cultura e antibiograma do exsudato do leito da ferida, através de swab. Esse exame é solicitado pelos enfermeiros do setor, independente da presença ou não de infecção e tem por objetivo identificar a microbiota existente na ferida e seu padrão de sensibilidade aos antimicrobianos. Diante do exposto, foi realizada esta pesquisa exploratória e prospectiva, com o objetivo de analisar a variação da microbiota de feridas crônicas em membros inferiores tratadas conforme o protocolo descrito. MÉTODO Este estudo foi desenvolvido no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. O setor atende pacientes de ambos os sexos, portadores de feridas 20 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 crônicas de diversas etiologias. A assistência é realizada em conformidade com o protocolo que norteia todo o processo, desde a admissão até a alta do paciente. Esse protocolo estabelece a limpeza da ferida apenas com soro fisiológico a 0,9%, em jato, e a utilização de coberturas oclusivas como tratamento tópico. A amostra foi constituída por pacientes portadores de ferida crônica em membros inferiores, de ambos os sexos, idade variada, que iniciaram atendimento no setor de Estomaterapia durante setembro de 2000 a abril de 2001. Dos 15 pacientes admitidos no serviço durante esse período, foram incluídos todos os que atenderam ao critério de inclusão (n=12): serem admitidos no serviço durante o período estabelecido para o estudo, para tratar de ferida crônica em membros inferiores, segundo o protocolo do setor. A coleta do exsudato das feridas desses pacientes, para cultura e antibiograma, ocorreu em dois momentos distintos: (1º) na inserção do paciente no setor de Estomaterapia, durante a primeira avaliação; (2º) após, aproximadamente, 12 trocas de curativos, correspondendo a 45 dias de tratamento (período definido aleatoriamente). Essa coleta seguiu as rotinas do serviço: (1) limpeza da pele circunvizinha com soro fisiológico e, em caso de haver sujidade, com água e sabão líquido; (2) limpeza exaustiva do leito da ferida com soro fisiológico morno, em jato; (3) deslizamento da zaragatoa ou swab estéril sobre o leito da ferida, utilizando a técnica em “Z”, tocando pelo menos oito pontos distintos das bordas, sem contudo tocar na pele íntegra ao redor da ferida, na porção mais profunda da mesma. No caso de mais de uma ferida em um mesmo membro, os exsudatos foram colhidos em uma mesma zaragatoa. Feridas em membros distintos foram colhidos em zaragatoas distintas. O material coletado foi identificado e encaminhado ao setor de Microbiologia do Laboratório Central do HC/UFMG, em um tempo máximo de 30 minutos após a coleta. A opção pela cultura de exsudato colhido por swab (cultura qualitativa) deveu-se, fundamentalmente, por ser esse o processo utilizado no setor. Esse procedimento é de baixo custo e não invasivo. Sabese, porém, que existem limitações, pois não se pode quantificar por meio desse exame os microrganismos presentes no leito da ferida, além da possibilidade de contaminação por bactérias pertencentes à microbiota normal da pele. A pesquisa de bactérias anaeróbias não foi realizada, por não ser um procedimento padronizado no protocolo. Os dados foram analisados por meio de percentuais e apresentados em gráficos, quadros ou tabelas, e os resultados discutidos à luz da literatura específica. O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, e os participantes do estudo assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, previamente à coleta de dados. RESULTADOS E DISCUSSÃO A caracterização dos 12 pacientes da amostra estudada está apresentada na TAB. 1. TABELA 1 – Características dos pacientes portadores de ferida crônica de membros inferiores atendidos no Anexo de Dermatologia do HC/UFMG, Belo Horizonte Neste estudo predominaram pacientes portadores de úlceras venosas (n=8) existentes há 6 anos ou mais (n=6). O nível de escolaridade entre os participantes era baixo, e a maioria era do sexo feminino (n=7). Microbiota das feridas A análise dos exsudatos das feridas dos pacientes estudados mostrou colonização em todas as feridas, tanto na primeira quanto na segunda cultura. Esse resultado era esperado, uma vez que tanto as feridas agudas quanto as crônicas possuem microrganismos no seu leito. Vários autores afirmam que todas as feridas crônicas estão colonizadas e que, na maioria das vezes, uma a três espécies de microrganismos estão presentes simultaneamente. Neste estudo, todas as feridas estavam colonizadas por mais de duas espécies de microrganismos, variando de duas a quatro espécies por ferida. No entanto, nenhum paciente apresentou sinais clínicos de infecção na ferida, no período do estudo.6-9 A TAB. 1 apresenta a microbiota isolada das feridas na primeira cultura (antes do início do tratamento no setor de Estomaterapia) e na segunda cultura (coleta realizada cerca de 45 dias após iniciado o tratamento). QUADRO 1 – Microbiota isolada na cultura do exsudato das feridas antes e após o início do tratamento no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do HC/UFMG, Belo Horizonte Nota: Classificação conforme o Gram de acordo com Bier (1990), Jawetz et al. (1991) e Guimarães (1999). remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 21 Tratamento de feridas crônicas com coberturas oclusivas Na primeira cultura de exsudato, foram identificadas 32 colônias de microrganismos correspondentes a 15 espécies e 10 gêneros. Os gêneros isolados com maior frequência foram: Staphylococcus (7), Proteus (6) e Pseudomonas (5). Na primeira cultura, em 50% das feridas foram isoladas duas colônias de microrganismos, em 33,3% três colônias, e em 16,7% quatro colônias. A média de colônias de microrganismos por ferida foi de 2,7. Das 32 colônias de microrganismos, as de Gramnegativo foram mais frequentes (21) que as de Grampositivo (11). Encontraram-se 6 gêneros e 10 espécies de microrganismos Gram-negativos e 4 gêneros e 5 espécies de Gram-positivos. Na avaliação da colonização por ferida, constatou-se que 10 (83,3%) estavam colonizadas por uma microbiota mista, ou seja, existiam microrganismos Gram-positivos e negativos. Em apenas duas feridas foram isolados somente microrganismos Gram-negativos. Os gêneros Gram-negativos isolados pertencem à microbiota normal de outras áreas anatômicas, que não a da pele. Dentre os mais frequentes, o Proteus pertence às microbiotas gastrintestinal e da região perineal; a Pseudomonas está presente nas áreas úmidas, como períneo e ouvido, mas também no trato intestinal; e a Escherichia coloniza as mucosas intestinal, da vagina e da porção terminal da uretra. Os gêneros Gram-positivos isolados pertencem à microbiota normal da pele.10 Em torno de 45 dias de implementação da terapia tópica preconizada no setor, foi realizada a segunda cultura do exsudato, na qual foram identificadas 34 colônias de microrganismos correspondentes a 18 espécies e 11 gêneros. Dentre os microrganismos isolados na segunda cultura, o gênero Staphylococcus foi novamente o mais frequente (9), além do Streptococcus (6) e do Proteus (6). Na segunda cultura, em 50% das feridas a colonização foi por três colônias; em 33,3% por duas e em 16,7% por quatro. A média encontrada foi de 2,8 colônias de microrganismos por ferida. Comparando esses dados com a distribuição das colônias de microrganismos na primeira cultura, verificou-se um discreto aumento do número de colônias da microbiota isolada e a modificação do número de colônias de microrganismos por ferida, pois na primeira cultura 50% estavam colonizadas por duas colônias, enquanto na segunda, 50% estavam colonizadas por três. (2a cultura) foram identificados 4 gêneros e 10 espécies de microrganismos Gram-positivos e 7 gêneros e 8 espécies de Gram-negativos. Os microrganismos Gram-positivos (19), na segunda cultura, foram mais frequentes que os Gram-negativos (15), enquanto na primeira a predominância foi de Gram-negativos. Provavelmente, essas alterações sejam porque as feridas eram protegidas com coberturas permeáveis (gazes) ou totalmente desprotegidas antes da inserção do paciente no serviço de Estomaterapia, sendo então contaminadas por microrganismos pertencentes à microbiota de outras regiões anatômicas. De todos os 12 gêneros identificados na primeira e na segunda culturas, o mais frequente foi o Staphylococcus. As colônias dos microrganismos pertencentes a esse gênero foram isoladas em 16 das 24 culturas realizadas. Resultados semelhantes foram encontrados por Bowler e Davies7 em estudo sobre microbiota de úlceras de membros inferiores infectadas e não infectadas. Estes autores encontraram o Staphylococcus aureus como a espécie mais frequente nos dois tipos de feridas. A frequência dos gêneros Escherichia e Morganella (Gram-negativos) diminuiu da primeira cultura para a segunda, enquanto a frequência dos gêneros Enterococcus, Staphylococcus e Streptococcus (Grampositivos) aumentou. O gênero Enterobacter (Gramnegativo) foi isolado somente antes do início do tratamento no setor (1a cultura). Os gêneros Moraxella, comumente isolado na microbiota normal da orofaringe, e Serratia, encontrada em vegetais, água e alimentos, foram isolados somente na segunda cultura e faziam parte da microbiota da ferida de um mesmo paciente. Este dado sugere contaminação durante a realização dos curativos no setor ou no cuidado domiciliar, realizado pelo paciente, pois a cobertura de alginato de cálcio, utilizada por este paciente, requer uma cobertura secundária (gazes), que, de acordo com o volume de exsudato, pode ser trocada diariamente pelo próprio paciente no domicílio. Em síntese, apenas três feridas apresentaram, na segunda cultura, microbiota totalmente diferente daquela isolada na primeira, tendo havido alteração de todos os gêneros iniciais, com predominância de Grampositivos. Com a implementação da terapia tópica preconizada, a microbiota no leito das feridas apresentou, também, algumas modificações quanto ao gênero, ou seja, inclusão ou exclusão de algum gênero. Em 67% das culturas houve alteração de dois gêneros ou mais. Das nove feridas restantes, uma delas, na segunda cultura, manteve o gênero (Staphylococcus) e modificou apenas a espécie, de aureus para haemolyticus. As demais mantiveram inclusive as espécies, sendo elas Staphylococcus aureus, Streptococcus sp., Enterococcus sp., Proteus mirabilis, Proteus vulgaris, Pseudomonas aeruginosa, Escherichia coli, Morganella morganii e Klebsiella oxytoca. Dessas espécies que se repetiram em momentos distintos, as colônias Gram-negativas foram predominantes. Ao avaliar a característica da microbiota quanto à reação ao Gram, nas 34 colônias de microrganismos isoladas Embora o tamanho da amostra não permita conclusões, pode-se supor que a terapia tópica preconizada no setor 22 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 de Estomaterapia, ou seja, apenas a utilização de soro fisiológico a 0,9% para limpeza das feridas e uso de apenas coberturas oclusivas, favorece alteração das características da microbiota sem, contudo, predispor à infecção, uma vez que nenhum paciente desenvolveu infecção de ferida no período estipulado para a coleta das culturas. Alguns autores afirmam que a oclusão da ferida não predispõe ou não aumenta os índices de infecção.8,11,12,13 Friedman e Su14, avaliando o tratamento de 31 úlceras de membros inferiores, utilizando cobertura oclusiva, concluíram que, embora existissem diversos microrganismos nas feridas, inclusive bactérias patógenas, nenhum paciente desenvolveu sinais sistêmicos ou locais de infecção. Coberturas utilizadas Dentre as coberturas padronizadas no setor de Estomaterapia para tratamento dos pacientes portadores de feridas, três pacientes da amostra utilizaram a cobertura de hidrocoloide e nove a de alginato de cálcio até o momento da coleta da segunda cultura. A indicação da cobertura, no setor de Estomaterapia, está amparada no volume de exsudato das feridas, no comprometimento por tecido necrótico e na presença de sinais de infecção. Dehaut e Maingaults15 em um estudo experimental, concluíram que o índice de retenção de bactérias nas coberturas de alginato de cálcio foi significativamente superior (p < 0,001) quando comparado com a cobertura de gaze. Isso significa que ocorreu uma diminuição do número de microrganismos no leito da lesão, reduzindo a possibilidade de desenvolvimento de infecção. Na cobertura de alginato de cálcio, 60,0% das bactérias permaneceram aderidas, enquanto que na de gaze todas foram liberadas. Foram encontradas as seguintes bactérias que permaneceram retidas na primeira cobertura: Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, Proteus mirabilis e Pseudomonas aeruginosa. A retenção destas últimas nas fibras de alginato deveu-se, provavelmente, à sua capacidade de produzir polissacarídeos similares à estrutura do alginato, facilitando assim a sua aderência.15 Os gêneros isolados aderidos às fibras de alginato certamente faziam parte da microbiota das feridas analisadas por esses autores e, desta forma, são semelhantes aos gêneros isolados nas feridas que compuseram esta amostra, tratada com alginato de cálcio. Na categoria “outros” estão as colônias de microrganismos isoladas somente uma vez em ambas as culturas: Corynebacterium, Enterococcus e Morganella. Os gêneros isolados nas feridas antes e durante o tratamento com hidrocoloide, estão apresentados no GRAF. 2. No GRAF. 1, estão demonstrados os gêneros de microrganismos isolados nas feridas antes e durante a implementação do tratamento com alginato de cálcio. GRÁFICO 1 – Distribuição das colônias dos microrganismos isoladas nas culturas de exsudato das feridas antes e durante a implementação do tratamento com alginato no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do HC/UFMG, Belo Horizonte Os gêneros isolados com maior frequência nas feridas tratadas com alginato de cálcio foram Staphylococcus, Streptococcus e Proteus. GRÁFICO 2 – Colônias dos microrganismos isolados nas culturas de exsudato das feridas antes e durante a implementação do tratamento com hidrocoloide, no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do HC/UFMG, Belo Horizonte Ainda que o número de pacientes tratados com hidrocoloide, no setor de Estomaterapia, tenha sido reduzido (3), saliente-se que foram isolados cinco gêneros em cada cultura, porém somente três foram comuns em ambas as culturas. No total foram isolados quatro gêneros Gram-positivos e três Gram-negativos e os mais frequentes foram Enterococcus e Staphylococcus. Para Mertz et al.16 a origem dos microrganismos Grampositivos que colonizam as feridas tratadas com remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 23 Tratamento de feridas crônicas com coberturas oclusivas hidrocoloide é da própria microbiota normal da pele circunvizinha. Ressaltam que, em seu estudo, que nenhum S. aureus foi isolado em feridas tratadas com coberturas oclusivas, assim como P. aeruginosa. Este último microrganismo também não foi isolado em úlceras venosas crônicas, após quatro semanas de tratamento com coberturas de hidrocoloide, em estudo realizado por Gilchrist e Reed.17 No entanto, outros autores11 encontraram esta espécie em ferida tratada com cobertura de hidrocoloide e argumentaram que a presença de P. aeruginosa, que são aeróbias estritas, sugere que o ambiente sob a cobertura não é anaeróbico. No primeiro estudo supracitado, não foi isolado Staphylococcus. No entanto, esse gênero esteve presente em duas culturas da amostra estudada e o 24 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 gênero Pseudomonas não foi isolado em nenhuma cultura dos pacientes tratados com hidrocoloide, o que foi semelhante aos achados dos dois primeiros estudos citados e diferente do terceiro. Segundo a literatura, a utilização de coberturas oclusivas modifica a microbiota, mas não predispõe à infecção, dado o aumento da taxa das células de defesa no local.11,13 Na amostra estudada, nenhuma das feridas apresentou sintomas ou sinais clínicos de infecção, com a implementação de coberturas oclusivas, seja alginato de cálcio ou hidrocoloide. O padrão de resistência dos microrganismos, segundo sua espécie, aos antibióticos testados, na primeira e na segunda cultura, está apresentado no QUADRO 2. QUADRO 2 – Resistência da microbiota aos antibióticos de feridas de pacientes tratados no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do HC/UFMG, Belo Horizonte. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 25 Tratamento de feridas crônicas com coberturas oclusivas As espécies Corynebacterium sp., Streptococcus sp. hemolítico e Moraxella catarrhalis não foram testadas aos antibióticos, pois são consideradas pelo setor de Microbiologia do Laboratório Central do HC/UFMG como contaminantes. Embora não tenha sido objetivo deste trabalho analisar resistência dos microrganismos aos antibióticos, optouse pela análise do antibiograma dos gêneros de microrganismos que foram isolados com maior frequência nas duas culturas: Staphylococcus, Proteus e Pseudomonas. A colonização de feridas por Staphylococcus é decorrente da colonização da própria pele. Esse gênero está relacionado às infecções de feridas, além de ser o mais incidente em úlceras crônicas em membros inferiores e úlceras de pressão.9 Foram isoladas 16 colônias de microrganismos do gênero Staphylococcus, dentre elas 10 de Staphylococcus aureus, dos quais 9 (90,0%) apresentavam resistência à penicilina. Tal achado pode ser explicado pela frequente utilização desse medicamento nos diversos serviços de saúde para tratamento e prevenção de infecções das úlceras de membros inferiores, primeira escolha nesses casos. Segundo Kolmos,8 as feridas crônicas, em sua maioria, estão colonizadas por Staphylococcus aureus e outras bactérias Gram-positivas, e a microbiota dessas feridas reflete os antibióticos administrados ao paciente em momentos anteriores. Como exemplifica o mesmo autor, quando o paciente é tratado com penicilinas de espectro reduzido, a colonização da ferida poderá ser por Escherichia coli, Klebsiella e outras bactérias fecais que são resistentes a esses antibióticos. Quando se administra penicilina de amplo espectro, a ferida poderá estar colonizada por Pseudomonas aeruginosa ou outras bactérias multirresistentes. Contudo, nenhum dos Staphylococcus aureus isolados foi considerado resistente às penicilinas e a todos os outros -lactâmicos. Outro gênero de microrganismos também frequente foi o Proteus (11), com predominância de Proteus mirabilis. Desse gênero, quatro não apresentaram resistência aos antibióticos testados, enquanto sete apresentaram resistência aos seguintes antibióticos: ampicilina, penicilina de amplo espectro; cefalotina e cefazolina, cefalosporinas de 1a geração; cefuroxima, cefalosporina de segunda geração e sulfametoxazol associado ao trimetoprim. O gênero Pseudomonas foi constituído por uma única espécie: Pseudomonas aeruginosa. Essa espécie apresentou resistência ao sulfametoxazol associado ao trimetoprim; à cefepime, cefalosporina de quarta geração; à gentamicina, aminoglicosídeo. Um apresentou resistência à rifampicina e outros dois à ceftriaxona. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em decorrência da pequena amostra, não foi possível estabelecer fatores associados ou correlacionados à alteração da microbiota no leito das feridas, utilizando os testes estatísticos pertinentes. Contudo, foi possível verificar a tendência do comportamento da microbiota, quanto à reação ao Gram, diante dos seguintes fatores sistêmicos e locais: a etiologia da ferida, o uso de medicamentos que poderiam comprometer o equilíbrio microrganismo-hospedeiro, o tempo de existência das feridas, a quantidade de tecido necrótico que lhe comprometia o leito, tipo de cuidado da ferida durante o banho e tipo de cobertura utilizada no setor de Estomaterapia. A microbiota das feridas estudadas foi discretamente modificada com a implementação da terapia tópica preconizada, no setor de Estomaterapia, quanto ao número de colônias isoladas e característica dos microrganismos ao Gram. Nenhum paciente apresentou sinais de infecção, no período estudado. Os resultados sugerem que a realização da limpeza da ferida apenas com soro fisiológico a 0,9% e a utilização única de coberturas oclusivas no tratamento de feridas não predispõem à infecção. As limitações do estudo são, principalmente, o pequeno tamanho da amostra e o método de coleta de material através de swab. Considerando a importância do tema e as limitações do estudo, sugere-se a continuidade da pesquisa, com as devidas correções, para a obtenção de dados conclusivos que possibilitem o posicionamento dos profissionais diante da terapia tópica preconizada no setor de Estomaterapia do Anexo de Dermatologia do Hospital das Clínicas da UFMG. REFERÊNCIAS 1. Borges EL. Limpeza e desbridamento. 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Vigilância epidemiológica das infecções hospitalares. In: Starling CEF, Pinhero SMC, Couto BRGM. Vigilância epidemiológica das infecções hospitalares na prática diária ensaios. Belo Horizonte: O Lutador; 1994. p. 24-89. 7. Bowler PG, Davies BJ. The microbiology of infected and noninfected leg ulcers. Int J Dermatol. 1999; 38(8):573-8. 8. Kolmos HJ. La infeccíon em las heridas crónicas. Helios Espergaerde. 1999; 7:3-7. 9. Madsen SM. Heridas infectadas. Helios Espergaerde. 1995; 3:7-9. 10. Fernandes AT, Ribeiro Filho N. Infecção hospitalar: desequilíbrio ecológico na interação do homem com sua microbiota. In: Fernandes AT, Fernandes MOV, Ribeiro Filho N. Infecção hospitalar e suas interfaces na área da saúde. São Paulo: Atheneu; 2000. p. 163-214. 11. Handfield-Jones SE, Grattan CEH, Simpson RA, Kennedy ZCT. Comparison of a hydrocolloid dressing and paraffin gauze in the treatment of venous ulcers. Br J Dermatol. 1988; 118(3):425-7. 12. Smith JR, Dj Thomson PD, Bolton LL, Hutchinson JJ. 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Enferm.;13(1): 19-27, jan./mar., 2009 27 Perfil de familiares acompanhantes: contribuições para a ação educativa da enfermagem PERFIL DE FAMILIARES ACOMPANHANTES: CONTRIBUIÇÕES PARA A AÇÃO EDUCATIVA DA ENFERMAGEM PROFILE OF FAMILY COMPANIONS: CONTRIBUTIONS TO NURSING EDUCATIONAL ACTIONS PERFIL DE FAMILIARES ACOMPAÑANTES: CONTRIBUCIONES A LA ACCIÓN EDUCATIVA DE ENFERMERÍA Margrid Beuter1 Cecília Maria Brondani2 Charline Szareski3 Letice Dalla Lana4 Neide Aparecida Titonelli Alvim5 RESUMO Trata-se uma pesquisa do tipo descritiva com abordagem quantitativa cujo objetivo foi identificar o perfil socioeconômico de familiares acompanhantes de adultos acometidos de doenças geradoras de incapacidades crônicas, internados em um hospital público da região Sul do Brasil. Os dados foram coletados por meio de um formulário com questões fechadas aplicado a 23 familiares acompanhantes, no período de janeiro a fevereiro de 2006. Os resultados revelaram que o perfil do familiar acompanhante é formado, predominantemente, por esposas, mães e filhas casadas em idade produtiva, com baixo nível de escolaridade e renda familiar entre um a três salários mínimos. Conclui-se que a identificação do perfil socioeconômico do familiar acompanhante contribui para que a equipe de enfermagem implemente estratégias efetivas de educação à saúde com a adoção de medidas de suporte à família, ajudando-a a desenvolver diferentes formas de enfrentamento da doença e das incapacidades que ela gera. Palavras-chave: Família; Enfermagem; Hospitalização; Cuidadores; Educação. ABSTRACT This is a descriptive research with a quantitative approach that aims to recognize the socio-economic profile of relatives who follow hospitalized adults with chronic handicapping diseases in a southern Brazilian public hospital. Data were collected through a form with closed questions given to 23 family companions from January to February 2006. Results show that family companions are predominantly wives, mothers and married daughters, in working age, with low educational level, and with a family income between one and three minimum salaries. The identification of the socio-economic profile of the accompanying relative contributes to the implementation of nursing health educational strategies such as measures for family support that help relatives to find ways of coping with the disease and its limitations. Key words: Family; Nursing; Hospitalization; Caregivers; Education. RESUMEN Se trata de una investigación de tipo descriptiva con enfoque cuantitativo. El objetivo del trabajo fue de identificar el perfil socioeconómico de familiares acompañantes de adultos con enfermedades causantes de incapacidad crónica internados en un hospital público de la región sur de Brasil. Los datos fueron recogidos por medio de un formulario con cuestiones cerradas aplicado a 23 familiares acompañantes en el periodo de enero a febrero de 2006. Los resultados revelaron que los familiares acompañantes son predominantemente las esposas, madres e hijas casadas, en edad activa, con estudios secundarios incompletos e ingreso familiar entre 1 y 3 sueldos mínimos. La identificación del perfil socioeconómico del familiar acompañante contribuye a que el equipo de enfermería implemente estrategias efectivas de educación y salud con la adopción de medidas de respaldo a la familia, ayudándola a desarrollar diferentes formas de cómo hacer frente a la enfermedad y a las incapacidades que ésta causa. Palabras clave: Familia; Enfermería; Hospitalización; Cuidadores; Educación. 1 2 3 4 5 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM. Enfermeira do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM/UFSM). Mestranda em Enfermagem na UFSM. Enfermeira. Mestranda em Enfermagem na UFSM. Professora Substituta do Departamento de Enfermagem da UFSM. Enfermeira. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ. Endereço para correspondência: Rua João da Fontoura e Souza nº 512, Camobi, Santa Maria, RS. CEP 97105-210. E-mail: [email protected]. 28 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 INTRODUÇÃO A enfermagem, em seu cotidiano de trabalho no cenário hospitalar, presta cuidados aos indivíduos com doenças geradoras de incapacidades crônicas que dificultam, por vezes, o processo de comunicação e interação entre o doente e a equipe. Essa situação pode ser facilitada pela presença do familiar acompanhante, auxiliando na superação de possíveis barreiras que impedem esse processo.1 O hospital é, normalmente, caracterizado como um ambiente estranho e hostil, tanto ao doente quanto à sua família que vivenciam a internação. É necessário propor ações que facilitem a comunicação e a interação de modo a amenizar situações que acarretam estresse e sofrimento físico e emocional a ambos, como as relativas ao ambiente, procedimentos técnicos, realização de exames e o tratamento da doença. Essas ações devem ser consideradas pela equipe de enfermagem durante todo o período de internação.2 Do ponto de vista do doente, uma das barreiras mais comuns são os termos técnicos utilizados pelos profissionais de saúde na sua abordagem, enquanto o comprometimento físico do enfermo, relacionado à dificuldade na fala e na audição, para esses profissionais, são os que mais interferem na comunicação entre esses sujeitos. 1 Os fatores de natureza psicológica que envolvem o universo de sentimentos e as emoções de ambos, bem como as diferenças socioeconômicas desses sujeitos, também estão implicados nesse processo. A presença de um familiar acompanhante no hospital é importante quando desejada pelo doente. Esse acompanhante tende a proporcionar apoio, segurança, afeto e suporte emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade físico-emocional do doente. Também, torna-se uma oportunidade para o enfermeiro auxiliar esse familiar na sua capacitação para o cuidado domiciliar, especialmente nos casos de doenças crônicas que, normalmente, necessitam de cuidados específicos por um tempo prolongado em sua residência.3 A longa permanência dos familiares acompanhantes no hospital resulta no seu envolvimento na dinâmica do cuidado, tornando-se um possível aliado da enfermagem, ajudando na detecção de sinais de alterações do estado físico e emocional de seu familiar.4 Assim, eles auxiliam na higienização, na alternância de decúbito e na vigilância em relação aos equipamentos conectados ao enfermo, à permeabilidade das vias aéreas, aos sinais de dor, ao desconforto e agitação, com o intento de proporcionar bem-estar, conforto, segurança física e emocional ao doente. A equipe de enfermagem, no contexto hospitalar, tem o cuidado ao doente como foco principal de sua assistência, mas deve-se considerar que o processo de doença envolve toda a família, também, merecedora de atenção, respeito e acolhimento por parte dos profissionais. Muitas vezes, o familiar acompanhante apresenta-se fragilizado na sua totalidade, situação decorrente dos longos períodos sem revezamento com outros familiares nesse papel.5 Por conseguinte, ele é, em geral, privado da possibilidade de desenvolver ações em prol de seu autocuidado e de compartilhar sentimentos de medo e de angústia em relação ao doente com os outros membros da família, principalmente nos casos em que este se encontra em estado crítico de vida. Alguns estudos confirmam que o processo de fragilização do familiar acompanhante está relacionado à sua sobrecarga física e psicológica em razão do grau de dependência do doente e das mudanças no seu comportamento.6,7 Essa sobrecarga, além de ser resultante do acúmulo de trabalho para o cuidador e da redução de suas atividades sociais e de lazer, muitas vezes é agravada pelas condições socioeconômicas e culturais da família. Uma das situações que mais afetam a família vivendo o processo de hospitalização de um de seus membros é a dificuldade financeira. Isso porque, além do significativo dispêndio orçamentário, esse processo também pode implicar prejuízo no trabalho quando é necessário se pensar em quem assumirá o papel de acompanhante do doente no hospital, requerendo, portanto, seu afastamento laboral. Em geral, principalmente tratando-se dos países da América Latina, o papel de cuidador familiar recai sobre a mulher, seja ela mãe, seja filha, esposa, irmã ou tia. Tradicionalmente ela vem assumindo o legado de cuidadora, em parte justificado pelo fato de, por muito tempo, a mulher não ter exercido atividades laborais fora do lar. Entretanto, embora essa não seja mais a realidade nas últimas décadas, tendo em vista o aumento da inserção da mulher no mercado de trabalho, na maioria das vezes, ela permanece responsável pelo cuidado do acompanhante. Afora esses aspectos, soma-se o fato de que a doença crônica gera incapacidades residuais e alterações patológicas irreversíveis que requerem reabilitação e longo período de internação do doente. Essas incapacidades abalam e desestabilizam tanto o doente quanto a família, esta entendida como sistema ou unidade de cuidado.8,9 À enfermagem cabe conhecer e intervir sobre as diferentes situações imbricadas no contexto saúde-doença, dentre as quais a complexa teia de relacionamento que envolve o profissional, o familiar, especialmente aquele que assume o papel de acompanhante e cuidador, e o doente vivenciando doença crônica. Assim, é oportuno que o enfermeiro desenvolva uma estratégia de educação à saúde com os familiares acompanhantes, incluindo atividades de supervisão, observação e do cuidado em si aos doentes por ocasião da hospitalização.5 Para tanto, é importante conhecer o perfil desses familiares, de modo a subsidiar a efetividade dessa estratégia, motivo pelo qual esta pesquisa teve como remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 29 Perfil de familiares acompanhantes: contribuições para a ação educativa da enfermagem objetivo identificar o perfil socioeconômico de familiares acompanhantes de adultos acometidos de doenças geradoras de incapacidades crônicas internados em um hospital público da região sul do Brasil. METODOLOGIA Trata-se de um estudo descritivo com abordagem quantitativa. O cenário se constituiu de duas unidades de clínica médica de um hospital público da região Sul do Brasil, que atendem às clínicas de oncologia, neurologia, pneumologia, infectologia e medicina interna. Nestas unidades, os doentes apresentam doenças crônicas que necessitam de múltiplas e prolongadas internações. Conforme o Censo Diário das Unidades, 50% dos doentes inseridos nessas clínicas possuem acompanhantes em decorrência do grau de dependência e da gravidade das patologias. A população diária é representada por uma média de 25 acompanhantes, somando-se as duas unidades estudadas. O grupo amostral foi constituído por 23 familiares acompanhantes de adultos hospitalizados com doenças geradoras de incapacidades crônicas que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: estar cuidando do doente internado por um período de no mínimo dois dias e aceitar participar do estudo mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). A coleta de dados foi realizada por meio de formulário constituído de perguntas fechadas que versavam sobre os aspectos relacionados às condições socioeconômicas dos familiares acompanhantes. Essa coleta ocorreu nas próprias unidades de internação nos meses de janeiro e fevereiro de 2006, tendo sido observadas as condições propícias para sua realização, como silêncio e privacidade. Para efeito de validação, as respostas às questões do formulário foram submetidas à confirmação pelos sujeitos do estudo. Os dados coletados foram agrupados quanto às seguintes características: sexo, vínculo familiar, faixa etária, estado civil, escolaridade e renda familiar; organizados em forma de discussões textuais e tabelas. Os aspectos éticos referentes à pesquisa com seres humanos foram respeitados, conforme determina a Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Assim, a participação dos sujeitos na pesquisa foi voluntária, tendo cada um assinado o TCLE após ciente dos objetivos do estudo, da garantia do anonimato e da ausência de riscos de natureza física, psicológica ou financeira referentes à participação deles. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição em 12 de dezembro de 2005 e registrado sob o número 120/05. RESULTADOS E DISCUSSÃO Dos 23 familiares acompanhantes que constituíram a amostra do estudo, 16 (69,6%) eram do sexo feminino 30 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 e 7 (30,4%) do sexo masculino (TAB. 1). Portanto, verifica-se que essa população caracterizou-se predominantemente por mulheres. TABELA 1 – Distribuição numérica e percentual dos acompanhantes familiares das Clínicas Médica I e II de um Hospital Público da região Sul do Brasil, segundo sexo, vínculo familiar e faixa etária – 2006. Os dados do estudo confirmaram que a mulher é a principal cuidadora quando um membro da família adoece; essa ação de cuidar ultrapassa o âmbito domiciliar, estendendo-se ao espaço hospitalar. Entende-se que a construção da identidade de gênero é socialmente determinada; à mulher cabe o cuidado com a casa, com o cônjuge e com os filhos. O papel de cuidadora reservado à mulher foi demarcado com a divisão sexuada do trabalho,10 uma vez que, para garantir a sobrevivência, era preciso cuidar das crianças, dos vivos e dos mortos. Do ponto de vista sócio-histórico, o trabalho da mulher por muito tempo ficou restrito ao lar; por conseguinte, coube-lhe, também, o cuidado dispensado à família. Ela gera o ser e continua responsável por cuidar de tudo que lhe mantém a vida.10 É a detentora desse saber, aprendendo geralmente no convívio com outras mulheres. Apesar de ser ainda a principal cuidadora, essa condição vem sofrendo transformações com o crescente engajamento da mulher no mercado de trabalho e a queda nos índices de natalidade e fertilidade.11 Essa mudança também se reflete nas características dos familiares acompanhantes no contexto hospitalar, cuja participação masculina neste estudo foi representada por um terço do total da amostra analisada. Na sociedade atual, a mulher passou a ser, também, a responsável pelo sustento da família, exigindo maior tempo destinado às atividades profissionais. Assim, muitas vezes, necessitam delegar ou compartilhar com o companheiro e outros membros da família a tarefa de cuidar e acompanhar o familiar hospitalizado. No que tange à faixa etária dos sujeitos (TAB. 1) verificouse o predomínio entre 31 e 50 anos (60, 9%), com média de 41,1 anos (34,8%). Na faixa de idade entre 18 e 30 anos, foram encontrados cinco acompanhantes (21,7%) e a faixa etária compreendida entre 51 a 60 anos foi representada por três acompanhantes (13%). Apenas um familiar acompanhante (4,4%) possuía idade superior a 60 anos. Os dados demonstram que a maioria dos familiares acompanhantes encontrava-se em uma faixa etária socialmente produtiva. Nesses casos, o acompanhante necessita afastar-se do local de trabalho. Esse aspecto é preocupante e, muitas vezes, causa estresse no cuidador, uma vez que interfere no trabalho, podendo ocasionar conflitos quanto à manutenção de seu emprego. Isso porque eles precisam corresponder às exigências do empregador, concomitantemente ao envolvimento no cuidado ao seu familiar hospitalizado. O fato de ter sido encontrado um acompanhante idoso demonstra que idosos também assumem o papel de cuidadores, o que nos remete à análise das condições estruturais do ambiente hospitalar associado às características a ele inerentes. Trata-se, em geral, de ambiente bastante hostil, estressante, cansativo e desprovido de acomodações que promovam conforto e bem-estar, principalmente considerando as necessidades da pessoa idosa. A função de cuidador principal assumido pelo idoso é também observada no domicílio. Destaca-se que a predisposição ao desenvolvimento de doenças comuns a essa fase da vida pode ser potencializada quando associada à sobrecarga de atividades inerentes ao papel de cuidador.12 Portanto, independentemente do cenário em que o idoso esteja exercendo essa função, é necessária atenção redobrada dos profissionais da enfermagem no sentido de não negar a participação da pessoa idosa nesse processo. Em nossa sociedade, a presença de idosos é majoritariamente marcada como figura de referência na família, inclusive no aspecto financeiro, não devendo, portanto, ser alijada dos acontecimentos no seu âmbito. Não obstante isso, o que queremos ressaltar é a responsabilidade da enfermagem em ter de reunir condições de entendimento e de ação diante dos problemas que possam advir da atividade de cuidador exercida pelos idosos. Ao analisarmos o vínculo familiar entre os acompanhantes e o doente hospitalizado, verifica-se que 14 mulheres cuidadoras (60,7%) são esposas, filhas e mães. Estudos5,11,12 confirmam que a predominância da mulher nessa tarefa está associada ao seu vínculo familiar com o doente, estabelecida socioculturalmente. Essa situação7,13 é motivada pela existência de vínculo afetivo, pelo sentimento de compromisso e responsabilidade com o seu familiar hospitalizado ou, ainda, por uma questão de “obrigatoriedade” como forma de retribuição pelos cuidados recebidos na infância. Nesse sentido, cuidar dos pais ou do esposo pode representar um ato de solidariedade ou ser a única alternativa de garantir o cuidado ao doente. A família tem a atribuição de cuidar de seus membros,14 tarefa que lhe é cobrada pela sociedade, e tal responsabilidade, quando não assumida pela família, é requerida judicialmente. Ela não tolera o abandono, o descaso e a omissão quando um familiar adoece e a sua família não lhe garante a assistência e o cuidado necessários. A presença do familiar acompanhante na figura da mãe, esposa(o), filhos pode ser um fator positivo na ação terapêutica dos doentes, pois esse vínculo tende a propiciar segurança e manter a estabilidade emocional. No entanto, ressalte-se que devem ser averiguadas as implicações da presença do acompanhante para o cuidado e recuperação do doente hospitalizado, uma vez que nem sempre este a requer ou deseja; outras vezes, pode ser motivo de preocupação do doente, seja pelo fato de seu estado de saúde resultar em sofrimento e dor ao acompanhante, seja pelo distanciamento deste representar ameaça à segurança financeira ou emocional aos outros membros da família. Em relação ao estado civil dos familiares acompanhantes (TAB. 2), constatou-se que 17 (74,0%) eram casados; 4 (17,4%) eram solteiros; 1 mulher (4,3%) separada e 1 (4,3%) viúva. TABELA 2 – Distribuição numérica e percentual dos acompanhantes familiares das Clínicas Médica I e II de um Hospital Público da região Sul do Brasil, segundo estado civil, escolaridade e renda familiar – 2006. *O salário mínimo vigente em março de 2006 era R$ 300,00. A hospitalização de um familiar ocasiona um desequilíbrio na organização da família, pois os membros envolvidos, geralmente casados, dedicam tempo que poderia ser destinado ao convívio com o cônjuge e os filhos para acompanhar o processo de internação do seu familiar, o que pode gerar tensão intrafamiliar.15 Nesse processo de adaptação a essa nova situação, o cuidador tem de administrar seu tempo entre os cuidados pessoais, atividades com a família remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 31 Perfil de familiares acompanhantes: contribuições para a ação educativa da enfermagem nuclear, como a organização da casa, dedicação aos filhos e marido, e às destinadas ao familiar hospitalizado.11 Isso exige que o familiar acompanhante desenvolva a habilidade de organização do tempo para conciliar todas essas atividades.13,16 Estudo relata o desgaste físico e emocional a que estão expostos os familiares acompanhantes de pacientes acometidos de AVC quando desenvolvem atividades durante a hospitalização, sem descanso ou revezamento.5 Entretanto, outra investigação relacionada à participação do acompanhante durante a hospitalização de idosos aponta que, ao existir uma rede de apoio familiar adequada, em que há rodízio hospitalar, a sobrecarga é evitada, facilitando a participação da família no cuidado.3 No entanto, casos de sobrecarga do acompanhante podem ser frequentes quando relacionados à atitude relutante de alguns cuidadores em não aceitarem ajuda de outros membros ou mesmo do serviço hospitalar, quando se disponibiliza a fazê-lo.6 Em relação à escolaridade dos sujeitos, 19 acompanhantes familiares (82,6%) tinham ensino fundamental incompleto; 3 (13,0%), o ensino médio completo; e apenas 1 participante (4,4%) possuía ensino superior completo. Os dados demonstraram que a maioria dos familiares acompanhantes tem baixa escolaridade, fato também constatado em outro estudo5 com acompanhantes em que 42% tinham ensino fundamental incompleto. Essa baixa escolaridade, por vezes, dificulta a realização da capacitação dos acompanhantes no intento de preparálos para assumirem a continuidade dos cuidados ao doente no domicílio. A recuperação e a reabilitação do doente crônico é um processo que se inicia no hospital e se estende até o domicílio, após a alta hospitalar. É importante que o familiar acompanhante reúna condições de compreender e assimilar as orientações prestadas pela equipe de enfermagem. O contexto da prática diária da enfermagem revela a dificuldade dos acompanhantes familiares, assim como dos próprios doentes, em entender os termos técnicos comumente utilizados pela equipe de enfermagem e pela equipe médica. Tal fato é ressaltado em estudo com familiares de doentes acometidos de AVC, principalmente quando estes são surpreendidos com uma primeira situação de doença na família. Nessa análise, destacou-se que o uso de linguagem científica por parte da equipe de saúde é fonte de angústia, pois dificulta a compreensão do estado de saúde do doente.5 A enfermagem, no papel de educadora, ainda utiliza o modelo tradicional de ensino, limitando-se a repetir informações técnicas e científicas, sem valorizar os conhecimentos dos acompanhantes. 5 Esse fato é percebido na hospitalização, quando os profissionais da saúde desconsideram a bagagem histórica e cultural que cada pessoa traz consigo durante a enfermidade, sobrepondo o saber científico ao saber popular.16,17 As informações pertinentes aos cuidados necessários ao doente hospitalizado devem ser compartilhadas com 32 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 os familiares acompanhantes, respeitando-lhes o nível de escolaridade. Quanto à renda familiar dos familiares acompanhantes, constatou-se a predominância de um salário mínimo, correspondendo a 14 acompanhantes (60,9%); 8 acompanhantes (34,7%) na faixa de dois a quatro salários mínimos; e apenas 1 (4,4%) apresentou renda superior a cinco salários mínimos. Como se pode verificar, a maioria dos acompanhantes tem uma renda familiar baixa, e com a hospitalização a condição financeira da família se agrava, dado o aumento dos gastos com deslocamentos, manutenção pessoal e os adicionais referentes à condição do doente. A permanência do familiar acompanhante no hospital altera sua rotina diária, uma vez que ele dedica a maior parte do seu tempo ao familiar hospitalizado, podendo comprometer-lhe as atividades no trabalho.18 Estudos relatam que, frequentemente, familiares cuidadores de pessoas com doenças crônicas apresentam problemas com o emprego, ao se tornar necessária a dedicação exclusiva ao familiar, agravando ainda mais a situação financeira da família. Em situações dramáticas, as famílias necessitam receber ajuda da comunidade para sobreviver.6,13 Verifica-se que 60,9% dos acompanhantes têm renda de um salário mínimo que, também, corresponde à condição econômica do doente. De acordo com estudo,5 existe uma relação entre a incidência de doenças crônicas e as condições socioeconômicas da população brasileira, ou seja, os indivíduos de baixa renda são mais propensos a desenvolver tais doenças. Tal afirmação pode ter origem, em parte, na dificuldade de acesso desse grupo de pessoas a informações que as auxiliem na prevenção de doenças e na adoção de hábitos saudáveis de vida. Portanto, a equipe de saúde deve elaborar estratégias de ação eficazes direcionadas às reais necessidades dos familiares acompanhantes, investindo nas suas potencialidades para superar as limitações decorrentes de suas condições socioeconômicas. CONCLUSÃO No ambiente hospitalar, o foco da atenção do cuidado é prioritariamente dirigido ao doente, no entanto compreende-se que a enfermagem não pode ficar indiferente ao familiar acompanhante, pois este é coparticipante no processo de cuidado ao doente. Desse modo, a enfermagem deve estar sensível à presença do familiar no hospital, que busca, muitas vezes, superar as próprias dificuldades e limitações, compreendendo as múltiplas situações imbricadas à hospitalização, facilitando a expressão de diferentes sentimentos e favorecendo a troca de informações. O perfil do familiar acompanhante quanto ao gênero é predominantemente formado por esposas, mães e filhas casadas, em idade produtiva, sugerindo que a equipe de enfermagem motive essas acompanhantes a envolver os demais membros da família no cuidado ao doente por meio do revezamento. O baixo nível de escolaridade identificado indica que o enfermeiro deve buscar orientar o familiar sobre os cuidados com o doente, utilizando uma linguagem acessível, por meio de recursos didáticos que facilitem o processo ensino-aprendizagem, desenvolvendo no acompanhante o desejo de aprender, de perceber-se como sujeito desejante do saber. A predominância da renda familiar entre um a três salários mínimos demonstra como possível estratégia do enfermeiro o encaminhamento do familiar ao serviço de assistência social, entidades assistenciais ou associações voluntárias, para receber auxílio e informações sobre os programas existentes, garantindolhe os direitos sociais. Conclui-se, com este estudo, que há necessidade de os profissionais da enfermagem conhecerem a realidade socioeconômica e cultural dos familiares acompanhantes, para que atuem com eles, estabelecendo uma relação de confiança e de parceria, auxiliando-os a lidar com a situação de doença/ hospitalização e com as diferentes dificuldades objetivas e subjetivas relacionadas à dinâmica familiar e aos sentimentos desencadeados tanto nos acompanhantes quanto na totalidade da família que vivencia o processo de hospitalização e a presença da doença crônica em um de seus membros. O conhecimento do perfil do familiar acompanhante possibilita à equipe de enfermagem reunir elementos para a adoção de medidas de suporte à família, ajudando-a a desenvolver diferentes estratégias de enfrentamento da doença e das incapacidades que ela gera. REFERÊNCIAS 1. Silva MJP. Comunicação tem remédio: a comunicação nas relações interpessoais em saúde. São Paulo: Gente; 1996. 133p. 2. Lemos RCA, Rossi LA. 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Enferm.;13(1): 28-33, jan./mar., 2009 33 Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos EXPRESSÃO DA CODEPENDÊNCIA EM FAMILIARES DE DEPENDENTES QUÍMICOS EXPRESSION OF CO-DEPENDENCE AMONG RELATIVES OF CHEMICALLY DEPENDENT PATIENTS EXPRESIÓN DE CODEPENDENCIA EN FAMILIARES DE DEPENDIENTES QUÍMICOS Leila Memória Paiva Moraes1 Violante Augusta Batista Braga2 Ângela Maria Alves e Souza3 Mônica Oliveira Batista Oriá4 RESUMO Conviver diretamente com uso abusivo de drogas de alguns de membros da família faz com que os demais vivenciem dificuldades ao lidar com essa problemática. Considerando que a família é importante para a rede de apoio ao dependente químico e que o comportamento de codependência está presente na vida desses familiares, interferindo na saúde mental, tivemos como objetivo identificar o modo como a codependência é expressa no grupo de familiares de dependentes químicos. Estudo descritivo com abordagem qualitativa, realizado com familiares de dependentes químicos assistidos em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-ad), no período de junho/agosto de 2007. Os dados foram produzidos por meio de entrevista individual e dez sessões grupais. Os familiares manifestaram comportamento codependente por meio do sofrimento, dor emocional e adoecimento físico e psíquico, refletidos em respostas múltiplas, como medo, desconfiança, culpa, excesso de cuidado/controle para com o outro, descuido para consigo e mudanças no estilo de vida. O grupo revelou que ser um familiar codependente significa vivenciar inúmeros sofrimentos, o que requer necessidade de assistência profissional. Este estudo nos permitiu fomentar uma reflexão sobre a prática de intervenção de saúde em relação aos familiares dos dependentes químicos, ressaltando e valorizando o papel da família como rede de suporte ao membro usuário de drogas, pois as práticas de intervenção ainda são muito focadas na droga e, por conseguinte, no indivíduo que dela é dependente. Palavras-chave: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Relações Familiares; Prática de Grupo; Enfermagem; Saúde Mental. ABSTRACT In order to deal directly with drug addiction, relatives of chemically dependent patients face many difficulties. The family plays an important role on the patient’s support and co-dependence behavior is constantly present in their life and may interfere on mental health. This study aims to identify how co-dependence is expressed among relatives of chemically dependent patients. It is a descriptive study with a qualitative approach, which was carried out in a Center of Psychosocial Attention (CAPS-ad) during June and August of 2007. Data were collected by using individual interviews and 10 group meetings. Family members showed a co-dependent behavior by expressing suffering, emotional pain, physical and psychological sickness, seen on answers like: fear, lack of confidence, guilt, excessive care/control over others, lack of self care and changes in lifestyle. Group meetings showed that being a co-dependent relative involves suffering and requires professional assistance. This study was useful to promote a reflection on health intervention practices regarding chemically dependent family members. We highlight the importance of the family role since intervention practices are still too focused on drug regimens and on the patient himself. Key words: Substance-Related Disorders; Family Relations; Group Practice; Nursing; Mental Health. RESUMEN Convivir directamente con el uso abusivo de drogas de algunos miembros de la familia hace que los demás familiares tengan dificultades para lidiar con tal problema. Considerando que la familia es importante para la red de apoyo al dependiente químico y que el comportamiento de codependencia está presente en la vida de dichos familiares porque interfiere en su salud mental, el objetivo del presente estudio ha sido de identificar el modo cómo se expresa la codependencia en el grupo de familiares de dependientes químicos. Se trata de un estudio descriptivo con enfoque cualitativo, llevado a cabo con la familia de los dependientes químicos asistidos en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS-ad) entre junio y agosto de 2007. Los datos fueron recogidos en una entrevista individual y en 10 sesiones grupales. Las familias señalaron la codependencia por medio del sufrimiento, dolor emocional y enfermedades físicas y psíquicas que se reflejan en múltiples respuestas como: miedo, inseguridad, culpa, exceso de atención y control para con el otro, falta de atención consigo mismo y cambios en el modo de vida. El grupo reveló que ser familiar codependiente significa vivir varios sufrimientos y que por ello necesitan asistencia profesional. Este estudio permitió reflexionar sobre la práctica de intervención en salud con familias de dependientes químicos y realzar y valorar la función de la familia como red de apoyo al miembro usuario de drogas puesto que las tales prácticas todavía están muy centradas en las drogas y, por consiguiente, en el individuo que depende de ellas. Palabras clave: Trastornos Relacionados con Sustancias; Relaciones Familiares; Práctica de Grupo; Enfermería; Salud Mental. 1 2 3 4 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) – Quixadá-CE. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Universidade Federal do Ceará (UFC)-CE. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Universidade Federal do Ceará (UFC)-CE. Enfermeira. Post-Doc. Docente da Universidade Federal do Ceará (UFC)-CE. Endereço para correspondência: Rua Carlos Vasconcelos, 2459, ap. 301, bairro Aldeota, Fortaleza-CE. CEP: 60115-171. Fone/Fax: (85) 3246.0232. E-mail: [email protected]. 34 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 1 INTRODUÇÃO O consumo de drogas psicoativas pode ser considerado uma forma de percepção e expressão da pessoa em si mesma, envolvendo relações que incluem os outros e o ambiente em que vive. Esse consumo de drogas é um fenômeno essencialmente complexo e que ultrapassa fronteiras internacionais, tornando-se um dos maiores problemas de saúde pública mundial 1 , exacerbando-se em consequência da globalização.2 No Brasil, o uso de drogas intensifica-se sempre mais, tornando difícil e complexa sua abordagem, principalmente porque as políticas públicas voltadas para esse setor não logram acompanhar os avanços desse fenômeno, não criando dispositivos legais e de atenção que atendam a essa realidade, de modo que a dinâmica da família brasileira vem sendo atingida por mais esse fenômeno de saúde pública. A dinâmica da família revela significativa rede de apoio nas diversas situações da vida real, além da “grande e árdua” tarefa de educar os filhos.3 Na elaboração de uma “rede de apoio ou o sistema terapêutico”, são solicitados e valorizados os recursos da própria família (nuclear e ampliada).4 Na assistência ao dependente químico, observamos, amiúde, a pouca atuação de profissionais de saúde em relação aos seus familiares, incentivando-os a participar do tratamento de seu componente usuário, visualizando-os na qualidade de codependentes, ou seja, como aquela pessoa que também sofre com a dependência química. Ao estudar os padrões de codependência e prevalência de sintomas psicossomáticos em pessoas de famílias com histórico de alcoolismo, um codependente pode ser definido da seguinte forma: [...] refere-se àquela pessoa que convive de forma direta com algum sujeito que apresenta alguma dependência química, e em especial, ao álcool. E por extensão às pessoas que por qualquer outro motivo viveram uma prolongada relação parentalizada na família de origem, assumindo precocemente responsabilidades inadequadas para a idade e o contexto cultural. [...] é uma doença crônica e progressiva.5:6 Assim como ocorre com os dependentes e codependentes do álcool, ao visualizarmos a família como parceira do tratamento de pessoas com outras dependências químicas, devemos considerar as possíveis necessidades e dificuldades desse grupo, além de seu adoecimento, o qual pode interferir diretamente no agravamento da problemática vivenciada pelo núcleo familiar, notadamente do próprio dependente químico. Trabalhando as limitações, dificuldades e sentimentos da família codependente e, em especial, daquele partícipe que mais interage com o dependente químico, assumindo, muitas vezes, o papel de cuidador e também responsável, será mais fácil ocorrer interferência positiva no tratamento. Consideramos imprescindível a atuação da família na prevenção ao uso indevido de drogas psicoativas, assim como na recuperação e reinserção social do dependente químico. Essas dependências químicas envolvem, pelo menos, outra pessoa além do toxicômano, ou seja, os codependentes, que podem tomar iniciativas para mudar, porém, por vezes, ilusórias. Esse codependente é o parceiro indissociável do dependente químico que, ao expressar desejo de ajudar, deve ser chamado a participar do tratamento, pois constitui um recurso importante pelo poder que exerce sobre o conjunto de relações nas quais o toxicômano é o elemento central.4 Reconhecendo a importância da família na formação de seus membros, sendo elemento principal na construção de uma rede social de apoio ao dependente químico, a equipe de saúde mental precisa estar atenta ao funcionamento dessa rede, criando laços de parceria, fundamentais e imprescindíveis no tratamento do dependente químico e no desenvolvimento de relações mais sadias e/ou significativas. Dessa forma, a integração da família na dinâmica de atenção ao adicto pode facilitar sua recuperação, proporcionando modos de enfrentamento que resultarão em melhor qualidade de vida. Assim, percebendo como imprescindíveis a presença e a atuação da família no tratamento de dependentes químicos, uma vez que essa vivência é influenciada e influencia o assunto em foco, pretendemos com este estudo responder à seguinte indagação: Como a codependência é expressa em membros familiares de dependentes químicos? Desse modo, temos como objetivo identificar o modo como a codependência é expressa no grupo de familiares de dependentes químicos. O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO Caracterização do tipo de estudo Desenvolvemos um estudo com familiares de dependentes químicos em tratamento, utilizando o grupo como dispositivo para a expressão de sentimentos e subjetividades quanto à vivência deles com a dependência química de seus parentes. Realizamos um estudo do tipo qualitativo, por meio do referencial teórico construído pela norte-americana Maxine Loomis,6 o qual trata do desenvolvimento da abordagem grupal para enfermeiros. De acordo com o referencial teórico, o foco do processo grupal está centrado nos cuidados de saúde e é assumida a noção de que, se qualquer grupo apresentar apoio, tarefa ou psicoterapia, terá um objetivo terapêutico global. Para a autora, os grupos também podem ser descritos e definidos de acordo com o processo interno deles. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 35 Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos Contexto/Local do estudo Desenvolvemos este estudo no Centro de Atenção Psicossocial especializado no tratamento de usuários de álcool e outras drogas (CAPS-ad) da Secretaria Executiva Regional III (SER III) da Prefeitura Municipal de Fortaleza, em convênio com a Universidade Federal do Ceará (UFC)-CE. O serviço possui uma equipe de profissionais composta de enfermeiro, médico psiquiatra, médico clínico, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, técnico de enfermagem, técnico administrativo e auxiliar de serviços gerais. Possui espaço para atendimentos individual e grupal. Participantes do estudo Os participantes foram componentes familiares que se encontravam na condição de acompanhantes dos dependentes químicos que estavam sendo assistidos no CAPS-ad escolhido para a realização da pesquisa. Quanto aos princípios e aspectos legais e éticos da pesquisa, previstos na Resolução n° 196/967, o projeto recebeu o Protocolo n° 268/06 no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará. Respeitando o princípio do anonimato aos participantes do grupo, estes receberam pseudônimos com a denominação de outros nomes próprios que não os deles. Na apresentação dos discursos dos participantes, esses nomes foram acompanhados do grau de parentesco com o dependente químico em tratamento. Formamos um grupo fechado, constituído de 11 familiares, e o tipo de vínculo entre participantes e dependentes químicos constituiu-se de uma madrasta, um irmão, uma esposa, duas irmãs, seis mães. Procedimentos e instrumentos para a produção dos dados Realizamos um estudo grupal por meio de oficinas de vivências, como forma de avaliar o processo grupal ocorrido com os familiares, no qual a utilização de recursos artísticos foi a orientação metodológica seguida. As técnicas empregadas serviram para facilitar a expressão de sentimentos e subjetividades, tornandose conscientes e acrescidos de significados para os participantes do grupo. Mediante as atividades propostas, os participantes do estudo expuseram como a codependência é expressa na vida deles. As oficinas vivenciais ocorreram durante os meses de junho a agosto de 2007. Para a produção de dados, seguimos três fases: planejamento, intervenção e avaliação. Foram assim denominadas para condução do grupo, adequando-se aos quatro descritores (objetivos, estrutura, processo, resultados) nomeados por Loomis. 6 A fase de planejamento correspondeu à etapa dos objetivos; a de intervenção, às etapas de estruturação e processo; e, por último, a de avaliação, correlata aos resultados do grupo. Essas fases estão mais bem descritas no QUADRO 1. QUADRO 1 – Apresentação das fases de produção de dados do estudo com o grupo de componentes familiares de dependentes químicos. Fortaleza-CE, 2008. FASES DESCRITORES SESSÕES Fase de planejamento Objetivos do grupo 1º encontro grupal geral Entrevista individual Fase de intervenção Fase de avaliação Estrutura do grupo Sessão preparatória Processo do grupo Sessões I a VI Resultados do grupo Sessões VII e VIII O horário estabelecido para o início e término da sessão foi das 13h30 às 16h, totalizando duas horas e meia de encontro, conforme decidido coletivamente entre os coordenadoras e os participantes do grupo. Todas as sessões foram divididas em três momentos: acolhimento, destinado à exposição de assuntos considerados importantes pelos par ticipantes, lembretes, avisos e ao acolhimento dos participantes; desenvolvimento, no qual foram realizadas atividades 36 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 com recursos artísticos, havendo sempre anteriormente o momento de preparação para o tema, sendo estimulado um relaxamento ou alongamento corporal, no intuito de que os participantes se concentrassem para a atividade, reflexão e verbalização das vivências; e, por último, a avaliação da sessão, quando realizamos uma análise prévia e contínua do encontro e do grupo. Interpretação e análise dos dados Os dados utilizados para análise foram: observações do processo grupal registradas no diário de campo; os discursos dos participantes na entrevista individual e nas sessões grupais, gravados em aparelho digital; as fotos registradas em cada sessão; e o material produzido nos momentos que envolveram as técnicas grupais mediante os recursos artísticos. Para a análise dos discursos dos sujeitos, utilizamos a técnica de “análise do discurso”, empregada para se referir a toda forma de fala e textos, seja quando ocorria naturalmente nas conversações, seja quando era apresentada como material de entrevistas ou tipos outros de textos escritos.8 Após a leitura exaustiva dos discursos, iniciou-se o processo de codificação e categorização dos discursos, e os aspectos da codependência foram evidenciados e analisados com base em outros estudos sobre a temática e na perspectiva de categorias analíticas de codependência. RESULTADOS E DISCUSSÃO Levando em consideração essas abordagens teóricas da codependência, revelamos aspectos mais intrínsecos da vivência dos familiares, indicativos de codependência. Com maior ou menor intensidade, todos os familiares que compuseram o grupo se encontravam emocionalmente dependentes de seus filhos, filhas, esposos ou irmãos dependentes químicos; desconheciam parte de sua realidade; não conseguiam estabelecer limites, para si e para o parente dependente químico; perderam parte, ou totalmente, de sua identidade e autonomia, passando a viver a vida do outro, a quem queriam controlar e conduzir os pensamentos e o comportamento. Observamos atitudes de “marcação cerrada” sobre o outro, o que se revelou como a maior causa dos desentendimentos nas relações familiares e mal-estar na vida do membro familiar. Entendemos tais comportamentos como prejudiciais a ambas as partes, refletindo-se em cerceamento da liberdade, tanto do dependente químico quanto do familiar. Observamos inúmeros sentimentos provenientes dessa relação indicativa de codependência, dentre os quais: baixa autoestima, caracterizada pela falta de amor próprio; dificuldades diversas, dentre elas, de negação e imposição de limites; sentimentos de ilusão, sofrimento, ansiedade, angústia, medo, impotência, fracasso; sensação de vazio; e o desconhecimento dos próprios sentimentos. Com base no exposto, realizamos um recorte das diversas categorias empíricas que emergiram do processo de análise, tendo como categoria analítica central o comportamento indicativo de codependência. A seguir, destacamos os discursos do grupo de apoio de familiares de dependentes químicos indicativas de codependência, ilustrando com recortes do discurso dos participantes. Pela análise das falas dos par ticipantes foi possível categorizar cinco expressões de codependência: medo, culpa, cuidado e/ou controle, mudanças de estilo de vida e desconfiança. O medo: Eu sinto tanto medo que eu tremo. Sabe, é triste para uma mãe ter medo do filho. (Flávia – mãe) O medo é um dos sentimentos mais presentes e marcantes na vida dessas pessoas e, especificamente, na expressão do grupo, ele ficou caracterizado em várias situações, associado à violência contra o outro e a si próprio, ao abandono, ao medo de cometer erros, de ter vida própria e de que aconteça algo ruim com o dependente químico. A violência física resulta do efeito do uso das drogas em alguns dependentes químicos, ocasionando medo nos familiares e em outras pessoas com as quais convivem. Participantes como mães e esposa disseram que sentiam medo de serem agredidas fisicamente pelos familiares dependentes químicos. O medo expresso pode estar associado, também, a respostas de violência dirigida ao parente dependente, desencadeada pela situação conflitante vivenciada no cotidiano doméstico. Desse modo, a codependência pode ser expressa pela sensação de ser capaz de responder com violência àquele ou àquela situação fora do controle do familiar. Nessa hora, entra em cena a sensação de dúvida e desconfiança de si próprio, geradas pela raiva, frustração ou mesmo fúria dirigida ao dependente químico ou autodirigida. Tal situação, não raro, termina em tragédia, conforme acompanhamos pelos media os relatos de homicídios ou suicídios cometidos por esses familiares. Sobre esse mesmo comportamento do familiar, é realidade que “muitos co-dependentes têm medo da própria raiva”.9:64 O contato com as substâncias psicoativas leva a diferentes tipos de violência, dentre elas a doméstica, de rua, gênero e até institucional. Dependentes químicos afirmam que a relação entre droga, violência e prazer é vivenciada por eles de forma conflituosa, e que seus familiares, quando cansados de presenciarem essa relação, sentem medo de intensificar situações geradoras de violência.10 O medo de fazer algo contra si foi percebido quando um dos participantes falou sobre a possibilidade de praticar suicídio: [...] quase toda a minha vida, que foi de 15 anos pra cá, pois hoje tenho 42 anos... e então, foi a minha adolescência, entrando na fase adulta todinha nisso, convivendo com as drogas. Então eu tenho medo de chegar à loucura e praticar o suicídio, por causa da impotência, do vazio e você não saber como lutar contra isso. (Vicente – irmão) remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 37 Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos O familiar tem medo de ficar sozinho, da rejeição e do abandono do outro. Passa a utilizar artifícios inadequados e de maneira distorcida para que isso não aconteça. Ter medo de cometer erros é uma das características da codependência que mais reprime, dificultando o processo de tomada de decisão perante toda a situação vivenciada. Já o medo de se permitirem ser quem são, abrindo mão da própria vida, 9 também foi observado nas experiências vivenciadas pelos familiares pesquisados. No grupo, observamos a participante Janete, que expressou essa característica com maior clareza, pois estava feliz com a mudança em seu estilo de vida, mas tinha medo de viver essa nova vida. Um medo que nem ela mesma sabia decifrar, pois estava se redescobrindo, e essa redescoberta estava sendo vivenciada com muito temor, o que podemos perceber no discurso a seguir: Estou muito feliz com esse meu novo jeito de ser, mas estou com medo por não estar mais sentindo medo. Tenho medo do que pode acontecer. (Janete – irmã). Essa aparente contradição expressa por Janete é vivenciada por muitos codependentes: quando passam a experimentar outras vivências que não a codependência, ficam com medo de que tudo volte e de que tudo não passe de fantasia. E, por último, o familiar está sempre com medo de que aconteça algo de ruim com o dependente químico, que ele saia de casa e vá em busca da droga, recaindo. O medo da recaída culmina no constante medo do futuro, do amanhã. A culpa: Aqui no grupo a gente diz assim: ‘Não, você não tem culpa!’ Mas a gente tem um pouco de culpa, sim! (Ana – mãe) O sentimento de culpa apreendido das falas dos familiares se faz presente em vários momentos. Chamou-nos a atenção, particularmente, o depoimento de uma das participantes do grupo durante a entrevista individual, quando expressou seu desagrado em relação à condição de dependência química de seu filho, exprimindo arrepender-se de tê-lo trazido ao mundo. Diz o seguinte: Eu me sinto desequilibrada, culpada e arrependida de ter tido ele... (Flávia – mãe) Nesse depoimento, encontra-se evidente um dos mecanismos de defesa do ego identificados por Freud,11 os quais foram e continuam sendo estudados para descrever a luta do ego contra ideias e afetos dolorosos e insuportáveis. Por ocasião deste estudo, os sentimentos de culpa e arrependimento descritos pela participante foram 38 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 denominados de negação, um mecanismo de defesa bastante utilizado pelo dependente químico e pelo codependente. Essa negação refere-se a uma parte da realidade externa desagradável ou indesejável, pela fantasia de satisfação de desejos ou pelo comportamento. O codependente nega seu desejo, anulando parcialmente as consequências dolorosas de lidar com este. Em família, na vivência cotidiana do problema da dependência de drogas, é comum as pessoas não falarem sobre esse assunto, não manifestarem o que pensam e o que sentem a respeito; passa a imperar a regra do não falar sobre. Outros focos de atenção começam a surgir como estratégia de negação ao problema da droga. Problemas outros ganham superênfase, e a droga ganha subênfase. Podemos dizer que a família acaba se tornando mantenedora do problema. Geralmente, as famílias começam a se preocupar com o uso da droga a partir do momento em que sintomas físicos e emocionais são manifestados pelos seus membros. Até então, o que se observa na família é uma ilusão de controle sobre o problema.12 A culpa é um dos sentimentos mais perceptíveis na condição de codependência do familiar, manifestando-se em momentos como o início do consumo de droga de seu ente querido e a falta de imposição de limites. Observamos, também, que, em virtude desses sentimentos, o familiar assume uma atitude obsessiva para cuidar, preocupando-se e controlando excessivamente o dependente químico. Nesse momento, entra em cena uma das principais características da codependência, que é o excesso de atenção ao outro, o qual, muitas vezes, o faz esquecerse de si próprio. Codependente é aquela pessoa que permitiu a si mesma ser afetada por outra e por seus problemas e que perdeu o amor próprio, a capacidade de se afirmar e de cuidar de si mesma.13 Mesmo amando, preocupando-se, cuidando e controlando excessivamente, o codependente carrega um conflito, muitas vezes inconsciente, sentindo-se culpado por algum sentimento negativo que possa sentir, como raiva, desconforto pela dependência psicoemocional ou financeira. Essa condição emocional conflituosa pode favorecer a diminuição da autoestima, do autocuidado e do interesse sobre si próprio. A autoestima do codependente é regulada pelo que consegue agradar ou não ao outro.5 Como o codependente tende a assumir toda a responsabilidade para com o dependente químico, ele passa, também, a ser a principal referência para os outros integrantes da família quando o assunto envolve a dependência química daquele membro usuário. Dessa forma, passa a receber cobranças dos outros e de si próprio. As cobranças são referentes aos problemas causados pelo uso de drogas e, principalmente, pelas inúmeras tentativas, muitas vezes frustradas, de busca de solução. A vivência desses e de outros sentimentos e conflitos enseja insegurança e mal-estar no codependente, resultando em outro tipo de cobrança, só que, desta vez, quem passa a ser exigido é o dependente químico. Em resposta a essa pressão, o dependente químico passa a fazer falsas juras de mudanças de comportamento e atitude, a mentir sobre vários assuntos. Dentre as respostas mais frequentes do dependente químico, destacamos: dizer que não está mais consumindo drogas e que não vai mais consumir no futuro; prometer que vai mudar de comportamento, sendo mais responsável com sua vida, gerando, assim, falsas crenças no codependente. Essa cascata de cobranças é permanente e enseja dificuldades nas relações familiares, favorecendo o isolamento do codependente e do usuário, tornando a relação de ambos, muitas vezes, mais doentia e conflituosa. Cuidado e/ou controle: A pessoa tem que ter cuidado 24 horas. É só o que eu faço. Cuido do meu filho 24 horas sem parar, só tenho folga no sábado, quando ele vai para a casa do pai dele. (Adriana – mãe) Ser codependente é ser alguém que ama e cuida exageradamente, comportamento que pode ter sido aprendido ainda quando criança, ou mais tarde, na vida adulta, com a interpretação de alguns fatores culturais. Amar e cuidar excessivamente pode ter sido fruto de uma necessidade de alguém se proteger ou satisfazer as próprias necessidades, traduzindo-se em uma forma de sobreviver emocional, mental e fisicamente.9 Mesmo na atualidade, ainda é comum encontrarmos mulheres que foram ensinadas que cuidar do outro é uma qualidade feminina desejável.9 As mulheres, mais do que os homens, são treinadas para atender os outros e focam sua energia na capacidade de cuidar.14 Essa tendência de a mulher cuidar dos familiares ficou evidente no grupo quando 91% (n=10) dos participantes eram mulheres. Destacamos, entretanto, que tanto a mulher quanto o homem sofrem com a codependência, pois esse cuidar do familiar ao usuário de drogas torna-se uma necessidade imperativa, e não uma escolha. O cuidar pode traduzir-se em “uma forma de controle, de si e do outro”.14:22 O cuidado/controle foi observado no grupo de familiares dos usuários de drogas como característica marcante em todos os participantes – tanto o cuidado excessivo com o outro como a omissão do cuidado para consigo. A expressão do cuidar excessivo manifestouse por meio de alguns comportamentos observados: preocupação permanente com o cuidar e se relacionar com o usuário; observação rigorosa de todos os passos, comportamentos e atitudes; buscar soluções para o problema, oferecendo sugestões; tendência a antecipar as necessidades da outra pessoa; dificuldade de dizer não ao usuário; fazer coisas que realmente não gostaria de fazer; realizar coisas que a outra pessoa é capaz de realizar por si mesma; procurar agradar aos outros, principalmente o usuário de drogas, em vez de a si mesmo. O cuidado excessivo também está sendo expresso quando o familiar, por inúmeras vezes, considera-se e sente-se responsável pelos sentimentos, pensamentos, ações, escolhas, desejos, necessidades, bem-estar e falta de bem-estar e, inclusive, pelo destino do dependente químico. Essas características ficaram muito evidentes no grupo. Observamos, também, nos depoimentos e expressões de sentimentos dos participantes, que eles se achavam seguros quando se colocavam à disposição para ajudar ou fazer algo pelo seu familiar dependente químico. Essa, contudo, foi uma das características que foi desaparecendo em alguns participantes, à medida que o grupo evoluía. O grupo revelou que cuidar excessivamente e/ou controlar o dependente químico desenvolve uma sensação no familiar de que o drogadito o está levando à loucura, deixando-o confuso e deprimido. Esses sentimentos parecem contribuir para a baixa autoestima, pois o familiar codependente não entende por que ele faz e cuida tanto e acaba não tendo o resultado esperado, como podemos observar nos discursos: Vou acabar ficando louca. De repente, tem horas que dá vontade de eu sair correndo feito louca; fico tão desesperada..., e eu não faço isso porque eu tenho vergonha, sabe? Ainda bem que tem aquela coisa que me impede. Puxo meus cabelos! É uma loucura! O menino me obriga a dar dinheiro... É aquela loucura! E eu acabo fazendo tudo o que ele quer. Cuido dele tão bem, faço tudo por ele para que ele saia dessa, mas não tem jeito... Na realidade, o que aconteceu foi que eu não tive controle sob meu próprio filho, soltei o menino. É uma coisa horrorosa! Mas o que eu não admito mesmo é porque eu faço tanto por ele, cuido tão bem dele, e ele não agradece. Diz que eu faço é sufocar ele. Pode? (Flávia – mãe) A codependência é apenas uma maneira de tentar satisfazer necessidades que não se consegue realizar, fazendo as coisas erradas pelas razões certas.9,13 Sobre o cuidado, podemos dizer do homem que cuida que “seu bem nunca é inteiramente bom. Seu mal jamais totalmente mau. Mesclam-se bem e mal, diabólico e simbólico, insensatez e sabedoria, cuidado essencial e descuido fatal... Devemos exercer a compaixão para com nós mesmos”.15:159 O cuidado essencial ao ser humano deve ser dispensado de forma equilibrada e natural, pois, quando em excesso, se transforma em obsessão, tornando-se doentio e prejudicial a ambos – dependente e codependente. Do mesmo modo, a carência do cuidado origina o descuido e o abandono. A busca do equilíbrio depende de vários fatores, e, muitas vezes, as pessoas envolvidas com a problemática de um ente querido não sabem definir a condição mais propícia ou ideal. No remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 39 Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos grupo, evidenciamos o quanto a atividade grupal favoreceu a percepção e a busca do equilíbrio, rompendo ou mesmo tornando consciente o comportamento codependente. A alternativa terapêutica de terapia grupal breve com os familiares de adictos parece ser eficaz no sentido de adequar e orientar condutas, contribuindo para melhorar as relações e a organização do contexto familiar em dependência química. Constitui uma excelente forma de suporte para essa clientela.16 O grupo revelou o cuidado, ainda, em várias situações do cotidiano das relações familiares mediante comportamentos, atitudes e ações, tais como: cuidado com a administração de medicamentos, alimentação e preocupação com o bem-estar físico e mental; acompanhar o dependente químico para quase todos os locais, vigiá-lo e cuidar dele para que não entre em contato com a droga ou sofra agressões na rua, principalmente de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas. Mudanças de estilo de vida: Estou mais tranquila porque ontem ele já não bebeu. Eu pude dormir a noite toda e hoje de manhã eu já estou mais recuperada. (Nara – esposa) A codependência é expressa, também, por meio de outras características como mudança no estilo de vida e o consequente aparecimento de respostas físicas e emocionais, destacando-se: cefaleias, alteração de pressão arterial, alteração nos valores glicêmicos, insônia, alterações de sono, ansiedade, nervosismo, choro fácil, cansaço físico e mental, distúrbios alimentares. Foram relatados, também, comportamento letárgico, deprimido e pensamento suicida, notadamente em alguns participantes no início das atividades grupais. Os sintomas ou respostas físicas e emocionais identificados interferem na qualidade de vida do familiar e alteram suas condições de saúde, levando-o a buscar ajuda médica e a consequente medicação com uso indiscriminado de ansiolíticos e antidepressivos, provocando, muitas vezes, mais uma dependência química. O codependente somatiza sua dor emocional traduzindo-a em queixas e respostas somatoformes. Os sintomas e doenças psicossomáticas, na visão psicanalítica, são achados que estabelecem correlações com ansiedade, conflito e defesas.5 Com suporte nessa afirmação, podemos dizer que os sentimentos experimentados pelo codependente, muitas vezes não expressos adequadamente, têm sua expressividade em sintomas físicos e/ou emocionais, como observado nos participantes do grupo estudado. Em sua grande preocupação com o outro e na impotência para efetivamente ajudá-lo, o codependente tenta formas aparentemente inadequadas de se comunicar com o dependente químico, seja tentando controlar e impor sua vontade e verdade, seja simplesmente 40 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 adoecendo, e assim as relações familiares vão cada vez mais se enfraquecendo. 5,14 Observamos nos participantes reações diversas de adaptações físicas, comportamentais e emocionais ocorridas em razão do estresse causado pela condição de dependência química do familiar em tratamento, e o estresse desencadeia reações de adaptação físicobioquímicas e quanto ao comportamento do organismo. Essas reações vão desde adaptações para um estado de alerta (comportamento do organismo) e alterações adaptativas do tônus cardiovascular, respiração, glicose e alimentação do sistema nervoso central e outros locais do corpo estressado. No codependente, essas alterações adaptativas podem levá-lo a um estado de alerta ou com sinais orgânicos mais acentuados por todo o corpo estressado.5:59 A mudança no estilo de vida também foi observada no comportamento dos participantes do grupo quando, por inúmeras vezes, verbalizam a alteração no comportamento pessoal, como supervisionar/vigiar o dependente químico, passando a evitar deixá-lo sozinho em grande parte do dia. Dizemos parte dos passos porque alguns dependentes químicos, conscientes ou não de sua necessidade de apoio e tratamento, não querem ou não conseguem deixar de consumir as drogas e ficam arranjando sempre uma forma de fugir, esconder-se e buscar situações que lhe permitam o uso, burlando a vigilância e o controle familiar. Esse comportamento do familiar e do usuário de drogas enseja uma condição de instabilidade emocional no codependente e a eclosão de vários sentimentos, normalmente negativos e prejudiciais a si e ao outro, destacando-se a ansiedade. A ansiedade caracteriza-se por uma vaga sensação de que algo desagradável pode acontecer, decorrendo de uma situação conflituosa que pode estar total ou parcialmente inconsciente.17 Tais conflitos podem ocorrer entre sujeito e sociedade ou mesmo entre partes da personalidade, como conflitos internos, em geral inconscientes, e gerados ao longo do desenvolvimento pela assimilação das experiências de vida. Esses são nossos conflitos internos e podemos ressaltar que os externos são mais patogênicos quanto mais intensificam os conflitos do nosso mundo interno. 5,17 Dessa forma, situações emocionalmente significativas e não resolvidas de um mundo internalizado podem ser estimuladas por situações atuais. Ansiedade, insegurança, comportamento obsessivocompulsivo e medo podem estar entre os fatores influentes na reincidência de sintomas que caracterizam a mudança no estilo de vida experimentado pelo codependente. Essas mudanças no estilo de vida demonstram os últimos estádios da codependência, em que o indivíduo pode se isolar e/ou se afastar do dependente químico, negligenciando-o, independentemente do parentesco, ou eximindo-se de outras responsabilidades, perdendo, também, a esperança na recuperação ou na possibilidade de alterar as relações. Em resposta a isso, pode começar a planejar o afastamento do relacionamento ao qual o codependente se sente aprisionado.9 Com relação a planejar o afastamento da relação, identificamos, nos discursos dos participantes, a sensação de cansaço por se encontrarem naquela situação de vida, sendo acompanhada do sentimento de perda de esperanças relacionado à dependência química: Então, hoje eu penso assim: hoje eu estou me preparando até para que realmente se acontecer alguma coisa com o meu filho, ele escolheu. Não fui eu. Ele escolheu! Eu coloco tudo isso na minha cabeça: eu não sou culpada pelo que acontecer com ele e eu quero viver bem, continuar dormindo. Ser firme com ele ao ponto de mandá-lo escolher a vida que ele quer levar. Agora eu não sei como vou fazer isso porque, infelizmente, ainda está assim muito confuso na minha cabeça. (Sandra – mãe) Desconfiança: Parece que o discurso da família vai se tornando vazio, sabe? É como se fosse uma coisa que bate, mas não entra mais. Então se fecha, e nós começamos a desconfiar cada vez mais. (Maria – irmã) O codependente vive uma intensa desconfiança de várias coisas, dentre elas a de que está sendo roubado e enganado. Pode haver chantagens emocionais para o dependente químico conseguir dinheiro e bens materiais para serem trocados por drogas. O codependente desconfia de que seu componente familiar possa estar mentindo, começando, assim, as inúmeras interrogações, surgindo um grande sentimento de vazio e impotência de que tudo que ele está fazendo não está tendo o resultado esperado. O grupo de apoio/suporte revelou, por meio de suas produções e verbalizações, que essa desconfiança não é somente do codependente para com o dependente químico, mas do codependente para com ele próprio. Esse clima de desconfiança ocasiona incertezas no familiar até mesmo em relação aos próprios sentimentos ou ao conhecimento de si mesmo, e ele passa a não confiar nas suas decisões e se sente inseguro quando tem de tomar alguma atitude. Essa constante desconfiança produz um sentimento de vazio interior que pode resultar na perda, dentre outras, da fé e da confiança em um ser superior, tão presente nos membros desse grupo. Essa forma de expressão da codependência resultou, inúmeras vezes, na utilização de fatores curativos, como instilação de esperança e altruísmo pelos participantes durante o processo grupal. E quando o familiar descobre que algo de que ele desconfiava, em relação ao usuário, se concretizou, ele passa a cobrar mais ainda, fazendo inúmeras pressões emocionais e ameaças. Começam, então, a surgir, da parte do dependente químico, promessas de mudança, quase sempre não cumpridas. Não podemos nos esquecer de citar que, com isso, a família, passa a viver todo esse clima de desconfiança gerado, principalmente, pela relação de ambos: familiar com atitude de codependência e dependente químico. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, identificou-se que os familiares sofrem com a condição de dependência química de seus entes queridos e manifestam esse sofrimento por meio de diversos sentimentos e mudanças no estilo de vida. O grupo revelou que ser um familiar codependente é ser alguém que vivencia inúmeros sofrimentos, necessitando de ajuda e assistência profissional, pois os familiares têm sentimentos ambivalentes entre querer e não querer mudar seu comportamento diante do que vivenciam ou entre querer e conseguir. Foi possível identificar que eles sofrem e muitos querem ajuda e a procuram. Observou-se, na prática dos serviços de tratamento da dependência química, o fato de o sofrimento e as necessidades dos familiares passarem despercebidas, concentrando-se a atenção apenas no usuário. Com essa atitude, o familiar não é contemplado em suas necessidades nem percebido e valorizado como rede de apoio na atenção ao dependente químico. Este estudo nos permitiu refletir sobre a prática de intervenção de saúde em relação aos familiares dos dependentes químicos, ressaltando e valorizando cada vez mais o papel da família como rede de suporte ao membro usuário de drogas, pois as práticas de intervenção, ainda são muito focadas na droga e, por conseguinte, no indivíduo que dela é dependente. A ampliação desse olhar se faz necessária, para que ocorra a superação da apreensão fragmentada do dependente, na proposição de uma visão ampliada sobre o problema, que inicialmente é a droga. Compreendemos o fenômeno da dependência como a manifestação de um sintoma que reflete e esconde uma intrincada rede de relações, na qual o indivíduo se insere. Significa entender o dependente como parte integrante de um sistema – o familiar – do qual a dependência, como sintoma, é resultante das interações recíprocas entre seus membros, e, ainda, entender a família como parte de um universo ainda mais amplo, que é a sociedade. Finalmente, ao conhecermos os indicadores de codependência presentes na vivência do familiar do dependente químico que é assistido em um grupo, certamente ficará mais fácil interferir na rede de relações familiares e no processo de adoecimento e tratamento dos envolvidos com a dependência química. Nessa realidade, afirmamos a importância da família ao se envolver na recuperação do dependente químico, mas, para que isso ocorra, é necessário conhecermos essa instituição, na busca de melhor apreensão de sua dinâmica com atenção para o problema vivenciado. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 41 Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos REFERÊNCIAS 1. Mendes IAC. A integração da enfermagem na América Latina e os desafios no preparo de lideranças para o desenvolvimento de pesquisas na área de saúde. Rev Latinoam Enferm. 2005; 13(especial):765-6. 2. Carraro TE, Rassool GH, Luis M AV. 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Enferm.;13(1): 34-42, jan./mar., 2009 OFICINAS DE RECICLAGEM NO CAPS NOSSA CASA: A VISÃO DOS FAMILIARES RECYCLING WORKSHOPS AT “NOSSA CASA” CENTER OF PSYCHOSOCIAL CARE: A VISION OF THE FAMILY TALLERES DE RECICLAJE EN EL CAPS NOSSA CASA: VISIÓN DE LOS FAMILIARES Luciane Prado Kantorski1 André Luis Alves de Quevedo2 Ariane da Cruz Guedes3 Valquíria de Lourdes Machado Bielemann4 Rita Maria Heck5 Luana Ribeiro Borges6 RESUMO Este artigo versa sobre as oficinas como dispositivos de cuidado, nos Centros de Atenção Psicossocial, na concretização das diretrizes da reforma psiquiátrica. Analisamos a relação das oficinas de reciclagem do CAPs Nossa Casa de São Lourenço do Sul-RS como espaço terapêutico, a geração de renda, a relação com o meio ambiente e a integração dessas oficinas com a comunidade por meio da visão do familiar. A metodologia empregada para essa análise baseia-se na abordagem qualitativa, tendo como instrumento entrevistas semi-estruturadas, realizadas com 12 familiares do CAPs Nossa Casa, e a observação (150 horas) com registro em diário de campo. Com base na relação entre os objetivos das oficinas propostas e a literatura disponível sobre o tema, chegamos às seguintes conclusões: as oficinas de reciclagem, como espaço terapêutico, têm-se mostrado eficientes para acolher os usuários no serviço, contribuindo para a terapêutica. No que se refere à relação com a comunidade e o meio ambiente, percebe-se que as oficinas de reciclagem têm aprimorado as relações do usuário com o seu círculo social, por meio das relações sociais, dando ênfase à preservação do meio ambiente. Por fim, percebemos que as ações relacionadas à geração de renda, no serviço, ainda são tímidas e necessitam de apoio maior para, assim, haver uma inclusão realística do usuário por meio do trabalho, indo ao encontro da reabilitação psicossocial. Palavras-chave: Psiquiatria; Reabilitação/psicologia; Serviços de Saúde Mental; Terapia Ocupacional; Relações Familiares. ABSTRACT This article is about the role of the workshops in the Centers for Psychosocial Care, to assure the implementation of the psychiatric reform guidelines. We discuss the role of recycling workshop of CAPS São Lourenço do Sul - Rio Grande do Sul, as therapeutic area and as a way to generate some income. We also discuss its relationship with the environment and its integration with the community considering the vision of the family. The methodology was based on a qualitative approach and included semi-structured interviews with 12 family members of the CAPS Santa Casa, and observation (150 hours) with daily record in the field. Considering the goals of the workshops and the literature on the subject, we have come to the following conclusions: as a therapeutic area, the recycling workshops have proven to be effective to welcome users in the service, contributing to the therapy. Regarding the community and the environment, we realize that recycling workshops have improved the relationship between the user and its social circle, and have emphasized the preservation of the environment. Finally, we realize that actions which aim to generate some income in the service are still shy and require a better support to provide a real inclusion of the user, and then lead to a psychosocial rehabilitation. Key words: Psychiatric; Rehabilitation/psychology; Mental Health Services; Occupational Therapy; Family Relations. RESUMEN Este artículo trata sobre los talleres como dispositivos de cuidado dentro de los Centros de Atención Psicosocial siguiendo las directrices de la reforma psiquiátrica. Discutimos la relación de los talleres de reciclaje del CAPS Nossa Casa de São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul, como espacio terapéutico; generación de ingresos; relación con el medio ambiente e integración con la comunidad, a través de la visión del familiar. La metodología empleada para este análisis se basa en el enfoque cualitativo teniendo como instrumento las entrevistas semiestructuradas realizadas con 12 familiares del CAPS Nossa Casa y la observación (150 horas) con control diario de campo. A partir de la relación entre los objetivos de los talleres y la literatura disponible sobre el tema llegamos a las siguientes conclusiones: como espacio terapéutico los talleres de reciclaje se han mostrado eficientes para acoger a los usuarios en el trabajo contribuyendo a la terapia. En lo que se refiere a la relación con la comunidad y el medio ambiente, se percibe que los talleres de reciclaje han mejorado las relaciones del usuario con su círculo social a partir de los contactos sociales y dando énfasis a la preservación del medio ambiente. Además, percibimos que las acciones relacionadas con la generación de ingresos aún son tímidas y necesitan más apoyo para que haya verdadera inclusión del usuario a través del trabajo, yendo al encuentro de la rehabilitación psicosocial. Palabras clave: Psiquiatría; Rehabilitación/psicología; Servicios de Salud Mental; Terapia Ocupacional; Relaciones Familiares. 1 2 3 4 5 6 Enfermeira. Doutora em Enfermagem (EERP). Diretora e Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas (UFP)-RS. Acadêmico do 5º semestre do Curso de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas (UFP)-RS. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Acadêmica do 9º Semestre do Curso de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas-RS. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Enfermeira. Mestre em Enfermagem (UFSC). Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia – Universidade Federal de Pelotas (UFP)-RS. Enfermeira. Doutora em Enfermagem (UFSC). Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia – Universidade Federal de Pelotas (UFP)-RS. Acadêmica do 9º Semestre do Curso de Enfermagem e Obstetrícia Universidade Federal de Pelotas-RS. Endereço para correspondência: Rua: Victor Valpírio, 289, bairro Três Vendas. CEP: 96020-250, Pelotas-RS. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 43-48, 34-42, jan./mar., 2009 43 Oficinas de reciclagem no CAPS Nossa Casa: a visão dos familiares INTRODUÇÃO Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) são unidades de atendimento aos portadores de sofrimento psíquico grave, constituindo-se um modelo substitutivo àquele centrado no hospital psiquiátrico, caracterizado por internações de longa permanência e regime asilar. Os CAPs, ao contrário, permitem que os usuários permaneçam com suas famílias e comunidades.1 Suas diretrizes abrangem uma diversidade de métodos e técnicas terapêuticas nos vários níveis de complexidade assistencial – em outras palavras, são serviços comunitários cujo papel é cuidar de pessoas que sofrem com transtornos mentais, em especial os transtornos severos e persistentes, no seu território de abrangência.2,3 Nesse sentido, são serviços substitutivos estratégicos no processo de consolidação da reforma psiquiátrica.4 Durante a participação no projeto de Avaliação dos CAPs da região Sul do Brasil, na transcrição das entrevistas e limpeza do banco de dados do campo qualitativo do CAPs Nossa Casa de São Lourenço do Sul, identificou-se a existência de oficinas de reciclagem, associadas com a questão da reabilitação psicossocial e a geração de renda; a proteção ao ambiente e inclusão social; e a criação de ambiência terapêutica acolhedora no serviço, visando incluir pacientes muito desestruturados e comprometerse com a construção dos projetos de inserção social. Essas oficinas vão ao encontro das diretrizes da Reforma Psiquiátrica no Brasil, cuja meta é a desinstitucionalização e inclusão, integrando os portadores de sofrimento psíquico aos diferentes espaços da sociedade, até mesmo ao trabalho.5 Resgatando historicamente a trajetória do CAPs Nossa Casa, esse centro é um dos primeiros serviços de saúde mental reconhecido no Brasil e o primeiro no Estado do Rio Grande do Sul, reiterando-se sua importância como campo de observação desse estudo. Em agosto de 1992, quando o Rio Grande do Sul aprovava sua lei estadual de reforma psiquiátrica, a “Nossa Casa”, serviço de atenção diária em saúde mental de São Lourenço do Sul, já funcionava cuidando de portadores de transtornos psíquicos graves em regime aberto desde agosto de 1988.6 As oficinas inserem-se nesse contexto em que se propõem cuidar de pessoas com transtornos psíquicos graves em liberdade. Quanto às oficinas de reciclagem utilizadas para este estudo, temos a oficina de sabugo, onde os usuários realizam trabalhos artesanais, como suporte para mesas, e esses artefatos são vendidos para uma fábrica situada na cidade de Porto Alegre. Ressalte-se que o sabugo utilizado nessa oficina é adquirido no Caminho Pomerano. Por conseguinte, temos a segunda oficina proposta, a de papel machê, na qual os materiais fabricados, como cartolinas, agendas do serviço, são construídos e vendidos em eventos e nas visitas que o CAPs recebe das Universidades. Para se ter uma ideia da relevância do trabalho realizado na Nossa Casa, destaca-se que os brasileiros produzem, 44 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 43-48, jan./mar., 2009 diariamente, 125.281 mil toneladas de lixo, sendo que 30,5% são jogadas a céu aberto.7 As oficinas, como atividades grupais de socialização, expressão e inserção social, quando propõem a reutilização do papel e do sabugo, e, por meio de trabalhos artesanais, revertemnos em renda para os usuários, constituem-se em espaços terapêuticos e de proteção do ambiente. Com base nisso, o objetivo com este trabalho apresentar uma análise das oficinas de reciclagem como terapêutico, geração de renda, relação com o meio ambiente e integração com a comunidade. DESCRIÇÃO DA METODOLOGIA A metodologia empregada para esta análise baseia-se na abordagem qualitativa, tendo como instrumento entrevistas semiestruturadas, realizadas com 12 familiares do CAPs Nossa Casa e observação (150 horas) com registro em diário de campo. A coleta de dados ocorreu nos meses de novembro e dezembro 2006, no CAPs Nossa Casa, na cidade de São Lourenço do Sul-RS. Foram utilizados 10 das 12 entrevistas de familiares, pois dois entrevistados não apresentaram falas condizentes com o foco do estudo. Os dados foram extraídos do banco de dados qualitativos da pesquisa de Avaliação dos CAPs da Região Sul do Brasil, contando com a autorização prévia da coordenação do estudo. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, pelo Ofício n° 074/2005. As oficinas analisadas no serviço em estudo são: oficina de papel machê e oficina de sabugo de milho. O material coletado no campo empírico foi interpretado com base em uma relação entre os objetivos da oficina proposta e a literatura disponível sobre o tema. RESULTADOS E DISCUSSÃO Os dados foram analisados com base nas seguintes temáticas: oficina de reciclagem, como espaço terapêutico, de geração de renda, e a relação com o meio ambiente e a comunidade. Trabalho e geração de renda A reabilitação psicossocial se dá com base em um dos eixos que consiste na inserção por meio do trabalho. Considerando o fato de que as habilidades para o trabalho aumentam a contratualidade do usuário e recaem no desafio da geração de renda, as oficinas, como dispositivos para gerar renda, maximizam o grau de autonomia dos usuários, favorecendo, assim, o processo de reabilitação psicossocial. Segundo Pitta,8 entende-se por reabilitação psicossocial, a recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade, o que nos dá uma dimensão ampla de cuidado, que vai muito além da desospitalização. É uma união de esforços que amplia as possibilidades de viver em liberdade ao indivíduo em sofrimento psíquico: Olha é bom, porque eles fazem, vendem e aquela contribuição não fica no plano da casa [CAP]. (Ent 2) É, ele trabalhou, ele ganhou. É um serviço. [...] Ah, ele gosta, seguido ele vem dizendo: ‘Ai porque eu fiz isso, porque eu fiz aquilo, ah porque eu terminei meu serviço hoje. (Ent 3) Eu acho assim importante, além de tratar, ajudam o paciente a melhorar, eles reabilitam o paciente, tem uma oficina, [...] tentam uma coisa aqui, tentam no sabugo, não deu, vai à aula de dança. Acho que isso é positivo, para o paciente e no caso a gente fica tranquilo, sabendo que eles vêm contentes de lá. (Ent 4) Nesse sentido, podemos explicitar o conceito de resiliência, pertencente ao campo da física, enfatizado por Valentini Jr. e Vicente,9:49 o qual é traduzido como “uma propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado, é devolvida quando cessa a tensão causadora da deformação elástica”, evidenciando, assim, a troca do modelo do dano para o do desafio. Essa afirmação traduz o real impacto que a reabilitação psicossocial deve ter na vida do usuário, pela proposta da reforma psiquiátrica, contemplando a volta do indivíduo em sofrimento psíquico ao seio social, livre de estigmas e preconceitos, construindo relações de igualdade. Para que haja reestruturação no viver do ser em sofrimento psíquico, é necessário o restabelecimento do seu poder contratual, levando em conta sua rede social. De acordo com Dalmolin,10 compreender o processo saúde-doença significa entender que o sofrimento envolve uma experiência que ocorre na vida, está relacionado com os sistemas simbólicos e tem um significado para o sujeito que o vive, bem como para o contexto em que está inserido. Então, surgem como estratégia de ampliação do poder contratual do indivíduo, no âmbito dos serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, as oficinas terapêuticas, evidenciadas anteriormente. A seguir há exposição de verbalizações feitas pelos familiares em relação a essa temática: O local lá é bom, bem grande, bem espaçoso, tem muitos lugares assim, para eles fazer atividades, que eles fazem. Tem atividades manuais. Também fazem tapetes, eu acho superlegal. (Familiar 3) Eles incentivam bastante eles a fazer, continuar fazendo o serviço. (Ent 6) Não, as oficinas não têm só finalidade financeira, não, têm a finalidade para reabilitar eles. (Ent 7) Trabalho muito importante aquilo ali. (Ent 11) Eu acho. Se eles aprendem direitinho, eles ensinam, eles fazem cada trabalho mais bonito! (Familiar 12) Rotelli e Amarante 11 afirmam que, nas atividades desenvolvidas pelos serviços substitutivos, as oficinas e as cooperativas de trabalho aparecem como uma modalidade de cuidado/criação, gerando possibilidades de produção artística, intelectual e geração de renda. Nesse sentido, Saraceno12 afirma que a reabilitação psicossocial deve convergir para o poder de contratualização do usuário, envolvendo hábitat, rede social e trabalho. Assim, as oficinas, como instrumentos de reabilitação, devem ir ao encontro desses três eixos: Dão uns ‘troquinhos’ para eles lá. Eles vendem os trabalhos deles, então, dão um ‘dinheirinho’. Ele vem sempre faceiro com o dinheiro, tão faceiro. [...] Assim, para incentivar também, porque eles achando que estão ganhando o ‘dinheirinho’ deles, eles trabalham, têm força de vontade para fazer o trabalho deles. [...] Não, ele ganha assim, conforme ele termina o trabalho, eles vendem e dão metade para eles. [...] Acho que são 100 reais. (Familiar 3) Ah é, sempre ajuda um pouquinho, os legumes da feira sempre, sempre ajuda. (Familiar 4) No que se refere ao trabalho, Saraceno13 ressalta que este, ao ser entendido como “inserção laborativa”, pode promover um processo de articulação do campo dos interesses, das necessidades e dos desejos. Afirma que o trabalho é um meio de sustento e representa um meio de autorrealização, sendo essa relação associada com o sentido e o valor que a sociedade lhe atribui; da mesma forma que é artefato de um projeto para um indivíduo. Por mais que gere bem-estar no usuário, constatamos, todavia, nas entrevistas analisadas, que as oficinas de geração de renda ainda não evoluíram suficientemente de maneira que contemple o suprimento das necessidades dos usuários. O rendimento financeiro por meio delas é limitado e não gera um ganho fixo mensal, uma vez que, em média, o valor individual não passa de 1/7 do salário mínimo ao mês para cada usuário participante: A renda não é muita, e a produção deles também é pequena. As condições deles são mínimas, então quer dizer que não é grande coisa, até porque é uma coisinha, para o cigarro, para alguma coisinha, para alimentação, mas é mínima [...]. Teria que ter muito mais, produção muito maior, uma condição de trabalho melhor [...]. A venda que eles têm é mínima. Não dá para quase nada, não dá para eles sobreviverem com isso. Então não é um trabalho onde eles podem se sustentar e manter uma família. (Familiar 7) O rendimento é lá de vez em quando, como vou lhe explicar. Sei lá, ela tem uma percentagem do trabalho dela. [...] Ajuda alguma coisa que ela tem vontade de conseguir. [...] É cada pessoa recebe um ‘trocadinho’, cada caso é um caso. Às vezes é uma quantia bem irrisória. (Familiar 9) Uma vez ele veio muito contente com dois reais que ele tinha vendido, não sei o que ele tinha feito. [...] remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 43-48, jan./mar., 2009 45 Oficinas de reciclagem no CAPS Nossa Casa: a visão dos familiares Ah é, contente sim. Ele disse assim, que vendeu não sei o que, que alguém tinha comprado uma coisa. (Familiar 10) Ela sempre compra alguma coisinha pra ela. Até daqui da Nossa Casa mesmo, ela compra também, aquelas bolsinhas. Aquelas coisas assim que ela acha que está utilizando, que vai utilizar. (Familiar 12) Entretanto, um dos familiares expôs uma ideia de aprimoramento das oficinas, afirmando a importância de capacitar o usuário de tal maneira que este esteja preparado para trabalhar quando obtiver alta do serviço: Condição de trabalhar melhor, coisas que eles possam trabalhar, manusear, material para eles revenderem [...]. Teria que ter recurso financeiro, para poder adquirir o recurso material, porque não adianta ter recurso material mínimo de coisas [...] é uma coisa pequena, eles teriam que ter muito mais. [...] Têm muitas pessoas que têm condições de fazer isso aqui dentro. E é uma forma deles próprios ganharem um dinheiro. É a hora de poder sair, trabalhar diretamente com o público e abrir os seus horizontes, vendo que têm capacidade de seguir em frente. [...] Uma atividade onde eles se capacitam para futuramente gerenciarem e construírem fora dali uma coisa para eles. (Familiar 7) Para finalizar este tópico, ressalte-se a colocação de Lappann-Botti 14 de que as oficinas terapêuticas promovem o exercício da cidadania, a expressão de liberdade e a convivência dos diferentes. Espaço terapêutico Torna-se relevante para esse estudo a abordagem da temática “espaço terapêutico” ancorado na reabilitação psicossocial. O verdadeiro sentido desse espaço toma forma a partir do momento em que proporciona ao indivíduo o aumento do seu poder contratual, ou seja, a ampliação de suas redes sociais e o fortalecimento de sua autonomia, tornando-o um cidadão realmente inserido nos cenários de relações sociais. De acordo com Kinoshita,15 a contratualidade do usuário vai estar determinada pela relação estabelecida pelos profissionais que o atendem, os quais podem usar o poder que têm para aumentar o poder do usuário ou não; depois, pela capacidade de elaborar projetos, isto é, ações práticas que modifiquem as condições concretas da vida, de modo a que a subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim como para que as abordagens terapêuticas específicas possam contextualizar-se.15:57 Porém, ainda que o serviço se esforce em fazer com que as oficinas não sejam espaços de entretenimento, os familiares mantêm uma percepção manicomial sobre 46 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 43-48, jan./mar., 2009 esses dispositivos. De acordo com Saraceno,13:16 entreter significa “ter dentro, passar prazerosamente o tempo”. O usuário pode ser entretido com atividades recreativas e criativas, em diversos âmbitos da sociedade, inclusive nos CAPs. Podemos evidenciar isso nas observações dos familiares a seguir: Eu acho bom porque ajudam eles lá dentro. Eles aprendem alguma coisa, aí eles têm alguma coisa para se ocupar lá dentro. (Familiar 8) Eu acho que é uma ocupação, que eles têm que ter uma ocupação, para ocupar o tempo, porque senão vão ficar o tempo todo parados. (Familiar 10) Eu acho bom, porque ela se distrai fazendo. [...] Eu acho, até para estimular, para eles não ficar assim sem fazer nada, pode até fazer em casa. (Familiar 12) Ainda de acordo com Saraceno, 13 a quebra do entretenimento constitui a fonte que deve ser conhecida e governada. Essa quebra necessita vir agregada de ações dotadas de maior eficácia transformadora da vida do indivíduo. Com base nisso, há falas em que os familiares ressaltam a importância dessas oficinas como espaços de valorização das subjetividades, do trabalho e de outras implicações que facilitam a formação de um espaço terapêutico acolhedor no serviço. É trabalho, eu acho que é trabalho e assim como é que eu vou dizer, ajuda muito para não estar assim preocupado com outras coisas, então tem o serviço para fazer, tem aquilo para fazer, é uma atividade, para mim é uma atividade muito boa. (Familiar 2) Eu digo que cada trabalho tem o seu valor, às vezes podem achar pouco. (Familiar 9) Tudo isso é muito bom para mente dele, é bom. (Familiar 11) Relação com o meio ambiente e integração com a comunidade No município de São Lourenço do Sul-RS, existe uma rede de atenção em Saúde Mental estruturada e integrada, composta por: CAPsi, CAPsad, Unidade Psiquiátrica em Hospital Geral, com dez leitos e ambulatório de saúde mental integrado ao CAP, o que corrobora para a formação de vínculos em uma comunidade de “42.339 habitantes”.16 Observando as oficinas de reciclagem sob o ponto de vista de relação com o ambiente, é relevante ressaltar a integração do serviço de saúde mental de São Lourenço do Sul com os diferentes espaços daquela sociedade. A pesquisadora 3 pergunta como eles (partícepes das oficinas) conseguem as ferramentas de trabalho, a profissional apodera-se do momento, explicitando sobre a oficina de sabugos: ‘Tem o caminho Pomerano. Já fizemos com uma parte dos usuários. No caminho, ganhamos os sabugos, vamos recolhendo e assim, temos material. A oficina de papel machê, tem o papel daqui, das gráficas, dos bancos, tudo é doação.’ (Diário de Campo). Situando o contexto da fala anterior, há necessidade de explicitar que esta atividade desenvolvida pelo serviço o Caminho Pomerano trata-se de uma visita pelos limites do município, ou seja, um contato com as famílias que residem nas colônias alemãs, as quais são agregadas à área física do município de São Lourenço do Sul. Quando falamos em inserção social, devemos ter em mente a significação de participação ativa. Desse ponto de vista, temos na comunidade lourenciana um forte predomínio da cultura alemã e pomerana. Nessa perspectiva, os usuários vão ao interior do município para se aproximarem dessa cultura e recebem doações de sabugo de milho dos agricultores. Essas ações mostram, linearmente, a inserção e o aceite do usuário nesses ambientes. Nesse contexto ainda, ao analisarmos a relação do usuário com a comunidade no que tange à coleta da matéria-prima para a oficina de sabugo, evidenciamos na fala do Familiar 2 que seu parente recebe de vizinhos que têm sítios na zona rural alguns sabugos para a utilização na oficina. Isso evidencia a articulação dos usuários que transcende os limites do CAP. Cooperam, porque ele tem muito conhecido, ele fala com um e com outro, e eles dizem: ‘Lá em casa tem, e eu vou trazer’. Uma senhora, parece que de Pinheiros, foi na nossa ‘tenda’ e falou: ‘Eu vou te trazer sabugos.’ (Familiar 2). Com base nessa explanação e no discurso antecedente, percebe-se que as oficinas, como dispositivos terapêuticos, cumprem seu papel, naquela comunidade, de ampliação do espaço social aos indivíduos em sofrimento psíquico. Percebe-se que há trocas comunitárias, culturais e sociológicas, o que vai ao encontro do princípio da reabilitação psicossocial, integrando as pessoas em sofrimento psíquico nos diferentes espaços da sociedade.5 Nesse sentido, Lappann-Botti 14 enfatiza que a concepção de terapêutico advinda do fator convivência está diretamente relacionada à ideia de reinserção, voltada para recuperação de vivência cotidiana em seus aspectos socioafetivos e geográficos, constituindo, assim, novas relações sociais, bem como com o espaço da cidade. A autora afirma que as atividades conjuntas com a comunidade próxima da pessoa em sofrimento mental podem ser um meio eficaz para a maximização da produção e da inserção social do indivíduo. Olha, ao meu ver, assim, que ajuda a inserção social é mais o artesanato, a oficina de artesanato. (Familiar 6) Acho que a inclusão social [...] seria, no caso, eles conviverem mais com a sociedade, oportunidade de ter um emprego, de trabalhar. [...] Inclusão social seria tirar eles dali e arranjar uma oficina fora dali para aquelas pessoas que têm condições de trabalhar [...]. Deveriam procurar fazer um acordo com a comunidade, onde eles pudessem incluir essas pessoas com capacidade para o trabalho. [...] Eles têm contato uns com os outros, criam laços de amizade e afetividade. Eles mesmos se relacionam, discutem os seus problemas, se apoiam ali. (Familiar 7) A apresentação dos trabalhos manuais que eles fazem [...]. Quando tem feira, eles mostram os trabalhos: os tapetes. (Familiar 12) Demonstraram no Mental Tchê o trabalho deles. Começou a ter pedidos. (Familiar 4) A última fala explicitada mostra o quanto as atividades realizadas pelo CAP Nossa Casa estão articuladas com aquela comunidade. Um exemplo dessa articulação é o Mental Tchê, evento regional realizado na cidade de São Lourenço do Sul-RS, em comemoração ao Dia da Luta Antimanicomial (18 de maio), que reúne anualmente trabalhadores de saúde mental, usuários, familiares e estudantes de todo o Estado do Rio Grande do Sul e de outros Estados. Nesse evento, discutem-se perspectivas e rumos da reforma psiquiátrica. Reafirmase, na prática, como um espaço de horizontalização das relações, questionamentos e rupturas com preconceitos, gerando movimentos para a integração do usuário com a comunidade. Podemos refletir, diante do exposto, que a Reforma Psiquiátrica, como movimento social, ensina que, a partir do momento em que se conseguir mudar mentalidades, mudar atitudes e mudar as relações sociais, se obterá êxito nas relações do campo social e no constructo da emancipação da real cidadania ao indivíduo em sofrimento psíquico. Na edificação da cidadania, não basta somente aprovar leis, uma vez que não se determina uma pessoa como cidadã por decreto. Nesse momento da caminhada, devem-se concretizar, no plano subjetivo, as ações realizadas por Basaglia, ou seja, “destruir muros” constituindo espaços e formas de lidar com a loucura e a doença mental, extinguindo com o manicômio do plano mental. 11,17 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, percebe-se que as oficinas de reciclagem do CAP Nossa Casa encontram-se bem estruturadas, visto que suas ações constituem-se em terapêuticas, contribuindo para o processo de reabilitação psicossocial, para a aceitação das diferenças. Assim, torna-se pertinente mencionar que a comunidade lourenciana, além de reconhecer o serviço, atua efetivamente na viabilização das oficinas, visto que separa e doa a matéria-prima para a realização das atividades. Embora o objetivo de gerar recursos financeiros seja reconhecido pelos familiares como remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 43-48, jan./mar., 2009 47 Oficinas de reciclagem no CAPS Nossa Casa: a visão dos familiares insuficientes para a subsistência, não se pode desconsiderar que os ganhos oriundos do artesanato produzido em oficina, de certa forma, auxiliam no montante financeiro da família. Como exposto, os ganhos do usuário, embora pequenos, são utilizados para a aquisição de bens de consumo, os quais, em outras situações, caberiam à família adquirir. Assim, as oficinas possibilitam o resgate do desejo pelo trabalho por parte de usuário, pois, por meio da produção e livre expressão unem saúde, convívio social, reabilitação psicossocial, cultura e proteção do meio ambiente, promovendo, assim, qualidade de vida e inclusão, possibilitando a transformação das ações do sujeito. Agradecimentos Agradecemos ao Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e ao Ministério da Saúde pelo apoio financeiro, o qual propiciou a realização da Pesquisa de Avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do Brasil (CAPSUL), da qual os dados deste artigo foram extraídos. REFERÊNCIAS 1. Silva ACZ. Centros de atenção psicossocial. In: Farah MFS, Barboza HB, organizadores. Novas experiências de gestão pública e cidadania. Rio de Janeiro: FGV; 2000. 296 p. 2. Brasil. Portal de Saúde Pública do Pará. [Citado em 2007 ago. 14]. Disponível em: http://www.sespa.pa.gov.br/CAPS/caps.htm 3. Brasil. Ministério da Saúde. 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Enferm.;13(1): 43-48, jan./mar., 2009 CONCEPÇÕES DE CUIDADO DOS FAMILIARES CUIDADORES DE PESSOAS COM DIABETES MELLITUS FAMILY CAREGIVERS OF PEOPLE WITH DIABETES MELLITUS: CARE CONCEPTS CONCEPCIONES DE CUIDADO DE LOS FAMILIARES CUIDADORES DE PERSONAS CON DIABETES MELLITUS Ricardo Castanho Moreira1 Márcia Glaciela da Cruz Scardoelli2 Roselene da Cruz Baseggio3 Catarina Aparecida Sales4 Maria Angélica Pagliarini Waidman4 RESUMO Diante das demandas que envolvem o indivíduo com diabetes mellitus e sua família no contexto domiciliar, o objetivo com este estudo foi identificar as concepções de cuidado expressas por familiares de pessoas com diabetes mellitus. Trata-se de um estudo qualitativo de caráter descritivo, realizado em três municípios do Estado do Paraná (Bandeirantes, Campina da Lagoa e Enéas Marques) no mês de setembro de 2006. Os sujeitos participantes da pesquisa foram nove indivíduos identificados pela pessoa com diabetes mellitus como cuidador informal dela. Obedeceu-se, neste estudo, aos preceitos éticos dispostos na Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo para tratamento dos dados, de onde emergiram duas categorias: Convivendo com o diabetes mellitus em seu lar e O processo de cuidar e o relacionamento familiar. O estudo permitiu descrever como o cuidador familiar percebe o cuidado à pessoa com diabetes mellitus e as vivências da família e as dificuldades diárias para o controle da doença, com vista a contribuir para o melhor conhecimento dos fatores comportamentais e emocionais que devem ser considerados no planejamento de ações de saúde voltadas para a assistência integral a essa população. Palavras-chave: Diabetes Mellitus; Relações Familiares; Assistência Domiciliar. ABSTRACT This study aims to identify the concepts of care that relatives of people with Diabetes mellitus have, considering the demands faced by the diabetic patient and their family at home. It is a qualitative and descriptive study, which was carried out in three cities of the State of Parana (Bandeirantes, Campina da Lagoa and Enéas Marques), in September, 2006. The participants were individuals identified by the patients as their informal caregivers. A total of nine individuals participated. The study followed the ethical principles established by the resolution 196/96 of the National Health Council. The content analysis technique was used for processing the data. Thus, two categories were noticed: (1) living with Diabetes mellitus at home; and (2) the process of care and the family relationship. First, the study describes how the family caregiver sees the care rendered to the person with Diabetes mellitus and second, it describes the family experiences regarding the daily difficulties in controlling the disease. This study contributes for a better understanding of behavioral and emotional features that should be taken into account when planning health actions to grant full assistance to such population. Key words: Diabetes Mellitus; Family Relations; Home Nursing. RESUMEN Este estudio fue realizado con el objetivo de identificar las concepciones de cuidado expresadas por familiares de diabéticos ante las demandas de una persona con diabetes mellitus y su familia en el contexto domiciliario. Se trata de un estudio cualitativo de carácter descriptivo llevado a cabo en tres municipios del Estado de Paraná (Bandeirantes, Campina da Lagoa y Enéas Marques) en septiembre del 2006. Los sujetos participantes de la investigación fueron individuos identificados por el enfermo como su cuidador informal, totalizando 9 participantes. El estudio obedeció a los preceptos éticos dispuestos en la Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud. Se utilizó la técnica de análisis de contenido para manejar los datos y de ahí surgieron dos categorías: Conviviendo con la diabetes mellitus en el hogar y El proceso de cuidar y la relación familiar. El estudio permitió describir cómo el cuidador familiar percibe el cuidado de la persona con diabetes mellitus y describir las experiencias y las dificultades diarias de la familia para controlar la enfermedad. El presente trabajo puede ayudar a conocer mejor los factores comportamentales y emocionales a considerar en la planificación de acciones de salud que busquen brindar asistencia integral a dicha población. Palabras clave: Diabetes Mellitus; Relaciones Familiares; Atención Domiciliaria de Salud. 1 2 3 4 Enfermeiro. Mestre em Enfermagem pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor assistente da Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus Faculdades Luiz Meneghel. Enfermeira do Serviço de Saúde da Família do município de Campina da Lagoa. Aluna do mestrado da UEM. Enfermeira do Serviço de Saúde da Família do município de Enéas Marques. Enfermeiras. Doutoras em Enfermagem. Professoras do Departamento de Enfermagem (Graduação e Mestrado) da Universidade Estadual de Maringá. Endereço para correspondência: Avenida Prefeito Moacyr Castanho, 1483. Bandeirantes (PR), 86360-000. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, 43-48, jan./mar., 2009 49 Concepções de cuidado dos familiares cuidadores de pessoas com Diabetes Mellitus INTRODUÇÃO Estima-se que no Brasil existam cerca de 5 milhões de pessoas com diabetes mellitus (DM), e, segundo levantamentos epidemiológicos, a prevalência desse agravo na população brasileira adulta urbana é de aproximadamente 7,6%.1 Com a mudança do perfil epidemiológico da população brasileira, conseqüente da retangularização da estrutura etária, há uma expectativa crescente do aumento da prevalência da morbidade por DM. Concomitante a esse indicador, outra característica da doença acentua ainda mais o risco para as complicações crônicas, pois, como a doença não tem estigmas visíveis nem se dá a conhecer por meio de dor ou outro sinal alarmante, ela muitas vezes não é diagnosticada e, ademais, é desvalorizada pela ausência de sintomas (principalmente dor, febre e outros em geral) com os quais a população se preocupa. Na busca do tratamento e prevenção de complicações, vários são os esforços das autoridades governamentais e não governamentais para a elaboração de manuais, guias práticos e, mais recentemente, sites para pessoas com DM. No entanto, essas práticas têm enfocado apenas o aspecto objetivo do ser acometido por DM, afastando-se da individualidade do cuidado. Nesse rol de estratégias está explícita a preocupação em inserir a família nesse processo, considerada como cuidadora domiciliar. Percebemos que o DM envolve questões fundamentais para o êxito do tratamento, as quais estão relacionadas ao cuidado – ao autocuidado e ao cuidado, que abrange o ambiente que o ser doente está inserido – incluindo, especialmente, a família. O cuidado é um fenômeno resultante do processo de cuidar, o qual representa a forma como ocorre o encontro ou situação de cuidar entre cuidador e ser cuidado.2 O cuidado desenvolvido no domicílio, no entanto, é diferente dos demais, pois leva em consideração a realidade e contextualização do ambiente em que o ser doente está inserido. Esse cuidado pode ser realizado tanto por profissionais quanto pelos familiares e/ou outras pessoas da comunidade não preparadas formalmente para essa realidade. Quanto ao cuidador familiar ou informal, trata-se de uma pessoa sem formação na área da saúde que está cuidando de seu familiar doente, podendo ou não estar responsável por ele.3 Diante dos cuidadores domiciliares, é possível que haja pessoas não inclinadas a desenvolver atividades designadas de cuidado ou, pelo menos, não na sua totalidade. Nas atividades que exigem ou incluem comportamentos de cuidar, muitas pessoas cuidadoras não apresentam, necessariamente, esse tipo de comportamento.2 Não obstante ocupem a posição familiar de cuidador em vista de determinadas circunstâncias, nem por isso deixam de exercê-la, e é nessas situações que os profissionais precisam conhecer a realidade para intervir com eficiência. 50 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 Outro fator importante relacionado ao cuidado e ao cuidador domiciliar é que nem sempre o cuidado oferecido pode ser recíproco, pois, dependendo da situação, a pessoa receptora de cuidado pode não responder, quiçá, pelo fato de o cuidado não surtir nenhum efeito, por não estar sintonizada com a cuidador ou mesmo mostrar indiferença em relação a um comportamento mais afetivo ou mais distante, ou até mesmo por não aceitar ou não compreender a doença.2 Assim, todas essas questões podem interferir na adesão ao tratamento e na resposta à terapêutica utilizada. Nesse sentido, o envolvimento e a participação da família no tratamento e cuidado da pessoa com DM é fundamental, e isso já é consenso entre os profissionais de saúde. Destarte, a preocupação relacionada ao envolvimento da família é reflexo do impacto que o DM provoca na rotina do indivíduo, modificando o funcionamento, alterando os papéis e a estrutura familiar, principalmente se há complicações mais graves relacionadas à doença. Dessa forma, é imprescindível que o serviço de saúde esteja preparado para cuidar não somente da pessoa com DM, mas da família dela. Vemos a família como uma unidade que se autoestima positivamente e cujos membros convivem e se percebem mutuamente como família, com uma estrutura e organização para atingir objetivos comuns e fazer uma história de vida.4 A família bem estruturada e organizada é capaz de prover os meios para o crescimento e o desenvolvimento da saúde e do bemestar de seus membros, e quando se encontra saudável aceita a individualidade de cada um de seus componentes, bem como, acima de tudo, possui a capacidade de conhecer e usufruir seus direitos, de enfrentar crises, conflitos e contradições.4 Por isso acreditamos que ela possa, em momentos difíceis, como no enfrentamento de uma doença crônica, ajudar seus membros doentes a diminuir ou evitar as complicações decorrentes da enfermidade. Estudos recentes realizados com famílias de pacientes com DM5-6 têm demonstrado que ela constitui apoio fundamental para a adesão ao tratamento, principalmente no que se refere ao apoio e suporte relacionado à adesão, à dieta e a atividades físicas. Além do mais, nossa experiência tem demonstrado que oferecer orientações e um cuidado voltado para o atendimento às necessidades da família, no sentido de sanar-lhe as dúvidas e apoiá-la nos momentos de dificuldade – por exemplo, no enfrentamento dos problemas advindos da doença crônica –, ajuda a controlar a doença do indivíduo, assim como a manter a saúde da família. A família e o paciente apresentam sentimentos de angústia, ansiedade, conflitos e necessidades diversas referentes ao tratamento e acompanhamento da doença, ou seja, apresentam dificuldades – relacionadas a fatores emocionais e metabólicos – para o controle do DM. 7 Nesse sentido, os profissionais de saúde precisam levar em consideração essa realidade e desenvolver ações em curto, médio e longo prazos, voltadas para a assistência dessas pessoas com vista à melhoria da qualidade de vida e à diminuição de complicações da saúde da pessoa com DM.7 Estamos cientes da importância da família para o indivíduo com doença crônica, especialmente aquele com DM, uma vez que ela serve como fonte de apoio emocional nos momentos em que ele se sente impotente diante dos desafios advindos da doença.7 Por outro lado, alguns estudos demonstram que pacientes que recebem apoio e ajuda da família têm maior adesão ao tratamento e ao plano alimentar.5-6 Em face disso, acreditamos que conhecer a concepção de cuidado dos cuidadores familiares e algumas peculiaridades da vivência da pessoa com DM e de seu cotidiano familiar permitirá compreender a problemática que lhe envolve a vivência e o cuidado informal dentro do domicílio, para oferecer um cuidado pautado na realidade dele, melhorando, assim, o cuidado de enfermagem oferecido ao indivíduo e à família dele. Com consciência da problemática que envolve a pessoa com DM e sua família e com base em nossa experiência profissional, de docentes e pesquisadores que atuam com famílias de portadores de doenças crônicas há vários anos, propomo-nos realizar este estudo, o qual teve como objetivo identificar as concepções de cuidado expressas por familiares de pessoas com DM. MATERIAIS E MÉTODOS Desenvolveu-se um estudo qualitativo do tipo descritivo, realizado em três municípios do Estado do Paraná – Bandeirantes, Campina da Lagoa e Enéas Marques – no mês de setembro de 2006. A escolha dos municípios partiu do interesse de alguns pesquisadores de acordo com seus respectivos locais de atuação profissional. O município de Bandeirantes localiza-se no norte do Paraná, na área de abrangência da 18a Regional de Saúde, sediada em Cornélio Procópio. Possui 33.370 habitantes;8 duas instituições hospitalares, das quais uma é filantrópica e a outra, privada; e cinco Unidades Básicas de Saúde, das quais quatro possuem equipes de Saúde de Família (ESF), cobrindo 66,8% da população do município. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde, havia, na época desta pesquisa, 902 indivíduos com DM cadastrados em um sistema de cadastramento e acompanhamento de hipertensos e diabéticos (HIPERDIA), e 133 destes últimos eram pacientes insulino-necessitados.8 O município de Enéas Marques localiza-se no sudoeste do Paraná, na área de abrangência da 8ª Regional de Saúde, com sede em Francisco Beltrão. Segundo dados do DATASUS,8 o município tem 5.712 habitantes. Não dispõe de nenhum hospital, e o serviço de saúde conta com um Centro de Saúde e duas ESFs, que cobre 100% do município, com o auxílio do Programa Agente Comunitário de Saúde (PACS). Conta, também, com um pronto-atendimento, onde são realizados procedimentos considerados de atenção básica e encaminhamentos para unidades hospitalares de média e alta complexidade. Segundo dados do Departamento Municipal de Saúde, encontravam-se cadastrados no Programa HIPERDIA 106 pessoas com DM, das quais 36 eram insulino-necessitadas.8 O município de Campina da Lagoa localiza-se no centro-oeste do Estado, na área de abrangência da 11ª Regional de Saúde, sediada em Campo Mourão. Possui 14.833 habitantes,8 duas instituições hospitalares, das quais uma é filantrópica e a outra, privada. Dispõe de quatro UBSs, que possuem cinco ESFs, que cobrem 99,1% da população do município. Havia 289 indivíduos com DM, dos quais 78 eram insulino-necessitados e acompanhados pelas ESFs.8 Para a seleção dos pacientes, seguimos os seguintes critérios: estar cadastrado no Programa HIPERDIA, ser atendido por equipe do PSF e estar com diabetes mellitus descompensado. Após a identificação dos indivíduos que se encaixavam nesse perfil, elegemos algumas características para acesso a eles: horário de disponibilidade para atendimento da equipe de pesquisa, acesso ao local de moradia e tempo mínimo de seis meses de acompanhamento pela ESF. Pelo fato de os municípios terem populações diferentes, chegamos a números de pacientes variados; no entanto, para facilitar nosso trabalho de pesquisa, optamos por definir o mínimo de três pacientes por município. Assim, foram escolhidos, em todos os municípios, mais ou menos cinco pacientes, com os quais, após contato por telefone, foram agendadas e realizadas visitas domiciliares com o objetivo de apresentar a pesquisa e solicitar que eles indicassem um familiar que considerassem seu principal cuidador para ser entrevistado futuramente como participante da pesquisa. A escolha de mais de três pessoas na lista para contato se deu pelo fato de que, se algum não apresentasse interesse em participar da pesquisa, teríamos a possibilidade de contatar o próximo. Na visita domiciliar de apresentação do projeto para a pessoa com DM, caso o cuidador familiar indicado residisse com ele, fazia-se o primeiro contato com o cuidador, o projeto lhe era apresentado e solicitada sua participação na pesquisa, e somente depois era marcada a entrevista, de acordo com a disponibilidade do sujeito e do pesquisador. Após contato com os familiares, chegamos a três cuidadores familiares por município, totalizando nove entrevistados para o estudo. Utilizamos como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada, contendo questões relacionadas à participação da família no controle do DM e sua preocupação com as complicações da doença, bem como à compreensão da família sobre cuidado na saúde e na doença. Para maior fidedignidade, as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, depois lidas e remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 51 Concepções de cuidado dos familiares cuidadores de pessoas com Diabetes Mellitus relidas, até que, por meio da técnica de análise de conteúdo temática, realizamos o tratamento dos dados. 9 Assim, emergiram, neste estudo, duas categorias de análise: Convivendo com o DM em seu lar e O processo de cuidar e o relacionamento familiar. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) das Faculdades Luiz Meneghel, tendo parecer favorável para seu desenvolvimento. Foram levados em consideração todos os preceitos éticos que envolvem a pesquisa com seres humanos, disciplinados pela Resolução nº 196/96, do Ministério da Saúde. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Convivendo com o diabetes mellitus no lar A existência humana pode tornar-se objeto de questionamento, principalmente quando o ser humano experiencia alguma facticidade em seu cotidiano que ele não consegue abarcar de imediato. Nesses momentos, o ser-no-mundo se fecha em si mesmo e não consegue entender sua condição existencial, por isso nega a si mesmo a verdade que se descortina ao redor dele.10 Nesse pensar, é, sobretudo, por meio das restrições alimentares que a pessoa com DM toma consciência de suas limitações. Por essa razão, o conflito entre o desejo alimentar e a necessidade imperiosa de contê-lo está sempre presente na vida cotidiana desse ser.11 Nessa perspectiva, distinguimos que os familiares, em suas linguagens, exprimem sentimentos de temor e preocupação ante a terapia nutricional de seus entes queridos, sentimentos que os fazem, de certa forma, esquecer-se de si mesmos e dedicar-se ao seu ente querido. Ela toma muito refrigerante e come macarrão. (S2) Ah, eu cuido no alimento, não como para ele não comer, cuido nas gorduras, frituras. Já a carne de galinha eu tiro a pele para não comer o couro. Não faço bolo, não faço nada, eu compro até cuca diet. (S4) Ela tem que fazer uma dieta bastante rigorosa, apesar de que a gente não faz conforme manda, mas a gente procura manter o mais próximo possível. Por exemplo, uma alimentação bem saudável que seja dentro dos padrões que precisa. Agora a gente não vai seguir à risca tudo, porque é quase impossível, é muita coisa [...] eu entrei na dieta junto com ela porque é impossível fazer comida para duas pessoas separada, então aumenta um pouquinho, já faço para nós dois, aí fica mais fácil um pouco, porque numa cozinha eu fazer comida para duas pessoas separadas não é muito fácil. (S5) Evito doçura, evito comer perto dela, porque eu sei que se a gente comer ela sente vontade, daí para gente comer e ela não fica ruim. A alimentação é tudo junto 52 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 e o recurso é se ela não pode comer alguma coisa diferente a gente não come, fica ruim né. (S6) A respeito dos sentimentos narrados pelos familiares, entendemos que mudar comportamentos em relação à dieta de uma pessoa com DM passa, obrigatoriamente, pela reeducação do grupo familiar. A reestruturação alimentar é um dos atos mais difíceis de se inserir na nova rotina. Todos estavam acostumados a ingerir todo tipo de alimento, sem restrição, portanto a mudança na rotina da família acaba sendo inevitável e radical. Alguns alimentos são proibidos ou restritos, outros são adaptados, e há também aqueles que são inseridos no hábito alimentar, sendo necessário maior rigor nos horários das refeições.12 A obtenção de uma dieta equilibrada e satisfatória depende da ingestão de vários nutrientes, que são oferecidos naturalmente por meio dos alimentos. A liberação dos carboidratos no plano alimentar permite manter uma oferta menor de lipídeos, de forma que estes venham a complementar a necessidade energética e desempenhar suas funções orgânicas mais específicas, como transportadores de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) e fontes importantes de ácidos graxos essenciais.13 Nessa perspectiva, percebemos nas falas a seguir que, apesar dos esforços, os familiares demonstram certa incipiência em relação aos alimentos adequados para os diabéticos, pois não se preocupam em fornecer uma dieta equilibrada. “A educação alimentar necessita ser difundida para que todos tenham conhecimento sobre alimentos de boa qualidade e de baixo custo”.5:314 [...] que ela não coma doçura, nem gordura, [...] aplico a insulina todo o dia, dou o remédio.(S6) Eu acho que é na alimentação dela, pouco doce [...] porque se deixar ela come, ela é uma doceira de verdade que só ela. (S8) Dou os remédios na hora certa, a comida que não faz mal e faço o curativo nela. É assim que eu faço todos os dias. (S9) Ao receber o diagnóstico de diabetes mellitus, os membros da família compartilham com o ente acometido as demandas impostas pela doença. Abruptamente, eles veem a familiaridade de seu cotidiano modificada, exigindo novas adaptações. No entanto, os cuidadores carregam consigo algumas dúvidas quanto ao cuidado ao familiar com DM: [...] ela pode comer alguma doçura. Assim, por exemplo, dietética, eu não compro nada porque eu fico desconfiado, aquele produto, pode ou não ser dietético, porque o papel aceita tudo, a embalagem pode pôr em cima o que quiser, eu poço ler a embalagem, mas confiar naquele produto [...]. Essa é a dúvida, porque os filhos sempre dizem ‘pode comprar isso aqui para mãe’, mas eu não acredito no que tá escrito na embalagem. (S5) [...] às vezes ela tem vontade de comer um pedaço de bolo, só que ela fica com medo. Eu falo: ‘Mãe, um pedacinho só não vai fazer mal, o que não pode é exagerar. Eu queria saber se fazia mal ela comer um pedacinho de bolo, um pedaço de pudim, alguma coisa assim... (S9) Na fala a seguir, observa-se que o familiar procura antecipar suas próprias possibilidades, tentando agarrar-se à sua situação não com desânimo, mas com esperança, buscando, por meio do saber, formas de cuidar melhor do ente querido. Dessa forma, tenta superar sua própria angústia, manifestando o seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo e projetando um sentido para sua situação: [...] muito complicado, porque nem conhecia a doença antes, descobri com ele mesmo e daí fui aprendendo (S3). No tocante ao controle metabólico, ou seja, à realização de glicemias capilares, que contribui para manter os pacientes e familiares informados sobre a taxa de glicose no sangue, identificamos que todos consideram o controle da glicemia uma maneira “objetiva” de avaliar o estado de saúde da pessoa com DM. No entanto, constatamos que, apesar de terem consciência da importância desse procedimento, os familiares não o realizam diariamente. A gente tem um aparelho que mede e conforme o resultado, aumento ou diminuo o remédio [...], meço todo dia e quando ela está mais controlada meço um dia sim, um dia não (S5). Eu tenho o aparelhinho ali, daí eu faço toda a semana o teste, para ver como tá o diabetes dela [...] (S6). [...] ela está sempre preocupada em realizar exames para monitorar o nível glicêmico e controlar o diabetes [...] (S7). A respeito do processo de educação, enfatizamos que há a necessidade de maior acompanhamento pelas equipes de saúde aos cuidadores familiares. A insegurança advinda do vivenciar sentimentos novos e dolorosos envolvidos no cuidado exige um preparo emocional e, por vezes, técnico dos cuidadores. O saber fazer necessita de preparo, de treinamento e nem sempre os cuidadores recebem essa atenção.3:532 Não obstante isso, percebe-se, também, que o cuidado à pessoa com DM muitas vezes pode provocar alterações na situação econômica da família, pois implica um gasto maior, principalmente no que tange à alimentação equilibrada e à aquisição de fitas reagentes, utilizadas no controle diário do nível glicêmico do doente, o que, dependendo das condições econômicas da família, pode levá-la a não realizar diariamente esse controle 14 isso, consciente ou inconscientemente, implica a não adesão ao tratamento: Nós demos um aparelho de Teste de Glicemia Capilar para ele, mas o preço das fitas, você sabe não é?... (S1) Ressalte-se que o serviço público de saúde distribui insulina Neutral Protamine Hagedorn (NPH) e medicamentos orais para a redução da glicemia aos pacientes, porém a quantidade de seringas e agulhas é limitada, implicando o seu reuso, o que pode provocar alterações nos locais de aplicação, como as lipodistrofias, que acometem 10% a 50% dos pacientes que necessitam de insulina.15 Atualmente, as políticas de saúde têm contribuído para a garantia de distribuição gratuita de medicamento – por exemplo, a Lei n o 11.347. 16 Entretanto, constatamos que nos municípios onde realizamos o estudo essa distribuição é insuficiente para atender à demanda dos doentes. O caráter impositivo no relacionamento familiar para o controle da doença emergiu quando interrogamos sobre as atitudes dos cuidadores na realização do tratamento do familiar. Acreditamos que essas atitudes expressam a vontade dos familiares de ver seus entes queridos bem, sem complicações, mesmo que para isso tenham que, de certa forma, controlar suas atividades diárias: Pego no pé dele. Brigo com ele. Acho que ele faz de propósito! [...] Chego à casa dele e vou direto à cartela de medicamento para ver se ele tomou tudo direitinho. (S1) Em sua analítica existencial, Martin Heidegger10 escreve que uma das maneiras de o Ser-aí manifestar solicitude é o Einspringgende Fürsorge, isto é, cuidar do outro saltando sobre ele, ou seja, acalentando-o, colocandoo no colo, fazendo tudo por ele, retirando-lhe o cuidado e assumindo o lugar dele nas ocupações. Não obstante, esta forma de estar-com pode fazer com que o outro não assuma seu existir-no-mundo. Esta relação de solicitude foi manifestada pelo sujeito 8. [...] agora ela não está fazendo mais nada não, agora ela [...] eu até tava comentando com as meninas (irmãs dela) que se eu não tiver em cima dela passa o horário dos remédios e ela não toma os remédios. Agora, depois que mudei perto dela, ela tá bastante dependente, [...] porque é eu que ponho os remédios no copinho e dou tudo pra ela. Eu tenho minha cama aqui e às vezes eu durmo aqui [...] daí eu ponho o relógio pra despertar no horário prescrito para dar o remédio pra ela. (S8) O diabetes mellitus é uma disfunção crônica de inquestionável necessidade de controle; por outro lado, é difícil conseguir esse controle, dada a complexidade do tratamento e a interferência de fatores biopsicossociais.13 Assim, notamos na fala do sujeito 1 que cuidar de uma pessoa com DM desperta no cuidador a consciência das dificuldades enfrentadas em seu existir-no-mundo com DM, as quais consistem em remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 53 Concepções de cuidado dos familiares cuidadores de pessoas com Diabetes Mellitus compreender o comportamento de outros seres com o mesmo agravo em seu cotidiano profissional, pois ele sabe que não é fácil seguir todas as demandas que a doença exige na vida da pessoa. Quando eu atendo pessoas diabéticas aqui no prontosocorro e vejo que não se cuidam eu nem brigo, porque tenho um em casa e sei como é. (S1) Dos depoimentos a seguir, depreendemos que os familiares atribuem a causa da hiperglicemia ao nervosismo. Sobre essa questão, os estudiosos afirmam que o estado de ansiedade não é, necessariamente, a causa da doença. Na verdade, as emoções e os traumas podem precipitar o aparecimento da doença em pessoas que já tenham características genéticas para desenvolvê-la, e é possível que, após emoções, sustos, estresse e contrariedades, a glicemia aumente.17-18 Em um estudo norte-americano, indivíduos com baixo nível de suporte emocional tiveram um incremento de risco para diabetes mellitus quando da presença de evento estressante não desejado, quando comparados com aqueles com alto nível de suporte emocional.19 [...] ela controlando o nervosismo o diabetes sempre fica controlado. Quando ela fica nervosa a diabete vai numa altura. Ela fica nervosa com muita coisa e assim do nada ela começa a estralar os dedos, aí pode ter certeza que a diabete tá alta (S7). E se ela ficar nervosa a diabete sobe. Ela tá até tomando diazepam meio seguido para controlar ela; ela é nervosa por natureza, então é só ela ficar nervosa que sobe a diabete e a pressão (S8). O DM acarreta mudanças emocionais e físicas significativas na relação que o doente estabelece com o mundo que o cerca. A pessoa acometida por complicações crônicas advindas da doença, como nefropatia, retinopatia ou pé diabético, podem sofrer ainda mais discriminações. Nesse sentido, percebemos tristeza no tom de voz de uma cuidadora, tristeza ao relatar a discriminação que o marido sofreu em seu ambiente de trabalho: Ele era caminhoneiro, e já aconteceu dele dormir duas vezes ao volante e entrar no meio do mato. Dá última vez deu crise convulsiva nele, acho que era pela hiperglicemia. Após isso, o pessoal da empresa afastou-o. Hoje ele pega a foto do caminhão e começa a chorar. (S1) Nesse momento, lágrimas rolaram dos olhos da cuidadora que, com um brilho intenso no olhar e um sorriso discreto, em silêncio, expressava a certeza de que o retorno ao trabalho é a possibilidade de ele se encontrar com a satisfação pessoal e o bem-estar dele. Quanto à discriminação, seja na escola, seja no trabalho, percebemos que os governantes estão tomando providências, pois já existem leis favoráveis ao indivíduo 54 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 com DM. A Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV, prevê o direito ao bem-estar para todo cidadão, sem distinção de sexo, raça, cor, origem e quaisquer outras formas de discriminação, e prevê, no inciso XLI do mesmo artigo, punição para qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais. Assim, a Lei nº 9.029/95 veda qualquer medida discriminatória e limitativa para fins de acesso e manutenção da relação de emprego, não importando se o cidadão tem ou não diabetes. Já no Estado de São Paulo, há duas leis estaduais, a Lei nº 11.369 e a Lei nº 11.370, ambas de 28/3/2003, que passaram a vigorar no estado no ano passado. A primeira veda qualquer forma de discriminação e a segunda assegura o ingresso no serviço público de pessoas portadoras de diabetes.20 No entanto, outras formas de discriminação também estão presentes na vida da pessoa com DM, mesmo que ela não seja intencional. Vejamos no depoimento a seguir: Ah [...] a gente muda a comida dela, muda açúcar, nada de açúcar [...] não come nada doce. Ela [...] eu não deixo ela comer, entendeu? A gente come. Eu, meu pai e meu irmão, mas ela, daí [...], daí eu não deixo ela comer. Quando vou fazer comida faço separado [...] controlo o sal. Não que eu falo: “Mãe, não come isso!’, mas ela é que já não come mesmo. (S9) Na linguagem da entrevistada 9, observamos que, na ânsia de cuidar do familiar, acaba, mesmo que inconscientemente, discriminando-a em seu próprio ambiente familiar. Assim, o mundo da doença muitas vezes vai sendo permeado pela discriminação na sociedade e até mesmo na forma de expressar o cuidado: Infelizmente, em nossa sociedade, o indivíduo diabético ainda sofre discriminação: a criança, o jovem e o adulto, são, muitas vezes, apenas vistos como doentes. O próprio diabético, freqüentemente, também não aceita sua própria condição, bem como seus familiares [...]. É fundamental que o diabético e sua família, mesmo com dificuldades de aceitação, trabalhem a doença internamente, para que efetivamente se faça, na sociedade, a participação do diabético como pessoa inteira.21:23 O processo de cuidar e o relacionamento familiar A preocupação desperta no ser humano atitudes que ajudam o outro a assumir os próprios caminhos, ou seja, o autocuidado. Essas atitudes imbricam características da paciência e da preocupação. A paciência se refere a tudo o que está por vir, como as dúvidas, as revoltas e as dificuldades que a pessoa com DM pode ter. Já a consideração se manifesta diante de tudo o que já foi vivido pelo ente como um membro da unidade familiar, que é considerado na estética do seu cuidado atual: Eu cuido e ele cuida também, porque eu já pergunto ‘Tu tomaste a insulina? [...] Não? Então vem tomar!’ Eu já pego o algodão com álcool, já pego a insulina e já levo em cima da mesa. Coloco os óculos pra ele vir fazer e ele mesmo faz. Ele fazia ginástica ali na pracinha com a gente, mas agora ele parou. Eu estou aconselhando ele para voltar às atividades físicas [...]. Eu tenho prazer em cuidar dele, estou há 43 anos casada, mas graças a Deus, se precisar começar, começo tudo de novo. Um casamento feliz, tenho quatro filhos, graças a Deus. Só assim [...] eu me sinto feliz. (S4) necessidades levantadas por ele no decorrer do tempo. No entanto, os familiares demonstram viver uma situação ambígua, pois, se de um lado desejam apoiar seu ente querido, de outro, sentem-se confusos ao constatarem que as complicações da doença afetam o próprio viver. Diante do diagnóstico de alguma doença crônica, tanto o portador quanto seus familiares costumam reagir utilizando algumas atitudes para defender-se contra a realidade imposta até poder aceitá-la4: O cuidar envolve uma verdadeira ação interativa, que está calcada em valores e conhecimentos do ser que cuida em relação ao ser que é cuidado e passa também a ser cuidador. Na linguagem do entrevistado 5 observamos que os valores de um relacionamento íntimo, em que a consideração e a paciência perduram há anos, fazem com que o casal vivencie seu cotidiano com a doença sem que esta comprometa o relacionamento deles. Aliás, ao invés disso, esta condição os une ainda mais, através da demonstração de afeto e amor. Ele fica preocupado com os problemas domésticos, faltam as coisas, a mulher é depressiva e acho que ele fica depressivo também. (S1) [...] o que é diferente na nossa alimentação é o meu café. O meu eu adoço com açúcar e o dela com adoçante, então a única diferença. O pão dela é o de centeio e o meu eu compro separado, mas esse é mais fácil de separar. A boia de panela é a mesma, compro arroz integral, é pra nós dois, o feijão é caseiro e outra boia é difícil, por exemplo, a batatinha, porque diz que não faz muito bem [...]. A gente casou [...]. Quando casamos ninguém tinha problema, os problemas vieram depois, então agora já que vieram, tem que cuidar um do outro até o fim, não tem que sair fora assim fácil, não. (S5) Nessa mensagem, fica explícito que eles têm uma concepção de cuidado que envolve a empatia, ou seja, se colocam no lugar do outro, percebem suas necessidades, tanto fisiológicas como emocionais, oferecem conforto e segurança para que passem pelos momentos difíceis de forma mais amena e tranquila. O cuidado faz parte do conhecimento estético da enfermagem. Uma experiência estética envolve a criação e/ou apreciação de uma expressão singular, particular, subjetiva, de possibilidades imaginadas ou realidades equivalentes, a qual resiste à projeção na forma discursiva da linguagem. Assim, a empatia é um importante elemento do padrão estético do saber, pois envolve a subjetividade da relação entre os seres envolvidos no ato de cuidar. Assim, a arte está tão bem estabelecida como qualquer fato de todo o campo estético.22 O cuidado, mesmo no silêncio, é interativo e promove crescimento, pois ajuda o indivíduo com DM a crescer; envolve ajudálo a enfrentar momentos difíceis, mantendo-se presente e solidário e ajudando-o a extrair um significado da experiência vivida. O cuidado auxilia no processo de cura, acelerando-o e tornando-o menos traumático. A família, frequentemente, é a unidade primária provedora de cuidado ao ente com diabetes mellitus, representando importante papel na resolução da maioria das [...] das outras vezes que falava pra ela não tomar refrigerante, ela brigava comigo, agora não quero que ela brigue mais comigo (S2). Só tem horas que eu fico meio aborrecida, porque têm coisas que ele não pode mais manter, como o sexo, não sei se posso falar... [...] Pra fazer sexo, daí a gente sente falta, porque a gente também ainda é nova (S4). Ao mesmo tempo, exprime que é algo que a incomoda, isto é, uma necessidade humana aflorada em seu ser que a angustia de tal modo que ela se abre para entes não vinculados a seu mundo. Nesta última fala, percebemos a abertura da cuidadora para compartilhar suas angústias vividas em decorrência do diabetes mellitus que afetam a sexualidade do casal. Acreditamos que essa dimensão é pouco abordada nos cuidados às pessoas com DM nas UBS, pois nota-se na linguagem dela certo constrangimento ao falar do assunto, demonstrando que o sexo ainda é um tabu para determinadas famílias. Quanto a essa questão, mencionamos que a disfunção erétil (DE) é definida como uma incapacidade persistente em atingir e manter uma ereção suficiente para a atividade sexual satisfatória. No Brasil, um estudo mostrou a prevalência de 49%, representando 25 milhões de homens. O diabetes mellitus é um fator de risco para DE, tendo associações encontradas frequentemente em inquéritos epidemiológicos, até em estudos prospectivos.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo permitiu descrever como o cuidador familiar percebe o cuidado à pessoa com DM, bem como as dificuldades diárias para o controle da doença, contribuindo para melhor conhecimento dos fatores comportamentais e emocionais que devem ser considerados no planejamento de ações de saúde voltadas para a assistência integral a essa população. Assim, ao iniciar a orientação específica sobre o diabetes mellitus, é necessário conhecer os padrões individuais de cada cuidador familiar, principalmente em relação aos seus sentimentos, angústias, ansiedades, conflitos e necessidades, para que, por meio do vínculo estabelecido, o cuidador e a pessoa cuidada possam, em conjunto, traçar estratégias direcionadas a alcançar o controle metabólico. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 55 Concepções de cuidado dos familiares cuidadores de pessoas com Diabetes Mellitus Dessa forma, ao trabalhar com famílias, é necessário nos prepararmos para ouvi-la, aceitá-la e compreendê-la em sua singularidade, pois somente será possível conhecer e ajudá-la se nos dispusermos a entender a realidade. Apesar de muitos problemas vivenciados nas famílias serem comuns, cada família possui sua individualidade e peculiaridade na forma de (des)conhecer, perceber, sentir e (re)agir diante das situações (in)esperadas. Observamos que as principais dificuldades enfrentadas pelos cuidadores familiares estão relacionadas à intensidade e à gravidade dos sinais e sintomas e aos cuidados diários e constantes, que sobrecarregam esses familiares cuidadores. Por isso, é necessário conhecer as dificuldades com que se defrontam essas famílias juntamente com a pessoa que tem diabetes mellitus, para que, junto com elas, estratégias de cuidado possam ser construídas diante da percepção de cada membro da família de acordo com suas particularidades e especificidades. É preciso, igualmente, desenvolver trabalhos de apoio direcionados a esses familiares inseridos em cada contexto familiar, para que se possa alcançar um planejamento de ações de saúde voltadas para a assistência integral capazes de atender às necessidades dessa clientela. Assim, ao oferecer o cuidado às famílias, o profissional precisa estar atento à unicidade e à individualidade de cada uma delas e considerar que o cuidado precisa ser personalizado; que pode ter alguns pressupostos ou direcionamentos, mas deve estar, fundamentalmente, alicerçado nas necessidades e realidade da família. Ele precisa, ainda, reconhecer que o cuidado cotidiano oferecido pela família aos seus membros no domicílio é carregado de emoções e características peculiares, resultantes das condições culturais, sociais e econômicas. REFERÊNCIAS 1. Sociedade Brasileira de Diabetes. Atualização brasileira sobre diabetes. Rio de Janeiro (RJ): Diagraphic; 2005.140 p. 2. Waldow VR. Cuidar: expressão humanizadora de enfermagem. Petrópolis: Vozes; 2006. 3. Machado ALG, Freitas CHA, Jorge MSB. O fazer do cuidador familiar: significados e crenças. Rev Bras Enferm. 2007; 60(5):530-34. 4. Waidman MAP, Elsen I. Família e necessidades... Revendo estudos. Acta Scient Health Scienc. 2004; 26(1):147-57. 5. Pace AE, Nunes PD, Ochoa-Vigo K. O conhecimento dos familiares acerca da problemática do portador de diabetes mellitus. Rev Latinoam Enferm. 2003; 11(3):312-9. 6. Zanetti ML, Biagg MV, Santos MA, Peres DS, Teixeira CRS. O cuidado à pessoa diabética e as repercussões na família. 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Enferm.;13(1): 49-56, jan./mar., 2009 CUIDAR A FAMÍLIA: DA CONCEPÇÃO À DOCUMENTAÇÃO DOS CUIDADOS* FAMILY CARE: FROM CONCEPTION TO DOCUMENTATION OF CARE CUIDAR A LA FAMILIA: DESDE LA CONCEPCIÓN HASTA LA DOCUMENTACIÓN DE LOS CUIDADOS Maria Henriqueta de Jesus Silva Figueiredo1 Sandra Maria de Jesus Moreira2 RESUMO O desenvolvimento da enfermagem está associado ao progresso da tecnologia. A continuidade de cuidados e a visibilidade consentânea à utilização dos sistemas de informação contribuem, dentre outros fatores, para o desenvolvimento da investigação em enfermagem, paralelamente com a evolução das práticas em todos os contextos onde é exercida. O sistema de saúde assenta-se nos cuidados de saúde primários, sendo os enfermeiros detentores de papel social relevante na promoção da saúde das famílias e da comunidade. Nesse contexto, emergiu a necessidade de desenvolver modelos de enfermagem de cuidados à família passíveis de operacionalizar no sentido de adequálos aos sistemas de informação em uso. Este estudo insere-se num processo de investigação de doutoramento com o objetivo de fazer uma reflexão sobre os padrões de documentação integrados no Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem e discuti-los no contexto dos cuidados de enfermagem de saúde familiar. Utilizando a metodologia de investigação-ação, a amostra foi constituída pelos enfermeiros de um Centro de Saúde da zona norte de Portugal, utilizando-se a técnica de debates em grupos. A incorporação dos padrões de documentação na aplicação informática do sistema de informação foi realizada pelas autoras, a primeira como investigadora e a segunda como coordenadora do Grupo “Reflectir Enfermagem nos Cuidados de Saúde Primários”. Os resultados expressam o conhecimento prático resultante da discussão dos modelos de cuidados. Cremos que uma estrutura de documentação que expresse o modelo (re)construído se constituirá como uma mais-valia na melhoria efetiva dos cuidados de enfermagem centrados na família. Palavras-chave: Enfermagem de Família; Modelos de Enfermagem; Documentação. ABSTRACT Nursing development is mostly connected to technological progress. Gradual care and adequate view on the use of information systems contribute to the development of nursing investigation, in parallel to the praxis evolution wherever they are performed. The Health System is based on primary health care, so nurses have an important social role in promoting health among families and communities. In this context emerged a need to develop nursing models of family care that were able to operate according to the current information systems. This study is part of a PhD project, and intents to reflect over the documentation patterns integrated in the Supportive System of Nursing Praxis as well as to discuss those in the context of the family health care nursing. Using the Investigation-Action method, the representative sample was composed by nurses of a Portuguese Northern Health Centre. The debate technique was applied. The integration of documentation patterns in the computer operation was directed by the authors, the first one as an investigator and the second one as a coordinator of the group “Reflecting over Nursing in Primary Health Care”. The results express the practical knowledge acquired from the healthcare models discussion. We believe that a documentation structure, which expresses the re (composed) model, may be an effective and worthy improvement for the family health care nursing. Key words: Family Nursing; Models, Nursing; Documentation. * 1 2 Este trabalho insere-se na investigação de Doutoramento em Ciências de Enfermagem Enfermagem de Família: um contexto do cuidar, da autora Maria Henriqueta de Jesus Silva Figueiredo. Doutoranda em Ciências de Enfermagem. Mestre em Psicologia Social. Enfermeira especialista em Enfermagem Comunitária. Curso de Terapia Familiar da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem do Porto/Portugal. Enfermeira Especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica. Coordenadora do Grupo “Reflectir Enfermagem nos Cuidados de Saúde Primários”. Elemento de referência nos Sistemas de Informação em Enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários. Enfermeira na Unidade Local de Saúde de Matosinhos – Centro de Saúde de São Mamede de Infesta. Endereço para correspondência: Rua Cruz Malpique, 115, 2º dto. 4460-203, Senhora da Hora, Portugal. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, 49-56, jan./mar., 2009 57 Cuidar a família: da concepção à documentação dos cuidados RESUMEN El progreso de la enfermería está asociado al de la tecnología. La continuidad de cuidados y la visibilidad adecuada a la utilización de los sistemas de información contribuyen, entre otros factores, al desarrollo de la investigación en enfermería, en paralelismo a la evolución de las prácticas en todos los contextos donde ésta se ejerce. El sistema de salud se asienta en los cuidados de salud primarios y los enfermeros desempeñan un rol social relevante en la promoción de la salud de las familias y de la comunidad. En este contexto surgió la necesidad de desarrollar modelos de enfermería de atención a la familia factibles en el sentido de su adecuación a los sistemas de información en uso. Este estudio se inserta en un proceso de investigación de doctoramiento, pretendiéndose hacer una reflexión de los patrones de documentación integrados en el Sistema de Apoyo a la Práctica de Enfermería y la discusión de los mismos en el contexto de la atención de enfermería en salud familiar. Utilizando la metodología de investigación acción, la muestra fue constituida por los enfermeros de un Centro de Salud de la Zona Norte de Portugal, utilizándose la técnica de debates en grupo. La incorporación de los patrones de documentación en la aplicación informática del sistema de información fue realizada por las autoras, la primera como investigadora y la segunda como coordinadora del Grupo “Reflejar Enfermería en los Cuidados de Salud Primarios “. Los resultados expresan el conocimiento práctico resultante de la discusión de los modelos de cuidados. Creemos que una estructura de documentación que exprese el modelos (re)construido podría significar un aporte para la mejora efectiva de los cuidados de enfermería centrados en la familia. Palabras clave: Enfermería de la Familia; Modelos de Enfermería; Documentación. INTRODUÇÃO A enfermagem é exercida numa ampla variedade de contextos, quer no âmbito de cuidados diferenciados, quer no de cuidados de saúde primários. Independentemente do local onde os cuidados de enfermagem são realizados, os fenômenos de interesse particular para os enfermeiros as respostas de indivíduos, famílias e comunidades a problemas de saúde reais e potenciais.1 Nesse contexto, os cuidados prestados a indivíduos, famílias e comunidades reportam à profissão de enfermagem a adotar uma metodologia assistencial e, portanto, ao Processo de Enfermagem. Essa metodologia é compreendida como um instrumento ou modelo metodológico tanto para favorecer o cuidado quanto para organizar as condições necessárias para que o cuidado seja realizado.2 A sua aplicação de modo sistemático, planejado e dinâmico possibilita aos enfermeiros, por um lado, identificar, compreender, descrever, explicar e predizer como os indivíduos/famílias/comunidades, alvo dos seus cuidados, respondem aos problemas de saúde ou aos processos vitais; e, por outro, permite-lhes determinar que aspectos dessas respostas necessitam de cuidados profissionais específicos e de qualidade para alcançar resultados pelos quais, como profissionais na área de saúde, são responsáveis. intervenções e dos resultados de enfermagem, constituiu-se como uma mais-valia na valorização da profissão de enfermagem. No contexto das sociedades atuais, a informação assume uma grande importância pelo que, no âmbito da saúde, denota-se uma preocupação crescente com o desenvolvimento de Sistemas de Informação (SIs) eficientes que permitam a maximização da gestão dos serviços e promovam a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde.4 Nessa perspectiva, os Sistemas de Informação em Enfermagem (SIEs) poder dar resposta ao aumento da quantidade e da complexidade da informação resultante dos cuidados de enfermagem. O Processo de Enfermagem determina a existência de alguns elementos que são inerentes à prática dos enfermeiros: o que fazem (ações e intervenções de enfermagem), tendo como base o julgamento sobre fenômenos humanos específicos (diagnóstico de enfermagem) para alcançar os resultados esperados (resultados sensíveis à ação ou à intervenção de enfermagem).3 A informação, essencial no processo dos cuidados de enfermagem, desde a concepção à documentação deles, implica que os SIs afetem a própria prática de enfermagem.4 Parece-nos que existe nos profissionais de saúde crescente sensibilização, valorização, começando a tornar-se fundamental para estes a utilização dos SIs, contudo, ainda continua a subsistir uma grande necessidade de avanço, no sentido de promover adequadamente a integração dos SIs e o uso da informática para a melhoria da produtividade, qualidade da gestão e dos cuidados de enfermagem. Os enfermeiros, permanentemente, recolhem dados, estabelecem objetivos, definem ações e avaliam o impacto dessas ações sobre a saúde das pessoas. Nessa perspectiva, o contexto da prática depende da aquisição, da análise e da interpretação de informação, havendo necessidade de documentar dados relativos ao processo de tomada de decisão, que, inevitavelmente, condiciona a continuidade de cuidados. O desenvolvimento dos sistemas de classificação dos conceitos da linguagem profissional no âmbito dos diagnósticos de enfermagem e, posteriormente, das Torna-se essencial que os enfermeiros adquiram a capacidade de aceder, analisar e apresentar a informação necessária para a gestão dos cuidados de 58 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 saúde e, por outro lado, consigam manter a influência que a enfermagem tem tido e deverá continuar a ter no contexto dos cuidados de saúde.4 A enfermagem, como qualquer outra disciplina, necessita de produção e de renovação do seu próprio corpo de conhecimentos, o que pode também passar pela utilização de SI, que respondam às necessidades dos profissionais e que deem visibilidade aos cuidados prestados. Nesse sentido, os SIs, associados às novas tecnologias, são imprescindíveis para o desenvolvimento da Investigação em Enfermagem e a Investigação sobre os focos de atenção, intervenções e resultados de enfermagem que permitem sustentar o desenvolvimento da disciplina. Por outro lado, a Ordem dos Enfermeiros5 recomenda que sejam criados SIs para apoio a uma prática de enfermagem científica. Promove a definição de um conjunto mínimo de dados de enfermagem e a normalização dos SIEs e apoia a promoção de estudos sobre a Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE) como a terminologia de referência para os SIEs. A CIPE tem o início do seu desenvolvimento em 1989, com várias versões publicadas até a data (versões alfa, beta, beta 2 e 1.0). Essa classificação é, sem dúvida, uma ferramenta que contribui para a concretização da missão do International Council of Nurses (ICN), no sentido do desenvolver a profissão de enfermagem, permitindo aos enfermeiros descrever, analisar e comparar práticas de cuidados/enfermagem nos níveis local, regional, nacional e internacional. A CIPE 6 foi definida como uma terminologia combinatória para a prática de enfermagem que facilitará o cruzamento de termos usados localmente com as classificações e vocabulários existentes; para além disso foi definida como uma classificação de fenômenos, ações e resultados de enfermagem que descrevem a prática desse grupo profissional. A utilização da CIPE permite, segundo o ICN,6 a concretização de objetivos específicos que visam, no seu conjunto, ao desenvolvimento da profissão, nomeadamente: estabelecer uma linguagem comum para descrever a prática de enfermagem; descrever os cuidados de enfermagem prestados às pessoas (indivíduos, famílias e comunidades) em nível mundial; comparar dados de enfermagem entre populações de clientes, contextos, áreas geográficas e tempo; estimular a investigação em enfermagem mediante a relação com os dados disponíveis nos SIEs e da saúde; fornecer dados sobre a prática de enfermagem de forma a influenciar a formação de enfermeiros e a política de saúde; projetar tendências sobre as necessidades dos clientes, prestação de cuidados de enfermagem, utilização de recursos e resultados dos cuidados de enfermagem. Nesse contexto, a recomendação da Ordem dos Enfermeiros sobre a utilização da CIPE como terminologia de referência nos SIEs vem ao encontro do referido por Silva 7:42 sobre a vantagem da utilização dos meios informáticos na documentação dos cuidados de enfermagem: A utilização das ferramentas informáticas parece anunciar uma nova oportunidade para, em fracções de segundos, se responder a perguntas colocadas aos registos de enfermagem, permitindo a organização, tratamento e gestão dos dados, informação e conhecimento processados na documentação dos cuidados. No entanto, as respostas positivas às perguntas dependem dos dados que residem nos registos de enfermagem e da estruturação dos dados alojados no sistema. O modelo que estrutura os dados no sistema, necessita ser concebido. E só os enfermeiros podem apresentar os modelos de dados que melhor servem as práticas e o desenvolvimento dessas mesmas práticas. A Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM), criada por meio do Decreto-Lei nº 207/99, de 9 de junho, do Ministério da Saúde, desenvolveu e implementou o seu SIE a partir de 2003, designado como Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE), com base na investigação realizada por Sousa4:“O sistema de partilha de informação de enfermagem entre contextos de cuidados de saúde – um modelo explicativo”. Com a utilização dessa aplicação informática, emergiu a necessidade de os próprios enfermeiros assumirem a responsabilidade pelo desenvolvimento do SI e documentação de enfermagem que, para além de contributos para as áreas da gestão, funcionam como promotores reais e efetivos da qualidade dos cuidados de enfermagem. Para tal, foram criados grupos de trabalho que promovem o desenvolvimento dos SIs em uso: “Grupo de Reflexão e Apoio à Prática de Enfermagem” (GRAPE) e “Grupo Refletir Enfermagem nos Cuidados de Saúde Primários” (GRECSP). Foi nesse contexto organizacional que se iniciou, em 2005, um estudo no âmbito das práticas de enfermagem centradas na família como cliente. Esse estudo desenvolvido pela primeira autora, integrado do processo de desenvolvimento de Doutoramento em Ciências de Enfermagem, tem como principal finalidade contribuir para a definição do corpo de conhecimentos de enfermagem na área da enfermagem de família. A enfermagem de família constitui-se, assim, como uma área específica no contexto geral da enfermagem, desenvolvida com base nas teorias da terapia familiar, teorias das ciências sociais da família e de modelos de enfermagem8, dando ênfase às interações dos elementos da família, numa perspectiva sistêmica dos cuidados. Nessa perspectiva, os cuidados de enfermagem são centrados na unidade familiar, enfatizando as respostas da família aos problemas de saúde reais ou potenciais.9 Em Portugal, a família é a unidade de análise privilegiada nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), sendo os seus princípios e objetivos direcionados essencialmente para a saúde familiar. A regulamentação dos Centros de Saúde em 1983 introduziu uma filosofia orientada essencialmente para a saúde familiar, tendo sido normalizados suportes de registro direcionados para a unidade familiar.1 Com o enquadramento legislativo dos CSPs por meio do Decreto-Lei n° 88/2005,12 de 3 de junho, estamos perante um modelo de CSP associado aos cuidados de proximidade, efetivados pelas Unidades de Saúde Familiar (USFs). A formação de equipes de saúde remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 59 Cuidar a família: da concepção à documentação dos cuidados multidisciplinares (enfermeiro, médico, administrativo, psicólogo, nutricionista, etc.) permitirá a melhoria da qualidade dos cuidados prestados às famílias, acompanhadas ao longo do seu ciclo vital. Surge, então, a importância de desenvolver o conceito de enfermeiro de família, baseado num paradigma sistêmico que permita a efetivação da enfermagem de família. A importância do contributo dos enfermeiros no contexto dos CSPs surge evidenciado em vários documentos em nível internacional, como a Saúde 2112 e a Declaração de Munique.13 Contudo, apesar da evolução a nível dos cuidados de enfermagem centrados na família, esta ainda é conceitualizada de forma fragmentada, uma unidade divisível em partes, em que os cuidados de enfermagem continuam dirigidos ao indivíduo.8,14,15 Considerando a pertinência do desenvolvimento prático nessa área e tendo como pressuposto a importância dos SIEs, a investigação em desenvolvimento, de natureza qualitativa, enquadra-se na metodologia de investigação ação. O contexto da investigação é um Centro de Saúde da ULSM, pela sua evolução no nível dos SIEs, conforme descrito. Após a etapa de diagnóstico relativa às representações, descrição dos cuidados de enfermagem focados na família e análise da documentação produzida pelos enfermeiros, foi possível constatar lacunas no processo de cuidar as famílias, desde a concepção à execução deles. Para o planejamento da mudança, definiram-se estratégias no sentido de adotar um modelo de cuidados no âmbito da enfermagem de família e reconstruí-lo de acordo com as características locais. Adotando-se o Modelo de Calgary de Avaliação da Família, 9 a reconstrução e a operacionalização do Modelo de Cuidados à Família ocorreram de janeiro a setembro de 2007, com a interação constante entre os agentes da investigação (os enfermeiros) e a investigadora. Para a definição de subconjuntos diagnósticos, diagnósticos e intervenções, foi utilizada a CIPE, sendo definidas como fundamentais as seguintes áreas de atenção nos cuidados de enfermagem às famílias: Rendimento familiar; Edifício residencial; Precaução de segurança; Abastecimento de água; Animal doméstico; Satisfação conjugal; Planejamento familiar; Adaptação à gravidez; Papel parental; Papel de prestador de cuidados; e Processo familiar. METODOLOGIA O estudo apresentado, integrado numa das etapas da investigação ação Enfermagem de Família: um contexto do cuidar, planejamento da ação, é de natureza qualitativa, centrando-se no modo como os seres humanos interpretam e atribuem sentido à realidade objetiva.16 Utilizou-se a metodologia de investigação-ação visando à implementação de novas práticas nos cuidados à família por meio de um conhecimento prático e o desenvolvimento da teoria. A população deste estudo foi constituída pelos enfermeiros de família de um Centro de Saúde da ULSM, do distrito do Porto, Portugal, sendo obtida a concordância de todos em participarem no estudo. Para a adequação dos padrões de documentação à estrutura do Modelo de Cuidados de Enfermagem à Família, utilizou-se a técnica de debates em grupos.17 RESULTADOS E DISCUSSÃO Conforme referenciado, os padrões de documentação relativos à Avaliação inicial da família foram definidos tendo como base o Modelo Calgary de Avaliação da Família.9 Dessa forma, o menu inicial da estrutura de documentação informática permite visualizar as três dimensões do Modelo (FIG. 1), integradas também no Modelo de Cuidados (re)construído. Se a gestão da informação é “tanto mais eficaz e eficiente se contemplar a globalidade de cuidados”,19:1.006 julgamos ser facilitador da tomada de decisão das prioridades de avaliação da familiar a integração inicial de todas as dimensões do sistema. A inclusão do item “Outras Situações” permitirá registar informações que os enfermeiros considerem pertinente no contexto familiar e que não se enquadrem em nenhum dos itens anteriores. A última fase de preparação para a mudança correspondeu à adequação do modelo (re)construído à estrutura informática do modelo de documentação. A integração dos padrões de documentação na estrutura foi realizada pelas autoras, a primeira na qualidade de investigadora e a segunda, como coordenadora do GRECSP desta Unidade Local de Saúde. Temos como objetivo a apresentação dos padrões de documentação integrados no SAPE e a discussão deles no contexto dos cuidados de enfermagem centrados no sistema familiar. 60 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 FIGURA 1 – As quatro dimensões da Avaliação familiar Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) Para cada uma das dimensões de avaliação foram definidas áreas centrais, estruturadas sequencialmente na aplicação informática, permitindo a sua visualização de forma rápida e clara. Apresentamos como exemplo os ícones e subícones da dimensão estrutural (FIG. 2). Adotando-se uma filosofia interativa no registro de informação decorrente dos cuidados produzidos, elaborou-se um manual de instruções com o objetivo de permitir aos enfermeiros a visualização de todo o processo conceitual, desde a documentação dos dados diagnósticos à avaliação dos resultados produzidos. Dessa forma, os dados documentados nos ícones referentes ao Edifício residencial (FIG. 2) permitem a opinião clínica dos enfermeiros sobre o estado de um fenômeno de enfermagem, 18 especificamente a Precaução de segurança. Essa interação Avaliação/Diagnósticos e intervenções expressa-se em todas as dimensões constituintes dos padrões de documentação integrados na aplicação informática. Assim, por exemplo, no caso de ser documentada a existência de barreiras arquitetônicas e/ou abastecimento de gás e/ou utilização de aquecimento no edifício residencial, os enfermeiros têm como indicação a ativação do fenômeno “Precaução de segurança”. 18 Essa ligação dinâmica permitirá a concretização fundamentada do diagnóstico, que será documentado noutra plataforma da aplicação, designada de Processo de Enfermagem. Os dados diagnósticos que suportam a tomada de decisão sobre a higiene da habitação estão associados à organização e limpeza dela. Quando o enfermeiro considera, pela sua opinião clínica, que a higiene da habitação é deficitária na perspectiva do seu impacto para a saúde da família, ativa o fenômeno “Edifício residencial”18 e, de acordo com o mesmo princípio metodológico, ajuizará sobre esse fenômeno e planejará intervenções adequadas para dar resposta ao diagnóstico formulado. Relativamente a esse fenômeno, adaptou-se “Habitação”, considerado o termo semântico preferido. No decorrer do processo de investigação desenvolvido pela primeira autora, foram definidas as seguintes áreas de atenção com maior relevância para a prática de enfermagem familiar: Precaução de segurança; Rendimentos; Habitação; Abastecimento de água; Animal doméstico; Papel parental; Satisfação conjugal; Planejamento familiar; Papel de prestador de cuidados; e Processo familiar. A integração dessas áreas de atenção como os fenômenos mais frequentes na implementação do Processo de Enfermagem à Família implicou a incorporação deles no programa Saúde Familiar no sistema de informação (FIG. 3). FIGURA 2 – Avaliação familiar: Dimensão estrutural Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) A dimensão estrutural integra as áreas centrais: Tipo de família, Família extensa, Sistemas mais amplos, Classe social, Sistema de abastecimento e Ambiente biológico. FIGURA 3 – Os focos de atenção do programa Saúde Familiar Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 61 Cuidar a família: da concepção à documentação dos cuidados Reportando-nos ao exemplo anterior referente ao foco de atenção “Habitação”, poderemos visualizar (FIG. 4) a agregação da dimensão Conhecimento e os juízos Segurança e Negligência.18 Ao conjunto desses itens designamos de status, pela sua função qualificadora do fenômeno que possibilita a formulação do enunciado diagnóstico. A documentação desses status decorre dos dados diagnósticos obtidos na avaliação inicial, e a sua análise é feita de acordo com indicadores e critérios previamente definidos. – Coping familiar, que integra a dimensão avaliativa “Solução de problemas”, descrita como a capacidade da família de solucionar eficazmente os problemas que identifica.9 – Papéis familiares, que agrupam um conjunto de papéis que os membros exercem no contexto familiar, como o de provedor, de gestão financeira, de cuidado doméstico, dentre outros. Quando os enfermeiros se centram na avaliação do desempenho e fatores de tensão do papel, o sistema de informação ainda lhes permite documentar situações de conflito ou saturação do papel.8 – Crenças familiares, que englobam um conjunto de categorias de crenças, consensualizadas pelos grupos de debate como as de maior influência nos comportamentos expressos pela família nas suas práticas de saúde, de interacção e relação com o meio. FIGURA 4 – Processo de Enfermagem: status do foco de atenção Habitação Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) Talvez o mais inovador e simultaneamente com maior grau de dificuldade tenha sido a discussão processada nos debates de grupo, respeitante à Dimensão funcional expressiva. Esta integra os padrões de interacção familiar, que segundo o MCAF9 engloba as seguintes categorias: comunicação emocional, comunicação verbal, comunicação não verbal, solução de problemas, papéis, influência e poder; crenças; alianças e uniões. A partir da discussão desses conceitos e articulando-os com os focos da prática de enfermagem definidos no ICNP/CIPE, 18 foi possível a sistematização e o reenquadramento de áreas de atenção nessa dimensão, com a respectiva incorporação no sistema informático (FIG. 5). Os utilizadores do programa SAPE visualizam, no momento da documentação, os seguintes ícones: – Escala de readaptação social HR, que corresponde à Escala de readaptação social de Holmes e Rahe. Essa escala possibilita, de acordo com o valor obtido, encontrar uma relação entre os níveis de estresse decorrentes de transições familiares e a probabilidade de surgirem doenças psicossomáticas num ou em vários membros da família.20 A utilização dessa escala permite a identificação de situações geradoras de estresse na família, resultando no planejamento e na implementação de intervenções que visem à capacitação evolutiva do sistema. – Comunicação familiar, que se subdivide nos itens: Comunicação emocional, Comunicação verbal/ não verbal e Comunicação circular. 62 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 – Relação dinâmica familiar, que aglomera um conjunto de dados diagnósticos inseridos em categorias: Influência e poder; Alianças e uniões; Coesão e adaptabilidade da família; Funcionalidade da família – Percepção dos membros. A avaliação da Relação dinâmica, área de atenção de enfermagem associada à liberdade de expressar emoções, afeição aberta entre as pessoas e flexibilidade interaccional, 18 contribui para o conhecimento aprofundado de aspectos específicos do contexto familiar, direcionados para a identificação das suas forças e dos seus recursos. FIGURA 5 – Avaliação familiar: Dimensão funcional expressiva Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) Julgamos pertinente a discussão sobre a organização da informação diagnóstica relativa ao “Coping familiar” (FIG. 6). O Coping constitui-se como a disposição cognitiva, afetiva e comportamental para gerir o estresse que se sucede às exigências e pressões do quotidiano, no sentido da mudança que permita a gestão dos fatores que sobrecarregam ou excedem os recursos familiares.8,18 Tendo como pressupostos os conceitos sistêmicos na abordagem da família, os debates de grupo assumiram-se nitidamente como espaços reflexivos sobre a tomada de decisão dos enfermeiros no que concerne à identificação da capacidade da família de definir estratégias direcionadas à solução de problemas. A capacidade na gestão dessas estratégias de solução de problemas permitirá que o sistema familiar evolua positivamente na sua trajetória. Nesse contexto e recorrendo à visualização dos padrões de documentação (FIG. 6), incorporados no sistema de informação, os enfermeiros podem documentar objetivamente: quem na família habitualmente identifica os problemas; quem tem a iniciativa para resolvê-los; se existe discussão sobre os problemas identificados; se todos os membros da família demonstram satisfação com as estratégias adotadas no sentido da discussão e resolução dos problemas; recursos externos para resolução de problemas; e, ainda, a percepção da família sobre as estratégias adotadas ao longo da sua história como família. problemas e toma iniciativa para solucioná-los e se em todos os itens referenciados, como dados de avaliação, a resposta da família é positiva. Por sua vez, caso em algum desses itens se obtenha uma resposta negativa, indiciadora de coping não eficaz, o “Processo familiar”, como área de atenção central, será qualificado como disfuncional. O enfermeiro poderá, então, planejar com a família estratégias de intervenção que visem à capacitação desta na definição e gestão de estratégias adequadas na resolução de problemas. A avaliação de resultados, numa etapa posterior, possibilitará o registro de informação que fundamente a mudança do status de “não eficaz” para eficaz”. Esse processo documental permite a continuidade de cuidados centrada na família. FIGURA 7 – Processo de Enfermagem: status do foco de atenção “Processo familiar” Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) Para todas as áreas de atenção englobadas como dimensões da área de atenção central “Processo familiar”, utilizaram-se os mesmos princípios, tendo como base os indicadores e critérios definidos no percurso da investigação. CONSIDERAÇÕES FINAIS FIGURA 6 – Avaliação familiar: Dimensão funcional expressiva Fonte: SAPE: Centro de Saúde S. Mamede Infesta (ULS Matosinhos) Mantendo a sequência conceitual no âmbito da avaliação da categoria Coping familiar, visualizamos no menu informático do Processo de Enfermagem do programa de Saúde da Família os status definidores dessa área de atenção (FIG. 7). O Coping familiar constitui uma das dimensões avaliativas do “Processo familiar”, tendo como critério predefinido para a sua qualificação: Coping familiar eficaz se, pelo menos, um membro da família identifica habitualmente os Em Portugal, os Cuidados de Saúde Primários mantêmse como a base do sistema de saúde. Os enfermeiros, integrados em equipes multidisciplinares, necessitam cada vez mais de desenvolver competências na gestão da informação para que consigam manter a influência da enfermagem no contexto dos cuidados de saúde. Situando-se a investigação na etapa de implementação das mudanças da prática, decorrentes da (re)construção do Modelo de Cuidados de Enfermagem centrado na família, a adequação desse ao Sistema de Informação em uso na instituição emergirão os ganhos em saúde sensíveis aos cuidados de enfermagem. Reflete-se nos padrões apresentados a metodologia do Processo de Enfermagem, que se constitui como pedra basilar dos cuidados que os enfermeiros desenvolvem no âmbito da enfermagem de família, uma vez que, como remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 63 Cuidar a família: da concepção à documentação dos cuidados instrumento tecnológico ou modelo metodológico, orienta a prática profissional assumindo as características de uma prática reflexiva. Por meio desses três elementos – diagnóstico, intervenção e resultados –, os enfermeiros conseguem refletir os cuidados que executam, constituindo esses elementos um modo de fazer e um modo de pensar a prática da Enfermagem que buscam, habilidades e capacidades cognitivas (pensamento, memória, raciocínio), psicomotoras (físicas) e afetivas (emoções, sentimentos, crenças e valores), além de conhecimento e perícia no uso das técnicas de resolução de problemas e de liderança na implantação e execução do plano de intervenção. Essas habilidades, capacidades, conhecimento e perícia ajudam a determinar o que deve ser feito, por que deve ser feito, por quem deve ser feito, como deve ser feito e que resultados são esperados com a execução da ação/ intervenção de enfermagem (para que deve ser feito). Se a definição das áreas de intervenção na família permitiu o desenvolvimento de estratégias que conduzissem à produção de resultados, a documentação da informação produzida nos cuidados às famílias constitui contributo valioso para a melhoria da qualidade dos cuidados de enfermagem de família. Há uma crescente sensibilização e valorização dos enfermeiros no que se refere à documentação de dados que tornem visíveis todo o processo de avaliação e intervenção familiar. A preocupação da ULSM em aperfeiçoar os sistemas de informação por meio da discussão das práticas e da informação documentada permitiu a concretização da fase correspondente à integração dos padrões de documentação, que emergirão da investigação na aplicação informática. Sendo o processo de investigação de natureza complexa, baseado na construção de um modelo de cuidados com a implicação dos destinatários, os resultados apresentados evidenciam, desde, já o conhecimento prático construído. REFERÊNCIAS 1. 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Missão para os cuidados de saúde primários. Linhas de Acção Prioritária para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários. Lisboa: MCSP; 2006. 12. Organização Mundial de Saúde. Saúde 21: uma introdução ao enquadramento político da saúde para todos na Região Europeia da OMS. Loures: Lusociência; 2002. 13. Ordem dos Enfermeiros. A cada família o seu enfermeiro. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros; 2002. 14. Friedman MM. Family nursing: research, theory and practice. Stamford: Appleton & Lange; 1998. 15. Elsen I, Marcon SS, Silva M, organizadora. O viver em família e sua interface com a saúde e a doença. Maringá: Eduem; 2002. 16. Bogdan R, Biklen S. Investigação qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora; 1994. 17. Flick U. Métodos Qualitativos na investigação Científica. Lisboa: Monitor – Projectos e Edições; 2005. 18. Conselho Internacional de Enfermagem. Classificação Internacional para Prática de Enfermagem CIPE Beta 2. 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Enferm.;13(1): 57-64, jan./mar., 2009 ANÁLISE DAS BASES DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS PARA O ENSINO DA SISTEMATIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA ENFERMAGEM ANALISYS OF PEDAGOGIC-DIDATIC BASIS TO IMPROVE THE TEACHING SYSTEMATIZATION OF NURSING ASSISTENCE ANÁLISIS DE LAS BASES DIDÁCTICAS PEDAGÓGICAS PARA LA ENSEÑANZA DE LA SISTEMATIZACIÓN DE LA ASISTENCIA DE ENFERMERÍA Oriana Deyze Correia Paiva Leadebal1 Wilma Dias de Fontes2 Maria Mirian Lima da Nóbrega3 Galdino Toscano de Brito Filho4 RESUMO Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva de abordagem qualitativa cujo objetivo é analisar os métodos de ensino e as abordagens pedagógicas que fundamentam o processo ensino-aprendizagem na disciplina Metodologia da Assistência de Enfermagem em três instituições de Ensino Superior em uma capital do Nordeste brasileiro, com base na técnica de análise de conteúdo de Bardin. Os resultados evidenciaram que o processo de enfermagem tem sido trabalhado por meio dos fundamentos pedagógicos tradicionais e cognitivistas, com a expressividade acentuada da abordagem construtivista, embora tenham sido identificados indícios da abordagem comportamentalista. Quanto aos métodos de ensino, evidenciaram-se métodos comuns instrumentalizando o ensino no contexto da disciplina, cujas expressões demonstram a utilização sendo efetivada em momentos variados, quanto às etapas do processo de enfermagem, e com fins distintos. Conclui-se que o trabalho educativo exige dos docentes não apenas o domínio dos conteúdos que serão matéria do processo de ensino-aprendizagem, mas também as competências pedagógicas necessárias para conduzir tal processo em consonância com o novo paradigma pedagógico do ensino superior; além da importância de os docentes reconhecerem que qualquer abordagem pedagógica e suas respectivas estratégias e métodos de ensino são voltadas para o aprendizado dos discentes, porém costumam ser responsáveis pela construção de outras capacidades individuais e coletivas que devem ser ponderadas na perspectiva do que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Enfermagem e as exigências do mundo contemporâneo. Palavras-chave: Processos de Enfermagem; Ensino; Enfermagem; Instituições de Ensino Superior. ABSTRACT This is an exploratory and descriptive study with a qualitative approach that aims to analyze the teaching methods and the pedagogical approaches that support the process of teaching-learning regarding the Methodology of nursing assistance. It was carried out in three higher education institutions located in a principal city in northeast Brazil. The Bardin´s content analysis technique was applied. The results show that the process of nursing has been based on traditional and cognitive pedagogical ground, with an expressive constructivist approach and evidences of a behavioral approach. In relation to the teaching methods, results show that common methods usually guide teaching in the subject content, and these expressions seem to be effective in several occasions, even in different moments of the nursing process, and with different goals. We conclude that the educative work demands not only the domain of the content that will be taught, but also the pedagogic competence to run the process according to the new pedagogic paradigm of higher education. It is also important that professors recognize that any pedagogic approach, as well as its respective strategies and teaching methods aim at the student’s learning process. Nevertheless, they are usually responsible for the construction of other individual and collectives skills that must be taken into consideration in the prospects established by the national curricular guidelines for the nursing graduation courses and for the demands of our contemporary world. Key words: Nursing Process; Teaching; Nursing; Higher Education Institutions. 1 2 3 4 Mestre em Enfermagem. Docente do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e Administração do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba-PB. E-mail: [email protected]. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado, e do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e Administração do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba-PB. E-mail: [email protected]. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado, e do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública e Psiquiatria do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba-PB. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]. Doutor em Educação. Docente do Departamento de Habilitações Pedagógicas (DPH). Presidente do Sindicato dos Docentes da UFPB. E-mail: [email protected]. Endereço para correspondência: Oriana Deyze Correia Paiva Leadebal: Rua Luiz de França Pontes, n° 48, Jardim Oceania, Bessa, João Pessoa-PB. CEP: 58.037730. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, 57-64, jan./mar., 2009 65 Análise das bases didático-pedagógicas para o ensino da sistematização da assistência enfermagem RESUMEN Se trata de una investigación exploratoria descriptiva de enfoque cualitativo con el objetivo de analizar los métodos de enseñanza y los aportes pedagógicos que fundamentan el proceso enseñanza- aprendizaje en la asignatura Metodología de la Asistencia de Enfermería en tres instituciones de Enseñanza Superior de una capital del Noreste brasileño, a partir de la técnica de análisis de contenido de Bardin. Los resultados evidenciaron que el proceso de enfermería ha sido trabajado por medio de los fundamentos pedagógicos tradicionales y cognitivistas, con la expresividad acentuada del enfoque constructivista, habiendo sido identificados indicios del enfoque comportamentalista. En cuanto a los métodos de enseñanza se observaron métodos comunes como instrumentos para la enseñanza de la asignatura, con expresiones que demuestran que su uso se concreta en distintos momentos y con distintos fines de las etapas del proceso de enfermería. Se concluye que la tarea educativa exige de los docentes no sólo dominio de los contenidos que serán materia del proceso de enseñanza y aprendizaje, sino también competencias pedagógicas para conducir dicho proceso en consonancia con el nuevo paradigma pedagógico de la enseñanza superior. Es importante, además, que los docentes reconozcan que cualquier enfoque pedagógico, así como sus respectivas estrategias y métodos de enseñanza dirigidos hacia el aprendizaje de los aprendices suelen, sin embargo, ser responsables de la construcción de otras capacidades individuales y colectivas que han de ser ponderadas dentro de la perspectiva de las recomendaciones de las Directrices Curriculares Nacionales para los Cursos de Licenciatura en Enfermería y las exigencias del mundo contemporáneo. Palabras clave: Procesos de Enfermería; Enseñanza; Enfermería; Instituciones de Enseñanza Superior. INTRODUÇÃO A enfermagem é uma profissão milenar que despontou a partir de 1950 – no Brasil, mais precisamente na década de 1970 – com o objetivo de se libertar do paradigma dominante que até então a subjugava, caracterizando-a como profissão auxiliar das práticas médicas. Em decorrência disso, ela busca, a partir dessa década, estabelecer-se como uma profissão com bases científicas, delimitando seu objeto de estudo e sua metodologia de trabalho, com vista à definição de sua autonomia e de seu reconhecimento no campo das ciências da saúde. Respaldada por um acervo científico crescente, a enfermagem contemporânea se faz presente em todas as áreas do cuidado à saúde, desde a sua promoção, com forte atuação no processo educativo, até nos serviços de tratamento e reabilitação. Nessa trajetória, o uso do processo de enfermagem tem sido uma ferramenta importante como instrumento do cuidar, cujo objetivo consiste no favorecimento da prática de enfermagem, uma vez que fornece subsídios metodológicos para que o cuidado ocorra.1 Nesse sentido, consiste num método que proporciona organização e direcionamento às atividades de enfermagem. Impulsionado pelo reconhecimento da necessidade de um processo de cuidar crítico, reflexivo e alicerçado em preceitos científicos, o processo de enfermagem apresenta-se, nesse sentido, como um instrumento fundamental para a execução de uma prática profissional sistemática e comprovadamente mais eficaz. É com base nesse instrumento que se busca investigar (coletar dados), diagnosticar, planejar, implementar ações e avaliar-lhes os resultados, para atender aos problemas individuais da clientela, alvo dos seus cuidados, considerando-a como elemento único e constituído por esferas ou áreas de necessidades distintas, cuja relação resulta no sujeito biopsicossocioespiritual. 66 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 Diante do exposto e considerando o processo de enfermagem como essência e instrumento da profissão, é notória a necessidade de que os estudantes de enfermagem se familiarizem e o adotem como base para sua prática profissional2, o que requer esforços das instituições formadoras na articulação desse referencial metodológico com a construção das competências saber, fazer e ser da profissão. As referidas competências têm caracterizado os discursos nas reformas dos projetos pedagógicos das instituições de ensino e dos cursos de graduação em enfermagem, respaldados pela Lei n° 9.394/96, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), e de forma mais incisiva por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior (CNE/CES) por meio da Resolução nº 3, de 7 de novembro de 2001, nas quais o termo “competência” deve ser compreendido como a capacidade de mobilizar conhecimentos teóricos e experiências profissionais e pessoais para atuar diante das diversas demandas das situações de trabalho.3 As Diretrizes Curriculares definem os princípios, fundamentos, condições e procedimentos na formação educacional que devem ser considerados pelas instituições do sistema de educação brasileiro, com especificações para cada área de ensino. Essa iniciativa flexibilizou a construção das matrizes curriculares dos cursos de graduação mediante a valorização do aprender a aprender, do aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos. Uma leitura das competências e habilidades específicas necessárias à formação do enfermeiro, expressas pelas Diretrizes Curriculares, revela alguns aspectos que respaldam o exercício de uma assistência de qualidade. Dentre esses aspectos, está o reconhecimento do indivíduo em suas dimensões e particularidades relativas à fase evolutiva que experiência; a consideração do contexto social como influenciador do estado de saúde- doença, bem como da importância de se reconhecer a saúde em seu aspecto amplo; a valorização da integralidade da assistência à saúde, da preparação do profissional para atender às demandas de saúde, expressas pelo perfil epidemiológico local; a valorização do trabalho multiprofissional e da assistência sustentada por fundamentos científicos, organizada, humanizada e individual, no sentido de responder às necessidades da clientela.3 Nesse contexto, urge a necessidade de considerar o ato de ensinar não como a transferência de saberes, mas como a percepção de um processo de ensino-aprendizagem que é construído por seus participantes,7 os quais devem ser respeitados na complexidade de suas diferenças já no planejamento do ensino, utilizando estratégias que otimizem o raciocínio crítico-reflexivo dos discentes e considerem, no planejamento da formação profissional, as demandas sociopolíticas. A leitura das Diretrizes explicita os ideais da educação voltados para a construção de competências e habilidades, cujas referências incidem sobre as capacidades necessárias ao desempenho prático que se espera do profissional. Um processo contínuo de construção que não se limita à formação acadêmica e responde pelas demandas de ações experienciadas no exercício profissional.4 Este é o momento que vivenciamos: o da demanda de inovações no âmbito da formação profissional, permeada por questionamentos sobre os métodos de ensino mais adequados ao paradigma emergente que permitam “[...] reservar ao cérebro humano o que lhe é particular, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória”.8 Ressalte-se que o emprego do termo “competências” na Resolução n° 03/2001 CNE/SES reflete as capacidades de fazer (o fazer profissional) com base em conhecimentos (saberes) necessários, os quais, no conjunto, permitem ao enfermeiro atuar com competência, agora compreendida como um conjunto de saberes e fazeres de boa qualidade.5 Considerando o caráter polissêmico do termo em discussão, é oportuna a preocupação de que esse não seja, no contexto do planejamento do ensino superior, associado unicamente ao desenvolvimento de capacidades técnicas (do saber fazer), vinculadas ao exercício profissional e a importância de se estender sua compreensão às esferas psicossocioculturais inerentes ao processo saúde-doença. Destaque-se que a compreensão do termo “competência” na complexidade das instâncias mencionadas só se materializa quando os indivíduos são colocados a serviço de situações complexas. Os dois aspectos abordados levam, então, autores nacionais à adoção das expressões “competência profissional” e “competência técnica” no intuito de levar à primeira o entendimento complexo diferenciado do simples tecnicismo atrelado à segunda, haja vista que o fazer exige mobilização do saber e do pensar.6 A instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais aponta para a necessária reformulação dos projetos pedagógicos, os quais devem valorizar o aprendizado em detrimento do ensino; a necessidade do reconhecimento do discente como sujeito da aprendizagem e participante importante na construção do conhecimento, uma exigência também da repercussão atual da globalização sobre o construto teórico das ciências da saúde e da rapidez com a qual as informações tecnológicas e científicas desenvolveram-se e difundiram-se nessa área, tornando inviável o domínio e, muitas vezes, a apreensão de tantos conhecimentos. Nesse sentido, o ritmo acelerado da produção científica e a crescente exigência de profissionais crítico-reflexivos (expressos na Lei n° 9.394/96 como uma finalidade da educação superior) somam-se para justificar os questionamentos atuais sobre a ineficácia do ensino academicista com o saber centrado no professor. Questionam-se os benefícios da ênfase nos conteúdos e na valorização dos resultados de um aprendizado homogeinizador. Diante do exposto e cientes das exigências legais para o exercício da profissão, bem como da importância do processo de enfermagem na prática da enfermagem contemporânea como instrumento racionalizador da assistência e valorização profissional e, também, por consideramos o processo de enfermagem como elemento essencial à prática de enfermagem, fomos instigados a refletir sobre a seguinte questão norteadora: quais são as bases pedagógicas e metodológicas que subjaz ao ensino do processo de enfermagem nas instituições de ensino superior de graduação da área no contexto da disciplina Metodologia da Assistência de Enfermagem ou disciplina correlata? Este artigo tem como objetivo analisar os métodos de ensino que instrumentalizam o ensino na disciplina Metodologia da Assistência de Enfermagem e as abordagens pedagógicas que fundamentam o processo ensino-aprendizagem na referida disciplina. METODOLOGIA Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva de abordagem qualitativa, tendo como cenário três instituições de ensino superior situadas no município de João Pessoa-PB, sendo uma pública e duas privadas, onde são ministrados cursos de graduação em Enfermagem, reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC). Todas atenderam ao critério de contar com turmas cursando o último período letivo curricular. Compuseram a população deste estudo seis docentes que lecionavam a disciplina Metodologia da Assistência de Enfermagem. Para a seleção da amostra, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: docentes com experiência de pelo menos um período de ensino na disciplina e que aceitaram colaborar com o estudo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e como critérios de exclusão da referida amostra o envolvimento direto ou indireto na construção do presente estudo e o fato de terem lecionado na disciplina há mais de cinco anos. Considerando os referidos critérios, compuseram o grupo amostral três docentes das três instituições de ensino, identificadas, respectivamente, como docente da remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 67 Análise das bases didático-pedagógicas para o ensino da sistematização da assistência enfermagem Instituição A (DA), docente da Instituição B (DB) e docente da Instituição C (DC). Para a coleta do material, foi utilizada a técnica da entrevista gravada e estruturada, utilizando-se um roteiro de entrevista, que contemplava determinados aspectos de interesse do estudo. As entrevistas foram coletadas em abril de 2007, em dias, locais e horários escolhidos pelos docentes colaboradores, tendo sido utilizados na ocasião, um gravador, fitas e baterias previamente testadas. O material produzido foi, em seguida, submetido ao procedimento de edição, que consistiu na transcrição das narrativas para textos escritos, os quais foram submetidos aos procedimentos metodológicos da análise temática de conteúdo proposta por Bardin. 9 Seguindo as orientações do referencial metodológico citado, procedeu-se à exploração do material com a codificação das mensagens e à construção das unidades temáticas (por recorte), ou seja, procedeu-se à descoberta dos núcleos de sentido de cada narrativa, os quais foram enumerados utilizando-se regras como presença, frequência e co-ocorrência dos núcleos de sentidos. Esses sentidos foram, em seguida, clarificados com vista aos objetivos propostos e agregados, resultando na construção de duas categorias e oito subcategorias fundamentadas por autores brasileiros. O estudo foi desenvolvido em consonância com a Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde,10 com o Protocolo nº 1004/07 no Comitê de Ética em Pesquisa do CCS/UFPB. RESULTADOS E DISCUSSÃO O primeiro foco de análise incidiu sobre os métodos de ensino, definidos por Libâneo11 como os processos e ações desenvolvidas pelos docentes e discentes, na perspectiva do trabalho com os conteúdos (bases conceituais) a fim de alcançarem os objetivos do ensino. A classificação utilizada embasou-se na perspectiva da relação professoraluno, subsidiando a construção da categoria MÉTODO DE ENSINO, constituída por sua vez, por quatro subcategorias, designadas Método de exposição pelo professor, Método de trabalho independente, Método de elaboração conjunta e Método de trabalho em grupo (QUADRO 1). QUADRO 1 – Subcategorias e respectivas unidades temáticas pertinentes à categoria “Métodos de ensino”. João Pessoa, 2007 CATEGORIA – Métodos de ensino SUBCATEGORIAS Método de exposição pelo professor Método de elaboração conjunta Método de trabalho em grupo Método de trabalho independente 68 UNIDADES TEMÁTICAS O conteúdo era sempre exposto... em todas as etapas do processo... utilizamos aulas expositivas... (DA)Apresento todas as etapas... mostrando instrumentos utilizados por vários serviços... detalho duas teorias... mais utilizadas na prática... apresento as taxonomias... aí vou explicar para eles... eu trabalho então com aulas expositivas... e trago textos... é uma exposição dialogada... (DB) As aulas teóricas, a maioria delas é expositiva porque é um assunto muito novo para os alunos... mostramos todas as classificações. (DC) Eu começava a chamar os alunos pelos nomes e fazia com que cada um concordasse ou discordasse com o que eu estava falando para que houvesse uma discussão em sala de aula... (DA) Fizemos uma simulação... depois, nós utilizávamos textos para discussões em sala de aula... (DA)Eu trago cinco textos que são distribuídos entre cinco grupos, os quais fazem um debate entre os componentes, apresentam um resumo daquilo que foi discutido... Inicialmente um membro do grupo faz uma narração... em seguida eles apresentam uma dramatização... (DB)Solicitamos do aluno que ele, em grupo, estude uma teoria... eles trazem... para que possamos fazer um debate... trazemos casos de papel que são distribuídos entre duplas... e em cima desses casos eles vão destacar os problemas... depois... vão agrupar... e vão tentar elaborar um diagnóstico de enfermagem. (DC) Foi feita uma história... para que cada aluno traçasse, diagnóstico e planejamento, incluindo os resultados esperados e as intervenções. (DA) Faço alguns exercícios... trazendo pequenos casos e em cima desses, os alunos extraem os problemas... identificam os diagnósticos e daí montam o plano... a partir do momento em que concluímos cada etapa, vou apresentando exercícios... inicialmente alguns estudos dirigidos... (DB) Então cada um com um instrumento de coleta de dados em mãos... vai simular... uma coleta de dados... cada um elabora um histórico de enfermagem... eles vão destacar os problemas que eles encontram, depois vão agrupar esses problemas e elaborar um diagnóstico de enfermagem... (DC) remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 Identificou-se no discurso das três docentes das unidades temáticas pertinentes à categoria “Método de exposição pelo professor”, caracterizado pela ênfase do protagonismo docente no processo de ensino, mediante a exposição, pelo professor, das bases conceituais que, em sua maioria, são reconhecidas como novas para os discentes, os quais assumem, então, o papel de espectadores.11 Ressalte-se o fato de o referido método ser reconhecido como um importante subsídio para a obtenção de conhecimentos, principalmente aqueles poucos experienciados pelos discentes, mas que requerem, para a obtenção de bons resultados, a mobilização interna destes últimos, suficiente para instigá-los a se concentrarem e a pensar. Daí a importância de o docente buscar a articulação da exposição dos conteúdos às estratégias dos demais métodos de ensino. É importante destacar que, se é objetivo comum a todos os docentes é a construção de significados pelos discentes com base nos conteúdos (bases conceituais) ensinados, 12 a adoção exagerada de métodos de exposição pelo professor, característica da educação bancária,7 tende a ser responsável pelo desinteresse dos discentes pelos conteúdos ensinados, o que afeta, em graus variados, a sua disposição para aprender e construir significados. Afinal conforme explicam as autoras, tal construção é um fenômeno de criação interna, resultante da convergência de inúmeros fatores de natureza particular e interpessoal. Cabe ao docente, em seu planejamento de ensino, selecionar métodos variados que respeitem os discentes como sujeitos, para que possam ser obtidos resultados eficazes. Outra unidade temática, identificada somente com base na narrativa da DA, comprova, ainda, a utilização do Método de elaboração conjunta, no qual o cenário do processo de ensino é partilhado pela atuação simultânea do docente e do discente, e cujos benefícios derivam da sinergia da atuação desses dois atores na construção do conhecimento, que, por sua vez, carrega o potencial de ser assimilado ativamente ao suscitar a atividade mental dos discentes em vez de simplesmente instigar-lhes as atitudes receptivas. O referido método pode ser aplicado em vários momentos no processo de ensino, desde que seja respeitado um conjunto de condições prévias que inclui: a incorporação, pelos discentes, dos objetivos a atingir e o domínio de conhecimentos básicos ou a disponibilidade de conhecimentos e/ou experiências formais ou informais deles, os quais servem de ponto de partida para o trabalho conjunto.1. As unidades presentes no discurso das três docentes revelaram a categoria Método de trabalho em grupo, caracterizado pelo emprego de instrumentos e/ou estratégias que instigam o trabalho coletivo, seja ele cognitivo ou psicomotor, cujas contribuições perpassam pelo estímulo ao “aprender a conviver”. Esta última, uma competência expressa nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em enfermagem, é considerada, pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, como um dos quatro pilares sobre os quais deve ser construída a educação dos indivíduos no século em que vivenciamos.3,13 Identificou-se, ainda, na narrativa das três docentes a utilização do Método de trabalho independente. Tal método efetiva-se por meio de atividades dirigidas e orientadas pelo docente, mas implementadas pelos discentes de modo relativamente independente e criativo, sendo empregado quando se busca estimular a atividade mental dos discentes, para que estes apliquem os conhecimentos trabalhados e as habilidades desenvolvidas sem a participação direta da figura do docente.11 As unidades temáticas que auxiliaram na identificação da subcategoria acima referida constituem atividades denominadas “tarefas de assimilação do conteúdo”, as quais representam atividades de aprofundamento e aplicação dos temas trabalhados em momentos anteriores ao de sua utilização. Tais atividades podem contribuir para o ensino do processo de enfermagem, uma vez que permitem, dentro do possível, a construção de habilidades no contexto de algumas etapas do processo de enfermagem, como a de levantamento de dados, diagnósticos de enfermagem e a de planejamento.11 Reitera-se, oportunamente, o caráter predominantemente teórico da disciplina de Metodologia de Assistência de Enfermagem, o que vem dificultar, e por vezes inviabilizar, a construção de habilidades que requerem oportunidades práticas de aprendizado. Nesse sentido, ao propor aos discentes a construção de um histórico de enfermagem, a identificação de diagnósticos de enfermagem e a construção de um plano de cuidados coerente com os problemas identificados, utilizando casos hipotéticos, o docente deve buscar representar para eles situações de demanda de cuidados de enfermagem sobre as quais possam aplicar o conhecimento trabalhado em aulas anteriores e, dentro do possível, pleitear a construção de habilidades vinculadas a tais conhecimentos. Tendo em vista que as bases pedagógicas da prática educativa se verificam como ação consciente, intencional e planejada no processo de formação humana,11 buscou-se, ainda, identificar os fundamentos ideológicos que permeiam o processo de ensinoaprendizagem na disciplina em estudo com base nos próprios discursos das docentes, mediante a investigação da natureza das finalidades da educação, sob as quais fomentavam a construção de competências com os discentes, futuros enfermeiros, na perspectiva de prepará-los para desempenhar certos papéis na vida social. Esse fato subsidiou a construção da categoria “Abordagens Pedagógicas”, da qual fizeram parte quatro subcategorias, designadas Pedagogia tradicional, Pedagogia comportamentalista, Pedagogia cognitivista e Pedagogia construtivista (QUADRO 2). remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 69 Análise das bases didático-pedagógicas para o ensino da sistematização da assistência enfermagem QUADRO 2 – Subcategorias e respectivas unidades temáticas pertinentes à categoria denominada abordagens pedagógicas. João Pessoa, 2007 SUBCATEGORIAS • Pedagogia tradicional • Pedagogia comportamentalista • Pedagogia cognitivista • Pedagogia construtivista CATEGORIA – abordagens pedagógicas UNIDADES TEMÁTICAS Eles não conhecem... então buscamos dar uma aula, e na aula seguinte estar sempre buscando a anterior... o conhecimento deles não é absorvido totalmente... eu levei todos os impressos para o histórico de enfermagem... coloquei alguns dados importantes... utilizamos aulas expositivas... porque existe a dificuldade de conhecimento dos alunos... é um conteúdo do que eles não têm uma boa noção... o que eles traziam verdadeiramente pra nós de aprendizagem? Pouca coisa!... não havia conteúdo produtivo... nós (professores) estabelecíamos os critérios de como os exercícios deveriam ser realizados... imaginei que seriam muitas notas baixas em relação ao conhecimento deles... foram realizadas 5 atividades, a outra foi só para ajudá-los... (DA) Sessenta a setenta por cento da turma tem um bom aproveitamento... há aqueles que sentam mais na frente... participam mais da aula... são mais assíduos, há aqueles que ficam mais na retaguarda... chegam atrasados... perdem exercícios... e por natureza são desmotivados... isso prejudica um pouco a avaliação deles e consequentemente o aprendizado... sou apaixonada pela metodologia da assistência... busco passar isso para eles ... a maioria das minhas turmas tem tido um bom resultado... (DB) Tentamos passar para o aluno como é que ele vai coletar os dados junto ao paciente... dizemos que é muito importante ele usar os instrumentos básicos para o cuidar... então passamos algumas técnicas para os alunos... (DC) Fui memorizando cada aluno... e fazia com que cada um concordasse com o que eu estava falando, ou discordasse disto... chamava outra pessoa que estava menos interessada para dizer se concordava ou não com aquele outro colega... e a partir do momento em que eles tinham o receio de serem chamados passavam a prestar mais atenção à aula para que quando eu fizesse a pergunta eles soubessem responder... (DA) Foram trabalhadas as histórias, a partir de onde eles levantavam e identificavam os problemas e traçavam os diagnósticos de enfermagem... (DA) Trago uma síntese grande... eles trazem... a história de um paciente... vão montar um plano e apresentar em sala de aula como eles chegaram àqueles problemas... aos diagnósticos, e apresentam os planos de cuidados contendo diagnósticos resultados esperados e intervenções... (DB) Utilizamos... o raciocínio diagnóstico... onde buscamos que o aluno raciocine a partir de algum problema que levamos para ele, para que eles elaborem os diagnósticos de enfermagem... nas atividades práticas... o professor está próximo do aluno, tirando dúvidas..., identificando o que ele realmente está compreendendo e o que é que ele está sentindo de dificuldade, então eu considero esta nota... a mais importante... (DC) Sempre procuro atrelar a disciplina às demais disciplinas que fazem uso do processo... aí eles vão construindo gradativamente... eles estão em contato com os pacientes do hospital, já tiveram este primeiro encontro, e já começam a fazer determinadas reflexões. Trabalhamos muito... de modo discursivo e reflexivo... é uma atividade muito rica onde eles conseguem associar ... como utilizar aquele instrumento na prática; e muitos deles apresentam... a forma correta de utilizar aquele instrumento e a forma incorreta; e aí eles mesmos fazem o paralelo... (DB) Fazemos ... debates... utilizamos aulas problematizadoras, onde buscamos do aluno o que é que ele tem de conhecimento para irmos completando com os conteúdos trazidos pela disciplina... quando eles vão para o hospital é quando iremos ver... o que é que eles aprenderam ... é muito diferente quando os alunos se deparam com o problema (real) e não com o problema que lhe trouxeram (fictício)... o que colabora com a aplicação dos conteúdos que eles aprendem em Metodologia da Assistência de Enfermagem é o fato de ... aproveitarmos o estágio das outras disciplinas ... onde eu tenho a oportunidade de cobrar o processo de enfermagem... (DC) Nesse contexto de análise, foram evidenciadas a ênfase e a frequência do uso de aulas expositivas, da verbalização dos conteúdos de ensino (bases conceituais), o trabalho centrado no docente, a postura receptiva do discente e o ensino homogeinizador como aspectos emergentes, em proporções distintas, nos discursos das três docentes participantes do estudo, fato que comprovou o uso da pedagogia tradicional14 embasando o ensino do processo de enfermagem. 70 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 A pedagogia tradicional, também denominada pedagogia da transmissão15 e educação bancária7, é caracterizada pela ênfase no intelecto e na transmissão de conteúdos como objetivos centrais da educação e pelo destaque na atuação do professor, responsável supremo pela exposição e reflexão dos conteúdos.14 Tais características podem ser observadas nos discursos de DB e DC (QUADRO 2). Trata-se de uma concepção pedagógica caracterizada por uma relação professor-aluno verticalizada, por valorizar objetivos educacionais que almejam o cumprimento de uma sequência lógica dos conteúdos e por fomentar o desenvolvimento de atividades excessivamente expositivas e informativas que objetivam, principalmente, o disciplinamento das mentes dos indivíduos. 14 Nessa perspectiva, a aprendizagem é compreendida como produto da retenção dos excessivos conteúdos ensinados e garantida pela repetição de exercícios e recapitulação desses conteúdos.11,14,16 O referido aspecto está evidente no discurso de DA ao descrever suas experiências de ensino na disciplina (QUADRO 2). Os processos, avaliativos, por sua vez, buscam a exatidão da reprodução, pelos alunos, dos conteúdos apresentados por meio do professor, dos livros didáticos ou outros veículos, o que ficou evidente no seguinte trecho do discurso de DA (QUADRO 2). A pedagogia tradicional é uma das mais antigas concepções pedagógicas que têm resistido consideravelmente ao tempo e à evolução no contexto da educação, já que é possível identificar seus indícios, ainda hoje, em grande parte das escolas.11 Não obstante, no ensino em enfermagem, as abordagens tradicionais ainda são bastante comuns, apresentando-se por vezes como majoritárias.17 Tal aspecto pode ser considerado como reflexo do modelo vocacional nigtingaleano, utilizado na formação dos enfermeiros desde a Escola Ana Néri, em 1923, cujos preceitos centrais consistiam na valorizavam da formação moral e na rigidez disciplinar, aspectos requeridos pela formação do enfermeiro à época.16 É oportuno enfatizar que as consequências individuais da pedagogia tradicional, também conhecida como “pedagogia da transmissão”, é a formação de sujeitos receptivos, passivos e com elevado potencial para memorizar conteúdos; sujeitos de atitudes acríticas, com fragilidades no tocante à originalidade e à criatividade, e desinteressados pela realidade que os cerca,15 como evidencia o discurso de DB (QUADRO 2). Em síntese, a referida abordagem pedagógica tende a instigar a construção de competências distante das almejadas pela formação do enfermeiro moderno, não condizendo com a construção de uma postura reflexiva diante dos problemas que venham a surgir, como orientam as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Enfermagem. 3 Esse fato corrobora a concepção de que as instituições de ensino superior em enfermagem têm avançado na concepção crítico-reflexiva em relação à sociedade, revelando-se, entretanto, conservadoras na maneira como trabalham os conteúdos.18 Há de se considerar, contudo, que apontar as repercussões negativas da pedagogia tradicional ou não-construtivista na formação educacional dos indivíduos não significa condenar o uso da linguagem no processo de ensino aprendizagem pelo fato de esta consistir no instrumento mais valorizado na referida pedagogia, pois a linguagem configura-se, por vezes, como o único meio para se dispor de certas informações.19 Nesse sentido, é imperativo que os docentes busquem utilizá-la em momentos estritamente oportunos, tendo sempre, de modo consciente, as limitações e as possibilidades de cada estratégia de ensino no contexto da produção de conhecimentos. Partindo dessa compreensão, urge a importância de se admitir que muito dos resultados negativos atribuídos à pedagogia tradicional são, propriamente, fruto do mau emprego de suas estratégias, resultando no empobrecimento dos objetivos finais da referida pedagogia, os quais permeiam, essencialmente, o estímulo ao raciocínio, o treino da mente e da vontade dos indivíduos em formação.19 Nesse sentido, é importante que a abordagem tradicional não seja a única concepção que norteie o processo de ensino na disciplina em foco, para que se possa desfrutar, sem exageros, aqueles instrumentos otimizadores do ensino do processo de enfermagem, caracterizados como tradicionais. Ressaltem-se, a título de exemplificação, os benefícios do uso da exposição dialogada dos conteúdos (bases conceituais), comum nessa pedagogia, no contexto da disciplina foco de análise, tendo em vista a novidade que as bases conceituais por ela trabalhadas podem apresentar aos discentes, que, na maioria das vezes, não têm experiência clínica anterior. Há, contudo, a necessidade da compreensão de que a exposição dos conteúdos não implica, necessariamente, a passividade dos discentes, os quais devem ter suas experiências de vida, carregadas de aprendizados informais, consideradas e valorizadas durante as aulas. Afinal, o processo de enfermagem envolve, conforme já explicitado, um método de resolução de problemas, e métodos de trabalho e/ou organização de atividades são utilizados e necessários ao processo de trabalho de todas as profissões e atividades exercidas pelo homem. 20 Para tanto, cabe ao educador buscar estratégias que mantenham o respeito pelos saberes dos educandos, tornando os conteúdos a serem trabalhados mais significativos para eles.7 O QUADRO 3 revela, ainda, unidades temáticas identificadas no discurso de DA que orientaram a identificação de outra concepção pedagógica alicerçando a prática de ensino em Metodologia da Assistência de Enfermagem: Pedagogia comportamentalista.14 Nessa pedagogia, também conhecida pela literatura como behaviorista ou pedagogia do condicionamento, os objetivos centrais da educação são a produção de comportamentos, reconhecidos como manifestações empíricas e operacionais da aquisição de conhecimentos, atitudes e destrezas.15 Em síntese, a referida pedagogia concentra-se no empreendimento de um modelo de conduta por meio de um jogo eficiente de estímulos e recompensas capaz de condicionar o aluno a emitir remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 71 Análise das bases didático-pedagógicas para o ensino da sistematização da assistência enfermagem respostas desejadas ao professor, atitudes evidentes no discurso de DA (QUADRO 2). A situação descrita permite inferir que o fato de a docente chamar à discussão os alunos que estivessem conversando inoportunamente pode ser compreendido como um ato punitivo para os discentes que assim procediam, os quais estavam sendo condicionados a não mais manter “conversas paralelas” durante as aulas. Além disso, o discurso reforça a possibilidade de condicionamento dos discentes, uma vez que tal estratégia era utilizada para estimular a atenção durante as aulas, bem como o estudo prévio dos conteúdos. A atenção às aulas e o estudo prévio dos conteúdos tornava-se, na ocasião, fato importante para que o discente pudesse eximir-se perante os demais colegas de suas falhas, evitando qualquer tipo de constrangimento. Fica notório que, nessa concepção, o discente é condicionado a emitir respostas com base no mecanismo estímulo-resposta-reforço, de modo que, por fim, é condicionado a apresentar comportamentos almejados sem a necessidade de um estímulo contínuo, ou seja, tal abordagem apresenta como objetivo fundamental a construção do aprendizado por meio, também, de condicionamento subconsciente.15 Nesse sentido, destaque-se que a ocorrência de tal fato, no contexto do ensino superior, significa que os indivíduos são estimulados a aprender por temerem uma nota baixa ou diante do risco de serem constrangidos perante os colegas, e não pelo prazer de aprender ou por reconhecerem a importância do aprendizado para sua formação profissional. Admite-se, ainda, como consequência do uso da pedagogia comportamentalista, a formação de sujeitos ativos, com alta eficiência no aprendizado de dados e processos, porém, individualistas, competitivos, pouco originais e criativos, acríticos, dependentes de rotinas impostas e com dificuldades de pensar holística e dialeticamente.15 No contexto dos benefícios para o ensino do processo de enfermagem, o emprego da pedagogia em discussão é útil, no sentido de investir nas capacidades técnicas associadas à aplicação do processo – um método sistemático de ações que envolvem o trabalho investigativo e interpretativo de dados e informações com vista ao planejamento e à implementação de uma assistência de enfermagem voltada para as necessidades da clientela. Não obstante, tal pedagogia torna-se oportuna perante o ensino dos procedimentos e das técnicas, os quais, em geral, são estruturados numa sequência de ações para que os discentes memorizem e demonstrem habilidades programadas.17 Contudo, ressalte-se, como consequência negativa do comportamentalismo no ensino dessa disciplina, o tecnicismo atrelado ao emprego do processo de enfermagem, o que, por vezes, tem seu potencial racional, científico, criativo e individualizador da assistência ofuscado pelo desenvolvimento da técnica pela técnica. 72 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 As repercussões negativas mencionadas resguardam importantes prejuízos para a aplicação do processo de enfermagem, por não permitir ao acadêmico a apropriação dos reais objetivos e benefícios de sua aplicação. Esse fato pode estar contribuindo para a construção de concepções que configuram esse valioso instrumento como uma metodologia mecanicista e objetiva, que fragmenta, rotula e despersonaliza o cuidado ao cliente.20 Para evitar o mecanicismo e garantir a prestação de cuidados individualizados, recomenda-se que o processo de enfermagem esteja alicerçado em um referencial teórico coerente com o ambiente de cuidado, clientela atendida e perspectiva da enfermagem.22 Outra subcategoria identificada no contexto das abordagens pedagógicas utilizadas na disciplina analisada consistiu na Pedagogia cognitivista, uma abordagem que se caracteriza pela valorização das atividades cognitivas no processo do ensinoaprendizagem e pela busca constante de um aprendizado ativo, com vista à independência intelectual do discente. Ressalte-se, ainda, que tal abordagem busca um ensino baseado no ensaio e no erro, utilizando como estratégias a pesquisa, a investigação e a solução de problemas pelos discentes.14 Tais atitudes são evidenciadas nos discursos das docentes das três instituições de ensino. A abordagem cognitivista se expressa nas experiências das docentes colaboradoras do estudo no momento em que se propõem identificar os diagnósticos de enfermagem utilizando histórias clínicas ou problemas. A atividade proposta envolve a ativação dos processos cognitivos dos discentes, os quais, para identificar os referidos diagnósticos, recorrem, necessariamente, ao uso dos conhecimentos trabalhados para levantar os dados relevantes no contexto da história ou problema, interpretá-los, agrupá-los e, em seguida, denominar o diagnóstico de enfermagem utilizando uma taxonomia. Destaque-se, ainda, que a referida pedagogia traz como concepção de aprendizagem um estado atingido pelo discente por meio do exercício operacional da inteligência que, por sua vez, só se efetiva quando ele próprio elabora seus conhecimentos. Nessa perspectiva, evidencia-se a valorização não apenas dos resultados obtidos, mas, sobretudo, dos processos cognitivos experienciados pelos discentes durante a resolução dos problemas. Afinal, na abordagem em questão, consiste em objetivo central do ensino o processo, e não o resultado da aprendizagem.14 O trecho da narrativa de DB (QUADRO 2) exemplifica o comentário. A avaliação busca, nessa perspectiva, verificar, por meio da observação em situações variadas, se o discente adquiriu noções, se é capaz de realizar operações e relações entre os elementos identificados ou propostos. Afinal, a ênfase do processo avaliativo consiste na capacidade do aluno de integrar informações e processálas,14 fato comprovado por meio da narrativa de DC (QUADRO 2). Quanto à repercussão desta abordagem para o ensino em enfermagem, dois aspectos merecem ser comentados: o primeiro refere-se à contribuição da referida pedagogia na formação de enfermeiros mais críticos, profissionais mais aptos a planejar e desenvolver suas ações na perspectiva da focalização de objetivos específicos para cada cliente, o que tende a conferir maior qualidade resolutiva à assistência de enfermagem; o segundo remete ao fomento do pensamento crítico, conforme preconiza as Diretrizes Curriculares, no contexto das competências gerais necessárias à formação do enfermeiro, contidas no artigo 4º, incisos I e II, os quais descrevem, respectivamente, as competências no contexto da atenção à saúde e da tomada de decisões.3 No contexto do ensino da disciplina Metodologia da Assistência de Enfermagem, que envolve a construção de competências e habilidades para a aplicação do processo de enfermagem, o uso de estratégias que instigam o raciocínio é condição sine qua non. Afinal, os três elementos inerentes à prática de enfermagem, que envolvem diagnóstico, intervenção e resultados, constituem um modo de pensar e de fazer a prática da enfermagem que demandam capacidades cognitivas, além das capacidades técnicas e interpessoais.23,24 Por fim, identificou-se, ainda, na conjuntura dos fundamentos ideológicos da práxis do ensino em Metodologia da Assistência, a pedagogia sociocultural, a qual se estabelece sob a concepção de que ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção.7 Nesse sentido, optou-se por denominar a subcategoria de Pedagogia construtivista em vez de denominá-la sociocultural. O homem é concebido, na categoria mencionada, como sujeito de sua própria educação e, integrado ao seu contexto, é estimulado a não somente refletir sobre ele, mas a se comprometer com ele (transformá-lo). Para tanto, as atividades são desenvolvidas com o objetivo de instigar os indivíduos na formação da consciência de sua historicidade com base na reflexão da realidade que o cerca. Nesse sentido, a educação é compreendida como um fenômeno inacabado, ocorrendo enquanto processo, cujo contexto deve necessariamente ser levado em consideração. 14 Essa perspectiva de construção da aprendizagem como um processo contínuo é valorizada no discurso de DB (QUADRO 2). Consiste, portanto, preceito fundamental desta abordagem o conhecimento construído a partir da relação dialógica entre os sujeitos envolvidos no processo – educador e educando – numa relação recíproca. Nessa perspectiva, valorizam-se as experiências dos educandos no processo de ensino, cujo foco permeia não a transferência de informações e conhecimentos prontos, como ocorre na pedagogia tradicional, denominada bancária 7 , mas suscita questionamentos, cujas finalidades buscam não necessariamente respostas certas, mas originais.14,15 Tais interesses são expressos nos discursos de DB e DC (QUADRO 2). Quanto às estratégias compatíveis com a abordagem pedagógica em questão, destacam-se as atividades problematizadoras, utilizadas, na perspectiva do estímulo à reflexão sobre a realidade, à superação da relação opressor-oprimido, do respeito à autonomia do educando e do fomento do diálogo.14 Os indícios das atividades que induzem à reflexão dos conteúdos pelos discentes estão expressos na narrativa de DB e DC (QUADRO 2). Em torno desse movimento dinâmico e dialético entre o fazer, o pensar e o pensar o fazer é que incidem os benefícios do uso da referida pedagogia na formação do enfermeiro e, em especial, no ensino do processo de enfermagem. Afinal, o uso do referido instrumento ou modelo metodológico, quando aplicado com vista à orientação da prática profissional da enfermagem assume, por si, as características de uma prática reflexiva, uma vez que sua execução implica a elaboração constante e interativa de questionamentos importantes como: o que estou observando aqui e o que isso significa? Que julgamentos estou fazendo e por meio de que critérios? O que estou fazendo ou o que estou propondo que seja feito e por quê? Há alguma ação alternativa além dessa que estou realizando ou que estou propondo que seja feita?23 É na perspectiva da realização desses questionamentos que o processo de enfermagem configura-se como um modo de pensar e de agir dinâmicos e que ocorre em espiral ascendente e recorrente, levando a mudanças na prática a que se propõe a nova geração do processo de enfermagem.23 CONSIDERACÕES FINAIS Diante do exposto, pode-se inferir que o processo de enfermagem tem sido trabalhado, na maioria absoluta das instituições envolvidas no estudo, por meio dos fundamentos pedagógicos tradicionais e cognitivistas (DA, DB, DC), com a expressividade acentuada da abordagem construtivista (DB e DC), tendo sido identificados indícios da abordagem comportamentalista (DA) que, apesar de estar evidente na narrativa de apenas uma docente, apresenta grande influência sobre a prática de ensino dela. É oportuno destacar que, nas instituições B e C, a sinergia das abordagens tradicional, cognitivista e construtivista, tendo em vista seus respectivos resultados para a formação de adultos, representa um fato importante que pode estar contribuindo positivamente para o ensino do processo de enfermagem nos cursos de graduação ministrados pelas instituições de ensino participantes do estudo. Tais abordagens, desde que utilizadas sem exageros, suscitam a construção de competências importantes para o processo de enfermagem, uma área que envolve a avaliação e o diagnóstico de respostas humanas, bem remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 73 Análise das bases didático-pedagógicas para o ensino da sistematização da assistência enfermagem como a avaliação das ações de enfermagem. Tais ações são consideradas complexas ao requerer conhecimento teórico, experiência prática e habilidade intelectual, técnica e de interação interpessoal.23 Nesse sentido, fica evidente, além da compreensão de que a formação do profissional de enfermagem transcende os conteúdos estudados e sobrevive às transformações constantes nos cenários dos equipamentos e da produção material, a certeza da necessidade da seleção de metodologias pedagógicas críticas que possibilitem o questionamento da realidade, capazes de estimular a construção de sujeitos críticos, reflexivos, interpretativos e dinâmicos no seu meio; capazes, portanto, de desenvolver uma prática cuidativa que expressem os modos de fazer – padrões do conhecimento – em sua inteireza e amplitude, em concordância com o que recomenda a Resolução nº 3 do CNE/SES. Para tanto, torna-se imperativo investir em modelos de ensino baseados em competências, nos quais são estabelecidos objetivos que devem ser alcançados pelos discentes, com possibilidades de avaliação das competências durante todo o processo do alcance de tais objetivos, o que requer atenção individualizada por parte do docente no acompanhamento de cada um, respeitando-se as particularidades quanto ao tempo requerido no alcance dos objetivos previstos, conforme orientam a LDBEN e, mais especificamente, as Diretrizes Curriculares Nacionais. É oportuno acrescentar que o cenário mencionado só será possível com investimentos que contemplem mais do que reformismos; revoluções ideológicas e normativas, desde os projetos políticos pedagógicos até as práticas instituídas e utilizadas cotidianamente pelos docentes devem ser repensadas. Quanto aos aspectos normativos mencionados, julgamos que o primeiro passo foi dado, uma vez que instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais e a consequente autonomia relativa das instituições de ensino superior na construção de suas matrizes curriculares. Cabe, então, aos sujeitos que pensam e fazem as referidas instituições, ousadia e responsabilidade no empreendimento da citada revolução, fomentados por suas escolhas ideológicas. Quanto às responsabilidades dos docentes, é imprescindível que estes possam refletir sobre as concepções pedagógicas, para tornar consciente a teoria educacional que orientará sua práxis, utilizando como parâmetro o perfil do enfermeiro a ser formado, a natureza da disciplina e sua posição no contexto curricular, os objetivos educacionais da disciplina, suas próprias concepções pessoais e as características dos discentes com os quais partilharão as responsabilidades na construção de aprendizados. Cabe enfatizar a importância de os docentes se engajarem em modelos educacionais que valorizam a construção e a adequada avaliação dos aspectos científicos, éticos, pessoais e estéticos vinculados à essência da profissão, o que aponta para o fato de que o trabalho educativo exige dos docentes não apenas o domínio dos conteúdos que serão matéria do processo de ensino-aprendizagem, mas também as competências pedagógicas necessárias para conduzir tal processo em consonância com o novo paradigma pedagógico do ensino superior. Destaque-se, com base nos resultados revelados e na sua respectiva discussão, que qualquer abordagem pedagógica, assim como suas estratégias e métodos de ensino, é voltada para o aprendizado dos discentes. No entanto, os docentes devem atentar para o fato de que, além desse resultado, elas costumam ser responsáveis pela construção de outras capacidades individuais e coletivas que devem ser ponderadas na perspectiva do que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Enfermagem e as exigências do mundo contemporâneo. REFERÊNCIAS 1. Garcia TR, Nóbrega MML. Sistematização da assistência de Enfermagem: reflexões sobre o processo. In: 52 Congresso Brasileiro de Enfermagem, 2000; Olinda, Recife-PE. Recife: ABEn-Seção-PE; 2002. v.1, p. 231-43. 2. Paul C, Reeves, JS. Fundamentos da prática profissional. In: George, JB. Teorias de enfermagem. 4ª ed. Porto Alegre (RS): Artmed; 2000. p. 21-32. 3. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES n. 03, de 07 de novembro de 2001. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Conselho Nacional de Educação [online]. Brasília; 7 nov. 2001. [Citado em: 2006 jan. 02]. 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Enferm.;13(1): 64-75, jan./mar., 2009 75 Traço e estado de ansiedade de estudantes de enfermagem na realização de uma prova prática TRAÇO E ESTADO DE ANSIEDADE DE ESTUDANTES DE ENFERMAGEM NA REALIZAÇÃO DE UMA PROVA PRÁTICA TRAIT AND STATE OF ANXIETY AMONG NURSING STUDENTS DURING A PRACTICAL TEST TRAZO Y ESTADO DE ANSIEDAD DE ALUMNOS DE GRADO DE ENFERMERÍA AL REALIZAR UNA PRUEBA PRÁCTICA Mariana Deienno Luis dos Santos1 Luzia Elaine Galdeano2 RESUMO Neste estudo, teve-se como objetivo identificar o nível de traço e de estado de ansiedade, bem como os sentimentos dos alunos de graduação em enfermagem antes da prova prática da disciplina Semiologia e Semiotécnica, e correlacionar o nível de ansiedade encontrado com o desempenho na prova. O estudo foi desenvolvido em uma instituição particular de ensino superior do município de São Paulo. A amostra foi constituída por 45 alunos da 2ª série do Curso de Graduação de Enfermagem. Para a coleta de dados foi utilizado o Inventário de Ansiedade TraçoEstado de Spielberg, Gorsuch e Lushene (1970). Os resultados desse estudo foram: a maioria dos alunos apresentou médio nível de traço (89%) e de estado (64%) de ansiedade; os sentimentos relatados com maior frequência pelos alunos foram ansiedade (44,2%) e medo (17,4%). O teste de correlação de Pearson não mostrou relação significativa entre a nota da prova prática e o nível do estado de ansiedade dos alunos. Os alunos demonstraram preocupação e ansiedade diante das técnicas que poderiam ser exigidas na prova prática, porém foram capazes de lidar com seus sentimentos e criar mecanismos de enfrentamento apropriados de forma a amenizar os efeitos negativos da ansiedade e da tensão vivenciadas. Palavras-chave: Estudantes de Enfermagem; Ansiedade; Avaliação Educacional. ABSTRACT This study aims to identify the state-trait anxiety level and the different feelings of nursing students before a practical test of semiology and semiotechnic and to compare the level of anxiety with the performance in the test. The study took place at a private nursing faculty of Sao Paulo, SP, Brazil. Forty five students from the 2nd year of the Nursing Faculty of the Israeli Hospital Albert Einstein were evaluated. Data was accessed by the Spielberg, Gorsuch and Lushene’s (1970) State-Trait Anxiety Inventory. Results showed that most pupils presented average level of anxietytraces (89%) and state (64%). The most frequent reported feelings were anxiety (44.2%) and fear (17.4%). Pearson’s correlation test did not show significant relation between the anxiety-state of the students and their grades on practical test. We conclude that students were worried and anxious about the imminent evaluation of their practical skills. However, they were able to deal with these feelings and to create efficient confrontation mechanisms to avoid the potential negative effects of excessive anxiety and nervousness. Key words: Students Nursing; Anxiety; Educational Measurement. RESUMEN Con este trabajo se ha buscado identificar el nivel de trazo y de estado de ansiedad y los sentimientos de los alumnos de grado en Enfermería antes de la prueba práctica de la materia semiología y semiotecnia y compararlo con el nivel de la prueba. El estudio fue desarrollado en un instituto particular de educación superior del municipio de São Paulo. La muestra estuvo constituida por 45 alumnos de 2o. año de Enfermería. Para la recogida de datos fueron utilizados el Inventario Trazo-Estado de Ansiedad de Spielberger, Gorsuch y Lushene (1970). Los resultados indicaron que la mayoría de los alumnos presentaban nivel medio del trazo de ansiedad (89%) y estado (64%); los sentimientos relatados con mayor frecuencia por los alumnos fueron ansiedad (44%) y miedo (17,4%); la prueba de correlación de Pearson no mostró relación significativa entre la calificación de la prueba práctica y el nivel del estado de ansiedad de los alumnos. A pesar de estar preocupados y ansiosos con las técnicas que podían exigirse en la prueba práctica, los alumnos fueron capaces de controlar sus sentimientos y construir mecanismos para enfrentarlos de forma adecuada y minimizar los efectos negativos de ansiedad y tensión. Palabras clave: Estudiantes de Enfermería; Ansiedad; Evaluación Educacional. 1 2 Enfermeira formada pela Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein (FEHIAE). Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/Escola de Enfermagem da USP. Docente da FEHIAE. E-mail:[email protected]. 76 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 INTRODUÇÃO O ingresso à faculdade constitui uma fase marcante para os jovens, uma vez que exige ajustes e adaptações para que haja um bom desempenho acadêmico. 1 As mudanças exigidas nessa nova fase, acrescidas do estresse e da ansiedade vivenciada pelos alunos, principalmente por causa das provas, podem interferir no sucesso escolar. A ansiedade pode ser descrita como reação natural que impulsiona o ser humano a alcançar seus objetivos. Esse estado emocional pode tornar-se patológico e repercutir de forma negativa se vivenciado excessivamente e por longos períodos. A ansiedade patológica, ao invés de contribuir para o confronto da situação, limita, dificulta e, muitas vezes, impossibilita a capacidade de adaptação e de enfrentamento.2,3 Spielberg et al.4 descreveram e diferenciaram dois tipos de ansiedade: o estado de ansiedade e o traço de ansiedade. Segundo esses autores, estado de ansiedade refere-se a estado momentâneo, transitório, caracterizado por tensão, apreensão e por elevação das atividades do sistema nervoso autônomo, dependendo da percepção da situação, sendo mais alto o nível de estado de ansiedade quando a situação é percebida como ameaçadora.4 O traço de ansiedade está relacionado à personalidade da pessoa e refere-se às diferenças de reação diante das situações percebidas como ameaçadoras com aumento do estado de ansiedade. Assim, pessoas que possuem alto traço de ansiedade tendem a perceber maior número de situações como perigosas ou ameaçadoras e, consequentemente, a responder com frequente aumento do estado de ansiedade.4 A relação de eventos estressantes com o desenvolvimento de transtornos, como a ansiedade e a depressão, vem sendo estudada.5 Sabe-se a realização de provas ou exames e a apresentação de trabalhos constituem situações estressantes para os alunos, sendo muitas vezes fatores de risco para o desenvolvimento da ansiedade. Vários pesquisadores têm se preocupado em identificar a ansiedade de alunos em diferentes situações, bem como a interferência desse estado emocional no desempenho escolar deles. 1,6-10 Tendo como base teórica a psicologia cognitiva fundamentada na teoria do processamento da informação, Costa e Boruchovith6 verificaram as relações entre o uso de estratégias de aprendizagem e a ansiedade de alunos do ensino fundamental de uma escola pública de Campinas. Carvalho et al.7 identificaram o traço e o estado de ansiedade de estudantes de enfermagem adiante da primeira instrumentação cirúrgica. Farah9 utilizou o Inventário da Ansiedade Traço-Estado (IDATE) para medir a ansiedade dos alunos durante o preparo de medicamento para administração por via parenteral. A ansiedade é um sentimento muito frequente entre os alunos do ensino superior. Segundo Melo, 11 os melhores alunos são os que mais apresentam crises de ansiedade, uma vez que possuem grandes expectativas e são mais exigentes em relação ao desempenho escolar. No estudo de Pereira et al.,1 os distúrbios de ansiedade (fobia social, ansiedade aos exames, ansiedade generalizada e outras perturbações de ansiedade) foram os diagnósticos mais frequentes nas consultas de psicologia realizadas nos serviços de apoio psicopedagógico para os alunos de todas as faculdades da Universidade de Coimbra. Em estudo realizado por Carvalho et al.,7 no qual foi investigada a ansiedade dos alunos ao iniciar a prática de administração de medicamento, verificou-se que 90% dos alunos apresentaram esse estado emocional, que interferiu de forma negativa no desempenho deles. Identificou-se que os fatores que geraram a ansiedade foram: o medo de errar, a falta de experiência e de destreza manual e o desconhecimento da droga. Segundo os autores,7 a ansiedade, ao mesmo tempo em que acarreta tensão, estresse e desconforto físico e mental, faz com que o aluno tenha mais interesse em aprender e a estudar. A grade curricular do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein inclui disciplinas básicas e disciplinas profissionalizantes. A disciplina Semiologia e Semiotécnica é a primeira disciplina profissionalizante, ministrada no primeiro semestre do segundo ano e tem como objetivos ensinar ao aluno os conceitos e as habilidades fundamentais para o atendimento às necessidades humanas básicas do homem adulto, incentivar o raciocínio clínico e desenvolver habilidades psicomotoras, mediante o ensino e o treinamento das técnicas para o atendimento de enfermagem às necessidades físicas e emocionais do paciente. Para tanto, exige como pré-requisitos as disciplinas básicas como Anatomia, Fisiologia, Bioquímica, dentre outras. Levando em consideração as evidências científicas da interferência da ansiedade no desempenho dos alunos em diferentes tarefas, bem como o relato de muitos alunos quanto ao nervosismo e à ansiedade, que atrapalham o raciocínio e a memória no momento de uma prova, realizou-se este estudo, com a finalidade de identificar o nível de ansiedade e o sentimento do aluno ao realizar a prova prática de Semiologia e Semiotécnica. Optou-se por estudar esse fenômeno nessa disciplina porque ela inicia a aproximação do aluno com a sua realidade profissional e também por apresentar alto percentual de reprovação. OBJETIVOS • Identificar o nível do traço e do estado de ansiedade e os sentimentos manifestados por alunos de graduação em Enfermagem antes da prova prática da disciplina de Semiologia e Semiotécnica. • Correlacionar o nível de ansiedade do aluno com o desempenho na prova prática. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 77 Traço e estado de ansiedade de estudantes de enfermagem na realização de uma prova prática CASUÍSTICA E MÉTODO Delineamento do estudo Trata-se de um estudo prospectivo, transversal, descritivo-exploratório, com abordagem quantitativa. Local de estudo e amostra O estudo foi realizado na Faculdade de Enfermagem do Hospital Israelita Albert Einstein (FEHIAE), uma instituição particular situada no município de São Paulo. A amostra foi constituída por 45 alunos matriculados na 2a série do Curso de Graduação de Enfermagem da FEHIAE em 2007. Foram excluídos da amostra os alunos reprovados na disciplina de Semiologia e Semiotécnica em 2006, por já terem vivenciado a experiência da prova prática. Instrumentos de coleta de dados Para a coleta de dados, foi utilizada a versão em português do Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE) de Spielberger et al.4, traduzido por Biaggio e Natalício.3 As autoras elaboraram uma questão aberta para a identificação do sentimento do aluno antes de realização da prova prática. O IDATE possui duas escalas distintas: uma para identificar o traço e a outra, o estado de ansiedade. Cada uma dessas escalas é constituída por 20 questões. As possibilidades de respostas variam de 1 a 4, sendo: 1 = quase nunca; 2 = às vezes; 3 = frequentemente; e 4 = quase sempre. Para cada uma das escalas o sujeito é instruído a ler cada um dos itens e assinalar a resposta que melhor corresponde ao estado dele. A somatória dos valores obtidos em cada resposta (escore final) varia de 20 a 80 pontos e corresponde ao nível de ansiedade, sendo que de 20 a 40 pontos equivalem a baixo nível de ansiedade; 41 a 60 pontos, a médio nível de ansiedade; e 60 a 80 pontos, a alto nível de ansiedade. Proteção aos sujeitos do estudo Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein sob o Processo n° 07/546. Os sujeitos assinaram voluntariamente duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram esclarecidos que poderiam abandonar a qualquer momento o estudo sem nenhum prejuízo, bem como que os resultados encontrados seriam mantidos em sigilo e sem qualquer interferência nas atividades acadêmicas deles. 78 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 Procedimento de coleta de dados A coleta de dados foi realizada em maio de 2007, após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição na qual o estudo foi realizado, mediante o seguinte procedimento: as pesquisadoras abordaram os alunos na sala de aula em um período anterior ao início da disciplina de Semiologia e Semiotécnica e os indagaram sobre o desejo de participar voluntariamente do estudo. Mediante resposta positiva, foi entregue ao aluno a primeira parte do instrumento de coleta de dados. A pesquisadora forneceu as instruções necessárias para o preenchimento do instrumento e aguardou para recolhê-lo. Essa primeira etapa teve como objetivos caracterizar a amostra e identificar os níveis de traço de ansiedade. Em um segundo momento, minutos antes da realização da prova prática da disciplina de Semiologia e Semiotécnica, as pesquisadoras aplicaram a segunda parte do instrumento de coleta de dados aos alunos que consentiram previamente em participar do estudo. O objetivo dessa etapa foi identificar os níveis do estado de ansiedade. Análise dos dados Os dados obtidos foram analisados seguindo o referencial metodológico de Spielberg et al.4 Os dados referentes aos sentimentos dos alunos foram analisados, categorizados e apresentados em frequências absolutas e relativas. Para análise comparativa entre o desempenho do aluno na prova prática e o nível de ansiedade estado dele, foi realizado o teste de correlação de Pearson. RESULTADOS E DISCUSSÃO Participaram do estudo 45 alunos, sendo 40 (88,8%) do sexo feminino e 5 (11,2%) do sexo masculino, com idade média de 23 anos. A versão traduzida do Inventário de Traço de Ansiedade3 foi aplicada por Andrade et al. 12 em estudantes brasileiros para avaliação de suas propriedades psicométricas. O estudo de Andrade et al.12 mostrou que o inventário constitui um instrumento consistente e que o nível de traço de ansiedade foi mais alto em estudantes do sexo feminino, solteiras e com mais de 30 anos de idade. A TAB. 1 mostra a distribuição dos alunos que participaram do estudo, segundo os diferentes níveis de traço e de estado de ansiedade. TABELA 1 – Níveis de traço e de estado de ansiedade de alunos – maio, 2007 De acordo com a TAB. 1, observa-se que 40 (89,0%) alunos apresentavam médio nível de traço de ansiedade. Considerando a definição de traço de ansiedade, pode-se dizer que a maioria dos alunos tem tendência moderada de apresentar elevações dos níveis de ansiedade em situações ameaçadoras. O estado de ansiedade, mensurado minutos antes da realização da prova prática da disciplina de Semiologia e Semiotécnica, apresentou variação entre baixo (identificado em 16 alunos) e médio nível (identificado em 29). Apesar da tensão e da apreensão normalmente relatadas por parte dos alunos que realizam essa prova prática, não foram identificados, no estudo, o estado de alto nível de ansiedade. No estudo realizado por Carvalho et al., 7 algumas hipóteses foram apresentadas para justificar a ausência de alunos com estado de alto nível de ansiedade. Segundo essas autoras, alguns aspectos auxiliam o aluno a enfrentar as situações reconhecidas como ameaçadoras, como no caso da execução de uma prova prática ou o início de um estágio. Dentre esses aspectos, destacam-se: o treinamento em laboratório com supervisão de docente experiente, a atenção individualizada, a construção de um ambiente que favoreça o ensino individualizado e o estreitamento do relacionamento entre o docente e o aluno, o reforço positivo e a existência de um serviço de apoio psicológico ao aluno.7 Para o ensino das técnicas/procedimentos de enfermagem, é necessário que o aluno desenvolva habilidades motoras. O processo de ensinoaprendizagem das habilidades psicomotoras ocorre mediante aulas expositivas, nas quais as técnicas são demonstradas em sala de aula pelo professor e, em seguida, os alunos as executam na presença do professor no laboratório de procedimentos de enfermagem.8 O momento de devolução da técnica em laboratório constitui um excelente campo de aprendizado, uma vez que “os alunos têm a oportunidade de iniciar e de desenvolver as habilidades manuais sem a presença do paciente”8 e, assim, adquirir confiança e segurança para a prova prática e para o estágio supervisionado. A TAB. 2 que mostra a estatística descritiva das variáveis investigadas. TABELA 2 – Estatística descritiva das variáveis – maio, 2007 O desempenho na prova prática poderia variar de 0 a 4 pontos (nota máxima). Observa-se, na TAB. 2, que a média de pontos alcançada pelos alunos foi 3,3 (DP=0,8) e a mediana 3,5. Em relação ao nível de ansiedade, observase, na TAB. 2, que os valores médios, identificados para traço e para estado de ansiedade, foram 44,9 (DP=4,6) e 42,7 (DP=5,7), com mediana 44,0 e 42,0, respectivamente. Resultados semelhantes foram encontrados por Farah,9 cujo objetivo foi verificar o nível de ansiedade dos alunos durante o aprendizado da técnica de preparo de medicamento parenteral. Farah9 identificou alunos que apresentavam altos níveis de ansiedade no início do estágio curricular, mas que, no entanto, apresentavam bom desempenho prático. O nível de ansiedade dos alunos verificado neste estudo apresentou variação entre 37 a 40, escore que classifica a ansiedade como normal em adultos, de acordo com o IDATE. Uma possível justificativa para esse escore poderia ser o fato de os alunos estarem preparados para a prova prática, por terem estudado, treinado e por terem recebido acompanhamento de docentes, o que os tornou mais tranquilos e confiantes. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 79 Traço e estado de ansiedade de estudantes de enfermagem na realização de uma prova prática O teste de correlação de Pearson mostrou que não há relação significativa entre a nota da prova prática e o nível de estado de ansiedade. Nesse momento, emoções das mais diversas podem emergir, independentemente do grau de preparação do indivíduo. A prova prática da disciplina de Semiologia e Semiotécnica é realizada na presença do professor e avalia a capacidade do aluno em expor de maneira clara e correta o conhecimento e a habilidade adquiridos. A TAB. 3 mostra a relação dos sentimentos apresentados pelos alunos minutos antes de realizar a prova prática da disciplina. TABELA 3 – Sentimentos relatados pelos alunos minutos antes da prova prática da disciplina de Semiologia e Semiotécnica em Enfermagem – maio, 2007 Sentimentos n (%) Ansiedade Medo Segurança/Confiança Tensão/Preocupação Nervoso Preocupação Insegurança Angústia 23 (44,2%) 9 (17,4%) 4 (7,7%) 4 (7,7%) 4 (7,7%) 4 (7,7%) 2 (3,8%) 2 (3,8%) Total 52 (100%) Dentre as emoções citadas pelos alunos, a ansiedade foi o sentimento mais frequente, relatado por 23 (44,2%) alunos, conforme apresentado na TAB. 3. A ansiedade pode ser considerada positiva, propulsora, estimulante e motivadora, no entanto, a habilidade de controlar essa emoção varia de indivíduo para indivíduo. 13 Os resultados deste estudo levam à reflexão sobre a importância da atuação do professor no sentido de criar estratégias eficazes de aprendizagem e de auxiliar os alunos a enfrentar situações reconhecidas como ameaçadoras. A preocupação do aluno com os próprios objetivos, o domínio do conteúdo e a autoconfiança são fatores que podem favorecer a redução da ansiedade, pois permitem que o aluno reflita e desmistifique a avaliação. Os professores necessitam saber como lidar e prevenir a ansiedade de alunos em seu dia a dia de trabalho, de forma a ajudá-los a controlar emoções e sentimentos como tensão, medo e ansiedade e, assim, tentar minimizar os efeitos negativos desses sentimentos na aprendizagem e no desempenho acadêmico. É importante que o professor oriente o aluno a estudar de forma correta, esclareça o objetivo das provas e evite manter pressões sobre o tempo. O professor e o uso adequado de estratégias de aprendizagem podem motivar o aluno no processo de aprendizagem e no controle da ansiedade, favorecendo-lhe o desempenho escolar. Este estudo possui importante relevância prática, uma vez que investiga e discute um sentimento comum no processo de ensino-apredizagem: a ansiedade. Todos os enfermeiros que trabalham com formação ou treinamento de profissionais são responsáveis por conhecer e mensurar fatores que possam interferir nesse processo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que a maioria dos alunos apresentou médio nível de traço e de estado de ansiedade. Os alunos demonstraram preocupação e ansiedade diante das técnicas que poderiam ser exigidas na prova prática, porém foram capazes de lidar com os sentimentos e criar mecanismos de enfrentamento apropriados de forma a amenizar os efeitos negativos da ansiedade e da tensão vivenciados. 80 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 Foram discutidos, neste estudo, os aspectos positivos do treinamento em laboratório e da atenção individualizada voltada para as necessidades do aluno. Assim, os resultados encontrados poderão subsidiar professores na elaboração ou reformulação de planos de ensino e programas de disciplinas profissionalizantes, tendo como foco estratégias de ensino dinâmicas, criativas e individualizadas que contribuam para a autoestima, a autoconfiança e o desempenho acadêmico. REFERÊNCIAS 1. Pereira MAS, Motta ED, Vaz AL, Pinto C, Bernardino O, Melo AC, et al. Sucesso e desenvolvimento psicológico no ensino superior. Análise Psicológica. 2006; 1(24):51-9. 2. Andrade LHSG, Gorenstein C. Aspectos gerais das escalas de avaliação da ansiedade. Rev Psiquiatr Clín (São Paulo). 1998; 25(6):285-90. 3. Spielberger CD. Manual do IDATE. Rio de Janeiro: CEPA; 1979. 4. Spielberger CD, Gorsuch RL, Lushene RE. Manual for the state-trait anxiety inventory. Palo Alto: Consulting Psychologist Press; 1970. 5. Margis R, Picon P, Cosner AF, Silveira RO. Relação entre estressores, estresse e ansiedade. Rev Psiquiátr. 2003 abr; 25(supl.1):65-74. 6. 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Não gaste muito tempo em um único item. ———————————————————————————————————————————————— Quase nunca – 1 Às vezes – 2 Frequentemente – 3 Quase sempre – 4 ———————————————————————————————————————————————— 1. Sinto-me bem ................................................................................................................................................ 1 2 3 4 2. Canso-me com facilidade .......................................................................................................................... 1 2 3 4 3. Tenho vontade de chorar .......................................................................................................................... 1 2 3 4 4. Gostaria de ser tão feliz como os outros parecem ser ................................................................... 1 2 3 4 5. Perco oportunidades porque não consigo tomar decisões rapidamente ............................. 1 2 3 4 6. Sinto-me descansada .................................................................................................................................. 1 2 3 4 7. Sou calma, ponderada e senhora de mim mesma .......................................................................... 1 2 3 4 não consigo resolvê-las .................................................................................................................................. 1 2 3 4 9. Preocupo-me demais com coisas sem importância ....................................................................... 1 2 3 4 10. Sou feliz .......................................................................................................................................................... 1 2 3 4 11. Deixo-me afetar muito pelas coisas .................................................................................................... 1 2 3 4 12. Não tenho confiança em mim mesma .............................................................................................. 1 2 3 4 13. Sinto-me segura ......................................................................................................................................... 1 2 3 4 14. Evito ter que enfrentar crises ou problemas ................................................................................... 1 2 3 4 15. Sinto-me deprimida .................................................................................................................................. 1 2 3 4 16. Estou satisfeita ............................................................................................................................................ 1 2 3 4 17. Ideias sem importância me entram na cabeça e ficam me pressionando. ......................... 1 2 3 4 18. Levo os desapontamentos tão a sério que não consigo tirá-los da cabeça ....................... 1 2 3 4 19. Sou uma pessoa estável .......................................................................................................................... 1 2 3 4 20. Fico tensa e perturbada quando penso em meus problemas do momento ..................... 1 2 3 4 8. Sinto que as dificuldades estão se acumulando de tal forma que 82 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 2ª Parte – Questionário de autoavaliação para estado de ansiedade Por favor, leia cada um dos itens abaixo e assinale o número que melhor indica como você se sente. Não gaste muito tempo em um único item. ———————————————————————————————————————————————— Absolutamente não – 1 Um pouco – 2 Bastante – 3 Muitíssimo - 4 ———————————————————————————————————————————————— 1. Sinto-me calma ............................................................................................................................................. 1 2 3 4 2. Sinto-me seguro ............................................................................................................................................ 1 2 3 4 3. Estou tensa ...................................................................................................................................................... 1 2 3 4 4. Estou arrependida ........................................................................................................................................ 1 2 3 4 5. Sinto-me à vontade ..................................................................................................................................... 1 2 3 4 6. Sinto-me perturbada .................................................................................................................................. 1 2 3 4 7. Estou preocupada com possíveis infortúnios ................................................................................... 1 2 3 4 8. Sinto-me descansada .................................................................................................................................. 1 2 3 4 9. Sinto-me ansiosa .......................................................................................................................................... 1 2 3 4 10. Sinto me “em casa” ..................................................................................................................................... 1 2 3 4 11. Sinto-me confiante .................................................................................................................................... 1 2 3 4 12. Sinto-me nervosa ....................................................................................................................................... 1 2 3 4 13. Estou agitada ............................................................................................................................................... 1 2 3 4 14. Sinto-me “uma pilha de nervos” ........................................................................................................... 1 2 3 4 15. Estou descontraída .................................................................................................................................... 1 2 3 4 16. Sinto-me satisfeita ..................................................................................................................................... 1 2 3 4 17. Estou preocupada ...................................................................................................................................... 1 2 3 4 18. Sinto-me superexcitada e confusa ...................................................................................................... 1 2 3 4 19. Sinto-me alegre .......................................................................................................................................... 1 2 3 4 20. Sinto-me bem .............................................................................................................................................. 1 2 3 4 3a Parte Descreva como você se sente neste exato momento. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 76-83, jan./mar., 2009 83 A autonomia de pessoas hospitalizadas em situação pré-cirúrgica A AUTONOMIA DE PESSOAS HOSPITALIZADAS EM SITUAÇÃO PRÉ-CIRÚRGICA* THE AUTONOMY OF HOSPITALIZED PATIENTS IN PRESURGICAL SITUATION AUTONOMÍA DE PERSONAS INGRESADAS EN SITUACIÓN PREQUIRÚRGICA Márcia Tonin Rigotto Carneiro1 Heloisa Wey Berti2 RESUMO O objetivo com esta pesquisa foi analisar a percepção de doentes sobre sua autonomia no período pré-operatório, durante sua internação em enfermarias cirúrgicas de um hospital universitário. Utilizou-se o recurso metodológico do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) e a bioética, com ênfase no princípio da autonomia, como referencial teórico para a análise dos discursos. Foram entrevistados 20 doentes, maiores de 18 anos, internados há mais de três dias, em situação pré-operatória, nas diferentes áreas cirúrgicas do hospital. Observou-se certa fragilidade da autonomia das pessoas, uma vez que os conhecimentos delas sobre os procedimentos aos quais seriam submetidas mostraramse bastante incipientes. Entendendo que a autonomia só é possível em uma sociedade na qual as pessoas tenham seus direitos de cidadania respeitados e acesso igualitário à educação, informação e saúde, conclui-se que essas condições são necessárias para que as relações entre profissionais de saúde e doentes sejam mais simétricas, podendo, desse modo, ser possível a superação do modelo paternalista e autoritário vigente. Palavras-chave: Assistência Hospitalar; Bioética; Autonomia Pessoal. ABSTRACT This study aims to analyze the patients’ perception of his autonomy in the preoperative period during hospitalization in the surgery wards of a university hospital. The Collective Subject’s Discourse was used as a methodological resource, and Bioethics with emphasis on the autonomy principle was employed for discourse analysis. Twenty patients aged more than 18 years old who had been hospitalized under preoperative conditions for longer than three days were interviewed. Some fragility was observed in the individuals’ autonomy, once their knowledge on the procedures to which they would be submitted showed to be rather incipient. Considering that autonomy is only possible in a society where people’s rights and citizenship are respected, and where equal access to education, information and healthcare is provided, we conclude that such conditions are necessary for a more symmetrical relationship between healthcare professionals and patients. This would make it possible to overcome the paternal and authoritarian existing model. Key words: Hospital Care; Bioethics; Personal Autonomy. RESUMEN El objetivo de la presente investigación fue el de analizar la percepción de enfermos sobre su autonomía en el período preoperatorio, durante internación en enfermerías quirúrgicas de un hospital universitario. Se utilizó el recurso metodológico del Discurso del Sujeto Colectivo, y como referente teórico para análisis de los discursos, la Bioética con énfasis en el principio de la autonomía. Fueron entrevistados veinte enfermos mayores de 18 años, en situación preoperatoria, internados hacía más de tres días en distintas áreas quirúrgicas del hospital. Se observó cierta fragilidad en la autonomía de los individuos una vez que quedó evidente que su conocimiento sobre los procedimientos a los que iban a ser sometidos era bastante incipiente. Entendiendo que la autonomía sólo ocurre en una sociedad donde se respetan los derechos de ciudadanía y existe acceso igualitario a la educación, información y salud, se concluye que son necesarias estas condiciones para que las relaciones entre los profesionales de salud y los enfermos sean más simétricas y para poder superar el modelo paternalista y autoritario vigente. Palabras clave: Atención Hospitalaria; Bioética; Autonomía Personal. * 1 2 Parte da dissertação de mestrado concluída em junho de 2008 – Programa de Pós-Graduação em Enfermagem – Mestrado Profissional. Enfermeira. Mestre em Enfermagem. Diretora Técnica de serviços de Unidades Especiais do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP.) E-mail: [email protected] Enfermeira. Doutora em Saúde Pública. Professora assistente do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP). E-mail: [email protected] 84 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 INTRODUÇÃO Os profissionais de saúde, ao prestarem assistência aos doentes, especialmente aqueles hospitalizados, nem sempre consideram sua autonomia e privacidade. Ignorase, frequentemente, o entendimento que os doentes hospitalizados têm sobre sua autodeterminação e seus direitos. Sabe-se que a dependência, a insegurança e a perda de controle sobre si mesmos podem surgir em decorrência da própria condição de enfermidade, mas, também, que tais condições podem ser desencadeadas ou exacerbadas por ações que despersonalizam os indivíduos.1 Com frequência, observam-se relações assimétricas entre profissionais de saúde e doentes: de um lado, o poder; de outro, a submissão. Muitas vezes, os profissionais assumem posturas de poder sobre o corpo do doente, e este, em sua fragilidade, não se percebe um ser com autonomia para fazer questionamentos, aceitando passivamente o que lhe é imposto por sentir-se, em muitas situações, envergonhado e constrangido. A bioética, mediante estudo e reflexão dos referenciais de autonomia, beneficência e justiça, vem dando importante contribuição ao aprofundamento das análises sobre questões relativas às atividades na área da saúde e, em especial, ao cuidado.2 Autonomia significa a capacidade que os seres humanos têm de fazer leis para si mesmos, de se autogovernarem, de fazer escolhas livres de coações e assumir os riscos dessas escolhas.3,4 Na relação profissional entre pessoal da saúde e pacientes, a autonomia pressupõe competência e liberdade para se proceder às escolhas conscientes entre as opções possíveis. Assim, é dever do profissional de saúde fornecer aos pacientes todas as explicações necessárias sobre a situação e riscos envolvidos nas diferentes alternativas da escolha deles, para que todas as possibilidades sejam reconhecidas, favorecendo-lhes a escolha que melhor lhes atenda as necessidades.5 No entanto, o doente hospitalizado nem sempre participa das decisões sobre sua vida e até mesmo nem sempre é comunicado a respeito dessas decisões de modo a compreendê-las. O profissional de saúde, imbuído do poder de curar, tem status e prestígio que, quando negados ou questionados, podem desencadear abuso de poder, por sentir-se ameaçado. Por essa razão, muitas vezes são tomadas decisões unilaterais sobre o que se considera melhor para o doente, sem um diálogo mais amplo sobre as condições e as possibilidades dele. O doente capaz conhece a si mesmo e suas necessidades, e o profissional tem os conhecimentos que possibilitam a identificação de problemas e a seleção dos procedimentos para resolvê-los. A autonomia de um não deve bloquear a do outro; antes, ambos devem participar do processo de decisão.6 Sabe-se que o atendimento à saúde é reflexo das condições econômicas, culturais, sociais e políticas do país. As desigualdades sociais, a cultura da competição, o individualismo e o autoritarismo são reproduzidos, particularmente, no contexto da assistência hospitalar. Observa-se, ainda, que os profissionais raramente se sensibilizam com a precariedade das condições de vida dos seus pacientes e, com frequência, estão alheios aos determinantes sociais da doença de que esses são portadores. Por sua vez, os usuários dos serviços públicos de saúde deste país, em sua maioria excluídos dos seus direitos de cidadãos autônomos, nas situações que os fragilizam ainda mais, como nas enfermidades que os obrigam à internação hospitalar, tornam-se despersonalizados e perdem sua condição de sujeito para a de objeto de manipulação. Os profissionais de enfermagem mantêm uma proximidade com os doentes internados, dadas as peculiaridades do seu trabalho, e, desse modo, compartilham as necessidades e os anseios desses doentes, estabelecendo vínculos afetivos. Isso confere a esses profissionais um poder paralelo de influência, que faz com que a enfermagem contribua para que o doente exerça sua autonomia, incentivando-o a conhecer e a exercer seus direitos.6 Com este estudo, teve-se como finalidades: contribuir com a gestão, no sentido de reverter situações da prática profissional e buscar subsídios para o desenvolvimento de programas de educação continuada, visando problematizar, no espaço educativo, situações que, muitas vezes, se “naturalizam”. A questão a ser respondida nesta pesquisa foi a seguinte: Como as pessoas internadas nas diversas enfermarias cirúrgicas de um hospital universitário estão exercendo sua autonomia durante o período préoperatório? OBJETIVO Analisar a percepção de doentes sobre sua autonomia, durante internação em enfermarias cirúrgicas de um hospital universitário, no período pré-operatório. MÉTODO Estudo qualitativo, realizado mediante entrevistas com pessoas hospitalizadas, durante o período préoperatório, utilizando a abordagem metodológica desenvolvida por Lefèvre et al. 7 , que permite a construção do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), mediante a identificação das ideias centrais e expressões-chave. Como referencial teórico para análise dos discursos, recorreu-se à bioética, com ênfase no princípio da autonomia. Local do estudo – O estudo foi desenvolvido em um hospital universitário do interior do Estado de São Paulo. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 85 A autonomia de pessoas hospitalizadas em situação pré-cirúrgica Esse hospital integra o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo referência terciária para 68 municípios do Estado, tendo como missão o ensino, a pesquisa e a assistência. Sujeitos participantes do estudo – A pesquisa foi desenvolvida nas enfermarias cirúrgicas de cardiotórax, ginecologia, gastrocirurgia, neurocirurgia, ortopedia e plástica, urologia e cirurgia vascular, mediante entrevista com pessoas com, no mínimo, três dias de internação, as quais aguardavam por cirurgia; portanto, encontravamse no período denominado pré-operatório. Segundo esse critério, foram selecionadas pessoas maiores de 18 anos, de ambos os sexos e conscientes. Para atingir os objetivos propostos, contou-se com a participação de 20 pacientes. Coleta de dados – Foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas, no período de janeiro a julho de 2007. Os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente entre os que se encontravam internados em situação préoperatória nas diversas enfermarias cirúrgicas do hospital. As entrevistas foram gravadas em fitas magnéticas, transcritas e destruídas. Optou-se por adotar a abordagem metodológica do DSC, que possibilita melhor visualização sobre a representação de atores sociais com quesitos básicos em comum: doentes internados, em período pré-operatório, em enfermarias cirúrgicas de um hospital universitário. Com o material coletado, para cada questão analisada, foram destacadas as ideias centrais – “formulas sintéticas que descrevem o(s) sentido(s) presentes nos depoimentos de cada resposta” – e expressões-chave – “trechos selecionados do material que melhor descrevem seu conteúdo”. 8:22 O DSC foi elaborado reunindo-se as expressões-chave presentes nos depoimentos, cujas ideias centrais apresentavam sentido semelhante ou complementar.8 Considerando que as perguntas propostas aos entrevistados poderiam propiciar a identificação dos modos pelos quais essas pessoas tomam decisões sobre a situação de enfermidade e o tratamento delas, procedeu-se à análise do DSC fundamentada em referenciais bioéticos. Procedimentos éticos – 1. Encaminhamento do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, conforme Resolução n° 196/96-CNS –, provado em 2 de outubro de 2006. 2. Solicitação de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos sujeitos que aceitaram participar do estudo, concedendo entrevista gravada. RESULTADOS E DISCUSSÃO Questão analisada: Quem você considera que deve decidir sobre seu bem-estar, sua vida e seu tratamento? Síntese das ideias centrais A) São os médicos, enfermeiros e pessoas que trabalham no hospital. 86 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 B) Acho que sou eu mesmo. C) Minha esposa deve decidir; ela convive comigo. Discurso do Sujeito Coletivo A) São os médicos, enfermeiros e pessoas que trabalham no hospital. (E1, E2, E3, E5, E6, E9, E11, E12, E13, E14, E15, E18) Acho que são os médicos, todo mundo do hospital, porque os médicos e os enfermeiros estudaram para isso e sabem o que fazem. O que o médico manda fazer é para o meu bem, os enfermeiros devem decidir, pois eles que cuidam da gente o tempo todo; precisa fazer as coisas que eles falam para resolver logo os problemas e ir embora para casa, só que eu esperava que resolvesse com remédios. Recusar um tratamento a gente não faz, mas, às vezes tenho vontade de recusar. Endoscopia é ruim; se pudesse, se não fosse para o nosso bem, eu não queria fazer, mas não pode. A gente não gosta de tomar injeção, só quando está com dor, mas não me recuso porque acho que precisa ... É o médico que tem que decidir, não é mesmo? Eles que sabem o que fazer, eu não sei nada, só o que eles falam, mas eu espero que tudo se resolva desta vez. Se estou no hospital, tenho que seguir as regras do hospital. Primeiramente eu estou na mão de Deus, depois na mão deles. Até questionei o doutor que disse que eu iria fazer outra chapa e perguntei por quê. E ele disse que não achava a chapa e depois mais tarde veio até aqui e disse que não precisava mais, porque já tinha achado. Agora, eu acho que a gente não tem que se recusar, porque se ele pediu é porque ele tem dúvidas; eu acho que internamente quem sabe é ele, não conheço meu organismo por dentro, ele conhece; quem sabe o que tem que fazer, tomar, os exames, é ele... Quem tá medicando, quem estudou, quem tem a sabedoria que Deus deu é o médico. Em primeiro lugar, os médicos e, em segundo, tem que ser eu, né? Se é para a gente ficar bom, mesmo que seja ruim, eu vou em frente, enfio o remédio, mesmo que ele volte depois, pela minha saúde, eu vou em frente. Discussão Neste DSC, com relação ao tratamento, ao bem-estar e à vida, verifica-se o entendimento de que as decisões a serem tomadas são de competência dos médicos, dos enfermeiros, enfim, de quem trabalha no hospital, com a justificativa de que estes detêm o conhecimento, uma vez que estudaram para isso. É obvio que se deve buscar profissionais preparados para a solução de problemas cujos meios para solucioná-los não são da própria competência. Entretanto, esse entendimento de entrega incondicional da vida a outrem evidencia certa fragilidade da autodeterminação. O doente entende que o médico tem o conhecimento, portanto, é mais competente para julgar o que é melhor para o tratamento dele. Por essa razão, não faz questionamentos, não procura esclarecer-se e, por conseguinte, não participa do processo de tomada de decisões. Essa crença e confiança o leva a delegar ao médico a decisão sobre o tratamento dele. Por outro lado, convém considerar, também, que há pessoas que preferem ser tratadas paternalisticamente, delegando aos médicos a responsabilidade integral de todas as medidas terapêuticas a serem tomadas. Neste estudo, porém, foi possível identificar que os doentes não dispunham de informações necessárias para opinar sobre o tratamento para, eventualmente, solicitar alguma conduta alternativa. Logo, seria mais coerente concluir que o detentor de todas as informações tivesse em melhores condições para decidir. Isso pode explicar as razões apontadas no DSC. Muito se tem falado e escrito sobre o cuidado com a saúde no Brasil. Além da literatura especializada sobre o tema, praticamente todos os dias deparamos com matérias em jornais, revistas, rádio e televisão, e, mesmo em conversas de nosso cotidiano, com a realidade dos hospitais públicos, seus déficits de recursos, greves, filas, conflitos nas relações interpessoais, que provocam prejuízos aos usuários dos serviços. Nesse panorama, conseguir uma vaga para internação num hospital público para a realização de um procedimento anestésico/cirúrgico é algo muito complexo, difícil e, na maioria das vezes, lento. Nesse contexto, quais as possibilidades de um doente recusar um procedimento? Ou de desistir de uma cirurgia? Assim, como falar de autonomia? Frequentemente, na prática hospitalar, ocorrem cirurgias suspensas por motivos variados, mesmo após os preparativos técnicos, físicos e emocionais que o procedimento anestésico/cirúrgico requeria. E o doente, foi informado da possibilidade de suspensão da cirurgia? Teve o direito e a liberdade de opção? Em geral, não. Alguns trabalhos evidenciam que a autonomia médica tem sofrido profundas modificações na relação médicopaciente, em decorrência do avanço tecnológico, da organização empresarial da assistência médica, dentre outros fatores. O cenário em que o médico não era contestado em suas ações vem se modificando, favorecendo a autonomia do paciente, reconhecida e consignada nos códigos de ética médica., em todo o mundo.9 Atualmente, a relação médico-paciente é mais franca e democrática que no passado, permitindo a clareza das ações e o compartilhamento da responsabilidade no processo de tomada de decisões. Embora esse tempo no qual o médico decidia sozinho sobre aquilo que considerava como o melhor para si e para o paciente sem informá-lo ou consultá-lo, já esteja distante, ainda se percebem condutas paternalistas nas suas relações com os doentes. Não apenas nas relações médico/paciente, mas, também, nas relações dos demais profissionais de saúde e usuários das instituições de saúde. Pelo DSC, nota-se passividade e/ou submissão da pessoa em relação aos profissionais que lhe prestam assistência. Sabe-se que o fortalecimento das relações entre usuários, profissionais da saúde e seus familiares supera a dimensão autoritária ou paternalista, sendo fundamental para o cuidado. Doentes, profissionais e familiares têm conquistado espaço e voz no processo terapêutico, respeitando as diferenças de valores, expectativas, demandas e objetivos de cada um, prevalecendo a mutualidade. Sabe-se que, muitas vezes, há por parte dos profissionais de saúde dificuldades em aceitar a decisão do doente, especialmente quando esta difere da que planejaram ou tomariam. Tais fatos suscitam reflexões sobre a prática profissional, especificamente sobre questões concernentes à cultura, à crença e aos valores das pessoas. Não se pode ignorar que as crenças religiosas estão entre as mais fortes convicções do ser humano. Neste estudo, quando foi expressa a crença de que a vida e o tratamento primeiramente estão nas mãos de Deus e posteriormente nas dos médicos, verificou-se a presença da fé e dos valores religiosos. Especialmente em momentos difíceis da vida, permeados pela insegurança do amanhã, as pessoas ficam mais propensas a se apegarem à religião, com a esperança de receberem proteção durante esse período. É interessante essa reflexão sobre como os profissionais de saúde lidam com esses valores éticos, culturais e religiosos envolvidos no processo de cuidar. Na prática, reconhecemos as dificuldades de ação em certas situações de confrontos entre crenças religiosas e necessidades de tratamentos. Nesse sentido, a existência de um núcleo de bioética, em situações clínicas, subsidiando o trabalho dos profissionais de saúde nas instituições favoreceria reflexões mais fundamentadas nos referenciais da bioética.10 B) Acho que sou eu mesmo. (E4, E7, E8, E10, E17, E19, E20) Ah! Eu acho que sou eu mesmo. Se for fazer alguma coisa que eu acho que não deve, eu falo, porque quem mais poderia ser? Acho que só eu posso saber o que fazer comigo, mais ninguém, porque quem sabe sobre mim sou eu. Todas as coisas que foram combinadas, se eu não fizer, eu sei que será pior para mim. Eu topo fazer tudo, eu sei que tenho que fazer, porque também se eu fosse esperar pelos outros... você já viu o que ia dar. Veio aí um médico e disse que precisava de uma pessoa da família para assinar. Eu falei: ‘Olha, eu não tenho ninguém aqui da minha família, mas eu acho que eu tenho a consciência boa, tô lúcido graças a Deus, sei o que estou falando, sei o que estou fazendo, eu vou assinar.’ Ele me deu a opinião, me deixou a par da situação, e eu decidi. Eu penso que ele (o médico) tem que falar, mas quem tem que tomar a decisão sou eu. No meu caso, ele já sabia o resultado, que teria que fazer uma cirurgia que podia dar certo, ou não. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 87 A autonomia de pessoas hospitalizadas em situação pré-cirúrgica Discussão Discurso do Sujeito Coletivo Este DSC revela percepção do conceito de autonomia e da necessidade de seu exercício, como sujeito autônomo que faz escolhas sobre o que considera melhor para a saúde e para a vida dele, assumindo, ao mesmo tempo, o risco dessas escolhas. A) Não, porque ninguém falou sobre isso (E1, E2, E3, E4, E5, E6, E7, E8, E10, E11, E13, E16, E17, E18). O Código dos Direitos do Consumidor, a lei sobre os direitos dos usuários dos serviços de saúde, o Programa de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), criado em 2001 pelo Ministério da Saúde, propiciam a todos, usuários e profissionais, a democratização do processo terapêutico. Constatamos, diariamente, que muitos dos direitos dos usuários dos serviços de saúde, previstos em lei, precisam ser observados no cotidiano dos profissionais de saúde, destacando-se os relativos à informação e autonomia. C) Minha esposa deve decidir, ela convive comigo. (E16) Eu acho que é a minha esposa, né? É ela que convive comigo, então eu acho que é ela que deve resolver nestes momentos mais difíceis. Discussão Embora neste discurso haja menção de que quem deve tomar decisões seja a esposa, não foi verificada, nesta pesquisa, a participação de familiares no processo decisório sobre o tratamento proposto. A internação hospitalar é um evento que mobiliza a vida da pessoa doente e também a dos familiares dela. No dia a dia, percebe-se que a maioria das famílias está presente durante o processo de doença do seu familiar e, muitas vezes, opinando sobre o tratamento dele. Com certa frequência, familiares tentam influenciar o médico sobre o tipo de informação que deve ser dada ao doente. Embora o contrato estabelecido seja entre médico e doente, uma relação adequada com os familiares poderá indicar condutas mais apropriadas no sentido de atentar-se para as informações provenientes de pessoas que melhor o conheçam, até porque com ele convivem. Questão analisada: Você poderia me falar sobre como será a sua anestesia e a cirurgia? Síntese das ideias centrais A) Não, porque ninguém falou sobre isso. B) O médico explicou a cirurgia, e o anestesista falou qual a anestesia vai ser. C) Uma pessoa conhecida me explicou como vai ser a cirurgia. 88 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 Não, porque os médicos disseram que fariam o resto dos exames e depois, se precisasse, faria a cirurgia. Ninguém falou nada sobre isto. Não sei como funciona. Não tenho ideia como é esse negócio, como vai ser, onde vai cortar, nada. Só me ligaram no sábado, falaram para eu internar para fazer a cirurgia. Hoje eu fiquei de jejum, avisaram que eu ia operar lá no centro cirúrgico, mas ninguém explicou nada. Agora à tarde passaram aqui e falaram que hoje não tem mais vaga para operar, então não sei quando vai ser, como vai ser; eles ficam aqui numa porção de médicos comentando, e a gente fica prestando atenção para tentar entender, mas eu também não perguntei. Da anestesia não sei nada, ninguém explicou nada; sei que antes de operar vem o anestesista aqui e ele pergunta um monte de coisas, se sou alérgico e fala como vai ser a anestesia, mas até agora não sei. O médico não falou que dia eu irei operar e não explicou o que vai fazer. Só sei que a cirurgia é num lugar complicado, agora como o médico vai fazer isto eu já não sei e nem pergunto, que é para não esquentar minha cabeça mais do que ela já está. Quanto à cirurgia, eles vão abrir e dar uma olhada para ver como está, não sabem o que vão colocar, não sabem como vai ser ainda, vão abrir para ver... Ele não falou assim bem a verdade, mas nem ele e nem ninguém falou nada, e eu estou com medo, muito medo da anestesia, mas eu não falei nada ainda pra ele, só com os enfermeiros que vêm aqui e a gente conversa... A gente ainda não conversou sobre isso com o médico, porque sei que é com o anestesista que a gente tem que conversar, mas eu ouvi o comentário do médico e eu acho que é o anestesista que estava junto, e, como a gente não é muito bobo, eu catei no alto, ele perguntou: ‘E este aqui?’ ele disse: ‘Este aqui vai a zero’, e eu sei que o meu batimento cardíaco é muito fraco... Discutiram bastante sobre que tipo de cirurgia que eu vou fazer, mas eu não entendi muito bem. Espero que eu não veja nada e não sinta dor. Discussão Este DSC evidencia a necessidade que o paciente em situação pré-operatória requer em termos de cuidados, atenção e de esclarecimentos a fim de que adquira condições ideais de segurança e tranquilidade para o enfrentamento da cirurgia. O direito à clara informação sobre quem o assiste e o que poderá lhe acontecer é fundamental para a garantia de sua autonomia. Esse direito está expresso na Lei n° 10.241, de 17 de março de 1999, que dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no Estado de São Paulo, em seu artigo 2°, incisos VI, XXI e XXII. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem esclarece, no Capítulo I, Seção 1, artigo 17, que é dever “prestar adequadas informações à pessoa, família e coletividade a respeito dos direitos, riscos, benefícios e intercorrências acerca da Assistência de Enfermagem”.11 No Código de Ética Médica, Capítulo V, artigo 59, está explícito: “Não deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento. Salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, esta deve ser feita ao seu responsável legal”.12 Tanto o paciente quanto os familiares têm o direito às orientações claras e precisas, devendo a família atuar com a equipe, oferecendo orientação e apoio à pessoa hospitalizada. Neste estudo, as informações fornecidas restringiramse àquelas que os profissionais julgaram ser necessárias e suficientes, contemplando apenas os aspectos administrativos, as rotinas e o mínimo necessário para que entendessem que necessitavam realizar uma cirurgia para resolver-lhes o problema de saúde. Percebeu-se que a informação foi inadequada, insuficiente para o entendimento e esclarecimento dos sujeitos do estudo, não valorizando o que estes consideravam importante saber. Não queremos dizer que os profissionais agiram por má-fé, mas identificamos posturas paternalistas, as quais persistem e prevalecem na instituição. Defendemos, aqui, a ideia de que tão importante quanto prestar assistência é fornecer informação compatível com o grau de compreensão da pessoa assistida, lembrando que a qualidade desta depende, fundamentalmente, da postura compreensiva do profissional. Aceitar que essas pessoas se submetam a procedimentos anestésicos/cirúrgicos sem a informação necessária para uma tomada de decisão é anular-lhes o exercício de autonomia. O consentimento informado, fundamentado na informação inteligível esclarecedora, não foi verificado no DSC. O que se percebeu foi que essa ausência de informação foi prejudicial ao paciente, por perpetuar suas angústias e preocupações. A vulnerabilidade desses doentes relaciona-se à embrionária autonomia deles. Acresce-se a isso a impossibilidade de fazer escolhas. Não veem outra opção senão a de aceitar as condições que lhes são apresentadas, por medo de perder a vaga, ter a cirurgia suspensa ou ter outros dissabores, além de ter o entendimento de ser a única possibilidade de cura. Observamos que o cirurgião, por vezes, falou da cirurgia apenas como modo de sanar a doença, porém não esclareceu tudo o que o doente precisaria e/ou queria saber. Os enfermeiros, dos quais se espera melhor comunicação pela sua proximidade com os doentes, também não o fizeram. informar aos doentes e aos familiares os procedimentos terapêuticos, porém, não conseguem alcançar essa meta por causa da escassez de pessoal, da sobrecarga de trabalho, das longas jornadas, dentre outras dificuldades.13,14 Desse modo, não se dá o compartilhamento do saber. A sensibilidade para a escuta e para o diálogo tornouse deficiente. Não houve indagações por parte dos sujeitos sobre o desejo deles de receber informação. Cabe destacar que o doente pode não querer saber detalhes sobre o estado deles e/ou procedimentos terapêuticos. Essa posição deve ser entendida e respeitada, porém, sempre se certificando de que a pessoa, com tal atitude, esteja exercendo seu direito. O princípio da autonomia requer respeito à vontade do cliente ou, quando isso não for possível, à de seu representante, de acordo com seus valores morais e crenças, por parte dos profissionais da saúde.15 Desse modo, entende-se que as pessoas possam estar exercendo sua autodeterminação até mesmo quando decidem se submeter às exigências de autoridades de uma instituição. Porém, havendo impossibilidades para o exercício da autonomia, deve predominar o princípio da beneficência.16 Em nosso estudo, algumas pessoas foram entrevistadas poucas horas antes do horário agendado para o procedimento cirúrgico, e, no entanto, várias delas referiram nada saber sobre isso, pois ninguém lhes havia falado a respeito. A falta de esclarecimento é uma realidade presente em nossa prática diária, gerando, assim, desrespeito ao doente. Acredita-se que com a implantação do Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAEP), essa realidade possa ser modificada. A SAEP é uma estratégia que preconiza a avaliação préoperatória do paciente pelo enfermeiro do centrocirúrgico e cujos princípios/objetivos são: o respeito à individualidade, aos direitos e à dignidade do paciente; a integralidade do cuidado prestado na unidade de internação e no centro-cirúrgico; a promoção, recuperação e/ou manutenção do estado de saúde do indivíduo; o estabelecimento de diagnóstico e planejamento da assistência; o esclarecimento e o reforço das orientações sobre a cirurgia e a anestesia; o esclarecimento de rotinas; a interação e a comunicação enfermeiro-paciente, tendo como finalidade amenizar a ansiedade e os medos.17 O SAEP é operacionalizado por meio de: consulta de enfermagem, histórico, exame físico, diagnóstico de enfermagem, prescrição e evolução da assistência de enfermagem. Isso é de grande auxílio ao doente e à família dele para a compreensão dos aspectos envolvidos no tratamento anestésico-cirúrgico proposto.18 Estudos mostram que os profissionais de saúde têm conhecimento da necessidade e da importância de remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 89 A autonomia de pessoas hospitalizadas em situação pré-cirúrgica B) O médico explicou a cirurgia e o anestesista falou qual a anestesia vai ser. (E9, E12, E14, E19, E20) O médico falou para mim que ele vai cortar e que eu vou operar amanhã lá pelo meio-dia. Não consigo me lembrar de como o médico se chama e se ele vai fazer a cirurgia ou só vai acompanhar, se tem mais alguém junto dele. O anestesista passou aqui agora há pouco e falou qual vai ser a anestesia... Ele disse para eu não me preocupar que depois que acabar ele dá um remedinho. sido realizada por um amigo, provavelmente leigo, permitindo-lhe algum conhecimento sobre o que iria se passar na cirurgia. Também nos sugere clareza e simplicidade da informação, levando-nos a deduzir que não deve ter consumido tanto tempo do comunicador para se fazer entender. Essa constatação nos inquieta, pois indica que as razões apontadas pelos profissionais de saúde para a falta de esclarecimentos aos doentes, tais como elevada carga de trabalho, déficits de pessoal, podem ser apenas subterfúgios para encobrir a primazia da dimensão técnica do trabalho sobre as de natureza ética ou moral. Discussão Juridicamente, a informação é o pressuposto para que a pessoa realize suas escolhas no contexto de uma existência equilibrada em sociedade. A essência da legislação que disciplina o relacionamento entre o consumidor e o fornecedor é, sem dúvida, a informação. Quando essa é clara, com uma linguagem acessível, enseja a reação do sujeito que, singularmente, na sua autodeterminação, exercerá seu direito à autonomia, como parece ter ocorrido neste DSC. A informação fundamenta decisões autônomas dos doentes, necessária para que possam consentir ou recusar procedimentos, diagnósticos, preventivos ou terapêuticos; deve ser fornecida em linguagem simples, inteligível, aproximativa, leal e respeitosa, segundo padrões acessíveis à compreensão intelectual e cultural.19 É importante ressaltar, porém, que a percepção do doente sobre o que lhe é transmitido pode sofrer interferência da ansiedade, do estresse, do momento da abordagem, da forma da comunicação, da linguagem utilizada, os quais podem dificultar a assimilação e a compreensão. Assim, é necessário que os profissionais avaliem se houve entendimento da informação e valorizem a necessidade de sua compreensão pelos pacientes de forma que possam minimizar suas tensões emocionais. C) Uma pessoa conhecida me explicou como vai ser a cirurgia. (E15) Eu não fui informado pelo médico, ainda, como vai ser, mas, conversando com uma pessoa conhecida, eu sei mais ou menos como vai ser o processo, vai ser uma cirurgia; parece que eles usam um laser em cima da mão, e isto aí deixa o médico enxergar todos os ossos lá dentro e com isto ele faz uma amarração com fio de náilon em todos os ossos que estão trincados, vai amarrando e depois finaliza a cirurgia. Discussão Este DSC possibilita inferir que a comunicação ao paciente sobre o procedimento cirúrgico, pode ter 90 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, no qual se propôs analisar a percepção de pessoas hospitalizadas sobre sua autonomia durante o período pré-operatório, foi possível evidenciar influências da tradição do autoritarismo e do paternalismo em saúde no conceito que as pessoas têm sobre autodeterminação. Especialmente quando em situação de vulnerabilidade, provocada por doença que requer internação e tratamento cirúrgico, observa-se delegação incondicional do poder decisório sobre o tratamento aos profissionais de saúde. Nesta pesquisa, a referência sobre a responsabilidade pelo tratamento recaiu, em maior grau, sobre os médicos, com a justificativa de que eles estudaram para isso. Foi também perceptível que o tratamento dos doentes foi decidido pelo médico, fortalecido pela “concordância” dos pacientes, estes, mal esclarecidos. Percebe-se, assim, uma relação assimétrica na qual ficou evidenciada a superioridade de um sobre o outro. O médico tem, de fato, o preparo técnico e científico que o capacita a resolver o problema de saúde do doente, porém esse saber não pode ser usado como instrumento de dominação. Ao não compartilhar com o doente os aspectos observados no seu exame físico, nos exames subsidiários realizados, nos materiais coletados do corpo dele, além de outras indicações que possibilitaram a formulação do diagnóstico e da terapêutica, o proprietário de todos esses dados, ou seja, o doente, não terá parâmetros para tomar uma decisão consciente. Desse modo, permanecerá alienado de si mesmo e entregue aos profissionais de saúde. O cuidado deve ser entendido como um ato de interação composto de ações dirigidas ao doente e compartilhadas, o que envolve diálogo, ajuda, apoio, troca, conforto, além do esclarecimento de dúvidas. Atualmente, os profissionais de saúde têm se preocupado com a influência do estado emocional das pessoas em sua recuperação pós-cirúrgica e com as consequentes variações dos parâmetros clínicos ocorridas no período pós-operatório. São parâmetros clínico-biológicos indicadores de necessidades de suporte emocional. Pelos DSCs ainda foi possível perceber que a relação entre profissionais de saúde e doentes, durante os cuidados pré-cirúrgicos, não foi compartilhada com familiares que eventualmente participavam desse processo ou, quando houve alguma comunicação, esta se deu de modo bastante incipiente. Os dados desta pesquisa mostram a importância de que as profissões da saúde privilegiem sentimentos e valores das pessoas e de seus familiares. Isso não significa desconsiderar sentimentos e saberes dos profissionais de saúde, uma vez que todos estão envolvidos no tratamento e na cura. Mas a reflexão conjunta para a tomada de decisão que democratize as relações entre profissionais, doentes e familiares resgata a autonomia do doente, fragilizada e vulnerável, propiciando-lhe o controle da própria vida de modo autêntico. Usuários e familiares têm o desejo de que os profissionais sejam responsáveis pela diminuição do sofrimento, da angústia, da dor, assim como esperam ser acolhidos, amparados e não responsabilizados pela situação em que se encontram. Os profissionais, também, têm dificuldades para lidar com as próprias limitações, sentimentos conflitantes que surgem diante de cada situação, temores e angústias desencadeados pelos dilemas de difícil resolução com os quais deparam cotidianamente e para os quais nem sempre contam com infraestrutura que ofereça suporte técnico, emocional e ético para suas decisões. Por outro lado, há que se considerar que existem profissionais interessados em perpetuar relações de subalternidade, que não procuram olhar para o paciente de maneira holística, que não cumprem seu dever de fornecer informações que favoreçam o entendimento, de modo a possibilitar a participação do doente, da família dele e dos demais profissionais envolvidos com a assistência nas decisões sobre o tratamento. Entendemos que são necessárias mudanças de postura da equipe de saúde. Esperamos que as transformações ocorridas no cenário político mundial, a difusão de novas tecnologias e a socialização dos meios de comunicação possam contribuir para o desenvolvimento da consciência moral das pessoas, promovendo mudanças de comportamentos que se fundamentem na justiça, na beneficência, no respeito mútuo e na solidariedade. Do mesmo modo, faz-se necessária uma adaptação das instituições hospitalares a esse novo paradigma, incorporando estratégias que possibilitem atender às necessidades e expectativas dos usuários, de modo acolhedor, eficiente e eficaz, norteadas por pressupostos éticos. Concluindo, cabe questionar nossa responsabilidade diante das evidências aqui apresentadas. É necessário trabalhar ampla e ativamente para que os profissionais de saúde e os pacientes ajam de forma autônoma. A comunicação que envolve o ouvir, principalmente nos períodos perioperatório (período que abrange 24 horas antes da cirurgia) e intraoperatório (24 horas após a cirurgia), poderá ser melhorada com a implantação da SAEP. É preciso que essas preocupações sejam incorporadas na formação ética dos profissionais de saúde para que a postura deles seja fundamentada na moral e na ética, e não apenas nos aspectos técnicos e legais da prática assistencial. Entretanto, reconhecemos que a autonomia das pessoas só é possível de ser exercida em uma sociedade nas quais seus direitos de cidadania sejam respeitados, o que significa acesso igualitário à educação, à saúde e à informação. Essas condições, certamente, promoverão relações mais simétricas entre as pessoas, particularmente entre profissionais de saúde e usuários, rompendo-se com o modelo autoritário e paternalista vigente. REFERÊNCIAS 1. Pupulim JSL, Sawada NO. Exposição corporal do cliente no atendimento das necessidades básicas em UTI: incidentes críticos relatados por enfermeiras. Rev Latino am Enferm. 2005; 13(3):388-96. 2. Zoboli ELCP, Sartorio NA. Bioética e enfermagem: uma interface no cuidado. O Mundo da Saúde. 2006; 30(3):382-97. 3. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de Bioética. 8ª ed. São Paulo: Loyola; 2007. 4. Cohen C, Marcolino JA. Relação médico-paciente. Autonomia e paternalismo. In: Segre M, Cohen C. Bioética. São Paulo: Edusp; 1995. p. 51-62. 5. 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Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 91 A autonomia de pessoas hospitalizadas em situação pré-cirúrgica 11. Conselho Regional de Enfermagem-COREN-SP. Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Art. 17. São Paulo: COREN; 2007/2008. 12. Conselho Federal de Medicina. Resolução N.1.246, de 8 jan. 1988. Código de ética médica. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF. 26 jan 1988; Séc. 1: 1574-7. 13. Backes DS, Lunardi VL, Lunardi Filho WD. A humanização hospitalar como expressão da ética. Rev Latinoam Enferm. 2006; 14(1):132-5. 14. Aquino CP, Caregnato RCA. Percepcão das enfermeiras sobre a humanização da assistência perioperatória. Rev SOSECC. 2005; 10(2):16-21. 15. Oliveira BRG, Collet N, Viera CS. A humanização na assistência à saúde. Rev Latino am Enferm. 2006; 14(2):277-84. 16. Beauchamp TL, Childress FJ. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 1994. 17. Bianchi ERF, Castellanos BEP. Considerações sobre a visita pré-operatória do enfermeiro da unidade de centro cirúrgico: resenha da literatura estrangeira. Rev Paul Enferm. 1983; 3(5): 161-5. 18. SOBECC, Nacional. Práticas Recomendadas. Sociedade Brasileira de Enfermeiros de Centro Cirúrgico Recuperação Anestésica e Centro de Material de Esterilização. 4ª ed. São Paulo: SOBECC; 2007. 19. Fortes PAC. Ética e saúde. São Paulo: EPU; 1998. Data de submissão: 19/6/2008 Data de aprovação: 23/6/2009 92 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 84-92, jan./mar., 2009 COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL EM ADULTOS COM TUBO OROTRAQUEAL* NONVERBAL COMMUNICATION OF ADULTS WITH OROTRACHEAL TUBE COMUNICACIÓN NO VERBAL EN ADULTOS CON TUBO OROTRAQUEAL Ana Lúcia De Mattia1 João Paulo Aché de Freitas Filho2 Cristiane da Silva Souza3 Kátia Cilene Gâmbaro3 Patrícia Ferreira Montassieur3 RESUMO Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, desenvolvido com o objetivo de identificar a forma de estabelecimento de comunicação não verbal entre o paciente com tubo orotraqueal (TOT) e a equipe multidisciplinar de saúde, realizado em uma Unidade de Terapia Intensiva Cardíaca de um hospital da rede filantrópica e privada da cidade de Santos, SP. A amostra foi constituída por 30 pacientes adultos, com tubo orotraqueal, conscientes, em pós-operatório de cirurgia cardíaca. Foi realizada uma observação estruturada, por meio de um instrumento com dados de identificação da amostra, motivos da internação e da comunicação não verbal. Quanto aos resultados, a maior frequência foi de pacientes do sexo masculino, com idade entre 50 e 60 anos. O diagnóstico médico mais frequente foi insuficiência coronariana em pósoperatório de revascularização do miocárdio e o tempo de permanência com o tubo orotraqueal de um dia. No que se refere à comunicação não verbal, o motivo foi a dor. Os tipos de comunicação mais utilizados foram a cinésica, com 26 (86,6%) pacientes, e a tacêsica, com 14 (46,6%). Conclui-se, neste estudo, que há um grande esforço por parte da equipe de saúde para o estabelecimento da comunicação com paciente com tubo orotraqueal. Acreditamos que tais dificuldades poderiam ser minimizadas com a realização de reuniões com profissionais da saúde e o paciente, em períodos préoperatórios, para orientações e simulações de comunicação não verbal; em motivos de maior frequência como dor, poderiam ser simulados em pré-operatório e aplicados no pós-operatório. Palavras-chave: Comunicação; Enfermagem; Intubação Intratraqueal. ABSTRACT This is a descriptive, exploratory study that aims to recognize forms of non-verbal communication between adults with orotracheal tube and the health team. The study was carried out in a cardiac intensive care unit of a hospital at the city of Santos, São Paulo. The sample was composed of 30 conscious adult patients with orotracheal tube in postoperative cardiac surgery. We performed a structured observation to obtain data regarding the patients, the surgery and the reason of the nonverbal communication. Results show that patients were mostly males aged 50 to 60 years old in postoperative bypass surgery. The most common medical diagnosis was coronary failure. Mean time of orotracheal intubation was one day. The main reason for nonverbal communication was pain and the mostly used forms of communication were kinesics (86.6%) and tacesics (46.6%). We conclude that the health team makes a great effort to establish communication with these patients and we believe that these difficulties could be minimized with preoperative meetings in which patients would advise and simulate nonverbal communication in specific situations. Key words: Communication; Nursing; Intubation; Intratracheal. RESUMEN El presente trabajo es un estudio exploratorio descriptivo realizado según el método cuantitativo con análisis absoluto y relativo de datos, presentación de gráficos y tablas. Su objetivo ha sido de identificar cómo se establece la comunicación no verbal entre los pacientes con tubo orotraqueal y el equipo multidisciplinario de salud. El estudio fue llevado a cabo en un importante hospital filantrópico privado de atención general de la ciudad de Santos. La Unidad de Terapia Intensiva Cardíaca, que cuenta con 10 camas, fue su campo de investigación. La muestra estuvo constituida por 30 pacientes adultos con tubo orotraqueal, conscientes, en postoperatorio de cirugía cardíaca. Fue realizada observación estructurada por medio de un instrumento con datos de identificación de la muestra, motivos de la internación y de la comunicación no verbal. Los resultados indicaron mayor frecuencia de pacientes varones entre 50 y 60 años, diagnóstico médico de insuficiencia coronaria en posoperatorio de revascularización del miocardio y un día de tiempo de permanencia con tubo orotraqueal. Lo que más motivo la comunicación no verbal fue el dolor; los tipos de comunicación más utilizados fueron la kinésica con 26 (86,6%) y la táctica con 14 (46,6%). Este estudio concluye que el equipo de salud dedica muchos esfuerzos para establecer la comunicación con el paciente con tubo orotraqueal. Estas dificultades podrían atenuarse con reuniones de profesionales de la salud y el paciente, en períodos preoperatorios, para orientar y simular la comunicación no verbal en motivos de mayor frecuencia como dolor: podrían simularse en el preoperatorio y aplicarse en el posoperatorio. Palabras clave: Comunicación; Enfermería; Intubación Intratraqueal. * 1 2 3 Trabalho de Conclusão de Curso, do Curso de Graduação em Enfermagem, da Universidade Católica de Santos, 2005. Enfermeira. Doutora pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2002. Professora Adjunta da EE/UFMG desde janeiro de 2009. Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Católica de Santos, 2005. E-mail:[email protected]. Mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto da Universidade Paulista, convidado da Universidade Católica de Santos. E-mail: [email protected]. Graduadas em enfermagem pela Universidade Católica de Santos, 2005. Enfermeiras da Santa Casa de Misericórdia de Santos. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-97, 84-92, jan./mar., 2009 93 Comunicação não verbal em adultos com tubo orotraqueal INTRODUÇÃO Os serviços de terapia intensiva hospitalares destinamse a pacientes em estado crítico, que necessitam de cuidados altamente complexos e restritos. Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), objetiva-se observar e manter as funções básicas da vida. É uma área onde os pacientes em estado grave podem ser tratados por uma equipe qualificada sob as melhores condições possíveis.1 Recentemente, há avanços nas técnicas cirúrgicas, anestésicas e na circulação extracorpórea que diminuem a morbimortalidade dos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca. O perfil desses pacientes tem mudado nos últimos anos. Cada vez mais, são encaminhados a cirurgias pacientes idosos, submetidos a cirurgia prévia, com disfunção sistólica ventricular, com patologias graves associadas, bem como pacientes com insucesso de angioplastias encaminhados em caráter de emergência. A esse fato adiciona-se que a circulação extracorpórea ocasiona alterações inflamatórias, metabólicas, de distribuição de líquidos e na coagulação sanguínea que repercutirão no pósoperatório imediato, sendo evidente a necessidade de uma atuação intensiva e programada de toda a equipe especificamente treinada para cuidar desse paciente. A anestesia geral pode reduzir em até 20% a capacidade residual funcional pulmonar no pós-operatório, enquanto a circulação extracorpórea reduz a complacência pulmonar e as alterações gradiente alvéolo arterial que podem não retornar ao normal mesmo por alguns dias, havendo, assim, necessidade de suporte ventilatório com tubo orotraqueal (TOT) além de 48 horas após a cirurgia.2 Os objetivos da assistência respiratória são assegurar uma via aérea permeável, fornecer oxigênio suplementar e instituir ventilação com pressão positiva, quando a respiração espontânea for inadequada ou ausente. A intubação orotraqueal é o método ideal para o controle avançado de vias aéreas.3 A intubação endotraqueal refere-se à passagem de um tubo endotraqueal através da boca ou nariz, para dentro da traqueia. Pode ser utilizada por mais de três semanas quando, então, uma traqueostomia deve ser considerada para diminuir a irritação e o trauma ao revestimento traqueal, reduzir a incidência de paralisia das cordas vocais e do espaço morto mecânico.4 pelo paciente durante o período pós-operatório em que este esteja parcialmente privado da comunicação verbal usual. A forma de classificar os tipos de comunicação varia; entretanto, deve-se considerar que esta não ocorre somente pela articulação de palavras, sendo possível expressar e ser compreendido, também, por meio de outros sinais denominados não verbais e que podem ser observados em todos os padrões de resposta humana, como “relacionar”, “perceber” e mesmo naqueles com características mais biológicas (cansaço, ansiedade, impaciência). Nesse sentido, Horta5 afirma que a enfermagem assiste o ser humano no atendimento de suas necessidades básicas e “a enfermagem como parte integrante da equipe de saúde implementa estados de equilíbrio, previne estados de desequilíbrio e reverte desequilíbrios em equilíbrio”. Para que isso seja viável, é necessário um processo de interação entre quem cuida e quem é cuidado, bem como a troca de informações em um processo de relação interpessoal profissional. Refletindo sobre essa afirmação e transpondo-a para a realidade de uma UTI, onde muitos pacientes necessitam de auxílio mecânico para a respiração, na maioria das vezes utilizando tubo orotraqueal, além de apresentarem alterações na comunicação verbal decorrente da perturbação da fala presença do tubo, chega-se aos seguintes questionamentos: Qual será a forma de comunicação entre a equipe multidisciplinar e o paciente com tubo orotraqueal? Será que a comunicação é frequentemente observada é eficiente? Para este estudo, tem-se como hipótese que o paciente se expressa por quaisquer sinais da linguagem não verbal, como: olhar, mímica, sorriso, gestos, sendo que a eficiência da linguagem não verbal serve-se de outros veículos com a mesma finalidade. Considerações gerais sobre comunicação e a comunicação interpessoal não verbal Comunicar é uma necessidade vital. Pode-se até afirmar que a qualidade de vida do indivíduo depende, em grande parte, da sua capacidade de comunicação.6 As implicações para a comunicação verbal-oral para esse paciente estão intimamente relacionadas à expressão de suas respostas às intervenções realizadas e às necessidades apresentadas no pós-operatório. As informações fornecidas pelo paciente nesse período constituem dados fundamentais para o planejamento e a implementação da assistência em saúde. A palavra “comunicar” origina-se do latim communicare, que significa pôr em conexão. A comunicação interpessoal pode ser definida como um conjunto de movimentos integrados, que calibra, regula, mantém e, por isso, torna possível a relação entre os homens. Para se estabelecer a comunicação, deve ocorrer um conjunto de elementos constituídos por um emissor (ou destinador), que produz e emite determinada mensagem, dirigida a um receptor (ou destinatário).7 A importância de desenvolver estudos nesse sentido para a equipe de saúde e em especial para a enfermagem se refere à habilidade profissional em identificar com exatidão as respostas humanas emitidas Mas para que a comunicação se processe efetivamente entre dois elementos, deve a mensagem ser realmente recebida e decodificada pelo receptor, por isso é necessário que ambos estejam no mesmo contexto 94 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-98, jan./mar., 2009 (devem ambos conhecer os referentes situacionais), devem utilizar um mesmo código (conjunto estruturado de signos) e estabelecer efetivo contato por meio de um canal de comunicação. Se qualquer desses elementos ou fatores falhar, ocorre uma situação de ruído na comunicação, entendido como todo fenômeno que perturba de alguma forma a transmissão da mensagem e a sua perfeita recepção ou decodificação por parte do receptor. A comunicação verbal refere-se às palavras expressas por meio da fala ou da escrita. A consciência de que aquilo que expressa é escutado e compreendido dá ao sujeito a certeza de que aquilo que comunica é acolhido. Aquele que não se sente acolhido e escutado pensa que ele próprio não é importante para os outros. A comunicação não verbal, por sua vez, não está associada às palavras e ocorre por meio de gestos, silêncio, expressões faciais, postura corporal, dentre outros sinais.7 A comunicação não verbal pode resgatar a capacidade do profissional de saúde de perceber com maior precisão os sentimentos do paciente, suas dúvidas e dificuldades de verbalização. Ajuda, ainda, a potencializar sua própria comunicação, como elemento transmissor de mensagens.7 • sinais estáticos: não mudam ou mudam pouco durante a vida da pessoa; • sinais lentos: estão relacionados com a idade, como rugas, pelos, manchas, queda e coloração dos cabelos; • sinais rápidos: mudanças que ocorrem rapidamente no rosto, às vezes em questão de segundos, e são mais sutis, como o movimento e o tônus muscular, temperatura e coloração da pele, suor e dilatação da pupila; • sinais artificiais: são assim chamados por interferir nos veículos dos sinais estáticos e lentos. Executando-se os óculos de grau, a maioria desses sinais é utilizada para aumentar a beleza ou combater as marcas da idade. As configurações faciais podem ser descritas com base na divisão da face em três áreas: testa, olhos e boca. Ekman (apud Silva8) descreve sete emoções chamadas de puras: • alegria: pálpebras levantadas, sorriso, olhar brilhante, levantamento das bochechas com fechamento do olho e levantamento da boca; Outro tipo de comunicação a ser destacado é a fisiológica, decorrente do relacionamento entre as diferentes partes do nosso corpo e a sua manifestação externa. • raiva: testa enrugada verticalmente pela junção das sobrancelhas, olhos fechados e tensos ou abertos e firmes, boca tensa, mandíbula cerrada e pupila contraída; Os sinais da comunicação não verbal, conforme mencionado por Silva8, são classificados em: • nojo: lábio superior levantado com acompanhamento ou não do lábio inferior, sobrancelha acentuada; • Paralinguagem: é qualquer som produzido pelo aparelho fonador que não faça parte do sistema sonoro da língua usada. Independentemente dos fonemas que compõem as palavras, os sinais paralinguísticos demonstram sentimentos, características da personalidade, atitudes, formas de relacionamento interpessoal e autoconceito. • medo: testa levantada com rugas horizontais, pálpebras fechando rapidamente ou abrindo-se excessivamente, rigidez, lábios finos e tensos com boca aberta ou não; • Cinésica: é a linguagem do corpo, ou seja, os seus movimentos, desde os gestos manuais, movimentos dos membros, meneios de cabeça, até as expressões mais sutis, como as faciais. • Proxêmica: é o uso que o homem faz do espaço como produto cultural específico, como a distância mantida entre os participantes de uma interação. O espaço entre os comunicadores pode indicar o tipo de relação que existe entre eles. • Tacêsica: é tudo que envolve a comunicação tátil: pressões exercidas, locais onde se toca, idade e sexo dos comunicadores. Está relacionada, também, com o espaço pessoal, a cultura dos comunicadores e as expectativas de relacionamento. Na comunicação cinésica, o rosto é tido como o melhor “mentiroso” não verbal. Do corpo todo, é a zona da qual as pessoas têm maior consciência e em que as tentativas de controle são mais frequentes. Os sinais faciais podem ser classificados em quatro tipos8: • tristeza: comissura labial voltada para baixo, sobrancelha oblíqua e choro; . surpresa: abertura da boca e dos olhos, sobrancelhas erguidas e afastadas; • desprezo: lábio superior com um dos cantos levantados e olhar de cima para baixo. Outras emoções frequentes: • ansiedade: suor na região frontal, palidez, rugas na fronte, mordiscar os lábios ou a cutícula; • dor/incômodo: olhos fechados, ruga na testa, lábios comprimidos, rigidez facial, comissura labial voltada para baixo, suor, frio e choro; • dúvida: lábios em bico, inclinação lateral da cabeça, sobrancelhas erguidas; • interesse: olhar em direção do objeto ou da pessoa, sorriso, meneio positivo da cabeça; • vergonha: rubor na face, abaixar os olhos, mudança do foco do olhar, leve protrusão da língua, observação através dos cílios. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-98, jan./mar., 2009 95 Comunicação não verbal em adultos com tubo orotraqueal OBJETIVO Este estudo tem como objetivo identificar a forma de estabelecimento de comunicação não verbal entre o paciente com tubo orotraqueal e a equipe multidisciplinar de saúde. MATERIAL E MÉTODO Tipo de estudo Esta pesquisa é de natureza descritiva, exploratória. Utilizou-se o método quantitativo, não experimental, transversal, com análise de frequência absoluta e relativa dos dados e apresentação de gráficos e tabelas. Local do estudo O estudo foi realizado em uma instituição de saúde, hospitalar, da rede filantrópica e privada da cidade de Santos. O hospital é de grande porte, com atendimento geral. Foi campo de pesquisa a Unidade de Terapia Intensiva Cardiológica, a qual conta com dez leitos, para atendimento do paciente adulto e criança, no estado crítico. População e amostra A amostra foi composta por 30 pacientes adultos, portadores de tubo orotraqueal, conscientes e, em pósoperatório de cirurgia cardíaca. Coleta de dados Após o aceite da instituição, foi feito contato com a enfermeira responsável pela UTI cardiológica para consentimento e esclarecimentos, ocasião em que foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em seguida, iniciou-se a coleta de dados com os pacientes ou familiares que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme Resolução n° 196/96. A coleta de dados foi realizada por três estudantes de enfermagem do 7º período de uma universidade da rede privada da cidade de Santos, nos meses de maio e junho de 2005, nos períodos da manhã, tarde e noite. Foi elaborado um instrumento de coleta de dados (Apêndice) contendo duas partes: a parte I contendo dados extraídos do prontuário médico do paciente, referente à identificação como sexo, idade, diagnóstico médico, cirurgia realizada e tempo com o tubo orotraqueal; a parte II contendo dados coletados por meio de observação estruturada. Na observação, buscou-se o motivo da comunicação e o profissional envolvido, bem como o tipo de comunicação não verbal utilizada pelo paciente (paralinguagem, cinésica, proxêmica ou tacêcisa). 96 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-98, jan./mar., 2009 CATEGORIZAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Identificação da amostra e permanência com TOT Os resultados demonstraram que, na identificação da amostra, a maioria (66,6%) era do sexo masculino, na faixa etária entre 50 e 60 anos de idade, com diagnóstico médico de insuficiência coronariana em 22 (80,0%), os quais foram submetidos a revascularização do miocárdio. Quanto ao tempo de permanência com o TOT, a maior frequência foi de um dia, com 18 (60,0%) dos pacientes, seguidas de dois dias, com 6 (20,0%) pacientes. Motivos e tipos da comunicação não verbal O motivo de maior frequência apresentado pelos pacientes foi a dor, que levou a uma comunicação não verbal do tipo cinésica. TABELA 1 – Distribuição da frequência dos pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca, com TOT, segundo motivos que os levaram à comunicação não verbal – Santos, 2005 Motivos da comunicação Nº % Dor 12 40,0 Sede 6 20,0 Necessidade de afeto 5 16,6 Necessidade de orientação 7 23,3 Agitação 3 10,0 Total 33 - Os motivos que levaram os pacientes a utilizar a comunicação não verbal estão representados na TAB. 1, na qual demonstra-se que a dor teve a maior frequência com 12 (40,0%) dos pacientes, seguida de necessidade de orientação, sede e necessidade de afeto. Estudos de psicologia social mostram que a expressão do pensamento se faz 7% com palavras, 38% com sinais paraliguísticos e 55% por meio dos sinais do corpo.7 TABELA 2 – Distribuição da frequência dos pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca, com TOT, segundo o tipo de comunicação não verbal – Santos, 2005. de vida”.9 Sendo que pacientes críticos, em pós-operatório de cirurgia cardíaca, a maioria dos atendimentos foi feita por auxiliares de enfermagem, havendo divergência com relação à legislação da enfermagem. Tipos da comunicação Nº % CONCLUSÃO Paralinguagem - - Cinésica 26 86,6 Proxêmica - - Tacêsica 14 46,6 Total 40 - A TAB. 2 demonstra que cada paciente apresentou mais de um tipo de comunicação não verbal. O tipo mais utilizado foi a cinésica, utilizada por 26 (86,6%) pacientes. A cinésica é a linguagem do corpo, ou seja, dos movimentos, desde os gestos manuais, movimentos dos membros, meneios de cabeça até as expressões mais sutis, como as faciais.7,8 No que se refere ao profissional que atendeu o paciente em sua necessidade, estabelecendo uma comunicação, obtivemos que em 25 (83,3%) vezes o atendimento foi realizado por auxiliares de enfermagem, 7 (23,3%) por enfermeiros e 1 (3,3%) pelo fisioterapeuta. Segundo o Conselho Regional de Enfermagem (COREN), Resolução nº 7.498, de 25 de junho de 1986, artigo 11, “o enfermeiro exerce todas as atividades de Enfermagem, cabendo-lhe privativamente: cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco Demonstrou-se, nesta pesquisa, que a maioria dos pacientes com diagnóstico médico de insuficiência coronariana era do sexo masculino, com idade entre 50 e 60 anos, e estavam em pós-operatório imediato de revascularização do miocárdio, sendo o tempo de permanência médio com o TOT um dia. A comunicação não verbal foi motivada, na maioria das vezes, pela dor, estabelecida pela cinésica, seguida por tacêsica, com o profissional auxiliar de enfermagem. Os pacientes não utilizaram outros recursos não verbais como a paralinguagem ou mesmo a comunicação escrita. Os gestos do corpo e o “toque” foram as formas encontradas para o estabelecimento da comunicação não verbal. Observou-se grande dificuldade dos profissionais da saúde em se comunicarem com pacientes portadores de TOT; assim, sentiu-se a necessidade da participação de profissionais como terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo para a realização de grupos de discussão para o restabelecimento da melhor forma de comunicação com os pacientes com TOT e o aperfeiçoamento de toda a equipe multidisciplinar. Conclui-se, neste estudo, que há um grande esforço por parte da equipe de saúde para o estabelecimento da comunicação não verbal com paciente com TOT. Essas dificuldades poderiam ser minimizadas com a realização de educação em serviço com profissionais da saúde e o paciente, em período pré-operatório, para orientação e simulação de comunicação não verbal e aplicação no pós-operatório. REFERÊNCIAS 1. Gomes AM. Enfermagem na unidade de terapia intensiva. São Paulo: EPU; 1988. 2. Pitrez FAB, Pioner SR. Pré e pós-operatório: em cirurgia geral e especializada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. 3. Paiva EF. Suporte avançado de vida em cardiologia. Dallas: Fundação Interamericana Del Corazon; 1999. 4. Smeltzer SC, Bare BG. Tratado de enfermagem médico-cirúrgica. 8ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2002. 5. Horta WA. Processo de enfermagem. São Paulo: EPU; 1979. 6. Finkle P. Comunicar e dialogar: ou a arte de entender os outros sem mentir para si mesmo. Petrópolis: Vozes; 1996. 7. Weil P, Tompakow R. O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação não verbal. 42ª ed. Petrópolis: Vozes; 1998. 8. Silva MJP. Comunicação tem remédio: a comunicação nas relações interpessoais em saúde. São Paulo: Gente; 1996. 9. Conselho Regional de Enfermagem-Coren-SP. Documentos básicos de enfermagem: principais leis e resoluções que regulamentam o exercício profissional de Enfermeiros, Técnicos e Auxiliares de Enfermagem. São Paulo: Coren; 2001. Data de submissão: 5/12/2007 Data de aprovação: 12/6/2009 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-98, jan./mar., 2009 97 Comunicação não verbal em adultos com tubo orotraqueal APÊNDICE INSTRUMENTO DE COLETA DE DADOS 98 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 93-98, jan./mar., 2009 AÇÕES DO ENFERMEIRO NA RECEPCÃO DO PACIENTE EM CENTRO CIRÚRGICO* NURSING ACTIONS IN THE ADMISSION OF PATIENTS AT A SURGICAL CENTER ACCIONES DEL ENFERMERO EN LA RECEPCIÓN DEL PACIENTE EN EL CENTRO QUIRÚRGICO Eniva Miladi Fernandes Stumm1 Marieli Balestrin Zimmermann2 Nara Marilene O. Girardon-Perlini3 Rosane Maria Kirchner4 RESUMO Neste estudo, foram identificadas ações do enfermeiro na recepção de pacientes no centro cirúrgico de três hospitais da região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, com estudo de caso. Os instrumentos de coleta de dados foram entrevista aberta e diário de campo. Participaram seis enfermeiras que atuam nos respectivos centros cirúrgicos. Da análise dos dados emergem três categorias que denotam as ações dos enfermeiros que atuam nesta unidade: Avaliando as condições físicas e emocionais do paciente no centro cirúrgico, Familiarizando o paciente com o ambiente do centro cirúrgico e não o deixando sozinho e Destacando a formação acadêmica como base do cuidar. Os resultados podem auxiliar enfermeiros e acadêmicos de enfermagem no sentido de qualificar a assistência prestada ao paciente em centro cirúrgico. Palavras-chave: Relações Enfermeiro-Paciente; Centro Cirúrgico Hospitalar; Cuidados de Enfermagem. ABSTRACT This study identifies nursing actions in the admission of patients at a surgical centre of three hospitals of the northwest region of Rio Grande do Sul, Brazil. It is a qualitative, descriptive and case study research. Open interview and field diary were used to collect data. Six nurses from the surgical centers took part in the study. Analysis of the data show three major nursing actions: to evaluate the physical and the emotional condition of the patient at the surgical center, to familiarize the patient with the environment of the surgical center, and to accompany the patient, highlighting the academic background as a base of the care. These results may help nurses and nursing students to qualify the assistance given to the patient at the surgical center. Key words: Nurse-Patient Relations; Surgery Department Hospital; Nursing Care. RESUMEN Este estudio identifica acciones del enfermero en la recepción de pacientes en el centro quirúrgico de tres hospitales de la región noroeste del Estado de Rio Grande do Sul. Se trata de una investigación cualitativa, descriptiva, con estudio de caso. Los instrumentos de recogida de datos fueron la encuesta abierta y el diario de campo. Participaron seis enfermeras que trabajaban en los respectivos centros quirúrgicos. Del análisis de los datos surgieron tres categorías que muestran las acciones de los enfermeros que actúan en esta unidad: evaluando las condiciones físicas y emocionales del paciente en el centro quirúrgico, haciendo que el paciente se familiarice con el ambiente no dejándolo solo y destacando la formación académica como base del cuidar. Los resultados pueden auxiliar enfermeros, académicos y enfermería a cualificar la asistencia brindada al paciente en el centro quirúrgico. Palabras clave: Relaciones Enfermero-Paciente; Servicio de Cirugía en Hospital; Atención de Enfermería. * 1 2 3 4 Artigo produzido com base em resultados de um trabalho de conclusão de curso de graduação em Enfermagem, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Enfermeira. Mestre em Administração – Recursos Humanos pela UFRGS. Docente da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) Enfermeira. Egressa da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Doutora em Engenharia Elétrica – Métodos de Apoio à Decisão. Professora de Estatística do Centro de Ciências Rurais de São Gabriel (CRSG) da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Endereço para correspondência: Rua 20 de setembro, nº 902, Centro – Ijuí/RS. CEP: 98700-000. E-mail: [email protected]. rem remE E- Rev. - Rev.Min. Min.Enferm.;13(1): Enferm.;13(1):99-106, 93-98, jan./mar., 2009 99 Ações do enfermeiro na recepção do paciente em centro cirúrgico INTRODUÇÃO O centro cirúrgico (CC) é uma unidade fechada onde, na maioria das vezes, o paciente é submetido a procedimentos invasivos que, independentemente da complexidade, podem gerar sentimentos de ansiedade, além de envolver risco, resultando na necessidade de o enfermeiro oferecer atenção especial na recepção e durante sua permanência na respectiva unidade. O ato anestésico-cirúrgico predispõe o paciente a uma condição de medo, de insegurança e de instabilidade.1 É compreensível que ele se sinta atemorizado momentos antes de ser submetido a um procedimento cirúrgico, não somente pelo ambiente, equipamentos, pessoas estranhas, mas, também, pela forma como é recebido pela equipe, considerando que cada pessoa reage de maneira única às situações que vivencia. Durante a atuação em CC, percebeu-se que os pacientes, na sua maioria, ficavam sozinhos no corredor, alguns por longos períodos, às vezes horas, aguardando a liberação de uma sala cirúrgica e/ou a chegada do cirurgião. Esse fato provocou vários questionamentos, pois percebia-se na fisionomia daquelas pessoas um misto de apreensão, medo, ansiedade, alguns até mesmo choravam em silêncio. O fato de se sentirem vulneráveis, desprotegidos e, até mesmo, ameaçados, pode estar relacionado a informações prévias e a tudo o que veem e escutam nesse local e pode contribuir para exacerbar sentimentos de ameaça, ansiedade e insegurança. Daí a relevância do cuidado do enfermeiro iniciar-se, de fato, na admissão do paciente no centro cirúrgico e a importância de humanizar as relações no referido ambiente, com repercussão positiva no desempenho e na assistência ao paciente em CC.2 No cotidiano de um centro cirúrgico, o enfermeiro é responsável pela recepção do paciente, mas, na maioria das vezes, não é ele quem desempenha essa função. Quando o paciente é orientado em relação aos procedimentos a que será submetido e como estes transcorrerão, os níveis de ansiedade, insegurança e medo serão menores do que naqueles que não tiveram acesso a qualquer informação.3,4 Nesse sentido, destaca-se a relevância de compreender a complexidade que envolve a atuação do enfermeiro nesta unidade, em especial no que tange à recepção do paciente. Nessa perspectiva, é consenso na literatura que, dentre as várias funções do enfermeiro no centro cirúrgico (CC), destaca-se receber o paciente, avaliar suas condições físicas e emocionais, visando à resolução dos problemas identificados.1 Importante ressaltar que, na assistência de enfermagem perioperatória, o enfermeiro tem como foco o paciente cirúrgico, buscando ajudá-lo a compreender seu problema de saúde, prepará-lo para o procedimento anestésico/ cirúrgico a que será submetido, bem como a utilizar mecanismos de defesa fisiológicos e psicológicos durante esse período.5 Uma pesquisa envolvendo enfermeiros de um centro cirúrgico de um hospital da região central do Rio Grande 100 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 do Sul, que buscou identificar as dificuldades enfrentadas por eles em seu cotidiano, concluiu que uma delas está relacionada à demanda excessiva de atividades burocráticas, fator que pode ter relação com a não recepção do paciente. 6 Por outro lado, em decorrência dos avanços tecnológicos, científicos e da modernização de procedimentos, o enfermeiro passou a se deter em encargos administrativos e afastou-se, gradativamente, do cuidado ao paciente, o que pode contribuir para gerar ansiedade e medo nos pacientes no pré-operatório.7 Com base nas considerações dos autores, destaca-se o papel da enfermagem e, em especial, do enfermeiro na assistência ao paciente no CC, pois, a partir do momento em que lhe é propiciado um espaço de expressão de temores, sentimentos, percepções e de respostas às suas inquietações, ele, provavelmente, terá uma experiência cirúrgica mais tranquila e menos estressante. O objetivo com este estudo é identificar ações direcionadas à recepção de pacientes realizadas por enfermeiras que atuam em centro cirúrgico. CAMINHO METODOLÓGICO Este estudo caracteriza-se como pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, tipo estudo de caso, desenvolvida em uma cidade da região noroeste do Rio Grande do Sul, em três hospitais, dois de grande porte e um de médio porte, mais especificamente no centro cirúrgico. Participaram todas as enfermeiras (seis) que atuam nos centros cirúrgicos dos respectivos hospitais. Os instrumentos de coleta de dados consistiram em entrevista aberta, gravada em áudio-tape e observações em diário de campo. A questão norteadora da entrevista foi: Diga-me o que você faz no momento em que o paciente chega ao centro cirúrgico. A coleta de dados ocorreu em setembro e outubro de 2006. As entrevistas foram agendadas previamente, sendo realizadas, conforme opção das enfermeiras, durante o horário de trabalho. A análise dos dados foi realizada seguindo os preceitos da análise temática e compreendeu a ordenação, classificação dos dados e análise final.8 Foram observados os aspectos éticos contidos na Resolução n° 196/96, instituída pelo Conselho Nacional de Saúde.9 O projeto de pesquisa, inicialmente, foi registrado no Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (SISNEP), encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Unijuí, juntamente com a autorização da direção dos três hospitais pesquisados. Após a aprovação do projeto, sob o Parecer consubstanciado nº 124/2006, procedeuse a coleta de dados. Para garantir o anonimato dos sujeitos, eles foram identificados pela letra E (entrevistado) seguida do número relativo à ordem em que as entrevistas foram realizadas. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Considera-se importante, inicialmente, uma breve caracterização dos sujeitos que integraram a pesquisa. São todas (seis) mulheres, três solteiras, uma divorciada e as demais, casadas. A faixa etária variou de 22 a 47 anos de idade e duas possuem filhos. Quanto ao grau de instrução, duas são especialistas e as demais, graduadas e atuam em CC de 8 meses a 25 anos. Analisando o perfil das mulheres, pode-se considerar que elas, antigamente, dedicavam-se à família, muitas vezes, abrindo mão da própria satisfação em prol dos filhos e companheiros,10 sendo que, atualmente, cada vez mais elas estão se inserindo no mercado de trabalho, delimitando novos horizontes e, progressivamente, conquistando seus espaços e buscando o equilíbrio entre sucesso profissional e vida pessoal. Quanto à formação, esta é primordial para qualificar a assistência e para o sucesso profissional, além de garantir o desenvolvimento dos trabalhadores e, consequentemente, das organizações em que atuam.11 Essa necessidade vai ao encontro das mudanças no mundo do trabalho e, particularmente, no da enfermagem, no qual o enfermeiro tem buscado as especializações como forma de abrir espaço para atuar em diferentes organizações de saúde. Quanto ao tempo de atuação em centro cirúrgico, somente uma delas atua a menos de um ano nessa unidade, enquanto as demais estão há mais tempo, variando de um a mais de dez anos. Esse resultado indica que elas possuem experiência nessa área, condição que as torna aptas a atuar nas respectivas unidades. A análise dos depoimentos das enfermeiras resultou na estruturação de três categorias de análise: Primeira categoria – Avaliando as condições físicas e emocionais do paciente no centro cirúrgico; Segunda categoria: Familiarizando o paciente com o ambiente do centro cirúrgico e não o deixando sozinho; Terceira categoria: Destacando a formação acadêmica como base do cuidar. Primeira categoria – Avaliando as condições físicas e emocionais do paciente no centro cirúrgico A assistência de enfermagem é fundamental ao paciente que será submetido a um procedimento cirúrgico, podendo iniciar-se a partir do agendamento do procedimento. A visita pré-operatória pelo enfermeiro possibilita identificar, além das condições físicas, sentimentos como ansiedade, medo, preocupação, dor e insegurança, dentre outros. Também favorece que o enfermeiro, ao conhecer e interagir com o paciente, possa cuidar dele melhor no decorrer do processo cirúrgico. A visita pré-operatória representa o início da sistematização da assistência de enfermagem.12 O fato de o enfermeiro conhecer o paciente antes da realização do procedimento cirúrgico aproxima ambos, facilita a interação e, por conseguinte, favorece a avaliação das condições de saúde e o planejamento da assistência. Para que isso ocorra, efetivamente, é necessário que os enfermeiros estejam aptos a identificar as necessidades dos pacientes, possibilitando a prevenção de complicações, bem como a detecção precoce de intercorrências no perioperatório.13 Ao vivenciar situações envolvendo a recepção de pacientes no centro cirúrgico, percebe-se a diferença entre aqueles que não recebem a visita do enfermeiro antes da cirurgia e os demais. Quando a visita préoperatória não é possível, a recepção do paciente no momento da cirurgia reveste-se de importância. Uma das participantes do estudo destaca a importância de o enfermeiro admitir o paciente no CC: Procuro conversar com ele, se já fez outras cirurgias, histórico, alergia, aquela entrevista rápida: tricotomia, estado geral, punção. A avaliação vai desde o uso de prótese dentária, joias [...]. Gosto de receber para ter certeza das condições do paciente. (E4) Analisando o depoimento, percebe-se que ações aparentemente simples, tais como a verificação de prótese dentária, são fundamentais e influenciam nos cuidados que vão ser prestados. Dentre os cuidados que o enfermeiro deve realizar ao receber o paciente, incluise verificar o prontuário, conferir se as medicações préanestésicas foram administradas, avaliar níveis de consciência, verificar sinais vitais, confirmar retirada de próteses, esmaltes e adornos e investigar se o paciente tem algum problema alérgico.1 Além da avaliação física, existem condições emocionais que também precisam ser incluídas nessa avaliação, pois sentimentos como medo da anestesia e de alterações corporais14 podem interferir no processo cirúrgico. Nesse sentido, as enfermeiras pesquisadas buscam captar as necessidades do paciente para, a partir delas, realizar o cuidado. Conversar com o paciente, acolher ele, explicar, interagir, proporcionar um vínculo com ele. (E3) Se a enfermeira sabe ouvir o paciente, a percepção dele vai ser melhor e o nível de estresse menor [...]. Procuro explicar, e a primeira coisa é tudo o que nós vamos realizar com ele. (E1) Eu recebo o paciente, converso com ele, ajudo a sanar algumas dúvidas, medos, saber a expectativa dele para poder avaliar um pouquinho o estado emocional também, proporcionar conforto. (E4) Nos depoimentos, evidencia-se a preocupação das enfermeiras em ouvir e acolher os pacientes, transmitindo tranquilidade e contribuindo para a redução dos níveis de estresse, os quais podem interferir remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 101 Ações do enfermeiro na recepção do paciente em centro cirúrgico no processo cirúrgico. O “estresse é um estado de tensão, ansiedade ou pressão experenciado pela pessoa. Pode ser descrito como estado de apreensão, agitação, frustração, irritação, medo, desconforto mental, infelicidade etc.”15:90 Esses sentimentos são facilmente identificados no paciente cirúrgico e mencionados pelos sujeitos deste estudo. No decorrer da coleta de dados, observou-se a recepção de vários pacientes no CC e, no momento em que eram encaminhados à sala cirúrgica, posicionados na mesa cirúrgica e, principalmente, na indução anestésica, era visivel a expressão facial de medo, insegurança e nervosismo. As mãos ficavam frias e, muitas vezes, trêmulas, demonstrando o que estavam sentindo e reforçando a importância da presença e do acompanhamento do enfermeiro nesse período, explicando-lhes o procedimento, segurando-lhes a mão, transmitindo segurança e um pouco de tranquilidade. Nesse sentido, Bedin, Ribeiro e Barreto destacam que “as atividades de enfermagem no centro cirúrgico, muitas vezes, podem ser limitadas a segurar a mão do paciente na indução anestésica, confortá-lo e posicioná-lo na mesa cirúrgica”.7:401 Uma das entrevistadas destaca a importância de o enfermeiro estar ao lado do paciente durante a indução anestésica. Menciona, porém, que a finalidade primordial é auxiliar o anestesista, principalmente diante de alguma intercorrência: O enfermeiro tem que estar presente na hora da indução de uma anestesia geral, no momento de uma entubação para auxiliar o anestesista em alguma intercorrência. (E1) É importante que a atenção do enfermeiro para com o paciente ocorra durante todo o processo, independentemente da presença e da atuação dos demais profissionais. O período que antecede a cirurgia, em especial o período anestésico, constitui um momento crítico, que merece cuidados e atenção contínuos, visando minimizar os riscos, prevenir e detectar intercorrências como forma de favorecer e qualificar a assistência de enfermagem 3 e, por conseguinte, a recuperação do paciente. Evidenciam-se, no esforço de apreender o conteúdo existente nos depoimentos das enfermeiras, sujeitos do estudo, a preocupação e o cuidado para diminuir a ansiedade, o estresse, as dúvidas, o medo e, principalmente, os riscos inerentes aos procedimentos anestésico-cirúrgicos a que os pacientes são submetidos. Segunda categoria – Familiarizando o paciente com o ambiente do centro cirúrgico e não o deixando sozinho Ao chegar ao CC, a maioria dos pacientes depara com um ambiente estranho, com pessoas vestidas 102 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 igualmente de forma diferente das outras unidades, com máscara, gorro, touca, o que pode contribuir para exacerbar sentimentos e percepções relacionados à anestesia e ao procedimento cirúrgico a que serão submetidos. Nesse sentido, o cuidado da enfermeira em familiarizar o paciente com relação ao ambiente antes da cirurgia e, principalmente, de permanecer ao lado dele quando no centro cirúrgico são fundamentais. O centro cirúrgico é caracterizado como um ambiente frio, diferente dos demais setores do hospital, com equipamentos especiais e roupas diferenciadas das demais unidades, enfim, é um ambiente estranho para quem não o conhece, mas familiar para quem trabalha nele.4 A equipe que atua nessa unidade deve ter cuidado especial, por exemplo, com palavras e atitudes, que para ela são habituais, mas podem amedrontar o paciente. Contribuindo nessa reflexão, tudo o que o paciente vê e escuta no CC pode gerar sentimento de ameaça e contribuir para aumentar-lhe a ansiedade e a insegurança. No momento em que o paciente se insere no CC, cabe ao enfermeiro familiarizá-lo no ambiente. Explicar o ambiente, o local de entrada, a sala onde ele vai ficar, a sala cirúrgica, se identificar, tentar tranquilizá-lo, dizer que tem familiar na porta e que a gente vai cuidar bem dele. (E2) Como o CC é pequeno, a gente consegue mostrar a sala cirúrgica, a gente procura conversar com esse paciente. Essa acolhida é fundamental. Há pacientes que já fizeram cirurgia, outros não, é a primeira intervenção. (E3) Diante do exposto, percebe-se que as enfermeiras se preocupam em acolher o paciente no CC, proporcionando-lhe uma assistência humanizada. Essas ações são realizadas tanto para pacientes com experiência cirúrgica prévias quanto para os que estão vivenciando pela primeira vez uma anestesia e/ou cirurgia. No depoimento a seguir, observa-se que a entrevistada reconhece as especificidades do CC e, com base nisso, busca familiarizar o paciente no ambiente, explicando os procedimentos a que será submetido, os equipamentos utilizados... Um aspecto importante relaciona-se à forma de abordagem clara e simples ao paciente, para que ele possa compreender o que está sendo comunicado: Eu procuro explicar ao paciente tudo o que vamos realizar com ele [...]. No momento em que você recebe o paciente, tem que ser bem clara, objetiva, explicar de forma simples o que você vai realizar com ele. (E1) Diante desse ambiente diferenciado, que é o CC, cabe ao enfermeiro criar e manter um espaço de acolhimento, contribuindo para a recuperação do paciente. Dentre as ações do enfermeiro referentes a esses aspectos, para o trabalho se tornar humanizado no CC, é conveniente que a enfermeira demonstre, em suas ações, que o progresso da tecnologia e da ciência não impede a humanização da unidade, um elemento indispensável nas relações enfermeiro e paciente, que tanto enobrece, dignifica e eleva os ideais de Enfermagem.16:9 Nesse sentido, a humanização deve permear cada uma das atividades desenvolvidas pelos enfermeiros, mesmo que equipamentos estejam presentes no procedimento cirúrgico, embora haja, no CC, momentos em que o paciente é esquecido em detrimento de questões burocráticas, ambientais e até por falta de respeito.7 Os depoimentos a seguir denotam a preocupação em não deixar o paciente sozinho no corredor do CC. Todavia, as participantes admitem que não conseguem realizar a recepção de todos os pacientes, delegando essa função a outros profissionais: Tem a secretária e a escrituraria; se eu não posso e se outro funcionário não pode, eu peço a elas para não deixá-lo sozinho; nem que seja a moça da higienização. Dificilmente o paciente fica sozinho. (E5) Se, normalmente, eu não posso, se estou puncionando ou passando uma sonda, chega o paciente, não tem como eu largar e sair correndo para recebê-lo. Ela (a secretária) tem treinamento, ela vem e faz as mesmas coisas que eu. (E6) No decorrer da observação em um dos centros cirúrgicos pesquisados, em várias situações foi possível constatar que pacientes permaneciam sozinhos no corredor, com expressão facial de medo, angústia, ansiedade, até mesmo alguns choravam baixinho. Muitas vezes eles estavam conscientes, mesmo tendo recebido pré-anestésicos. A justificativa apresentada para a impossibilidade de recepcionar todos os pacientes no CC relaciona-se à demanda de atividades de cunho assistencial. Embora não mencionado, sabe-se que, num dos CCs estudados, há somente um enfermeiro e, sendo assim, é compreensível a dificuldades no desempenho de todas as atribuições específicas desse profissional, o que pode vir a repercutir na assistência ao paciente. Estudo referente às dificuldades que o enfermeiro enfrenta em centro cirúrgico aponta que o número reduzido de enfermeiros nessas unidades tem dificultado a sistematização da assistência de enfermagem no perioperatório.6 A enfermagem, pelo fato de atuar o maior tempo junto do paciente, representa o elo entre ele e o ambiente de centro cirúrgico.17 Em estudo envolvendo o trabalho da enfermagem no CC constatou-se que muitas vezes, na prática do cuidar, assiste-se a um afastamento entre enfermeira e paciente. A enfermeira não tem oportunidade de ver o paciente e delega o cuidar aos ocupacionais de enfermagem que não estão preparados para assisti-los, com o argumento de não ter tempo para prestar-lhe cuidados.18 O enfermeiro que atua em centro cirúrgico é responsável pelo gerenciamento e pela assistência, enfrenta sobrecarga de trabalho, o que pode resultar em lacunas, tanto na assistência aos pacientes quanto na parte administrativa. Contribuindo nessa reflexão, o enfermeiro sofre sobrecarga, mas também os demais integrantes da equipe de enfermagem, pelo número insuficiente de profissionais que, muitas vezes, não consegue desempenhar todas as atividades no seu respectivo turno de trabalho.19 Analisando o depoimento das enfermeiras relacionado à familiarização do paciente no centro cirúrgico, bem como ao cuidado em não deixá-los só, percebe-se que estas, na medida do possível, têm explicado ao paciente sobre o funcionamento do CC, mostrado alguns equipamentos e, até mesmo, a sala de cirurgia onde será realizado o procedimento cirúrgico. Essa forma de agir contribui para que o paciente se sinta menos ansioso e sua experiência se torne menos traumática. Percebe-se que há preocupação das enfermeiras com a recepção dos pacientes no CC e o cuidado em não deixá-los sozinhos. Chama atenção, porém, o fato de algumas delegarem essa atribuição às secretárias e escriturárias, justificando a atitude pela demanda assistencial do CC e que essas profissionais estão aptas a recepcionar os pacientes, uma vez que foram treinadas para isso e que são capazes de avaliar os pacientes como o enfermeiro faz, o que parece, de algum modo, descaracterizar o papel do enfermeiro nessa função, desvinculando-o da necessidade de conhecimento científico e tornando-o uma formalidade administrativa, sem importância clínica. Terceira categoria – Destacando a formação acadêmica como base do cuidar No que tange às ações do enfermeiro na recepção do paciente no CC, evidencia-se que a formação acadêmica, cujo foco principal é direcionado para a concepção do cuidado integral ao paciente e integrativo da assistência com o gerenciamento, parece haver dificuldade em formar enfermeiros que consigam desenvolver, na prática, essa integração. O ensino de enfermagem enfrenta um desafio: o de preparar indivíduos que sejam capazes de cuidar, pensar criticamente, tomar decisões, liderar, planejar, administrar e gerenciar os serviços de enfermagem.20 No decorrer da atuação em CC, várias situações contribuíram para uma visão critica de como trabalhar em uma unidade complexa e que exige do enfermeiro, além de capacitação técnica, conhecimento científico e habilidades nas relações interpessoais. Analisando a fala de uma das enfermeiras, sujeitos da pesquisa, ela destaca sua formação acadêmica, os valores que apreendeu na graduação, enfatizando que são importantes e que permeiam sua prática em CC. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 103 Ações do enfermeiro na recepção do paciente em centro cirúrgico A minha formação acadêmica foi muito importante, me ajudou muito e hoje, na prática mesmo, vejo a importância dos valores que tu adquire... nunca esquece essa formação. (E5) Independentemente do tempo de atuação no espaço de um CC, a experiência adquirida durante a graduação constitui-se em referência e amparo para o direcionamento das ações, a postura e o desempenho do profissional no cotidiano de sua práxis. Nesse sentido, uma das entrevistadas refere ser fundamental que o enfermeiro se coloque no lugar do paciente para prestar uma assistência humanizada: Porque uma coisa que eu sempre tive em toda a graduação é a importância da empatia, de me colocar no lugar desses pacientes, de imaginar como eu gostaria de estar sendo cuidada. (E3) As ações do enfermeiro, de certo modo, principalmente no início das atividades como profissional, são embasadas na experiência e nos conhecimentos técnicos e científicos apreendidos no decorrer da formação. Assim, quando as atividades propostas no decorrer do curso e as discussões e reflexões realizadas permitem ampliar a visão do centro cirúrgico como estrutura física e a dimensão do fazer para além do específico, a atenção do enfermeiro nesse setor pode tornar-se mais integralizadora e complementar o que se reflete na qualidade do cuidado direcionado ao paciente e também na dinâmica e organização da unidade como um todo: Preocupo-me com a família dos pacientes, busco atendê-las com atenção e cuidado. Sendo assim, quando eu vou colocar um soro, explico desde coisas mais óbvias, que para nós acaba sendo óbvias, mas que para o paciente e a família não o são. (E3) O enfermeiro também assume responsabilidades com a família do paciente, dando respostas aos diversos questionamentos, mantendo-a informada, pois ela, normalmente, fica apreensiva, preocupada e desejando notícias do andamento da cirurgia. Nesse contexto, o enfermeiro assume papel de mensageiro, mantendo um elo com a família da pessoa que está sendo submetida ao procedimento cirúrgico, até sua saída desse setor,14 explicando-lhe que o fato de uma longa espera não significa que o paciente esteja o tempo todo na sala cirúrgica, pois a preparação da anestesia e a indução consomem tempo; e que o cirurgião fará contato ao término do procedimento; dentre outros. Isso trará tranquilidade aos familiares que aguardam na sala de espera.21 Outro aspecto abordado na literatura como parte das ações do enfermeiro no cuidado no CC é a comunicação com o paciente, sendo destacado, nessa perspectiva, a 104 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 importância de explicar-lhe os procedimentos que estão sendo realizados. Nesse sentido, a comunicação verbal (linguagem falada ou escrita) e a não verbal (gestos e atitudes) precisam ser vistas como inseparáveis e inter-relacionáveis; ambas se complementam.22 A constante qualificação profissional está presente em todas as áreas de trabalho, exigindo crescimento contínuo. Atualmente, o ensino médio favorece a inserção do trabalhador no mercado de trabalho, porém a busca por maior qualificação se faz presente no depoimento de uma das pesquisadas. Uma das enfermeiras entrevistadas era auxiliar de enfermagem antes de cursar a graduação e destaca que ambas as formações foram e são importantes na sua atuação profissional. Eu já trabalhava como auxiliar, eu já tinha a prática... ajudou muito, com a teoria e a prática a gente sabe cada vez mais... Cada dia tu cresce mais, o que tu aprende na faculdade ajuda e muito. (E6) A entrevistada relata que a formação acadêmica lhe proporcionou aporte teórico, o qual foi aliado à experiência como auxiliar de enfermagem. Ela reconhece a necessidade de conhecimentos e que estar no CC lhe propicia crescimento contínuo. Em relação ao aporte teórico, este possibilita a reflexão no âmbito do aparelho formador, oferecendo subsídios para definir as exigências do espaço prático.23 Em busca de identificar o conteúdo imerso nas falas das enfermeiras, sujeitos da pesquisa, no que tange à formação acadêmica como elemento integrador das ações de cuidado do enfermeiro na recepção do paciente no CC, percebe-se que tanto o aporte teórico quanto prático são importantes para a atuação como profissionais de saúde. As entrevistadas se reportam ao cuidado como elemento fundamental, razão de ser da enfermagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo possibilitou apreender ações desenvolvidas por enfermeiras que atuam em três hospitais de uma cidade localizada no noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente em centro cirúrgico, direcionadas à recepção de pacientes. Dentre as ações identificadas, ressalte-se a importância atribuída pelos participantes do estudo ao fato de o enfermeiro realizar a visita ao paciente no préoperatório. O fato de conhecer o paciente antes da realização do procedimento cirúrgico aproxima ambos, favorece a interação, a avaliação e a assistência. As enfermeiras, nesse contexto, se preocupam em avaliar o estado físico e emocional do paciente no momento em que ele se insere no CC, e essa ação tem possibilitado detectar precocemente fatores que podem contribuir para intercorrências durante o procedimento cirúrgico. Elas buscam ouvir e acolher os pacientes, transmitir tranquilidade e contribuir para a redução dos níveis de estresse, os quais podem, sobremaneira, interferir no processo cirúrgico. Em relação à familiarização do paciente no ambiente do CC, identifica-se o esforço em explicar sobre o ambiente, os procedimentos que serão realizados, incluindo informações referentes aos aparelhos e equipamentos diferentes que poderão ser utilizados, buscando, dessa forma, tornar a experiência cirúrgica menos traumática. Uma inquietação que surgiu antes mesmo da realização desse estudo, que está presente na literatura e que se encontra nos resultados obtidos, refere-se ao fato de a recepção dos pacientes no CC ser, muitas vezes, uma função delegada ao pessoal administrativo, escriturárias, secretárias e, até mesmo, à funcionária que atua na higienização, nas ocasiões em que não é feita pela enfermeira. Diante de situações dessa natureza emerge como ponto de questionamento e reflexão a qualificação dos profissionais a quem a enfermeira delega essa função tão importante de acolher os pacientes, explicar-lhes e avaliar-lhes as condições. O enfermeiro, no decorrer de sua formação, apropria-se de aportes teóricos e práticos que, ao longo do curso, o habilitam e o tornam capacitado para a práxis profissional e a atuação em CC. Dentre essas habilidades, está o preparo técnico e científico para avaliar o paciente nas mais diversas situações, o que, em nossa opinião, não pode ser delegado. Observa-se, nos depoimentos dos sujeitos pesquisados, que eles têm constante sobrecarga de trabalho, burocrática e assistencial, sendo que, muitas vezes, utilizam essa demanda como justificativa para a não admissão de todos os pacientes na respectiva unidade. Nesse sentido, considerando a afirmativa apresentada, pode-se inferir que o número de enfermeiros é inadequado à demanda dos centros cirúrgicos pesquisados, especialmente dos dois hospitais maiores. As informações contidas neste estudo, igualmente, evidenciam o papel importante do processo de formação do enfermeiro, do quanto o aporte teórico e prático são indispensáveis e indissociáveis, favorecendo o crescimento e o aprimoramento desses profissionais e, por conseguinte, qualificando a assistência ao paciente no centro cirúrgico. Os resultados deste estudo podem contribuir com os profissionais de enfermagem e aqueles em formação, no sentido de que reflitam sobre a importância de ações direcionadas à recepção do paciente no centro cirúrgico, incluindo o acolhimento, a atenção, favorecendo e qualificando a assistência de enfermagem. Podem ainda, constituir indicadores importantes para repensar o processo de trabalho em CC e instigar profissionais e pesquisadores para o desenvolvimento de outras pesquisas envolvendo esta temática. REFERÊNCIAS 1. Silva MDAA, Rodrigues AL, Casaretti IUR. Enfermagem na unidade de centro cirúrgico. 2ª ed. São Paulo: Pedagógica e Universitária; 2001. 2. 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Data de submissão: 29/10/2008 Data de aprovação: 5/8/2009 106 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 99-106, jan./mar., 2009 ANALGESIA EM ACIDENTADOS DE TRANSPORTE: INDICADORES PARA UMA ATUAÇÃO SEGURA NA EMERGÊNCIA* ANALGESIA IN VICTIMS OF TRAFFIC ACCIDENTS: INDICATORS FOR SAFETY IN EMERGENCY SERVICES ANALGESIA EN ACCIDENTADOS DE TRÁNSITO: INDICADORES PARA LA ACTUACIÓN SEGURA EN EL SERVICIO DE EMERGENCIAS Ana Maria Calil Sallum1 RESUMO Conhecer indicadores a serem utilizados na prática clínica para a avaliação e tratamento analgésico em acidentados de transporte e pontuar a frequência e a gravidade das lesões nessa população foram os objetivos com esta pesquisa. Utilizou-se o método retrospectivo, com uma amostra de 200 prontuários de pacientes internados no pronto-socorro de um hospital referência para o atendimento ao trauma. A gravidade das lesões foram caracterizadas por índices de gravidade anatômicos e a terapêutica analgésica com base na escada analgésica da Organização Mundial de Saúde (OMS). Identificou-se relação de significância entre o grupo com analgesia e o grupo sem analgesia em relação ao número de lesões. As lesões em membros, cabeça, face e superfície externa foram as mais frequentes, e em 85% dos casos com gravidade menor ou igual a 3. Quanto à gravidade, destacaram-se as lesões cerebrais. O número médio de lesões influiu na decisão de analgesiar, mas não a gravidade do trauma, o sexo ou a idade. A maioria das lesões foi de gravidade igual ou menor a 3, localizadas, principalmente, em três regiões corpóreas, excluindo-se as lesões na cabeça/pescoço. Palavras-chave: Dor; Avaliação; Causas Externas; Analgesia. ABSTRACT This study aims to recognize indicators which can be used in clinical practice to evaluate and treat pain in victims of traffic accident, as well as to score the frequency and lesion severity in such population. This is an original and retrospective study with a sample of 200 records of patients admitted in the emergency room of a reference trauma center. The lesion severity was characterized according to anatomic severity indexes and the analgesic therapy was based on the World Health Organization analgesic ladder. There was a significant relationship between analgesia and number of lesions. The most frequent lesions were those of the limbs, head, face and external surface. Severity was less or equal to 3 in 85% of the cases and cerebral lesions were the most severe ones. The average number of lesions affects the decision to provide analgesia, to the detriment of trauma severity, gender and age. Injuries were mostly located in three body parts, except those on the head/neck. Lesions´ severity was mainly less or equal to 3. Key words: Pain; Evaluation; External Causes; Analgesia. RESUMEN Conocer indicadores a utilizar en la práctica clínica para la evaluación y tratamiento analgésico en accidentados de tránsito e indicar la frecuencia y gravedad de las lesiones en dicha población. Se trata de un estudio retrospectivo, inédito en nuestro medio, realizado con una muestra de 200 historias clínicas de pacientes internados en el servicio de emergencias de un hospital de referencia para atención del trauma. La gravedad de las lesiones fue caracterizada por índices de gravedad anatómicos y la terapéutica analgésica en base a la escala analgésica de la Organización Mundial de Salud. Se identificó una relación de significancia entre el grupo con y sin analgesia en relación al número de lesiones. Las lesiones en miembros, cabeza, rostro y superficie externa fueron las más frecuentes y, en el 85% de los casos, con gravedad menor o igual a 3; en cuanto a la gravedad, se destacaron las lesiones cerebrales. Se identificó que el número promedio de lesiones influyó en la decisión de analgesiar pero no la gravedad del trauma, sexo o edad. La mayoría de las lesiones fueron de gravedad igual o menor a 3, localizadas principalmente en 3 regiones corporales, excluyéndose las lesiones en la cabeza/cuello. Palabras clave: Dolor; Evaluación; Causas Externas; Analgesia. * 1 Parte da tese de Doutorado intitulada: Dor e analgesia em vítimas de acidentes de transporte atendidas em pronto-socorro, defendida em 2003, na EEUSP. Ganhadora do prêmio Simbidor-2007 (Simpósio Internacional de Dor) de melhor trabalho na área de tratamento da dor no Brasil. Bolsa CNPq – Processo n. 87.0261/1997-5. Enfermeira. Mestre e Doutora pela EEUSP. Professora colaboradora do Centro Universitário São Camilo na especialização de emergência. Endereço para correspondência: Alameda Fernão Cardim, 140, apto 61, JD Paulista, SP, capital – CEP 01403-020. Telefone: 3289-1893. Fax: 32893343. E-mail: [email protected]. rem remE E- -Rev. Rev.Min. Min.Enferm.;13(1): Enferm.;13(1):107-114, 99-106, jan./mar., 2009 107 Analgesia em acidentados de transporte: indicadores para uma atuação segura na emergência INTRODUÇÃO As principais causas de morbidade e mortalidade ao redor do mundo estão entre as externas e o número de mortes por acidentes de trânsito, em 2005, no Brasil, foi de 35.763, o que corresponde à média de 98 mortes por dia.1 Quanto às vítimas que chegaram a ser internadas, os números são alarmantes, quase 120 mil hospitalizações em 2005, com taxa de 64 internações pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para cada 100 mil habitantes.1 O número de acidentes com vítimas em 2005 foi de 383.371 e mostra um número de acidentados igual a 513.510, o que projeta, em média, 1.406 acidentes/dia e 1.369 vítimas/dia (1,30 vítima por acidente). Em decorrência desse evento, totalizaram-se 117.155 internações hospitalares, significando 15,5% das hospitalizações por lesões, o que mostra o impacto desses ferimentos.2 A dor é reconhecida como uma das principais consequências do trauma e a repercussão dela é identificada como potencialmente prejudicial ao organismo. Embora frequente, pouca atenção tem sido concedida ao traumatizado no que se refere ao controle álgico. Essa situação de proporções pouco investigadas em nosso meio no setor de emergência é evidenciada por estudos oriundos de outros países.3 Os principais motivos apontados na literatura como causas do desvio da atenção para as prioridades imediatas, visando proteger o paciente e preserva-lhe as funções vitais, transferem, muitas vezes de modo injustificado, o problema da dor para um plano secundário ou inexistente. A repercussão orgânica do processo álgico intenso é, geralmente, subestimada ou mesmo ignorada por médicos e enfermeiros. Além disso, constata-se desinformação sobre a farmacologia das drogas analgésicas e sobre as técnicas disponíveis, e ainda alegase, com frequência, que a administração precoce de analgésicos pode mascarar um indício valioso para o diagnóstico etiológico, situação não mais aceita na literatura há anos.3 A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a uma lesão tissular real ou potencial e descrita em termos de tal dano. A dor aguda surge como um alerta de que algo no organismo não está bem. No setor de emergência, esse tipo de dor é muito frequente, pois está relacionada aos agravos traumáticos, queimaduras, infecções e processos inflamatórios.4 A persistência de processos reacionais em razão da permanência da dor aguda resulta na formação de círculos viciosos com progressivo aumento das disfunções orgânicas e dos efeitos prejudiciais ao paciente traumatizado, como hipoventilação, aumento do trabalho cardíaco, diminuição da perfusão sanguínea periférica e contração muscular reflexa. Nos quadros hemorrágicos, os estímulos nociceptivos agravam o estado de choque em decorrência da deterioração do desempenho mecânico do ventrículo esquerdo pela redução da oferta de oxigênio e pelo aumento da perda plasmática.5 108 Melhorar a perfusão tissular, minimizar a lesão celular e as alterações fisiológicas relacionadas com a hipóxia, controlar o quadro hemorrágico, manter parâmetros vitais estáveis e a estabilidade da coluna cervical são os objetivos prioritários do atendimento ao traumatizado.5 Parece claro, portanto, que a adequada avaliação, o controle e o alívio da dor, além do aspecto humanitário, deveriam constituir partes vitais do atendimento ao traumatizado, visando contribuir para a manutenção de funções fisiológicas básicas e evitar os efeitos colaterais nocivos advindos da permanência da dor. Além disso, o conhecimento sobre a gravidade das lesões decorrentes do trauma pode servir de base para a criação de protocolos de analgesia. Entre as dores agudas, a dor na emergência é a menos investigada em nosso meio, sendo este estudo o primeiro em nosso país; tal fato é preocupante, visto o grande número de vítimas atendidas e que permanecem diariamente nesse setor.3 Além disso, não existe, nos manuais de atendimento às vítimas de trauma, um capítulo específico dedicado ao tema dor, bem como à analgesia e à utilização de instrumentos de avaliação para aferir o quadro álgico.5 Diante dessa realidade, optou-se por desenvolver um estudo para identificar qual(is) indicador(es) determinaria(m) a analgesia e pontuar as regiões corpóreas mais frequentes e gravemente atingidas em acidentes de transporte. MÉTODO Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, com abordagem quantitativa. Foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital de Coleta, recebendo o número de Protocolo n° 074/02. O estudo foi realizado em um hospital geral governamental de nível terciário, considerado no sistema de atendimento hierarquizado ao trauma do município como referência universitária para a região oeste da grande São Paulo e municípios vizinhos. Em levantamento prévio, realizado na Divisão de Arquivo Medico (DAM) da instituição deste estudo, constatou-se que a média anual de pacientes admitidos para tratamento em decorrência de acidentes de transporte girava em torno de 1.500 e, desses, aproximadamente 640 permaneciam internados. Após orientação estatística, propôs-se realizar a análise de uma amostra dessa população com precisão desejada de 5%, prevalência esperada de 50% e risco de 1%, o que resultou em 200 prontuários a serem analisados, representando quase um terço da população total de internados. A seleção de eventos considerados acidentes de transporte baseou-se nos critérios preconizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), expressa na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10), sob os códigos alfa numéricos V01 a V099.6 Tendo em vista a análise proposta, foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: vítimas de acidente de remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 transporte provenientes diretamente da cena do evento, admitidas via pronto-socorro; eventos classificados pela DAM como acidentes de transporte; não terem evoluído para óbito nas primeiras 24 horas e terem idade maior que 16 anos. serviram de base para as análises dessa etapa do estudo. São eles: grupo I: Analgésico simples e/ou antiinflamatório não hormonal (AINH); grupo II: Analgésico simples + AINH + Opioide(s); grupo III: Analgésico simples + Opioide(s) + Midazolan. As fontes de dados incluíram listas computadorizadas da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (PRODESP), listas de pacientes internados em decorrência de acidentes de transporte fornecidas pela DAM e prontuários dos pacientes internados no prontosocorro. O grupo I corresponde ao primeiro degrau da Escada Analgésica da Organização Mundial de Saúde (OMS)7 e o grupo II, ao segundo e terceiro degraus. Organizou-se o grupo III, pois considerou-se que o acréscimo de midazolan pareceu indicar um objetivo terapêutico diferente dos grupos I e III. Baseando-se na relação dos pacientes de interesse, a pesquisadora dividiu-os em quatro grupos de acordo com a causa externa: acidentes automobilísticos, atropelamentos, acidentes de moto e outros. Do total de 634 pacientes internados em 2002, 250 foram por acidente de auto, 234 por atropelamento, 137 por acidente de moto e 13 por outras classificações. Cada prontuário, dentro de cada grupo, recebeu um número específico, em ordem crescente. Com base no estabelecido por orientação estatística, foram sorteados 80 prontuários de vítimas de acidente de automóvel, 70 de atropelamento e 50 vítimas de moto, os quais constituíram a amostra de 200 prontuários. A solicitação dos prontuários foi feita por grupos e, na eventualidade do extravio de um prontuário selecionado, foi sorteado outro “reserva”, pertencente ao mesmo grupo. Nessa categorização não foram levadas em consideração o medicamento, a dose, o intervalo e a via de administração. Tal decisão deveu-se ao fato de terem sido encontradas tantas configurações que, se não organizadas de modo mais abrangente, tornariam impossível qualquer análise estatística. A coleta de dados foi iniciada após a autorização da Comissão de Ética para Análise de Projeto de Pesquisa (CAP-Pesq.), da Diretoria Clínica do Hospital. Para cada paciente foi aberta uma ficha de coleta de dados, e as informações pertinentes ao estudo foram registradas desde o momento da entrada do paciente no hospital até um período aproximado de 24 horas. O horário de registro na ficha de admissão foi considerado o ponto inicial e o horário dos medicamentos na ficha de admissão e/ou prontuário o marco final. Após a análise dos 200 prontuários, foram identificados 17 tipos distintos de prescrições analgésicas, os quais foram reagrupados em três padrões de analgesia, que Para aferir a gravidade das lesões utilizou-se o índice Abbreviated Injury Scale (AIS) de base anatômica, apresentado sob a forma de um manual, no qual centenas de lesões são listadas de acordo com o seu tipo, localização e gravidade. É um instrumento aceito mundialmente para o estudo da natureza das lesões apresentadas por pacientes de trauma. A gravidade de cada lesão contida na AIS varia de gravidade mínima=1 a gravidade máxima=6; por definição, as lesões de escore igual ou inferior a 3 são aquelas que, isoladas, não ameaçam a vida e as iguais ou maiores que 4 são consideradas, progressivamente, graves, críticas e fatais. Os dados coletados foram organizados em planilhas do programa Excell e realizada análise estatística utilizando o programa SAS versão 6.12 (SAS Institute, Cary, Estados Unidos). Foram realizadas análises de frequência absoluta e relativa e medidas de posicionamento: média e mediana, e dispersão por meio de desvio-padrão, bem como teste de qui-quadrado para a avaliação de homogeneidade das frequências ou Fisher e Teste t de Student para comparação múltipla entre as médias. Considerou-se significante os testes cujo valor de p foi menor do que 0,05. RESULTADOS TABELA 1 – Distribuição do total de lesões anatômicas registradas nos prontuários dos pacientes (n = 570) segundo região corpórea e escores AIS d” 3 e AIS e” 4 – São Paulo, 2003 . remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 109 Analgesia em acidentados de transporte: indicadores para uma atuação segura na emergência Observa-se, na TAB. 1, que 486 (85,2%) do total de 570 lesões tinham gravidade AIS d” 3 e 84 (14,8%) gravidade AIS e” 4. Houve predominância de lesões AIS d” 3 para todas as regiões corpóreas, à exceção de cabeça/ pescoço, onde ocorreu distribuição equitativa entre lesões de gravidade AIS d” 3, 60 (50,8%) e AIS e” 4, 58 (49,2%). A análise das lesões AIS e” 4, isoladamente, mostra que quase metade delas (49,2%) ocorreram na região corpórea de cabeça/pescoço. GRÁFICO 1 – Distribuição do percentual de lesão única e lesões múltiplas por região corpórea – São Paulo, 2003 Verifica-se, no GRAF. 1, que a presença de uma única lesão por região corpórea ocorreu em todas as regiões, exceto nas regiões de membros superiores, inferiores e cintura pélvica, nas quais a presença de lesões múltiplas obteve percentual superior (53,3%). Destacam-se as regiões corpóreas de superfície externa (77,0%) e tórax (72,5%) com lesões únicas. As demais regiões corpóreas obtiveram um percentual em torno de 40,0% para as lesões múltiplas. TABELA 2 – Distribuição dos pacientes (n= 199) segundo a gravidade do trauma (NISS) – São Paulo, 2003 A TAB. 2 mostra que, em relação à gravidade do trauma (NISS) os pacientes situaram-se, fundamentalmente, nas faixas de gravidade 1 – 8 (36,2%), 9 – 15 (22,1%) e 16 – 24 (23,1%). Do total de pacientes, 58,3% apresentaram NISS d” 15 e 41,7% NISS e” 16, indicativo de trauma importante. Dos 200 pacientes estudados, ressalte-se que 179 receberam analgesia e 21 não foram analgesiados. TABELA 3 – Distribuição da média, desvio-padrão e mediana (das lesões) entre os grupos com analgesia e sem analgesia - São Paulo, 2003 “Teste t de student” p = 0,013 *Uma vítima não apresentou lesão. 110 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 No grupo de pacientes com analgesia, verificam-se 527 lesões com média de 2,9 lesões por paciente, desviopadrão de 1,37 lesão e mediana de 3 lesões. No grupo sem analgesia, notam-se 43 lesões, com média de 2,1 lesões por paciente, desvio-padrão de 1,3 lesão e mediana de 2 lesões. O “Teste t de Student” mostrou que o grupo com analgesia apresentou número médio de lesões significativamente maior que o do grupo sem analgesia (p = 0,013). TABELA 4 – Análise das relações entre as variáveis sexo e idade nos grupos com analgesia e sem analgesia – São Paulo, 2003 Observa-se, na TAB. 4, que não houve diferença significativa entre as variáveis sexo (Fisher p = 1,000) e idade (“Teste t de Student” p = 0,7985) nos grupos com e sem analgesia. DISCUSSÃO Dor é um sintoma frequente em vítimas de trauma. Sua ocorrência e intensidade podem estar relacionadas ao tipo e à localização da lesão. É citada na literatura como mais frequente em membros inferiores e superiores, tórax e cabeça.3,5 Inúmeros são os estudos que relatam que a dor na emergência, especialmente no trauma, é subavaliada, subtratada, advindo dessa situação o termo “oligoanalgesia”.3,8-9 A dor, muitas vezes intensa, vivenciada por esses pacientes pode perdurar horas, sem que qualquer tipo de conduta analgésica seja proposta.10 A situação dessas pessoas é duplamente custosa, uma vez que associados à dor existem os sentimentos de culpa, perda, dano, que frequentemente acompanham uma situação violenta e inesperada.11 Autores enfatizam a importância da abordagem sistematizada na sala de emergência, o que já é realizado no hospital em estudo, mas apontam como fundamental que a sistematização da assistência prossiga após o primeiro atendimento como uma estratégia indispensável para obter alta acurácia diagnóstica, redução de custo, otimização de leitos e de recursos humanos.12 Autores reforçam a importância da padronização de condutas analgésicas no atendimento inicial às vítimas de trauma e apontam como iatrogenia o não alívio da dor, os efeitos colaterais advindos dela e a possibilidade de novas lesões resultantes da agitação causada pela dor.3,5,13 Em estudo nacional avaliando aspectos da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar nas vítimas de causas externas, constatou-se que 40% de 139 vítimas estudadas avaliaram a dor como intensa e 19% como insuportável. Os locais mais frequentes de queixa álgica foram membros inferiores e superiores, cabeça e face. Analgésicos só foram utilizados em 4,3% das remoções, embora houvesse analgésicos em 14,5% das viaturas, médico em 15,1% dos veículos e lesões potencialmente muito dolorosas, como fraturas, em 28,1% dos casos.14 Pesquisadores americanos, avaliando a satisfação do paciente de trauma com a analgesia recebida no setor de emergência, identificaram que 70% permaneciam com dor, 25% relataram alívio e 5% estavam incertos.15 O desconhecimento do tratamento farmacológico, a carência de educação específica na área de dor na graduação e pós-graduação para profissionais de saúde e o medo de medicar são apontados como os principais obstáculos para a adequada avaliação e alívio da dor.15 Neste estudo, a opção por analisar a dor em vítimas de trauma em um hospital geral público e de ensino deveuse à importância desse hospital nos meios científico e educacional no Brasil, pois atua como órgão formador de recursos humanos nas áreas de saúde para todo o País e é visto como modelo de assistência em trauma. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 111 Analgesia em acidentados de transporte: indicadores para uma atuação segura na emergência O serviço mostrou-se adequado para o desenvolvimento da pesquisa dado o grande número de vítimas de acidentes de transporte assistidos no setor de emergência, por ser um centro de referência para o atendimento ao trauma e pela possibilidade de encontro com profissionais que atuam no setor de emergência, e que, portanto, determinam as condutas analgésicas. A decisão de analisar prontuários deveu-se à possibilidade de que isso resultasse em uma visão mais ampla e representativa da prática clínica e dos paradigmas que envolvem o tema dor e analgesia no setor de emergência, somada à carência de informação sobre o tema em nosso meio. Foram diagnosticadas 570 lesões anatômicas nos 200 pacientes (TAB. 1). Considerando cada região corpórea, os membros superiores, inferiores e a cintura pélvica aparecem como as regiões mais atingidas, sendo responsáveis por 152 (26,7%) lesões, seguidas pela região de cabeça/pescoço com 118 (20,7%) lesões. Em estudo analisando a distribuição de lesões por região corpórea em vítimas de acidente de transporte, constatou-se a mesma distribuição acima citada, com inversão na posição entre os postos. Na análise por categoria de vítimas, porém, os ocupantes de moto apresentaram um número significativamente maior de lesões em membros superiores, inferiores e na cintura pélvica em relação às demais vítimas, enquanto os atropelamentos e acidentes de auto, um número maior de lesões em cabeça/pescoço e face.16,17 A observação de lesões em 3.594 admissões hospitalares em 28 centros de trauma também apontou os membros superiores, inferiores e cintura pélvica como as primeiras regiões corpóreas atingidas (51% dos casos).18 Em outro estudo analisando a localização de lesões em 6.099 vítimas desse evento no Brasil, observou-se os membros inferiores e superiores (69,7%), cabeça (49,6%) e tórax (19,9%) foram as regiões corpóreas mais atingidas.19 A distribuição encontrada neste estudo e confirmada na literatura aponta, com frequência, as regiões de membros superiores, inferiores, cintura pélvica e cabeça/pescoço como as duas regiões corpóreas mais atingidas em acidentes de transporte, com variação para as demais áreas atingidas. Em relação à região corpórea mais gravemente atingida, a cabeça/pescoço aparece com percentual bastante superior às demais regiões, com 58 (49,1%) das lesões com AIS e” 4. Esse achado revela-se de extrema importância dado o alto valor prognóstico determinado por lesões nesse segmento corpóreo (TAB. 2). O TCE em vítimas de acidente de transporte é a lesão isolada mais frequentemente encontrada em casos graves e fatais.16,20 A região torácica, segunda mais gravemente atingida, embora com 12,5% de lesões AIS e” 4, é identificada, 112 em estudos recentes sobre dor e analgesia no trauma, como um segmento corpóreo de alto risco para o paciente, uma vez que a permanência da dor e seus efeitos deletérios podem levar a uma falência respiratória irreversível.20 As lesões na região de membros superiores, inferiores e na cintura pélvica merecem ser destacadas, pois, apesar de baixa letalidade, implicam longos períodos de internação, grande número de cirurgias plásticas e corretivas, imobilização no leito, infecções, escaras e, principalmente, dor.3,17 Conforme apresentado no GRAF. 1, aproximadamente 40,0% das lesões foram múltiplas nas regiões corpóreas de cabeça/pescoço, face, abdome/conteúdos pélvicos e superior a 50,0% em membros superiores, inferiores e cintura pélvica. As vítimas de acidente de transporte são caracterizadas, frequentemente, como pacientes politraumatizados ou com múltiplas lesões no mesmo segmento corpóreo, o que reforça a importância do alívio da dor nessa população.10,16 Das 199 vítimas nas quais foi possível identificar a gravidade do trauma (NISS), 58,3% ficaram em faixas de gravidade inferior a 16% e 41,7% com gravidade de trauma e” 16, indicativo de trauma importante (TAB. 2). Inúmeras pesquisas mostram resultados semelhantes aos citados acima, porém um percentual importante de vítimas de acidente de transporte apresenta gravidade do trauma ISS e” 16.22-23 Pela caracterização deste estudo, percebe-se que grande parte dos pacientes apresentou lesões múltiplas e trauma importante, condições potencialmente muito dolorosas. Tal situação é propícia para estudos sobre dor e analgesia. Inicialmente, indagou-se sobre quais fatores influenciariam na decisão de analgesiar. Para responder a tal questionamento, analisaram-se os pacientes que receberam e os que não receberam analgesia quanto às variáveis gravidade do trauma, número médio de lesões, idade e sexo. Observou-se que o número médio de lesões influiu na decisão de analgesiar, mas não a gravidade do trauma (NISS), o sexo e a idade (TAB. 3 e 4). Esse achado é novo na literatura, e guiar-se por tal parâmetro parece adequado, visto que, quando há múltiplas lesões em uma ou mais regiões corpóreas, o quadro doloroso poderá estar acentuado. Gravidade do trauma não indica, necessariamente, processos dolorosos intensos, uma vez que muitos pacientes podem estar inconscientes. No entanto, o uso conjunto dos dois parâmetros (número de lesões e gravidade do trauma) parece o mais indicado. Outro aspecto que merece destaque é a confusão, na prática clínica, em relação aos conceitos de sedação e analgesia, uma vez que se espera, no primeiro caso, que ocorra a diminuição do nível de consciência e, no segundo, a diminuição da dor. Não raro, observa-se remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 pacientes sedados por causa de uma lesão neurológica com alterações neurovegetativas importantes, advindas, provavelmente, da dor não aliviada.3 Os resultados deste estudo indicaram que a decisão de prescrever antiálgicos esteve diretamente relacionada ao número médio de lesões apresentadas, como mostram os dados da TAB. 3. Esse achado, inédito em nossa literatura, indica que a relação entre analgesia e número de lesões é um fator considerado na prática médica. Parece evidente, embora não identificado na literatura, que lesões múltiplas causariam dor de maior intensidade, gerando a necessidade de analgesia ou tornando a dor mais evidente. Desse modo, constatouse que o primeiro aspecto observado para a indicação analgésica reside no número de lesões apresentadas pelo paciente. Espera-se que esses dados sirvam de orientação para as equipes médicas e de enfermagem nos cenários de pré- e intra-hospitalar na avaliação e tratamento álgico de vítimas de trauma que superlotam os serviços de emergência e chamem a atenção para a necessidade de novos estudos ainda incipientes em nosso meio em relação à temática abordada. O avanço na avaliação e no tratamento do paciente traumatizado foi muito grande nos últimos vinte anos, no entanto, estudos relacionados à dor e à analgesia ainda são incipientes em nosso meio, gerando sofrimento a milhares de vítimas. CONSIDERAÇÕES FINAIS embriagados das madrugadas, carentes de iniciativa e, sobretudo, vítimas de nosso egoísmo e da nossa falta de coragem ou de nossa miopia diante dos problemas alheios e facilmente ou felizmente esquecidos ao chegarmos em nossos lares tão protegidos. Algo deve ser feito quando uma criança é atropelada, torna-se paraplégica ou tetraplégica e os seus infratores alcoolizados são inocentados por bandidos de gravata. Algo precisa ser feito quando um adolescente chega espancado com graves lesões cerebrais e não se encontram os seus malfeitores. Algo precisa ser feito quando tiros perdidos atingem trabalhadores, e assim segue a nossa vida diante das causas externas... Acreditando, ainda, que algo precisa ser realizado em prol dessas vítimas, não podemos concordar que após sofrerem uma situação aguda, a qual, muitas vezes, modifica-lhes definitivamente a vida e a de seus familiares, não tenham sua dor física aliviada. Para ilustrar essa situação, transcreve-se a frase de um paciente, no setor de emergência, aguardando por cuidados após quatro horas de sua admissão por atropelamento: Moça, por que tanta gente passa, olha, mexe na gente e não faz nada? Minha perna tá quebrada, meu braço e minhas costas doem, e ninguém me ajuda. Será que eles não estão me vendo? Sonha-se e espera-se que em um futuro próximo essa frase possa ser substituída por agradecimentos à equipe de saúde pelo controle ou, ao menos, alívio da dor. CONCLUSÃO Após vinte anos atuando com vítimas de trauma, sabese que o limite entre a vida e a morte é muito tênue e que a morte, por vezes, não é o pior a ser enfrentado. Alguns teóricos criticam a utilização do termo “vítima” quando se fala em causas externas, mas essa palavra reflete, em grande parte dos casos, a realidade. Em nossa sociedade, há décadas, somos vítimas da impunidade, do desmando, do pouco caso com relação à saúde e à saúde publica, da falta de educação, dos Identificou-se, neste estudo, relação de significância entre o grupo com analgesia e o grupo sem analgesia, em relação ao número médio de lesões. A região mais frequentemente acometida foi a de membros inferiores/ superiores e a de maior gravidade, a de cabeça/pescoço. Espera-se que esses achados sejam úteis para as equipes de saúde nos cenários de pré- e intra-hospitalar e contribuam para o controle e/ou alívio da dor nos pacientes de trauma. REFERÊNCIAS 1. Jorge MHPM, Koizumi MS. Acidentes de trânsito no Brasil: um atlas de sua distribuição. São Paulo: Abramet; 2007. 2. Vranjac A. O impacto dos acidentes e violências nos gastos da saúde. Rev Saúde Pública. 2006; 40(3):553-6. 3. Calil AM, Pimenta CAM, Birolini D. The Oligoanalgesia problem in the emergency care. Clinics. 2007; 62(5):591-9. 4. International Association for Study of Pain (IASP). Concensus development conference statement: the integrated aproach to the management of pain. 1994. Document number – 491-292. 5. American College of Surgeons (ACS). Committee on Trauma. Suporte Avançado de Vida no Trauma – SAVT: Programa para Médicos. São Paulo: ACS; 2004. 6. Organização Mundial da Saúde (OMS). 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Data de submissão: 30/12/2008 Data de aprovação: 9/6/2009 114 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 107-114, jan./mar., 2009 ADOLESCÊNCIA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO PELA GRAVIDEZ ADOLESCENCE: AN ANALISIS OF THE PREGNANCY DECISION ADOLESCENCIA: UN ANALISIS SOBRE LA DECISIÓN ACERCA DEL EMBARAZO Octavio Muniz da Costa Vargens1 Celeste Ferreira Adão2 Jane Márcia Progianti3 RESUMO Neste estudo, o objetivo foi analisar a decisão da adolescente pela gravidez, com base no significado que ela atribuiu ao fenômeno. Trata-se de pesquisa descritiva com abordagem qualitativa baseada nos pressupostos teórico-metodológicos do Interacionismo Simbólico e da Grounded Theory. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas com 16 adolescentes dos 12 aos 16 anos, atendidas no ambulatório de pré-natal de uma instituição pública federal na cidade do Rio de Janeiro. O estudo ocorreu no período de janeiro a outubro de 2005. Os resultados evidenciaram duas categorias que descrevem os significados para as adolescentes dessa sua decisão: 1. Descobrindo-se grávida, cujas subcategorias expressaram o querer e o não querer engravidar, o planejamento ou não da gravidez; 2. Optando pela gravidez, cujas subcategorias expressaram a descoberta do poder e a experiência de autonomia, advindos com a gravidez. Da integração dessas categorias emergiu a categoria central representativa do processo social básico: Buscando autonomia e poder. Concluiu-se que respeitar essa decisão, reconhecendo-a como um direito das adolescentes, representa o ponto de partida para um cuidado de enfermagem sensível, pautado nos princípios da bioética e da humanização. Isso implica a necessidade de profissionais treinados e cientes do que representam os direitos reprodutivos e de que as adolescentes têm o direito de exercer sua sexualidade com segurança e liberdade de escolha, com direito à informação sobre meios, possibilidades, estratégias, riscos e vantagens, para que possa decidir sobre a sua prole. Palavras-chave: Bioética; Direitos Humanos; Enfermagem Obstétrica; Gravidez na Adolescência; Saúde da Mulher. ABSTRACT This study aims to analyze the adolescents’ decision for pregnancy considering the significance that such patients attribute to the phenomenon. It is a descriptive study with a qualitative approach, based on the theoretical and methodological principles of Symbolic Interactionism and Grounded Theory. To obtain data, sixteen teenagers aged twelve to sixteen years old underwent a semi-structured interview. All patients were attending a prenatal clinic of a Federal Institution in Rio de Janeiro, Brazil. Approval from the Ethics Research Committee was acquired. All women were informed about confidentiality, patient selection and aim of the study and an informed consent was obtained. Results showed two main categories that describe the meaning of such decision: 1) “Finding yourself pregnant”, whose subcategories express the desire of getting pregnant and the planning of the pregnancy; and 2) “Choosing for pregnancy”, whose subcategories express the feelings of power and autonomy that follow pregnancy. By integrating these categories, we reached a representative core category of the social process: Searching for Autonomy and Power. We conclude that to honor this decision and to recognize it as a teenager’s right, represent the starting point of a nursing care based on the principles of bioethics and humanization. This implies the need of trained professionals, conscious of what reproductive rights represent and who understand that these patients have the right to practice their sexuality with safety and freedom. Key words: Bioethics; Human Rights; Obstetrical nursing; Pregnancy in Adolescence; Women’s Health. RESUMEN Estudio realizado con el objetivo de analizar la decisión de las adolescentes sobre su embarazo a partir del significado que le atribuyen al fenómeno Se trata de una investigación descriptiva cualitativa basado en los principios teóricometodológicos del Interacionismo Simbólico y de la Grounded Theory. Los datos fueron obtenidos en entrevistas semiestructuradas con dieciséis adolescentes de doce a dieciséis años atendidos en una clínica prenatal de una Institución Gubernamental Federal de Río de Janeiro – Brasil, con la aprobación del Comité de Ética de Investigación. Se les presentó a las mujeres una solicitación para participar en el estudio; se les avisó sobre la confidencialidad, cómo habían sido seleccionadas y el objetivo del estudio y después firmaron el respectivo consentimiento informado. Los resultados evidenciaron dos categorías que describen los significados de esta decisión: 1) “Descubriendo que está embarazada” cuyas subcategories expresaron el deseo de quedarse o no quedarse embarazada, la planificación o no del embarazo; 2) “Optando por el embarazo” cuyas subcategories expresan el descubrimiento del poder y la experiencia de autonomía que resultan del embarazo. De la integración de estas categorías surgió la categoría central representativa del proceso social: “Buscando Autonomía y Poder”. Se concluye que respetar esta decisión, al reconocerla como un derecho de las adolescentes, representa el punto de partida para una atención de enfermería basada en los principios de la bioética y de la humanización. Implica la necesidad de que haya profesionales especializados, conscientes de lo que representan los derechos reproductivos y que entiendan que los adolescentes tienen el derecho de practicar su sexualidad con seguridad y libertad con derecho a adquirir información sobre medios, posibilidades, estrategias, riesgos y ventajas para decidir sobre su prole. Palabras clave: Bioética; Derechos humanos; Enfermería obstétrica; Embarazo en Adolescencia; Salud de la mujer. 1 2 3 Enfermeiro obstetra. Doutor em Enfermagem e professor titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Enfermagem, Mulher, Saúde e Sociedade (Nepen-Musas). E-mail: [email protected]. Enfermeira. Mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na área de Saúde da Mulher. Especialista em Docência Superior. Tecnologista do Instituto Fernandes Figueira (Fiocruz). Professora Assistente da Universidade Severino Sombra. Enfermeira obstetra. Doutora em Enfermagem e professora adjunta do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Enfermagem, Mulher, Saúde e Sociedade (Nepen-Musas). remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, 107-114, jan./mar., 2009 115 Adolescência: uma análise da decisão pela gravidez INTRODUÇÃO A gravidez na adolescência vem se tornando um problema de saúde pública em todo o mundo em decorrência não somente da alta incidência, como também da idade cada vez menor com que as meninas engravidam.1 Fato é que seu aumento relativo constitui motivo de preocupação, principalmente dadas as características desse grupo. A série analisada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1, referente ao período entre 1991 e 2002, mostra o crescimento desse fenômeno com destaque para as regiões Norte, com 25%, e Nordeste e Centro-Oeste, que evoluíram para proporções em torno de 23%. No Estado do Rio de Janeiro, verificou-se que, em 2002, 19,1% dos nascimentos eram de mães menores de 20 anos.1 A análise desse problema pelos profissionais de saúde é, mormente, feita sob a ótica da obstetrícia clínica, segundo a qual os riscos biológicos são os mais importantes e a preocupação predominante é com a vida biológica das mulheres.2 Nesse sentido, os aspectos relacionados com a ética, os direitos reprodutivos e os direitos de cidadania, geralmente, não são levados em conta. Isso se dá, principalmente, por se considerar as adolescentes, em geral, destituídas da capacidade de optar ou de decidir,3,4 um comportamento típico do paradigma tecnocrático.5 A prática de enfermeiras, quando norteada pelo paradigma biomédico, não pondera a possibilidade de que cada adolescente poderia ter escolhido e decidido engravidar para atender aos próprios anseios, sem pensar a gravidez como uma situação de risco biológico ou social.6 Assim, com este estudo, buscou-se trazer esta discussão com base no discurso da adolescente e, com isso, oferecer às enfermeiras diferentes significados atribuídos ao fenômeno para que possam reorientar a prática, bem como analisar a decisão da adolescente pela gravidez com base no significado que ela atribuiu ao fenômeno. Na discussão sobre o significado da decisão da adolescente pela gravidez, alvo deste estudo, os conceitos fundamentais dos direitos reprodutivos e da bioética foram tomados como base. METODOLOGIA Trata-se de estudo qualitativo, com base nos princípios da Grounded Theory. Por meio desse método, é necessário que o pesquisador compreenda, pela perspectiva do sujeito, o que ele entende e diz de si e de outros, respeitando seu mundo e as interpretações que ele faz nessas interações compartilhando suas definições.7,8 Os dados foram obtidos e analisados no período de janeiro a dezembro de 2005. Os sujeitos pesquisados foram adolescentes grávidas com idade entre 12 e 16 anos, independentemente da idade gestacional em que se encontravam à época da entrevista, inscritos para 116 atendimento no serviço de pré-natal de uma instituição governamental de referência para atendimento a esse grupo populacional, no município de Rio de Janeiro, Brasil. A escolha dessa faixa etária deveu-se ao fato de que essa instituição prioriza o atendimento de adolescentes nessa faixa etária. Inicialmente, duas adolescentes foram entrevistadas com o propósito de dar início ao processo de análise comparativa constante. De acordo com a análise desses dados, foram incluídos mais três grupos amostrais, totalizando 16 adolescentes, constituídos: 1. por quatro adolescentes que haviam desejado e planejado a gravidez; 2. por seis adolescentes que desejavam engravidar, mas não tinham planejado engravidar no momento; 3. por quatro adolescentes que não desejavam e nem haviam planejado uma gravidez. O número total de entrevistas (16), cujo teor foi alvo da análise comparativa constante, foi determinado pela saturação dos dados. Concomitantemente, foram feitas entrevistas informais cujos dados foram utilizados tãosomente para a validação das categorias emergentes da análise. A primeira etapa do processo constou da transcrição das entrevistas com a subsequente distribuição vertical e sequencial dos discursos, o que permitiu o procedimento da codificação aberta ou substantiva; a segunda consistiu do agrupamento de códigos afins, dando origem à categorização provisória. A terceira consistiu na codificação nível II ou codificação teórica, da qual emergiram as categorias que, analisadas comparativamente, permitiram a identificação da categoria central e a descrição do processo social básico. Em atendimento ao disposto na Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre normas e procedimentos éticos em pesquisas envolvendo seres humanos, o estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HUPE/ UERJ, sendo que todas as participantes foram devidamente esclarecidas sobre a pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. RESULTADOS A análise dos dados levou à construção de duas categorias principais: Descobrindo-se grávida e Optando pela gravidez. Descobrindo-se grávida O descobrir-se grávida apareceu nos discursos em três diferentes dimensões que se constituíram em subcategorias, as quais foram identificadas como querendo e planejando a gravidez; querendo, mas não planejando engravidar neste momento; e nem querendo nem planejando, mas vivendo a gravidez. Essas três dimensões são marcadas pela surpresa. Na remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 situação em que a gravidez foi desejada e planejada, essa surpresa foi percebida como algo de que as adolescentes gostaram: É, não sei, eu fiquei surpreendida, mas aí fazer o quê? Depois eu gostei da ideia. Quando a gravidez não foi planejada, mesmo que desejada, a surpresa foi marcadamente um susto para as adolescentes, mas não as impediu a decisão de levar a gravidez adiante: Eu fiquei muito assustada no começo... Agora que eu estou me acostumando [...]. Agora estou curtindo muito. No começo eu não tinha me acostumado, fiquei muito assustada. Ao mesmo tempo em que a adolescente se surpreendeu com a gravidez, ela percebeu a reação desfavorável de seus familiares e de seu grupo social mais próximo, que a condenaram pelo fato de estar grávida: Ih, minha mãe deu princípio de enfarte e tudo... deu. Ela me olhou assim assustada. É... no começo ficaram muito assustados, dizendo: Nossa! Mas você é muito nova. eu sou nova, mas eu quero assim. Aí achei que estava na hora! Essa escolha veio com a convicção efetiva, mesmo diante dos comentários ouvidos por parte de pessoas do convívio social próximo, incitando-as a não tomar a decisão pela manutenção da gravidez. Sendo uma escolha pensada, não admitiram sequer a possibilidade do aborto: Foi uma escolha minha, né? Muita gente disse, não faz isso, mas eu pensei... e eu penso: ‘Eu quero’! Escolha minha porque eu fiquei grávida. Vou tirar uma criança? Pensei nisso. Foi escolha minha mesmo. Querendo engravidar, mas não planejando esta gravidez As entrevistadas disseram que gostariam de vivenciar algo novo e diferente, o que lhes seria proporcionado pela gravidez. Ao começarem a namorar, solicitaram à mãe que as deixassem à vontade nessa procura pelo “novo”. Por terem desejado, não se arrependiam. Então quando eu comecei a namorar, engravidei. Eu falei: ‘Ah mãe, me deixa à vontade’. Nunca que eu me arrependi. Eu queria fazer uma coisa nova. Não querendo engravidar nem planejando esta gravidez Querendo engravidar e planejando a gravidez Essa subcategoria aponta que as adolescentes engravidaram por escolha própria, optando por não usar métodos contraceptivos. Para algumas entrevistadas, o fato de já estarem morando com o namorado constituiu fator preponderante para que desejassem a gravidez. Assim, quando se decidiram pela gravidez, abandonaram o uso de contraceptivos, de comum acordo com o companheiro: Eu resolvi ficar grávida porque eu já morava com o rapaz. Antes eu já usava pílula, entendeu? Antes de conhecer ele, eu usava, mas usava camisinha também. Aí, depois eu conheci ele, teve um dia que nós não usamos e resolvemos não usar mais. Outras entrevistadas quiseram e escolheram engravidar, apesar de se acharem jovens. Consideraram que o momento era ideal, pois já haviam passado por diversas experiências na vida, faltando apenas a concretização de terem um filho: Eu resolvi ter um filho agora. Era só o que faltava porque, para mim, eu já fiz tudo o que eu tinha que fazer… já vi tudo o que eu tinha que ver… Eu sei que Na situação em que não queriam nem planejaram a gravidez, mesmo tendo sido surpreendidas, as adolescentes relataram que passaram a querer, apesar da negação inicial: Bom, quando eu recebi o meu primeiro, deu negativo: maravilha! Não estava grávida e foi maravilhoso! Mas no segundo exame deu positivo… Horrível… Eu olhei assim… para o nome, para ver se era meu exame mesmo… eu falei: ’Grávida! Não acredito!’ Chorei… Eu não me conformei, mas hoje eu já estou até conformada. Estou até querendo, né? Peguei até o resultado, é menino! Optando pela gravidez A opção pela gravidez apareceu nos discursos, fundamentalmente, a partir de duas experiências aqui descritas como A descoberta do poder adquirido com a gravidez e Experiência de autonomia advinda com a gravidez. Na categoria Optando pela gravidez observa-se que as adolescentes descobrem o poder adquirido com a gravidez e que percebem a aceitação do pai do bebê, remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 117 Adolescência: uma análise da decisão pela gravidez corroborando, assim, a decisão delas. Ao optarem pela gravidez, as entrevistadas passaram a valorizar a família e a mãe. Não posso mais pensar só em mim, tenho que pensar nela. Relataram o sentido da responsabilidade, ao procurarem aprender a cuidar do bebê que estava a caminho; reconheceram a repercussão do fato no seu cotidiano, advindo da gravidez e viam a si mesmas acompanhando melhor o crescimento do filho por serem jovens. Assim, essa experiência é relatada por elas como uma experiência de autonomia. Com a gravidez, a mudança na vida das adolescentes acontece quando se veem prestes a ser mães e que, portanto, devem deixar de ser crianças e passar a pensar com mais responsabilidade. Agora, existe uma criança em jogo, por isso entendem que devem começar a se comportar como mulheres e como mães: Ah, eu acho que sim, porque a partir de agora eu vou ter que ter mais responsabilidade, entendeu? Tem uma criança em jogo, e... pra mim mudou. Antes eu já não tinha, era mais brincalhona e agora eu já tenho que me comportar como mãe, entendeu? Eu acho que mudou nesse sentido. Descobrindo o poder adquirido com a gravidez As adolescentes referem-se ao poder quando passam a ter a própria casa e, por considerarem-se donas de casa, têm o poder de decidir sobre as próprias coisas. Com a gravidez, as adolescentes tomam para si o poder sobre a própria vida. Sentem-se, finalmente, mulheres capazes de tomadas de decisão efetivas e não querem mais ser vistas como crianças na comunidade em que vivem, mas como mulheres e mães: Aí, a mãe dele fica em cima, né?, no apartamento de cima, e a gente embaixo. Aí fica lá, eu dona de casa... Ah, porque eu pensei dessa forma: a partir de agora eu vou ser mãe, entendeu, então eu tenho que mudar a forma de pensar, não pode pensar como uma garotinha como era antes, entendeu? Pensar agora como mulher, mãe de filho, entendeu? Ah, porque eu pensei dessa forma, a partir de agora eu vou ser mãe, entendeu, então eu tenho que mudar a forma de pensar, não pode pensar como uma garotinha como era antes, entendeu? Pensar agora como mulher, mãe de filho, entendeu? A responsabilidade perpassa pela recusa em realizarem um aborto, assumindo a gravidez. Ao engravidarem, alcançam um grau de amadurecimento que não tinham antes, o que as fazem entender as pessoas mais velhas. Reforçam para si a ideia de que o filho é delas, reconhecendo o aumento das responsabilidades na vida delas: Experimentando a autonomia advinda com a gravidez Se aconteceu é porque Deus quer. Eu não posso tirar uma coisa que Deus quer. Então eu vou ter esse neném, nem que eu tenha que passar por cima de todo mundo ou que minha mãe não aceite. Mas eu vou ter porque é meu, né? Eu já estou gostando desde já, imagine depois! Os relatos das adolescentes apontaram para o fato de que com a gravidez experimentaram a ideia de autonomia, marcada ou sentida quando elas apreenderam o sentido da responsabilidade, quando reconheceram a repercussão no cotidiano e mesmo assim decidiram pela gravidez, e também quando, por consequência, buscaram aprender a cuidar do bebê. Estou conquistando um pouquinho de juízo, que eu não tinha. Eu estou ficando uma pessoa mais responsável, que eu era muito assim desligada, sabe? Mas também... é, bastante coisa, sabe? Eu estou começando a entender a cabeça das pessoas mais velhas… Aprendendo o sentido da responsabilidade As adolescentes referem que com a gravidez estão aprendendo a encarar a realidade e que na vida delas, agora, vai existir o filho que está a caminho. Dessa forma, as atividades que antes eram praticadas apenas para si mesmas, como os afazeres domésticos, estarão sendo realizadas em prol dos seus filhos e, assim, a responsabilidade agora será dobrada: Ah, está sendo legal, né? Assim, eu estou aprendendo muito, assim... A realidade da vida, que não é uma brincadeira, que é dois... que tudo... assim, o que eu tenho que fazer pra mim eu tenho que fazer pra ele [...] tudo assim, uma responsabilidade em dobro... Reconhecendo a repercussão no cotidiano Quanto à escola, as adolescentes dizem que pararam de estudar pelo incômodo que sentiam quando as pessoas as olhavam muito por estarem grávidas, apesar do apelo de suas mães para que não parassem. Apesar da interrupção dos estudos, elas relatam que é momentânea e que retornarão, pois vão se virar para que haja essa continuidade, fazendo planos para essa volta de acordo com a data do nascimento do filho: Ah, agora para mim é tudo na minha vida, né? Tudo o que eu fizer agora, eu tenho que pensar nela (filha)... 118 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 Eu só parei de estudar, porque o pessoal fica olhando assim... e incomoda... Sei lá, eu sou muito tímida, aí as pessoas ficavam assim me olhando... Eu falei assim: ‘Ah não, mãe, eu vou parar de estudar’. Não sei o que... eu falei assim, mãe, ano que vem eu continuo a estudar. Estudo. Estudo sim, mais ou menos, assim, resolvi sair porque eu tava me sentindo muito mal nessa escola, não tava aguentando estudar ali, minha mãe ficou insistindo pra mim não parar, pra mim não parar, mas eu parei. Aí depois eu vou me virar, né? Vou me virar sozinha e eu vou continuar estudando... Eu vou ter em dezembro, as aulas só começam por volta de fevereiro, março, aí já dá pra mim ir pra escola. Ao comentarem sobre as críticas que ouviram, disseram que era muito chato ficar escutando sempre a mesma opinião: a de que são muito novas, muito jovens, de serem crianças tendo outras crianças: É a mesma coisa, todo mundo fala a mesma coisa: ‘Ah tá novinha’, que não sei o quê’ ’É muito jovem, criança, vai ter outra criança’.,, Ah, é chato, né?, ficar ouvindo a mesma coisa toda hora da maioria das pessoas. Aí uns falaram, algumas pessoas criticou, né?, porque sempre tem aqueles pessoas que criticam, falam mal... As principais mudanças relatadas pelas adolescentes referem-se à vida social que tinham antes de engravidar, como sair de casa para se divertirem, ir a baile, viajar. Veem-se agora sem ânimo, com preguiça, pelo fato de estarem perto de ganhar o bebê. Admitem que a vida está diferente com a gravidez e, embora tenham desejado, agora percebem que não poderão sair por terem de ficar com o bebê por algum tempo, que terão de crescer, adiando o sonho de terminar os estudos: Eu saía bastante, agora eu não saio mais, me divertia muito com as minhas amigas, viajava bastante também, porque o meu irmão mora na região dos lagos, e eu saía bastante. Hoje em dia, não. Ah, porque eu não tenho mais pique pra sair, não consigo, a preguiça não deixa, e também porque com o sétimo não dá mais pra mim sair agora. Não tenho mais a mesma vida que eu tinha antes porque já está perto de eu ganhar, entendeu? Aí eu vou ficar saindo? Eu ia muito pra baile, como é que eu vou pra baile? Aprendendo a cuidar do bebê As entrevistadas apresentaram a forma como procuravam se apropriar de um saber, que é o cuidar de um filho que ainda não fazia parte do cotidiano delas. Para que isso acontecesse, buscavam esse conhecimento com pessoas de idade próxima às delas, trazendo a reflexão de que em pouco tempo estariam com uma criança no colo. Recordaram o que as mães lhes diziam que cuidar de um bebê requer muita responsabilidade: Bom, tem um colega meu lá, que ele também foi pai, aí de vez em quando eu vou lá na casa dele, fico olhando, pego... assim... mas... é muito mole, muito, sei lá... é muito estranho. Eu... eu não sei nem pegar numa criança... e eu vou ser mãe! A minha mãe fala: “C., você vai ter muita responsabilidade, você que vai ter que cuidar”. Integrando categorias Após a descrição e a integração das categorias identificadas e suas dimensões, foi possível a descoberta da categoria central, aqui designada como a busca pela autonomia e poder. Assim, as adolescentes podem querer engravidar ou engravidam fortuitamente. Essa gravidez pode resultar da vontade delas, estando ou não associada ao que planejaram. Nessas circunstâncias, descobrir-se grávida causa impactos que se desdobram no cotidiano, ressaltando a surpresa das próprias adolescentes e das pessoas com quem elas convivem. Isso implica uma decisão que deve ser tomada imediatamente. E a decisão é pela gravidez. Optar pela gravidez, portanto, envolve influências e consequências para as adolescentes. A primeira consequência referida foi a descoberta do poder que obtêm com a gravidez. Poder sobre a vida, sobre as coisas delas e sobre o filho. A opção pela gravidez fez com que as adolescentes apreendessem o sentido da responsabilidade, reconhecessem a repercussão no cotidiano e procurassem aprender a cuidar do bebê, o que denota busca pela autonomia. Esta síntese integrativa está representada na FIG. 1: Eu quis, mas agora tá diferente, né? Eu fico pensando que eu não vou poder mais sair, que minha mãe não vai poder ficar! Quem vai ficar? Quem vai ficar? Vai ter que ser eu mesma. Estudar, nem pensar, então eu vou crescer. Porque eu tava querendo estudar, sabe? Fiquei arrependida porque eu já tava na oitava série... Meu sonho era terminar pelo menos o primeiro grau, mas aí resolvi parar e agora eu tô arrependida, eu queria estudar, né? E não posso... remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 119 Adolescência: uma análise da decisão pela gravidez FIGURA 1 – Esquema representativo do processo social Buscando autonomia e poder: a decisão da adolescente pela gravidez. Rio de Janeiro, 2006. DISCUSSÃO Como preâmbulo, reforçamos a ideia de que a gravidez, quando na adolescência, é entendida como um evento que acontece em um período de transição e de transformações físicas e biológicas inerentes à idade. Por período de transição entende-se, aqui, o deixar de ser criança sem ainda ser visto como um adulto. A adolescente está no meio desse caminho e à procura da identidade dela.4 A gravidez na adolescência é referida como um fenômeno que não surge isoladamente, mas está, sim, relacionada a componentes sociais, familiares e pessoais pela vivência de relações com os pais e companheiros.3 Existe, nesse processo, a transição desenvolvimental e a situacional. Na transição desenvolvimental, a adolescente grávida ainda não compreende nitidamente as modificações e alterações acarretadas com a gravidez, mas adquire, de forma não previsível ou determinada, mudanças em seu modo de ser e estarno-mundo, em seus relacionamentos com-os-outros e nos novos papéis. Ainda segundo a autora, há uma simultaneidade entre as transições desenvolvimental e a situacional, pois ao mesmo tempo em que a 120 gravidez, nessa fase adolescente, impõe sentimentos e comportamentos ambivalentes, como o associado ao abandono dos estudos, há por par te da adolescente a sensibilização e o prazer por estar gerando outro ser. Assim, podemos perceber que os dois papéis, antes distintos, se fundem num só: a dependência infantil é substituída pela autonomia, o que, sem a gravidez, só seria possível na fase adulta. Ao mesmo tempo, pela responsabilidade advinda com a gravidez, essa mulher deixa de se sentir uma adolescente, embora continue sendo adolescente. Do ponto de vista da Interação Simbólica, é nesse momento que a adolescente redefine para si os objetos sociais presentes na situação e o próprio papel nessa situação.9-10 Com isso, permite-se adotar uma nova estratégia e ação social: a busca pela autonomia e pelo poder. No campo da bioética, a defesa e o respeito à autonomia constituem ponto-chave. O princípio da autonomia nas relações humanas é passível de ocorrer, se houver liberdade de opção diante de um conflito.11 Desse modo, quando optam pela gravidez, as adolescentes estão autodeterminando-se na questão bioética da remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 autonomia. Essa autodeterminação 11 pode ser analisada, também, relacionada à questão reprodutiva. A livre escolha pela maternidade configura-se entre os direitos humanos concernentes aos interesses da saúde reprodutiva e sexual.12 Por outro lado, tomando por princípio que a bioética tem a autonomia como um de seus princípios fundamentais, a decisão pela gravidez e pela maternidade, embora represente autonomia de comportamento para as adolescentes, ainda as mantém dependentes em relação à família. 13-14 Há que se considerar, ainda, a possibilidade de que, além do choque pela notícia, impotência quanto à prevenção da gravidez, conformismo, alegria e melhora no relacionamento familiar pela chegada do bebê, haja frustração, dada a interrupção/mudança no projeto de vida familiar em relação à adolescente sem um relacionamento estável com o pai da criança. Assim, ao experimentarem a autonomia pela própria opção que tiveram, iniciam um processo de tomada de decisões como alternativa à repercussão que reconhecem no cotidiano delas. Aprendem, também, o sentido da responsabilidade, já que agora querem ser reconhecidas como mães e mulheres, e não como crianças. Passando à percepção de que algumas situações lhes conferem poder, fica evidente que, na fase da adolescência, a gravidez reforça a definição da identidade feminina e da divisão de papéis sexuais.15 A identidade feminina reforça, assim, o “ser” mulher na comunidade, e adolescente passa a ser vista como esposa ou mãe. E é nessas condições – esposa e mãe – que se percebe detentora de poderes. Da mesma forma, ao experienciar a autonomia, as adolescentes se dão conta do poder adquirido com a gravidez. A gravidez faz com que se sintam poderosas.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com as discussões e interpretações do estudo teve-se como objetivo analisar a decisão das adolescentes pela gravidez com base no significado que elas atribuíram ao fenômeno da vida delas à luz dos direitos reprodutivos e da bioética. Levando em conta a percepção das adolescentes quando da não valorização do que pensam a respeito delas as pessoas que fazem ou não parte da família e do grupo de amigos, quando engravidam, observouse, no estudo, que elas querem ser reconhecidas, com a gravidez, como seres humanos responsáveis por seus atos e decisões. O impacto causado pela gravidez, que pode ser considerado pela sociedade como negativo quando ocorre na adolescência, deve ser revisto em sua essência pelos profissionais da saúde em relação ao atendimento e entendimento dessas nuanças por que passam. Os profissionais devem reconsiderar o préjulgamento de que a gravidez na adolescência é, sempre, um problema para quem a vivencia. O aumento da taxa de adolescentes grávidas identificado nas pesquisas nacionais pode denotar a procura dessas pela autonomia e poder. Cabe, dessa forma, um aprofundamento desse aumento em pesquisas mais abrangentes, com a abordagem dos direitos reprodutivos e da bioética como referenciais. O processo decisório da adolescente pela gravidez tem o significado de uma busca por autonomia e poder, no qual elas procuram o fortalecimento delas e o reconhecimento social da decisão que tomaram. Mas, para que isso aconteça, há que se ter profissionais treinados e cientes do que representam os direitos reprodutivos e a bioética nas relações, quando em atendimento a esse segmento, e que sejam sensíveis no cuidado que lhes será dispensado. A gravidez na adolescência, com o olhar voltado para os direitos reprodutivos e para a bioética, mostrou que as adolescentes não se tornaram adultas pelo fato de serem mães ou de terem optado pela gravidez, mas que, mesmo continuando adolescentes, adquiriram poder e autonomia, condições só pensadas anteriormente para as pessoas adultas. Elas são adolescentes, continuam adolescentes, mas conquistaram autonomia e poder. REFERÊNCIAS 1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2000. [Citado em 2008 out.10]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. 2. Araújo LM, Progianti JM, Vargens OMC. A consulta de enfermagem ginecológica e a redução da violência de gênero. Rev Enferm UERJ. 2004; 12(3):328-31. 3. Zagonel IPS. O ser adolescente gestante em transição: sob a ótica da enfermagem. Pelotas (RS): Editora e Gráfica Universitária-UFPel; 1999. 4. Pigozzi V. Celebre a autonomia do adolescente: entendendo o processo de iniciação na vida adulta. São Paulo: Gente; 2002. 5. 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São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2002. 12. Cook RJ, Dickens BM, Fathalla MF. Saúde reprodutiva e direitos humanos: integrando medicina, ética e direito. Rio de Janeiro: Cepia; 2004. 13. Rodrigues EAS, Souza EP, Guedes CC, Madeira AMF. O adolescente e a vivência da paternidade: uma abordagem fenomenológica. Reme Rev Min Enf. 2003; 7(2):82-8. [Citado em 2007 jul. 05]. Disponível em: http://www.enf.ufmg.br/reme/remev7n2.pdf 14. Amazarray MR, Machado PS, Oliveira VZ, et al. A experiência de assumir a gestação na adolescência: um estudo fenomenológico. Psicol Reflex Crit. 1998; 11(3):431-40. 15. Dadoorian D. Pronta para voar: um novo olhar sobre a gravidez na adolescência. Rio de Janeiro: Rocco; 2000. Data de submissão: 22/8/2007 Data de aprovação: 29/5/2009 122 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 115-122, jan./mar., 2009 ACIDENTES COM MATERIAL BIOLÓGICO: A REALIDADE DE UMA INSTITUIÇÃO HOSPITALAR DO INTERIOR PAULISTA* ACCIDENTS INVOLVING BIOLOGICAL MATERIAL: THE REALITY OF A HOSPITAL IN INNER SÃO PAULO STATE ACCIDENTES CON MATERIAL BIOLÓGICO: LA REALIDAD DE UNA INSTITUCIÓN HOSPITALARIA DEL INTERIOR DEL ESTADO DE SÃO PAULO Maristela Aparecida Magri Magagnini1 Jairo Aparecido Ayres2 RESUMO Com este estudo, teve-se como objetivos caracterizar os profissionais da equipe de enfermagem que sofreram acidentes com material biológico no período de 2001 a 2006 e verificar a ocorrência de soroconversão pelos vírus da hepatite B e C e HIV por meio de exames comprobatórios. Trata-se de um estudo exploratório e descritivo de caráter retrospectivo, com abordagem quantitativa. No período estudado, ocorreram 87 acidentes com material biológico entre os profissionais da equipe de enfermagem. Verificou-se a maior ocorrência de acidentes em 2003, 2005 e 2006, nas unidades de clínica médico-cirúrgica e pronto-socorro. Quanto ao sexo, o feminino foi o predominante, mas, com relação aos acidentes proporcionalmente ao número total de trabalhadores na instituição, o masculino destacou-se. A lesão percutânea envolvendo o sangue predominou nos acidentes. Em relação aos EPIs, a maioria dos profissionais faziam uso no momento da exposição. Das 87 exposições, ocorreram oito acidentes com pacientes, comprovados para hepatite B e C e HIV. Após o seguimento por meio de exames laboratoriais, não houve soroconversão dos acometidos. Essa realidade permitiu sugerir que intervenções sistemáticas devem ser incorporadas às políticas institucionais, o que poderá levar à maior adesão de medidas preventivas existentes, assim como as inovações tecnológicas relacionadas a esse tipo de agravo, priorizando a promoção da saúde no ambiente de trabalho, uma vez que se verificou que esse tipo de acidente causa prejuízos à vida do acidentado e da instituição. Palavras-chave: Enfermagem; Riscos Ocupacionais; Saúde do Trabalhador. ABSTRACT This study aims to characterize the professionals of a nursing team who suffered accidents involving biological material between 2001 and 2006, as well as to verify the occurrence of seroconversion for hepatitis-B, C and HIV through corroborative tests. It is an exploratory and descriptive study with a quantitative approach. In the mentioned period, 87 accidents were reported. Most accidents occurred in 2003, 2005 and 2006 at the clinical surgery and emergency units. Females were most frequently victimized, and according to the proportional gender analysis of staff members, the number of victimized males was noteworthy. Percutaneous lesions involving blood were predominant. Most professionals were using IPE at the moment of exposure. Of the 87 exposure instances, eight accidents involving hepatitis B-, C- or HIV-positive patients occurred. After follow-up with laboratory tests, no seroconversion was observed. The mentioned facts show that systematic interventions should be incorporated to institutional policies in order to promote higher adherence to preventive measures and technological innovations related to this type of aggravation. Since this kind of accident causes loss to the victimized individuals, health promotion in the work environment should be considered a priority. Key words: Nursing; Occupational Risks; Occupational Health. RESUMEN El objetivo del presente estudio fue de caracterizar profesionales de equipos de enfermería que sufrieron accidentes con material biológico entre 2001 y 2006 y verificar, mediante análisis comprobatorios, si hubo seroconversión por virus de hepatitis B y C y VIH. Se trata de un estudio exploratorio descriptivo de carácter retrospectivo con enfoque cuantitativo. En el período estudiado ocurrieron 87 accidentes con material biológico entre los profesionales del equipo de enfermería. Hubo mayor incidencia de accidentes en 2003, 2005 y 2006, en las unidades de la Clínica Médico-Quirúrgica y Urgencias. El sexo femenino fue el más afectado; por el análisis proporcional al número total de trabajadores se destacó el masculino. Predominó la lesión percutánea en los accidentes con sangre. En el momento de la exposición la mayoría de los accidentados estaba usando equipo de protección de accidentes. De las 87 exposiciones hubo ocho accidentes con pacientes comprobados para hepatitis B y C y VIH. Tras el seguimiento, por medio de exámenes de laboratorio, se observó que no hubo seroconversión de los afectados. Esta realidad permite sugerir que se incorporen intervenciones sistemáticas a las políticas institucionales para lograr más adhesión de medidas preventivas existentes e innovaciones tecnológicas relacionadas con este tipo de agravio. De esta forma, al verificar que estos accidentes perjudican tanto al individuo como a la institución, la promoción de la salud en el ambiente de trabajo sería asunto prioritario. Palabras clave: Enfermería; Riesgos Laborales; Salud Laboral. * 1 2 Este estudo é parte da dissertação de mestrado intitulada Acidentes de trabalho com material biológico e o seu significado para os profissionais envolvidos, defendida na Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP. Enfermeira. Mestre em Enfermagem pela Faculdade de Medicina de Botucatu da UNESP. Professor Doutor do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP. Endereço para correspondência: Rua Terra Roxa nº 275, Parque Iracema, Catanduva-SP – CEP 15809 055. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, 115-122, jan./mar., 2009 123 Acidentes com material biológico: a realidade de uma instituição hospitalar do interior paulista INTRODUÇÃO A preocupação com os riscos de acidentes com material biológico surgiu na década de 1980, a partir da epidemia da HIV/AIDS, quando foram estabelecidas normas para as questões de segurança no ambiente do trabalho. Até aquela década, os profissionais da área da saúde não eram considerados como categoria de risco para acidentes de trabalho.1 O ambiente de trabalho na área de saúde oferece múltiplos e variados riscos aos profissionais, tais como os causados por agentes químicos, físicos, biológicos, psicossociais e ergonômicos.2 Diante disso, constata-se que o cenário hospitalar é ambiente complexo e apresenta grau elevado de riscos ocupacionais para os profissionais que ali atuam. ocupacional dos vírus da hepatite C (HCV), da hepatite B (HBV ) e do HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (AIDS).6 Muito embora a AIDS ocupacional seja um fato concreto, seu risco de contaminação acidental após exposição percutânea é de aproximadamente 0,3%, enquanto a probabilidade de se adquirir hepatite B é significativamente maior, podendo atingir até 40% dos casos. Para o vírus da hepatite C, o risco varia entre 2% e 18%.7 Essas doenças merecem uma atenção especial, principalmente nos seus mecanismos de transmissão, para que possam ser adotadas medidas que evitem a contaminação, quando se trata de acidentes com material perfurocortante. O trabalho da equipe de enfermagem na instituição hospitalar caracteriza-se pela prestação do cuidado nas 24 horas do dia, permitindo a continuidade da assistência aos pacientes.3 Isso implica permanecer grande parte da jornada de trabalho em contato direto com o paciente, além de executar procedimentos que apresentam graus variados de complexidade.4 Conforme estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), existem 325 milhões de portadores crônicos da hepatite B e 170 milhões da hepatite C no mundo. No Brasil, são cerca de 2 a 3 milhões. A maioria das pessoas desconhece sua condição sorológica, agravando ainda mais a cadeia de transmissão da infecção.8 Dessa forma, verifica-se que há elevado grau de risco ocupacional aos profissionais diretamente envolvidos com a assistência, atribuído grandemente aos agentes biológicos, os quais se encontram amplamente distribuídos na estrutura de uma unidade de saúde.5 Com o advento da AIDS, porém, foram introduzidas e intensificadas algumas medidas no ambiente hospitalar, a fim de aumentar a proteção dos profissionais da área da saúde e diminuir os riscos de contaminação acidental. Essas medidas, antes conhecidas como precauções universais 9 e hoje denominadas “precauções-padrão” (PP), devem ser rigorosamente utilizadas no atendimento aos pacientes. Portanto, o perigo de contaminação por esses agentes encontra-se nos materiais perfurocortantes, que se encontram diretamente em contato com substâncias contaminadas e podem facilmente provocar lesão na pele de uma pessoa sadia. Assim, os acidentes de trabalho com materiais perfurocortantes, com o envolvimento dos profissionais de enfermagem, representam um grave problema não somente pela frequência com que ocorrem, mas também pela grave repercussão na saúde desses trabalhadores.3 A exposição dos trabalhadores de saúde aos fluidos biológicos se deve, em parte, às formas de organização do trabalho. Frequentemente, os trabalhadores de saúde realizam trabalho em turnos, manipulam instrumentos inseguros, bem como não utilizam equipamento de proteção individual (EPI) adequado. Assim, fica evidente que, apesar de as instituições de saúde se constituírem como entidades que visam à assistência, ao tratamento e à cura dos enfermos, elas também podem ser responsáveis pelo adoecimento dos profissionais da equipe de enfermagem. Esses profissionais estão expostos aos riscos de infecções veiculadas por sangue, ferimentos provocados por agulhas, corte com objeto pontiagudo, contato com mucosa, por descontinuidade da pele, com sangue e outros fluidos corpóreos potencialmente infectados.1 Dentre os fluidos corporais, tem-se reconhecido que o sangue é o mais importante veículo de transmissão 124 As Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) representam os dispositivos legais orientadores da atenção em saúde ocupacional no sistema público do País. Segundo a portaria instituída pelo Ministério do Trabalho em 11 de novembro de 2005, que estabeleceu a Norma Regulamentadora (NR-32), sua finalidade é oferecer diretrizes básicas para a implantação de medidas de proteção à segurança dos trabalhadores em estabelecimento de assistência à saúde, bem como daqueles que exercem atividades de promoção e assistência à saúde em geral.10 Embora haja um trabalho intensificado para que os profissionais adotem essas normas como regra em suas atividades, os acidentes ainda acontecem em número considerável, causando alterações na vida dos acidentados e elevados custos gerados com as medidas profiláticas. Atualmente, a grande problemática da exposição a fluidos biológicos entre os trabalhadores de saúde despertou o desenvolvimento de novas tecnologias e de novos equipamentos com dispositivos de segurança que dificultam a exposição biológica. No entanto, o que se observa na realidade brasileira é a falta de aquisição desse tipo de material, justificada pelo seu alto custo.11 Diante do tema apresentado, observa-se que acidentes com material biológico configuram sério problema no remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 ambiente hospitalar envolvendo a equipe de enfermagem. Portanto, é necessária uma investigação para detectar fatores que contribuem para a ocorrência desse tipo de acidente. Além disso, é preciso identificar meios que diminuam as ocorrências, contribuindo para restringir os custos do atendimento profilático. Tratase de um tipo de acidente que pode acarretar um trauma psicológico a esses profissionais pela possibilidade de contaminação e de soroconversão. Com este estudo, teve-se como objetivos caracterizar os profissionais da equipe de enfermagem que sofreram acidentes com material biológico no período entre 2001 e 2006 e verificar a ocorrência de soroconversão pelos vírus das hepatites B e C e HIV, por meio de exames comprobatórios. MÉTODOS Trata-se de um estudo de caráter exploratório, descritivo e retrospectivo com abordagem quantitativa. Campo de estudo – O estudo foi desenvolvido em uma instituição hospitalar do interior paulista. Trata-se de um hospital de grande porte e alta complexidade, com 244 leitos, dos quais 79,9% são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Sujeitos do estudo – Os sujeitos do estudo foram profissionais da equipe de enfermagem envolvendo enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, acometidos por acidentes de trabalho com material biológico, no período entre 2001 e 2006. Coleta de dados – Os dados foram coletados da Ficha de Notificação de Acidentes Biológicos com Profissionais de Saúde (FNABPS). Essas fichas continham dados relacionados à instituição, à identificação dos acidentados e às características do acidente. Procedimentos éticos – O projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Catanduva (FAMECA), o qual foi aprovado e registrado sob o n° 48/06, em 27 de novembro de 2006. Procedimentos para a análise dos dados – Os dados referentes à caracterização dos acidentes foram coletados durante os meses de março e abril de 2007, utilizando informações de interesse contidas na FNABPS. RESULTADOS E DISCUSSÃO Observou-se que dos 87 acidentes com material biológico ocorridos no período entre 2001 e 2006, o maior número se deu em 2003, 2005 e 2006, com redução em 2004. Em 2001 e 2002, não houve variação no número de notificações de acidentes com material biológico, o que pode estar associado à subnotificação. Por outro lado, em 2003, 2005 e 2006 houve aumento considerável no número de notificações, podendo inferir que houve maior conscientização da importância desse ato. A notificação do acidente torna-se importante para planejar estratégias preventivas, além de assegurar ao trabalhador o direito de receber avaliação médica especializada, tratamento adequado e benefícios trabalhistas.2 Em relação à unidade a frequência dos acidentes, foi maior nas unidades de clínica médico-cirúrgica (31,0%), pronto-socorro (21,0%) e clínica pediátrica (9,2%). Em hospitais da região de Ribeirão Preto-SP, constatou-se, também, que 30% dos acidentes com profissionais de enfermagem ocorreram nas unidades de clínica médico-cirúrgica,6 dados semelhantes aos encontrados na pesquisa. Por outro lado, o pronto-socorro é uma unidade hospitalar em que se trabalha com o inesperado. A maior exposição do profissional de enfermagem se dá em situações de emergência e na assistência a pacientes críticos, pois as unidades de emergência, pelas suas especificidades e sobrecarga de trabalho, contribuem, em grande parte, para o aumento desse tipo de exposição.3 A maioria dos acidentes (71,2%) ocorreu com trabalhadores do sexo feminino e apenas 28,7% com o masculino. Dados da literatura analisada demonstram que as mulheres têm sido acometidas em maior número de acidentes. A explicação dessa ocorrência está associada ao fato de o número de mulheres ser consideravelmente maior nas instituições de saúde.4 E não é diferente na enfermagem, que é marcada por conteúdos fortemente ideológicos, atribuindo à mulher uma aptidão maior ao cuidado.4 A média no período estudado foi de 318 funcionários, sendo 264 do sexo feminino e 54 do masculino. Ao se analisar a frequência de acidentes segundo sexo, o masculino foi o que mais se acidentou: 46,30% contra 23,50% do feminino. Quanto ao número total de trabalhadores, o sexo masculino se acidentou mais que o feminino.12 Segundo a categoria profissional, foram acidentados 51 (58,6%) auxiliares de enfermagem, 28 (32,2%) técnicos de enfermagem e 8 (9,2%) enfermeiros. De acordo com alguns autores, essa maior ocorrência de acidentes com auxiliares de enfermagem deve-se ao fato de que esse profissional acaba assumindo grande parte dos cuidados diretos e também por representar maior número nessa categoria profissional.3,13 Quanto ao material biológico envolvido, o sangue contribuiu em 80,5% (70) e o sangue com fluido em 19,5% (17). O trabalho da enfermagem tem relação direta com o cuidado ao paciente, com procedimentos invasivos que, em sua maioria, envolvem sangue e fluidos orgânicos.14 Em relação ao tipo de exposição, a lesão percutânea foi a que predominou nos acidentes (82,8%), seguida do envolvimento de mucosas por meio de exposição a fluidos (16,0%), distribuído da seguinte forma: ocular (12,6%), oral (2,3%), nasal (1,1%) e pele íntegra (1,1%), conforme demonstra a TAB. 1. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 125 Acidentes com material biológico: a realidade de uma instituição hospitalar do interior paulista TABELA 1 – Distribuição numérica e percentual dos acidentes com material biológico segundo o tipo de exposição – 2001-2006 Tipo de exposição Nº % Percutânea 72 82,8 Mucosa ocular 11 12,6 Mucosa oral 2 2,3 Mucosa nasal 1 1,1 Pele íntegra 1 1,1 87 100,0 Total Segundo o Ministério da Saúde (MS), as exposições percutâneas são lesões provocadas por instrumentos perfurantes e/ou cortantes.15 Os acidentes de trabalho ocasionados por material perfurocortante entre profissionais da equipe de enfermagem são frequentes em decorrência da manipulação de agulhas, lâminas e objetos que perfuram e cortam.6,16 Isso se deve ao grande número de procedimentos invasivos executados pelo pessoal de enfermagem em suas atividades. Quanto aos dados referentes ao agente causador dos acidentes, como demonstrado na TAB. 2, verificou-se maior porcentagem envolvendo agulha com lúmen (67,8%). Quanto à exposição de mucosa e pele íntegra a fluidos com sangue, foram 17,2% e outros, como vidraria, lâmina de bisturi e agulha sem lúmen, 15%. TABELA 2 – Distribuição numérica e percentual dos acidentes com material biológico segundo o agente causador – 2001-2006 Agente causador Nº % Agulha com lúmen 59 67,8 Exposição a fluidos 15 17,2 Outros (vidraria, lâmina bisturi, agulha sem lúmen) 13 15,0 Total 87 100,0 As agulhas são os instrumentos que mais contribuem para os acidentes percutâneos.10 O hospital em estudo está se adequando à NR-32. A finalidade dessa norma é estabelecer as diretrizes básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde.10 Segundo essa norma, deve ser assegurado ao trabalhador o uso de materiais perfurocortantes com dispositivo de segurança. A exposição a fluidos com sangue acometendo mucosas e pele íntegra esteve presente 126 em 15 (17,2%) dos acidentes. Evidencia-se, na literatura, que a face e as mucosas, tanto oculares quanto orais, são as mais atingidas nesse tipo de acidente com material biológico.1,14 Os estudos sobre a exposição ocupacional aos fluidos biológicos por respingos em mucosas mostram o grave comprometimento com a saúde do trabalhador, evidenciando a possibilidade de soroconversão tanto para hepatite B quanto para vírus da AIDS.1 Quanto ao uso de EPI, 66 (75,9%) dos profissionais acidentados utilizavam-no e 21 (1) não o faziam. Pelos dados da TAB. 3, as luvas são os equipamentos mais utilizados nos procedimentos realizados por esses profissionais. TABELA 3 – Distribuição numérica e percentual dos acidentes com material biológico segundo a utilização de equipamento de proteção individual (EPI) EPI Sim % Não % Luvas procedimento 63 72,4 24 27,6 Avental 8 9,2 79 90,8 Óculos 4 4,6 83 95,4 Máscara 6 6,9 81 93,1 EPI é todo dispositivo de uso individual destinado a proteger a integridade física do trabalhador, incluindo luvas, protetores oculares ou faciais, protetores respiratórios, aventais e proteção para os membros inferiores.17 Os empregadores são obrigados a fornecer os EPIs adequados ao risco a que o profissional está exposto. A adequação desses equipamentos deve levar em consideração não somente a eficiência necessária para o controle do risco da exposição, mas também o conforto oferecido ao profissional.10 Pelos resultados encontrados na pesquisa, constatou-se que 75,9% dos acidentados estavam usando o EPI no momento do acidente; desses, alguns utilizavam mais de um equipamento, sendo que 72,4% dos trabalhadores acidentados utilizavam luvas de procedimentos. O uso de EPI não evita acidentes e, embora venha a se constituir barreira protetora para o trabalhador, não reduz efetivamente o risco de exposição ocupacional, apesar de ajudar a diminuir a exposição do trabalhador ao risco.4 Segundo as circunstâncias do acidente com lesão percutânea envolvendo material perfurocortante, 18 (24,7%) ocorreram na administração de medicamento endovenoso, 12 (16,5%) na punção venosa para coleta de sangue, 12 (16,5%) no descarte inadequado de material e 42,26% estão relacionados a outras atividades. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 TABELA 4 – Distribuição numérica e percentual dos acidentes com material biológico que causaram lesão percutânea segundo as circunstâncias em que ocorreram – 2001-2006 Acidentes percutâneos Nº % Administração de medicação endovenosa 18 24.7 Coleta de sangue periférico 12 16.5 Descarte inadequado de material 12 16.5 Retirada de acesso venoso periférico 7 9.60 Quebra na oclusão de frasco de vidro 5 6.70 Realização de glicemia capilar 3 4.10 Devolvendo material contaminado para CME 3 4.10 Manipulação de caixa de descarte 2 2.80 Administração de medicamento intramuscular 1 1.36 Auxílio na anestesia 1 1.36 Auxiliando na punção venosa 1 1.36 Auxílio inserção de cateter central 1 1.36 Coleta de sangue arterial 1 1.36 Manipulação de lâmina de bisturi 1 1.36 Manipulação de pinça Bakaus 1 1.36 Retirada da lâmina da faca de Blair 1 1.36 Descarte de escalpe 1 1.36 Perfuração de caixa de descarte 1 1.36 Transporte de agulha em bandeja 1 1.36 Total 73 100 de trabalho são de competência dos profissionais da equipe de enfermagem, e em todas havia o risco de exposição ao material biológico, principalmente o sangue. O material perfurocortante está presente em grande parte das atividades assistenciais que o profissional de enfermagem desempenha, sejam as de sua competência, como também ao auxiliar outros profissionais de saúde. Nos acidentes envolvendo o procedimento de administração de medicamento por via endovenosa, o profissional de enfermagem está exposto ao material perfurocortante, pois este, na maioria das vezes, pode conter sangue, dado o acesso venoso, tornando esse tipo de ocorrência extremamente preocupante. Dados encontrados na literatura demonstram que a maioria dos acidentes envolvendo a equipe de enfermagem ocorreu quando o profissional estava administrando medicamentos.13 Dos 15 acidentes ocorridos com a equipe de enfermagem envolvendo material biológico com exposição de mucosas e pele íntegra, em quatro dessas exposições o profissional estava manipulando material perfurocortante na troca de dispositivo venoso e transferência de sangue para tubo de ensaio de vidro. Nessas situações, não ocorreu lesão percutânea, mas respingos de fluidos na face do profissional, atingindo as mucosas. Nos demais procedimentos realizados, como banho, cateterismo vesical, dentre outros, não houve envolvimento de material que perfura ou corta. Pelos dados da TAB. 4, das 73 circunstâncias em que ocorreram os acidentes neste estudo, observa-se que a lesão percutânea foi a mais frequente, com 18 casos (24,7%) envolvendo a administração de medicamentos por via endovenosa. As demais lesões foram ocasionadas durante a coleta de sangue periférico 12 (16,5%) e o mesmo percentual foi atribuído ao descarte inadequado de material perfurocortante. Por esses resultados, verifica-se que o número de acidentes com essa atividade é relativamente alto. Assim, torna-se mais preocupante, ainda, dado o risco de transmissão de infecção, uma vez que os acidentes com agulha são responsáveis por 80% a 90% das transmissões de doenças infecciosas, como as hepatites B e C e o HIV, entre profissionais de enfermagem. Conforme dados estatísticos do CDC, a taxa de infecção por meio de acidentes perfurocortantes com participação de agulhas está em torno de 6% a 30% para o vírus da hepatite B, 1,8% a 3% para a hepatite C e 0,3% para o HIV.18 As atividades exercidas no momento do acidente Esse fato é relevante, pois comprova que os profissionais da equipe de enfermagem, ao realizarem procedimentos que tenham possibilidade de contato com fluidos corporais, devem utilizar os EPIs. Esses equipamentos têm a finalidade de reduzir e até de eliminar a exposição dos trabalhadores da equipe de enfermagem aos agentes biológicos ocasionada por respingos.4 Dos 87 acidentes de trabalho com a equipe de enfermagem envolvendo material biológico, 8 pacientes eram portadores de patologias como HIV, hepatite B e C, conforme demonstra o QUADRO 1. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 127 Acidentes com material biológico: a realidade de uma instituição hospitalar do interior paulista QUADRO 1 – Características de oito acidentes e situação do paciente fonte em relação ao HIV, Hepatite B e C Ano Setor S CP PR TE EPI MB AC HIV HBV HCV 2003 PS M TE P1 P Não S AL + - + 2003 CMC M AE P2 P Sim S AL + - - 2003 CTIA F TE P3 M Sim FS RF - - + 2004 CTN F TE P4 P Sim S AL + - - 2004 CTII F AE P5 P Sim S AL + - - 2005 CMC F E P6 M Não FS RF + - - 2005 CMC M AE P1 P Sim FS AL - + - 2006 PS M TE P7 P Sim S V + - - S = Sexo CP = Categoria profissional PR = Procedimento realizado: P1 – Administração de medicamento endovenoso; P2 – Transporte de agulha em bandeja; P3 – Troca de dispositivo venoso; P4 – Punção venosa; P5 – Descarte inadequado de material; P6 – Higiene oral, P7 – Quebra na oclusão de frasco de vidro TE = Tipo exposição: P – Percutânea; M – Mucosa MB = Material biológico: S – Sangue; FS – Fluido com sangue AC = Agente causador: AL – Agulha com lúmen; RF – Respingo de fluídos; V – Vidraria Em dois casos houve exposição de mucosa ocular, sendo que um paciente era portador de hepatite C e outro HIV. Os profissionais envolvidos nesses acidentes não estavam fazendo uso de proteção ocular. As luvas representam o equipamento mais utilizado pelos profissionais de enfermagem durante os procedimentos, assim como a máscara e o avental, porém, o percentual com óculos de proteção é baixo. Um dos motivos pelos quais os trabalhadores de enfermagem não aderem ao uso dos óculos de proteção pode estar associado à falta de hábito ou por alguns usarem óculos de grau.19 Os outros seis acidentes foram causados por lesão cutânea. Entre os pacientes, um era portador do HBV e cinco eram portadores do HIV, sendo que um era coinfectado com HIV e HCV. O principal objetivo do uso de EPI é evitar a exposição a sangue e outros fluidos corpóreos potencialmente contaminados. É representativo o número de acidentes com lesão percutânea em procedimentos com objetos pontiagudos como agulha, escalpe e lanceta para punção digital.19 Neste estudo, entre os acidentes com lesão percutânea, um envolveu um paciente portador da hepatite C. Quanto à hepatite C, não existe nenhuma medida específica para a redução do risco de transmissão pósexposição ao vírus HCV. 6 Constatou-se que tem aumentado o número de casos de hepatite C, portanto, deve-se enfatizar a necessidade de medidas mais eficazes de proteção, reforçando o uso de luvas e de outras barreiras. As luvas protegem a pele do contato com sangue e outros fluidos corporais, mas exige do 128 profissional maior atenção nos procedimentos que utilizam instrumentos perfurocortantes. Em relação à hepatite B, o trabalhador acidentado encontrava-se com esquema completo de imunização em relação a esse vírus. No Brasil, a vacina contra a hepatite B, na década de 1980, era de difícil acesso e de alto custo, portanto o esquema de imunoprofilaxia era realizado por poucos. A partir da década de 1990, alguns hospitais públicos começaram a oferecer a vacina para trabalhadores das áreas críticas, 20 considerando-a essencial para trabalhadores da saúde. Outros estudos demonstraram a não adesão ao esquema vacinal completo.11, 6 Em um deles, constatouse que 14,4% dos profissionais da equipe de enfermagem não possuíam o esquema vacinal completo para hepatite B. 11 Desse modo, ainda se verifica que profissionais da área da saúde não veem a importância dessa medida profilática. Dos oito acidentes ocorridos, seis profissionais da equipe de enfermagem se acidentaram com pacientes portadores do HIV. O risco de transmissão ocupacional do HIV é 0,3% para a exposição percutânea e 0,09% para mucosas. 21 Desses, quatro funcionários foram encaminhados para consulta com o médico infectologista, submetidos a exames laboratoriais e quimioprofilaxia antirretroviral. Um dos profissionais, uma enfermeira, passou pela consulta, mas recusou a quimioprofilaxia antirretroviral para HIV. Outro funcionário não deu seguimento médico ao acidente, recusando-se a ser atendido pelo médico infectologista, e, portanto, não recebeu a quimioprofilaxia antirretroviral para o HIV. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 A não adesão ao fluxograma e à quimioprofilaxia antirretroviral para o HIV talvez se justifique dada a necessidade de locomoção para o atendimento, o que acarreta mudanças na rotina diária, podendo ser esse um fator para o não acompanhamento.22 Embora os acidentes percutâneos possuam um risco de soroconversão para o HIV relativamente baixo (0,3%,) a vulnerabilidade existe.6 Pelos dados obtidos, não foi constatado nenhum caso de soroconversão pelos vírus HIV, hepatite B e C, nos acidentes de trabalho envolvendo materiais perfurocortantes e fluidos biológicos com profissionais da equipe de enfermagem, na instituição hospitalar em que o estudo foi realizado. CONCLUSÃO No período entre 2001 e 2006 ocorreram 87 acidentes com material biológico entre os profissionais da equipe de enfermagem. Observou-se que houve maior número de registros em 2003, 2005 e 2006, provavelmente em decorrências conscientização da importância da notificação desse agravo. Entre as unidades hospitalares, destacou-se em número maior de acidentes a clínica médico-cirúrgica e o pronto-socorro, dado o ritmo acelerado de trabalho. Quanto ao sexo, o feminino foi o predominante, mas, quando foram analisados os acidentes proporcionalmente ao número total de trabalhadores na instituição, verificou-se que o masculino foi o mais atingido. Em relação à categoria profissional, os auxiliares de enfermagem foram os que mais se acidentaram. A lesão percutânea foi a que predominou, em decorrência da administração de medicamentos por via parenteral, da coleta de sangue periférico, do descarte inadequado de material, da retirada de acesso venoso e da realização de glicemia capilar, sendo o sangue o material biológico de maior frequência nas exposições. As agulhas com lúmen representaram a maioria como agente causador dos acidentes, e os EPIs foram utilizados pelos profissionais de enfermagem em proporções consideráveis no momento do acidente. Dos 87 acidentes, 8 ocorreram com pacientes portadores de hepatite B e C, e HIV; nesses casos, diante do acompanhamento dos profissionais acidentados e de exames comprobatórios, não ocorreu soroconversão. Os acidentes de trabalho envolvendo material biológico constituem um sério problema para os estabelecimentos de saúde, principalmente pela característica de trabalho; contudo, vê-se uma possibilidade longínqua de solução. Quando houver, porém, envolvimento tanto da equipe técnica quanto da administrativa no processo de atendimento à saúde, haverá soluções viáveis aos riscos ocupacionais, o que permitirá maior segurança e estabilidade de trabalho. Essa realidade permitiu sugerir que intervenções sistemáticas devem ser intensivamente adequadas às políticas institucionais, o que poderá levar à maior adesão de medidas preventivas existentes, assim como a incorporação de inovações tecnológicas relacionadas a esse tipo de agravo, priorizando a promoção da saúde no ambiente de trabalho, uma vez que se verificou que esse tipo de acidente causa prejuízos à vida do acidentado e da instituição. REFERÊNCIAS 1. Nishide VM, Benatti MCC, Alexandre NMC. Ocorrência de acidente do trabalho em uma unidade de terapia intensiva. Rev Latinoam Enferm. 2004; 12(2):204-11. 2. Amaral AS, Sousa AFS, Ribeiro AO, Oliveira MAN. Acidentes com material perfurocortante entre profissionais de saúde em hospital privado de Vitória da Conquista-BA. Sitientibus. 2005; 33:101-14. 3. Sarquis LMM, Felli VEA. Acidentes de trabalho com instrumentos perfurocortantes entre trabalhadores de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2002; 36(3):222-30. 4. 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Manual de aconselhamento em Hepatites Virais. Brasília (DF): MS; 2005. 9. Centers For Disease Control and Prevention. Recomendations for prevention of HIV transmission in health care settings. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 1987; 36 Suppl 2:3-18. 10. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria n. 485, de 11 de novembro de 2005. Dispõe da Norma regulamentadora NR 32 segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde. Diário Oficial da União, Brasília (DF). 2005 Nov 16; Seção 1. [Citado em 2006 maio 1]. Disponível em: http://www.mte.gov.br/legislacao/normas_ regulamentadoras/nr_32.pdf 11. Sarquis LMM. O monitoramento do trabalhador de saúde, após a exposição a fluidos biológicos [tese]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2007. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 129 Acidentes com material biológico: a realidade de uma instituição hospitalar do interior paulista 12. Brandi S, Benatti MCC, Alexandre NMC. Ocorrência de acidente do trabalho por material perfurocortante entre trabalhadores de enfermagem de um hospital universitário da cidade de Campinas, Estado de São Paulo. Rev Esc Enferm USP. 1998; 32(2):124-33. 13. Canini SRMS, Gir E, Hayashida M, Machado AA. Acidentes perfurocortantes entre trabalhadores de enfermagem de um hospital universitário do interior paulista. Rev Latinoam Enferm. 2002; 10(2):172-8. 14. Chiodi MB, Marziale MHP, Robazzi MLCC. Acidentes de trabalho com material biológico entre trabalhadores de unidades de saúde pública. Rev Latinoam Enferm. 2007; 15(4):632-8. 15. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Exposição a materiais biológicos. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. 16. Marziale MHP. Segurança no trabalho de enfermagem. Rev Latinoam Enferm. 2000; 8(2):1-3. 17. Rapparini C. Características das exposições a material biológico: equipamentos de proteção individual. [Citado em 2008 fev 29]. Disponível em: http://www.riscobiologico.org/riscos/caract_epi.htm. 18. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Department of Health and Human Services. [homepage da Internet].Sharps injury prevention Program Workbook Information about the workbook. Atlanta; 2007. [Citado em 2007 mar 25]. Disponivel em: http://www.cdc.gov/ sharpsafety/workbook.html. 19. US Public Health Service.Update U.S. Public Health service guidelines for the management of occupational exposure to HBV, HCV, and HIV and recommendations for postexposure prophlaxis. MMWR Recomm Rep. 2001; 50(RR-11):1-52. 20. Shimizu HE, Ribeiro EJG. Ocorrência de acidente de trabalho por materiais perfurocortantes e fluidos biológicos em estudantes e trabalhadores da saúde de um hospital escola de Brasília. Rev Esc Enferm USP. 2002; 36(4):367-75. 21. Centers for Disease Control and Prevention. Updated U.S Public Health Service guidelines for the management of occupational exposures to HIV and recommendations for postexposure profilaxis. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2005; 54(RR-9): 1-17. 22. Colombrini MRC, Lopes MHBM, Figueiredo RM. Adesão à terapia antiretroviral para HIV/AIDS. Rev Esc Enferm USP. 2006; 40(4):576-81. Data de submissão: 18/8/2008 Data de aprovação: 29/06/2009 130 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 123-130, jan./mar., 2009 CORRELAÇÃO ENTRE ÍNDICE DE MASSA CORPORAL, DISTRIBUIÇÃO DE GORDURA E COMPOSIÇÃO CORPORAL EM FUNCIONÁRIOS DE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE-MG* CORRELATION BETWEEN BODY MASS INDEX, BODY FAT DISTRIBUTION AND BODY COMPOSITION AMONG EMPLOYEES OF A UNIVERSITY HOSPITAL IN THE METROPOLITAN AREA OF BELO HORIZONTE-MG CORRELACIÓN ENTRE EL ÍNDICE DE MASA CORPORAL, DISTRIBUCIÓN DE GRASA Y COMPOSICIÓN CORPORAL EN EMPLEADOS DE UN HOSPITAL UNIVERSITARIO DE LA ZONA METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE-MG Carolina Ribeiro Ferreira Duarte1 Lucila Pires Botelho1 Marcelo Souza Machado1 Aline Cristine Souza Lopes2 José Divino Lopes Filho3 Ann Kristine Jansen4 RESUMO O objetivo com esta pesquisa foi avaliar a correlação entre o índice de massa corporal, a relação cintura-quadril, a circunferência de cintura e o percentual de gordura em adultos. Trata-se de um estudo transversal, realizado em um hospital da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), em 2007, com adultos de idade entre 20 e 59 anos, funcionários técnico-administrativos. Foram aferidos peso, altura, circunferência de cintura, quadril, braço e dobras cutâneas. Com base nessas medidas, foram calculados o índice de massa corporal, a relação cintura-quadril, o percentual de gordura e a área muscular do braço. A análise estatística foi feita com base no programa SPSS v.12.0. Foram realizados testes de Qui-quadrado de Pearson e teste exato de Fisher, com o nível de 5% de significância. Dos indivíduos avaliados (n=193), 66,3 % eram do sexo feminino, com média etária de 34,0 ± 8,4 anos. O índice de massa corporal médio encontrado foi igual em ambos os sexos, correspondendo a 26,4 kg/m². Verificou-se que a relação cintura-quadril e o percentual de gordura tiveram coeficientes de menor magnitude com o índice de massa corporal (r=0,413 e r=0,502, respectivamente) quando comparada à circunferência de cintura (r=0,88). Comparando-se os indicadores de distribuição de gordura, percebeu-se que, para ambos os sexos, a circunferência de cintura foi o melhor indicador de excesso de peso. Palavras-chave: Antropometria; Índice de Massa Corporal; Gordura Abdominal; Composição Corporal; Adulto. ABSTRACT The aim of this study is to evaluate the correlation between body mass index, waist to hip ratio, waist circumference and fat percentage in adults.This is cross-sectional study which was performed in a hospital in the metropolitan area of Belo Horizonte. During 2007, 193 adults from technical and administrative staff aged 20 to 59 years were evaluated. We first measured weight, height, waist, hip and neck circumferences and skin folds and then calculated the body mass index, the waist to hip ratio, the fat percentage and the muscle area of the arm. Statistical analysis was performed using SPSS v.12.0 program. Pearson’s chi-square test and Fisher exact test were applied considering a 5% significance level. From a total of 193 patients evaluated, 66.3% were female. The mean age was 34.0 ± 8.4 years. The body mass index average was similar in both sexes, corresponding to 26.4 kg / m². The waist to hip ratio and the fat percentage had lower coefficients of magnitude with body mass index (r = 0413 r = 0502, respectively) when compared to the waist circumference (r = 0.88).After comparing the indicators of fat distribution, we noticed that the measure of the waist circumference is the best indicator of excessive weight in both sexes. Key words: Anthropometry; Body Mass Index; Abdominal Fat; Body Composition; Adult. * 1 1 1 2 3 4 Projeto Financiado pelo Programa de Auxilio à Pesquisa de Doutores Recém-Contratados, Pró-Reitoria de Pesquisa / UFMG, Edital número 02/2007. Graduanda em nutrição – UFMG. Graduanda em nutrição – UFMG. Graduando em nutrição – UFMG. Nutricionista. Professora adjunta da Escola de Enfermagem, Departamento Materno-Infantil, UFMG. Doutora em Epidemiologia. Nutricionista. Professor adjunto da Escola de Enfermagem, Departamento Materno-Infantil, UFMG. Doutor em Saúde Pública. Nutricionista. Professora adjunta Escola de Enfermagem, Departamento Enfermagem Básica, UFMG. Doutora em Ciências. Endereço correspondência: Carolina Ribeiro Ferreira Duarte: Av. Bernardo Vasconcelos nº 2600, apto. 203, bairro Ipiranga, CEP: 31160-440. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, 123-130, jan./mar., 2009 131 Correlação entre índice de massa corporal, distribuição de gordura e composição corporal em funcionários de um hospital universitário... RESUMEN Evaluar la correlación entre el índice de masa corporal, cintura-cadera, circunferencia de cintura y porcentaje de grasa en adultos. Se trata de un estudio transversal realizado en un hospital de la zona metropolitana de Belo Horizonte en 2007 con adultos de 20 a 59 años, personal técnico y administrativo. Se midió peso, talla, circunferencia de cintura, cadera y cuello y pliegues cutáneos. A partir de allí se calculó el índice de masa corporal, cintura-cadera, porcentaje de grasa y área muscular del brazo. El análisis estadístico se realizó con el programa SPSS v.12.0. Se llevaron a cabo las pruebas chi-cuadrado de Pearson y exacta de Fisher con nivel de significación del 5%. El 66,3% (n = 193) de los individuos evaluados eran mujeres, edad promedio de 34,0 ± 8,4 años. El índice promedio de masa corporal fue el mismo para los dos sexos, es decir, 26,4 kg / m². Se constató que en la relación cintura-cadera y en el porcentaje de grasa había un coeficiente de menor magnitud con el índice de masa corporal (r = 0,413 r = 0,502, respectivamente) en comparación con la circunferencia de la cintura (r = 0,88).Comparando los indicadores de distribución de grasa se observa que, para ambos sexos, la circunferencia de la cintura es el mejor indicador del exceso de peso. Palabras clave: Antropometría; Índice de Masa Corporal; Grasa Abdominal; Composición Corporal; Adultos. INTRODUÇÃO A jornada dupla de trabalho e o esquema de plantões, comuns entre os trabalhadores da área da saúde, influenciam a alimentação e atividade física, assim como outros hábitos de vida relacionados à saúde dos indivíduos.¹ O estabelecimento de estilos de vida inadequados pode favorecer o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis,¹ dentre elas a obesidade e suas comorbidades, que podem estar presentes até mesmo em indivíduos aparentemente saudáveis.2 A obesidade é uma doença crônica de elevada prevalência em todo o mundo. Ela é atribuída, principalmente, às mudanças nos hábitos alimentares e de atividade física da população. 3 Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar, a prevalência (20022003) de obesidade da população brasileira é de 11,1%, enquanto a de sobrepeso é de 29,5%. Estratificando-se por sexo, percebe-se que a prevalência de obesidade é maior nas mulheres, enquanto a de sobrepeso é maior nos homens.4 Em Belo Horizonte-MG, de acordo com o sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico 2006 (Vigitel), a prevalência de sobrepeso é de 28,4%, tendendo maior frequência entre os homens, enquanto a de obesidade é de 8,7%, sem apresentar tendências claras de frequência mais elevada no sexo masculino.5 Para a avaliação da obesidade, o indicador antropométrico mais utilizado é o índice de massa corporal (IMC), sendo também um preditor de morbidade e mortalidade para diversas doenças crônicas relacionadas ao excesso de peso. No entanto, resultados controversos relacionando o IMC com risco cardiovascular têm sido encontrados, já que no IMC não se avalia a localização da gordura nem se discrimina o tecido adiposo da massa muscular.6,7 A circunferência de cintura é outro indicador antropométrico amplamente utilizado em estudos epidemiológicos, pois é de fácil aferição, baixo custo, 132 além de ser considerado o melhor indicador da massa adiposa visceral, estando, dessa forma, fortemente associada à predição de doenças cardiovasculares.6,8 A preocupação com a obesidade deve ser focada, principalmente, na localização do tecido adiposo, e não somente na gordura corporal total. A deposição excessiva de gordura localizada na região do abdômen, conhecida como gordura visceral, possui grande impacto sobre alterações metabólicas, por associar-se com grande frequência a condições tais como dislipidemias, hipertensão arterial, resistência à insulina e diabetes mellitus tipo 2, acidentes vasculares cerebrais, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.6, 8-13 Acredita-se que esse aumento no risco reside no fato de que o adipócito visceral possui propriedades metabólicas diferenciadas dos adipócitos do tecido subcutâneo, além de sua localização anatômica favorecer a mobilização dos ácidos graxos para a circulação portal.10,14 Entretanto, o IMC associado à CC prediz melhor o risco à saúde do que o IMC isoladamente, já que avalia a deposição de gordura na região abdominal.10-12,15 O IMC, como método isolado, pode subestimar ou superestimar a prevalência de risco nutricional se não for levada em consideração a CC.16 Koster et al. 6, avaliando uma amostra representativa da população norte-americana, da base de dados de um estudo prospectivo (n = 245.533), composta por homens e mulheres com idade entre 51 e 72 anos, demonstrou que mesmo os indivíduos com valores de IMC na faixa de eutrofia, porém com CC acima do nível aceitável, apresentaram importante aumento no risco de mortalidade.6,10-12 O percentual de gordura (PG) e a relação cintura quadril (RCQ) também são bons indicadores relacionados ao risco para o desenvolvimento de doenças associadas à obesidade e são bastante utilizados em estudos epidemiológicos.12,17 Dessa forma, com este estudo objetiva-se avaliar a correlação entre o IMC e as demais medidas antropométricas dos funcionários técnicoadministrativos de um hospital universitário. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 MÉTODOS População de estudo Os dados utilizados neste trabalho provêm de um estudo transversal realizado em um hospital universitário da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)-MG, de julho a outubro de 2007. A população constituiu-se de indivíduos adultos, com idade entre 20 e 59 anos, funcionários técnico-administrativos, da qual foi selecionada uma amostra representativa de 235 indivíduos. A amostra foi calculada com o auxílio do programa EPIInfo v3.4, considerando-se a população total de 800 funcionários e 20% de perdas, tendo como base a prevalência de 40% a 46% de excesso de peso.4 Utilizou-se um intervalo de confiança de 95%. Dos 235 funcionários selecionados, foram excluídos 23, por estarem de licença, férias, afastamento ou demitidos no período do estudo; 11, por não consentirem em participar; 2 gestantes; 2 deficientes físicos; e 1 idoso, totalizando 39 excluídos. Coleta de dados As medidas antropométricas foram aferidas por membros da pesquisa treinados, sendo os procedimentos padronizados de acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).18 A medida de peso foi obtida por uma única tomada em balança digital da marca Soehnle (Alemanha) com capacidade para 130 quilogramas e precisão de 100 gramas. A estatura foi verificada com uma única tomada com estadiômetro portátil, marca Alturexata (Brasil). Com essas medidas, calculou-se o índice de massa corporal (IMC), que foi classificado segundo a OMS.18 A verificação da circunferência de cintura foi realizada na menor circunferência com uso de fita métrica retrátil de 150 centímetros de extensão e avaliada de acordo com pontos de corte estabelecidos pela OMS.18 Para a circunferência de quadril, a fita métrica foi colocada na maior protuberância glútea e, com base nesses valores, analisou-se a relação cintura quadril (RCQ) segundo a classificação de Lohman et al.,19 1988. A composição corporal foi avaliada mediante a aferição das medidas de dobras cutâneas segundo Lohman et al., 198819 utilizando um adipômetro da marca Lange (Cambridge Scientific Industries, EUA). O percentual de gordura foi calculado por meio do protocolo de Durnin e Womersley20 e classificado segundo Lohman.21 Avaliouse a massa magra por meio da estimativa de área muscular do braço (AMB), obtida da circunferência do braço e da dobra cutânea tricipital, segundo Frisancho.22 análise descritiva das variáveis. Testou-se a normalidade das variáveis contínuas por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov. A partir da não normalidade das variáveis, foram utilizados testes não paramétricos nas análises. Avaliou-se a correlação entre o IMC e as demais medidas antropométricas por meio do coeficiente de correlação de Spearmam. Para isso, o IMC foi categorizado em eutrofia e excesso de peso (sobrepeso e obesidade). Para as variáveis categóricas, foi utilizado o teste qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher. Para as variáveis contínuas, foi utilizado o teste de Mann-Whitney. Para todos os testes foi considerado o nível de 5% de significância. Aspectos éticos Anteriormente à coleta, os sujeitos da pesquisa foram colocados a par dos objetivos e métodos da pesquisa por meio de uma Carta de Informação, assinando, em seguida, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e pelo Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital estudado. Os sujeitos identificados como potenciais indivíduos de risco para o desenvolvimento de doenças associadas ao aumento de adiposidade corporal foram encaminhados para atendimento individual no Ambulatório de Nutrição do Curso de Nutrição da UFMG. RESULTADOS Dos 196 funcionários avaliados, 91 apresentaram eutrofia (46,4%), 102 (52,04%) excesso de peso e 3 desnutrição (1,56%). Com base na baixa prevalência de desnutrição, excluíram-se os desnutridos da análise de dados, resultando numa amostra de 193 indivíduos. Desses, 66,3 % eram do sexo feminino, com média etária de 34,0 ± 8,4 anos (20-57 anos). Dos indivíduos com excesso de peso, 21,8% foram classificados como obesos. Estratificando-se por gênero, observou-se que os homens apresentaram maior prevalência de sobrepeso e as mulheres, maior prevalência de obesidade, sem diferença estatística entre os gêneros (p=0,08) ( TAB. 1). O IMC médio encontrado foi igual em ambos os sexos, correspondendo a 26,4 kg/m2. Análise estatística Para a análise dos dados encontrados, utilizou-se o programa SPSS v.12.0. Inicialmente foi realizada uma remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 133 Correlação entre índice de massa corporal, distribuição de gordura e composição corporal em funcionários de um hospital universitário... TABELA 1 – Classificação do IMC estratificado por gênero dos funcionários de um hospital universitário de Belo Horizonte . A circunferência de cintura apresentou média de 80,6 ± 11,0 cm e 88,5 ± 10,1 cm para mulheres e homens, respectivamente, enquanto a média da RCQ foi de 0,8 ± 0,1 e 0,9 ± 0,1 nas mulheres e homens, respectivamente (p<0,001 em ambos). Verificou-se que a RCQ teve uma correlação de menor magnitude com o IMC (r = 0,413) quando comparada à CC (GRAF. 1 e 2, respectivamente). O mesmo foi observado entre o PG e o IMC (r = 0,502), o que pode ser demonstrado no GRAF. 3. Em relação à AMB, a associação com o IMC foi de maior magnitude nos indivíduos do sexo feminino (r=0,72), enquanto no masculino foi menos intensa (r=0,41) (GRAF. 4). GRÁFICO 1 – Correlação entre IMC e relação cintura-quadril dos funcionários de um hospital universitário de Belo Horizonte 134 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 GRÁFICO 2 – Correlação entre IMC e circunferência de cintura dos funcionários de um hospital universitário de Belo Horizonte GRÁFICO 3 – Correlação entre IMC e percentual de gordura dos funcionários de um hospital universitário de Belo Horizonte GRÁFICO 4 – Correlação entre IMC e área muscular do braço dos funcionários de um hospital universitário de Belo Horizonte remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 135 Correlação entre índice de massa corporal, distribuição de gordura e composição corporal em funcionários de um hospital universitário... DISCUSSÃO O trabalho de enfermagem é, geralmente, caracterizado pela maior exposição a fatores de riscos à saúde. Tais fatores, associados a situações de estresse, podem favorecer o surgimento precoce de doenças, em especial as crônicas não transmissíveis,1,2 o que poderia explicar a elevada prevalência de obesidade encontrada neste estudo. Percebe-se que não há diferença entre os valores médios de IMC entre os sexos. Esse resultado difere dos achados de outros estudos,3,16 como o de Sampaio e Figueiredo,23 no qual foi encontrado um IMC médio superior para as mulheres, independentemente da faixa etária. Contudo, nota-se que, mesmo não havendo diferença entre os valores médios de IMC, as mulheres apresentam maior prevalência de obesidade, enquanto nos homens há maior prevalência de sobrepeso. Resultado semelhante ao encontrado em estudo populacional realizado no Brasil4 também sem diferença significativa entre os sexos. Apesar disso, de acordo com o Vigitel 2006, para a população de Belo Horizonte, tanto a prevalência de sobrepeso quanto a de obesidade foram maiores entre os homens.5 A circunferência de cintura, a RCQ e o percentual de gordura, quando associados ao IMC, predizem melhor os riscos à saúde do que o IMC isoladamente. Isso porque o IMC não reflete a localização da gordura corporal, tampouco considera a quantidade de massa magra. Tal fato é demonstrado em vários estudos,6,10-12 como o realizado por Martins e Marinho, 8 que encontrou associação entre CC e RCQ com doenças vasculares, dislipidemias e síndrome metabólica. A adiposidade visceral, avaliada pela circunferência de cintura, está diretamente associada a essas doenças.6,812 Existem diversos protocolos para aferição da circunferência de cintura, como na menor circunferência, no ponto médio entre a última costela e a crista ilíaca, logo abaixo da última costela e logo acima da crista ilíaca.24 A OMS recomenda que a aferição da circunferência de cintura seja realizada no ponto médio entre a última costela e a crista ilíaca.18 Contudo, neste estudo optou-se por utilizar a menor circunferência. Essa escolha se deve ao fato de que a população estudada apresentou grande prevalência de indivíduos com excesso de peso, sendo difícil determinar tais pontos anatômicos, uma vez que comprometeria a medida. Ainda de acordo com a meta-análise realizada por Ross et al.,25 que avaliou uma população de mais de 5 mil indivíduos, não foi encontrada uma influência significativa do protocolo de aferição da CC e a associação desta com doenças crônicas não transmissíveis. Em relação à CC, é importante ressaltar que não há um consenso da comunidade científica de que os pontos de corte recomendados pela OMS sejam adequados para todos os grupos étnicos, incluindo a 136 população brasileira. Em dois estudos realizados com a população brasileira,11,12 foram encontrados valores de circunferência de cintura menores que os preconizados pela OMS, quando foram analisados os melhores pontos de corte que predizem o risco relacionado à morbidade. Segundo a Federação Internacional de Diabetes,26 os pontos de corte mais adequados para a região da América do Sul são inferiores e, portanto, mais sensíveis e menos específicos aos recomendados pela OMS. Dessa forma, neste estudo, um número maior de indivíduos seria classificado com gordura abdominal aumentada se esses pontos de corte fossem utilizados. Analisando o percentual de gordura, percebeu-se que maior quantidade de mulheres encontrava-se na faixa de risco para o desenvolvimento de DCV em comparação com os homens. Esse achado corrobora o fato de as mulheres apresentarem maior prevalência de obesidade, de acordo com o IMC. Ademais, muitos indivíduos classificados como eutróficos apresentaram elevado percentual de gordura corporal. Esses indivíduos podem apresentar alterações metabólicas, o que pode levar a um risco de desenvolvimento de doenças semelhantes à dos obesos, pois, além de apresentarem excesso de adiposidade, podem, também, apresentar perda de massa magra.27,28 Quando isso ocorre, são conhecidos como magros dismetabólicos. Esse achado é semelhante aos de Deurenberg-Yap et al.,17 em estudo com a população de Singapura, China, o que reforça a necessidade de utilizar medidas antropométricas que discriminam a adiposidade associada ao IMC. Estratificando-se por sexo, nota-se que o IMC foi fortemente correlacionado com todas as outras medidas antropométricas analisadas. Entre os homens, o maior coeficiente foi para CC e o menor para área muscular do braço (AMB). Entre as mulheres, os maiores coeficientes foram para circunferência do braço e da cintura, e o menor, para RCQ. Isso significa que nos homens encontra-se elevada AMB também em indivíduos eutróficos e, nas mulheres, elevada RCQ nas eutróficas. Neste estudo, evidenciou-se uma forte correlação entre IMC e CC e uma fraca correlação entre IMC e RCQ, o que também foi observado em outros estudos. Picon et al.,10 em um estudo transversal multicêntrico com 820 pacientes com DM2, encontrou forte correlação da CC com o IMC tanto em homens quanto em mulheres (r= 0,814; P< 0,05 e r= 0,770; P< 0,05, respectivamente). Já a correlação da RCQ com o IMC foi fraca (homens: r= 0,263, P< 0,05; mulheres: r= 0,092, P< 0,05). Sampaio e Figueiredo,23 avaliando, em um estudo transversal, uma amostra constituída por 634 indivíduos (316 adultos e 318 idosos) de ambos os sexos encontrou forte correlação entre o IMC e a CC nos indivíduos adultos de ambos os gêneros (r = 0,93; p<0,001 para ambos). Já a correlação entre o IMC e a RCQ foi menor, mas estatisticamente significante, nos dois sexos (r = 0,64; p<0,001 para homens e r = 0,66; p<0,001 mulheres). Neste estudo, a RCQ foi elevada tanto nas mulheres remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 eutróficas quanto nas com excesso de peso, influenciando a magnitude da relação entre a RCQ e o IMC. Estudos têm demonstrado que a circunferência de cintura isolada tem sido considerada mais sensível em relação à RCQ para determinar a obesidade central, visto que a CC parece ser menos afetada pelo sexo, enquanto a RCQ pode refletir o tamanho e massa muscular do quadril.13,29 Esse tipo de deposição de gordura possui menor relação com enfermidades relacionadas ao excesso peso.14 Observou-se que a correlação entre o IMC e a AMB foi mais forte entre as mulheres, indicando que as mulheres com excesso de peso possuíam maior massa muscular. Ao mesmo tempo, neste estudo, demonstrou-se que esses indivíduos com maior AMB são, em sua maioria, auxiliares e técnicos de enfermagem que, geralmente, executam atividades laborais mais intensas. Entretanto, é importante salientar que a AMB reflete a massa muscular na região do braço e, por isso, deve ser avaliada com cautela. Além disso, a dobra cutânea triciptal, utilizada no cálculo da AMB, é de difícil aferição nos indivíduos com excesso de peso. CONCLUSÃO Conclui-se que o IMC correlacionou-se de forma positiva com todas as variáveis antropométricas, sendo que a correlação com a circunferência de cintura apresentou maior magnitude, enquanto com a RCQ essa correlação foi mais fraca. Em relação à AMB, a correlação foi mais forte entre as mulheres em comparação com a dos homens. Já o percentual de gordura não teve uma correlação de elevada magnitude com o IMC dado o número considerável de indivíduos com o IMC de eutrofia que apresentam percentual de gordura elevado. Dessa forma, comparando os indicadores antropométricos, percebeu-se que, para ambos os sexos, a CC foi a melhor medida para avaliar o excesso de peso. REFERÊNCIAS 1. 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Enferm.;13(1): 131-138, jan./mar., 2009 Revisão Teórica A ANTROPOLOGIA COMO FERRAMENTA PARA COMPREENDER AS PRÁTICAS DE SAÚDE NOS DIFERENTES CONTEXTOS DA VIDA HUMANA* ANTHROPOLOGY AS AN INSTRUMENT TO ENHANCE COMPREHENSION OF HEALTH PRACTICES IN DIFFERENT CONTEXTS OF HUMAN LIVING LA ANTROPOLOGÍA COMO HERRAMIENTA PARA COMPRENDER LAS PRÁCTICAS DE SALUD EN DIFERENTES CONTEXTOS DE LA VIDA Felipa Rafaela Amadigi1 Evelise Ribeiro Gonçalves2 Hosanna Pattrig Fertonani3 Judite Hennemann Bertoncini4 Silvia Maria Azevedo dos Santos5 RESUMO Tradicionalmente, o modelo biomédico costuma tratar as doenças dos indivíduos com base na explicação biológica para suas causas e mecanismos de tratamento. Em geral, o significado que a doença assume para cada sujeito é pouco considerado e compreendido pelos profissionais da saúde que atuam embasados, prioritariamente, na biomedicina, fato que tem gerado conflitos e dificuldades na relação profissional-paciente. Neste artigo analisa-se a produção teórica sobre o uso do suporte conceitual da antropologia como ferramenta para melhor compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana, utilizando como fonte teses, dissertações e livros produzidos no período entre 1990 e 2003. Observou-se um crescente, debate nos últimos dez anos, sobre os aspectos positivos do olhar da antropologia para a saúde, resultando em diversas produções teóricas interessadas em ampliar a compreensão do complexo processo de adoecimento e sofrimento das pessoas. Conclui-se que o estabelecimento do diálogo entre os atores sociais envolvidos nas práticas de saúde faz com que não fiquem caracterizadas como um espaço de exercício do poder, de um sujeito sobre outro, mas, sim, que se legitimem como processos promotores de saúde. Palavras-chave: Prática Profissional; Antropologia; Relação Profissional-Paciente. ABSTRACT The biomedical model traditionally treats people according to their diseases, taking into consideration a biological explanation of its causes and treatment mechanisms. In general, the significance that a certain disease has to the assisted patient is not well considered or comprehended by the health worker and this fact has brought up conflicts and difficulties to the professional-patient relationship. This article examines the theoretical production regarding the use of the conceptual support of Anthropology as an instrument to enhance comprehension of health practices in different contexts of human living. Theses, dissertations and books produced between 1990 and 2003 were assessed. Over the past ten years there has been a growing debate on the positive aspects of an anthropological point of view regarding health. This has resulted in several productions interested in expanding the theoretical comprehension of the complex process of illness and suffering. We conclude that establishing a dialog among the social actors involved in health practices legitimates the process of health promotion. Key words: Professional Practice; Anthropology; Professional-Patient Relations. * 1 2 3 4 5 Artigo elaborado como requisito parcial à conclusão da Disciplina NFR 4208 Processo de Viver e a Saúde Humana do Curso de Doutorado em Filosofia, Saúde e Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina-SC. Enfermeira, Mestre em Saúde Pública, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Docente do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade do Vale do Itajaí – Campus Biguaçu-SC. Cirurgiã-Dentista. Mestre em Saúde Pública, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina-SC. Enfermeira, Mestre em Enfermagem, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Docente do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá-PR. Enfermeira, Mestre em Saúde Pública, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, Docente do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Regional de Blumenau-SC. Enfermeira, Mestre em Enfermagem, Doutora em Educação, Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina-SC. Endereço para correspondência: Caixa Postal 5116, CEP 88040-970 Florianópolis/SC. E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, 131-138, jan./mar., 2009 139 A antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana RESUMEN Tradicionalmente, el modelo biomédico suele tratar a las personas a partir de sus enfermedades basado en la explicación biológica para sus causas y mecanismos de tratamiento. En general, los profesionales de salud no tienen muy en cuenta el significado que las personas le atribuye a la enfermedad porque actúan siguiendo los principios de la biomedicina, hecho que ha generado más de una vez conflictos y complicaciones entre las relaciones profesional-paciente. Este artículo analiza la producción teórica sobre el uso del respaldo conceptual de la antropología como herramienta para comprender mejor las prácticas de salud en diferentes contextos de la vida, utilizando como fuente tesis, disertaciones y libros elaborados entre 1990 y 2003. En los últimos diez años ha habido creciente debate acerca de los aspectos positivos del la mirada de la antropología a la salud, lo cual ha resultado en producciones interesadas en ampliar la comprensión teórica del complejo proceso de enfermedad y l sufrimiento. Se concluye que cuando se establece el diálogo entre los actores sociables involucrados en las prácticas de salud éstas no se caracterizan como espacio para ejercer el poder sino que hace que se legitimicen como verdaderos procesos promotores de la salud. Palabras clave: Práctica Profesional; Antropología; Relaciones Profesional-Paciente. INTRODUÇÃO A importância e o significado dados ao adoecer estão, normalmente, relacionados às experiências e vivências de cada um dos atores sociais envolvidos no processo saúde-doença, dentre os quais destacamos: o indivíduo, a família e o profissional da saúde. Assim, tanto os modos de entender saúde como as práticas adotadas variam de indivíduo para indivíduo. Conviver nesse espaço de interação profissionalusuário/cliente nos faz refletir e discutir, como profissionais de saúde, sobre as lacunas observadas na prática e vivenciadas cotidianamente. Essas lacunas dizem respeito à distância entre o significado do processo saúde-doença para os indivíduos, as ações de saúde promovidas e a assistência recebida. Um dos ângulos desse debate centra-se no modelo assistencial hegemônico da saúde – modelo biomédico –, que se caracteriza por uma abordagem clínica centrada no cuidado individual e na figura do médico. Vários estudos desenvolvidos no Brasil sobre esse modelo mostram essa realidade e apontam para a necessidade de superação de alguns problemas que dele se originam.1-8 O objetivo é buscar, principalmente, uma articulação entre as intervenções de diferentes naturezas para que possamos dar conta das multidimensionalidades do ser humano. Compreender como as pessoas consideram sua condição de saúde e doença e, com base nisso, como lidam com a situação. Isto é, quais são suas práticas de cuidado e promoção da saúde? Que itinerário terapêutico percorrem em busca da cura e/ou tratamento? Os significados do adoecer e a percepção da doença para as pessoas atendidas são frequentemente pouco considerados, compreendidos e apreendidos pelos profissionais da saúde. Dessa forma, ao fazerem orientações ou desenvolverem ações educativas o fazem apenas segundo suas crenças, o que nem sempre está em consonância com o usuário. Esse fato é gerador de diversos dilemas e dificuldades na relação profissional-usuário-cliente e uma das causas da baixa adesão à terapêutica recomendada.8-12 140 Podemos apontar como uma das causas dessas dificuldades o processo de formação profissional, que ainda se faz pautado, prioritariamente, pela lógica biomédica, que tem como base do raciocínio clínico disciplinas como a Biologia, a Anatomia, a Fisiologia, a Fisiopatologia, etc. Indiscutivelmente, as ações propostas com base no modelo biomédico trazem o alívio do sofrimento, da dor e, frequentemente, a cura das doenças, contribuindo para a melhor qualidade de vida do ser humano. Por outro lado, esse modelo também apresenta limites, em especial na esfera da subjetividade humana, como a compreensão particular da doença e a vivência do processo de adoecimento e sofrimento. Esse processo é bastante complexo e envolve várias dimensões, como a psicológica, a social, a cultural ou a transcendental. Assim, compreender o processo de adoecer, nos moldes do modelo biomédico, é apenas um dentre tantos outros modos de explicar o adoecer, o tratar, o curar e o cuidar, enfatizando-se que ele não contempla a integralidade do ser humano. Nesse sentido, podemos inferir que a ação de saúde inicia-se no encontro de subjetividades, objetivadas em ações concretas, em palavras que concordam ou discordam, manifestadas pelo silêncio ou por orientações, que podem ser seguidas ou não e, às vezes, transformadas. Verifica-se que o olhar sobre o processo saúde-doença e as escolhas no processo de cuidar ocorrem em macros e microcontextos determinados socialmente e sob a égide de dimensões subjetivas e culturais. Portanto, a relação do profissional de saúde com o cliente/usuário também é um encontro de culturas, com valores, saberes e fazeres diversos. Uma intervenção que pode ampliar o olhar para além dos limites das ações do modelo biomédico e que vêm sendo discutida amplamente na literatura refere-se à abordagem antropológica, cuja preocupação com as questões da saúde e da doença tem estado presente em estudos etnográficos há bastante tempo.13 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 A discussão do ponto de vista da antropologia faz-se necessária, tendo em vista que o processo de viver nos diferentes contextos da vida humana resulta em diferentes percepções sobre a vida, a sociedade e as práticas/cuidados de saúde. Assim, o domicílio, o cotidiano familiar e os diferentes sistemas de cuidado são fatores que precisam ser compreendidos pelos profissionais de saúde, como forma de fazer com que os significados ou as práticas/cuidados das pessoas com relação ao seu corpo, ao fenômeno da doença, ao cuidado e à cura sejam considerados pelo processo terapêutico. METODOLOGIA Neste artigo, desenvolvemos um estudo exploratóriodescritivo cujo objetivo foi investigar a produção teórica de teses e livros que utilizaram o suporte conceitual da antropologia como ferramenta para melhor compreender as práticas de saúde nas diferentes realidades e fases do processo de viver humano. Utilizamos como fonte teses e livros produzidos no período de 2000 a 2005. Dentre as teses de doutorado pesquisadas, encontramos oito produções,9,12,19-24 sendo sete do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem de uma universidade federal da região Sul e uma da universidade estadual da região Centro-Oeste do Brasil, além de dois livros publicados. Utilizamos a análise temática com a leitura flutuante de cada estudo, buscando uma visão e imersão no conjunto dos dados. Após a leitura transversal das principais ideias encontradas nos estudos, emergiram três categorias, a saber: experiências/significados do viver/adoecer/ cuidar, relações equipe de saúde/cliente/família e relações familiares no processo viver/adoecer. O OLHAR DA ANTROPOLOGIA PARA AS PRÁTICAS DE SAÚDE científica, que, por sua vez, era caracterizada como o único sistema universal e eficaz.14 A abordagem aplicada foi utilizada para a implantação de projetos na área da saúde, após a Segunda Guerra Mundial, em países do Terceiro Mundo. Com base nessa utilização, Helman16 destaca como vantagem o fato de esses projetos levarem em conta as crenças da comunidade sobre saúde e doença, além de considerarem o contexto político e econômico em sua implantação. A abordagem ecológica trabalha com base em um modelo sistêmico, que considera as múltiplas causas das doenças e sua interação com a cultura, a sociedade e a natureza na determinação do estado de saúde de um grupo, porém não relativiza a biomedicina e considera a doença uma entidade e não um processo de experiência. A abordagem interpretativa surge com o propósito de apresentar propostas alternativas à biomedicina sobre o conceito de doença, incorporando a cultura como um sistema diverso, aberto, dinâmico e subjetivo, e, por isso, heterogêneo e singular. Considera que há um sistema de significados, constituído e constituinte na experiência, que emerge da interação dos atores que estão agindo concretamente juntos para entender os eventos e procurar soluções. A compreensão da doença é dada como um processo sociocultural e de experiência vivida. Isso quer dizer que a doença é uma sequência de eventos que vão ganhando significado à medida que a pessoa age para buscar alívio do seu sofrimento. Esse processo é caracterizado pelo reconhecimento dos sintomas do distúrbio como doença, pelo diagnóstico, pela escolha e avaliação do tratamento. Assim, entende-se que a experiência corporal é mediada pela cultura e as sensações do corpo não são separadas do significado da percepção de todo o processo.15 De acordo com Langdon,14 a história da antropologia da saúde é marcada por quatro abordagens: a tradicional, a aplicada, a ecológica e a interpretativa. A construção da doença como realidade humana é, portanto, um processo que requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica uma negociação de significados na busca pela cura. Assim, é na realidade social, mutante e dinâmica, que são construídas as doenças e seus processos de tratamento. As pessoas interpretam o mundo e agem sobre ele usando seu sistema simbólico e, ao agir, reconstroem a realidade.13-17 Essa abordagem possibilita diálogo e negociação entre culturas e sistemas de cuidados diversos, contextualizados entre profissional de saúde, usuários e famílias. Os primeiros estudos antropológicos com relação à abordagem tradicional sobre medicina primitiva foram realizados por Rivers, Clements e Ackernecht, a partir de 1920. O método adotado nesses estudos era o mesmo utilizado na medicina científica, ou seja, iniciavase pela etiologia, para se entender o diagnóstico e determinar o tratamento em povos considerados primitivos. Entretanto, a medicina primitiva era considerada inferior qualitativamente à medicina No entanto, o que parece que tem acontecido com frequência, no encontro entre profissional de saúde e usuário/cliente, é muito mais o enfrentamento entre culturas do que o estabelecimento de um diálogo entre dois atores sociais. Isso, normalmente, ocorre porque, de maneira geral, os profissionais não reconhecem que o usuário/cliente possui um conhecimento sobre o seu problema de saúde, além de, também, desenvolver práticas de cuidado que nem sempre são reconhecidas Em meados do século passado, alguns antropólogos, como Rivers, Clements, Malinowski e outros, começaram a examinar a medicina entre outras culturas. Com base nesses estudos, foram se firmando, nas ciências sociais, o campo da antropologia médica e o da antropologia da doença, atualmente conhecidas como antropologia em saúde.14 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 141 A antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana pela biomedicina. Caso se configure dessa forma, essa relação caracteriza-se como assimétrica, pois confere uma valoração diferente aos saberes e fazeres de cada um. Kleinman 16 sugere que na análise de qualquer sociedade complexa identificam-se três subsistemas de cuidado à saúde: o informal, o popular e o profissional. São subsistemas amplamente utilizados pelas pessoas de forma sobreposta e não excludente, interagindo mediante a passagem dos indivíduos por eles. Esses sistemas fornecem à pessoa os caminhos para efetuar a interpretação de sua condição de saúde-doença e buscar as ações possíveis que proporcionem o cuidado e/ou a cura. O subsistema familiar é a expressão da cultura popular, do senso comum, não profissional, não especialista e no qual as manifestações das doenças são primeiramente identificadas e enfrentadas. Aqui, a doença é vista como uma desordem na vida cotidiana para a qual é necessário encontrar um significado. Inclui o indivíduo, a família, a rede social e os membros da comunidade próxima. Os cuidados podem ser adotados pela pessoa que se sente doente e/ou pela família e incluem: remédios caseiros, repouso, suporte emocional, práticas religiosas, mudança na dieta alimentar, massagens, etc.16 O subsistema profissional é formado pelas profissões de cura organizadas e com aprendizado formal, além de serem legalmente reconhecidas, representadas pela biomedicina nas sociedades ocidentais. O subsistema popular é formado por especialistas de cura não profissionais, não reconhecidos legalmente, tais como curandeiros, benzedeiras e outros, os quais, no entanto, são amplamente aceitos pela sociedade e, geralmente, fortemente ligados ao subsistema familiar. Assim, de acordo com o Sistema de Cuidado de Kleinman,16 as alternativas terapêuticas são escolhidas tanto de acordo com a acessibilidade ao processo terapêutico como em relação ao entendimento dos indivíduos de determinada sociedade sobre as doenças, a cura e sobre os tratamentos que funcionam e que tem resolutividade. O autor sugere, ainda, a discussão de alguns conceitos como patologia, enfermidade e doença, os quais devem, necessariamente, ser considerados pelos profissionais de saúde para que consigam melhor compreender o processo de vivência no adoecimento. Há, portanto, uma diferença entre illness (doença), disease (patologia) e sickness (enfermidade). A doença (illness) representa a forma usada para perceber, expressar, avaliar e responder aos sinais e sintomas. Além disso, se refere, também, aos significados que as pessoas e famílias atribuem ao que vivenciam, incluindo comunicação e interação interpessoal; patologia (disease) é apenas o mau funcionamento dos processos biológicos e psicológicos sob parâmetros biomédicos; e enfermidade (sickness) é um mal-estar em sentido mais genérico, quando a doença está relacionada com condições sociais, políticas e econômicas. 16 142 Verifica-se, ainda, uma dicotomia entre doença/illness e patologia/disease. Enquanto a doença se refere à experiência psicossocial e seu significado, a patologia diz respeito a disfunções anatômicas ou fisiológicas. Assim, uma pessoa pode ter uma patologia e não se sentir doente, ou se sentir doente sem ter uma patologia, ou ainda continuar se sentindo doente após um diagnóstico médico de cura.16 Dessa forma, alguns autores pontuam que, para entendermos o significado da doença e dos cuidados prestados, é necessário acompanhar o itinerário terapêutico (percurso feito na busca de tratamento e cura da doença, que pode incluir outras soluções além daquelas oferecidas pela biomedicina) e os discursos dos atores envolvidos nos aspectos específicos de cada experiência.15-17 Segundo Alves e Souza18, as pesquisas sobre o itinerário terapêutico iniciaram-se com o estudo do comportamento do enfermo (illness behaviour), tendo, até hoje, como objetivo interpretar como as pessoas escolhem, aderem ou não e avaliam os resultados de um sistema de tratamento, cuidado e cura. Assim, considera-se reducionista a perspectiva que submete a interpretação da experiência/ação das pessoas com o sofrimento a um modelo meramente explicativo, uma vez que a lógica explicativa não contempla a complexidade das ações sociais e do contexto em que são construídas. A lógica interpretativa vai além e procura compreender o significado das ações humanas como expressão de uma intenção. O itinerário terapêutico se refere a um conjunto articulado de ações e estratégias que, por meio da interpretação, buscam modificar a situação de sofrimento e doença levando em consideração que as alternativas de tratamento disponíveis são construídas no âmbito das redes de relações sociais, continuamente negociadas, confirmadas ou questionadas. O estudo do itinerário terapêutico permite, portanto, que profissional e usuário-cliente se encontrem numa arena de negociação e produção de sentido para construir projetos terapêuticos pertinentes à singularidade de cada pessoa.18 REVISITANDO ALGUMAS PRODUÇÕES CIENTÍFICAS DA ANTROPOLOGIA APLICADA À INVESTIGAÇÃO EM SAÚDE A produção científica utilizando referenciais da antropologia da saúde tem crescido nas últimas décadas e assinala a importância do uso dessa ferramenta para compreender as práticas de saúde, ampliando os horizontes dos profissionais envolvidos. Alguns antropólogos, como Langdon, Helman e Kleinman, têm ampliado essa discussão.13-17 Relações equipe de saúde/cliente/famílias Alonso9 fez um estudo sobre os sistemas de cuidado familiar e profissional cujo objetivo foi interpretar as remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 relações construídas no encontro entre equipe de saúde e família. A sustentação teórica do estudo foi baseada em Canguilhem, Hanna Arendt, Giddens, Sennet, Foucault, Deleuze, Goffman e Da Matta, que utilizaram o método de observação participante, sugerido por Spradley, para a coleta e análise dos dados. Os autores observaram encontros assistenciais domiciliares entre os integrantes de uma equipe de saúde da família e um grupo de famílias integrado à Unidade Assistencial, realizaram entrevistas individuais com os profissionais da equipe de saúde e determinados membros das famílias e verificaram que para a equipe de saúde havia conflitos éticos nas relações assistenciais, tanto profissionais/institucionais e pessoais/sociais, como entre a resolutividade dos problemas de saúde e os laços de confiança e solidariedade. A voz das famílias atendidas no domicílio pela equipe de saúde da família revelou o desejo de obter da equipe maior valorização do seu saber e fazer no cuidado de si. A equipe apontou uma prática assistencial que ressignificasse os encontros entre profissional e família no âmbito domiciliar, constituindo-se em uma experiência existencial para ambos. Boehs21 analisou os movimentos de aproximação e distanciamento entre os sistemas de cuidado familiar e profissional, com base em Kleinman e na teoria de Enfermagem de Madeleine Leininger.27 O autor realizou uma pesquisa qualitativa etnográfica, com observação participante, em uma unidade de internação pediátrica, durante seis meses, e verificou que a equipe de enfermagem percebia as necessidades básicas do familiar acompanhante de forma ambivalente, ora reconhecendo-as e integrando o familiar ao cuidado, ora entendendo que deve assistir somente a criança. O tema cultural que permeou os domínios foi o movimento de aproximação e afastamento do hospital e da unidade de internação em relação à família. Na relação entre os sistemas hospitalar e familiar, evidenciou-se a assimetria de poder em favor da equipe de enfermagem e a dificuldade para a negociação entre os dois sistemas de cuidado, com possibilidade de acomodá-los na implementação do cuidado proposto pela teoria de Leininger. Monticelli23 realizou uma etnografia de alojamento conjunto para compreender as relações entre trabalhadoras de enfermagem e famílias que vivenciam o período pós-parto, bem como para identificar as referências que adotam ao interagir com as famílias durante a hospitalização. Para tal, utilizou a “etnoenfermagem” de Madeleine Leininger; os conceitos de illness, disease e sickness; a realidade clínica como o “lugar de onde se fala”; a narrativa na prática clínica; e o conhecimento autoritativo relacionado ao nascimento. O autor realizou observação participante e entrevista etnográfica como guia complementar no levantamento de dados em uma Unidade de Alojamento Conjunto de uma maternidade pública. Participaram do estudo 19 trabalhadoras (5 técnicas, 8 auxiliares, 5 atendentes e 1 enfermeira) e 42 membros das famílias, incluindo puérperas, homens-pais, avós, bisavós, além de duplas puérperas-companheiros, mães-filhas e genros-sogras. Os temas que surgiram foram: “Entre o leito e o berço: a vivência do processo de cuidar de dois”, como um modelo de cuidado específico e singular na enfermagem hospitalar; “Aqui a autoridade sou eu: o status do conhecimento biomédico”, referido pelo modelo biomédico, aprendido durante a formação e a prática profissional cotidiana; “Há coisas que são do conhecimento da gente: o status do conhecimento das famílias”, que apresenta a posição hierárquica do saber-fazer a partir da experiência das famílias; “Conhecimentos que se constroem em narrativas terapêuticas: possibilidades de vitalização do pós-parto”, identificados como saberes construídos interativamente entre trabalhadores de enfermagem e famílias, sem que fossem desconfigurados os conhecimentos advindos de seus sistemas culturais de origem. As relações entre as trabalhadoras de enfermagem, as famílias e as referências utilizadas para cuidar das puérperas e dos recém-nascidos apareceram complexas e exercidas por diferentes poderes e conhecimentos autoritativos que, às vezes, beneficiavam e às vezes enfraqueciam a ambos. Experiências/significados do viver/adoecer/cuidar Silva12, por meio de narrativas pessoais e culturais, abordou os diferentes modos pelos quais as pessoas constroem a experiência de viver com o diabetes mellitus. A pesquisa foi embasada no pensamento interpretativista de Clifford Geertz e Arthur Kleinman. Da interpretação das narrativas emergiram cinco diferentes modos, por meio dos quais as pessoas constroem a experiência de viver com o diabetes: viver sem prazeres; viver mantendo o diabetes sob controle; viver na esperança de uma vida melhor; viver em conflito e viver como se não tivesse diabetes. Os resultados mostraram que os significados da doença são elaborados pelas pessoas no percurso do seu processo de viver e são diversificados segundo suas experiências pessoais e culturais. Heck19 realizou um estudo etnográfico com o objetivo de compreender a construção sociocultural dos suicídios de colonos, predominantemente de descendência alemã e católica, e contribuir no trabalho dos profissionais de saúde nesse contexto. Com base na antropologia da saúde, privilegiou-se a ação dos colonos no cotidiano, como construção coletiva da realidade, contrapondo-se ao modelo biomédico, que compreende saúde/doença de forma linear e causal desvinculando a pessoa de sua história e cultura. Os colonos representaram os significados de vida e morte de maneira contraditória e complexa. O suicídio, que é uma das formas de morte, expressou a fragilidade do papel dos homens e se apresentou como símbolo de sofrimento, que era presente na realidade vivida por esse grupo, onde comportamentos sociais fundados em autoridade e princípios morais rígidos eram exigidos. A pesquisa etnográfica permitiu compreender a construção sociocultural dos suicídios como expressão remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 143 A antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana da identidade daquela comunidade e contribuiu com a prática profissional a partir da perspectiva interdisciplinar e compreensão da cosmologia como parte da experiência da doença. Santos24, em sua tese de doutorado defendida na Unicamp, investigou como se instituiu o papel de cuidador de idosos dementados no contexto domiciliar e quais os significados dessa experiência para esses cuidadores. Tal objetivo esteve fundamentado na tese de que a construção do papel de cuidador e a ressignificação do familiar como demente transcorrem ao longo do processo de convivência, segundo as experiências pessoais e as práticas socioculturais das famílias. A abordagem metodológica escolhida foi a pesquisa qualitativa, utilizando a estratégia da etnografia. O referencial teórico foi o da antropologia, sendo que foram usados como referências estudos de Geertz,25,26 Malinnowski; Douglas; Kleinman, 16,17 Langdon 14 e Leininger27. O campo escolhido para coleta dos dados foi o de famílias que proporcionavam cuidados a adultos e idosos que apresentavam uma síndrome demencial associada ou não a diferentes patologias. Nessa pesquisa, procurou-se maior aproximação com as experiências vivenciadas pelos sujeitos cuidadores, considerando que “tornar-se um cuidador familiar” é um processo dinâmico e envolve múltiplos aspectos, tais como: a história pregressa das relações familiares; a idade; o gênero, o grau de parentesco dos cuidadores em potencial; o significado dos vínculos afetivos; as condições de saúde física e emocional dos cuidadores; o sentimento de dever ou obrigação e reciprocidade; as relações de poder no contexto familiar; as experiências e características pessoais dos cuidadores e as práticas socioculturais das famílias. Relações familiares no processo de viver/adoecer Althoff,20 com base na teoria fundamentada nos dados e no interacionismo simbólico, estudou como o ambiente familiar é construído pelas famílias, elaborando sobre ele uma formulação teórica. Trabalhou com quatro grupos amostrais formados por dez famílias em diferentes etapas da trajetória de vida familiar. Realizou entrevistas com as famílias em seus domicílios e procedeu a análise comparativa dos dados. Formulou um modelo teórico focado no fenômeno “Convivendo em Família”, que revelou a inter-relação dos elementos que constituem este processo: querendo viver em família; criando o espaço de moradia da família; vivendo os tempos da família; fazendo parte da teia social; estabelecendo maneiras de se relacionar em família; construindo valores; governando a vida cotidiana; cultivando as ligações familiares e tomando consciência do viver em família. Na pesquisa, mostrouse que a convivência familiar é construída com base nas ações e interações entre os membros da família que compartilham símbolos e significados. Schwartz22 fundamentou-se na abordagem ecológica de Bronfenbrenner para compreender o viver, o adoecer 144 e o cuidar das famílias de uma comunidade rural. Realizou um estudo qualitativo com observação participante em uma comunidade rural do Rio Grande do Sul durante nove meses. A coleta de dados foi realizada por meio de estratégias como visita domiciliar, consulta de enfermagem na unidade de saúde, consulta a documentos e participação em campanhas de vacinação. A comunidade rural se encontrava isolada cultural e geograficamente, com riscos e potencialidades, na qual o trabalho era a atividade que dava identidade ao colono/família. O adoecimento nas famílias rurais estava relacionado à falta de comunicação/informação entre os ambientes e o trabalho. O estudo possibilitou a compreensão de como a articulação dos diferentes ambientes promove ou fragiliza a saúde dos colonos, podendo surgir o (des)cuidado. O trabalho confere identidade ao colono, mas necessita de políticas sociais e agrárias adequadas para apoiar o desenvolvimento de indivíduos, famílias e comunidade. Há, ainda, outros estudos publicados em livros que também explicitam a importância do uso da visão antropológica como ferramenta para compreender as práticas de saúde. Silveira28 estudou a questão dos “nervos” de mulheres de uma comunidade de um município da região Sul do Brasil, de colonização e tradição açorianas. A autora constatou que o que as mulheres consideravam como problema de “nervos” era, na verdade, problemas que existiam nas suas relações sociais. Esses problemas estavam normalmente ligados aos relacionamentos conjugais, mas também a outras questões, como a pobreza material, os conflitos de gerações e de gênero e outras dificuldades da vida cotidiana. Assim, tornou-se claro que, para tratar os “nervos” dessas mulheres, era necessário colocá-las em um contexto social e cultural único, levando em consideração todos os fatores que lhes influenciavam a vida e, por consequência, os “nervos”. Freitas29 considera que a cárie dentária é uma doença que deve ser abordada de acordo com um processo biológico e social. Ele demonstra que os trabalhos científicos que têm utilizado apenas micro-organismos e/ou hábitos dietéticos, na tentativa de estabelecer padrões de risco para adoecer, têm encontrado baixos coeficientes de correlação. A valorização excessiva dos fatores relacionados aos micro-organismos e à dieta e a pouca importância dada às dimensões sociais e culturais dos indivíduos sugerem um paradoxo na prática da odontologia. Assim, tornou-se necessário tentar entender e explicar a doença de outra forma, ou seja, não apenas como resultante do consumo de açúcar e da ação de micro-organismos, mas, também, como resultante de um contexto sociocultural no qual aquele sujeito (hospedeiro) está inserido. Observa-se, assim, que os profissionais de saúde têm estudado e utilizado de forma crescente, em algumas pesquisas, a antropologia da saúde. A abordagem interpretativa proposta por alguns autores que trabalham com a antropologia da saúde tem se mostrado remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 adequada para ampliar a compreensão do complexo processo de adoecimento e sofrimento.11,15-17,24,26,27 Além das pesquisas citadas acima, também observa-se o crescente estudo e a utilização do itinerário terapêutico em nosso meio para tentar compreender as trajetórias percorridas pelos sujeitos em busca de possíveis tratamentos ou cura para os sofrimentos. Conhecer o significado dos eventos relacionados ao processo de viver e adoecer das pessoas pode possibilitar a reconstrução de práticas profissionais mais efetivas e gratificantes, tanto para o trabalhador da saúde quanto para a população. A leitura desses estudos orientou nossa reflexão para a importância de incorporarmos a abordagem antropológica no cotidiano das relações entre profissional/pessoa/família. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tradicionalmente, o modelo biomédico trata as pessoas com base em suas doenças e na explicação biológica para suas causas e mecanismos de tratamento. Acreditamos, no entanto, que o processo saúde-doença deve ser entendido sob o olhar psicobiológico e sociocultural, numa construção permanente e contextualizada de negociações que vão ao encontro das multidimensionalidades e subjetividades do ser humano. A análise dos estudos abordados neste artigo, os quais utilizaram o referencial teórico da Antropologia da Saúde, permitiu compreender que os cuidados com a saúde constituem um sistema inserido em um contexto cultural por meio de seus significados simbólicos e se apoiam em modelos de interações interpessoais e em instituições sociais. Assim, os modelos e as crenças explicativos da doença definem a escolha, e a avaliação do tratamento, o status, as relações de poder, a interação e as instituições fazem parte dos sistemas de saúde, assim como os pacientes, os curadores, a doença e o processo de cura. Antropólogos como Kleinman, Helman e Langdon contribuíram para ampliar a visão sobre esses aspectos. Todavia, as relações entre as experiências subjetivas das pessoas nem sempre guardam coerência com os modelos explicativos dos sistemas terapêuticos. Os indivíduos, quando adoecem, possuem uma percepção individual e particular sobre a doença e respondem a essa situação com base em suas experiências subjetivas e nas da família. Ambos atribuem a ela significados particulares que são influenciados pela cultura, pela personalidade e pelo contexto social e econômico onde vivem e convivem.15 por exemplo, houve um aumento de 30% para 55% das consultas pagas no sistema de saúde na área de medicina alternativa, nos últimos dez anos, publicado na revista médica JAMA. Segundo Minayo, 31 a descrença de muitas famílias e grupos nas relações com o sistema médico tradicional é fruto de “uma experiência prática em que se sentem anônimas, impotentes e discriminadas”. Ao realizar a aproximação entre as concepções biomédica e cultural, a antropologia deixa claro que os homens que atuam nas dimensões biopsicossocial e econômico-política do processo saúde/doença o fazem por meio de processos ideológicos baseados na experiência pessoal e grupal, em crenças, percepções, atitudes e práticas, dadas social e historicamente. Dessa forma, reconhece-se que o que cada indivíduo sente é percebido e valorizado de acordo com a sociedade da qual faz parte. A antropologia amplia o olhar, permitindo mudanças na relação profissional-usuário/ cliente, e esse novo olhar pode resultar em cuidados e práticas como uma escuta atenta, com interesse pelo outro (usuário) e a disponibilidade para, juntos, buscarem formas singulares para enfrentar a situação vivenciada. Portanto, as pessoas com problemas de saúde escolhem não apenas entre tipos diferentes de curandeiros (informal, profissional ou popular), mas também entre os diagnósticos e as recomendações que fazem sentido para elas, sendo que o desfecho pode ser o da “não adesão” ao tratamento ou a transferência a outro segmento da rede terapêutica.16 Mas a interpretação das ações e escolhas é de natureza conjuntural, histórica, que expressa e produz os sentidos que podem ser reformulados com base nas ações dos indivíduos nos diferentes contextos da sua vida. O importante é que se crie um espaço para novas práticas e cuidados, tanto para profissionais da saúde quanto para usuários/clientes, na construção de projetos terapêuticos mais abrangentes que possam superar a dicotomia do modelo biomédico hegemônico. As práticas/cuidados redimensionariam seus limites incluindo o usuário/cliente como sujeito ativo no seu cuidado e como protagonista no seu processo de adoecimento. Esse espaço nada mais é do que o estabelecimento do diálogo entre os atores sociais envolvidos no processo terapêutico, diálogo que, uma vez aberto, faz com que as práticas de saúde não fiquem caracterizadas como um espaço de exercício do poder de um sujeito sobre outro, mas, sim, que se legitimem como verdadeiros processos promotores de saúde. Há que se considerar que, além do sistema oficial de assistência à saúde, normalmente existem, em muitos países ocidentais, sistemas como a homeopatia, o herbalismo e a cura espiritual (pluralismo médico) que podem ser chamados de subculturas de assistência à saúde. Essas subculturas têm crescido de importância, principalmente em decorrência da descrença nos sistemas de saúde tradicionais.15,30 Nos Estados Unidos, remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 139-146, jan./mar., 2009 145 A antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana REFERÊNCIAS 1. Schraiber LB. 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Também se discute sobre esse princípio na rede de serviços substitutivos em saúde mental como dispositivo indicador de uma nova maneira de pensar e de atenção em saúde mental. Para tanto, faz-se necessário que os profissionais dos serviços de saúde desenvolvam um atendimento integral aos seus usuários, compartilhando experiências, com a participação da família e da comunidade. Palavras-chave: Saúde Mental; Assistência Integral à Saúde; Serviços de Saúde Mental. ABSTRACT In mental health care, integrality aims to enable an initial contact of patients with mental suffering. It emphasizes the assistential service and the construction of full attention networks in mental health. This article aims to reflect about the concept of integrality and its application in mental health care. It also discusses the importance of integrality in the network of substitute mental health services as a means of promoting new ways of thinking about mental health. With this goal, it is necessary that healthcare professionals provide an integral assistance to the patients by sharing their experiences and stimulating the participation of the family and the community. Key words: Mental Health; Comprehensive Health Care ; Mental Health Services. RESUMEN La integralidad, dentro del campo de la salud mental, tiene por finalidad permitir el contacto y la acogida al sujeto en sufrimiento psíquico, sobre todo en el aspecto asistencial, para construir redes de atención integral en salud mental. Este estudio tiene por objetivo reflexionar sobre el principio de la integralidad y su inserción en el ámbito de la salud mental. Se debate también este principio en la red de servicios sustitutivos en salud mental como dispositivos indicadores de una nueva forma de pensar y de asistencia en salud mental. Es necesario que los profesionales de los servicios de salud dispensen atención integral a sus usuarios, compartiendo experiencias con participación de la familia y de la comunidad. Palabras clave: Salud Mental; Atención Integral de Salud; Servicios de Salud Mental. 1 2 3 4 5 Enfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. Enfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. Enfermeiro. Doutor em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Assistência e Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152, 139-146, jan./mar., 2009 147 A Antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana INTRODUÇÃO A integralidade, como um dos princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS), vem ganhando destaque no campo da saúde mental, especialmente a partir do Movimento da Reforma Psiquiátrica, que se desdobra na sua vertente assistencial em uma proposta de construção de redes de atenção integral na saúde mental. A integralidade assume posição importante nas discussões presentes desde a década de 1970, com as manifestações pela redemocratização do País e pelo Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, ganhando destaque como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), sob a denominação de “atendimento integral”. Tal diretriz tem sua relevância, já que vai contra a formação médica de base flexneriana, reducionista, que privilegia a especialização.1 Nesse sentido, esse conceito passa a ser um dos princípios que direcionam e ampliam as ações de saúde na busca de uma transformação no modelo de atenção, e sua incorporação possibilita o questionamento do paradigma biomédico, bem como uma crítica das práticas de saúde. Vários autores têm discutido e desenvolvido esse conceito, evidenciando a importância dele no desenvolvimento de saberes e práticas articulados com a proposta do SUS.1-4 Não se propõe, aqui, discutir a integralidade como um conceito único, mas, sim, como articulador de diferentes olhares que permitem a (re)invenção da saúde numa ótica mais flexível, criativa, que agrega diferentes saberes e modos de intervenção. Assim, a integralidade é entendida em várias dimensões, que não são estanques ou lineares, mas se entrelaçam e se complementam tendo em vista a complexidade do objeto da saúde. Com base nesse fato, uma das dimensões do conceito de integralidade remete à necessidade da identificação do sujeito em sua totalidade, preconizando que o cuidado de pessoas, grupos e coletividade consiste em compreender o indivíduo nos contextos social, político e histórico, relacionando-o à família, ao meio ambiente e à sociedade da qual ele faz parte.5 A ideia de que o indivíduo é um “ser humano completo” e que aspectos do seu contexto devem ser considerados é uma reflexão que estabelece uma crítica à visão reducionista e fragmentária dos sujeitos. Essa visão tem suas origens na incapacidade de estabelecer uma relação com o outro, a não ser transformando-o em um objeto.6 Esse aspecto da atenção integral está relacionado à dimensão das práticas, cabendo quase que exclusivamente ao profissional realizá-la. Refere-se a atributos ligados ao que se pode considerar uma boa prática. Mas, mesmo que a postura dos profissionais seja algo fundamental para a integralidade, em muitas situações ela só se realizará com a incorporação ou 148 redefinição mais radical da equipe de saúde e seus processos de trabalho.1 Desse modo, a atenção integral em saúde pressupõe que, além das ações curativas, tenha-se um enfoque especial nas ações de promoção, de prevenção e de reabilitação, bem como que a organização dos serviços e das práticas de saúde deve relacionar as ações em saúde coletiva com a atenção individual, sendo necessário, para tanto, a horizontalização dos programas.7 A noção de integralidade não admite conceber a ideia de que um usuário com várias enfermidades necessite encaminhar-se a pontos distintos do sistema de saúde para a resolução de seus problemas. As práticas das equipes de saúde devem ser pensadas vislumbrando o horizonte da população atendida, e não este ou aquele programa do Ministério da Saúde. Assim, os serviços de saúde não podem estar organizados exclusivamente para atender às doenças de uma comunidade, mas é indispensável que sejam capazes de apreender amplamente as necessidades da sua população, mesmo aquelas não contempladas ou que venham a surgir ao longo do processo de trabalho.1 Outro aspecto é que o conceito de integralidade também se aplica às respostas governamentais aos problemas de saúde. Também nas políticas é fundamental a busca de uma visão mais abrangente daqueles que serão alvo das políticas de saúde e a recusa em aceitar um recorte do problema que o reduza a algumas das suas dimensões, o que configura a integralidade.1 Com base nessas delimitações, busca-se refletir sobre o princípio da integralidade e sua inserção na área da saúde mental. Para tanto, pensamos que o conceito da integralidade pode ser discutido tomando por base três sentidos propostos para o conceito integralidade como norteador de práticas, de organizações de serviços e de políticas de saúde.1 A INTEGRALIDADE NA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL Para discutirmos o princípio da integralidade na atenção em saúde mental, faz-se necessária a contextualização da transformação do modelo assistencial nesse campo que, gradativamente, passa de uma lógica manicomial, hospitalocêntrica, para o modo psicossocial, com a valorização do sujeito em sofrimento psíquico. Tal transformação passou a ocorrer com o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, em um contexto de redemocratização do País, e do projeto da Reforma Sanitária. Esse movimento, de contestação da psiquiatria vigente, foi influenciado, principalmente, pela psiquiatria democrática italiana, por volta do final da década de 1970, que buscou operar uma mudança da psiquiatria tradicional para o modo psicossocial. Costa-Rosa 8 considera a subjetividade do doente mental, valorizando-o como cidadão e singularizandolhe a existência. A luta é a favor da desospitalização e remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152, jan./mar., 2009 da desmedicalização, recolocando o usuário como sujeito de sua vida. A interdisciplinaridade aparece objetivando a integralidade da atenção, considerando a liberdade do usuário, sua circulação nos serviços e na comunidade e a territorialização do atendimento como modos de intervenção. Atribui-se, então, no modo psicossocial, importância ao sujeito, considerando-o como participante principal do tratamento. Esse sujeito é visto como um ser inserido em um grupo familiar e social, que deve ser considerado como agente das mudanças buscadas e incluídas no tratamento.8 Na saúde mental, a integralidade da atenção objetiva permitir o contato e o acolhimento do sofrimento psíquico, apresentando respostas diferentes daquelas orientadas pelo modelo biomédico, que tem a doença como foco de intervenção. O desafio que se coloca é romper como a visão linear para ações de saúde e abarcar uma gama plural de outros profissionais para uma prática clínica que exige individualização do sujeito para que sua subjetividade seja escutada.9 A noção de integralidade pode ser considerada, também, como um eixo norteador de práticas e saberes que não estão restritos à organização de serviços ou à criação de modelos ideais, sendo essa noção compreendida como acesso e equidade. Para tanto, não basta a criação de novas unidades assistenciais, mas, sim, a ruptura com os valores segregadores de uma cultura psiquiátrica centrada no manicômio.10 Nesse sentido, concordamos que não é suficiente apenas a criação de novos serviços de saúde mental para a busca do princípio da integralidade, mas é necessário articular propostas que considerem as dimensões políticas, sociais, técnicas e científicas para a construção de modos de atenção orientadas pelo paradigma psicossocial, procurando garantir uma ruptura com o atendimento prestado no modelo biomédico. Essa transformação na saúde mental pressupõe a inclusão de outros paradigmas na atenção aos sujeitos em sofrimento psíquico, substituindo a palavra “tratar”, que leva a uma nomeação diagnóstica, por “cuidar”, termo que inclui várias dimensões a serem superadas no cuidado ao sujeito, uma vez que a pessoa em sofrimento psíquico não pode ser reduzida a um conjunto de sintomas e causas.4 A noção de cuidado não é vista como nível de atenção do sistema de saúde ou como um procedimento técnico simplificado, mas como uma ação integral, que é tratar, respeitar, acolher, atender o ser humano em seu sofrimento.11 A atitude de cuidar se apresenta quando alguém tem importância para nós, recolocando para a saúde a importância da subjetividade, pois o cuidado constitui o meio e o fim das ações desenvolvidas pelos profissionais, servindo para interrogar os modos como são produzidas as intervenções, bem como a organização delas. O cuidado ganha materialidade na atitude dos profissionais, nas tecnologias priorizadas, caracterizando-se como uma unidade nucleadora de saberes e práticas sobre a integralidade, pois revela-se como um fio condutor para a construção de saúde.12 Assim, o cuidado pressupoõe capacidade de escuta e disponibilidade para acolher e interagir com os sujeitos que demandam atenção em saúde. O cuidado também deve ser orientado para a busca da reabilitação psicossocial dos sujeitos e da reinserção social deles na comunidade. Na saúde mental, podemos entender a integralidade como uma ação compromissada para romper barreiras, desmontando o ideal de hospitalização, medicalização, isolamento e perda da autonomia como a melhor forma de intervenção. O que se procura é resgatar um conceito mais positivo sobre a loucura, exigindo que o cuidado ocorra em diferentes espaços e uma prática assistencial que considere a subjetividade e a singularidade do sujeito em sofrimento psíquico, na qual a inclusão, a cidadania, a autonomia e a solidariedade aparecem como conceitos norteadores para ações integrais.13 Ainda contrapondo-se à lógica manicomial, surgem questões relativas à natureza ideológica e técnica, no que diz respeito à condenação da segregação e ao isolamento como método terapêutico. Nesse sentido, a negação do papel do isolamento em hospitais psiquiátricos e a compreensão de que o que deve ser cuidado é o indivíduo e seus problemas, e não somente o seu diagnóstico, é que determinam um olhar integral no atendimento em saúde mental.4 As Portarias SNAS n° 189, de 19 de novembro de 1991, e a SNASn° 224, de 29 de janeiro de 1992, que regulamentaram a Política Nacional de Saúde Mental no País, são contribuições importantes para a substituição da lógica manicomial para a psicossocial, incentivando a integralidade da atenção em saúde mental.14 Além do mais, a Lei Federal nº 10.216, de abril de 2001, redireciona o modelo assistencial em saúde mental e dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Destaque-se que nessa lei está previsto o atendimento integral ao sujeito em sofrimento psíquico com serviços médicos, psicológicos, ocupacionais, de assistência social e de lazer.14 Nossa posição vai ao encontro de que esse novo modo de cuidar em saúde mental preconiza a necessidade de uma Rede de Atenção Integral em Saúde Mental que ofereça um cuidado não excludente, de escuta, e possibilite a inserção social dos sujeitos em sua comunidade, em articulação com sua família. Assim, a Rede de Atenção Integral em Saúde Mental deliberada na Segunda Conferência Nacional de Saúde Mental é definida como “um conjunto de dispositivos sanitários e socioculturais que partam de uma visão integrada de várias dimensões da vida do indivíduo, em remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152, jan./mar., 2009 149 A Antropologia como ferramenta para compreender as práticas de saúde nos diferentes contextos da vida humana diferentes e múltiplos âmbitos de intervenção: educativo, assistencial e reabilitação”.15 Entendemos que essa rede deve ser formada por diversos dispositivos, substitutivos à lógica manicomial, como CAPs, ambulatório especializado, internação em hospital geral, residenciais terapêuticos, atenção nas unidades básicas de saúde. Além do mais, essa rede de atenção deve buscar articulação com serviços de outras áreas, como o serviço social, a cultura, a justiça, a habitação, dentre outros. Corroborando, Alves 4 considera a intersetorialidade e a diversificação como componentes indissociáveis da integralidade, já que para lidar com problemas complexos há que diversificar ofertas de maneira integrada e buscar articulação em outros setores. Identificamos a riqueza de articulações em nível setorial para a área da saúde mental, já que nesse campo não basta somente o oferecimento de dispositivos ligados à saúde, mas, também, de setores de cultura, lazer, de moradia, que possibilitem maior circulação dos sujeitos em sofrimento psíquico no espaço da cidade, promovendo a reinserção social e o resgate da autonomia. Para a construção da rede integral de atenção em saúde mental, alguns conceitos e referências devem ser debatidos e incorporados, como a universalidade e a integralidade da atenção, a equidade, o sistema de referência e contrarreferência, a participação popular, as mediações sociais, a inserção social nas relações de trocas sociais, a horizontalidade do sistema, a habilitação social e a perspectiva da convivência dos diferentes.16 A noção de integralidade da atenção ocorre pelo reconhecimento no cotidiano dos serviços de que cada pessoa é um todo indivisível e social, que as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde não podem ser fragmentadas e que as unidades prestadoras de serviço, em seus diversos graus de complexidade, configuram-se como um sistema indissociável, capaz de oferecer atenção em saúde mental. Para promover a integralidade nas ações de saúde mental aos usuários em sofrimento psíquico, é necessário o envolvimento de todos os níveis de atenção em saúde, desde os serviços da rede básica de saúde, como os serviços especializados, como os CAPs, até a internação em hospital geral. Destaque-se que nessa Rede de Atenção em Saúde Mental, os CAPs deveriam ter a função de articulação, possibilitando melhor fluxo e atendimento. Os CAPs compreendem unidades de atendimento em saúde mental que oferecem aos usuários um programa de cuidados intensivos elaborado por uma equipe multidisciplinar. 17 São dispositivos estratégicos, concebidos, inicialmente, como alternativa terapêutica em substituição ao modelo centrado no hospital psiquiátrico. Por serem comunitários, inserem-se em determinada cultura, em território definido, com seus 150 problemas e suas potencialidades, e constituem locais em que as crises devem ser enfrentadas, resultado que são, geralmente, de fatores do indivíduo, de sua família, eventualmente de seu trabalho e, seguramente, de seu meio social.4 Nessa posição de articulação e construção da Rede de Saúde Mental, os CAPs devem cumprir sua função na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, com um trabalho em conjunto com as equipes de saúde da família e agentes comunitários, bem como trabalhar na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes sociossanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas, etc.18 Desse modo, a integralidade da atenção na Rede Integral de Saúde Mental deve considerar o modo singular das pessoas com transtornos mentais, ou seja, sua relação consigo e com o mundo, remetendo-nos a uma noção de clínica ampliada que organiza o cuidado com a ideia de encontro do serviço com a comunidade e com o sofrimento psíquico apresentado pelo usuário. O dia a dia dos serviços e seu contexto são elementos fundamentais, pois é nesse lugar que a vida acontece e o cuidado é oferecido. Além disso, é fundamental que o trabalho dos serviços da Rede de Saúde Mental seja desenvolvido por uma equipe interdisciplinar de profissionais que busque a interação interdisciplinar, com troca e produção de saberes, visando à integralidade no atendimento dos usuários. Entretanto, identificou-se que tal atendimento interdisciplinar ainda é um desafio que necessita ser enfrentando pelas equipes de saúde mental, já que muitas vezes o atendimento tem sido prestado por profissionais atuando em uma mesma disciplina, em conformidade com o modelo biomédico, sem haver complementaridade entre os saberes. Especificamente sobre o cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica, as equipes de saúde da família devem ser preparadas na concepção geral da reforma psiquiátrica e da reforma sanitária, considerando ambas como processos sociais complexos cujo objetivo é a melhoria da assistência médica quanto à promoção da saúde e à construção de consciência sanitária nas comunidades.19 Saliente-se que, para a efetivação de uma Rede de Saúde Mental que promova a autonomia, o respeito, a liberdade, a reinserção social dos seus usuários e a almejada consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é necessário muito mais que portarias e legislações, embora se reconheça a extrema importância que elas representam para a saúde mental. Para que tais parâmetros se efetivem, é fundamental a criação de serviços de base territorial que fortaleçam a rede de atenção à saúde mental, além do envolvimento dos atores que fazem parte dela, ou seja, profissionais, usuários, familiares e comunidade. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 147-152, jan./mar., 2009 CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, a compreensão da integralidade da atenção está permeada pelo entendimento de que o sujeito é um ser de amplas e diferentes necessidades que não podem ser abordadas de forma isolada e, por vezes, descontínua. Ao contrário, para que se possa planejar e garantir a promoção e o exercício da saúde como qualidade de vida, é fundamental gerar o máximo de interfaces possíveis, sejam entre as diferentes pastas e serviços do campo da saúde, sejam entre outros campos.20 Entretanto, a integralidade talvez só se realize com o estabelecimento de uma relação sujeito-sujeito, quer nas práticas nos serviços de saúde, quer nos debates sobre a organização dos serviços, quer nas discussões sobre as políticas.1 Há necessidade de investimento na rede de serviços de saúde mental tanto em relação a criação de serviços que se contraponham à lógica manicomial como na consolidação desses, para que atuem possibilitando diversas ofertas para uma diversidade de demandas dos sujeitos em sofrimento psíquico. Dessa forma, deve-se ter atenção para que os profissionais dos serviços de saúde prestem um atendimento integral, compartilhando experiências, com o envolvimento de familiares e da comunidade. É preciso disponibilizar um cuidado com o ser e não somente com a doença, levando em consideração as experiências dos sujeitos, especialmente em serviços substitutivos ao modelo manicomial. Torna-se necessário assumir a integralidade como um eixo norteador de novas formas de agir social em saúde, de uma nova forma de gestão de cuidados nas instituições de saúde, permitindo o surgimento de experiências inovadoras na incorporação e no desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais. É preciso exercitar a prática de compartilhar saberes e olhar os problemas em conjunto para, assim, cuidar de forma integral. REFERÊNCIAS 1. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 6ª ed. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/CEPESC/ABRASCO; 2006. 2. Pinheiro R. 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Possui periodicidade trimestral e tem por finalidade contribuir para a produção, divulgação e utiliz ação do conhecimento produzido na enfermagem e áreas correlatas, abrangendo a educação, a pesquisa e a atenção à saúde. 2 SOBRE AS SEÇÕES DA REME Cada fascículo, editado trimestralmente, terá a seguinte estrutura: Editorial: refere-se a temas de relevância do contexto científico, acadêmico e político-social; Pesquisas: incluem artigos com abordagem metodológicas qualitativas e quantitativas, originais e inéditas que contribuem para a construção do conhecimento em enfermagem e áreas correlatas; Revisão Teórica: avaliações críticas e ordenadas da literatura em relação a temas de importância para a enfermagem e áreas correlatas; Relatos de Experiência: descrições de intervenções e experiências abrangendo a atenção em saúde e educação; Artigos Reflexivos: textos de especial relevância que trazem contribuições ao pensamento em Enfermagem e Saúde; Normas de publicação: são as instruções aos autores referentes a apresentação física dos manuscritos, nos idiomas: português, inglês e espanhol. 3 SOBRE O JULGAMENTO DOS MANUSCRITOS Os manuscritos recebidos serão analisados pelo Conselho Editorial da REME, que se reserva o direito de aceitar ou recusar os trabalhos submetidos. O processo de revisão –peer review – consta das etapas a seguir, nas quais os manuscritos serão: a) protocolados, registrados em base de dados para controle; b) avaliados quanto à apresentação física - revisão inicial quanto aos padrões mínimos de exigências da REME - (folha de rosto com identificação dos autores e títulos do trabalho) e a documentação; podendo ser devolvido ao autor para adequação às normas, antes do encaminhamento aos consultores; c) encaminhados ao Editor Geral que indica o Editor Associado que ficará responsável por indicar dois consultores em conformidade com as áreas de atuação e qualificação; d) remetidos a dois consultores especialistas na área pertinente, mantidos em anonimato, selecionados de um cadastro de revisores, sem identificação dos autores e o local de origem do manuscrito. Os revisores serão sempre de instituições diferentes da instituição de origem do autor do manuscrito. e) Após recebimento dos pareceres, o Editor Associado avalia e emite parecer final e este, é encaminhado ao Editor Geral que decide pela aceitação do artigo sem modificações, pela recusa ou pela devolução aos autores com as sugestões de modificações. Cada versão é sempre analisada pelo Editor Geral, responsável pela aprovação final. 4 SOBRE A APRESENTAÇÃO DOS MANUSCRITOS 4.1 Apresentação gráfica Os manuscritos devem ser encaminhados pelo correio, gravados em disquete ou CD-ROM, utilizando programa “Word for Windows”, versão 6.0 ou superior, fonte “Times New Roman”, estilo normal, tamanho 12, digitados em espaço 1,5 entre linhas, em duas vias impressas em papel padrão ISO A4 (212 x 297mm), com margens de 2,5mm, padrão A4, limitando-se a 20 laudas, incluindo as páginas preliminares, texto, agradecimentos, referências e ilustrações. 4.2 As partes dos manuscritos Todo manuscrito deverá apresentar a seguinte estrutura e ordem, quando pertinente: a) páginas preliminares: Página 1: Título e subtítulo- nos idiomas: português, inglês, espanhol; Autor(es) – nome completo acompanhado da profissão, titulação, cargo, função e instituição, endereço postal e eletrônico do autor responsável para correspondência; Indicação da Categoria do artigo: Pesquisa, Revisão Teórica , Relato de Experiência, Artigo Reflexivo/Ensaio. Página 2: Título do artigo em português; Resumo e Palavras-chave; Abstract e Key words; Resumen e Palabras clave. As Palavraschave (de três a seis), devem ser indicadas de acordo com o DECS – Descritores em Ciências da Saúde/BIREME), disponível em: <http://decs.bvs.br/>. O resumo deve conter até 250 palavras, com espaçamento simples em fonte com tamanho 10. rem rem E - ERev. - Rev. Min. Min. Enferm.;13(1): Enferm.;13(1): 147-152, 1-158, jan./mar., 2009 153 Página 3: a partir desta página apresenta-se o conteúdo do manuscrito precedido pelo título em português, que inclui: b) Texto: - introdução; - desenvolvimento (material e método ou descrição da metodologia, resultados, discussão e/ou comentários); - conclusões ou considerações finais; c) Agradecimentos (opcional); d) Referências como especificado no item 4.3; e) Anexos, se necessário. 4.3 Sobre a normalização dos manuscritos: Para efeito de normalização, serão adotados os Requerimentos do Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (Norma de Vancouver). Esta norma poderá ser encontrada na íntegra nos endereços: em português: <http://www.bu.ufsc.br/bsccsm/vancouver.html> em espanhol: <http://www.enfermeriaencardiologia.com/formacion/vancouver.htm> em inglês: <http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html> As referências são numeradas consecutivamente, na ordem em que são mencionadas pela primeira vez no texto. As citações no texto devem ser indicadas mediante número arábico, sobrescrito, correspondendo às referências no final do artigo. Os títulos das revistas são abreviados de acordo com o “Journals Database”- Medline/Pubmed, disponível em: <http:// www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/ query. fcgi? db=Journals> ou com o CCN – Catálogo Coletivo Nacional, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecologia (IBICT), disponível em: <http://www.ibict.br.> As ilustrações devem ser apresentadas em preto & branco imediatamente após a referência a elas, em conformidade com a Norma de apresentação tabular do IBGE, 3ª ed. de 1993 . Em cada categoria deverão ser numeradas seqüencialmente durante o texto. Exemplo: (TAB. 1, FIG. 1, GRÁF. 1). Cada ilustração deve ter um título e a fonte de onde foi extraída. Cabeçalhos e legendas devem ser suficientemente claros e compreensíveis sem necessidade de consulta ao texto. As referências às ilustrações no texto deverão ser mencionadas entre parênteses, indicando a categoria e o número da ilustração. Ex. (TAB. 1). As abreviaturas, grandezas, símbolos e unidades devem observar as Normas Internacionais de Publicação. Ao empregar pela primeira vez uma abreviatura, esta deve ser precedida do termo ou expressão completos, salvo quando se tratar de uma unidade de medida comum. As medidas de comprimento, altura, peso e volume devem ser expressas em unidades do sistema métrico decimal (metro, quilo, litro) ou seus múltiplos e submúltiplos. As temperaturas, em graus Celsius. Os valores de pressão arterial, em milímetros de mercúrio. Abreviaturas e símbolos devem obedecer padrões internacionais. Agradecimentos devem constar de parágrafo à parte, colocado antes das referências. 5 SOBRE O ENCAMINHAMENTO DOS MANUSCRITOS Os manuscritos devem vir acompanhados de ofício de encaminhamento contendo nome do(s) autor(es), endereço para correspondência, e-mail, telefone, declaração de colaboração na realização do trabalho e declaração de responsabilidade e transferência de direitos autorais para a REME (modelo disponível no site). Para os manuscritos resultados de pesquisas envolvendo seres humanos, deverá ser encaminhada uma cópia de aprovação emitida pelo Comitê de Ética reconhecido pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), segundo as normas da Resolução do Conselho Nacional de Saúde – CNS/196/96. Para os manuscritos resultados de pesquisas envolvendo apoios financeiros, estes deverão estar claramente identificados no manuscrito e o(s) autor(es) deve(m) declarar, juntamente com a autorização de transferência de autoria, não possuir(em) interesse(s) pessoal, comercial, acadêmico, político ou financeiro no manuscrito. Os manuscritos devem ser enviados para: At/REME- Revista Mineira de Enfermagem Escola de Enfermagem da UFMG – Campus Saúde Av. Alfredo Balena, 190, Sala 104 , Bloco Norte CEP: 30130-100 - Belo Horizonte/MG – Brasil Contato: [email protected] 6 SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO EDITORIAL Os casos omissos serão resolvidos pelo Conselho Editorial. A REME não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nos artigos. Versão de setembro de 2007 154 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 Publication Norms REME – REVISTA MINEIRA DE ENFERMAGEM INSTRUCTIONS TO AUTHORS 1. THE MISSION OF THE MINAS GERAIS NURSING MAGAZINE – REME REME is a journal of the School of Nursing of the Federal University of Minas Gerais in partnership with schools and undergraduate courses in Nursing in the State of Minas Gerais, Brazil: Wenceslau Braz School of Nursing, Higher Education Foundation of Vale do Sapucaí, Higher Education Foundation of Passos, University Center of East Minas Gerais, Nursing College of the Federal University of Juiz de Fora. It is a quarterly publication intended to contribute to the production, dissemination and use of knowledge produced in nursing and similar fields covering education, research and healthcare. 2. REME SECTIONS Each quarterly edition is structured as follows: Editorial: raises relevant issues from the scientific, academic, political and social setting. Research: articles with qualitative and quantitative approaches, original and unpublished, contributing to build knowledge in nursing and associated fields. Review of theory: critical reviews of literature on important issues of nursing and associated fields. Reports of experience: descriptions of interventions and experiences on healthcare and education. Critical reflection: texts with special relevance bringing contributions to nursing and health thinking. Publication norms: instructions to authors on the layout of manuscripts in the languages: Portuguese, English and Spanish. 3. EVALUATION OF MANUSCRIPTS The manuscripts received are reviewed by REME’s Editorial Council, which has the right to accept or refuse papers submitted. The peer review has the following stages: a) protocol, recorded in a database for control b) evaluated as to layout – initial review as to minimal standards required by REME – (cover note with the name of authors and titles of the paper) and documentation. They may be sent back to the author for adaptation to the norms before forwarding to consultants. c) Forwarded to the General Editor who name an Associate Editor who will indicate two consultants according to their spheres of work and qualification. d) Forwarded to two specialist reviewers in the relevant field, anonymously, selected from a list of reviewers, without the name of the authors or origin of the manuscript. The reviewers are always from institutions other than those of the authors. e) After receiving both opinions, the General Editor and the Executive Director evaluate and decide to accept the article without alterations, refuse or return to the authors, suggesting alterations. Each copy is always reviewed by the General Editor or the Executive Director who are responsible for final approval. 4. LAYOUT OF MANUSCRIPTS 4.1 Graphical layout Manuscripts are to be submitted on diskette or CD-ROM in Word for Windows, version 6.0 or higher, Times New Roman normal, size 12, space 1.5, printed on standard ISO A4 paper (212 x 297 mm), margins 2.5 mm, limited to 20 pages, including preliminary pages, texts, acknowledgement, references and illustrations. 4.2 Parts of the manuscripts Each manuscript should have the following structure and order, whenever relevant: a) Preliminary pages: Page 1: title and subtitle – in Portuguese, English and Spanish. Authors: full name, profession, qualifications, position and institution, postal and electronic address of the author responsible for correspondence. Indication of paper category: Research, Review of Theory, Report of Experience, Critical Reflection/Essay. Page 2: Title of article in Portuguese; Resumo e palavras-chave; Abstract and key-words; Resumen e palavras clave (Key words - 3 to 6 – should agree with the Health Science Descriptors/BIREME, available at http://decs.bvs.br/ . The abstract should have up to 250 words with simple space, font size 10. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 155 Page 3: the content of the paper begins on this page, starting with the title in Portuguese, which includes: b) Text: - Introduction; - Main body (material and method or description of methodology, results, discussion and/or comments); - Conclusions or final comments. c) Acknowledgements (optional); d) References as specified in item 4.3 e) Appendices, if necessary. 4.3 Requirements for manuscripts: The requirements are those of the International Committee of Medical Journal Editors (Vancouver Norm), which can be found in full at the following sites: Portuguese: <http://www.bu.ufsc.br/bsccsm/vancouver.html> Spanish: <http://www.enfermeriaencardiologia.com/formacion/vancouver.htm> English: <http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html> References are numbered in the same order in which they are mentioned for the first time in the text. Quotations in the text should be numbered, in brackets, corresponding to the references at the end of the article. The titles of journals are abbreviated according to “Journals Database” – Medline/Pubmed, available at: <http:// www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/ query. fcgi? db=Journals> or according to the CCN – National Collective Catalogue of the IBICT- Brazilian Information Institute in Science and Technology, available at: <http://www.ibict.br. Illustrations should be sent in black and white immediately after the reference in the text, according to the tabular presentation norm of IBGE, 3rd ed. of 1993. Under each category they should be numbered sequentially in the text. (Example: TAB 1, FIG. 1, GRÁF 1). Each illustration should have a title and the source. Headings and titles should be clear and understandable, without the need to consult the text. References to illustrations in the text should be in brackets, indicating the category and number of the illustration. Ex. (TAB. 1). Abbreviations,measurement units, symbols and units should agree with international publication norms. The first time an abbreviation is used, it should be preceded by the complete term or expression, except when it is a common measurement. Length, height, weight and volume measures should be quoted in the metric system (meter, kilogram, liter) or their multiples or sub-multiples. Temperature, in degrees Celsius. Blood pressure, in millimeters of mercury. Abbreviations and symbols must follow international standards. Acknowledgements should be in a separate paragraph, placed before the bibliography. 5. SUBMITTAL OF MANUSCRIPTS Manuscripts must be accompanied by a cover letter containing the names of the authors, address for correspondence, email, telephone and fax numbers, a declaration of collaboration in the work and the transfer of copyright to REME. (Samples are available at: www.enf.ufmg.br/reme.php) For manuscripts resulting from research involving human beings, there should be a copy of approval by the ethics committee recognized by the National Ethics Committee for Research (CONEP), according to the norms of the National Health Council – CNS 196/96. Manuscripts that received financial support need to have it clearly identified. The author(s) must sign and send the Responsability Agreement and Copyright Transfer Agreement and also a statement informing that there are no personal, comercial, academic, political or financial interests on the manuscript. Manuscripts should be sent to: ATT/REME- Revista Mineira de Enfermagem Escola de Enfermagem da UFMG Av. Alfredo Balena, 190, Sala 104 - Bloco Norte CEP: 30130-100 - Belo Horizonte/MG – Brasil E-mail: [email protected] 6. EDITORS RESPONSIBILITY Further issues will be decided by the Editorial Council. REME is not responsible for the opinions stated in articles. (September version, 2007) 156 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 Normas de Publicácion REME – REVISTA DE ENFERMERÍA DEL ESTADO DE MINAS GERAIS INSTRUCCIONES A LOS AUTORES 1 – SOBRE LA MISIÓN DE LA REVISTA REME REME - Revista de Enfermería de Minas Gerais - es una publicación trimestral de la Escuela de Enfermería de la Universidad Federal de Minas Gerais - UFMG - conjuntamente con Facultades, Escuelas y Cursos de Graduación en Enfermería del Estado de Minas Gerais: Escuela de Enfermería Wenceslao Braz; Fundación de Enseñanza Superior de Passos; Centro Universitario del Este de Minas Gerais; Facultad de Enfermería de la Universidad Federal de Juiz de Fora - UFJF. Su publicación trimestral tiene la finalidad de contribuir a la producción, divulgación y utilización del conocimiento generado en enfermería y áreas correlacionadas, incluyendo también temas de educación, investigación y atención a la salud. 2 - SOBRE LAS SECCIONES DE REME Cada fascículo, editado trimestralmente, tiene la siguiente estructura: Editorial: considera temas de relevancia del contexto científico, académico y político social; Investigación: incluye artículos con enfoque metodológico cualitativo y cuantitativo, originales e inéditos que contribuyan a la construcción del conocimiento en enfermería y áreas correlacionadas; Revisión teórica: evaluaciones críticas y ordenadas de la literatura sobre temas de importancia para enfermería y áreas correlacionadas; Relatos de experiencias: descripciones de intervenciones que incluyen atención en salud y educación; Artículos reflexivos: textos de especial relevancia que aportan al pensamiento en Enfermería y Salud; Normas de publicación: instrucciones a los autores sobre la presentación física de los manuscritos en los idiomas portugués, inglés y español. 3 - SOBRE CÓMO SE JUZGAN LOS MANUSCRITOS Los manuscritos recibidos son analizados por el Cuerpo Editorial de la REME, que se reserva el derecho de aceptar o rechazar los trabajos sometidos. El proceso de revisión – paper review – consta de las siguientes etapas en las cuales los manuscritos son: a) protocolados, registrados en base de datos para control; b) evaluados según su presentación física – revisión inicial en cuanto a estándares mínimos de exigencias de la R.E.M.E ( cubierta con identificación de los autores y títulos del trabajo) y documentación ; el manuscrito puede devolverse al autor para que lo adapte a las normas antes de enviarlo a los consultores; c) enviados al Editor General que indica el Editor Asociado que será el responsable por designar dos consultores de conformidad con el área. d) remitidos a dos revisores especialistas en el área pertinente, mantenidos en anonimato, seleccionados de un registro de revisores, sin identificación de los autores ni del lugar de origen del manuscrito. Los revisores siempre pertenecen a instituciones diferentes de aquélla de origen del autor del manuscrito; e) después de recibir los dos pareceres, el Editor General y el Director Ejecutivo los evalúan y optan por la aceptación del artículo sin modificaciones, por su rechazo o por su devolución a los autores con sugerencias de modificaciones. El Editor General y/o el Director Ejecutivo, a cargo de la aprobación final, siempre analizan todas las versiones. 4 - SOBRE LA PRESENTACIÓN DE LOS MANUSCRITOS 4.1 Presentación gráfica Los manuscritos deberán enviarse grabados en disquete o CD-ROM, programa “Word for Windows”, versión 6.0 ó superior, letra “Times New Roman”, estilo normal, tamaño 12, digitalizados en espacio 1,5 entre líneas, en dos copias impresas en papel estándar ISO A4 (212x 297mm), con márgenes de 25mm, modelo A4, limitándose a 20 carillas incluyendo páginas preliminares, texto, agradecimientos, referencias, tablas, notas e ilustraciones. – REME – Rev. Min. Enf.; 11(1): 99-107, jan/mar, 2007 106 4.2 Las partes de los manuscritos Los manuscritos deberán tener la siguiente estructura y orden, cuando fuere pertinente: a) páginas preliminares: Página 1: Título y subtítulo en idiomas portugués, inglés y español; Autor(es)- nombre completo, profesión, título, cargo, función e institución; dirección postal y electrónica del autor responsable para correspondencia; Indicación de la categoría del artículo: investigación, revisión teórica, relato de experiencia, artículo reflexivo/ensayo. Página 2: Título del artículo en portugués; Resumen y palabras clave. Las palabras clave (de tres a seis) deberán indicarse en conformidad con el DECS – Descriptores en ciencias de la salud /BIREME), disponible en: http://decs.bvs.br/. El resumen deberá constar de hasta 250 palabras, con espacio simple en letra de tamaño 10. remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 157 Página 3: a partir de esta página se presentará el contenido del manuscrito precedido del título en portugués que incluye: b) Texto: - introducción; - desarrollo (material y método o descripción de la metodología, resultados, discusión y/o comentarios); - conclusiones o consideraciones finales; c) Agradecimientos (opcional); d) Referencias como se especifica en el punto 4.3; e) Anexos, si fuere necesario. 4.3 Sobre la normalización de los manuscritos: Para efectos de normalización se adoptarán los Requisitos del Comité Internacional de Editores de Revistas Médicas (Norma de Vancouver). Esta norma se encuentra de forma integral en las siguientes direcciones: En portugués: http://www.bu.ufsc.br/bsccsm/vancouver.html> En español: http://www.enfermeriaencardiologia.com/formación/vancouver.htm En inglés: http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html > Las referencias deberán enumerarse consecutivamente siguiendo el orden en el que se mencionan por primera vez en el texto. Las citaciones en el texto deberán indicarse con numero arábico, entre paréntesis, sobrescrito, correspondiente a las referencias al final del articulo. Los títulos de las revistas deberán abreviarse de acuerdo al “Journals Database” Medline/Pubmed, disponible en: <http:// www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/ query. fcgi? db=Journals> o al CCN – Catálogo Colectivo Nacional, del IBICT- Instituto Brasileño de Información en Ciencia y Tocología, disponible en: <http://www.ibict.br.> Las ilustraciones deberán presentarse en blanco y negro luego después de su referencia, en conformidad con la norma de presentación tabular del IBGE , 3ª ed. , 1993. Dentro de cada categoría deberán enumerarse en secuencia durante el texto. Por ej.: (TAB.1, FIG.1, GRAF.1). Cada ilustración deberá tener un titulo e indicar la fuente de donde procede. Encabezamientos y leyendas deberán ser lo suficientemente claros y comprensibles a fin de que no haya necesidad de recurrir al texto. Las referencias e ilustraciones en el texto deberán mencionarse entre paréntesis, con indicación de categoría y número de la ilustración. Por ej.: (TAB.1). Las abreviaturas, cantidades, símbolos y unidades deberán seguir las Normas Internacionales de Publicación. Al emplear por primera vez una abreviatura ésta debe estar precedida del término o expresión completos, salvo cuando se trate de una unidad de medida común. Las medidas de longitud, altura, peso y volumen deberán expresarse en unidades del sistema métrico decimal (metro, kilo, litro) o sus múltiplos y submúltiplos; las temperaturas en grados Celsius; los valores de presión arterial en milímetros de mercurio. Las abreviaturas y símbolos deberán seguir los estándares internacionales. Los agradecimientos deberán figurar en un párrafo separado, antes de las referencias. 5 - SOBRE EL ENVÍO DE LOS MANUSCRITOS Los manuscritos deberán enviarse juntamente con el oficio de envío, nombre de los autores, dirección postal, dirección electrónica y fax así como de la declaración de colaboración en la realización del trabajo y autorización de transferencia de los derechos de autor para la revista REME (Modelo disponible en: www.enf.ufmg.br/reme.php) Para los manuscritos resultados de trabajos de investigación que involucren seres humanos deberá enviarse una copia de aprobación emitida por el Comité de Ética reconocido por la Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) - Comisión Nacional de Ética en Investigación, en conformidad con las normas de la resolución del Consejo Nacional de Salud – CNS 196/96. - REME – Rev. Min. Enf.;11(1):99-107, jan/mar,2007 - 107 Para los manuscritos resultantes de trabajos de investigación que hubieran recibido algún tipo de apoyo financiero, el mismo deberá constar, claramente identificado, en el propio manuscrito. El autor o los autores también deberán declarar, juntamente con la autorización de transferencia del derecho de autor, no tener interés personal, comercial, académico, político o financiero en dicho manuscrito. Los manuscritos deberán enviarse a: At/REME – Revista Mineira de Enfermagem Escola de Enfermagem da UFMG Av. Alfredo Balena, 190, Sala 104, Bloco Norte CEP 30130- 100 - Belo Horizonte/ MG – Brasil 6 - SOBRE LA RESPONSABILIDAD EDITORIAL Los casos omisos serán resueltos por el Consejo Editorial. REME no se hace responsable de las opiniones emitidas en los artículos. (Versión del 12 de septiembre de 2007) 158 remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 Revista Mineira de Enfermagem Nursing Journal of Minas Gerais Revista de Enfermería de Minas Gerais FORMULÁRIO PARA ASSINATURA DA REME ASSINATURA ANUAL | ANNUAL SUBSCRIPTION | SUSCRIPCIÓN ANUAL Periodicidade Trimestral | Every Quarter | Periodicidad Trimestral Nome/Name/ Nombre ou Instituição assinante: _____________________________________________________________ Endereço / Adress / Dirección: _______________________________________________________________________________ Cidade / City / Ciudad: _________________________________País / Country / Pais: __________________________________ UF / State / Provincia: _______________________________________ CEP / Zip Code / Código Postal: _____________________ Tel. / Phone / Tel.: _____________________ Fax: ______________________ Celular / Cell Phone / Cellular: ___________________ E-mail:___________________________________________________________________________________________________ Categoria Profissional / Occupation / Profesión: _________________________________________________________________ Data / Date / Fecha: _______/_______/_______ Assinatura / Signature / Firma: ______________________________________________________________________________ Encaminhar este Formulário de Assinatura acompanhado do comprovante de depósito bancário, por fax (31 3409-9876) ou e-mail ([email protected]) Send your subscription to: Enviar la inscripción a: Dados para depósito: BANCO DO BRASIL Agência / Branch Number / Sucursal Número: 1615-2 Conta / Bank Account / Cuenta de Banco: 480109-1 Código identificador/ Identification code/ Clave de identificación: 4828011 Valores Anuais: Individual: R$100,00 ( ) US$80,00 ( ) Institucional: R$150,00 ( ) US$100,00 ( ) ESCOLA DE ENFERMAGEM - UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS REME – Revista Mineira de Enfermagem Av. Alfredo Balena, 190 - sala 104 - Bloco Norte Campus Saúde, Bairro Santa Efigênia CEP: 30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil Telefax: +55 (31) 3409-9876 HOME PAGE: www.enf.ufmg.br/reme.php remE - Rev. Min. Enferm.;13(1): 1-158, jan./mar., 2009 159