A ESCOLA E O MUNDO DO ALUNO Conselho Editorial Bertha K. Becker (in memoriam) Candido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama Marcelo Baumann Burgos (coord.) A ESCOLA E O MUNDO DO ALUNO Estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola Copyright © dos autores Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda. Rua Candido de Oliveira, 43/Sala 101 - Rio Comprido Rio de Janeiro - Brasil - 20.261-115 Tel: (21) 2504-9211 [email protected] Revisão Jun Shimada Editoração Eletrônica Editora Garamond Capa Estúdio Garamond CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98. Sumário Introdução – Afirmação institucional da escola democrática e o mundo do aluno...................................................................................................9 Marcelo Baumann Burgos Primeira parte DIMENSÕES EMPÍRICAS DA RELAÇÃO DA ESCOLA COM O MUNDO DO ALUNO Primeira seção – A Escola e o Mundo do Aluno Preâmbulo............................................................................................................ 39 Marcelo Baumann Burgos Capítulo 1 – Dados básicos sobre o aluno e sua família ............................... 41 Francicleo Castro Ramos & Vanusa Queiroz Capítulo 2 – O valor da educação escolar para as famílias: confronto entre a percepção dos responsáveis e o senso comum escolar.......................................................................................... 50 Laura Rossi, Marcelo Baumann Burgos Capítulo 3 – Observação da reunião de pais: evidências da ausência de diálogo.................................................................... 72 Bernardo Trigueiro, Mariana Junqueira Camasmie Capítulo 4 –Recreio escolar: curto-circuito entre a cultura escolar e o mundo do Aluno............................................................... 83 Fernanda Lopes, Francicleo Castro Ramos, Laura Rossi, Sarah Laurindo Capítulo 5 – Região Escolar e Mundo do Aluno: os casos da Rocinha e da Maré........................................................................122 Julia Ventura, Francicleo Castro Ramos, Marcelo Baumann Burgos Segunda seção – Entre a escola, a família e a vizinhança: O papel do Conselho Tutelar Preâmbulo.......................................................................................................... 149 Marcelo Baumann Burgos Capítulo 6 - Conselho Tutelar: histórico, características e atribuições.............................................................................. 153 Aristóteles Vandelli Carneiro Capítulo 7 – Conselho Tutelar: visibilidade, cidadania e escola................. 174 José Antonio Ribas Soares Capítulo 8 – Perfil da atuação do Conselho Tutelar e a importância do direito à educação..................................................................197 Aristóteles Vandelli Carneiro, José Antonio Ribas Soares, Sarah Laurindo Monteiro, Tadeu Nascimento Pedro Capítulo 9 – Conselho Tutelar, um mediador da relação escola-família...................................................................................217 Ana Carolina Canegal, Sarah Laurindo Capítulo 10 – Entre a escola, a família e o Conselho Tutelar: estudo do vazio institucional a partir do trágico caso do menino Alan Ana Carolina Canegal, Maria Larissa Martins de Lima.............................239 Terceira Seção – Relatos de experiências de extensão da PUC-Rio junto às escolas públicas e ao conselho tutelar Preâmbulo Marcelo Baumann Burgos................................................................................ 263 Capítulo 11 – Gestão da Informação sobre o aluno: relato de uma experiência de extensão.......................................................... 267 Francicleo Castro Ramos, Julia Ventura, Marcelo Baumann Burgos, Vanusa Queiroz Capítulo 12 – Relato do desenvolvimento de ferramentas de gestão da informação para o Conselho Tutelar....................................... 282 Maria Larissa Lima, Mariana Junqueira Camasmie, Sarah Laurindo Capítulo 13 – Festival PUC das Escolas da Gávea e da Rocinha: integração urbana, educação escolar e responsabilidade social.................301 Ana Carolina Canegal, Marcelo Baumann Burgo Capítulo 14 – Por uma cidade a favor da educação e da educabilidade: a proposta de reforma urbana das praças públicas da Gávea.............................................................................324 Ana Carolina Canegal, Fernanda Antunes Lopes, Marcelo Baumann Burgos Capítulo 15 – Conversa com os profissionais da escola: ensaio de um debate sobre a relação da escola com o mundo do aluno.......................344 Fernanda Antunes Lopes, Laura Rossi Capítulo 16 – Reflexões de um professor de ensino fundamental na pele de um pesquisador, ou vice-versa......................... 383 Rafael Dutton Segunda Parte DIMENSÕES TEÓRICAS DA RELAÇÃO DA ESCOLA COM O MUNDO DO ALUNO Preâmbulo...................................................................................................... 397 Ralph Bannell Capítulo 17 – Escolas, Meios Populares e Mediação Sociocultural.......... 403 Pedro Silva Capítulo 18 – Exigências acadêmicas, tédio e agressão: algumas questões sobre o fenômeno da conflituosidade escolar Daniel Míguez................................................................................................450 Capítulo 19 – A escola e o território: um acordo democrático improvável?...............................................................480 Benjamin Moignard Capítulo 20 – O Estado, a democracia e a educação: ou o buraco é muito mais em baixo.......................................................... 498 Ralph Ings Bannell Sobre os autores..............................................................................................531 7 Introdução Afirmação institucional da escola democrática e o mundo do aluno Marcelo Baumann Burgos Este livro nasceu da preocupação em estudar a relação da escola com o mundo do aluno, isto é, seu universo subjetivo, associado ao lugar e às condições em que ele vive, sua família e sua relação com a escola, em suma, do sujeito que há por trás do aluno. Com isso, pretende trazer para a reflexão os bastidores do trabalho escolar, em que se dá a construção social do aluno: esse lugar intersticial situado entre a escola, a família e a vizinhança. O trabalho foi desenvolvido a partir de um amplo esforço coletivo de pesquisa, realizado ao longo de intensos quatro anos, com o intuito de iluminar esse lugar que, apesar de pouco visível, talvez seja o mais importante do ponto de vista do direito da criança/adolescente, bem como no tocante ao papel institucional desempenhado pela escola. A construção social do aluno: da perspectiva do direito da criança/adolescente Pensar a escola a partir da construção social do aluno oferece um ângulo particularmente interessante para a reflexão em perspectiva comparada da experiência da massificação da escola brasileira. Como se sabe, na Europa ocidental, em países como a França, por exemplo, a história da construção social do aluno se confunde com a da afirmação da república ao longo do século XIX. O aluno, com seu anonimato e impessoalidade, passa a corporificar a ideia de igualdade republicana, e passa a ser papel da escola neutralizar ao máximo as diferenças externas oriundas da vida fora da escola, ao mesmo tempo em que forjar em cada 9 10 criança uma individualidade abstrata, que diferencia ao mesmo tempo em que iguala. Como ensinam os conhecidos textos de Durkheim, na sociedade moderna está em jogo a produção de um duplo processo, o que iguala, na medida em que insere as novas gerações em valores comuns – pretensamente universais –, e o que diferencia, forjando em cada novo ser a individualidade e a busca de autonomia em face da própria sociedade. Nos Estados Unidos da América, onde o individualismo seria de outro tipo se comparado ao francês, a escolarização também é dominada por razões sociais e de governabilidade voltando-se, como advertem Popkewitz & Bloch (2000: 35), para a construção de vínculos entre o “indivíduo e um sentido coletivo de missão e de progresso”. É por isso que a “pedagogia não consistia no ensino de disciplinas escolares mas antes numa luta que procurava reconstituir a criança”, e que para Dewey, principal liderança da educação progressista nos EUA, a escola devia ser considerada como uma “comunidade miniatura a qual deveria iniciar a criança numa pertença social efetiva através da autodisciplina do sujeito” (Idem: 48). A construção do aluno, portanto, está no centro das utopias democráticas do século XIX, associada à busca do “homem novo”, capaz de desenvolver, ainda segundo Popkewitz & Bloch, “uma disciplina interior que permitiria aos indivíduos controlar a sua existência mundana” (Idem: 35). Outrossim, estará no centro do socialismo democrático, do início do XX, do que é exemplar a defesa feita por Gramsci da escola unitária, uma “escola criadora”, capaz de “expandir a personalidade, tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e social sólida e homogênea” (1991: 124). Mas o legado concreto dessa história, que remete aos ideais das revoluções democráticas, da igualdade e da liberdade, está em xeque, e o motivo principal reside exatamente na necessidade de se recuperar o sujeito por trás do aluno, como bem demonstra Alain Touraine (2003), em seu esforço de pensar o que denomina “a escola do sujeito”; uma escola, talvez, mais fiel ao que Condorcet defendia, em 1792, na Assembleia dos Representantes do Povo, quando postulava que deveria 11 se esperar da escola a “emancipação e autonomia de pensamento dos cidadãos e trabalhadores”1. O caso da massificação escolar brasileira, de outra maneira, foi presidido por dois paradigmas que ainda estão em conflito e contradição. De um lado, quando se considera que a massificação (no sentido da generalização do acesso à escola) começa para valer em pleno regime militar (a partir dos anos de 1970) e, em meio a seu projeto de modernização autoritária, fica evidente que suas razões de fundo são basicamente econômicas, orientadas pela lógica da acumulação, e nesse sentido o aluno é de algum modo chamado a se assumir como projeto de força de trabalho mais ou menos qualificada para o esforço de modernização da economia; mas já nos anos de 1980, em especial com a Carta de 88 e com Estatuto da Criança (1990), entra em cena uma profunda mudança na concepção do papel da criança na ordem jurídica do país. Esse novo paradigma, que se convencionou denominar como “doutrina da proteção integral da criança” substitui a “doutrina da situação irregular do menor”, “que ao longo de nossa evolução histórica, acabou gerando duas infâncias: (i) a infância escola-família-comunidade e (ii) a infância trabalho-rua-delito”, reservando para a segunda “uma legislação de menores caracterizada pelo emprego sistemático dos dispositivos típicos do controle social do delito (polícia, justiça e institutos de internação)” (BRASIL, 2006: 18) Enquanto “a Doutrina da Situação Irregular só se preocupa com a proteção – para os carentes e abandonados – e a vigilância – para os inadaptados e infratores” (Idem: 19), a doutrina da proteção integral da criança não se dirige a um determinado segmento da população infanto-juvenil, mas a todas as crianças e adolescentes, sem exceção alguma. Essa mudança do lugar da criança/adolescente tem repercussão decisiva sobre o processo de construção do aluno entre nós, entrando em choque com a rota definida no regime militar, e se reencontrando com movimentos sociais como o dos pioneiros da educação, liderado por 1 Choukri Ben Ayed (2010) enfatiza que as Leis Ferry – que, entre 1881 e 1882, tornam o ensino primário gratuito e obrigatório na França – distorcem a aspiração democrática defendida em 1792 por Condorcet (na Assembleia dos Representantes do Povo), de uma escola voltada para a “emancipação e autonomia de pensamento dos cidadãos e trabalhadores”. Diversamente, as Leis Ferry afirmam que a função da escola pública e laica é a de “impor uma norma cultural e um pertencimento à pátria e ao Estado nação” (p. 21). 12 Anísio Teixeira, em defesa de uma escola pública e laica, e o da luta por uma pedagogia popular, liderado por Paulo Freire, entre outros. Com a mudança do lugar da criança/adolescente, a educação escolar passa a ser um direito de todas as crianças e adolescentes, e uma dimensão inalienável da formação de um sujeito de direitos. Agora, a escola se converte em via incontornável do processo de socialização das novas gerações, e o ingresso precoce no mundo do trabalho, caminho até então inevitável para boa parte dos filhos das famílias populares, passa a ser criminalizado: a massificação da escola avança ao mesmo tempo em que o trabalho infantil diminui. Assim, em contextos de democracia mais longeva, o grande desafio ora colocado é o de permitir que o sujeito por trás do aluno seja levado em conta pela escola, isso ganha contornos dramáticos quando se lembra a questão do multiculturalismo e a necessidade de se reconhecer as diferenças externas aos muros da escola; no Brasil, o quadro é diverso, estando em jogo o desafio de se transformar a criança/adolescente em aluno. Esse ponto foi muito bem capturado por Benjamin Moignard (2008), no estudo comparado que realizou a partir de etnografia em uma escola brasileira situada às margens de uma grande favela do Rio de Janeiro, e em uma escola localizada em um subúrbio de Paris (Moignard, 2008). No caso francês, o ambiente escolar é de “barricada”, sendo sempre iminente o conflito decorrente de uma escola que insiste em ignorar as singularidades de seu público. O resultado é uma escola cada vez mais punitiva e excludente (Moignard, 2014)2. Já no caso brasileiro, Moignard identifica um ambiente escolar curiosamente amistoso, exatamente porque o padrão de relação social existente não chega a demarcar bem os papéis sociais do professor e do aluno, estando sempre permeado por formas personalistas e assimétricas de relações entre adultos e crianças/ adolescentes. O custo disso, notado pelo pesquisador francês, é a prevalência de um certo paternalismo que acaba por imprimir outras formas de exclusão e de violência, seja porque priva uma parcela significativa dos alunos do acesso à aprendizagem, seja porque deixa o aluno exposto às idiossincrasias dos profissionais da escola. 2 Sobre esse ponto, ver também o texto de Benjamin Moignard, capítulo 19 deste livro. 13 Outras pesquisas têm identificado a dificuldade encontrada pela escola brasileira para fazer com que em alguma medida seus muros delimitem uma fronteira real com a rua e com o mundo do sujeito por trás do aluno. Disso se segue uma grande dificuldade para demarcar um ambiente de igualdade no qual o acesso à aprendizagem se imponha para além das diferenças de origem social e familiar, das identidades religiosas e do local de moradia (Guimarães, 2003; Burgos & Paiva, 2009; Ribeiro & Kaztman, 2008). Desses estudos conclui-se que, para a escola se afirmar institucionalmente, ela precisa ser capaz de articular, de um lado, medidas voltadas para a busca por resultados escolares mais igualitários, e de outro, ações voltadas para fazer com que ela entre para valer no jogo da disputa de identidades, criando um clima escolar capaz de produzir sentimento de pertencimento e confiança no projeto escolar. Ou seja, fazendo com que a escola passe de fato a fazer parte do mundo do sujeito do aluno. Mas também é verdade que a situação brasileira em face dos efeitos sempre perturbadores da massificação pode contar com uma vantagem: o fato da afirmação institucional da escola ter que levar em conta o direito da criança e do adolescente, e não apenas as razões do Estado, da sociedade ou do mercado, e mais especificamente o direito à educação escolar. Tal trunfo pode criar condições favoráveis para que esse processo de afirmação institucional da escola e de construção social do aluno não venha a ter como custo a supressão do sujeito mas, ao contrário, a sua valorização. A noção de educabilidade Nossa pesquisa teve como campo privilegiado de estudo as escolas públicas situadas no entorno da PUC-Rio, mais especificamente no bairro da Gávea e na favela da Rocinha. Essas escolas atendem basicamente moradores dessa favela (local de moradia de 85% a 95% de seus alunos), por essa razão o objetivo de tratar do mundo de seus alunos nos levou a considerar o peso do efeito desse território sobre o processo de construção desse aluno. A perspectiva adotada neste livro fica muito bem sintetizada nas imagens abaixo, produzidas da varanda