a primeira república portuguesa diplomacia, guerra e império A Primeira República Portuguesa Diplomacia, Guerra e Império Coordenação: Filipe Ribeiro de Meneses Pedro Aires Oliveira lisboa: tinta‑da‑ china MMXI © 2011, Edições tinta‑da‑china, Lda. Rua João de Freitas Branco, 35A, 1500‑ 627 Lisboa Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30 E‑mail: [email protected] www.tintadachina.pt Título: A Primeira República Portuguesa: Diplomacia, Guerra e Império Coordenadores: Filipe Ribeiro de Meneses e Pedro Aires Oliveira Autores: AAVV Revisão: Tinta-da-china Composição e capa: Tinta‑da‑china 1.ª edição: Setembro de 2011 isbn 978‑ 989‑ 671‑ 093‑4 Depósito Legal n.º 331894/11 Índice 9 Introdução Filipe Ribeiro de Meneses Pedro Aires Oliveira 1. factores permanentes 23 A República e a política externa Nuno Severiano Teixeira 35 Narrativas e figurações da República na França da Belle Époque Edward J. Arnold 51 A crise orçamental e monetária portuguesa no contexto internacional (1914‑1931) Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral 81 2. relações bilaterais Aparências e realidades: os republicanos perante a Aliança Inglesa até à Primeira Guerra Mundial Rui Ramos 111 A I República e a Espanha Hipólito de la Torre Gómez 141 A Primeira República e o Vaticano (1910‑1926): a sombra inglesa e o peso do império Bruno Cardoso Reis 179 As Relações Luso‑Brasileiras Thiago Carvalho e Fernando Martins 207 Portugal e os Estados Unidos durante a Primeira República Luís Nuno Rodrigues 3. a grande guerra e as suas consequências 221 A grande aposta da república: o corpo expedicionário português Filipe Ribeiro de Meneses 245 Os Desnacionalizados da Primeira República Manuela Franco 267 Os Impérios Europeus Ultramarinos durante a Primeira República Portuguesa Robert McNamara 299 O Factor Colonial na Política Externa da Primeira República Pedro Aires Oliveira 333 Convulsão Social e Vingança Política na Europa do Pós‑ Guerra. O Caminho Espanhol para a Ditadura, 1919‑1923 Francisco Romero Salvadó 353 A Globalização da Primeira República José Medeiros Ferreira 393 Notas biográficas Introdução Filipe Ribeiro de Meneses Pedro Aires Oliveira Em 2010 abriu‑se o ciclo de comemorações do centenário da Primei‑ ra República. Ao longo dos próximos 15 anos iremos assistir à publi‑ cação de inúmeros volumes assinalando, ou até mesmo celebrando, os vários eventos que marcaram a vida de um regime curto no tempo, mas fértil em ideias e peripécias. Para quem vem escrevendo sobre a Primeira República desde o século passado, batendo‑se contra a falta de historiografia e a dificuldade de acesso a fontes primárias, este interesse súbito, inicialmente desconcertante, é por fim bem ‑vindo. Proporcionará, espera‑se, um conhecimento mais profundo sobre todas as facetas de uma experiência política que, julgando‑se trave‑mestra do desejado ressurgimento nacional, serviu apenas de ponte entre a Monarquia Constitucional e o Estado Novo de Salazar. A Primeira República fracassou, mas o seu fracasso foi fascinante e determinante para o futuro de Portugal. Um dos aspectos paradoxais da Primeira República é que, embora desejassem fazer uma obra nacional, aproveitando e canalizando as energias de todos os portugueses para apressar a chegada do «ridente porvir» cantado na Portuguesa, os governantes republicanos viram a sua margem de acção coarctada por pressões diplomáticas inultra‑ passáveis. Todo e qualquer passo teve de ser medido tendo em conta a sua recepção pelas potências europeias — e, quando não foram as‑ sim medidas, tais iniciativas acabaram, mais tarde ou mais cedo, por ser reavaliadas. Resultaram estas cautelas numa crescente desilusão entre os apoiantes radicais do jovem regime, para quem o fim da Mo‑ narquia fora uma panaceia para todas as chagas que afligiam o país. A República nasceu num momento de enorme indefinição e ebuli‑ ção internacional, cuja resolução era difícil de prever. Caminhava‑se [10] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império para uma guerra generalizada ou para um acordo entre as grandes potências à custa das pequenas? Qualquer uma destas opções era potencialmente catastrófica para Portugal. País pobre e militarmente fraco, mas liderado por uma classe política imbuída de sentimentos nacionalistas e voluntariosos, decidiu Portugal, após um compasso de espera de quatro anos — durante o qual se esforçou por defen‑ der os territórios sob sua soberania e endireitar as finanças —, apos‑ tar numa intervenção internacional como forma de resolver os seus problemas domésticos e afastar, para sempre, as ameaças externas que sobre ele pairavam. Não conquistou, porém, os desejados louros, e a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, longe de fortalecer o regime, feriu‑o profundamente. Com o fim do conflito nasceu — ou melhor, pareceu nascer — uma nova ordem internacio‑ nal, alicerçada no Tratado de Versalhes, do qual Portugal, enquanto «vencedor», foi signatário. Assentaria esta nova ordem, afirmavam os seus autores, sobre os princípios da segurança colectiva e do desar‑ mamento mútuo. À primeira vista, tal ordem viria ao encontro dos desígnios portugueses. Cedo se constatou, porém, que Portugal, es‑ pecialmente na sua dimensão colonial, continuava ameaçado por al‑ gumas das potências estrangeiras ao lado das quais tinha combatido. Foi este perigo explorado habilmente pelos inimigos conservadores do regime, argumentando estes que, dada a instabilidade política que — por vezes de forma acentuada, aguda mesmo — se fez sentir a par‑ tir de 1919, a República não seria capaz de defender o que a Portugal pertencia. Este sentimento de vulnerabilidade crescente (diplomática, militar, económica) num contexto internacional novamente perigoso condicionou a segunda fase da República e, em larga medida, ditou o seu fim a 28 de Maio de 1926. Foi o desejo de realçar a importância desta dimensão internacio‑ nal, no contexto da primeira vaga de comemorações do centenário da Primeira República, que nos levou a organizar, nos dias 9 e 10 de Setembro de 2010, um colóquio intitulado «A Primeira República e a Política Externa», que decorreu no Museu do Oriente, em Lisboa. Contou esta iniciativa com o patrocínio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, do Instituto Diplo‑ mático e do Instituto Português de Relações Internacionais da Uni‑ versidade Nova de Lisboa. Quisemos juntar não só especialistas na República (portugueses e estrangeiros), como também historiadores que ajudassem a inserir o regime no seu contexto internacional — introdução [11] um contexto extremamente dinâmico e conturbado. Reúnem‑se nes‑ te volume muitas das contribuições do referido colóquio. Algumas debruçam‑se sobre os relacionamentos bilaterais entre Portugal e certas potências (Grã‑Bretanha, Espanha, Brasil, Santa Sé, Estados Unidos da América); outras sobre questões estruturais de primeira importância para se entender a política externa das dezenas de go‑ vernos republicanos (a situação financeira e monetária do país, a má‑ quina diplomática portuguesa e a dimensão colonial da diplomacia portuguesa); uma sobre a intervenção de Portugal na Primeira Guer‑ ra Mundial; e outras ainda sobre o cenário em que se desenrolou toda esta actividade: o significado e o estatuto do republicanismo francês em 1910; o impacto do Tratado de Versalhes — e da Sociedade das Nações por ele criado — no mundo colonial; as consequências para Espanha do conflito de 1914‑18. A combinação de temas oferece‑nos, no seu conjunto, uma visão inovadora e por vezes até inesperada do regime republicano. Que conclusões se podem extrair dos trabalhos apresentados no colóquio? Deverá o leitor deste volume, claro está, chegar às suas próprias conclusões; mas, para quem presenciou o colóquio, algumas são bem claras. Em primeiro lugar, o facto de a implantação da Re‑ pública não ter representado um virar de página definitivo na vida nacional, ou a criação de uma condição verdadeiramente nova. Não deixou Portugal de ter uma vida política agitada, uma economia fra‑ ca e parcos recursos financeiros; as forças armadas portuguesas não deixaram para trás a sua debilidade crónica; não deixou de ser subde‑ senvolvido, mesmo para os padrões da época, o património colonial português — e por isso mesmo fonte de críticas constantes (às vezes genuínas, outras vezes não) sobre a forma como este era governado e os seus habitantes tratados. As tensões sociais resultantes deste atraso (e por vezes de algum progresso) não desapareceram de um momento para o outro; a República não criou mecanismos para a me‑ lhor resolução de conflitos internos. Muito — quase tudo — herdou a República da Monarquia Constitucional, assim como a Ditadura Militar iniciada em 1926 herdou quase tudo — homens, conceitos, oportunidades e dificuldades — da República. O que se torna cla‑ ro com a leitura dos textos que se seguem é que esta continuidade foi especialmente forte na dimensão externa da política republicana. Vencido por fim o obstáculo do reconhecimento estrangeiro do novo regime, a primeira batalha diplomática da República, puderam os [12] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império governantes republicanos constatar que, afinal, os perigos que outro‑ ra afligiam a Monarquia continuavam de pé: nada tinha mudado com a mudança de regime, e muitas das ligações pessoais estabelecidas por diplomatas portugueses do antigo regime estavam agora irreme‑ diavelmente perdidas. Poderá isto, porventura, parecer banal — mas deixa de o ser quando consideramos a situação europeia (e por isso mundial, ten‑ do em conta o papel determinante das grandes potências europeias) à época em que se efectua a mudança de regime, em 1910. A cres‑ cente afirmação do poderio alemão e a sua busca de uma política à escala global; os custos materiais e humanos, para a Grã‑Bretanha, da manutenção do seu vasto império, demonstrados sobejamente durante a Guerra Anglo‑Bóer no início do século; dúvidas sobre a longevidade do império russo, após a derrota no conflito com o Ja‑ pão; a cristalização, graças ao Caso Dreyfus, de um bloco oposicio‑ nista, conservador, nacionalista e clerical, no seio da Terceira Re‑ pública francesa; incertezas sobre o rumo da diplomacia espanhola depois da crise de 1898: o mundo estava a tornar‑se mais perigoso para Portugal, com o seu principal sustentáculo, a Grã‑Bretanha, a procurar novos pontos de apoio e mesmos novos aliados. A situa‑ ção herdada — não por acaso, claro está, pois a Monarquia não caiu, foi derrubada — era má; pensar que a mudança de regime iria alterá‑la de um momento para o outro era uma simples ilusão. Para mais, a batalha pelo reconhecimento do novo regime nas capitais europeias exigia que todos os compromissos internacionais fossem respeitados por Portugal; estavam as mãos dos governantes portu‑ gueses, a este respeito, atadas. Uma segunda conclusão tem a ver com as relações bilaterais man‑ tidas por Portugal com os seus parceiros internacionais. Eram estas tidas como uma forma de romper o cerco — antes e depois da Guer‑ ra — que ameaçava os interesses portugueses. Através de um melhor relacionamento com potências como o Brasil e os Estados Unidos da América os governantes republicanos esperavam estabelecer no‑ vos laços de amizade e cooperação que reduzissem, com o passar do tempo, a dependência da Grã‑Bretanha e atenuassem o «perigo espa‑ nhol». A diversificação de relacionamentos internacionais foi por isso uma prioridade, mas nem sempre bem‑sucedida. Fica demonstrado neste volume até que ponto foi procurado um novo entendimento com o Brasil, tanto por motivos ideológicos como comerciais — introdução [13] ficando igualmente demonstrados os obstáculos encontrados, desde a importância secundária atribuída pela diplomacia brasileira às rela‑ ções com Portugal até à hostilidade da colónia portuguesa no Brasil relativamente ao novo regime, com algumas decisões surpreendentes pelo meio (uma reforma ortográfica unilateral) a dificultarem ainda mais a tarefa. A mesma dinâmica — entusiasmo português, cautela, se não mesmo frieza, brasileira, sobretudo no seio da Sociedade das Nações, onde o Brasil gozava de uma posição de prestígio — é obser‑ vável no período 1919‑1926. Escrevem Thiago Carvalho e Fernando Martins, neste estudo pioneiro: Na ausência de uma estratégia eficaz que impulsionasse as relações luso ‑brasileiras, o diálogo bilateral assentou numa retórica dos afectos que deveria assegurar a manutenção dos laços ditos especiais enquanto não era possível conferir‑lhes um significado mais profundo. Luís Nuno Rodrigues, na sua contribuição, lembra as dificuldades sentidas por Portugal em obter o reconhecimento de Washington e a desilusão resultante da nomeação da Espanha, neutra durante a guer‑ ra, para o Conselho Executivo da Sociedade das Nações, em gran‑ de medida determinada por Woodrow Wilson. Rui Ramos, na sua análise das relações luso‑britânicas, lembra a já referida fluidez das posições diplomáticas de Londres antes de 1910 e, em consequência das incertezas provocadas por esta fluidez em Lisboa, o desejo da di‑ plomacia portuguesa de facilitar um melhor entendimento entre a Grã‑Bretanha, potência marítima, e potências continentais como a Espanha e a França, desde que esse entendimento não resultasse na espoliação dos interesses portugueses. Lembra também Rui Ramos como, ainda na oposição, o movimento republicano português evo‑ luiu do federalismo ibérico para a defesa dos interesses nacionais, e de uma anglofobia primária para, numa primeira fase, a compreensão de que «uma república em Portugal só poderia ser feita, não contra, mas com a Inglaterra», e, depois de 1910, para o que ele apelida de «masoquismo diplomático»: uma subserviência a Londres bem dis‑ tinta da discrição que caracterizava o alinhamento da diplomacia portuguesa durante a Monarquia. O intervencionismo português, a partir de 1914, é assim apresentado por Ramos como uma fórmula para recuperar, em face do «sadismo» de Londres, alguma iniciativa diplomática. [14] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império Hipólito de la Torre Gómez, regressando na sua contribuição às relações luso‑espanholas, lembra a questão do «perigo espanhol»: derrotada a Espanha pelos Estados Unidos em 1898, e tendo perdido as suas colónias americanas e asiáticas, receou‑se em Lisboa uma aventura militar através da qual Madrid recuperasse, à custa de Por‑ tugal, o seu amor‑próprio. Desviadas as atenções espanholas para Marrocos, apesar dos custos materiais da «Campanha de Melila», em 1909, não desapareceu por completo o «perigo», voltando — com maior força agora — após o 5 de Outubro. Nenhuma outra potência foi tão hostil para o regime republicano como a Espanha, e nenhuma figura tão abertamente ameaçadora como Alfonso XIII. Lembra De la Torre: Em Maio de 1913, Afonso XIII chegou inclusivamente a oferecer ao chefe de Estado francês, Poincaré, a sua entrada em guerra ao lado da Entente, pondo à disposição de França a livre utilização das Baleares, o uso das fer‑ rovias espanholas para repatriar as tropas de África e até dois corpos de exército, que comandaria pessoalmente. O preço cobrado seria a autoriza‑ ção para levar a cabo o seu projecto de unidade peninsular. O papel fulcral da Grande Guerra é realçado por este historiador: Portugal participou, em parte, para se libertar do «perigo espanhol»; a Alemanha tentou seduzir Alfonso XIII com a oferta de uma mão livre na Península Ibérica; o conde de Romanones pensou intervir ao lado dos Aliados para obter essa mesma mão livre. Só melhorou o re‑ lacionamento entre os dois vizinhos ibéricos com a subida ao poder do general Primo de Rivera, e depois, naturalmente, com a instalação de uma segunda ditadura militar, desta vez em Portugal. O último dos estudos dedicados às relações bilaterais, da autoria de Bruno Cardoso Reis, analisa o relacionamento da Primeira Repú‑ blica com a Santa Sé. O anticlericalismo da maior facção republicana, ligada a Afonso Costa, ministro da Justiça no Governo Provisório, resultou, após um momento de indefinição, num corte de relações entre Lisboa e a Cúria Romana. Foi a Lei da Separação o motivo des‑ te corte, para Afonso Costa o simples reflexo da evolução da socie‑ dade portuguesa — mas, como demonstra Cardoso Reis, a República arrepiou caminho durante a guerra. Os termos da revisão da Lei da Separação de Moura Pinto, publicada em pleno consulado sidonista, foram acordados em 1916‑1917 pelo ministro português junto da cor‑ introdução [15] te italiana, Eusébio Leão, e o cardeal Gasparri, líder da diplomacia da Santa Sé. Reatadas, com alguns sobressaltos, por Sidónio Pais, as re‑ lações diplomáticas sobreviveram ao regresso do Partido Democrá‑ tico ao poder em 1919, pois eram demasiado importantes para Por‑ tugal nos planos doméstico e colonial. Mais uma vez, agora ajudadas pela política de ralliement seguida pelo Papado, os constrangimentos diplomáticos impunham‑se à política portuguesa. A ênfase dada neste livro às relações bilaterais, obviamente ne‑ cessária num trabalho sobre política externa, serve ainda para tornar claras as deficiências de uma leitura histórica demasiado «nacional», ignorante dos avanços historiográficos feitos fora de Portugal. É este um perigo inerente a qualquer projecto comemorativo como aquele que assinala o centenário da República. Se a vida de Portugal entre 1910‑1926 foi, em larga medida, determinada pelo contexto interna‑ cional (e neste sentido a Primeira República não foi, claro está, ex‑ cepcional), então o historiador da República precisa de conhecer — e bem — a evolução política, social e económica dos países mais di‑ rectamente relacionados com Portugal. Edward Arnold, no seu con‑ tributo generalista, fala‑nos de uma França na qual a Terceira Repú‑ blica, tendo vencido os grandes combates internos, resistiu à invasão alemã de 1914, crendo assim falsamente que o seu ideário (tão próxi‑ mo, afinal, do português) continha as respostas às grandes questões da época. Num estudo mais detalhado, Romero Salvadó demonstra as dificuldades enfrentadas por uma Espanha que, apesar de neutra durante a guerra, viu a sua vida económica e social transformada du‑ rante o conflito. Escreve Romero Salvadó: […] a ordem vigente em Espanha representava a variante local do li‑ beralismo oligárquico e da política do clientelismo, um fenómeno intimamente ligado aos regimes baseados em princípios liberais e na representação política formal, mas com um sentido pouco desenvolvi‑ do de cidadania nacional e uma ênfase exagerada na questão local e na tradição. Incapaz de afirmar a sua força por vias constitucionais na sequên‑ cia da guerra, receosa do alastramento a Espanha do exemplo rus‑ so e desorientada pelas derrotas do exército em Marrocos, restou a esta classe dirigente apenas uma via — a da ditadura militar, através do general Primo de Rivera. As semelhanças nas crises do sistema [16] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império liberal‑democrático em Espanha e Portugal já foram discutidas an‑ tes, num formato comparativo, por historiadores portugueses e espa‑ nhóis — mas bem necessário é conhecer as circunstâncias específicas da Espanha para entender o seu relacionamento com Portugal duran‑ te este período. Uma terceira conclusão prende‑se com a dimensão colonial da di‑ plomacia portuguesa nestes 16 anos. Foi a República que, com a sua defesa intransigente do império colonial português antes, durante e depois da guerra, num contexto internacional, por outras palavras, de enormes mudanças em relação ao colonialismo, levou Portugal a um beco sem saída de que só escapou na década de 70. Aires Oliveira, um dos autores deste texto, lembra‑nos o caso de George Young, diplomata britânico conhecedor da realidade portuguesa. Young, surpreendentemente favorável ao regime republicano (uma raridade entre o corpo diplomático britânico da altura), aconselhou o governo português, na sua obra Portugal Old and Young (1917), a libertar o país do peso das colónias, que serviam unicamente para travar o desenvol‑ vimento da metrópole europeia. Mas as colónias faziam muito mais do que apenas absorver os recursos do «país mais pobre da Europa ocidental e mesmo um dos mais pobres de toda a Europa, empare‑ lhando com os países balcânicos», nas palavras de Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral — as colónias criavam pontos de tensão cons‑ tantes entre Portugal e as demais potências europeias, que desgas‑ tavam o regime (sendo a Alemanha substituída no papel de «papão», após a Grande Guerra, pela União Sul‑Africana) e institucionaliza‑ vam o sentimento de crise; contrariavam, graças à natureza do do‑ mínio colonial, especialmente em África, as aspirações humanitárias do programa republicano e qualquer simpatia que estas pudessem despertar no resto do mundo; e cegaram, com a sua promessa de ri‑ quezas incalculáveis e grandeza entre as nações, os dirigentes portu‑ gueses quanto à necessidade de encontrar soluções práticas para os problemas enfrentados pela população da metrópole. Um dia — não se sabia nem quando nem como — as colónias garantiriam a Portugal prosperidade e segurança; até lá, era necessário fazer todos os sacri‑ fícios — e não eram poucos — para as manter intactas. Nesse artigo pode ler‑se: À imagem dos seus antecessores, os governos republicanos continuaram a mostrar enormes dificuldades em encontrar um modelo satisfatório introdução [17] para gerir uma construção tão sobredimensionada como era o «terceiro império português». Não cessaram estas dificuldades em 1926, longe disso; podemos mesmo dizer que foram uma constante até 1974: mas o período da Grande Guerra e da Conferência de Paz foi a última ocasião em que, num clima liberal, se pôde discutir o porquê da «missão» colonial portuguesa: tal não aconteceu, cada sugestão ou crítica partida do estrangeiro sendo encarada como parte de uma vil conspiração para espoliar Portugal. A dimensão colonial e a falta de bom senso e de sentido prático demonstrada em relação às colónias, com reformas feitas à pressa, especialmente a partir de 1919, para garantir a continuidade da pre‑ sença portuguesa e não necessariamente o seu bom governo (e sobre‑ tudo a melhoria das condições das populações indígenas), levam‑nos ao evento que dominou a vida do regime republicano, como domi‑ nou a vida de toda a Europa, transformando a sua geografia política e as suas mentalidades: a Primeira Guerra Mundial. O exemplo espa‑ nhol, descrito por Romero Salvadó, sugere que a República não teria saído ilesa de uma situação de neutralidade. Portugal não dispunha dos recursos económicos, administrativos e políticos para fazer face ao impacto do conflito, mesmo que se tivesse mantido à sua mar‑ gem. Porém, como Ribeiro de Meneses (também autor deste texto) sugere, a liderança republicana, encabeçada por Afonso Costa, ao escolher não só intervir na guerra como ainda enviar um contingen‑ te militar para a Frente Ocidental (fazendo o mesmo em relação a Moçambique, nesse caso para invadir território alemão) agravou, e em muito, as consequências do conflito para Portugal. Essas conse‑ quências surgem em praticamente todas as contribuições deste livro. Para Ferreira da Silva e Amaral, «o impacto financeiro da guerra é tal que marca duradouramente a dúzia de anos da Primeira República que se segue ao eclodir do conflito no Verão de 1914». Aires Olivei‑ ra lembra as dificuldades sentidas pela delegação portuguesa (sendo Portugal o único país europeu cuja delegação teve dois presidentes) em defender os interesses coloniais, apesar dos sacrifícios humanos e materiais impostos pela beligerância. Cardoso Reis explica que a necessidade de criar consensos em tempo de guerra levou parte da classe dirigente republicana a procurar um novo entendimento com a Santa Sé. E a intervenção portuguesa não resolveu o desejado [18] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império equilíbrio nas relações com a Grã‑Bretanha, de quem Portugal se tornou muito mais dependente a partir do momento em que o seu governo conseguiu finalmente conquistar o estatuto de beligeran‑ te, contra os conselhos de muitos; lembra Ramos que «este enorme esforço a que obrigou o país e o exército só lhe terá tornado mais amargo constatar, em Dezembro de 1917, a indiferença ou mesmo a satisfação da Inglaterra quando o seu governo foi derrubado pelo major Sidónio Pais, antigo representante de Portugal na Alemanha». Manuela Franco, ao examinar a questão da desnacionalização de ci‑ dadãos portugueses de origem alemã, demonstra que Portugal par‑ ticipou no que Alan Kramer apelidou, recentemente, de «dynamic of destruction»: o abandono de práticas, leis e costumes, quer nas fren‑ tes de combate, quer domesticamente, de forma a garantir a vitória numa guerra à escala planetária. Está o volume dividido em três partes. Na primeira, «Factores Per‑ manentes», estão agrupadas as contribuições que abordam questões relevantes para o estudo da política externa da Primeira República ao longo de toda a sua existência: o evoluir do republicanismo francês; o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a sua adaptação ao novo regime; a situação financeira e monetária de Portugal; e a situação das colónias portuguesas. Na segunda parte são focadas algumas das relações bilaterais mais relevantes: Grã‑Bretanha, Estados Unidos da América, Espanha, Brasil e Santa Sé. A terceira parte, «A Grande Guerra e as Suas Consequências», reúne textos sobre a decisão de criar o Corpo Expedicionário Português, a enviar para a Frente Oci‑ dental; o tratamento dado aos cidadãos de países inimigos; a experi‑ ência espanhola da guerra; a nova ordem colonial ditada pelo Tratado de Versalhes e a participação portuguesa na SDN (tema revisitado por Medeiros Ferreira, que em 1992 lhe dedicou um estudo pioneiro). Feita a apresentação da obra, os organizadores gostariam ainda de formular um desejo: o de que este volume possa de alguma forma contribuir para a reanimação do interesse de investigadores mais jo‑ vens pelo estudo das relações internacionais da Primeira República. Uma futura agenda de investigação em torno dessa temática terá de assentar, por um lado, num esforço empírico mais extenso do que aquele que foi possível realizar nos últimos anos e, por outro, na co‑ locação de novas hipóteses de trabalho. Para além do acervo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um recurso mais sistemático a vários fundos estrangeiros, como vem introdução [19] acontecendo para outros períodos da história da política externa por‑ tuguesa, poderá proporcionar uma imagem muito mais nuanceada da trama de relacionamentos bilaterais e multilaterais que o regime re‑ publicano foi construindo, sobretudo no até aqui muito negligencia‑ do período do pós‑guerra. Estudos biográficos mais elaborados de figuras proeminentes na política externa e diplomacia republicanas, tais como Bernardino Ma‑ chado, Augusto Vasconcelos, Manuel Teixeira Gomes, Egas Moniz, o visconde de Alte, Teixeira de Sampaio, Augusto Freire de Andrade, Norton de Matos, Brito Camacho, entre muitos outros, ajudar‑nos‑iam a compreender melhor a complexidade do processo decisório no regime republicano. Em dossiês envolvendo grandes negociações internacio‑ nais (caso dos contratos coloniais ou das comunicações e transportes), por exemplo, um estudo mais denso desses intérpretes poderia trazer nova luz sobre a imbricação entre a política interna, os grupos de pressão organizados (nacionais e estrangeiros) e a acção diplomática do Estado. A participação portuguesa na Sociedade das Nações (especial‑ mente relevante no plano técnico‑financeiro e colonial, como ficou patente em alguns dos artigos reunidos neste volume), uma das apos‑ tas mais emblemáticas da política externa republicana, permanece ainda muito pouco examinada — e este seria um tema particularmen‑ te pertinente para a inserção de investigadores portugueses nas redes internacionais que se ocupam do estudo da organização genebrina e dos problemas que aí foram estudados e debatidos. A acção diplomática da República em contextos extra‑europeus, nomeadamente no continente asiático, justificada pela sobrevivência das possessões portuguesas na China, na Índia e no Pacífico, é também ela mal conhecida, sendo que foi nessas regiões que o desafio dos na‑ cionalismos aos impérios europeus se colocou com maior premência a seguir a 1918, deixando as sementes para o arranque do movimento descolonizador no pós‑ Segunda Guerra Mundial. O mesmo se poderia dizer, aliás, da actuação diplomática dos altos‑comissários da Repúbli‑ ca em Angola e Moçambique — uma página da história do império português onde distinguir mito e realidade está longe de ser simples —, sendo certo, porém, que o lastro de controvérsia que daí resultou acabaria por se converter num dos factores determinantes para o co‑ lapso do regime fundado a 5 de Outubro de 1910. Por fim, e para além do importante apoio recebido das instituições atrás referidas, cumpre-nos deixar aqui uma palavra de agradecimento a duas pessoas cujo empenho se mostrou decisivo para a boa conclusão deste projecto: o Dr. Carlos Gaspar, director do IPRI aquando da rea‑ lização do colóquio, e o embaixador Carlos Neves Ferreira, presidente do Instituto Diplomático. Lisboa, Agosto de 2011 .1. Factores Permanentes Álvaro Ferreira da Silva. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestre em Sociologia Histó‑ rica pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e doutorado pelo Instituto Universitário Europeu (Florença). Professor associado da Faculdade de Economia da UNL, tem centrado a sua investigação mais recente na história empresarial, história tecnológica e história urbana. Bruno Cardoso Reis. Historiador e politólogo, é autor de vários trabalhos sobre história e relações internacionais, e mais especifica‑ mente sobre as relações entre religião e política internacional, entre os quais Salazar e o Vaticano (2008). Doutorado pelo King’s College de Londres, é actualmente investigador no Instituto de Ciências Sociais e investigador associado do King’s College. Edward J. Arnold. Professor de Estudos Franceses no Trinity Col‑ lege, em Dublin. A sua principal área de estudos é a ascensão da extrema‑direita na França contemporânea. A sua tese de doutora‑ mento intitula‑se Les Syndicats «jaunes». Une contre‑révolution en milieu prolétarien, 1899‑1912 (1994). Coordenador e co‑autor de The Develop‑ ment of the Radical Right in France from Boulanger to Le Pen (2000). Fernando Martins. Licenciado em História e mestre em Histó‑ ria dos séculos xix e xx pela Faculdade de Ciências Sociais e Huma‑ nas da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado pela Universidade de Évora, onde lecciona História Contemporânea. Investigador do CIDEHUS‑UÉ e colaborador do IHC‑FCSH. [396] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império Filipe Ribeiro de Meneses. Doutorado em História pelo Trinity College, Dublin. Professor no departamento de História Moderna da National University of Ireland, Maynooth. Autor de vários livros de história contemporânea, entre os quais União Sagrada e Sidonismo (2000), Salazar. Uma Biografia Política (2010) e Afonso Costa (2010). Francisco Romero Salvadó. Doutorado pela Universidade de Londres, é actualmente professor na Universidade de Bristol. Au‑ tor de vários estudos sobre história contemporânea de Espanha, entre os quais Twentieth Century Spain: Politics and Society, 1898– 1998 (1999), Spain, 1914–1918: Between War and Revolution (1999), The Spanish Civil War: Origins, Course and Outcomes (2005) e The Foundations of Civil War. Revolution, Social Conflict and Reaction in Spain, 1916–1923 (2008). Hipólito de la Torre Gómez. Professor Catedrático de Histó‑ ria Contemporânea da UNED (Madrid), é membro corresponden‑ te das academias da História de Portugal e de Espanha, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e da Academia das Ciências de Lisboa. É autor de vários livros sobre relações luso-espanholas, política externa portuguesa e espanhola e história contemporânea de Portugal, sendo as suas mais recentes publicações: El Imperio del Rey. Alfonso XIII, Portugal y los Ingleses, 1907-1916 (2002), Portugal en el Exterior: Intereses y Po‑ lítica Internacionales, 1807-1974 (2006) e O Estado Novo de Salazar (2011). José Medeiros Ferreira. Professor aposentado no departamento de História da Universidade Nova de Lisboa. Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, foi membro do Parlamento Europeu e depu‑ tado à Assembleia da República. Autor de vários livros, entre os quais O Comportamento Político dos Militares (1992), Portugal em Transe (1994) e Cinco Regimes na Política Internacional (2006). Luciano Amaral. Licenciado em História e mestre em História dos séculos xix e xx pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado pelo Instituto Univer‑ sitário Europeu (Florença), é docente na Faculdade de Economia da UNL. Autor de Economia Portuguesa. As Últimas Décadas (2010) e coordenador (e co‑autor) da obra Outubro: a Revolução Republicana em Portugal, 1910‑1926 (2011). notas biográficas [397] Luís Nuno Rodrigues. Doutor em História pela Universidade de Madison, EUA. Professor associado com agregação no departa‑ mento de História do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, é investigador do CEHCP‑IUL e do IPRI‑UNL. Autor de Salazar e Kennedy: a Crise de Uma Aliança (2002) — que recebeu os prémios da Fundação Mário Soares e Aristides Sousa Mendes —, No Coração do Atlântico (2005), Marechal Costa Gomes (2008) e Spínola (2010). Manuela Franco. Licenciada em Direito, é diplomata de carreira. Investigadora do IPRI e professora convidada do departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi secretária de Estado dos Negó‑ cios Estrangeiros e da Cooperação do XV Governo Constitucional. Autora de vários estudos sobre temas de política externa portuguesa. Nuno Severiano Teixeira. Professor na Universidade Nova de Lis‑ boa e director do IPRI‑UNL. Antigo ministro da Administração In‑ terna e da Defesa Nacional. Autor de vários trabalhos na área da his‑ tória militar e da história das relações internacionais, entre os quais O Poder e a Guerra. Objectivos Nacionais e Estratégias Políticas na Entrada de Portugal na Grande Guerra, 1914‑1918. (1996). Pedro Aires Oliveira. Doutorado em História Institucional e Política pela Universidade Nova de Lisboa, é docente no departa‑ mento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador do Instituto de História Contemporânea e do IPRI‑UNL. Autor de Armindo Monteiro. Uma Biografia Política (2000) e Os Despojos da Aliança. A Grã‑Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa 1945‑1975 (2007). Robert McNamara. Doutorado em História pela National Univer‑ sity of Ireland (Cork), é professor de História Internacional na Uni‑ versidade de Ulster (Irlanda do Norte). Autor de Britain, Nasser and the Balance of Power in the Middle East from the Egyptian Revolution to the Six‑Day War (2003) e The Hashemites: The Dreams of Arabia (2010). Rui Ramos. Investigador do Instituto de Ciências Sociais. Especia‑ lista em história de Portugal dos séculos xix e xx, realizou o seu dou‑ toramento em Oxford com uma tese sobre Oliveira Martins. Autor [398] a 1 república portuguesa: diplomacia, guerra e império de vários livros e ensaios sobre o Portugal contemporâneo, entre os quais A Segunda Fundação 1890‑1926 (1994), João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal 1885‑1908 (2001), D. Carlos (2006) e História de Por‑ tugal (2009). Thiago de Almeida Carvalho. Licenciado em História pela Fa‑ culdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e mestre em História Contemporânea pelo ISCTE. Autor de Do Lirismo ao Pragmatismo. A Dimensão Multilateral das Relações Luso ‑Brasileiras, 1974‑1976 (2008). Investigador do IPRI, prepara actual‑ mente uma tese de doutoramento sobre as relações luso‑brasileiras na segunda metade do século xx. foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso pela Guide, Artes Gráficas, sobre papel Coral Book de 80 gramas, no mês de Setembro de 2011.