CIÊNCIA AMBIENTE Fim do mistério Há muito mercúrio natural no Rio Negro, sem relação com o garimpo ma pesquisa realizada entre setembro de 1995 e janeiro pasU sado na bacia do Rio Negro, na Amazônia, desfaz a conexão tradicional entre contaminação de populações ribeirinhas por mercúrio e atividade garimpeira. O garimpo utiliza o mercúrio para amalgamar o ouro, especialmente em baixos teores, e assim viabilizar a atividade, num processo que afeta todo o ecossistema. No Rio Negro e seus afluentes de águas pretas, no entanto, a alta concentração deste mineral deve-se a emanações naturais do solo em interação com complexos processos naturais, como a ação fotoquímica da luz solar. O que os pesquisadores definem como efeito redox inibe a volatilização do mercúrio em corpos de água preta, ricos em matéria orgânica e com baixo pH. Essa inibição torna esses corpos d'água ricos em teores de mercúrio, a exemplo do que ocorre em regiões afetadas pela industrialização. O trabalho Química Aquática do Mercúrio no Rio Negro: Importância da Luz Solar nos Processos Redox, coordenado pelo professor Wilson de Figueiredo Jardim, do Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ), com participação de investigadores científicos de outras entidades nacionais, permitiu que um dos pesquisadores, diretamente envolvido com as investigações, Pedro Sérgio Fadini, obtivesse seu título de doutorado naquela universidade. Se de um lado a pesquisa, que recebeu um auxílio da FAPESP de R$ 36,2 mil, possibilitou novos conheci32 • OUTUBRO DE 1999 • PESQUISA FAPESP mentos sobre a dinâmica do mercúrio nos 700 mil km 2 da bacia do Rio Negro, de outro, estimula investigações complementares. Essas pesquisas adicionais devem responder por que populações com alto teor de mercúrio no organismo não desenvolveram sintomas clássicos dessa intoxicação com essas substâncias, como perda de visão periférica e tremores no corpo, avalia Jardim, que também foi o orientador da tese de doutorado. Rio Negro, no Amazonas: quantidades espantosas de mercúrio, que se acumula nos peixes e nos moradores da região Amostras de cabelos: As pesquisas envolvendo o mercúrio na bacia do Rio Negro, uma área equivalente a um sexto de toda a Amazônia Legal, tiveram como ponto de partida um levantamento feito no início da década pelo pesquisador Bruce Forsberg, do Instituto Nacional da Pesquisas éia Amazônia (Inpa), de Manaus. O levantamento de Forsberg mostrou concentrações elevadas de mercúrio em amostras de cabelo de populações ribeirinhas, numa média de 75 miligramas por quilo, mas atingindo até 171 miligramas por quilo. A concentração limite em cabelos está estabelecida em 10 miligramas por quilo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir de 30 mg/kg, a pessoa começa a exibir sintomas da contaminação. Forsberg e seus colaboradores também detectaram concentrações elevadas de mercúrio no organismo de peixes predadores típicos da Amazônia, como o tucunaré. Esse trabalho pioneiro foi justificado pela intenção demonstrada pela Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coo- gam) de envolver-se com a extração do ouro no Vale do Rio Negro. O desejo de Forsberg, neste caso, era montar um banco de dados de referência envolvendo os teores de mercúrio distribuídos na região antes da eventual ocorrência dessa ação antrópica e localizada. As altas concentrações detectadas por essa primeira pesquisa numa região onde até então o garimpo era reprimido levaram a Unicamp a interessar-se pelo estudo, apoiada pela FAPESP, justifica Jardim. Foi quando começou o trabalho que, ao final de quase quatro anos, reformulou metodologias científicas, detectou processos naturais de contenção do mercúrio em rios de águas pretas como o Negro, estabeleceu novos parâmetros para a discussão da contaminação mercurial, demonstrou o risco de se praticar o garimpo com uso desse metal e também apontou para a necessidade de novas pesquisas, na área médica, capazes de explicar a inibição dos sintomas de intoxicação. coluna d'água e conseqüentemente na biota, descobriram os autores deste estudo. Antes deste trabalho realizado pela Unicamp, aceitava-se a associação única e direta entre garimpo com uso de mercúrio e altas concentrações desse poluente no ambiente, especialmente no organismo de populações ribeirinhas, pois o mercúrio tem efeito cumulativo e sua concentração ocorre principalmente pela cadeia alimentar. A partir do paradoxo determinado pela equipe de Forsberg, os trabalhos conduzi- dos sob a direção de Jardim mostraram que os solos da bacia do Rio Negro - que ao desaguar no Solimões, na altura de Manaus, forma o Rio Amazonas- são ricos neste mineral. A liberação constante desses estoques naturais, especialmente estimulada por processos de cheia e vazante da bacia, além da atuação da fotoquímica solar, intensa na região, são os responsáveis pelas elevadas concentrações de mercúrio na Estoques naturais: Escavações realizadas a até um metro de profundidade em diferentes pontos da área investigada pelo trabalho conduzido por Jardim indicaram teores de mercúrio que, levando em conta a área de 700 mil km 2 da bacia do Rio Negro, somam uma disponibilidade natural de 126 mil toneladas de mercúrio na região estudada. Esses índices, consideram Fadini e Jardim, são incompatíveis com o aporte trazido pelo garimpo na Amazônia, estimado entre um mínimo de 4,6 a um máximo de 6,7 toneladas/ano. Medições atmosféricas realizadas também a um metro do solo permitiram estabelecer um estoque de mercúrio na atmosfera da região de 10,8 toneladas, enquanto um ciclo complexo do metal no ambiente, com influência especialmente da radiação solar, permitiu estimar uma deposição anual de 14 toneladas/ano de mercúrio sobre a região. Considerando-se ainda o teor do metal presente nas águas do Negro, com uma descarga de 29 mil m 3 por segundo no Solimões, os pesquisadores estabeleceram uma exportação anual de mercúrio, apenas pelo Rio Negro, de 4,1 toneladas/ano. Esse total é quase equivalente ao aporte mínimo considerado para a atividade garimpeira e assim também não pode ser justificado apenas por essa intervenção humana. O mercúrio está presente no ambiente a partir de liberações naturais como vulcanismo, volatilização de corpos aquáticos e emanações da crosta terrestre. A forma dominante desse mineral na atmosfera é a gasosa, onde, segundo Fadini, é pouco solúvel em água. Essa característica, de acordo com o pesquisador, "implica um tempo de residência relativamente longo", estimado em um ano. A velocidade com que esse elemento é removido da atmosfera para depositar-se sobre o solo ou nas águas depende de vários processos físico-quíPESQUISA FAPESP · OUTUBRO OE 1999 • 33 utilizados como preservantes em grãos na Europa e América do Norte". Esses grãos, consumidos por pássaros e pequenos mamíferos, atingiram predadores maiores como águias, falcões e corujas. Mas a contaminação não ficou apenas nos animais. Ainda nos anos 60, agricultores e seus familiares que consumiram grãos tratados com fungicidas à base de metil e etilmercúrio, especialmente pelo consumo de pão caseiro, também foram afetados. Apenas no Iraque, os dados demonstram que 6 mil pessoas morreram vítimas desse tipo de intoxicação no início da década de 70. Como resultado desses g acidentes, os governos comeFadini (esq.) e Jardim: estudo das O ciclo do mercúrio na bacia do Rio Negro . origens e das conseqüências do acúmulo ~ çaram a controlar as emisde mercúrio na bacia do Rio Negro ~ sões do mercúrio decorren"' tes da ação do homem. Com DISPO SI ÃOATMOSFÉRICA = 14 tano· l base no levantamento de vámicos que o confinam no estado gaAPORTE DE ESTOQUE ATMOSFÉRICO = 10,8 t GARIMPOS: soso ou particulado. rios autores, Fadini sustenta 4,6 a 6,7 t ano· TEMPO DE RES I ST~NC I A NA ATMOS FERA ;::; 0,8 ano Na água, o metal sofre modificaque as emissões de mercúrio na atmosfera caíram de ções físico-químicas e fotoquímicas provocadas por processos bióticos 10 mil a 30 mil toneladasou abióticos. E uma das descoberano na década de 70 para tas interessantes, interpreta Jardim, apenas 1 mil a 6 mil na dé"foi justamente estabelecer que, nas cada seguinte. Em casos de águas pretas, como é o caso do Rio intoxicação pelo metilmerNegro, um processo físico-químico cúrio, as investigações deESTOQUE NO PRIMEIRO METRO DE SOLOS = 126.000 t deflagrado por mecanismos fotomonstraram que a vida intraquímicos cria uma contenção que uterina é a mais sensível, EXPORTAÇÃO FLUVIAL= 4,1t ano· I inibe a volatilização do mercúrio, produzindo deformações impedindo que ele atinja a atmosferesultantes do que pode ser uma interferência dessa substância ra e se espalhe por via aérea". Nas O risco ambiental representado nos processos de divisão celular. Nas águas claras de rios como o Branco e pelo mercúrio começou a despertar intoxicações severas do feto, deo Solimões, onde a concentração de atenção nos anos 60, especialmente monstra Fadini, "relatos apontam pamatéria orgânica é menor, esse procom a contaminação da Baía de Micesso não se manifesta, avaliam os ra problemas neurológicos graves, namata, no Japão, onde uma indúsinclusive com má formação cefálica". pesquisadores. O resultado disso, é tria, a Chisso, que utilizava esse meAí emerge um segundo paradoxo que os corpos de água preta, caso do tal como catalisador, atirou com Rio Negro, são mais ricos em merdo mercúrio na região estudada. Se displicência, durante anos, resíduos cúrio. Daí a maior contaminação da a análise de cabelos de populações do metilmercúrio nas águas. Essa é a fauna aquática e da população ribeiribeirinhas aponta para elevados ínforma química mais tóxica do merrinha local. dices de contaminação, o que explicúrio. A intoxicação, que ficou coca que eles não tenham desenvolAs contribuições do ser humano nhecida como Doença de Minamapara a concentração de mercúrio no vidos os sintomas esperados, como ta, afetou pelo menos 2.252 pessoas, ambiente, localiza Fadini, "começaperda da visão periférica e tremores com 1.043 mortes. ram com a Revolução Industrial, quansemelhantes aos produzidos pela malária? Os pesquisadores entendem do o metal começou a ser usado para Efeitos ambientais: Em seguida ao que essa resposta só pode ser dada a produção de produtos como lâmacidente de Minamata, mostra Fadipadas, baterias, termômetros, barôpor uma pesquisa complementar. ni em sua tese de doutorado, "seguimetros e ainda com emprego na proAdmitem que alguns casos podem ram-se constatações de biomagnifidução de pesticidas e tintas". ser simplesmente confundidos com cação de fungicidas mercuriais ·;;; I 34 • OUTUBRO DE 1999 • PESQUISA FAPESP a malária. Mas aceitam também que isso possa estar relacionado às elevadas quantidades de selênio, elemento presente na castanha-do-pará, que integra a dieta alimentar da população local. "O selênio pode estar por trás dessa inibição, ou pode estar ocorrendo até mesmo um processo de adaptação por tolerância ao mercúrio", considera Jardim. Ocupação do solo: O trabalho pio- neiro de Forsberg, segundo Fadini, já encontrou concentrações de mercúrio em peixes do Rio Negro e seus tributários bem maiores que as detectadas em rios de outras regiões amazônicas. Exemplares coletados no Rio Negro demonstraram até 2,63 miligramas de mercúrio por quilo, em oposição ao máximo de 0,71 miligrama por quilo de coletas feitas em regiões distintas e isentas de garimpo. No Brasil, o limite de tolerância estabelecido para o mercúrio é de 0,5 miligrama por quilo. Essas altas taxas de mercúrio em peixes do Rio Negro são semelhantes às registradas em áreas antigas de garimpo e com problemas crônicos de contaminação por mercúrio, compara Jardim. O perfil vertical (escavações) da distribuição do mercúrio ao longo dos testemunhos dos sedimentos de lagos estudados sugere que atualmente as taxas de acumulação do metal na Amazônia são maiores que no passado. Isto está sendo avaliado em parceria com uma equipe liderada pelo professor Antonio Mozeto, da Universidade Federal de São Carlos, que está realizando trabalhos de datação dos sedimentos. As primeiras evidências, no entanto, avalia Fadini, "sugerem que o mercúrio realmente apresenta um ciclo global e que o incremento das deposições atmosféricas em função da industrialização já detectado em lugares remotos de outras regiões do mundo pode também estar acontecendo na Amazônia': O pesquisador também não descarta a possibilidade de que, na Amazônia, a liberação do mercúrio de origem natural possa estar au- mentando em conseqüência da intensificação de usos e ocupação dos solos da região. Assim, do ponto de vista ambiental, o problema desloca-se do garimpo para o desmatamento, queimada ou criação de pastagens de maneira indiscriminada. Contribuição científica: Os pesquisadores avaliam que o trabalho que realizaram traz uma série de contribuições à percepção da dinâmica ambiental na bacia do Rio Negro. Avaliam, por exemplo, que os teores de mercúrio encontrados sugerem um cuidado para qualquer aparte adicional desse minério na região, o que, em princípio, inibe qualquer ini- posta é a implantação de um programa de educação ambiental para esclarecer a população dos riscos de contaminação por mercúrio e da conveniência de se preferir peixes não predadores, especialmente para consumo por mulheres grávidas. A médio e longo prazos, sugere-se um plano de gerenciamento da região para determinar o uso e ocupação mais conveniente para o solo e demarcar a intensidade e extensão das atividades extrativistas. • PERFIS: • WILSON DE FIGUEIREDO JARDIM tem 45 anos, graduou-se em Quí- Os instrumentos de pesquisa: formas de conter o impacto ambiental ciativa ligada ao garimpo do ouro. Além disso, as atividades que implicam a remoção de cobertura vegetal, queimada de floresta e perturbação das margens do Negro e seu sistema de afluentes, com aumento do assoreamento, devem ser evitadas. Os pesquisadores também sugerem iniciativas e pesquisas complementares capazes de minimizar o impacto dos elevados teores naturais de mercúrio no ambiente regional. Neste caso está incluído diagnóstico mais detalhado da extensão da contaminação pela análise de amostras de cabelo. Eles defendem ainda o incentivo a técnicas agrícolas capazes de estimular uma diversidade agrícola para a ampliação da dieta alimentar. Outra iniciativa pro- mica na Universidade Federal de São Carlos e fez o doutorado na Universidade de Liverpool, Inglaterra. É professor do Departamento de Química Ambiental do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1985. • PEDRO SÉRGIO FADINI graduou-se em Química na Universidade Federal de São Carlos e fez mestrado e doutorado na Unicamp. É professor do Instituto de Ciências Biológicas e Química da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Projeto: A Química Aquática do Mercúrio no Rio Negro: Importância da Luz Solar nos Projetas Redox Investimento: R$ 36.207,09 PESQUISA FAPESP · OUTUBRO OE 1999 • 35