UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO PATRICIA MARTINS PENNA Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades São Paulo 2009 PATRICIA MARTINS PENNA Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades Dissertação apresentada a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Sociologia da Educação Orientadora: Profa. Dra. Marilia Pinto de Carvalho São Paulo 2009 AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo 37.047 P412c Penna, Patricia Martins Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades / Patricia Martins Penna; orientação Marilia Pinto de Carvalho. São Paulo: s.n., 2009. 133p. ; anexos Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de Concentração: Sociologia da Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 1. Rendimento escolar 2. Relações de gênero 3. Relações étnicas e raciais 4. Crianças 5. Etnografia I. Carvalho, Marilia Pinto de, orient. FOLHA DE APROVAÇÃO Patricia Martins Penna Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades Dissertação apresentada a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Sociologia da Educação Aprovado em: Banca Examinadora Prof. Dr. _______________________________________________________________ Instituição:___________________________ Assinatura:________________________ Prof. Dr. _______________________________________________________________ Instituição:___________________________ Assinatura:________________________ Prof. Dr. _______________________________________________________________ Instituição:___________________________ Assinatura:________________________ DEDICATÓRIA Aos meus pais, Raimundo e Floriza. Com amor, respeito e gratidão. AGRADECIMENTOS A minha orientadora, Marilia Pinto de Carvalho, quem admiro por sua sabedoria, seriedade, respeito e dedicação nas atividades acadêmicas. Ainda agradeço o carinho, a amizade, a paciência e a confiança sempre demonstrados nos últimos dez anos que compartilhamos trajetórias. Às participantes da banca examinadora do Relatório de Qualificação, a professora Flávia Inês Schilling e a professora Tânia Mara Cruz, pelas imprescindíveis observações tecidas acerca da leitura do relatório. Estas foram fundamentais para o enriquecimento e desenvolvimento da pesquisa. A todos aqueles que se dispuseram a ler, reler e descobrir as entrelinhas dos meus textos, desde o projeto de pesquisa, compartilhando idéias, inquietações, dúvidas. À direção, coordenação pedagógica, professores e funcionários da escola em que realizei a pesquisa. Especialmente à professora e aos alunos e alunas da turma pesquisada pelo acolhimento, interesse, entusiasmo e ensinamentos que me proporcionaram ao longo do trabalho de campo. Aos meus alunos e alunas, de ontem, de hoje e de amanhã, por me fazerem ser uma pessoa cada vez melhor. A todos que me abraçaram com amor e carinho. Amigos e amigas de muito perto, de perto, de longe, de muito longe... Mas sempre presentes. Cada palavra, cada gesto, cada olhar, cada sorriso, cada auxílio, trago em minha memória e em meu coração. Esse trabalho não seria concluído sem a presença de vocês. Àqueles que me ensinaram as alegrias e dores da vida: minha admirada família, pela paciência, compreensão, cuidado e amor. A eles dedico esse trabalho. RESUMO PENNA, Patricia Martins. Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. O objetivo desta pesquisa é compreender como alunos constroem ativamente estratégias de visibilidades e invisibilidades no cotidiano de sala de aula frente ao olhar do professor, buscando entender como essas estratégias marcam suas trajetórias escolares e quais sentidos representam no “tornar-se” aluno. Para tanto, foi importante um olhar mais atento às práticas escolares, nitidamente marcadas por gênero e raça, e aos seus efeitos no rendimento escolar. A pesquisa com enfoque etnográfico foi realizada em uma escola pública do Município de São Paulo e contou com observações do espaço escolar, tendo como foco uma sala de aula de quarto ano do ensino fundamental, e entrevistas semi-estruturadas com a professora e alunos da turma investigada. De forma implícita, esse estudo vincula estratégias de visibilidade ou não a desempenho escolar e, portanto, traz questionamentos acerca da efetiva aquisição de conhecimento. Palavras chave: Desempenho escolar. Gênero. Raça. Crianças. Etnografia. ABSTRACT PENNA, Patricia Martins. Scenes of daily life at school: visibilities and invisibilities. Dissertation (Master Thesis) – Faculty of Education, University of São Paulo, São Paulo, 2008. The objective of this research is to comprehend how students actively build strategies of visibility and invisibility in a school daily basis in relation to the teacher’s perception. It is an attempt to understand how these strategies influence students’ school trajectories and the role they represent at the “becoming a student” progress. It was important thus to have an attentive look at schooling practices, clearly marked by gender and race, and to their effects on school performance. The ethnographic research was developed at a public school in Sao Paulo. The observations were focused on a fourth grade classroom and there were semi-structured interviews with its teacher and students. Implicitly, this study relates strategies of (in)visibility and school performance. As a result, it brings some questions about the effective acquisition of knowledge. Key words: School performance. Gender. Race. Children. Ethnography. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 17 DEFINIÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA 18 PARTE 1: CAMINHOS PERCORRIDOS 24 1.1 ESCOLHA E ENTRADA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR 24 1.2 PESQUISA DE CAMPO: OLHAR ETNOGRÁFICO 31 A) OBSERVAÇÕES DO ESPAÇO ESCOLAR 33 B) ENTREVISTAS COM A PROFESSORA 37 C) TESTE SOCIOMÉTRICO 39 D) QUESTIONÁRIO DE AUTO-ATRIBUIÇÃO DE COR/RAÇA 42 E) QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO 47 F) ENTREVISTAS COM AS CRIANÇAS 49 PARTE 2: CENAS DO COTIDIANO ESCOLAR 53 CAPÍTULO 1 – A TURMA PESQUISADA: 4º ANO C E SUA PROFESSORA 57 CAPÍTULO 2 – VISIBILIDADES EM SALA DE AULA: 66 2.1 “SUCESSO” DECLARADO 68 A) ESPERTO/A, PARTICIPATIVO/A, ESTUDIOSO/A, LEGAL 68 B) ESPERTA, TRANQUILA, ESTUDIOSA, BACANA 71 2.2 “FRACASSO” PREVISTO 76 A) DISPERSO, NÃO ENVOLVIDO, INDISCIPLINADO 76 B) INVISÍVEL, QUIETO/A, IMATURO/A, INFANTIL 79 2.3 ENTRE A BUSCA POR “SUCESSO” E A FUGA DO “FRACASSO” 86 A) LEGAL, INTERESSANTE, AVOADO 86 B) DISTRAÍDA, PREOCUPADA COM OUTRAS QUESTÕES 90 C) RESISTÊNCIA COM CONCEITOS RAZOÁVEIS 93 CAPÍTULO 3: INVISIBILIDADES: VER E NÃO SER VISTO 101 3.1 “SUCESSO” ESCONDIDO 103 3.2 “FRACASSO” DISFARÇADO 108 CONSIDERAÇÕES FINAIS 115 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119 ANEXOS 123 ANEXO A – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DA ENTREVISTA REALIZADA COM A PROFESSORA 124 ANEXO B – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DAS ENTREVISTAS REALIZADAS COM AS CRIANÇAS EM GRUPOS 125 ANEXO C – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DAS ENTREVISTAS REALIZADAS COM AS CRIANÇAS EM DUPLAS ANEXO D – TABULAÇÃO DOS DADOS SOCIOECONÔMICOS 126 127 INTRODUÇÃO Este é, antes de tudo, um trabalho de uma professora-pesquisadora. Isso implica conseqüências sobre as quais julgo necessário refletir: por um lado, acredito ser fundamental que professores busquem pensar sobre sua experiência na área de educação, pois a pesquisa acadêmica é uma oportunidade importante para superar explicações superficiais freqüentes na agitação cotidiana e ver de outra maneira o que a realidade nos apresenta; por outro lado, pude, ao longo dessa pesquisa, perceber que meu olhar de professora precisou ser contestado e substituído por um olhar crítico e questionador sobre a problemática inicial. Acompanhar o cotidiano de uma turma do 4º ano do ensino fundamental, buscar compreender a diversidade de fatos, temas, motivações e conflitos dessa realidade levanos a um certo decifrar. Decifrar o que há por trás de uma cena corriqueira, de falas comuns, de atitudes esperadas, da ordenação clara e óbvia. Neste trabalho, ao adentrar no dia-a-dia de uma professora e seus trinta e três alunos e alunas, busquei responder, inicialmente, a seguinte questão: haveria crianças construindo um lugar de invisibilidade naquele coletivo? É fato que há na escola um enfoque especial aos alunos que se destacam, seja por apresentarem ótimos conceitos ou por terem algum tipo de dificuldade escolar. Deles falamos, comentamos, refletimos acerca de seus avanços e retrocessos e apontamos alternativas para o trabalho. No entanto, há um grande número de alunos e alunas sobre os quais não temos muitos comentários a tecer. A minha hipótese inicial era de que alguns deles colocavam-se como invisíveis no meio de muitos bastante visíveis. Invisíveis frente ao olhar da professora no agitado cotidiano de sala de aula repleto de demandas. Em busca de desvelar aquele cotidiano e perceber as relações e os sentidos produzidos por professora e alunos, iniciei um trabalho de observação em campo. Efetivamente, as observações dessa pesquisa indicaram que o estar presente em aula, o simples cumprir as atividades esperadas, o silenciar no meio dos que falam, o não movimentar-se na inquietude de outros parecem garantir a invisibilidade de alguns alunos e alunas ante o olhar da professora. No entanto, entre idas e vindas a campo, evidenciou-se a necessidade de pensar o outro lado da questão da invisibilidade: quem tem visibilidade e por quê. A 17 diversidade da sala de aula e as relações ali estabelecidas demonstraram atitudes nem sempre esperadas do grupo de crianças. O que de início foi o foco da presente pesquisa (as invisibilidades em sala de aula) mostrou-se parte de um todo. Partindo de um olhar negativo sobre crianças que construíam estratégias para manterem-se “invisíveis”, considerando que poderia ser uma forma de ocultar dificuldades escolares, a pesquisa caminhou na direção de observar também outros pontos importantes, eventualmente positivos, para pensarmos visibilidades ou invisibilidades1 em sala de aula ante o olhar da professora. Mais que isso, o objetivo não foi apresentar crianças que têm tido um trabalho ativo de tentativa de construção de uma invisibilidade na escola como um problema. Dessa forma, é importante ressaltar que não pretendo ampliar o escopo de “alunos problema” que fogem dos padrões de comportamento ideais na escola e indicar soluções. O que esse estudo pretende ser é uma pequena contribuição aos trabalhos sobre cotidiano escolar com ênfase nas interações estabelecidas entre os seus atores e suas conseqüências para o desempenho escolar, por meio da observação do modo pelo qual alunos e alunas constroem estratégias diante do que a professora (escola) espera deles e também do que eles pensam sobre esse processo. DEFINIÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA “A ideologia não está fora de nós como um poder perverso que falseia nossas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez porque tenhamos boas intenções.” (Chauí, Cultura e Democracia, 2006) Considerando que toda problematização de pesquisa surge da própria vida dos pesquisadores - de suas histórias individuais e coletivas; de suas trocas de conhecimento e das “inquietações, indignações, desejos, sonhos e utopias que (...) traz consigo como sujeito 1 sócio-histórico” (Teixeira, 2003), este trabalho está relacionado a Como esses termos aparecerão no texto muitas vezes juntos, utilizarei a forma (in)visibilidades. 18 questionamentos que trago enquanto auxiliar de pesquisa e professora do ensino fundamental. Durante os anos de 2000 e 2001, auxiliei a professora Marilia Pinto de Carvalho em sua pesquisa “Escola e relações de gênero: explorando as causas do fracasso escolar de meninos e rapazes”. Em paralelo, desenvolvi um estudo de iniciação cientifica2 com a temática do fracasso escolar e gênero. Pouco depois, nos anos de 2004 e 2005, trabalhei com crianças com dificuldades no contexto escolar, num atendimento em pequenos grupos, em uma escola pública do município de São Paulo. Por isso, participei de reuniões dos Conselhos de Classe das turmas dos dois últimos anos do primeiro ciclo (3º e 4º anos) e dos dois primeiros anos do segundo ciclo (5º e 6º anos) do ensino fundamental. Nos Conselhos de Classe, naquela escola como em outras em que já trabalhei e como pude verificar conversando com professoras de outras escolas, era comum escutarmos as palavras “mediano” e “esforçado” e expressões como “tudo bem”, “sem problemas”, “apresenta dificuldades, mas não é preciso freqüentar um trabalho extraclasse...”, quando os professores referiam-se a alunos e alunas que apresentavam um conceito escolar satisfatório, na média. Em determinado momento, essas falas começaram a me incomodar, pois esse tipo de adjetivação parece transmitir a idéia de que não há nada a ser pensado a respeito dessas crianças. O que seria mediano/a? O que significa ser esforçado/a? Por que a criança apresenta dificuldades, mas não é indicada para um trabalho de acompanhamento extraclasse? Tinha a impressão de que certas crianças passavam, de alguma forma, imperceptíveis ao olhar dos/as professores/as. A instituição escolar facilmente enxergaria dois extremos: o grupo de “bons alunos” e o grupo dos “alunos com dificuldades”, nos quais estariam centradas as atenções. Para dar embasamento a essas reflexões baseadas na prática, busquei apoio teórico e nele constatei que também a pesquisa educacional quase sempre mantém silêncio sobre esse grupo de alunos medianos e, assim, embora saiba que essa problematização provém de um contexto mais amplo de debates sobre a cultura escolar, pude dialogar diretamente com poucos autores/as. 2 Intitulada “Por que meninos fracassam mais que meninas na escola?”, financiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) entre 2000 e 2001. 19 Alguns textos fundamentais nessa fase inicial da pesquisa foram os artigos de Carvalho3, que tinham o objetivo de conhecer as formas cotidianas da produção do fracasso escolar e o fato deste ser mais acentuado entre meninos nas séries iniciais do ensino fundamental. Especialmente nos artigos de 2004a e 2005, as professoras são provocadas a classificar seus alunos e alunas em “bons alunos4” e “alunos com problemas de disciplina ou de aprendizagem”. Neles, Carvalho constata que, classificando as crianças dessa maneira, as professoras deixam de citar cerca de um terço dos alunos, denominados de “nãocitados”. Ao analisar os dados do estudo considerando sexo, nível socioeconômico e cor/raça, pude inferir que os alunos não citados são em sua maioria meninas, de nível sócio-econômico mediano5, autoclassificadas6 como negras7 e heteroclassificadas8 como brancas. Essa tabulação de dados, de certo modo, foi ao encontro de minhas inquietações, pois percebi que havia uma coincidência entre a proporção de “bons alunos”, “alunos com dificuldades” e “alunos medianos”. Seriam os alunos e alunas com desempenho mediano, os “não-citados” da pesquisa de Carvalho? Régine Sirota (1994), ao adentrar o cotidiano de salas de aula em escolas primárias francesas e buscar compreender como as rotinas escolarizadas fazem surgir as qualidades do “ofício de aluno” e como acontecem as redes de comunicação entre professores e alunos, centra sua observação nos “extremos que permitem distinguir melhor a polaridade dos julgamentos: os bons e os alunos ditos maus” (p. 59, grifo meu). Isso porque considera que nesses extremos a observação é menos ambígua. Nesse estudo, a autora classifica os alunos em três grandes categorias: um quarto de “bons alunos”, outro dos ditos “maus alunos” e a metade restante na categoria dos “médios”9. No entanto, meu incômodo persistia. Existiriam, na escola, crianças mais ou menos visíveis e que, por não se destacarem, seriam denominadas “medianas”? Ou 3 Ver os artigos Carvalho de 2001, 2004a, 2004b e 2005. Categorias como “sucesso” e “fracasso” escolar e termos relacionados como “bons alunos” e “alunos medianos” aparecerão nesse texto entre aspas por se tratarem de categorias e termos que variam histórica, institucional e socialmente. (Lahire, 2004) 5 Entre 5 e 10 Salários Mínimos. 6 As crianças assinalaram entre as alternativas de categoria de cor/raça elaboradas pelo IBGE (branco, preto, pardo, amarelo e indígena), apenas uma opção. 7 Da classificação de cor (preto, pardo, branco), a autora constrói seus dados utilizando o agrupamento racial (brancos e negros), considerando negros todas as crianças classificadas como preto e pardo. 8 A heteroclassificação foi realizada pelas professoras. 9 Neste estudo, dois terços das meninas são classificados como “alunas médias”. 4 20 ainda: no cotidiano escolar, os alunos com desempenho mediano, seriam menos visíveis frente ao olhar dos professores? Minha inquietação aumentava com a vivência institucional como professora. Por que só há a preocupação com quem apresenta dificuldades no contexto escolar, não se dá importância para o que aparentemente está correndo bem? Parecia-me que, além de pensar o que estaria indo bem, ainda havia a necessidade de refletir sobre quem estaria entre o que é considerado “sucesso” e o “fracasso” escolar. Inicialmente, por constatar a falta de espaço institucional para refletir sobre os alunos e alunas que não apresentavam trajetórias de “sucesso” ou “fracasso” escolares, a impressão que trazia era de que certas crianças estariam institucionalmente “invisíveis” no cotidiano escolar repleto de demandas de resolução de problemas e conflitos. Dessa maneira, buscar compreender o que chamei de “crianças invisíveis” na escola estava mais próximo do observá-las (caso realmente existissem), descrevê-las considerando dados de seus perfis (sexo, idade, cor e nível socioeconômico) e escutálas: o que pensam sobre a escola e sobre suas trajetórias de escolarização? É importante ressaltar que a princípio eu trazia comigo um olhar negativo a respeito da invisibilidade de certas crianças. No entanto, leituras e discussões acerca dessas primeiras idéias trouxeram-me outro ponto de vista acerca do que eu vinha pensando10, trazendo perguntas como: “Não estariam essas crianças ocupando esse lugar na turma para se protegerem do olhar e avaliação do outro? Para protegerem-se do olhar da professora, dada a relação desigual estabelecida na escola?”, ou ainda, “Não seriam elas mais ajustadas e que se adaptariam mais facilmente à sociedade por estarem na média?”. O assunto também apareceu de forma contundente, como veremos a seguir, numa reunião com o grupo de professoras que lecionavam nas turmas do quarto ano do ensino fundamental da escola em que realizei meu trabalho de campo, que foi pautada na apresentação do projeto de pesquisa e na idéia de certas crianças poderiam estar no lugar de invisibilidade frente ao olhar da professora. As reflexões presentes no relatório de qualificação indicavam que o meu desassossego inicial por presenciar invisibilidades no cotidiano escolar era 10 Muitos amigos e integrantes do grupo de estudos (EdGES) contribuíram para essa reflexão. No entanto, agradeço formalmente as notas a respeito do projeto de pesquisa da Professora Maria Helena Souza Patto e do Professor Jorge Ramos do Ó, no momento em que eu realizava suas respectivas disciplinas na pósgraduação. 21 compartilhado pela professora da turma pesquisada e pelos alunos e alunas que percebiam diversas formas de “estar invisível” na sala de aula. O exame de qualificação foi de extrema importância para que emergisse outra abordagem do material empírico e possibilitou-me tecer reflexões sobre as análises até então realizadas11, na busca de delinear o problema de pesquisa. As considerações da banca na ocasião do exame de qualificação me levaram a refletir sobre a heterogeneidade entre os alunos e alunas “medianos”, sobre padrões e modelos em jogo no cotidiano escolar, sobre o aluno/a que ocupa diferentes posições e formas e, principalmente, sobre o perigo de atribuir ao “estar invisível” um problema, passível de maior controle e busca por uma visibilidade associada a um modelo institucionalmente e socialmente aceito do que venha a ser um “bom aluno”: aquele que participa da aula e responde satisfatoriamente às intervenções de seus professores12. Tornou-se premente a necessidade de reconhecer que muito do meu ser e atuar como professora estava influenciando o ser e pensar como pesquisadora. Ou seja, foi necessário separar, desvelar possíveis marcas do pensar ideológico e ter um posicionamento mais crítico frente ao problema proposto. Assim, foi necessário buscar explicar sociologicamente o fato do senso comum que alguns alunos e alunas parecem estar como que “invisíveis” ao olhar de seus professores. Nas reflexões que se seguiram, tinha clareza de que meu objetivo, seja como professora ou pesquisadora, não era contribuir com a construção de mais um problema para a demanda escolar, o de impedir que existissem “crianças invisíveis”. Antes de tudo e, ao rever análises e material empírico, algo mais pungente parecia estar por trás das preocupações iniciais: a efetiva aprendizagem de crianças que permanecem na escola fundamental pública ao longo de, ao menos, três anos de escolarização. Dessa maneira, o trabalho deslocou-se do problematizar negativamente invisibilidades na escola para compreender como, frente ao olhar de uma professora de 4º ano do Ensino Fundamental, crianças constroem estratégias de (in)visibilidades no cotidiano em sala de aula e como isso está relacionado com o seu desempenho escolar. A partir dessa redefinição, busquei entender como essas estratégias marcam a trajetória escolar dessas crianças e que sentidos representam. 11 Agradeço, mais uma vez, as valiosas contribuições das professoras Flávia Inês Schilling e Tânia Mara Cruz durante o exame de qualificação. 12 Ver Sirota (1994), Carvalho (2001), Lahire (2004), Brito (2004), Cortese (2004). 22 Em outras palavras, se de fato o enfoque na escola está sobre os extremos, ou seja, sobre quem apresenta “sucesso” ou “fracasso” escolar, é inevitável assinalar que esses conceitos são construídos historicamente e são variáveis. Constroem-se a partir de padrões e modelos socialmente aceitos. Visto assim, crianças que estariam no “meio” estariam vivenciando maneiras de aceitar ou recusar parcialmente esses padrões. Resumindo, o objetivo deste trabalho não é avaliar ou classificar esses grupos que estão em jogo na cena escolar, apesar de utilizar a categorização institucional de alunos “bons”, “com problemas (indisciplina ou aprendizagem)” e “medianos”. Tentarei focalizar, dentro dos limites dessa pesquisa, como se dá a construção de (in)visibilidades escolares e como isso pode estar relacionado à efetiva aquisição de conhecimentos dessas crianças, tendo como pressuposto a qualidade de ensino como direito de toda criança, em especial em uma escola pública. Este trabalho estará estruturado em duas partes: caminhos percorridos e cenas do cotidiano escolar. Com o objetivo de situar o leitor nos caminhos escolhidos pela presente pesquisa, a primeira parte terá como foco o desenvolvimento do trabalho de coleta de dados empíricos: como se deu a escolha e entrada na instituição escolar e o porquê do enfoque etnográfico. Por último, apresentarei os instrumentos de pesquisa utilizados e refletirei sobre a aplicação desses. Na segunda parte, ao procurar compreender como, frente ao olhar de uma professora de 4º ano do ensino fundamental, crianças constroem estratégias de visibilidades e invisibilidades repletas de sentidos, apresentarei cenas do cotidiano escolar estudado, permeadas por análises baseadas nas falas dos sujeitos pesquisados (alunos, alunas e professora). Em síntese, no primeiro capítulo caracterizarei brevemente a turma e no segundo e no terceiro capítulos procurarei responder à seguinte questão: quais seriam as estratégias construídas ao longo dos primeiros anos de escolarização por alunos e alunas que os tornariam mais ou menos visíveis frente ao olhar de sua professora? 23 PARTE 1 CAMINHOS PERCORRIDOS “O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas) 1.1 A ESCOLHA E ENTRADA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR A escola na qual realizei o trabalho de campo já era uma escola por mim conhecida, pois trabalhei lá alguns meses, logo que ingressei na rede municipal de ensino através de concurso público. Dessa forma, a entrada e conversas iniciais com secretaria, coordenação e direção da escola foram facilitadas e tranqüilas. Conhecia também parte do grupo de professoras do primeiro ciclo (1º a 4º ano) do ensino fundamental, que me receberam muito bem, algumas vezes exclamando: “Que bom que escolheu nossa escola pra sua pesquisa!” (professora Anita13), “Bom revê-la aqui...” (professora Renata), “Conte-nos o que anda fazendo. Como está o trabalho na nova escola?” (professora Shirley)14. No entanto, desde o princípio preocupei-me em deixar claro a todos que estava voltando à instituição não a trabalho ou estágio e sim para a realização de uma pesquisa de campo do meu mestrado e que só iniciaria meu contato formal com as professoras depois de esclarecer à equipe técnica (coordenação e direção escolar) meus objetivos enquanto pesquisadora Já no início do ano letivo, em meados de fevereiro, marquei uma reunião com Mônica, coordenadora do primeiro ciclo. Ela me recebeu com entusiasmo e ao explicitar minha questão de pesquisa (invisibilidade na escola), demonstrou-se interessada e instigada a refletir sobre o tema. A escolha de uma turma do quarto ano deu-se a partir da hipótese de que crianças com pelo menos três anos de escolarização teriam atitudes, 13 A fim de garantir o sigilo e a integridade ética da unidade escolar que me acolheu, bem como de professoras, funcionários e alunos que me auxiliaram neste trabalho, todos os nomes utilizados são fictícios. 14 Anotações de conversas informais em caderno de campo, dia 14 de fevereiro de 2007. 24 comportamentos e idéias escolares sobre o que é ser aluno/a em sala de aula mais definidas do que crianças com menor vivência escolar. O quarto ano é também o ano de conclusão do 1º ciclo do ensino fundamental, no qual as crianças são avaliadas com a possibilidade de retenção no final do ano, caso não atinjam os objetivos do ciclo. Dessa forma, se a pesquisa se propunha a refletir sobre invisibilidades construídas em sala de aula, apostei que crianças de turmas do 4º ano poderiam ser fundamentais para decifrar como e porque essa invisibilidade acontece. Com o material recolhido nas entrevistas, ao escutar as crianças, constatei que essa opção foi acertada, já que elas se posicionaram de maneira bastante clara e interessada e se dispuseram a pensar sobre o cotidiano escolar e sobre os sentidos e significados diversos de ser aluno e aluna. Mônica falou um pouco de cada uma das professoras de 4º ano e terminou afirmando: Acredito que não haja maiores problemas, mas não vou indicar nenhuma delas. Você poderia conversar com o grupo de professoras do 4º ano e ver quem se interessa. Eu não preciso estar com você, né? Já estão devidamente apresentadas! (anotação de caderno de campo, em 14 de fevereiro de 2007) O grupo de professoras que trabalhava com as quatro turmas de 4º ano do ensino fundamental no período da manhã era bastante heterogêneo (tempo de magistério, tempo de trabalho naquela escola, idade) e, no dia 15 de fevereiro de 2007, consegui conversar com as seguintes professoras: Celine (4º ano A), Anita (4º ano B), Alana (4º ano C) e Simony (4º ano D). Desse grupo eu só conhecia Anita e Celine, que trabalhavam há mais de 15 anos nessa escola: Alana ingressou em 2004 e Simony em 2006. Estávamos no início do ano letivo de 2007. Simony assumiu, como professora eventual, a turma do 4º ano D até o retorno da professora efetiva, Amanda. Iniciei a exposição do meu projeto de pesquisa, em linhas gerais e o termo “crianças invisíveis” causou bastante inquietação15: O aluno invisível seria aquele aluno quietíssimo que não ‘se mexe’ na classe? (Anita) Não... esse a gente vê! (contesta Celine) 15 A conversa não foi gravada e durante as falas ia anotando as palavras e expressões “chave” para posterior sistematização. A reescrita foi realizada logo após a saída da escola no caderno de campo. 25 Então, não entendo... O que quer dizer com invisível? Na minha turma do ano passado não identifico nenhum aluno “invisível”... Essa turma eu ainda estou conhecendo... (Anita) Talvez teríamos que pensar no aluno mediano, quieto, mas que entrega todas as tarefas. Mas eu não vejo isso como problema. Na nossa sociedade é assim, os medianos não se destacam, tampouco fracassam... (Celine) E se pensarmos em termos de mediocridade. Quanto esse aluno ao não se posicionar, torna-se medíocre, sem expressão? (Alana) Dizer que há alunos “invisíveis”, significa dizer que não vemos nossos alunos?... Não entendo sua questão... Isso não é confortável... (Anita) Conheço todas as minhas crianças. (Celine) Concordo com Anita... (Simony) Vamos esperar ela explicar... Talvez faça algum sentido... (Alana) Expliquei que minha hipótese de invisibilidade era a de um lugar que a criança acaba ocupando na turma, por não se expor, por não se destacar no coletivo. Nesse momento, não percebia essas inquietações das professoras como questionamentos fundamentais para o meu olhar sobre o problema de pesquisa. Compreendi isso como uma atitude desconfiada em relação à pesquisa, uma resistência imediata, decorrente da idéia de que o pesquisador/a na escola é visto como alguém que estaria numa busca por problemas e, conseqüentemente, por culpados. Tentei, assim, ao explicitar detalhes do trabalho de campo e hipóteses da pesquisa, deixar claros meus objetivos enquanto pesquisadora e comprometi-me a dar o retorno da pesquisa, por meio dos textos produzidos (relatórios e dissertação). Ao longo da conversa, os ânimos se tranqüilizaram. Mesmo não concordando, as professoras pareciam aceitar a proposta de trabalho, ao escutar os objetivos propostos e a metodologia pensada. Num momento, a professora Simony me atordoou a pergunta: Deixa eu ver se entendi: você quer propor mais uma demanda pro nosso cotidiano? Quer problematizar os alunos que não apresentam problemas, que são tranqüilos e que não nos dão trabalho? Cuidar para que não haja “invisíveis”? Parei para pensar e disse que não tinha uma resposta naquele momento. Retomei minha trajetória profissional e expliquei o porquê de minha inquietação. Mais uma vez, relembrei a intenção da reunião (expor o projeto e ver o interesse de participação) e 26 ressaltei que a pesquisa só seria realizada se todos os envolvidos estivessem de acordo. Não seria uma imposição da coordenação ou direção da escola aceitar-me em sala de aula e que teriam tempo para conversar entre si, refletir, para decidir participar ou não. Essas perguntas pareciam confirmar certa resistência do grupo de professoras e uma negativa de aceitação da pesquisa. Porém, a professora Alana, que pouco falou durante a exposição do projeto, disse compreender minha questão, acreditando que fazia algum sentido, comentou as contribuições que percebeu numa parceria que teve com uma pesquisadora da área de fonoaudiologia em outra instituição em que trabalhou e concluiu dizendo: Acho interessante pensar nisso... Se quiser, pode fazer as observações na minha classe. Podemos pensar juntas no que acontece... Anita, Celine e Simony quase que ao mesmo tempo, também se dispuseram a contribuir com a pesquisa “se não der certo na classe da Alana”. Afirmei que pretendia acompanhar uma só turma e agradeci toda disposição e atenção em compartilharem comigo aquele momento. Logo depois, me despedi delas e fui ao encontro de Alana para agradecer a predisposição em receber-me em sua classe. Entreguei uma cópia do meu projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós Graduação e marquei, para a semana seguinte, uma conversa sobre a leitura do projeto. Alana disse que já me conhecia por comentários a respeito da turma à qual ministrei aulas no período em que trabalhei naquela escola. Realmente, no ano de 2003 lecionei para uma classe que era considerada uma “turma problema”: uma classe de alfabetização que havia tido três professoras, antes que eu assumisse as aulas (em meados de junho) e, conseqüentemente, era uma turma que não pudera estabelecer vínculos afetivos e de autoridade com nenhuma professora até então. Pelo trabalho realizado e pela mobilização que causei no coletivo da escola, muitos me reconheciam naquele espaço. Senti-me acolhida pela professora Alana e acredito que a empatia esteve presente desde este nosso primeiro contato. A escola e seu contexto 27 Situada num bairro residencial da região oeste do Município de São Paulo (SP), a escola municipal onde realizei a pesquisa de campo, no ano de 2007, atendia alunos e alunas do bairro e redondezas oferecendo o curso do ensino fundamental regular (1º a 8º ano) e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Esse é um bairro antigo que surgiu em torno de uma grande fábrica16 à margem de uma das principais rodovias de acesso à cidade de São Paulo e, atualmente, caracterizava-se por ser um bairro residencial, com famílias de renda média. Em 2007, havia dois grandes agrupamentos não urbanizados de casas (construções precárias de madeira e/ou alvenaria) em duas extremidades do bairro, afastados da escola17. O bairro dispunha de posto de saúde, escola de educação infantil pública, escolas de educação infantil privadas, igrejas, bancos e grande variedade de pontos comerciais. Próximo à escola havia um parque bem arborizado, que servia como alternativa de lazer. Havia linhas de ônibus que interligavam o bairro aos principais destinos da cidade de São Paulo. A escola situava-se em uma das avenidas principais do bairro e era avaliada uma “boa escola” pelos profissionais que aí trabalhavam e pela comunidade. Apresentava um quadro de professores estável e recebia pedidos de matrículas de crianças das localidades vizinhas (bairros e município próximos). Quanto à estrutura física, a escola tinha dois prédios. No prédio térreo, a partir da entrada principal, onde havia o balcão que dá acesso à secretaria, encontravam-se também as salas da direção e coordenação escolar, a sala dos professores e uma sala que era utilizada para reuniões e outras atividades que necessitassem de certo isolamento acústico, com poucas pessoas. Uma porta separava o corredor das salas de aula da escola. O segundo prédio com dois andares comportava o refeitório/dispensa/cozinha, a biblioteca, a sala de informática, uma sala de apoio pedagógico-SAP (utilizada para trabalho com alunos que apresentavam dificuldades escolares) e os banheiros que eram utilizados pelos alunos e alunas. A sala de aula, especialmente a que acompanhei, tinha uma estrutura razoável: carteiras, lousa e armários em bom estado de conservação, cortinas nas janelas (protegendo da luz do sol), ventiladores. Em formato retangular, a classe contava com 35 carteiras de alunos, dispostas em cinco fileiras. À frente das carteiras, havia a mesa 16 Informações coletadas por meio de conversas informais e pesquisa no site da Prefeitura do Município de São Paulo, a saber: www.portal.prefeitura.sp.gov.br/subprefeituras 17 Freqüentemente nas falas de professoras, funcionários e crianças da escola, havia referência às favelas do bairro. 28 da professora e ao fundo, dois armários. Havia também um grande mural que era utilizado para expor os trabalhos das diferentes turmas, nos diferentes períodos. Com um total de 1.313 alunos e alunas matriculados no final do ano de 200718, a escola funcionava em três períodos: manhã, das 7h às 11h50; tarde, das 13h30 às 18h20 e noite, das 19h às 23h. Nos períodos da manhã e tarde, havia as turmas dos cursos de 1º a 8º anos do ensino fundamental (EF) regular e no período da noite, os cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), para os alunos e alunas que não fizeram ou completaram o ensino fundamental na idade prevista (até 14 anos de idade). No período da manhã19 existiam 13 turmas em aula: três classes de turmas do 1º ano, quatro turmas do 4º ano, três turmas do 5º ano e três turmas do 6º ano, que compartilhavam o mesmo espaço e tempo de recreio. No entanto, o horário do lanche era organizado da seguinte forma: às 8h50 lanchavam no pátio as turmas de 1º ano, às 9h chegavam as turmas de 4º ano e a partir das 9h10, as turmas de 5º e 6º anos. O sinal de final do recreio tocava às 9h30 e todos os alunos e alunas dirigiam-se ao local de fila (1º e 4º anos) ou iam direto às salas de aula (5º e 6º anos). Nesse período, nas turmas do primeiro ciclo do ensino fundamental (1º ao 4º ano), havia uma professora20 polivalente por turma, totalizando sete professoras. As crianças das turmas de 3º e 4º anos tinham aulas de Educação Física, Informática e Sala de Leitura que eram ministradas por professores/as especialistas. Duas professoras eventuais auxiliavam no trabalho pedagógico de todo 1º ciclo conforme solicitado pelas professoras de classe e, ainda, ministravam aulas quando alguma professora estivesse ausente (fosse por uma falta pontual ou licença-médica). Já nas turmas do segundo ciclo do ensino fundamental, havia um/a professor/a especialista por disciplina e muitos trabalhavam nos dois períodos (manhã e tarde), dividindo as aulas entre as turmas. Para essas turmas não havia professor/a eventual e quando algum professor/a faltava, os membros da equipe técnica se alternavam, ministrando aulas. A equipe técnica da escola (direção e coordenação escolar) era composta pela diretora: Miriam, assistente de direção: Ingrid e pelas coordenadoras pedagógicas: Dilma e Mônica (que dividiam horários de forma que houvesse em todos os períodos, 18 Informações retiradas de documentos da secretaria da escola. Agradeço especialmente às secretárias da escola, do período da manhã, pela atenção e apoio. 19 Todo trabalho de campo desta pesquisa foi realizado no período da manhã. 20 No primeiro ciclo todas as professoras de classe eram mulheres. O único professor que trabalhava com as turmas do 1º ciclo era Márcio, que ministrava as aulas de Educação Física para as turmas do 3º e 4º anos do ensino fundamental. 29 pelo menos, uma coordenadora na escola). Durante a manhã, Beatriz (professora designada auxiliar de coordenação no período) era responsável pelo atendimento emergencial às crianças (resolvendo conflitos durante o recreio, por exemplo) e às professoras cabiam as demandas cotidianas e eventuais coberturas de aulas nas turmas do segundo ciclo do ensino fundamental, caso algum professor estivesse ausente. 30 1.2 PESQUISA DE CAMPO: OLHAR ETNOGRÁFICO “A etnografia visa apreender a vida, tal qual ela é quotidianamente produzida, simbolizada e interpretada pelos atores sociais nos seus contextos de acção.” (Sarmento, Itinerários de pesquisa, 2003) Ir ao encontro de uma nova realidade, arriscar-se, conhecer outras situações e sujeitos, observar, arquitetar idéias, vivenciar o cotidiano do outro e, por outro lado, relatar, descrever e refletir sobre os significados que aí se encontram: o trabalho etnográfico implica um processo de permanente refinamento do olhar e busca por aquilo que não está evidente nas relações, gerando, assim, novas descobertas. Esse movimento de buscar no cotidiano a articulação de fatos, decifrar o que está obscuro, deve resultar numa descrição densa da realidade na qual o pesquisador interprete e reinterprete os acontecimentos, a fim de torná-los inteligíveis e parte de uma totalidade mais ampla (Geertz, 1987). Assim, no caso dos estudos sobre a instituição escolar, observações, relatos e interpretações devem fazer parte de uma busca de compreender os processos que ocorrem na escola como um conjunto de relações e dinâmicas sociais que são construídas em contexto histórico-cultural definido, permeado por relações de poder (Carvalho, 2003). Se uma das premissas do trabalho etnográfico é ter uma postura de “estranhamento” (Fonseca, 1999) frente a algum acontecimento no campo, sabemos que para nós, que passamos pela escolarização, é um desafio grande manter um olhar atento e curioso ao entrar em contato com uma escola. Ainda mais, sendo pela manhã pesquisadora e, à tarde, professora também numa classe do primeiro ciclo do ensino fundamental, o desafio de manter-me em estranhamento era insistentemente buscado. O estar em sala de aula como pesquisadora trouxe muitas indagações. Ao final, pude perceber que tanto com as crianças quanto com a professora, foi se estabelecendo um vínculo de aceitação e cumplicidade que me trouxe tranqüilidade e acolhimento. No entanto, em meio a silêncios, olhares e interações, fui vivenciando a complexidade do cotidiano, das relações que ali se estabelecem, do ser aluno/a, do ser professora, do ser pesquisadora. Pois, como afirma Rockwell (s.d.): em situações de campo, também se enfrenta um chamado “problema ético”. O sentir-se estranho no local, sentir-se intruso, espião, acadêmico, avaliador etc. Encontra-se com as culpas que isso gera 31 num meio especialmente carregado de sentido, como é a escola (p. 20, tradução minha). Erickson (1989) alerta sobre um princípio ético básico que é proteger os interesses particulares dos envolvidos na pesquisa, pois são mais vulneráveis a correr riscos com possíveis intervenções do pesquisador. Essa questão torna-se mais complexa quando o trabalho pressupõe o contato com crianças, como é o caso da presente pesquisa. Em sua tese de doutorado, Tânia Cruz (2004), ao investigar como crianças vivenciam relações de gênero no recreio escolar, nos faz refletir sobre o dilema ético da metodologia de pesquisa com crianças. Opta por uma visão da criança como sujeito sócio-histórico, criticando “a visão positivista de ‘objeto de pesquisa’, na qual o sujeito que pesquisa é objetivo e distanciado” e acredita que “é a interação entre pesquisador e pesquisado que produz a pesquisa” (p.29). A hierarquia etária está posta entre pesquisador e crianças, tal como a imagem do pesquisador na escola, visto sempre como um adulto com autoridade, seja como estagiário, seja como possível professor. Como lidar com essa assimetria? Como as crianças podem produzir conhecimentos juntamente com o pesquisador? Como adverte Inês Teixeira (2003), é preciso ter claros objetivos e finalidades da pesquisa social, numa busca da objetividade que vai além das subjetividades para a elaboração de “conhecimentos historicamente contextualizados, inscritos em interesses, estruturas e relações de poder, implicados em projetos e forças na vida social, implicados nos conflitos sociais e nas disputas pelo poder simbólico.” (p. 84) Assim, ao entrar em campo, levei comigo alguns princípios adotados como auxiliar de pesquisa e pesquisadora (em trabalhos anteriores já citados) que considerava como éticos para o desenvolvimento do trabalho: solicitar permissão à direção da escola; informar a todos os envolvidos na pesquisa sobre objetivos e atividades a serem realizadas; ser cautelosa nas aproximações com os sujeitos, buscando evitar possíveis transtornos provocados pela minha presença durante as observações; garantir o caráter sigiloso das informações coletadas; a não-identificação dos sujeitos e instituição em produções escritas e, ao final do trabalho, fornecer um retorno dos dados analisados. Quanto aos procedimentos e instrumentos de pesquisa, realizei observações no espaço escolar, entrevistas semi-estruturadas com professora e alunos/as da turma investigada, teste sociométrico, preenchimento de questionários de auto e heteroclassificação racial e questionário socioeconômico. 32 No texto a seguir, apresento brevemente esses procedimentos e instrumentos que serviram como base de dados para o que se espera de um estudo etnográfico, definido por Geertz (1978): num esforço intelectual estabelecer relações entre dados e análise do material empírico, buscando a descrição densa de determinada realidade. É importante frisar que, para essa descrição, busquei dialogar com estudos que levam em consideração gênero21, raça/cor22 e classe social23 como categorias de análise de trajetórias escolares. A) Observações do espaço escolar Após a reunião com o grupo de professoras do 4º ano do ensino fundamental e com a indicação de interesse da professora Alana (4º ano C), entreguei-lhe uma cópia do projeto de pesquisa, como descrito. Uma semana depois, conversamos sobre as idéias presentes no projeto e a professora demonstrou muito interesse em compartilhar os caminhos da pesquisa. Agendamos o início do trabalho de campo e, de forma mais simples, também apresentei a pesquisa aos alunos e alunas do 4º ano C, no primeiro dia de observação em sala de aula. Certamente essa opção dos sujeitos conhecerem o objeto inicial de investigação trouxe, em parte, pensamentos e atitudes congruentes com o que eles imaginaram que eu esperava, enquanto pesquisadora. No entanto, vale ressaltar que é impossível no agitado cotidiano escolar, repleto de demandas, manter controle sobre os acontecimentos ou direcionar todas as situações. Alana, em certos momentos e de maneira evidente, procurou intervir em sua forma de lidar com a turma com intenção de auxiliar na coleta de dados. Procurei levar isso em conta nas análises construídas, considerando a opção de compartilhar inicialmente as idéias presentes no projeto de pesquisa. 21 Ao propor o uso categoria de gênero na análise, recorro aos estudos de Joan Scott (1995) e Linda Nicholson (2000). 22 A análise estará pautada na categoria de raça social, definida em Guimarães (1999). 23 Ao optar por realizar o trabalho de campo em uma escola da rede pública de ensino, apoiei-me em estudos clássicos (Patto, 1991 e Paro, 2001) que apresentam um olhar crítico sobre a instituição escolar, refletindo sobre a produção de desigualdades sociais. 33 Com o propósito de focar o cotidiano, iniciei as observações24 das aulas e outros espaços escolares com a presença de alunos e alunas, como pátio, refeitório e quadra de esportes. Essas observações foram agendadas em dias determinados, conciliando os melhores horários para professora e pesquisadora. Demandou muita perseverança e atenção compartilhar o cotidiano de uma professora com mais de quinze anos de experiência no magistério e seus alunos e alunas, que já possuíam, ao menos, três anos de escolarização25 e tentar compreender como, nesse espaço relacional que é a sala de aula, certas crianças constroem ativamente estratégias e tornam-se (in)visíveis frente ao olhar da professora. No primeiro dia de observação, cheguei com Alana no início da aula e, antes de começar, a professora proporcionou um espaço na aula para que me apresentasse e falasse sobre a pesquisa. Momento importantíssimo: expliquei que pretendia acompanhar a turma durante o ano, fazendo observações em classe, no recreio e outros espaços da escola, realizaria entrevistas e outras formas de coletar informações para a pesquisa. Diferentemente de uma estagiária, estaria ali buscando perceber se há diferenças entre as crianças e como acontecem as relações em classe. Falei, até mesmo, que esse olhar está pautado num campo de estudos chamado Sociologia. Obviamente as crianças tiveram muitas dúvidas sobre o que falei e, ao responder atentamente cada pergunta ou esclarecer dúvidas, enfatizava o que para mim era essencial: eles/as seriam participantes ativos na pesquisa. Juntos refletiríamos sobre as possíveis diferenças e como as crianças se relacionavam em classe. Depois de quase uma hora de “apresentação”, agradeci a Alana, sentei-me no fundo da classe, de imediato, percebi olhares interessados em mim. E a aula começou... Nas observações seguintes as crianças pareciam já entender minha presença e, aos poucos, aproximavam-se para buscar algum contato, sempre cauteloso e correspondido. Muitas vezes vieram perguntar-me o que eu já havia visto de diferente, apontando o olhar delas: um olhar que via basicamente a diferença entre meninos e meninas. Comentários, principalmente das meninas, eram comuns: “Professora, você viu que o André não pára sentado?”, “O Rodrigo só quer chamar atenção...”26. 24 Seguindo as recomendações procedimentais de investigação qualitativa encontradas em Bogdan & Biklen, 1994. 25 Na turma investigada havia também três crianças reprovadas no ano anterior, tendo assim quatro anos de escolarização no ensino fundamental. 26 Notas do caderno de campo. 34 Vale ressaltar que no dia da apresentação às crianças, quando questionada sobre o que seriam “diferenças entre as crianças”, respondi de maneira abrangente e falei de diferenças entre alunos que sentam no fundo ou na frente; de atitudes na classe; de como eram os alunos e alunas naquele espaço. Com a convivência com as crianças e suas observações sobre as diferenças entre os sexos, nas entrevistas que realizei com esses alunos, perguntei explicitamente se eles percebiam alguma diferença entre meninos e meninas na escola e posso afirmar que as diferenças expressadas por eles e elas estão muito mais relacionadas com denúncias leves e provocações entre os grupos que pareciam já estar buscando uma maior proximidade entre os sexos, do que questões estritamente relacionadas ao aprender escolarizado: Sabe, professora27, eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo, porque ele faz umas brincadeiras muito bestas, tipo assoprar no nosso ouvido, abraçar as meninas... (Luane, entrevista em grupo 28, em 08.08.07) As meninas são mais bagunceiras, porque ficam o tempo todo cochichando. (Rodrigo, idem) É, o Rodrigo tem umas brincadeiras sem graça, fica agarrando as meninas... (Tamires, idem) Já as observações das aulas de Educação Física e do recreio me proporcionaram momentos de conversa com as crianças, que me procuravam para contar casos, fazer perguntas ou ainda, simplesmente, dizer um “Oi, Patricia!” (alguns/mas só com um olhar). Nesses momentos, a quantidade de anotações em caderno de campo se multiplicava e eu buscava registrar tudo o que via e escutava, imersa numa diversidade de acontecimentos. Ao mesmo tempo, o contato com Alana também se estreitou. Conversávamos, trocávamos impressões sobre as crianças (em relação à pesquisa), discutíamos pedagogicamente demandas específicas das nossas turmas e até compartilhávamos 27 Muitas crianças me chamavam de “professora”, apesar da minha insistência que eles me tratassem apenas pelo nome. 28 Trechos da entrevista realizada com os alunos e alunas avaliados com desempenho mediano pela professora. 35 algumas questões pessoais como, por exemplo, o desenvolver da gravidez de Alana29. Firmou-se um acordo de proximidade com certo afastamento, no qual busquei sempre ter cuidado na aproximação, colocar-me no lugar da outra e respeitá-la. Ao mesmo tempo, o olhar de pesquisadora demandava, acima de tudo, a interpretação crítica da realidade vivida e observada. Como nos alerta Sarmento (2003): Com efeito, o envolvimento efectivo – pessoal, intelectual e emotivo – com as problemáticas e situações estudadas na investigação, se afasta a ilusão da distância, não obnubila necessariamente o sentido crítico: este é mesmo uma das componentes necessárias àquele envolvimento. (p.158) Observar, interagir com os sujeitos envolvidos, buscar entender os processos sociais repletos de sentidos que remetiam a conteúdos históricos e sociais; interpretar o que era vivenciado, selecionar o que havia de significativo, criar hipóteses, reinterpretar, tudo isso faz parte do enfoque etnográfico e é um processo que traz consigo referenciais teóricos que embasam a construção do objeto de estudo. Ezpeleta e Rockwell (1986) ao dissertarem sobre a relação entre etnografia e desenvolvimento teórico atentam que: A tarefa etnográfica supera a descrição da organização interna das categorias sociais, porque essa não é suficiente para explicar a realidade social. Explicar processos sociais em estudo exige outro nível de construção teórica. (p.51) Para além da vivência e descrição do observado, o desafio seria apreender analiticamente o que a vida cotidiana reúne (Rockwell, 1986). No dia-a-dia daquela turma, o observar “tudo”, a tentativa de ver quem poderia ocupar os lugares de “ser visto” e “não-visto” e a busca por compreender como isso acontecia, se constituíram como desafios teóricos e metodológicos. As observações do espaço escolar foram valiosas na tentativa de apreensão e compreensão do cotidiano da turma investigada e das trajetórias escolares que ali se construíam. Sirota (1994) se propõe a compreender o cotidiano como fato social e para isso aponta ser necessário “atribuir ao detalhe de cada instante, à banalidade, à repetitividade de todos os dias, o sentido e a força dos grandes eventos que cristalizam os pontos de inflexão dos itinerários sociais” (p.10). 29 A professora Alana soube de sua gravidez em meados de março e trabalhou na escola até final de agosto de 2007. As observações em classe encerraram-se, assim, em agosto. Porém, continuei a observar os outros espaços escolares e dei continuidade às entrevistas com as crianças, sob a autorização da professora Simony, que assumiu as aulas da turma do 4º ano C. 36 B) Entrevistas com a professora Com o intuito de conhecer o olhar da professora em relação à sua turma, ainda no início do ano letivo, e perceber possíveis (in)visibilidades presentes numa classificação baseada no desempenho escolar, realizei, duas semanas após o início das observações em sala de aula, uma entrevista semi-estruturada30 com a Alana. Nessa entrevista inicial pedi para que a professora classificasse seus 33 alunos e alunas entre “bons alunos”, “alunos com dificuldade de aprendizagem” e “alunos com problemas disciplinares”. Com uma lista em mãos e sem resistência quanto a classificação, a professora indicou rapidamente os alunos e alunas que pertenciam a esses grupos. Quase metade da turma não foi classificada com base nesses critérios abrangentes. Alana falou ainda sobre duas crianças com desempenho mediano que apresentavam dificuldades pontuais no contexto escolar31. Esses comentários estavam pautados no incômodo da professora de que a classificação proposta pela pesquisa não abarcava a totalidade de diferenças entre as crianças da turma. Destarte, a professora classificou: 10 “bons alunos”, ou seja, alunos e alunas como bom desempenho escolar; dois meninos que apresentavam questões de indisciplina, o que interferia no desempenho escolar; seis alunos e alunas com dificuldades de aprendizagem e 15 alunos e alunas que não se enquadraram em nenhuma dessas classificações e foram avaliados pela professora Alana como “medianos”.32 Seguindo os procedimentos de pesquisa realizados no conjunto de estudos realizados por Marilia Carvalho33, procurei considerar as dimensões das relações de gênero, de classe e raça ao buscar a compreensão dos processos que têm levado crianças a ocupar lugares específicos no contexto escolar, seja de visibilidade ou invisibilidade, frente ao olhar da professora. 30 Entrevistas semi-estruturadas apresentam um roteiro prévio a ser seguido. Os alunos Daniel (“postura em classe”) e Janaína (“é devagar, mas consegue”). Notas posteriores das falas em caderno de campo. 32 A partir desse momento, todas as referências aos alunos segundo desempenho escolar, estarão pautadas nessa classificação da professora. 33 Ver os artigos Carvalho de 2001, 2004a, 2004b e 2005. 31 37 Assim, após essa avaliação por desempenho, pedi a Alana que classificasse seus alunos e alunas segundo as categorias de cor/raça estabelecidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): branco, preto, pardo, amarelo ou indígena34. A essa proposta de classificação Alana foi sutilmente resistente, afirmando que não considerava marcantes as diferenças raciais entre seus alunos e alunas: “É estranho pensar nisso, Patricia. Não sei muito bem como classificá-los.”. Busquei compreender esse estranhamento e resistência de Alana e, ao expor meus objetivos de pesquisa, contextualizei a dificuldade de pensar em termos raciais na nossa sociedade. Refletimos até mesmo sobre a utilização simultânea de categorias de cor (preto, branco, pardo, amarelo) e de etnia (indígena) pelo IBGE e sobre as discussões atuais com grande visibilidade pública, como ações afirmativas para negros e indígenas, principalmente, no acesso ao ensino superior. Depois dessa conversa, a professora concordou em fazer a classificação. No entanto, presenciei algo de constrangedor na atitude de Alana ao realizar essa heteroclassificação de seus alunos e alunas em termos de cor/raça35, principalmente quanto à classificação de pertencimento à raça negra36. Conseqüentemente, a professora via sua turma como majoritariamente formada por crianças brancas. Temos 11 crianças negras (nove pardos e dois pretos) e 22 crianças classificadas como brancas. No início das observações de aulas e outros espaços voltei minha atenção para o acompanhamento dos alunos e alunas que foram avaliados com desempenho escolar medianos nessa entrevista primeira entrevista. Pela necessidade de um estudo em profundidade, busquei melhor caracterizar as diferenças de comportamentos dentro do grupo-classe, descrevendo e analisando como eu percebia essas crianças naquela realidade, na complexidade das relações com seus pares e professora. Ainda entrevistei a professora Alana em dois outros momentos. Na segunda entrevista, realizada em 04 de julho de 2007, ela contou-me sobre sua opção pelo magistério e trajetória profissional, trazendo muitas inquietações sobre as (im)possibilidades de se realizar um bom trabalho com as turmas. Essa entrevista 34 Desde 1950, o IBGE aplica nos Censos as opções de cor: branco, pardo, preto e amarelo e, em 1991 e 2000, incluiu a categoria indígena (Telles, 2003). A respeito da discussão sobre a utilização da classificação de cor pelo IBGE ver Araújo (1987). 35 Utilizo os termos relacionados cor/raça por considerar que “a classificação por cor é orientada pela idéia de raça.” (Guimarães, 2003). 36 Dessa forma, a partir da classificação de cor (preto, pardo, branco), entendo dois agrupamentos raciais: brancos e negros, considerando negras todas as crianças classificadas como preto e pardo. 38 antecedeu o Conselho de Classe das turmas de 4º ano, que por questão de horário, não pude participar. A terceira entrevista, realizada com o propósito de que Alana falasse sobre cada um de seus alunos e alunas, iniciou-se num período de aula, em 17 de agosto de 2007, e foi concluída uma semana depois (em 24 de agosto), na casa da professora, que entrou em licença-maternidade a partir de 23 de agosto. Essa última entrevista foi mais longa (cerca de uma hora e meia) e, também nela, Alana expôs algumas de suas considerações acerca do tema pesquisado e sobre a influência da temática da pesquisa na sua indicação de alunos e alunas para o período de recuperação do final do 1º semestre. Esse foi o nosso último encontro formal. C) Teste sociométrico37 Ao considerar as crianças como sujeitos de pesquisa, tive o cuidado de explicar cada uma das atividades realizadas com a turma. Desde a explicitação de meu papel como pesquisadora e não estagiária, do meu objetivo de observar a turma e perceber diferenças entre eles, de ter um olhar sociológico sobre as relações entre o grupo, até perguntar-lhes sobre o desejo de serem entrevistados. A primeira atividade de pesquisa de que alunos e alunas efetivamente participaram foi o teste sociométrico38. A intenção ao utilizar esse instrumento de pesquisa era verificar se a formação de grupos de escolhas entre as crianças refletia a configuração de classificação dos alunos feita pela professora como “bons alunos”, “alunos com dificuldades no contexto escolar (disciplina e/ou aprendizagem)” e “alunos medianos”. Para tanto, as crianças foram convidadas a escrever o nome de três colegas com quem eles/as gostariam de realizar atividades escolares. Utilizei uma questão positiva, por expressar o desejo de estar juntos. Expliquei que esse instrumento de pesquisa era chamado de teste sociométrico e resultaria num sociograma (representação gráfica das escolhas), que me auxiliaria a perceber como as crianças formavam seus grupos. 37 Agradeço às professoras Maria Helena Souza Patto e Rosangela Gavioli Prieto por indicarem o uso do teste sociométrico como instrumento de pesquisa. 38 Atividade realizada dia 28 de março de 2007. 39 Jacob Levy Moreno (1972) em sua obra “Os fundamentos da Sociometria” assim define esse procedimento: O teste sociométrico é um instrumento que serve para medir a importância da organização que aparece nos grupos sociais. Consiste expressamente em pedir ao sujeito que eleja, no grupo ao qual pertence ou poderia pertencer, os indivíduos que gostaria de ter como companheiros. (p. 83, tradução minha) Em testes sociométricos mais complexos, temos também a consideração negativa e a consideração neutra (por quem não sente afinidade, tampouco repulsa em realizar atividades juntos). Acreditei que utilizar apenas a opção positiva seria mais simples naquele contexto e já forneceria dados relevantes para análise de como estaria o relacionamento entre as crianças daquela turma. Antes do início do teste, num momento de euforia, as crianças fizeram muitas perguntas: “É pra pensar em quem gostaríamos de fazer grupo de lição?”, “Posso escrever o nome de quem faltou?”, “É para escrever os nomes dos meus amigos?”, “A professora vai escolher os grupos assim?”39 e assim por diante. Respondi às questões, uma por vez, explicando que os dados seriam utilizados somente para a pesquisa, que eles poderiam escrever os nomes de qualquer criança da turma, considerando a vontade de estar juntos. Poderia ser de alguém que está muito próximo (amigos), de alguém com quem desejariam fazer alguma atividade juntos, de pessoas que faltaram naquele dia, enfim, três pessoas com quem gostariam de estar juntos realizando atividades escolares. Certamente, a partir do momento que esclareci as dúvidas, abri múltiplas possibilidades de escolha. Dessa maneira, pude perceber que as opções foram pautadas tanto no aspecto relacional, considerando afinidade e amizade, quanto no aspecto de aprendizagem, considerando o grande número de indicações recebidas por algumas crianças consideradas como “bons alunos”. O teste sociométrico se materializa em sua representação gráfica, o sociograma. Para a análise das escolhas feitas pelas crianças, alguns pontos norteavam a construção do sociograma: a) Como se configuram as relações entre as crianças na classe do ponto de vista de grupo?; b) As categorias “bom aluno”, “aluno com dificuldade” e “aluno mediano”, conforme definidas pela professora, coincidiam com a escolha de grupos pelas crianças?; c) Como se refletem os aspectos da distribuição de grupos na dinâmica 39 Notas de perguntas que lembrei ao escrever o relato de campo. Não identifiquei essas falas com nomes das crianças. 40 cotidiana da turma? e d) Quem são os alunos que têm maior visibilidade e invisibilidade entre as crianças? De acordo com o número de indicações, classifiquei as crianças da seguinte forma: crianças que tiveram seus nomes indicados por quatro ou mais crianças, representei com o símbolo de “estrela cheia” (Ì); crianças que receberam três indicações, representei com uma “estrela vazia” ( ); crianças que tiveram apenas uma ou duas indicações, foram representadas por “um círculo com ponto” () e crianças que não receberam qualquer indicação, utilizei um “losango” (). O resultado, por um lado, confirmava alguns grupos de interação observados em campo, mas, de outro, trouxe surpresa ao mostrar rechaços ou muitas indicações de algumas crianças que eu não percebia como visíveis durante as observações do espaço escolar. Em aplicação do teste sociométrico em escolares, Moreno (1972) aponta uma complexidade, tal como constatei: Mediante a aplicação de testes a essas crianças, foi possível por em evidência uma complexa estrutura de organização da classe, muito diferente do que se supunha. Alguns alunos não foram escolhidos por ninguém e ficaram isolados; outros se escolhiam reciprocamente e constituíam assim ‘pares’, ‘triângulos’ ou ‘cadeias’; outros atraíam sobre si tantas escolhas que pareciam ocupar o centro da cena, semelhantes às “estrelas”. (p.112) A primeira análise do material coletado mostra uma grande rede formada por quatro grupos: 1. rede dos alunos e alunas considerados “bons alunos”; 2. rede formada pelos avaliados como “indisciplinados” e dos alunos avaliados com dificuldades de aprendizagem; 3. rede formada pelos meninos “medianos” e 4. rede formada pelas meninas consideradas com desempenho mediano. Dentro dessa grande rede encontrei cinco redes menores. Três delas com bastante interligação entre as crianças que fazem parte delas e duas redes com menos interligações. Esse procedimento vem de outra indicação de Moreno (op. cit): Os sociogramas estão combinados de tal forma que, do primeiro mapa de uma coletividade, pode-se tomar pequenas partes para desenhá-las em uma escala maior e estudá-las, por assim dizer, sob um microscópio. (p.86) As três redes mais consolidadas e fechadas em si, configuraram-se de forma quase coincidente com a avaliação da professora entre: “bons” alunos e alunas, meninos 41 com desempenho mediano e meninos com problemas de “indisciplina” e meninas avaliadas com desempenho escolar mediano. Duas redes menores se formaram também: uma das crianças avaliadas pela professora que apresentavam problemas de aprendizagem, que escolheram uma a outra e quase não receberam indicações e uma rede formada por alguns meninos medianos que indicaram bons alunos/as em suas escolhas. Como se pode perceber o olhar da professora sobre o desempenho escolar da turma coincidiu com as escolhas de afinidades das crianças e mesmo as redes menores não desconsideravam a questão da avaliação do desempenho escolar em sua formação. Com esses dados, pude entender e observar mais atentamente os comportamentos em sala de aula e buscar relacionar quais os sentidos dessas escolhas que, de certa forma, coincidiam com a classificação de desempenho escolar feita pela professora. D) Questionário de auto-atribuição de cor/raça A segunda atividade realizada com a participação efetiva das crianças foi um questionário de auto-atribuição de cor/raça40. Nele havia as alternativas correspondentes aos critérios de cor/etnia definidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a saber: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Além disso, também propus uma autoclassificação aberta de cor/raça às crianças com a seguinte pergunta: Como você se classificaria quanto à cor/raça? Justifique. Antes da aplicação do questionário, retomei a proposta de pesquisa, explicitei a importância de pensarmos nas relações permeadas por cor/raça na nossa sociedade e justifiquei a utilização dos critérios utilizados pelo IBGE e o porquê da questão aberta. Discuti sobre a fragilidade da classificação racial, no Brasil, ser feita por meio de cores e que gostaria de saber como eles se auto classificariam se não houvessem as opções do IBGE. As crianças fizeram muitos comentários, alguns remetendo a discriminações raciais vivenciadas ou apontadas pela mídia. Tomaram uma postura de seriedade e crítica em suas falas41: 40 41 Atividade realizada dia 16 de maio de 2007. Notas de falas registradas no caderno de campo em 16.05.07. 42 Eu acho assim, professora, as pessoas parecem não gostar de negros. Eu não sou branco e não me importo... sou normal como qualquer um. E olha que na minha certidão tá marcado que sou branco. (Leonardo) No jogo do São Paulo, jogaram uma banana no campo... Era pra chamar o cara de macaco, porque ele era negro! Não tem graça nisso, não, né?! Tá todo mundo falando que é errado! (Rodrigo) Durante o preenchimento do questionário, havia sussurros que apontavam a dificuldade de escolher uma alternativa: “Tem alguém amarelo?”, “Pardo é assim meio marrom?”, “Que estranho isso de indígena...” e também a surpresa de se depararem com a questão aberta: “Sei lá, não sei...”, “Acho que sou branca e pronto”, “Não sei, é difícil, né...”. Esses sussurros eu apenas anotava, sem conseguir identificar quem falou. Com a tabulação do questionário de auto-atribuição de cor/raça, temos as respostas de 31 crianças (Adriana e Regina estavam ausentes)42 que se classificaram, segundo a cor, como: 11 opções branco, 18 opções pardo e duas opções pela cor preto. A seguir, apresento uma tabela com as respostas ao questionário de autoatribuição de cor/raça, com as escolhas com base nas categorias do IBGE e as respostas escritas das crianças que justificaram essas escolhas: 42 Em uma conversa, sem o registro por escrito, perguntei às meninas como se auto-classificariam quanto à cor/raça. Renata respondeu “negra” e Adriana, depois de pensar um pouco respondeu “morena”. Ao apresentar as categorias utilizadas pelo IBGE, ambas apontaram para a cor pardo. 43 Alunos/as Auto-atribuição Questão fechada: categorias do IBGE Auto-atribuição Questão aberta: Como você se classificaria quanto à cor/raça? Justifique. Bom desempenho DANIELA branco GISELE branco Eu me acho branca porque minha mãe é branca e meu pai branco. - NATALIA branco Eu me classifico como branco. LUCIANA pardo GUSTAVO branco Café com leite misturado com indígena (tataravô). Sou meio amarelo, mas sou branco. LEONARDO pardo LAURA pardo GRAZIELA pardo JULIO pardo Eu me classifico porque minha pele tem essa cor. Eu me acho morena porque meu pai é negro e minha mãe branca. Eu acho que sou morena. Eu me acho mulato porque meu pai é negro e minha mãe é branca. Problemas de comportamento ANDRÉ preto Preto. CÉSAR preto Acho que sou moreno. Problemas de aprendizagem ESTELA branco SABRINA pardo VALÉRIA branco Branca. MAURO pardo Pardo. RICARDO pardo DENIS branco Eu me acho pardo porque meu pai é preto E minha mãe é branca. Eu sou mais ou menos branco. Branco. - Desempenho mediano JANAÍNA branco Acho que sou bem branca. BIANCA pardo Leite com café. JÉSSICA LAÍS pardo branco Porque eu sou mais ou menos branco. LUANE branco CAROLINE pardo Eu acho que sou branca porque minha mãe é branca e meu pai preto. As meninas puxam a mãe e os meninos, o pai. Nem branca, nem preta. TAMIRES branco Eu me acho branca porque minha mãe é branca e meu pai branco. 44 Alunos/as Auto-atribuição Questão fechada: categorias do IBGE Auto-atribuição Questão aberta: Como você se classificaria quanto à cor/raça? Justifique. Desempenho mediano DÉBORA pardo MARCELO pardo Eu me acho pardo porque minha mãe é morena e meu pai branco. Eu me acho pardo. OTÁVIO pardo Eu me acho pardo. RODRIGO pardo - DANIEL pardo ELIAS pardo Eu me acho cor parda, raça dos brancos e forte.(sic) Pardo. CÁSSIO pardo Pardo. Tabela 1 – Auto-classificação de cor feita pelos alunos e alunas e a justificativa anotada por eles na questão aberta. Como se pode observar na tabela acima, a perplexidade das crianças e o estranhamento de escolher uma cor/etnia são justificados com respostas intrigantes na pergunta aberta43. Analisando as perguntas feitas antes da aplicação do questionário, parece que na ausência do termo “moreno”, as crianças utilizam a cor parda em substituição. Das 18 crianças que se declararam pardas na questão fechada, 16 justificaram sua declaração. Dessas, nove utilizaram a palavra pardo na pergunta aberta. Ainda assim, quatro se declararam como morenos. Concordo com pesquisadores como Rocha e Rosemberg (2007) e Fazzi (2004) que afirmam que não declarar-se preto/negro estaria relacionado com a inferiorização e depreciação social dessa categoria, que é alvo de inúmeras expressões hostis. Declararse moreno, porém, afasta os sentidos negativos do pertencimento à raça negra e é um termo bem aceito pela sociedade brasileira, que encobre e silencia o enfrentamento do racismo. Dado que na nossa sociedade a tendência de fazer a classificação racial está pautada tanto em características físicas (cor da pele, tipo de cabelo) e ascendência ou origem, quanto no status sócio econômico da pessoa (Carvalho, 2004a), temos na divergência entre a heteroclassificação da professora e a autoclassificação das crianças a indicação de como é variável e fluída essa classificação (Telles, 2003). 43 Avalio a não resposta à questão por parte de algumas crianças de duas formas: de um lado, por parecer desnecessário repetir a escolha da categoria cor e, por outro, uma dificuldade de justificar determinada opção por não terem espaço para refletirem sobre a questão do pertencimento racial. 45 Anteriormente, a professora Alana44 também havia classificado, em entrevista, seus alunos utilizando os critérios do IBGE. Dessa forma, a classificação de cor feita por Alana de seus alunos e alunas apresenta a tendência de “branquear” as crianças frente à autoclassificação. Dos 33 alunos e alunas, a professora classificou 22 crianças como brancas e 11 como negras (nove com a cor pardo e duas com a cor preto). A seguir, temos uma tabela que separa os alunos e alunas quanto ao desempenho escolar e aponta, respectivamente, a auto e a heteroclassificação de cor feita por criança e professora. As concordâncias estão destacadas em amarelo e as divergências em rosa: Bom desempenho Problemas de comportamento Problemas de aprendizagem Desempenho mediano DANIELA ANDRÉ ESTELA LUANE Branco/Branco Preto/Preto Branco/Branco Branco/Branco Pardo/Pardo GISELE CÉSAR VALÉRIA TAMIRES DANIEL Branco/Branco Preto/Branco ELIAS Branco/Branco Branco/Branco Pardo/Pardo NATALIA SABRINA JANAÍNA OTÁVIO Branco/Branco Pardo/Pardo Branco/Branco Pardo/Branco GUSTAVO DENIS LAÍS RODRIGO Branco/Branco Branco/Pardo Branco/Branco Pardo/Branco LEONARDO RICARDO DÉBORA CÁSSIO Pardo/Pardo Pardo/Branco Pardo/Pardo Pardo/Branco LUCIANA MAURO CAROLINE MARCELO Pardo/Pardo Pardo/Branco Pardo/Pardo Pardo/Branco GRAZIELA REGINA Pardo/Branco Pardo/Pardo LAURA JÉSSICA Pardo/Branco ADRIANA Pardo/Branco Pardo/Preto BIANCA Pardo/Branco JULIO Pardo/Branco Tabela 2 – Classificação dos alunos por desempenho e comparação, respectivamente, entre autoatribuição de raça/cor pelos alunos e alunas e hetero-atribuição de raça/cor, segundo a professora da turma. Podemos perceber que entre as meninas há mais concordância com a classificação da professora. Já entre os meninos a discordância é acentuada, principalmente entre aqueles que a professora classifica como brancos e que, por sua vez, se autoclassificam como pardos. A concordância com as crianças ocorreu na classificação de André (preto) e com todas as crianças que se autoclassificaram como brancas (com exceção de Denis que foi heteroclassificado como pardo). Também entre oito crianças que se autoclassificaram utilizando a cor pardo. A discordância ocorreu no caso de 11 crianças, que se autoclassificaram como pardas e foram classificadas por Alana como brancas. Também houve a discordância 44 Tanto professora quanto pesquisadora se autoclassificam como brancas. 46 com Jéssica que se classificou como parda e foi heteroclassificada como preta e com César que se classificou como preto e foi heteroclassificado como branco pela professora. Por outro lado, se pensarmos em apenas dois grupos raciais (brancos e negros) temos uma turma de maioria negra (20 crianças) na declaração das crianças e uma turma de maioria branca (22 crianças) para a professora. Essa tendência das professoras que se autoclassificam como brancas “branquearem” os alunos e alunas foi apontada nos estudos anteriormente citados de Carvalho (2001, 2004a, 2004b e 2005) e no artigo de 2004a temos a seguinte afirmação: A idéia de que era constrangedor para as professoras, ou até mesmo ofensivo, classificar as crianças como pardas ou pretas aparece como explicação possível para esse branqueamento frente à auto-percepção dos próprios alunos e alunas. (p. 271, 272) Além disso, considerando que no contexto escolar as classificações e apreciações sobre os alunos são perpassadas pelos atributos de desempenho e comportamento, as concordâncias e discordâncias de classificação de cor devem ser pensadas como variáveis relacionadas e (re)significadas naquele coletivo. E) Questionário socioeconômico O questionário socioeconômico foi entregue às crianças após a minha participação na Reunião de Pais45, no dia 24 de maio de 2007, dois meses depois de iniciadas as observações no espaço escolar46. Estavam presentes os responsáveis por 24 crianças da turma. Logo no início da reunião, a professora Alana pediu para que eu me apresentasse e explicasse o projeto de pesquisa. Esclareci todas as dúvidas, nenhum responsável reclamou ou indagou negativamente minha exposição. Ao contrário, muitos pareciam me ver como alguém 45 Reuniões de final de semestre que constam no Calendário Escolar, onde as professoras recebem os pais e responsáveis pelas crianças para apresentar o panorama da turma, as questões que estão em evidência, avaliar o planejamento proposto e entregar avaliações e conceitos atribuídos aos alunos e alunas. 46 Questiono-me sobre dois pontos quanto ao início das observações no espaço escolar: a) não ter conversado com as crianças sobre participarem dessa atividade, se permitiriam ou não, e b) não ter comunicado anteriormente aos pais sobre a pesquisa. Penso que são pontos éticos importantes a serem considerados numa próxima entrada em campo. 47 que “vai ajudar meu filho”. Durante a reunião, como sentei no meio deles, conversei brevemente com as mães de Otávio, de Estela e Graziela. No final de junho, tive o retorno de apenas 16 questionários preenchidos. Entreguei um novo aos alunos que haviam “perdido”, obtive mais quatro. Dois alunos disseram tê-lo dado à professora e a uma funcionária da secretaria da escola, mas os papéis não foram localizados. Dessa maneira, tive acesso a apenas 20 questionários47. Dos 20 recebidos, constatei que apenas cinco famílias apresentavam uma renda familiar mensal acima de cinco Salários Mínimos (SM)48 e 10 famílias apresentavam uma renda até dois SM, ou seja, uma renda de até R$ 760,00. Além disso, nessas famílias com renda mensal até dois SM, a renda era responsável por manter de três a cinco pessoas na família49. Quanto à escolaridade dos responsáveis em acompanhar as crianças nas atividades escolares (a grande maioria de mães), temos apenas a indicação de três mães que não completaram o ensino fundamental, mas apresentam ao menos quatro anos de escolarização. Os outros responsáveis indicaram ter completado o ensino fundamental e o ensino médio. Duas mães e um pai estavam cursando o ensino superior. Para pensar na articulação entre renda e desempenho escolar, podemos ter algumas indicações, ainda que limitadas devido ao número de questionários não respondidos: a) frente aos demais alunos/as da turma, entre os “bons alunos” temos uma renda maior (acima de três SM), e apenas Adriana indicou uma renda até um SM; b) já entre as cinco crianças que apresentavam dificuldades no contexto escolar, a renda variou entre 1 e 2 SM e apenas André indicou renda de até três SM e, c) dos 16 alunos/as considerados com desempenho mediano, apenas 8 o responderam e a renda, nesses casos, é muito variável, desde a situação de Elias (até um SM) à de Cássio (de mais de seis SM). No entanto, gostaria de ponderar duas observações. Primeiro, como os dados são escassos, não tenho o intuito de adotá-los como centrais para essa análise. E, mesmo com os dados coletados, não pude perceber quais sentidos relacionados à classe social estariam contribuindo ou não para a construção de estratégias escolares de (in)visibilidade. 47 Ver tabulação dos dados no Anexo D. Em maio/junho de 2007, no Brasil, o valor equivalente a um SM (Salário Mínimo) era de R$ 380,00 (trezentos e oitenta reais). 49 Em alguns casos mais de cinco pessoas, mas o questionário não especifica quantas pessoas no total. 48 48 Avaliei, assim, que a opção de apenas aplicar um questionário socioeconômico não foi capaz de captar sentidos para compreender o estar (in)visível em sala de aula. A única informação evidente é que há uma correlação entre aluno com desempenho mediano que não trouxe o questionário: seria uma estratégia de “estar ausente”, “invisível”? Acredito que seria muito interessante ter o discurso das crianças sobre eventuais diferenças de status social. As observações em sala de aula indicaram possíveis diferenciações entre as crianças em quesitos do cotidiano, como ter o melhor caderno, canetas coloridas, mochila diferente, equipamentos (calculadora, celular, jogo eletrônico), trazer lanches de casa, ter uma troca de roupa para a aula de educação física ou simplesmente o uso do uniforme completo (distribuído gratuitamente pela prefeitura), elementos não evidenciados apenas com o preenchimento do questionário socioeconômico. F) Entrevistas com as crianças A partir das orientações baseadas nos estudos da Sociologia da Infância que visam “compreender aquilo que a criança faz de si e aquilo que se faz dela, e não simplesmente aquilo que as instituições inventam para ela” (Sirota, 2001), a opção por entrevistar as crianças vem de encontro com a proposição de que elas participariam da pesquisa como atores sociais: O estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente. (Pinto e Sarmento, 1997, p. 27) A proposta inicial era entrevistar todas as crianças da turma. Mais uma vez, como toda intervenção da pesquisa, tive uma conversa com a turma para explicar a importância de escutá-los, de refletir juntos sobre algumas idéias que, até aquele momento, me chamavam a atenção na minha busca de perceber as diferenças entre as crianças na classe. Contei como pensava o formato da entrevista, expliquei que gravaria o que falassem para “não perder nenhuma informação”, que faria a entrevista inicialmente em grupo e depois pretendia fazer entrevistas em duplas. Após responder 49 todas as perguntas das crianças, entreguei uma filipeta que continha um espaço para as crianças escreverem seus nomes, a pergunta “Gostaria de ser entrevistado/a?” e as alternativas “sim” e “não”. Com uma postura de seriedade e demonstrando muita vontade em colaborar com a pesquisa, recebi em menos de dez minutos todas as filipetas respondidas. Com exceção do aluno Daniel50, todas as crianças aceitaram participar de mais essa atividade de pesquisa. Escutei, pautada na classificação por desempenho escolar feita pela professora, as crianças em três grandes grupos: o grupo dos “bons alunos”, o grupo dos “alunos medianos” e o grupo dos “alunos com dificuldades”. Contudo, a fim de não estigmatizar nenhuma criança, essa denominação não foi explicitada no momento de chamá-los para a entrevista. Entretanto, um integrante do grupo dos “bons alunos” explicitou durante a entrevista reconhecer essa classificação51. Essas entrevistas aconteceram durante o mês de agosto de 2007, momentos em que julguei já estar familiarizada com alunos e alunas, após os meses de observação em classe. Essa opção pareceu-me acertada já que, no decorrer das entrevistas, pude intervir dizendo “percebi isso, durante as aulas” ou ainda escutar das crianças “ficamos mais bonzinhos quando você está lá, a classe fica mais quieta (risos)”. Terceira atividade que demandou a participação direta das crianças, a entrevista foi realizada a partir de um roteiro com quatro temáticas: 1) Questões gerais sobre a escola: o que gostam ou não na escola, opinião sobre a turma e sobre a professora; 2) Definição sobre o que é ser um bom aluno e aluna; 3) Diferenças percebidas na turma entre meninos e meninas e 4) Visibilidade e invisibilidade na turma: quem aparece e quem não aparece na classe? O roteiro semi-estruturado permitiu que outras questões aparecessem durante as entrevistas, abarcando outros pontos que muito me auxiliaram nas análises. Todas as entrevistas duraram aproximadamente 40 minutos, com grupos de até dez crianças. Na falta de uma sala de aula, realizei-as numa escadaria ao ar livre, próxima ao 50 A última entrevista realizada com grupos foi realizada dia 10 de agosto. Nesse momento, descumprindo o que me propus como ética, ao chamar as crianças, simplesmente falei: “Vamos? Quem não foi entrevistado ainda?” e olhei para Daniel. Ele rapidamente levantou e abaixou a mão. Depois da entrevista, em momento de observação de aula, Daniel veio mostrar-me seu trabalho, perguntando se estava bonito e eu perguntei: “Por que não quis ser entrevistado?” e ele simplesmente respondeu: “Eu marquei ‘não’ naquele papelzinho, você lembra?” e, assim, me alertou sobre como respeitar as crianças, dada a desigual relação de poder estabelecida entre crianças e adultos. 51 Julio, quando questionado sobre quais alunos não apareciam em classe, afirmou: “Fora esses alunos que estão aqui, todos outros não aparecem muito. Acho que aqui estão os bons alunos, né...” 50 estacionamento da escola. Ali estávamos mais protegidos dos ruídos das salas de aulas. No dia marcado para o início das entrevistas (04.08.07), perguntei a Alana qual seria o grupo que deveria entrevistar primeiro. Depois de olhar minhas listas e me dizer quem estava na aula ou não, concluiu: “Comece com esse grupo [dos “bons alunos”] porque estão todos aí...” As entrevistas seguiram o padrão de comportamento em classe. Destarte, a entrevista com o grupo dos alunos classificados com bom desempenho escolar fluiu facilmente, com respostas completas e reflexões construídas coletivamente. Em nenhum momento percebi desatenção ou distração. Mesmo não sentadas, pois algumas estavam em pé perto de mim, as crianças não perderam a concentração na atividade. O grupo que apresentava bom desempenho escolar é composto pelos seguintes alunos e alunas52: Gustavo, Julio, Leonardo, Adriana, Graziela, Natalia, Daniela, Gisele e Laura. A segunda entrevista (08.08.07), realizada com as crianças consideradas com o desempenho mediano aconteceu com um pedido meu de maior atenção. As crianças começaram respondendo seriamente às perguntas, mas em pouco tempo, se viam distraídas com as respostas, algumas não permaneceram sentadas e começaram a brincar umas com as outras, conforme seus nomes eram citados pelos companheiros. Algumas, mais quietas, pareciam incomodar-se com a movimentação dos outros. No entanto, foi uma entrevista que trouxe informações importantes. Desse grupo faziam parte os seguintes alunos/as53: Rodrigo, Otávio, Elias, Cássio, Jéssica, Laís, Tamires, Luane, Bianca e Janaína. O último grupo a ser entrevistado (10.08.07) compunha-se das crianças que haviam faltado nos dias das entrevistas anteriores e também dos alunos que foram indicados por Alana por apresentarem alguma dificuldade no contexto escolar (comportamento ou aprendizagem). Alunos extremamente quietos em classe se revelaram agitados durante a entrevista (indisciplinados), pois não pareciam estar interessados nas perguntas por mim formuladas e queriam brincar uns com os outros. As meninas tentaram colaborar mais com o processo, mas os meninos tomavam a cena. Intervi algumas vezes, pedindo que parassem de se provocar e até perguntei se gostariam de voltar para a classe. A qualquer manifestação de incômodo meu, as 52 Totalizando nove crianças entrevistadas. A aluna Luciana foi transferida de escola no final de maio. Das 15 crianças classificadas como medianas pela professora, entrevistei apenas dez. O aluno Daniel não aceitou ser entrevistado e Caroline, Regina, Débora e Marcelo estavam ausentes. 53 51 crianças aquietavam-se e buscavam responder às questões, mas pareceu difícil compreender o que eu estava perguntando. Senti como se essas crianças estivessem sendo provocadas por mim naquele exato momento e que nunca tivessem tido contato com o que eu estava propondo pensar coletivamente. Respostas curtas e muitas vezes sem sentido deram o ritmo dessa entrevista. Caroline e Débora, classificadas como alunas medianas também participaram dessa entrevista com o grupo considerado de alunos/as com dificuldades no contexto escolar (aprendizagem e/ou disciplina), por terem faltado no dia da entrevista com o grupo dos alunos “medianos”. Com elas estavam também na entrevista: Mauro, Denis, Ricardo, André, César, Valéria, Sabrina e Estela. Já em outubro54 retomei as entrevistas com as crianças, incorporando questões que apareceram nos grandes grupos. As novas entrevistas foram realizadas em duplas, segundo afinidades apresentadas no sociograma. Nesse momento, interessava-me escutar e saber mais das crianças que se apresentaram, no decorrer do ano, como duplas interessantes para pensar como alunos e alunas que pareciam construir estratégias de invisibilidade, principalmente. O final de ano é um período bastante agitado em uma escola. Eu não pretendia atrapalhar nenhuma atividade programada pela professora. Tive, também, uma limitação de horários para o trabalho de campo e, por esse motivo, só consegui realizar três entrevistas com as seguintes crianças: os meninos Otávio e Elias, e duas duplas de meninas: Bianca e Janaína, Natália e Débora. Apesar disso, essas entrevistas foram fundamentais para as análises aqui elaboradas. Num momento mais individualizado, pude aprofundar com as crianças algumas idéias que apareceram nas entrevistas com os grandes grupos e, também, perceber outros temas importantes para esse trabalho. A opção de produzir conhecimento incorporando as falas das crianças, como sujeitos de pesquisa, legitimando sua expressão, apareceu como acertada. Alunos e alunas puderam refletir e falar sobre questões relacionadas às suas experiências e percepções acumuladas nesses anos de escolarização, com encontros/desencontros, coerências/contradições que demandaram esforço para desvelar os sentidos que eles construíram e reconstruíram durante as entrevistas. 54 A professora Simony assumiu as aulas de Alana durante a licença-maternidade. Não realizei observações em classe nesse período. No entanto, Simony sabia da proposta da pesquisa e mostrou-se disposta a me auxiliar. Pedi, então, a permissão de retirar alguns alunos e alunas da sala de aula para realizar as entrevistas, no dia 29 de outubro de 2007. 52 PARTE 2 CENAS DO COTIDIANO ESCOLAR “Somente quando temos a possibilidade de apreender o heterogêneo no aparentemente homogêneo, o plural onde se costuma falar no singular, é que adquirimos condições de realizar a ascensão do abstrato ao concreto de que fala o materialismo dialético.” (Patto, A produção do fracasso escolar, 1991) Na primeira parte deste trabalho, descrevi e apresentei os caminhos percorridos por essa pesquisa. Contudo, para realizar o que Geertz (1978) chama de descrição densa, foi necessário desvelar o que o material empírico trazia a cada visita de campo. Foi a partir de muita reflexão e do entrecruzar de experiências, anotações de caderno de campo, ações vivenciadas na cotidianidade que emergiam análises antes não imaginadas. Quem tem visibilidade na sala de aula? Por quê? Como visto, inicialmente, minha hipótese era de que alunos e alunas com bom desempenho escolar e com dificuldades de comportamento e/ou aprendizagem seriam alvos visíveis da professora em classe. O que me incomodava era o silêncio a respeito de determinados alunos e alunas que pareciam estar “invisíveis” frente ao olhar da professora. Esse incômodo inicial, como já foi exposto, vejo como conseqüência do meu olhar de professora, pautado num modelo de aluno ideal que participa, que ao interagir com o professor constrói de maneira satisfatória seu desempenho escolar. Tanto o silêncio dos professores a respeito dessas crianças “invisíveis”, quanto o silêncio delas no cotidiano me parecia, a priori, algo extremamente negativo. De maneira linear, minha percepção era de que o professor não teria sua atenção para o processo de aprendizagem desses alunos e, por sua vez, os alunos não se envolveriam com o conhecimento por colocarem-se num lugar de invisibilidade permeado por sentimentos de medo e vergonha. No entanto, se caminhasse nessa direção, a pesquisa estaria contribuindo para a ampliação do escopo de “problemas” a serem resolvidos na escola. Teríamos mais uma categoria a ser pensada: “crianças invisíveis na escola”. Ou seja, professores teriam que 53 ter controle e intervir para que não houvesse alunos “invisíveis” em sala de aula, do mesmo modo com que tentam intervir para que não haja alunos com problemas de aprendizagem e de comportamento. E avalio essa possibilidade como bastante negativa. Em contraposição, o que esse trabalho se propõe é buscar compreender, no cotidiano escolar pesquisado, como se dão as estratégias de construção de visibilidades e invisibilidades em sala de aula. E nessa perspectiva, pensar como crianças que já tem uma trajetória escolar de pelo menos três anos de escolarização, se apropriaram dessas estratégias de estar mais ou menos visíveis ao olhar do professor e quais sentidos representam no “torna-se aluno”. Dessa forma, ao procurar alargar a compreensão acerca de visibilidades e invisibilidades no contexto escolar, me defrontei com uma tarefa mais complexa. As visibilidades em sala de aula poderiam, sim, estar centradas em alguns “bons e maus” alunos, mas essa categorização não abarcou efetivamente as questões presentes naquele cotidiano. Tornou-se necessária uma reorganização das análises acerca dos alunos e alunas classificados pela professora como “bons alunos”, “alunos com dificuldades de aprendizagem e/ou disciplina” e “alunos medianos”. Pois se, por um lado, temos “bons alunos” destacando-se no cotidiano, pela interação efetiva com sua professora, por outro é também verdade que alguns desses “bons alunos” não interagem, respondem ou contestam a professora, mas garantem conceitos satisfatórios nas suas atividades. O mesmo acontece com alunos com dificuldades de aprendizagem, que não apresentam questões de indisciplina e que se colocam quase como invisíveis frente à professora. Sua visibilidade, no entanto, é garantida pelos seus conceitos insatisfatórios, que chamam a atenção da professora sobre eles. Alguns alunos e alunas medianos, por sua vez, destacam-se na interação em classe, seja com a professora, seja com os seus pares. Porém, seu desempenho escolar oscila entre satisfatório e insatisfatório. Outros alunos e alunas com desempenho mediano silenciam, cumprem as atividades propostas de maneira satisfatória, mas não expõem suas idéias e opiniões. Experimentam a possibilidade de estarem “invisíveis” frente ao olhar da professora, que tem como padrão o aluno participativo e socialmente bem aceito. Busco compreender, em síntese, como nessa situação específica que é a sala de aula, as relações estabelecidas fazem com que surjam as qualidades necessárias para se exercer o papel de aluno/a. O tornar-se aluno é uma construção baseada no que a criança 54 entende que a escola espera ou não dela. Há modelos relacionados com “sucesso” ou “fracasso” na escola, marcados por comportamentos cotidianos estabelecidos na relação professor-aluno. Em outras palavras: compreender como e em que medida, na situação pedagógica que a escola primária propõe, efetua-se este ou aquele trabalho de transposição, de reinterpretação e de transformações mútuas de cada um dos atores sociais, e isso através da interação social que coloca frente a frente professores e alunos. (Sirota, p. 11, 1994). Ao adentrar no cotidiano da sala de aula, onde alunos/as e professora expressariam de alguma forma seus sentidos, capacidades intelectuais, habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, idéias (Heller, 2000), tentaria decifrar quais modelos estariam em cena: modelos múltiplos e mutáveis, que ao se generalizarem, objetivamente marcavam sua posição nas relações ali estabelecidas, no “deve-ser na vida cotidiana” (idem, p.94), nesse caso, vida cotidiana na sala de aula. Assim, a partir do entrelaçar das falas de crianças e professora, no texto a seguir, busquei deslindar estratégias e sentidos que pudessem ajudar na compreensão do estar (in)visível frente ao olhar da professora no cotidiano escolar. As reflexões introdutórias contidas neste texto buscam contribuir com os estudos que buscam evidenciar as dimensões de gênero e raça presentes no cotidiano escolar e criar espaços para se pensar qual a responsabilidade da escola na construção de relações mais igualitárias nesse espaço. Ao optar por um enfoque não centrado nas diferenças baseadas na bipolaridade menino/menina e fazer comparações genéricas sobre “meninos” ou “meninas”, este estudo pretende utilizar-se da categoria gênero como categoria analítica. Ou seja, um olhar que enfatiza a necessidade de atenção às linguagens e ao papel das diferenças percebidas entre os sexos na construção de um sistema simbólico, especialmente na significação das relações de poder (Scott, 1990 e Nicholson, 2000), refletindo sobre as práticas sociais e as possibilidades de ação dos sujeitos (Varikas, 1994). Proponho, ao lado do enfoque de gênero, observar alguns indícios de marcas que remetem à categoria raça, ao desvelar discursos e práticas observados nas relações entre professora e alunos/as e entre alunos e alunas. O conceito de raça utilizado aqui é o de “raça social”, como construção social baseada na diferenças percebidas entre os sujeitos, muito eficaz para justificar, manter e reproduzir desigualdades e privilégios (Guimarães, 1999). 55 Com isso, procurarei compreender, também, como os diferentes significados de gênero e raça, construídos e redefinidos naquele contexto, se relacionam com desempenho escolar das crianças e, consequentemente, com suas estratégias de (in)visibilidades em sala de aula. 56 CAPÍTULO 1 A TURMA PESQUISADA: 4º ANO C E SUA PROFESSORA Eu sou pedagoga, me formei na FMU com especialização em Educação de Surdos e depois eu fiz Psicopedagogia Clínica, na UNISA, em Santo Amaro. [pausa]. Ah, eu fiz também Magistério numa escola pública em Santo Amaro, o Alberto Comte. Depois que eu saí do Magistério eu fui dar aula, mas tive uma grande decepção e fui fazer Turismo. Pensei: “Não vou dar aula mais não... isso não é pra mim... onde já se viu, você desenvolve um bom trabalho e vem o diretor e tira você da escola, então vou fazer outra coisa...isso não é futuro...”. E aí fui para o turismo. Mas, antes de iniciar, fui fazer um curso de emissão de passagens nacional e depois internacional. O tempo todo eu imaginava aquilo numa aula de geografia como seria: isso de trabalhar localização, por exemplo. Quem trabalha com emissão de passagens tem que ser muito bom em geografia, pra ele poder passar horário direitinho de chegada, tem diferenças de horário em alguns Estados brasileiros... tudo aquilo eu imaginava dentro de uma aula. Uma figura da Disney numa viagem, eu pegava e imaginava na aula... Tudo eu imaginava: aula, aula, aula... Não conseguia me separar daquilo. [pausa] Aí eu falei “quer saber de uma coisa, vai logo dar aula e pronto” [risos]. E aí fui fazer Pedagogia e não me arrependi, principalmente por causa do EDAC55, que foi o que me abriu um monte de portas, melhorou a minha prática em sala de aula, por causa do conhecimento de se trabalhar com crianças que têm uma certa dificuldade... (professora Alana, entrevista 04.07.07) Alana, professora que exercia o magistério desde 1991, sempre demonstrou ser uma pessoa inquieta e com vontade de aprender mais. Em nenhum momento parecia acomodada frente às dificuldades encontradas em seu dia-a-dia e, acima de tudo, sua atitude sempre foi a de indagar o que parecia não estar correto. Com uma empatia e cumplicidade sem igual, Alana expunha seus pontos de vista e inquietações em nossas conversas. Com um olhar questionador sobre a situação do professor em sala de aula e sobre as possibilidades ou não de se realizar um bom trabalho, refletia: Gosto da prática pedagógica mesmo e acho que a gente tem que mudar a nossa proposta. Acho que está na mão do professor boa parte dessa mudança. Tem uma parte também que é burocrática, que é do número de alunos por turma, em sala. A oportunidade de se ter um espaço bacana de reforço, que seja sistematizado e não uma coisa que esteja dependendo do 55 EDAC: Educação pra Deficientes em Áudio Comunicação, habilitação oferecida no curso de graduação em Pedagogia. 57 outro, sem interrupções. Seria importante uma troca com os professores sobre esses alunos que têm certa dificuldade. (professora Alana, entrevista 04.07.07) Alana trabalhava em duas escolas. Pela manhã dedicava-se à turma do 4º ano C e à tarde trabalhava como professora de Sala de Leitura em outra escola, localizada no Município de São Paulo, que atende apenas crianças portadoras de deficiência auditiva. Na ocasião da última entrevista, ela pensava em formas de reorganizar seus horários de trabalho, devido ao nascimento de sua filha. Se isso não fosse possível, iria exonerar-se de um dos cargos, o que lhe daria mais tempo para lidar com as necessidades do bebê. A professora, que acompanhei durante os meses de março a agosto de 2007, demonstrou, ao longo desse tempo, algumas facetas que constituíam seu jeito de atuação na escola. Institucionalmente, era uma profissional muito crítica em relação às exigências da coordenação e direção da escola. Como professora, foi definida por si mesma como “exigente”, afinal “quero que eles pensem!”. Para os seus alunos e alunas, sua caracterização girava em torno do “é brava, mas legal e divertida”. Preciso aqui fazer uma ressalva a respeito do que algumas crianças caracterizavam como “divertida”. Alana muitas vezes, em tom de brincadeira, fazia comentários que a mim pareciam mais irônicos que divertidos. Em alguns momentos eu tinha a impressão de que as crianças não entendiam suas falas, apesar de rirem e demonstrarem interesse pelo que falava. Refletindo sobre as condições de aprendizagem de seus alunos, a professora Alana afirmava trabalhar com uma turma “condicionada a não ler” e que “só querem a resposta pronta”. Ela sentia-se incomodada com uma fala usual entre professoras do 1º ciclo do ensino fundamental que, para justificar o baixo desempenho sem problemas de disciplina de alguns alunos/as, usam a expressão “aluno copista”. Essas crianças seriam aquelas que, ao não se apropriarem efetivamente do conteúdo, acabam realizando as atividades de forma mecânica, tendo bom comportamento e uma boa apresentação de atividades e cadernos: Eu não sei o que é um aluno copista! Minhas atividades não são só pra copiar, não sei o que é um copista... Eu pego minha sala que tem alunos que copiam e não pensam! A escola tem uma dinâmica assim... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Alana, ao se opor a aulas menos participativas, ao mesmo tempo questionava seu modo de apresentar conteúdos, de querer a participação ativa das crianças, buscar dar 58 sentido ao conhecimento aprendido, ao analisar o baixo desempenho da sua turma no simulado56 para a “Prova São Paulo57”: Será que eu estou perdida, “viajando”? Que estou fazendo as coisas de uma maneira maluca? Será que esse tipo de trabalho será melhor pra eles? Voltar pra uma realidade de uma escola que copia! Eu não sei... Depois do resultado dessa prova, vi que os caras foram mal... eram 20 questões, Tamires acertou 4, não é porque não sabe ler! A Jéssica não respondeu, não terminou... (entrevista em 24.08.07) Alana se preocupava com os alunos e alunas de sua turma que, em especial a partir da pesquisa, passou a perceber como não participativos, “invisíveis”. Sempre comentávamos alguma cena, falávamos sobre o que presenciávamos em sala de aula. A professora indicava uma série de fatores que influenciavam nessa dinâmica escolar que não atende satisfatoriamente um grande número de crianças: “... a sala numerosa provoca isso, a falta de projeto provoca isso (a escola não tem...), a gente não senta pra fazer planejamento...” (entrevista em 04.07.07) Antes da reunião de Conselho de Classe no final do 1º semestre de 2007, a professora lamentou a falta de espaço institucional para pensar efetivamente a recuperação de alunos e alunas que têm construído trajetórias de “fracasso escolar”. Remeteu-se ao exemplo do aluno Ricardo que sequer estava alfabetizado (apesar de estar cursando pela segunda vez o 4º ano do ensino fundamental), mas que “certamente irá passar de ano [ser aprovado]... E como será na quinta série58?” (entrevista em 04.07.07). Alana afirmou ter se disposto a ministrar aulas em turmas com projeto de recuperação, mas tampouco teve apoio institucional. O único momento proporcionado pela escola para recuperação aconteceu na última semana de aula do 1º semestre, em apenas três dias letivos. Em suas falas, Alana passava a sensação de estar sozinha, imaginando uma outra escola, uma outra forma de possibilitar oportunidades efetivas de aprendizagem para as 56 Antes da prova oficial, as turmas foram submetidas a um simulado, que foi corrigido pelas professoras de classe. 57 A Prova São Paulo é um exame aplicado a todos os alunos e alunas dos 2º, 4º, 6º e 8º anos do ensino fundamental da rede municipal de São Paulo. Aplicada no final de novembro de 2007, a prova, com questões de Língua Portuguesa e Matemática, utiliza a mesma base metodológica da Prova Brasil, exame do governo federal aplicado em 2005 nas turmas de 4º e 8º anos. Assim, os resultados são comparáveis. 58 Apesar da escola estar organizada em ciclos de quatro anos, observamos que tanto professoras como alunos utilizam a expressão “série” ao invés de ano escolar. Acredito que, de algum modo, a expressão pode ser ainda utilizada por costume e repetição, por outro, é fato que a escola pouco mudou efetivamente em sua organização que marcasse a diferença de um curso seriado ou em ciclos. 59 crianças. Não aceitava facilmente as condições dadas, questionava o tempo todo e até arriscou-se ao aceitar que uma pesquisadora entrasse em sua sala de aula e desvelasse o que não estava evidente. Com isso, eu – professora – sentia-me feliz ao compartilhar com a Alana as dores e alegrias da docência, acreditando sempre na construção de uma escola melhor. Aos poucos, fui conhecendo seus trinta e três alunos e alunas. Cada anotação de campo, cada reflexão sobre o que via e descrevia do cotidiano, sobre o que parecia repetido, normal e até banal, foi se configurando com força e sentidos não previstos ou imaginados. Ao articular dados da observação de campo com os dados coletados por meio dos demais instrumentos de pesquisa utilizados (teste sociométrico, questionários de classificação racial e socioeconômico), construí “mapas” de classe que não apenas me indicavam os nomes das crianças e o respectivo local que ocupavam na sala de aula, mas também traziam informações que levam a uma caracterização da turma. Em síntese, informações já apresentadas na primeira parte desse trabalho foram organizadas, considerando a localização espacial dos alunos e alunas em sala de aula. A seguir, apresento o mapa de classe do dia 11 de abril de 2007. Proponho a observação deste “mapa de classe”, considerando as seguintes informações: O sexo das crianças é identificado pelas cores azul nos nomes para meninos e rosa para meninas. Do teste sociométrico há uma seqüência de símbolos representando a quantidade de indicações recebidas por cada criança: Ì (estrela cheia), para quem recebeu quatro ou mais indicações; (estrela vazia), para crianças que receberam três indicações; (círculo e ponto), para as crianças que tiveram apenas uma ou duas indicações e (losango), para as crianças que não receberam qualquer indicação de seus pares. A classificação racial está indicada por abreviações das categorias de cor do IBGE, sendo: PR, preto; PA, pardo; B, branco59 e os pares representam, respectivamente, a autoclassificação e heteroclassificação feita pela professora. A informação sobre a renda familiar encontra-se em valores absolutos a partir do número de Salários Mínimos: 1 SM corresponde a R$ 380,00; 2 SM correspondem a R$ 760,00; 3 SM correspondem a R$ 1.140,00; 4 SM correspondem a R$ 1.520,00; 5 SM correspondem a R$ 1.900,00 e 6 SM correspondem a R$ 2.280,00. 59 Nenhuma criança se autoclassificou ou foi classificada pelas categorias “amarelo” ou “indígena”. 60 As cores dos quadros referem-se à classificação feita pela professora, quando questionada sobre quem são os “bons alunos” (quadros amarelos), os alunos “com dificuldades de aprendizagem” (quadros verdes) e os “alunos com problemas de comportamento” (quadros azuis). Os alunos não inseridos em nenhuma dessas classificações, são representados pelos quadros cinzas. A letra R, em vermelho, corresponde às crianças convocadas para as aulas de recuperação60 que aconteceram no final do 1º semestre de 2007. Ressaltei a importância de indicar esse ponto, pois Alana revelou-me que, por causa da pesquisa, convocou muitos alunos e, dentre eles, um número de crianças sobre cujas aprendizagens ela carregava dúvidas. ALANA Professora MAURO SABRINA PA/B R RICARDO PA/B até R$ 760,00 R GUSTAVO B/B até R$ 1140,00 MARCELO PA/B R Ì LEONARDO PA/PA REGINA PA/PA R RODRIGO PA/B - PA/PA até R$ 380,00 R DANIEL PA/PA R VALÉRIA B/B até R$ 760,00 R CÁSSIO PA/B mais de R$ 2280,00 R OTÁVIO PA/B R ELIAS PA/PA até R$ 380,00 R LUCIANA PA/PA - DANIELA B/B mais de R$ 2280,00 DENIS B/PA R JÉSSICA PA/PR até R$ 760,00 ANDRÉ PR/PR até R$ 1140,00 R LAÍS B/B até R$ 760,00 R Ì ADRIANA PA/B até R$ 380,00 GISELE B/B mais de R$ 2280,00 Ì GRAZIELA PA/B até R$ 2280,00 - JANAÍNA B/B até R$ 1900,00 Ì TAMIRES B/B R ESTELA B/B até R$ 380,00 R JULIO PA/B LAURA PA/B até R$ 1140,00 PATRICIA Pesquisadora CAROLINE PA/PA até R$ 2280,00 R CÉSAR PR/B até R$ 380,00 R Ì LUANE B/B R BIANCA PA/B R DÉBORA PA/PA até R$ 760,00 NATALIA B/B - A cada ida a campo com observação em sala de aula, fazia mapas de localização na classe. No início, sem saber os nomes de todos os alunos, identificava apenas os 60 Nos três últimos dias letivos do primeiro semestre, antes do recesso escolar, foram convocadas para as aulas de recuperação apenas as crianças que apresentavam algum tipo de dificuldade, por indicação da professora. 61 lugares de meninos e meninas. Aos poucos passei a observar outros aspectos. Cada mapa constituiu-se um conjunto de reflexões. No entanto, no decorrer do ano pude perceber semelhanças nessas composições. Pois, se de um lado houve mobilidade física no espaço da sala de aula entre as crianças, por outro, é também verdade que alunos e alunas ocuparam lugares muito próximos aos anteriores. Proponho uma leitura específica do mapa acima, considerando os seguintes aspectos: a) localização na classe x desempenho escolar; b) localização na classe x sexo; c) localização na classe x cor/raça x renda familiar e d) localização na classe x redes de afinidades. Quanto aos lugares ocupados, havia a interferência da professora na escolha, principalmente dos alunos considerados indisciplinados e dos alunos e alunas com dificuldades de aprendizagem, sempre colocados mais perto de sua mesa e/ou nas primeiras duas carteiras de cada fileira. Parece-me que essa opção de Alana decorria da intenção de ter mais controle das atividades e disciplina dos alunos/as que demandavam mais sua atenção, prática recorrente entre professoras do 1º ciclo, que buscam prestar atendimentos individualizados durante suas aulas. Vale ressaltar que, no decorrer das observações, essas crianças foram as que tiveram mais mobilidade no espaço físico da sala de aula. Ao passo que, alunos e alunas com bom desempenho escolar, na maioria das vezes, escolhiam seus lugares e essa opção parecia ser preferencialmente por lugares ao fundo da sala ou, ainda, perto de crianças com as quais tinham maior afinidade. Alunos e alunas com desempenho mediano pareciam preencher o espaço entre esses dois grandes grupos, buscando consolidar as redes de amizade. Entretanto, a professora também intervinha nesse caso, separando grupos que pudessem conversar e atrapalhar a aula. A escolha da professora por determinar que crianças que apresentavam problemas de aprendizagem e/ou disciplina sentassem mais próximo à sua mesa levava a que muitos meninos sentassem-se próximos à sua mesa. As meninas, no geral, sentavam-se nas fileiras mais afastadas e as meninas “boas alunas” concentravam-se no fundo da classe. A situação das crianças quanto à declaração racial e de renda (apesar de não ter a totalidade das informações) não parecia determinar sua localização na classe, tampouco a formação de grupos de trabalho ou de amizade, que estariam baseados muito mais na avaliação de desempenho escolar. Com o resultado do teste sociométrico e a construção 62 de sociogramas, confirmei que a impressão de que a escolha de lugares na classe buscava manter redes de afinidades entre as crianças. Sabendo da opção dos “bons alunos” pelo fundo da classe e da premissa de que os alunos com dificuldades no contexto escolar precisavam sentar próximos à professora, percebi que as meninas consideradas com desempenho mediano apresentavam, efetivamente, uma grande afinidade entre si e, ao escolherem seus lugares, pareciam buscar por seus pares. Nas observações de classe, percebia um movimento, mesmo que muito sutil, dessas meninas: buscavam ajudar-se nas tarefas e constantemente iniciavam as trocas de confidências, mensagens ou papéis de cartas, discretamente, durante as aulas. Já os meninos “medianos”, optaram por indicar no teste sociométrico alunos com dificuldades de comportamento ou em alguns poucos casos, indicaram bons alunos em sua formação de grupo. Isso se refletia na localização na sala de aula. Esses meninos, embora quietos e comportados em sala de aula, nas ausências de Alana ou nos espaços como recreio e aula de educação física, tornavam-se tão indisciplinados quanto André e César (únicos alunos avaliados com problemas de indisciplina pela professora). A configuração dos mapas auxiliou-me na leitura de dados e posterior categorização dos alunos e alunas para as análises sobre (in)visibilidades em sala de aula, cujas estratégias procurarei analisar nos dois próximos capítulos. Tornou-se evidente que não há como dissociar o desempenho escolar avaliado pela professora dos comportamentos demonstrados pelas crianças em sala de aula. A classificação entre alunos “bons”, “maus” e “medianos” estava muito presente para a professora e para a turma. E, a partir dessa classificação, as crianças pareciam agir de acordo com o que era esperado delas. Entretanto, um olhar mais atento indicou nuances, semelhanças e diferenças entre os comportamentos das crianças frente a essa classificação. Havia modelos em jogo naquele cotidiano escolar. E as crianças, ao longo do seu processo de escolarização, aprenderam a lidar com esses modelos. Haveria tanto alunos “bons”, “maus” e “medianos” muito visíveis ante o olhar da professora, quanto alunos e alunas com desempenho mediano que optaram claramente por tornarem-se “invisíveis” ao olhar da professora. Considerando o alerta de Ramos do Ó de que o “discurso pedagógico moderno projetou um e um só ideal-tipo moral, o do estudante independente-responsável” (2007, grifo do autor), posso afirmar que na turma do 4º ano C também o modelo que era 63 declarado com o ideal de aluno seria aquele que conseguia conciliar bom comportamento, produção escolar e participação ativa nas aulas. Modelo esse que parece permear o imaginário escolar, já que outros estudos recentes sobre desempenho escolar indicam situação semelhante61. E parece-me que as estratégias utilizadas pelas crianças no contexto da sala de aula traduziam-se em comportamentos de aceitação, recusa, resistência ou invisibilidade perante esse modelo do “bom aluno”. Os alunos com bom desempenho escolar, a partir da classificação de Alana, aceitavam e buscavam afirmar seu lugar de visibilidade e “sucesso”. Os alunos com dificuldades de aprendizagem pareciam não conseguir superar uma trajetória de anos de escolarização marcada por “fracasso” e buscavam estar “invisíveis” (sem sucesso) frente ao olhar da professora. Já os alunos considerados indisciplinados e que não se dedicavam às atividades escolares opunham-se claramente ao modelo exigido e “fracassavam” na escola. Os alunos e alunas medianos jogavam mais com essas estratégias, ora aceitando, opondo-se, resistindo, ora se colocando como “invisíveis”. Após muitas idas e vindas, classificações e reclassificações, acabei por agrupar as crianças do 4º ano C em quatro grandes grupos: 1. “bons” alunos; 2. alunos e alunas com dificuldades no contexto escolar (disciplina e/ou aprendizagem); 3. alunos e alunas medianos e “visíveis” ao olhar da professora e 4. alunos e alunas medianos e “invisíveis” ante olhar da professora. Esse agrupamento plural pareceu-me ir ao encontro da categorização dos comportamentos fundamentais frente aos papéis sociais proposta por Agnes Heller, em O Cotidiano e a História (2000), em que distingue quatro comportamentos fundamentais do indivíduo frente ao seu papel ou a seus papéis: 1. identificação com as regras dominantes; 2. distanciamento aceitando as regras de jogo dominantes (incógnito dissimulado); 3. distanciamento recusando intimamente as regras de jogo dominantes (incógnito oposicionista) e 4. recusa do papel. (p.98). Assim, os alunos e alunas “visíveis” e com “sucesso” declarado seriam os que se identificam plenamente com o ideal de bom aluno participativo. Aqueles/as “visíveis” e com “fracasso” previsto seriam as crianças que vêm percorrendo trajetórias de fracasso escolar, recusando o modelo em parte ou no todo, muitas vezes porque foram convencidas de que não conseguem se adequar a ele. Os dois tipos de “incógnitos” 61 Ver Carvalho (2001), Brito (2004), Cortese (2004), Pereira (2008). 64 propostos por Heller seriam, a meu ver, os alunos e alunas com desempenho mediano que seriam “visíveis” que se distanciavam e aceitavam as regras e também os “invisíveis” que se distanciam e recusavam as regras dominantes. É claro que nenhum desses tipos aparece de forma fixa ou “pura” e frequentemente pude observar comportamentos ambíguos, contraditórios e em mudança numa mesma criança. Em essência, a sala de aula é um lugar relacional. Proponho um olhar plural sobre o que aqui se denomina “sucesso” e “fracasso” que busque desvendar como os trinta e três alunos e alunas da turma pesquisada participavam ativamente de cenas do cotidiano escolar, utilizando-se de estratégias de estar mais ou menos “visíveis”. 65 CAPÍTULO 2 VISIBILIDADES EM SALA DE AULA “29% dos alunos de 2ª série da prefeitura não sabem o que lêem Prova aplicada em novembro mostra que 29% deles não conseguem responder a questões de português e matemática. Na quarta série, 26,9% também tiveram dificuldades; para a prefeitura, ‘a situação ainda é ruim’, mas melhor do que esperada.” (Folha de S.Paulo, 02.02.08. Caderno Cotidiano) O desempenho escolar de alunos e alunas ao final do 1º ciclo do ensino fundamental na rede municipal da cidade de São Paulo tem apresentado uma porcentagem alta de resultados insatisfatórios. Este problema demonstra que o sistema de ensino público pouco tem avançado para assegurar o mínimo que se espera de um alunado que tenha ao menos quatro anos de escolarização: saber ler, interpretar e escrever. A manchete acima faz referência aos resultados da chamada “Prova São 62 Paulo” , um exame aplicado a todos os alunos e alunas do 2º, 4º e 8º anos do ensino fundamental da rede municipal de São Paulo, em novembro de 2007. Com questões de Língua Portuguesa e Matemática, essa avaliação externa pretende averiguar os níveis de desempenho dos seus alunos. Sem entrar no questionamento da validade ou não desses exames e da metodologia utilizada, pode-se afirmar que elas revelam que existem porcentagens significativas de alunos e alunas que não se apropriam, ao longo de anos de escolarização, dos processos de leitura e escrita. Em estatísticas nacionais, os dados apontam que cerca de 97% das crianças brasileiras de 7 a 14 anos freqüentam a escola de ensino fundamental (Oliveira, 2007), num processo histórico de progressiva democratização do acesso, que hoje é evidente e incontestável. E, ao lado da adoção do sistema de ciclos na rede municipal de São Paulo, a permanência das crianças tende a ser por um período maior, já que a reprovação seguida de evasão, como mecanismo de exclusão tem sido minimizada. 62 Sobre a Prova São Paulo ver nota 57. 66 Dessa forma, à área educacional, colocam-se outros desafios, como afirma Oliveira (op.cit): A superação da exclusão por falta de escola e pelas múltiplas reprovações tende a viabilizar a exclusão gerada pelo não aprendizado ou pelo aprendizado insuficiente, remetendo ao debate acerca da qualidade de ensino. (p.686) As questões centrais que se colocam atualmente não são de natureza quantitativa, mas sim qualitativa: a) O que acontece no interior da escola que produz trajetórias de fracasso ao longo de anos? b) Se a reprovação, no caso do Município de São Paulo, não é mais um mecanismo de exclusão, de interrupção da escolaridade de muitas crianças, como compreender um aluno não alfabetizado depois de, pelo menos, três anos de escolarização contínua? c) Como, por outro lado, uma grande parte dessas crianças lêem e escrevem, mas sua produção está à beira da mediocridade, muito parca e limitada? Foi a partir desse quadro que emergiram para mim as questões relativas ao não aprendizado, em especial das crianças que sequer eram notadas pelas professoras (“invisíveis”) e por esse motivo considero relevante conhecer em que medida os comportamentos que levam à invisibilidade ou visibilidade em sala de aula contribuem ou não para a aprendizagem, objetivo fundamental da escola. Nesse capítulo e no seguinte, a partir da análise de estratégias observadas e das falas de professora e alunos, apresentei modelos de ser aluno/a que foram aprendidos ao longo do processo de escolarização dessas crianças e vivenciados, por meio de estratégias ativas pelas crianças da turma pesquisada, já que como nos lembra Dubet (1997), tornar-se aluno não é um processo natural e sim um trabalho que se dá via muitos ensinamentos. Iniciarei com modelos “visíveis” na sala de aula pela professora e no capítulo seguinte apresentarei modelos de ser aluno/a pouco perceptíveis ao olhar da professora da turma. Baseada na classificação feita por ela a partir do desempenho escolar, as expressões “sucesso” e “fracasso” escolar aparecem para agrupar os modelos que, acredito, foram construídos e reconstruídos por essas crianças e aqui são apresentados como possíveis parâmetros de análise. Também utilizarei alguns adjetivos utilizados pela professora Alana para caracterizar seus alunos e alunas, ao considerarmos as variantes de cada modelo proposto. 67 2.1 “SUCESSO” DECLARADO Nas cenas do cotidiano do 4º ano C, parecia estar muito claro quem eram as crianças que conseguiam representar o modelo de “aluno com bom desempenho escolar”. As variantes abaixo delineam diferentes marcas de gênero e raça no ser “bom aluno”, em modelos aceitos e valorizados naquele contexto. A) Esperto/a, participativo/a, estudioso/a, legal LEONARDO Ì63 Pardo/Pardo 64 GUSTAVO Branco/Branco até R$ 1.140,00 - GRAZIELA Ì Pardo/Branco até R$ 2.280,00 LUCIANA Pardo/Pardo - 65 LAURA Pardo/Branco até R$ 1.140,00 JULIO Pardo/Branco - “É como eu que toda hora fico levantando a mão, aí a professora me manda abaixar a mão,para outras pessoas responderem... E é por isso que eu fico aparecendo, porque toda hora quero responder o que sei...” (Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, em 04.08.07) “Fala, Leonardo! Qual foi sua notícia?” (professora Alana, caderno de campo, 11.04.07) Leonardo, Graziela, Luciana, Julio. Nomes sempre ouvidos no cotidiano da turma do 4º ano C. Crianças que querem responder todas as questões propostas por Alana, que parecem superar o que a professora chamava de “condicionamento recortecole”. Em diversos momentos (conversa informal e entrevista de 24.08.07), a professora reclamou do que chamou de postura condicionada da turma que, em geral, não buscava contextualizar, interpretar, apropriar-se do conhecimento. Ao contrário, pareciam o tempo todo esperar por uma resposta pronta e em textos, buscavam as respostas com um olhar seletivo e pontual, uma cópia de um trecho do texto simplesmente, um “recortecole”, tal como podemos fazer em comandos de um editor de texto em computador. Os alunos e alunas com bom desempenho escolar, segundo avaliação da professora Alana, eram participativos, arriscavam no falar, tomavam iniciativa, e seus braços estavam sempre levantados a qualquer questão de professora. Disputavam seu 63 Os símbolos ao lado dos nomes, como a “estrela cheia”, referem-se ao número de indicações no teste sociométrico, como apresentado anteriormente. 64 Refere-se à auto e hetero atribuição de cor, segundo categorias do IBGE. 65 Refere-se à renda familiar total expressa no questionário socioeconômico. 68 olhar, apareciam e aparentemente não se constrangiam se, por acaso, não respondiam satisfatoriamente às questões propostas: O Leonardo é ótimo, né? Sem muitos comentários... Sempre lá, interessado na aula e contribuindo para as atividades... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) A Graziela se destaca por ser uma excelente aluna. Tem pouquíssimos erros. Os pais dela são super preocupados com o desempenho... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) [Gustavo] Tem um bom vocabulário, mas na hora de fazer perde um tempo contando história e batendo papo, fazendo fofoca. Mas ele é bom, um aluno muito bom, apesar de que acho que ele poderia ter um desempenho muito melhor. (professora Alana, idem) O Julio é um bom aluno. Excelente aluno, embora sem muita regra. Um moleque que não gosta muito de regras.(...) Um dia fiquei observando o Julio de longe... Eu falava, mas de olho nele e parecia que ele não estava nem aí. De repente, ele levantava a mão fazendo uma colocação bacana dentro do que eu estava falando ou emendava com que eu estava falando. Eu vi nele um pouco de mim porque eu detesto ficar olhando para a pessoa que eu estou falando... Eu prefiro desenhar, “viajo”, mas eu recebo muitas informações. E parece que o Julio também é assim. (professora Alana, entrevista, idem) A Laura é ótima, né... Não falta e está sempre maquiada, tem unha de mulher de 40 anos, uma unha grandona e envergada para baixo, como de mãe. Ela é uma menina responsável e bacana. A mãe dela é super preocupada e super gente boa.66 (professora Alana, entrevista, idem) Esses alunos pareciam ditar, de certa forma, o ritmo cotidiano de aula. Eram os que sempre respondiam, e quando não havia mais o que comentar, encerrava-se a atividade. Nesses alunos percebi uma certa ampliação de limites, já que tanto Gustavo quanto Julio freqüentemente se distraíam com outras coisas em classe: observei-os brincando com tesouras, celular e jogos portáteis, sem que fossem repreendidos por isso. Até mesmo Alana comentou sobre esses comportamentos: O Julio é assim: a gente briga com ele e quando está brigando, ele não olha para a gente... No começo eu pegava bastante no pé do Julio. Ele saca um relógio do bolso e fica fuçando... isso me incomodava.(...) É um menino 66 Trechos das falas de Alana em entrevista quando instigada a falar de cada um de seus 33 alunos e alunas. Essa entrevista iniciou-se 17 de junho de 2007 (14 alunos) e foi concluída em 24 de agosto, com sua fala sobre outros 15 alunos e alunas. Como Luciana havia sido transferida no final de junho de 2007, a professora não falou sobre ela. 69 diferente porque ele é meio desleixado... A letra dele é meio ruim e feinha, mas quando ele é solicitado, é um cara que tem uma disciplina de esporte e faz bem quando ele é desafiado. Tem bastante potencial. O Gustavo é um cara que tem um potencial muito bom, mas ele é malandro e gosta de bater papo. Gosta de ficar sem fazer nada e quando a gente chama a atenção, ele não gosta. Mas também não se empenha para ter um resultado melhor. Deu alguns problemas nos anos anteriores, separaram de algumas crianças. Eu conversei com ele e acho que hoje ele é muito bom. Também as atitudes das meninas “boas alunas” não incomodavam Alana que apenas comentou algo sobre Laura: Ela conversa bastante, bate papo e sempre busca nas outras meninas que sentam perto dela uma referência para fazer cada vez melhor. No entanto, na opinião de outras crianças com menos destaque na classe, tanto Graziela quanto Laura eram consideradas “metidas”, exibidas, o que acredito decorrer de certos comportamentos de competitividade. Pude perceber que terminar primeiro a tarefa era algo em constante disputa entre Graziela, Laura e Luciana. Como se o destaque por terminar a atividade primeiro, ter a letra mais bonita, o caderno mais caprichado e responder o que a professora propunha fossem fatores determinantes para seu “sucesso” na escola. Algumas crianças demonstraram, em suas falas, certo rancor com a postura dessas meninas: Elas se ‘acham’... se acham muito espertas... alguns meninos também... (Janaína, entrevista em dupla com Bianca, 29.10.07) Não gosto de responder porque fico com medo da professora brigar comigo. Tenho raiva da Graziela, ela atrapalha... (Otávio, entrevista em dupla com Elias, 29.10.07) [Patricia: Quem são os “bons alunos”?] As pessoas mais metidas são a Graziela, Laura... (Luane, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07) Em atividades de produção escrita, eram as meninas “boas alunas” que, geralmente, entregavam primeiro o exercício, o que parecia acontecer num clima de competição. Em muitos momentos eu escutava comentários como: “já terminei”, “onde você está?”, “estou na última atividade...”. Não percebi tais comentários entre os meninos considerados pela professora como “bons alunos”: eles faziam, entregavam e pronto. 70 B) Esperta, tranqüila, estudiosa, bacana ADRIANA Ì Pardo/Branco até R$ 380,00 - DANIELA Branco/Branco mais de R$ 2.280,00 - GISELE Branco/Branco mais de R$ 2.280,00 - NATALIA Branco/Branco - “Elas são mais espertas, tiram ‘P’67nas provas.” (Bianca, entrevista em dupla com Janaína, 29.10.07) Apesar de não se destacarem no agitado coletivo da classe, diferentemente do grupo anterior (que estava o tempo todo interagindo com a professora e respondendo às suas questões, falando e se expressando), Daniela, Adriana, Gisele e Natalia eram também meninas consideradas “boas alunas”. Elas exerciam o papel de “boas alunas” mais no silenciar das atividades. Exceto Adriana, que se autoclassificou como da cor “pardo”, as demais meninas se classificaram e foram classificadas pela professora com a categoria “branco”. De alguma forma, essas meninas pareciam descobrir o que a professora esperava e queria delas e tinham estratégias para conseguir atingir esse “querer”. Não pretendo afirmar com isso que a escola seria um espaço que privilegie meninas, mas sim que há uma grande rede de interesses, valores e atitudes que perpassam as relações e práticas escolares, permeados por significados de gênero e que as crianças se apropriam e constroem suas estratégias diante do que vivenciam no dia a dia. Nas cenas que presenciei percebia que: atendiam aos pedidos da professora; ficavam quietas e conversavam discretamente; procuravam fazer a tarefa da melhor forma, querendo acertar; quando erravam, retomavam e corrigiam; quando solicitadas, respondiam satisfatoriamente; demonstravam interesse em aprender e apresentavam autonomia ao realizarem as tarefas. Além disso, essas meninas formavam um grupo entre si e buscavam por outros “bons alunos/as”, que se destacavam por apresentarem bom desempenho, como companhia para resolverem atividades. Essas estratégias eram bem avaliadas pela professora e fazia com que fossem vistas como “boas alunas” pelas outras crianças. Daniela, Adriana, Natalia e Gisele eram alunas mais tranqüilas que garantiam uma visibilidade positiva por apresentarem bons conceitos em seus trabalhos e sempre formarem grupo com outros alunos e alunas 67 Três eram os conceitos utilizados nessa escola para designar o desempenho escolar dos alunos: “PS”, que significa Plenamente Satisfatório; “S”, Satisfatório e “NS”, Não Satisfatório. No entanto, as crianças utilizavam, ao falar, apenas a letra “P” ao se referirem ao conceito Plenamente Satisfatório. 71 que se destacavam. Eram, também, muito dedicadas às tarefas e, no olhar de outras crianças, tornavam-se mais espertas em comparação ao resto da turma: Eu acho as meninas espertas, porque tiram “P” nas provas, fazem toda lição e ainda ficam cochichando e a professora não percebe. (Rogério, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07) Elas não conversam e tiram “P” em todas lições. (Tamires, idem) Observações semelhantes às de Rogério de que meninas são espertas e têm bagunças diferentes que não incomodam o desenvolver das aulas, aparecem também nos estudos de Nara Bernardes (1989) e Marília Carvalho (2001). Esses estudos, ocorridos em duas décadas diferentes, constatam uma permanência de comportamentos para esse grupo de meninas “boas alunas” pouco visíveis, não competitivas. Marília Carvalho fala sobre “a arte das meninas em conciliar diversão e estudo e driblar muito melhor a vigilância e as punições das educadoras, através de uma postura menos desafiadora” (idem, p.570, grifo da autora). Ao falar sobre essas alunas, a professora oscilou entre características positivas e negativas: A Adriana é uma boa aluna e bacana, não tem problema de aprendizagem. Tem lá um errinho ou outro, mas por falta de prestar atenção mesmo, dá uma “viajada” também... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) A Natália é uma menina que pensa muito rápido, muito comunicativa e muito atenta às coisas do mundo. Ela tem uma vontade de aprender as coisas! Mas a produção escrita da Natália é muito ruim, porque ela confunde as palavras, ela “come” letra e tem uma ansiedade muito grande. É uma boa aluna, uma criança que questiona muito as coisas e de uma forma coerente, é pertinente o que ela está te perguntando. Muito boa aluna na minha concepção, por ser muito interessada e comunicativa. Os resultados das provas dela não são tão bons, porque, nas palavras que escreve, ela ‘come’ letra e aí acaba escrevendo uma outra coisa, né... mas se você falar pra ela retomar, reler, ela retoma e, se não entender, ela pergunta “professora, como é que faz isso?”... As coisas que você ensina pra ela marcam e depois ela retoma “professora, você não falou isso no começo do ano?”, questiona. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) A Gisele é uma aluna bem mediana e não é pior porque anda com uma ‘panelinha’ muito boa: Adriana, Laura, Graziela, o Leonardo... A Gisele é aquela pré-adolescente que está meio desnorteada, que não sabe muito bem o que ela quer. Ela poderia ser uma aluna muito melhor, mas ela não faz de qualquer jeito porque a turma dela é muito boa: as meninas corrigem as coisas, mas ela troca muitas letras. Poderia ser uma aluna melhor, se tivesse 72 um incentivo, se fizesse com que sentisse necessidade de ter um desempenho melhor... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) Daniela era uma “boa aluna” que tinha uma rede de amizade composta por outras meninas avaliadas com um desempenho “pior” e, por isso, sempre as ajudava nas tarefas: Daniela é ótima aluna... Embora ela ande com um grupo de meninas mais fracas, que não sabem muito... Tem a postura de ajudar e, muitas vezes, fazer pra elas... Tamires, Sabrina. A Daniela está começando a despertar pra essas coisas de namorinho, mas nada precoce, nada de sair beijando meninos atrás da escola... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Com essas meninas Daniela mantinha uma rede de comunicação eficiente e muito discreta e, muitas vezes, eu observava troca de papéis por entre as carteiras, entre olhares cúmplices, distanciando-se do modelo da “boa aluna” que estaria sempre concentrada nas atividades e demandas estritamente escolares. Um aspecto merece destaque, na fala da professora, quando remete a uma avaliação negativa de comportamentos associados ao despertar da sexualidade de meninas. Parece-me que essa avaliação em relação à Daniela está muito mais relacionada com o fato dela ser uma “boa aluna” que se relacionava com um grupo “mais fraco” (o que a prejudicaria) do que a percepções de atitudes da menina. Isso porque outras meninas “boas alunas”, como Graziela, Laura e Gisele, demonstravam bastante interesse nas “questões de namoro”, mas a professora sequer mencionou essa preocupação. Vale ressaltar que, apesar de estarem presentes nas falas de algumas crianças, as questões de “namorinhos” para as meninas “boas alunas” não eram vistas como um problema para Alana (exceto no caso de Daniela), diferentemente de sua avaliação sobre outras meninas com um desempenho não tão satisfatório. Isso nos leva a pensar que a professora tinha expectativas diferentes entre meninas com desempenho menos satisfatório e meninas com bom desempenho escolar, reservando às últimas um espaço de maior liberdade para expressar sua feminilidade. Em relação aos meninos, a preocupação com o despertar da sexualidade não foi sequer mencionada pela professora. Cenas do cotidiano mostravam que nessa turma a questão dos “namorinhos” era presente nas atitudes de grande parte das crianças, nas entrelinhas de conversas, bilhetinhos e explicitamente nas falas de algumas crianças. 73 Final da primeira aula, minutos antes da aula de Educação Física. “Professora, posso trocar minha calça para a Educação Física?”. Gisele e Graziela saem e voltam para a classe, como se estivessem desfilando, e os meninos olham encantados... (Caderno de campo, aula de Português, 28.03.07) Na fila em frente à lousa, para mostrar a atividade para a professora, Débora escreve na lousa “Rodrigo e Iasmim”. Luane avisa Rodrigo que vai correndo apagar. De longe, reclama com Débora e os dois riem... (Caderno de campo, aula de Língua Portuguesa: produção de texto, 09.05.07) Meninas como Graziela, Laura, Gisele, Tamires, Natalia, Débora e Luane apareciam no grupo como as mais interessadas nessas questões. Alguns meninos entravam nas cenas, como coadjuvantes importantes: Marcelo, Rodrigo, Julio, Otávio, Cássio. Na entrevista com o grupo de alunos com desempenho mediano, Tamires, Jéssica e Luane “reclamavam” do que disseram não gostar na escola: Eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo, sem graça! [risos] (Tamires, entrevista em grupo, em agosto de 2007) Eu também não gosto das brincadeiras do Rodrigo, porque ele faz umas brincadeiras muito bestas, tipo assoprar no nosso ouvido, abraçar as meninas... (Jéssica, idem) Eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo porque ele fica ‘batendo’ nas meninas, agarrando as meninas... (Luane, idem) Rodrigo se defende dizendo que “é tudo brincadeira” e as meninas provocam os meninos para correrem atrás delas no recreio. Aliás, brincadeiras de “pega-pega” no recreio eram constantes. No artigo de Cruz e Carvalho (2006), as observações de meninas e meninos no recreio, levam a pensar na idéia de conflito por aproximação entre os sexos já que “(...) na maioria das interações que envolviam meninos versus meninas, predominava uma mescla de agressividade com elementos lúdicos, com intuito de aproximação” (p.120, grifo das autoras). E também: (...) a idéia de conflitos por aproximação, para os jogos de gêneros, que envolviam conflito e elemento lúdico, desencadeados por um dos sexos sobre o outro, quando tinham como objetivo a aproximação entre eles – conforme apreendemos por meio de pistas dadas pelos próprios sujeitos (idem, p.138, grifos das autoras) 74 As crianças da turma do 4º ano C também me deram pistas que as brincadeiras envolvendo meninas “contra” meninos, mais do que oposição, eram apenas artifícios para aproximação entre eles. 75 2.2 “FRACASSO” PREVISTO Se o “sucesso” era declarado, também é verdade que o “fracasso” de alguns alunos e alunas era previsto naquele contexto. Assim, os extremos do jogo escolar eram facilmente reconhecidos pela professora e para os alunos da turma. A) Disperso, não envolvido, indisciplinado CÉSAR Preto/Branco até R$ 380,00 Recuperação68 ANDRÉ Preto/Preto até R$ 1.140,00 Recuperação “Acho que para ser um bom aluno, primeiro de tudo, você tem que ouvir tudo o que a professora fala e responder o que ela pergunta. Depois você tem que ser bonzinho, não ficar zoando e não brigar fora e dentro da classe.” (Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, 04.08.07). César e André pareciam não se apropriar do modelo exposto por Leonardo que poderia garantir “sucesso” escolar. Em sala de aula, não demonstravam interesse em participar das atividades propostas por Alana e ela lhes chamava a atenção por indisciplina. Não participavam das atividades ou as realizam de forma descompromissada e ainda, quando podiam, manifestavam comportamentos que afetavam a ordem imposta pela professora. Assim, pareciam se encaixar no estereótipo do “menino bagunceiro”. De fato, por assumir essa postura, eram facilmente reconhecidos como os que atrapalhavam a aula e com quem a professora sempre brigava. Entre as meninas ecoava a reclamação sobre alguns meninos “chatos” que só sabiam brigar e que “se acham os valentões” (Gisele). Elas explicitaram que as posturas desses meninos eram muito inadequadas e reclamavam porque lhes parecia que eles faziam isso de propósito: Eles só querem chamar atenção dos outros... Eles não sabem fazer a lição e ficam sem nada pra fazer e ficam chamando atenção da professora. Porque eles não têm coisa melhor pra fazer... (Janaína, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, em 08.08.07) 68 Refere-se à indicação e convocação da professora para participar do período de recuperação no final do 1º semestre de 2007. 76 Na turma tem algumas pessoas que ficam quietas, como o Leonardo e as meninas, algumas... E tem outras pessoas, como o André que fica fazendo bagunça e a professora fica reclamando com ele... (Laís, idem) A professora, por sua vez, ponderou alguns motivos do mau desempenho desses meninos: O André é um menino que não tem dificuldade de aprendizagem, mas mantém uma dificuldade de fazer, de produzir... De não perceber que aquilo ali é para a vida dele. Parece que o papel que ele deve exercer, que ele quer exercer, é nenhum! Então, ele não está afim, né? Ele não tem problema de aprendizagem, mas ele não quer mudar... Ele não quer fazer. Já tá começando ficar naquela boa e velha rebeldia adolescente... (...) Não é o cara que fica sem fazer absolutamente nada... Ele dá uma tapeada. Acho que ele até se incomoda um pouco do fato de ficar sem fazer nada... Mas ele não conclui o que tem que fazer, larga lá... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) O César é um cara largado ele não tá nem aí com nada... Acho que ele ainda é pior que o André... A impressão que eu tenho do César é que ele tem que ficar de capacete e armadura, sabe? Você dá uma bronca nele e isso não o atinge, dá um certo, um elogio, nada... parece um cara que está flutuando... (...) Na aula não faz nada... não está nem aí... ele até copia e se suja todo de branquinho, a caneta estoura ou ele rabisca a mão, a boca, a cara dele... (...) É daquelas crianças que escreve tudo e apaga vinte vezes... algo meio tenso. No dia a dia fica fazendo piadas com os outros, mas fazer mesmo a tarefa, com empenho e dedicação, isso não faz. Não é uma criança do tipo que precisa encaminhar para o reforço, acho que ele precisa de uma escola menor para que a professora fique ao lado dele, bem perto dele. (professora Alana, idem) A associação do mau comportamento (indisciplina) de meninos e seu baixo desempenho escolar feita por Alana vem reiterar estudos que mostram a marca das diferentes percepções dos professores sobre os sexos (Walkerdine, 1995; Silva, 1999; Brito, 2006; Carvalho, 2001, 2004a). Esses estudos assinalam que há uma confusão entre comportamento e aprendizagem, já que – como Alana mesma admite – esses dois meninos não tinham problemas de aprendizagem e não precisariam de reforço. São meninos com comportamentos inadequados, que parecem estar construindo estratégias anti-escola como fonte alternativa de poder, exercendo o que Robert Connell (1995, 1997) chama de “masculinidade de protesto”. É, ao final, um problema de postura, de não estar “nem aí” com nada, não fazer o que se espera de um aluno nesse ano de escolarização. 77 Lahire (2004) afirma: “Os professores evocam tanto – senão mais – o comportamento dos alunos, suas qualidades morais, quanto seus desempenhos ou qualidades intelectuais.” (p. 56) Em contraposição aos comportamentos desejados em sala de aula, utilizados por Leonardo, Julio e Gustavo (meninos “bons alunos”), César e André não estariam se apropriando das características de uma “masculinidade da razão” (Connell, 1995), uma masculinidade com ênfase em racionalidade e responsabilidade que resulta no ganho de um poder através do conhecimento aprendido e status escolar (Jackson, 1998). Isso também confirma a impressão das crianças de que o comportamento vale tanto ou mais que a produção efetiva em sala de aula, como elas afirmam ao comentar sobre “o que é ser um ‘bom aluno’?”: Fazer isso que todos falaram [estudar, participar da aula] não brigar, não ir para diretoria, não implicar com as pessoas e não se meter nas conversas da professora. (Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, 04.08.07) Se dedicar mais ao estudo, não bagunçar e participar mais da aula... (Graziela, idem) Saber das coisas, se comportar bem na aula... E acompanhar a professora... E ajudar outros alunos que precisam. (Bianca, entrevista em dupla com Janaína, 29.10.07) É fazer as lições, prestar atenção nas aulas, não conversar, responder as perguntas que a professora faz, ah... é isso. (Janaína, idem) O bom aluno tem que ficar quieto e fazer a lição... (Elias, entrevista em dupla com Otávio, idem) Participar da aula, não tirar NS, não levar bronca, nem bilhete pra casa. (Otávio, idem). Como indicam também outras pesquisas69, a professora buscava razões familiares para explicar tal problemática. As razões seriam da ordem de uma suposta ausência dos pais na responsabilidade de inculcar nesses meninos os valores e expectativas em torno da valorização do espaço escolar: [André] É moleque, sempre está batendo em alguém, tá sempre cutucando alguém... Mas é um bom menino... [pausa] Embora, às vezes, ele dê mancada e aí eu brigo com ele. A família dele [o pai] na reunião ficou até o ultimo minuto porque a família dele queria conversar sobre o desempenho 69 Ver Patto, 1991; Cortese (2004), Pereira, 2008. 78 dele. O André precisa de disciplina mesmo, eu disse, e talvez de uma cobrança externa para saber que o quê ele aprendeu aqui dentro da escola tem uma importância fora, né? (professora Alana, entrevista em 17/08/07) Acho que o César é filho único de pais separados. Ele fica o dia inteiro na rua, mas a mãe vem falar que ela vai ajudar... Tem algo por trás e até psicológico. De aprendizagem não, porque ele tem uma boa aprendizagem de leitura. É daquelas crianças que escreve tudo e apaga vinte vezes... algo meio tenso. No dia a dia fica fazendo piadas com os outros, mas fazer mesmo a tarefa, com empenho e dedicação, isso não faz. (professora Alana, idem) Em minhas observações, eu só percebia o “mau” comportamento destes meninos nas ausências da professora da classe. Mas não considerava isso muito diferente do que faziam os outros alunos, no mesmo contexto. No entanto, as crianças me alertaram que eles ficavam “mais bonzinhos” quando eu estava lá, pois “ficam como medo de você contar pra a professora” (Natália, “boa aluna”). Chamou minha atenção, a auto e heteroclassificação racial desses meninos. Houve concordância entre a auto-classificação e a da professora no caso de André. Já César se autoclassificou como “preto” e Alana o classificou como “branco”. Essa discordância talvez sinalize por parte de César, o fato de assumir de maneira clara e explícita, o estereótipo do “menino negro e indisciplinado”, que afirmaria um lugar de destaque naquele coletivo, e para si próprio confirmaria aspectos de uma masculinidade de protesto, baseada na afirmação de uma masculinidade expressa por resistência, com atitudes opostas ao que se espera de um “bom aluno” no processo escolar. No final do ano letivo de 2007, os dois alunos foram reprovados e cursariam, em 2008, novamente o 4º ano do ensino fundamental. B) Invisível, quieto/a, imaturo/a, infantil RICARDO Pardo/Branco até R$ 760,00 Recuperação DENIS Branco/Pardo Recuperação SABRINA Pardo/Pardo até R$ 380,00 Recuperação VALÉRIA Branco/Branco até R$ 760,00 Recuperação ESTELA Branco/Branco até R$ 380,00 Recuperação MAURO Pardo/Branco Recuperação Ricardo, que sempre permanece quase que imóvel na carteira, é recepcionado por Alana logo no início da aula: “Esse está como eu... Tá tudo bem?”. Além de não responder-lhe, Ricardo permanece com o 79 capuz da blusa na cabeça, como que acuado. Num dado momento, Alana pede que os alunos da “fileira do César”70 façam uma fila em frente à lousa, para ela ver o texto. Dirigem-se para o quadro Gustavo, Leonardo e Gisele. Ao mesmo tempo, Tamires e Jéssica começam a brincar e, com a agitação, Alana pede para que todos se sentem e depois os repreende por causa da falta de disciplina. Ela registra na lousa o modo como as crianças devem dispor as palavras no cartão. Forma-se uma nova fila e Alana atende algumas crianças. Já não há mais o clima de silêncio e muitas crianças se movimentam na sala. No entanto, no meio da agitação de muitos, algumas crianças parecem não movimentar-se: Laís, Janaína, Valéria, Ricardo, Daniel e Denis. Todas as vezes que eu os olhava, estavam nos seus lugares fazendo algo. (Caderno de campo, Aula de Língua Portuguesa, 09.05.07) Com André e César, compondo o total de alunos reprovados da turma do 4º ano C, temos mais os nomes de Denis, Mauro, Estela e Valéria. Ricardo e Sabrina foram preservados da reprovação por motivos diversos. Sabrina foi transferida de escola em meados de outubro porque a família mudouse do bairro. Sua reprovação provavelmente aconteceria, apesar dos pequenos avanços apresentados no ano: Eu vejo a Sabrina com vários problemas familiares. A mãe sempre procura uma doença nela, já a levou em todos os especialistas que você possa imaginar. E a Sabrina participa e colabora com essa dinâmica. Ela esconde o que ela sabe e acho que a questão do segredo em casa deve ser algo complicadíssimo. Desde a segunda série que ela foi minha aluna eu dizia: “eu sei que você sabe, então produza”. E ela dava um jeito de esconder. Ela começou a fazer terapia e melhorou bastante... A escrita dela ainda é muito complicada, mas ela já consegue se expressar, já consegue ler, já demonstrar um pouco mais o que ela sabe. Ela é preocupada em fazer as tarefas e a impressão que eu tenho é que a relação com a mãe está começando a mudar. Se você ficar com ela sozinha, ela faz. (professora Alana71, entrevista 24.08.07) Já Ricardo, não poderia repetir novamente o 4º ano, segundo recomendações institucionais, pois já estaria fora do que se espera de série/idade e como avaliou a professora Alana: “não há muito que fazer... a escola não oferece muito e ele nem mochila abre”. O menino era uma das crianças que mais me chamaram atenção desde o início das observações de aula. Lembrava do rosto de Ricardo, pois, embora ele não se recordasse, fui professora de seu irmão no 1º ano do ensino fundamental, no ano de 70 A professora identificava as fileiras pelos alunos que sentavam na primeira carteira. Mas, nesse momento, o primeiro da fila não era César e, sim, Ricardo. 71 Os comentários da professora de todos os alunos e alunas desse item foram feitos nessa entrevista de 24 de agosto de 2007. 80 2003. Como o irmão, Ricardo também foi reprovado no ano de 2006, no final do quarto ano do ensino fundamental. Ricardo apresentava uma estratégia de tornar-se invisível na turma de forma mais evidente. Se essa era sua estratégia frente aos colegas, para Alana era algo extremamente perturbador. Muitos dias presenciei que ele sequer abria a mochila para colocar o material na mesa ou, ainda, que cochilava sobre a carteira. A professora percebia alguns comportamentos e tentava intervir: O Ricardo é o invisível camuflado e se ele puder não aparecer, não aparece. A escola é o lugar para onde ele tem que ir, mas ele não precisa produzir nada, não tem que fazer nada, é... e ele não se incomoda mais com isso também. Quando eu chamo pra fazer uma tarefa diferente, perto de mim, ele nunca conclui nada, nenhuma tarefa. Não demonstra nada do seu desempenho, nem interesse e está lá... Ou ainda: Ele [Ricardo] vem pra escola, mas a gente nem percebe ele lá, já que ele não conversa, embora tenha um bom relacionamento com as outras crianças, não faz absolutamente nada, então não incomoda essa coisa de ser colocado de lado, porque ele mesmo se coloca de lado... Ele faz o papel do bom menino para não ser importunado por ninguém, a não ser pela professora que insiste em pedir que ele faça a tarefa... Observei que essa “invisibilidade” materializava-se em Ricardo de forma cruel: um aluno repetente, que não sabia ler e escrever (mesmo após quatro anos de escolarização), mas que aprendeu que estar na escola com essa postura, sem incomodar, pode ser uma possibilidade de continuar nesse espaço: Acho que o Ricardo vai para a quinta série, porque ninguém vai bancar o que não fez antes, ele já é repetente e a escola diz que é complicado repetir de novo. Mas ninguém “pegou” o caso pra discutir, ver o que fazer. Ele até escreve, mas não lê nada. Se eu pergunto, não fala nada. Mas, até que vem contar as coisas particulares dele, mas é uma criança bem distante... (professora Alana) Apesar de avaliar na entrevista que Ricardo também tem uma “desestrutura familiar muito séria”, Alana reconhecia que o aluno ali estava e que a escola não havia feito muito para garantir a aprendizagem dessa criança. Penso que se estivesse em uma escola seriada com reprovação ao final de cada ano letivo e não conseguindo atingir os objetivos de ensino-aprendizagem esperados, talvez, Ricardo já não estivesse mais numa sala de aula. 81 E, ao final do ano letivo de 2007, constatei que Ricardo foi aprovado para o 5º ano do ensino fundamental, mesmo sem se apropriar de forma satisfatória do processo de leitura e escrita. Com Sabrina e Ricardo, Estela completava o grupo escolhido pela professora para freqüentar, semanalmente, aulas de reforço72, oportunidade para um trabalho mais individualizado na escola, ministrado por uma estagiária do curso de Pedagogia, Rita: A Estela é, para mim, uma caixinha de surpresas. Cheguei até a pensar em um diagnóstico de dislexia, porque é uma criança que sempre teve auxílio, mas ela não responde, não entende o que você fala, embora ela tente. Agora ela está tendo aulas de reforço com a Rita, que também faz um trabalho com ela fora da escola. Ela está respondendo, um pouco mais... Eu não sei o que fazer com a Estela, só sei que aquela sala não dá pra ela. Quinta série pra ela, nem pensar... (professora Alana) Estela e Sabrina apresentavam dificuldades e, embora as suas mães estivessem mais presentes, ainda não haviam conseguido superá-las: A mãe não quer que ela [Estela] reprove, acha que ela vai conseguir, diz “se Deus quiser, ela consegue”, uma postura sem ter o “pé no chão”, sabe... Não é uma menina que se esforce mesmo, é outra que quer pintar, desenhar, muito imatura, muito infantil... E a mãe mantém isso, porque são só as duas, então... Eu me preocupo bastante com a Estela porque há algo errado... (professora Alana) A mãe dela [Sabrina] é complicada, ela tem uma vida muito pobre e a mãe encobre e eu não consigo entender isso. Ela está sempre bem arrumadinha, com coisinhas da moda, mochila da Barbie, essas coisas. (professora Alana) Uma questão que merece atenção é o fato de que a professora, em muitas descrições de alunos e alunas, insiste em culpabilizar a família e, principalmente, as mães por contribuir com o “fracasso” escolar das crianças. Walkerdine (1995) constata tal posicionamento num discurso disseminado do papel da mãe como primeira e melhor educadora e que com isso “colocou-se um grande peso sobre seus ombros e, portanto, permaneceu o risco de que as crianças que iam mal na escola podiam ser o produto da educação e do cultivo defeituosos” (p.217). Um discurso que naturaliza o “ser mãe” como portadora de amor, cuidado, sensibilidade sem se considerar as condições 72 Não havia um horário e profissional da instituição escolar para ministrar aulas de recuperação paralela (reforço). Esse atendimento era viabilizado por meio de estagiárias do curso de graduação em Pedagogia, o que acontecia em períodos curtos e com grande rotatividade de pessoas. 82 concretas de vida, de como as hierarquias de classe, raça e gênero podem influenciar nas práticas cotidianamente vividas. Destarte, não se pensa no que acontece no interior da escola, já que o problema do “fracasso” escolar parece ter origem e ser produzido em outro lugar, em outros sujeitos. Os outros alunos que tiveram a marca de seu “fracasso” escolar com a reprovação foram Valéria, Denis e Mauro. Na avaliação da professora, essas crianças falhavam por serem imaturas, infantis, além de não apresentarem envolvimento com as atividades: Mauro também tem uma característica muito infantil, de ser bebezão, de ser preguiçoso, de não querer fazer as coisas... O Mauro, eu deixaria na 4ª série pra ele amadurecer, com mais um ano o Mauro ganharia. Ele evoluiu bastante desde o começo. Ele chegou sem ler, silábico-alfabético e melhorou bastante, ele escreve melhor que o Denis, porque escreve devagar, é mais cuidadoso... Ele tem vontade de fazer as coisas quando está concentrado, porque quando tem obstáculos, ele cansa, abandona e começa a brincar. Tem uma postura de brincadeira mesmo. Ele não senta corretamente na carteira, está sempre ajoelhado, o tempo de concentração dele é pequeno, mas ele produz, ele aproveita esse pouco. Uma aula expositiva pro Mauro não é legal, porque ele perde. A posição dele é de ficar alheio ao que está acontecendo... então... é outro que a sala numerosa é complicada pra ele. Denis é o tipo de filho caçula, né? Mimadinho... se eu não me engano, ele só tem irmãs... Tem aquela cara de bebê bonitinho, aquela coisinha, aquele olhinho de cachorro que caiu da mudança... Ele tem dificuldade de aprendizagem. É o cara que vai dançando conforme a música: “se eu for bonzinho, a professora não vai mais chamar a atenção e eu fico lá quietinho. E a professora me dá nota de vez em quando”. Quando ele traz algo para eu corrigir e peço para ele retomar e me trazer de volta, ele demora em me trazer. Valéria é filha temporã e se coloca como bebê da casa... Ela nunca entende nada... não tem um ponto de partida... Pergunto: “Qual é a sua dúvida? Por que tem que começar do zero?”. Nada, Valéria, nada... Parece estar sempre cansada... Mas vejo que pelo bairro anda, extrovertida... na classe, sempre numa postura, de “não sei, tá... vou continuar bebê.” (professora Alana) Ao não se envolverem com o processo de ensino-aprendizagem, não participarem das discussões em classe, tornavam-se “invisíveis” (apesar da visibilidade ante o olhar da professora), que incomodavam por sua ausência-presença na turma. Crianças que estão lá, não faltam, mas fazem as tarefas de modo mecânico, sem envolvimento. Com sua postura pedagógica questionadora, Alana incomodava-se bastante com esses comportamentos, que pareciam ser opções dessas crianças: 83 (...) o grupo grande pra ela [Valéria] é excelente... Ela some e não se envolve... (...) numa turma grande como a gente tem, ele [Denis] fica na invisibilidade e parece que fica por baixo dos panos mesmo. Não conversa comigo, a não ser que seja solicitado... Coloca-se na invisibilidade como tática. (professora Alana) Parece-me que essa invisibilidade (tão visível para a professora) era construída como uma estratégia de não ser visto/a, como defesa do olhar avaliativo e repleto de exigências de Alana e, conseqüentemente, de toda a turma. Em classe, realmente, era difícil “ver” Denis, Mauro e Valéria, mesmo quando eu observava suas ações. Sempre quietos, comportados, não se movimentando pela classe. Apenas no caso de Ricardo, essa invisibilidade era também percebida pelas crianças. Poucos foram os momentos que vi Ricardo interagindo com seus colegas. O vi e brincar apenas uma vez, quando trouxe um saco de balas sortidas para a escola e, entre o término da atividade e o início de outra, enquanto a turma estava bastante agitada, ele teve o olhar de seus colegas ao distribuir os seus diversos sabores de balas. Diferentemente, Mauro, Denis, Estela, Sabrina e Valéria pareciam ter redes de amizade estáveis e eram, assim, visíveis para as demais crianças da turma. Mauro e Denis na bagunça e agitação pontual com alguns outros meninos e as meninas envolvidas nas bagunças, muitas vezes imperceptíveis, com trocas de olhares, risos e brincadeiras mais quietas. Estela e Sabrina eram amigas quase inseparáveis. Faziam atividades juntas, sentavam perto e no recreio buscavam brincar com meninas menores de outras turmas. Na classe participavam de brincadeiras com o grupo de meninas que sentavam mais próximas, sempre muito discretas. Ricardo, Valéria e Mauro continuavam imóveis na sua carteira até nos momentos de ausência de Alana. Vez ou outra eu observei Valéria conversando com as crianças sentadas por perto. Janaína, Tamires e Jéssica sempre buscavam conversar com ela. No recreio, estava com esse grupo de meninas, conversando, tranquilamente. Observei Mauro algumas vezes rindo com as brincadeiras dos colegas, mas não tinha uma boa rede de amizades e em trabalhos em duplas, sentava-se com Gustavo (“bom aluno”). Seis crianças, três meninos e três meninas. É evidente que as concepções da professora sobre masculinidade e feminilidade influenciavam nas suas avaliações, 84 relações e práticas escolares num complexo jogo de conflitos, tensões e contradições no cotidiano de sala de aula. Meninos com estratégias de invisibilidade, percebidos como infantis, imaturos e muito quietos seriam crianças que “erram” por não corresponderem ao que se espera de um menino “bom aluno”. Podemos encontrar no artigo de Marilia Carvalho (2001) as seguintes representações de professoras sobre um bom aluno: “bem humorado”, “uma liderança positiva”, “curioso”, “danado fora da sala de aula”. Em Silva (1999), constatase que os meninos são vistos como “agitados, malandros, dispersivos, indisciplinados, mas inteligentes”. E essas características levam a uma certa masculinidade aceita e valorizada na sociedade, tornando-se uma masculinidade hegemônica (Connel, 1995). Tal como aponta Carvalho, no mesmo artigo citado, os alunos com conceitos não satisfatórios nessa pesquisa tinham a marca da “apatia”, juntamente com a nãoorganização, desleixo, desinteresse. A professora Alana não utilizava o termo “apático” para definir esses alunos, mas parecia que o excesso de quietude e não participação nas atividades denotariam uma invisibilidade muito mais próxima de apatia e longe de uma agitação “natural” de meninos. Já as meninas pareciam falhar ao demonstrarem o extremo de dependência, obediência e quietude. Um outro ponto importante é que pareciam não se esforçar para superar suas dificuldades de aprendizagem, algo que parece ser esperado de meninas durante o processo de escolarização. Walkerdine (op.cit.) em estudos sobre garotas inglesas e Matemática constata que o desempenho escolar das meninas em geral é percebido como mais ligado ao seu esforço do que a um desempenho excelente. Entretanto, considerar a oposição menino versus menina não é suficiente para explicar o fracasso escolar dessas crianças. Há modelos de masculinidades e feminilidades em jogo nas cenas do cotidiano da turma pesquisada, modelos experimentados, construídos e reconstruídos por todas as crianças do 4º ano C. Ademais, podemos concluir que essas seis crianças eram exemplos típicos de fracassos da escola em ensinar e pareciam desenvolver estratégias de esconder-se da professora para esconder esse “fracasso”, possivelmente percebido como “culpa” de si mesmos e de suas famílias. 85 2.3 ENTRE A BUSCA POR “SUCESSO” E/OU A FUGA DO “FRACASSO” Ao voltar minhas atenções para a presença de visibilidades e invisibilidades na sala de aula, percebi que os modelos dos ditos “bons” e “maus” alunos e alunas parecem mesmo ter atitudes ser menos ambíguas, escolarmente determinadas (apesar de reconstruções permanentes) e certamente os mais visíveis na relação diária com a professora. Entretanto, se esses modelos de “sucesso” e “fracasso” institucionalizados pela avaliação de desempenho podem garantir visibilidade, pude perceber no cotidiano outras crianças que construíam estratégias para tornarem-se “visíveis” ante o olhar da professora, em trajetórias que jogavam entre os modelos dos extremos. Alunos e alunas que pareciam apropriar-se parcialmente de determinadas características, numa busca ora de alcançar “sucesso escolar”, ora de distanciar-se do que seria considerado “fracasso”. Vê-se, neste item e no capítulo seguinte, uma grande heterogeneidade de comportamentos entre os 15 alunos e alunas classificados pela professora como “medianos”, que construíam suas trajetórias escolares de visibilidades e invisibilidades equilibrando expectativas escolares de aprendizado e comportamento. Neste item, entretanto, apresentei apenas os alunos e alunas com desempenho mediano e que são “visíveis” para a professora, ou seja, nove crianças. Divido em três grupos caracterizados por: a) alunos “medianos” que apresentavam dificuldades de aprendizagem, mas que buscavam expressar algumas características e comportamentos que pareciam associar ao que a professora consideraria como “bons alunos”; b) alunas “medianas” que apresentavam dificuldades de aprendizagem, mas que buscavam expressar algumas características e comportamentos que pareciam associar ao que a professora consideraria como “bons alunos” c) duas crianças que apresentavam um comportamento de resistência à professora, mas que obtinham conceitos razoáveis, o que as distanciava de uma trajetória de “fracasso” escolar. A) Legal, interessante, avoado RODRIGO Pardo/Branco - CÁSSIO Pardo/Branco mais de R$ 2.280,00 Recuperação OTÁVIO Pardo/Branco Recuperação MARCELO Pardo/Branco Recuperação 86 A professora Alana usou palavras como “avoado”, “legal”, “interessante” e “esperto” para descrever estes meninos: O Cássio é um menino interessante porque é um carinha inteligente, mas é tão avoado e tão sem ligação com o mundo real! Ele tem essa característica de ser mais influenciável e não tem uma força para sair para um lugar melhor: vai ficando por questão dos colegas, da maioria, mas é um aluno de potencial melhor... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) Otávio é um aluno mediano, ele tenta se esconder pra não se envolver demais. É comunicativo, falante, se dá bem com vários meninos, é um moleque de 10 anos mesmo. Tá super certinho para sua idade: quer brincar, jogar bola. Se ele não se sentir muito seguro do que está fazendo, ele não responde. Tem isso de deixar as coisas de escola pra lá e vai jogar bola, sabe... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Na aula expositiva, ele [Marcelo] não se concentra, não se envolve muito. Tem um potencial bacana, mas só responde aquilo que você pergunta sem questionar muita coisa... A sensação que tenho é que ele não quer se envolver, só responder o que for realmente pedido. A mãe dele também acha que ele é muito avoado. (professora Alana, idem) O Rodrigo é uma figura, super comunicativo, simpático e doido, assim, avoado, completamente alheio ao que acontece na escola, por mais que a gente chame atenção dele, tiro um sarro das respostas que ele dá, às vezes malucas, porque ele não pensa no que está falando... O Rodrigo é um cara legal, um aluno também mediano, esperava que ele fosse melhor, pelo tanto que é comunicativo e esperto, mas também não se envolve com as coisas da escola, com a realidade, é até meio imaturo. Extremamente sociável, ele está sempre com as meninas, pra ele não tem isso de idade, de ser menino ou menina, ele brinca com qualquer um, conversa com todos... (professora Alana, idem) São meninos ativos, mesmo que numa quietude aparente (Cássio, Marcelo e Otávio). Já Rodrigo “aparece” mais por participar das aulas, mesmo com suas respostas “malucas”, segundo a professora. Alana os percebe como crianças que poderiam “dar mais”, poderiam ter um desempenho melhor, caso se envolvessem efetivamente com as atividades e buscassem sentido e significados para o que aprendem: [Cássio] tem resultados medianos e pra ele tá bom, poderia ser melhor, é assim pelo que ele apresenta, tem potencial pra algo melhor... Hoje com a turma um pouco menor, na produção de texto, eu cobrei mais dele e ele foi lá e escreveu só mais um parágrafo, mas foi um parágrafo que deu conteúdo para a história, ao final... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) 87 Ele [Otávio] faz o que tem que fazer porque a mãe manda e a professora fica brava. Reclama muito de mim em casa, faz corpo mole, não quer fazer lição comigo, não quer pensar, quer ir lá cumprir tabela e sair fora. A mãe até quis mudá-lo de sala, ela achava que ele ia sofrer comigo, porque eu vou exigir, que eu vou brigar (cria algo muito mais “cabeludo” do que a realidade). Eu confirmo que sou brava, que quero que ele produza, mas eu nem pego no pé do Otávio... Mas se ele puder ficar sem fazer lição e contar uma história em casa, ele conta. Quando eu pergunto alguma coisa em sala ele não responde. A mãe falou que ele faz a tarefa em casa, mas não me mostra, principalmente quando a tarefa é aberta e eu pergunto: “o que você respondeu?” e ele chega a dizer que não fez a tarefa. Se ele não se sentir muito seguro do que está fazendo, ele não responde. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) O Marcelo também tem problema de concentração. Ele lê muito mal, lê como se fosse uma criança do 2º ano, silabando. Ele não está preocupado com o que está escrito no texto, ele se preocupa em ler, em não errar. Não está preocupado em incorporar a proposta, ele precisa fazer a tarefa logo. É aquele cara que diz ‘eu sei, mas não sei por que é assim, só sei que é assim’, sabe... Não tem um tempo curto de concentração, mas uma má qualidade de concentração. Se você ensina uma técnica pra ele e resolve ‘tá ótimo, eu vou ficar nela, sem entender muito’... (professora Alana, idem) Mas, pra mim, o Rodrigo é um analfabeto funcional: ele lê um texto, mas não entende absolutamente nada... A impressão que dá é que o texto pro Rodrigo é uma porção de palavras que não faz nenhum sentido e não precisa fazer. Lê com fluência, escreve as palavras corretamente, mas parece que as coisas não precisam ter muita coerência... Parece que o mundo é assim, não precisa muita explicação mesmo, como o mundo da televisão onde as coisas acontecem sem muito sentido e tudo parece ser muito fácil... Adora fofoca sobre famosos, adora Rebeldes73, coisas da ‘modinha’, só. Coisas simples que ele se apropria muito bem! Mas agora elaborar, pensar é mais complicado... Mas também chega a falar ‘professora, não estou entendendo nada, explica isso direito’. Não é um cara que vai passar despercebido nunca... (professora Alana, idem) Apesar de alheios ao conhecimento, esses quatro meninos pareciam ter estratégias de aprendizagem no meio escolar que lhes garantiam um desempenho razoável. A expectativa em relação a eles parecia ser menor do que em relação às meninas, pois eram, segundo a professora, meninos “legais”, “super certinho para idade” e o ser “avoado” para os conteúdos escolares não os prejudicava. Mais ainda, o brincar, se preocupar com os colegas e outras coisas extra-escolares, contribuía para que não passassem despercebidos nunca para os colegas, talvez, na vida. 73 Grupo musical adolescente mexicano que tem feito muito sucesso entre as crianças. Em vários momentos de observação, percebíamos as crianças citarem integrantes do grupo em suas falas, trocavam figurinhas, pôsteres e revistas sobre a banda. 88 Esses meninos são coadjuvantes importantes das cenas observadas de conflitos de aproximação entre os sexos (Cruz, 2004). Eram os meninos mais interessados em chamar a atenção das meninas, que brincavam de pega-pega no recreio com elas, que foram citados, “denunciados” por elas a mim por suas atitudes de brincadeira. Cássio e Rodrigo ficam se cutucando, como se tivessem se preparando para uma briga. Rodrigo, rindo, diz: “Na hora do recreio, vou te pegar”. Cássio chama André e enfatiza: “André, o outro aqui quer brigar comigo na hora do recreio... demorou!”. (Caderno de campo, aula de história, 20.06.07) Luane conversa sobre papéis de carta com Tamires e Daniela, enquanto faz a atividade. Em outro momento, Laura começa a maquiar Luane, que ainda não havia terminado a atividade. Um murmúrio cheio de risos entre Tamires, Cássio, Daniela e Otávio: parece que há um papel de carta com algo “interessante” escrito, mas que não pode ser dito. Cássio ameaça entregar para a professora e negocia com Tamires. (Caderno de campo, aula de Português, 27.07.07) Os quatro meninos foram classificados como “brancos’ pela professora Alana. No entanto, todos se autoclassificaram como “pardos” ao utilizarem as categorias de cor do IBGE. Rodrigo, no dia do preenchimento do questionário de auto-atribuição de cor/raça, comentou uma cena de racismo que havia sido noticiada há pouco tempo na televisão sobre um jogador de futebol. Pelas respostas dos questionários na classe como um todo, pareceu-me que as crianças já tinham, em algum momento, refletido sobre questões das relações raciais. E, desse modo, não resistiram em marcar a opção “pardo” em sua auto-atribuição de cor. Entretanto, a opção de “branquear” seus alunos e alunas feita por Alana, represente a dificuldade de identificar, falar e pensar sobre a questão racial no seu trabalho cotidiano. Cássio, Marcelo, Otávio e Rodrigo parecem representar uma maneira de ser aluno bem adaptado e mediano, com uma masculinidade “na dose certa”74, que não aparecem, sem desaparecer por completo. São meninos que parecem estar alheios ao que acontece na classe, que fazem as tarefas apenas para garantir um desempenho mínimo, mas não prejudicial. Ao mesmo tempo, apesar de terem desempenho mediano, são interessados e participativos em tudo o que acontece na turma, tendo a escola como o espaço 74 Expressão utilizada por Marilia Carvalho no artigo de 2001: “Mau aluno, boa aluna? Como as professoras avaliam meninos e meninas?”, publicado na Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.9, n.2, p.567. 89 privilegiado da socialização e nesse quesito eles conseguem muito sucesso. Nos registros de campo, há várias anotações sobre o aparecer discreto e bem entrosado dessas crianças com outras na classe e no recreio. Há uma postura controlada e, ao mesmo tempo, ativa, pois eles procuram não atrapalhar o andamento das atividades em classe. Não precisam e não querem levar “bronca” da professora por estar fazendo algo que não seja estritamente escolar. B) Distraída, interessada em outras questões LUANE Ì Branco/Pardo Recuperação TAMIRES Ì Branco/Branco Recuperação CAROLINE Pardo/Preto até R$ 2280,00 Recuperação Se os meninos “medianos” para a professora eram descritos com características positivas, mesmo tendo suas dificuldades de aprendizagem citadas, ao falar sobre as três meninas “visíveis” e participativas, consideradas de desempenho mediano, Alana parecia tentar explicar e não entender alguns comportamentos dessas meninas: A Caroline ‘viaja’, é a ‘viagem’ perdida no espaço. Ela escreve umas ‘coisas’ na prova dela! No dia que vamos ‘tirar as pérolas’, a prova da Caroline é digna de ser lida. Eu não sei o que acontece com a Caroline. Ela é muito sapeca, muito divertida. É uma menina super animada, tem muitos amigos e não ‘leva’ desaforo para casa. Joga futebol, é super ligada como que no 220V... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) A mãe da Tamires a está levando ao psicólogo, fazendo terapia, mas já pedi à mãe que não dê remédios. Tem um histórico de anorexia, não come sentada... É toda preocupada com essas coisas do corpo, mas come errado... Ela quer comer pirulito o dia inteiro e depois não quer comer comida... Está sempre com a Daniela, na sombra dela, se deixar a Daniela faz por ela. A Tamires tem essa coisa da hiperatividade, eu não sei... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) A Luane é uma menina repetente. Na verdade, não sei por que a reprovaram, já que só reprova quem está muito ruim. Ela é ruim em Matemática, tem dificuldade com regras, problemas matemáticos... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Caroline, Tamires e Luane, tal como os meninos, não apresentavam destaque por suas notas (nem excelentes, nem muito ruins) e apresentavam dificuldades de aprendizagem pontuais. Também como os meninos citados acima, pareciam ter certo 90 sucesso no estar em classe, ou seja, um sucesso na convivência com seus colegas da turma. Elas receberam mais que três indicações no teste sociométrico, indicando uma boa rede de amizades. Além disso, essas três meninas eram associadas a grupos de crianças que apresentavam bom desempenho na escola. Caroline sempre realizava suas atividades com Leonardo, Luane com Adriana ou Laura e Tamires com Daniela. Apesar de buscarem “bons alunos” para a realização das atividades escolares, para a professora, eram meninas que não se envolviam efetivamente com as aulas, mesmo tentando participar. Aliás, essa característica do aluno ou aluna de não se envolver, não buscar sentido, não relacionar o que aprende com a realidade foi freqüentemente encontrado no discurso de Alana, como algo que a angustiava, que produzia certo descontentamento, como se esperasse sempre mais de seus alunos: A Caroline tem uma família que ‘cobra’ bastante, quer que ela seja uma boa aluna. Ela freqüenta direitinho e o pai dela ameaçou tirá-la da aula da fanfarra, por causa do desempenho dela. Foi difícil fazer com que ele voltasse atrás, teve uma intervenção minha e teve uma intervenção da Lucia, professora da fanfarra. Eles não queriam que ela continuasse por achar que era muita coisa para ela ‘administrar’. Mas, eu fico pensando nisso: a Caroline não faz muita ligação com o real, está ali porque os pais mandam e ela tem que obter sucesso. Ela responde as coisas, mas muitas que não tem nada a ver, parece distraída... A escrita e leitura dela são razoáveis, mas não faz uma conexão com o real, sabe... Ela ‘viaja’ e tem horas que chega até ser mais infantil do que deveria para a idade dela. (professora Alana, entrevista em 17.08.07) Ela [Tamires] faz a tarefa, na verdade finge que está fazendo a tarefa melhor possível e quando você vai olhar, não dá pra entender nada. É muito desconcentrada, faz o que pedi, mas sem preocupação. Também é outra que no grupo grande não vai. Quando estou numa aula expositiva, ela até responde coerentemente, presta atenção no que você fala. Mas ela não elabora, não está envolvida, não está fazendo a tarefa pra elaborar pensamento melhor, pra corrigir, retomar... Se você pede pra corrigir, ela não vai lá e se concentra, apaga e faz de novo certo. Se der pra ela não fazer e me enganar, é isso que ela vai fazer. Ou apaga alguma coisa e deixa o resto... É mais um descompromisso com todo o processo do que falta de atenção, só. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Ela [Luane] não tem envolvimento com que está sendo apresentado na matéria, escreve com palavras rebuscadas pra tentar tapear. Aí eu pergunto: ‘O que você escreveu aqui?’ ou ‘O que você entendeu do trecho que leu?’, nada! Parece que está ali pra cumprir ‘tabela’. A gente pede pra ela corrigir o caderno, de coisas que não estavam bem escritas, ela dá um jeito de não fazer. E aí faz igual a Débora: ‘borda’ o caderno com caneta colorida e de gel, sem conteúdo nenhum, nada. Também não é legal a sala grande pra ela porque faz a linha do ‘vou me esconder atrás da moita’: eu fico aqui, a professora não me importuna e tudo bem. (professora Alana, idem) 91 Estas meninas tinham estratégias que as aproximavam de serem “boas alunas”: realizar as tarefas, buscar participar da aula, ter um comportamento satisfatório. E, apesar disso, seus conceitos não coincidiam com seus esforços. No cotidiano apareciam na turma cada uma a seu jeito. Caroline sempre requisitando a atenção da professora para responder as questões, mesmo com respostas insatisfatórias. Tamires com sua inquietude, alegre e ativa, comandando muitas bagunças discretas durante as ausências de Alana na classe. Luane sempre perto de “boas alunas”. Na fala de Alana, alguns dos comportamentos de Luane não eram adequados e justificavam, de certa forma, seu mau desempenho: Eu vejo a Luane assim como uma pré-adolescente que não questiona, mas também não cumpre a regra. Ela finge de ‘boazinha’, mas ela ‘tá ligada’ no que os outros estão fazendo, quem vai beijar quem... Então o foco de interesse é completamente outro... Mora com a avó, embora a avó seja avó materna, a mãe não está e aí tapeia a avó também, né... Mas é uma boa menina, uma menina que não faz mal a ninguém, a não ser pra ela mesma. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) No meu entender, a professora teria uma avaliação diferente entre os comportamentos de meninas “boas alunas” e de meninas com desempenho escolar mediano, como Luane. E a questão da explicitação da feminilidade por meio do cuidado com a aparência e conversas entre as crianças sobre namoros parecia atrapalhar mais algumas crianças, já que pude observar que “boas alunas” como Graziela e Laura demonstravam adesão a padrões de feminilidade tão explícitos quanto Luane, mas não eram criticadas por Alana. Ao observar a relação que professoras faziam entre o despertar da sexualidade e mau desempenho escolar, também com alunas de 10, 11 anos, Marília Carvalho (2001) constata em seu estudo que mesmo meninas “boas alunas” eram avaliadas negativamente devido a comportamentos ligados ao despertar da sexualidade, pois “com a incorporação de uma série de características de uma feminilidade sedutora, estariam atrapalhando o desempenho escolar.” (p.564). No entanto, com exceção de uma citação explícita de questões de “namorico” de Daniela (“boa” aluna), que nem chegava a ser uma preocupação de fato, a professora Alana não avaliava as atitudes de meninas “boas alunas” como avaliava e se incomodava com atitudes de Luane, Tamires e Débora. 92 Tanto Luane quanto Tamires muitas vezes estavam envolvidas nas cenas que indicavam uma aproximação entre os sexos e na entrevista em grupo, ficou evidente que entre risos e denúncias, as crianças marcavam as diferenças e aproximações entre meninos e meninas: Eu gosto da sala de leitura, eu gosto de brincar no recreio, de ficar fazendo lição... O que eu mais gosto é brincar no recreio [Tamires, ao fundo: “de ficar correndo atrás das meninas”], É... de beijar as meninas ‘zoando’ no recreio e só! (Rodrigo, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07) Eu não gosto que a professora grite comigo e não gosto que ninguém grite...E das brincadeiras sem graça do Rodrigo que fica agarrando as meninas... (Tamires, idem) Ela que correu atrás de mim hoje no recreio! (Rodrigo, idem) Resumindo, apesar das diferenças, no que tange à construção de estratégias para lidar com o cotidiano em sala de aula, tanto os meninos quanto as meninas desse grupo se caracterizavam por buscarem identificação com certos aspectos relacionados com o que se espera ser ideal para um “bom aluno”. Identificavam as regras do jogo escolar e se apropriavam delas de maneira pouco exigente e bastante livre, talvez sem a expectativa de ocuparem o lugar do extremo “sucesso”. A interação escolar cotidiana dessas crianças com a professora e demais alunos parece ser mais um movimento de adaptar-se às regras comportamentais esperadas do que uma efetiva preocupação com a apropriação de conhecimento. C) Resistência com conceitos razoáveis DANIEL Pardo/Pardo Recuperação DÉBORA Pardo/Pardo até R$ 760,00 - Meninas “boas alunas” ficam o tempo todo se perguntando entre si: “Que conta você está?”, “Já tá terminando?” ou afirmando: “Já estou quase na última!”, “Vou terminar primeiro!”... Como se uns “controlassem” os outros, como se estivessem competindo. Débora e Regina conversam o tempo todo. Muitos perguntam e querem saber a tabuada. As meninas utilizam-se mais de tabuadas impressas no papel. Julio questiona Natália: “Por que você usa tabuada? Por que não usa 93 a mente?”. Ela não responde e vira para frente. Ele diz que decorou todas. Depois de um tempo, chama Natália novamente e diz que “Só quer ver a tabuada do 9”. Ela ri. Débora diz alto: “Terminei!”. Como ninguém ainda havia terminado e ela está ao meu lado, peço para ver a atividade. Com a letra caprichada e vários desenhos em volta, as operações estão incorretas. Pego uma folha e tento explicar, discretamente, [...] como desenvolver o algoritmo. Pergunto: “Você entendeu o que eu fiz? Tente resolver.” Ela diz entender, pega a folha, apaga uma conta, mas não consegue responder. Fica um tempo em silêncio. Quando a olhei, me falou com a voz baixa: “Eu não sei nada disso... não entendo... Vou entregar assim mesmo...”. Insisto, perguntando se ela quer que eu a ensine. Desanimada ela me diz: “Não adianta, tia, eu não vou aprender isso agora...”. (Caderno de campo, aula de Matemática, 26.07.07) Daniel não aceitou participar dos momentos de entrevista propostos por essa pesquisa. Minha leitura dessa opção é que Daniel me veria como uma pessoa que faz parte da instituição escolar, mais uma que precisaria saber de suas verdades e pensamentos sobre a escola. Se o aluno não aceitou ser questionado por mim formalmente, em contraponto, buscava-me em diversos momentos para compartilhar sua vivência escolar, ora mostrando sua produção, ora perguntando dúvidas, ou somente cumprimentando-me no recreio ou avisando-me sobre a falta de sua professora no dia. Débora, por sua vez, também sempre me procurava para contar alguma coisa, mostrar suas atividades. No entanto, na entrevista em grupo não falou quase nada e pareceu vivenciar aquele momento como um horário de brincar, longe do olhar da professora. Já na entrevista em dupla, pude observar algo que me inquietou bastante. Apesar de não recusar o convite para a entrevista junto com Natália (ambas escolheramse no teste sociométrico), Débora, enquanto Natália respondia algumas questões, murmurava que não gostaria de responder tais perguntas. Após o término da entrevista com Natália, conversei com Débora sobre sua liberdade em não realizar a atividade. Ela pensou e quando eu imaginei que não aceitaria, ela disse: “tá bom, mas vou responder tudo ‘não’, tá?” (entrevista em dupla, 29.10.07). Concordei e, aos poucos, estabelecemos um breve diálogo. Para além de expressar sentimentos de resistência com seus “nãos”, percebi que algumas questões relacionadas com o cotidiano de aula e sentidos de estar no espaço escolar a faziam refletir, expressando muito mais sentimentos de dúvida e angústia. Entre silêncios e frases curtas, Débora se expressava: Patricia: O que é ser um bom aluno? Débora: É fazer a lição, responder e não brigar... 94 Patricia: Você gostaria de ser uma boa aluna? Débora: Gostaria... Patricia: Por quê? Débora: Porque é bom, né... Patricia: Vamos pensar nisso... Se você gostaria de ser uma boa aluna, por que não consegue? Débora: Porque eu brigo, fico brincando... Eu bagunço... [fala com a cabeça baixa e em baixo tom] Patricia: E por quê? Débora: Porque sim. [pausa] Eu não sei não... [parecia-me triste] Débora considerava que não aparecia na classe, tal como Ricardo e Estela. O aparecer na turma estava, para ela, relacionado com o ter “sucesso” escolar e apesar de manter conceitos razoáveis, a menina não se considerava uma “boa aluna”. Tanto Débora quanto Daniel não tinham muitos amigos. Daniel não recebeu nenhuma indicação no teste sociométrico e Débora, apenas foi indicada por Regina, com quem compartilhava até os momentos de recreio. No entanto, eram muito “visíveis” ao olhar de Alana, pareciam a incomodar com suas atitudes, que na minha avaliação oscilavam entre a busca por esse olhar e a defesa dele. Observou Alana: Débora até faz alguma coisa, mas não vem me mostrar. Senta no ‘fundão’, porque ela é grande e também se senta no meio fica conversando, com brincadeirinhas e as crianças chegam a reclamar dela. Mas também para ela ‘tá tudo bem’, lá ela pinta, desenha, borda (como a Luane), troca de lápis, de caneta, mas conteúdo nada... Apesar que acho que ela é melhor de rendimento que a Luane. Ela guarda o que aprende ‘dentro dela’, como um ‘caixa dois’, e suas respostas não chegam a serem tão absurdas... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) O Daniel tem uma estratégia, mas eu não sei qual é essa estratégia. Não é uma estratégia de um menino de 10 anos numa quarta série, que quer brincar, bagunçar ou quer ser o certinho... Ele não quer, está fora de um padrão. Não faz nada, não porque ele não tenha condições, ele tem. Tem um bom vocabulário. Não tem dificuldades, mas a escrita dele é ruim porque ele não exercita... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) A professora, ao perceber que Débora teria uma espécie de “caixa dois” onde guardava seu conhecimento e não demonstrava, e ao não entender a “estratégia” de Daniel, parecia reconhecer uma resistência desses alunos à situação escolar. E isso a inquietava. 95 Percebi, no tempo de pesquisa, que essas duas crianças expressavam comportamentos de retraimento, de recuo e de resistência. Mas, também, de expectativa. A menina parecia buscar seu lugar no grupo: estar nas bagunças discretas das meninas, trocar papéis de carta e até o fato de enfeitar suas atividades com canetas coloridas eram sinais de que queria ser aceita naquele espaço. No entanto, era fato seu pouco acolhimento pela turma (professora e alunos) e ela se defendia disso, demonstrando comportamentos de resistência e rebeldia: A Débora é outra menina que tem um potencial muito bom, ela sabe ler com fluência, ela escreve até bem, mas não está nem aí... Ela não tem uma vontade de aprender, de se sair bem nas tarefas. Se ela puder não fazer nada, ela não faz... Se eu pergunto algo, ela não responde, não quer saber de nada... Só quer saber de ‘coisas de mocinha’, está sempre de salto alto, de brincos, com as unhas pintadas. O que uma menina de 10 anos precisaria fazer, ela não faz. Está interessada nos namoricos, nos meninos e nada. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Tal como em Luane, o comportamento de Débora de apresentar interesse em questões ligadas ao despertar da sexualidade e cuidados com a beleza física, explicitando sua feminilidade, era avaliado como precoce e não condizente com um bom desenvolvimento nas questões escolares. Avalio que essa questão da explicitação da feminilidade associada ao despertar para a sexualidade tem uma marca pejorativa na avaliação da professora especificamente para as crianças do sexo feminino. Isso talvez porque, como adverte Carvalho, o padrão de feminilidade mais valorizado pelas professoras na avaliação de suas alunas era próximo daquele dominante entre os setores médios intelectualizados, uma feminilidade que rejeita a afirmação exacerbada das diferenças de gênero e propõe um padrão de mulher mais independente que submissa, mas assertiva que sensual. (2001, p.565) Já a estratégia de Daniel era de uma resistência mais declarada e incluía a expectativa de não ocupar um lugar de “fracasso”. Certa vez Daniel foi repreendido por Alana de forma contundente e, mesmo assim, não fez a atividade solicitada pela professora. Passado algum tempo, muitas crianças já haviam terminado a atividade e Alana disposta a começar a aula de Matemática, pergunta: “Tem alguém que eu ainda não vi a atividade?”. Ninguém se manifesta. Ela pergunta de novo. Sabrina e Laís levantam a mão. Silêncio. “Mais alguém?!”. Nada. Eu sei que Daniel ainda não havia levado a tarefa. De pronto, Alana ressalta: “Você está fingindo de 96 morto. Deixa você vir aqui!”, olhando para ele. Ela se senta calmamente. As crianças parecem estar tensas e começam a aconselhar Daniel: “Daniel, vai lá, a professora tá te chamando!”, “Vai lá e entrega a folha pra ela!”. Cássio, Luane e Tamires aproximam-se da carteira dele e conversam. Mas nada, nada faz com que ele sequer olhe para elas. Continua como se estivesse escrevendo. [...] Alana vai até a lousa, coloca data e o título da atividade: “Vamos multiplicar!”. Laura entrega para a turma a folha na qual deverá ser realizada a tarefa. Daniel que está na primeira atividade, deixa alguns papéis caírem no chão. Cássio alerta: “É para entregar para a professora!” [...] A professora está auxiliando Mauro em sua mesa, quando Daniel decide entregar seu trabalho. Estão próximos à mesa Denis, Cássio e André. Daniel fica “pulando”, se mexendo, parece incomodado com a espera. Depois de alguns minutos entrega sua atividade anterior a Alana. Volta para sua carteira e começa a fazer as multiplicações. (Caderno de campo, correção e entrega de atividade de Língua Portuguesa, 26.06.07) A resistência era aliada a uma postura de fechamento, pois pouco interagia com as outras crianças. Surpreendeu-me quando, após um tempo de observação, Daniel passou a me cumprimentar, fazer perguntas rápidas e demonstrar querer saber minha opinião sobre suas produções. Ao falar de Daniel, Alana demonstrou um certo incômodo por não entender, não conseguir atingir esse seu aluno: Se eu chamo a família, a família não vem, eu não sei que expectativa essa família tem dele e ele faz a linha do menino bonzinho e pequenino, mas com uma fala de adulto. Parece, porque ele não troca nada comigo, quando solicitado, finge que não é com ele... Se ele vem de touca, coloca na cabeça pra ficar o mais camuflado possível... Eu não sei muita coisa dele mesmo porque ele se esconde mesmo. Depois que troquei de lugar, ele está mais comunicativo com os amigos, mas continua solitário: ele brinca sozinho, desenha na carteira o tempo todo, com traços escuros... Não sei qual é a dele... Nas provas ele vai muito mal, não faz nada, porque falta bastante... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Mesmo como um aluno inatingível, Daniel demonstrava, de alguma forma, suas idéias, produzindo e realizando atividades que faziam com que Alana o classificasse como um aluno mediano, sem problemas de aprendizagem. Apesar de “ir mal” nas provas, quando fazia alguma tarefa, fazia de forma satisfatória. Daniel apresentava comportamentos que iam desde o alheamento até o enfrentamento da autoridade da professora. Não conversava, passava o tempo fazendo as atividades escolares, desenhando ou brincando com suas coisas na carteira. Levantava somente ao sinal do recreio ou de ir embora. No recreio, também pude notar 97 que ficava sozinho, mas aproximava-se de mim para contar algo, sempre que possível. No sociograma indicou Gustavo e Daniela (“bons alunos”) e Tamires (amiga de Daniela), crianças que apareciam em classe, muito ativas e isso me faz pensar que havia uma vontade de interagir com elas. Após o alerta ético que me proporcionou75, penso que sua resistência tem algo bem estruturado e é conscientemente realizada. Não quis “falar” na pesquisa sobre a escola e as relações ali estabelecidas, mas me procurou diversas vezes como alguém que, de alguma forma, o olhava e poderia dar opinião sobre o seu desenho e produção. * * * Estas eram, portanto, as crianças “visíveis” para a professora. Havia entre essas crianças tanto alunos e alunas classificados/as pela professora da turma como “bons”, “maus” ou “medianos”. E mais que o desempenho escolar, foram as atitudes dessas crianças que pareciam garantir sua “visibilidade”, até mesmo a atitude de fazer-se visivelmente ausentes, como no caso de alguns alunos com baixo desempenho escolar ou ainda, no caso de Daniel, que incomodava muito a professora. Os modelos extremos de “sucesso” e “fracasso” escolar em jogo nas cenas do cotidiano da turma estudada, traziam consigo uma série de características que pareciam marcar o processo de escolarização dessas crianças todas com, ao menos, três anos de escolarização. Alunos e alunas que reconheciam esses modelos e buscavam adaptar-se de alguma forma ao que a escola esperava ou não deles. Ao descrever esses modelos, busquei contestar a naturalização de modelos e padrões escolarmente aceitos como de “sucesso” ou “fracasso” e mostrar que as crianças escolhem, constroem e reconstroem esses modelos e oscilam entre o manter estereótipos e criar novas possibilidades. Procurei indicar a grande heterogeneidade entre os 27 alunos e alunas que construíam seu lugar de “visibilidade” ante o olhar da professora. “Bons” alunos e alunas sabiam que estavam em uma posição privilegiada e buscavam manter esse lugar. Os alunos indisciplinados pareciam não se apropriar do modelo ideal de menino “bom aluno” (esperto, inteligente, participante e “legal”) e afirmavam sua masculinidade expressando um não esforço para aprender, atitudes agressivas e brincadeiras 75 Ao lembrar-me de que ele não gostaria de ser entrevistado. 98 turbulentas em classe e fora dela, muitas vezes repreendidos pela instituição escolar. Os seis alunos e alunas com problemas de aprendizagem, no seu silêncio, mostravam à escola que ela não consegue ensinar satisfatoriamente o mínimo esperado nesse início de escolarização e ainda culpabiliza, ainda, a família por esse “fracasso”. Sinalizando ainda um fracasso da instituição escolar em ensinar, temos ainda uma grande maioria de alunos e alunas que eram avaliados com um desempenho mediano, mas que apresentavam muitas dificuldades no domínio da leitura, da produção escrita e interpretação de textos. Esses encontravam estratégias para estarem “visíveis’ e “invisíveis” (capítulo 3) na situação escolar e indicavam que há uma grande possibilidade de ações frente ao que entendiam ser as exigências da escola. Por fim, a noção de visibilidade para a professora não é a mesma percebida pelas crianças. Se para a professora essa noção estaria delimitada na classificação de desempenho (bons e maus alunos e alunas) e permeada pelas características associadas a esses extremos (no caso dos alunos e alunas medianos), para as crianças o estar “visível” na classe estava intrinsecamente associado a comportamentos previstos ou opostos ao que se espera de um “bom aluno” e, também, pelas relações entre eles mesmos. Aliás, a sociabilidade entre as crianças pareceu-me como elemento fundamental nas falas das crianças sobre o “estar” na escola. Nas entrevistas em grupos pude identificar algumas nuances quanto à visibilidade por desempenho. Para o grupo dos “bons alunos”, só seriam visíveis na turma os alunos que participavam efetivamente da aula, interagindo com a professora na produção de conhecimento. Já para os alunos “medianos” a visibilidade estaria associada àqueles que aparecessem na classe, seja por participar da aula ou por serem repreendidos pela professora por indisciplina. Para o grupo de alunos com dificuldades de aprendizagem, eles seriam o foco de visibilidade da professora, tanto quanto os “bons alunos”. Patricia: Quem seriam os alunos que mais aparecem na classe? Parece que só a gente aparece. (Julio, em entrevista com o grupo dos “bons alunos”, em 04.08.07) A Graziela, Leonardo, Adriana, Laura, Natália... (Luane, em entrevista com o grupo dos “alunos medianos”, em 08.08.07) O Julio, a Graziela, o André, César, Daniel, Débora... (Rodrigo, idem) 99 O André porque a professora chama atenção dele. Eu, mais ou menos. (Otávio, idem) É... a Débora aparece muito, mas não responde. A Regina não aparece também não responde. O Mauro aparece, mas ele não responde... É... [pausa] o César aparece e não responde. O Denis, é... ele aparece? Não aparece e não responde. A Estela aparece e não responde e a Sabrina. E... quem mais? [pausa] O Elias não aparece direito e não responde e... são essas as pessoas que eu reparo mais... (Caroline, em entrevista com o grupo dos “alunos com dificuldades no contexto escolar”, em 10.08.07) No capítulo a seguir, o foco deteve-se nas seis crianças avaliadas pela professora como alunos e alunas com desempenho escolar mediano, que construíam estratégias de colocarem-se como “invisíveis” perante o olhar da professora Alana e conseguiam ocupar esse lugar de “invisibilidade” em sala de aula. Crianças que também jogam com os modelos propostos, mas de forma peculiar. 100 CAPÍTULO 3 INVISIBILIDADES EM SALA DE AULA: VER E NÃO SER VISTO A expressão “escolarmente suportável” é utilizada por Bernard Lahire (2004) ao afirmar que os professores avaliam as crianças de acordo com uma seleção de fatos e gestos que é pertinente para a escola, e que evocam tanto ou mais o comportamento dos alunos e suas qualidades morais, que seus desempenhos ou qualidades intelectuais, principalmente nos primeiros anos de escolarização. Esse autor assegura que: (...) é mais freqüente encontrar crianças “escolares” ou “escolarmente suportáveis” no plano comportamental e em “fracasso” escolar, que alunos “escolarmente insuportáveis” no plano comportamental e com “sucesso” na escola. (p. 55) O mesmo pude observar na classe de Alana. A hipótese de que há, no agitado cotidiano de uma sala de aula, crianças que constroem estratégias de invisibilidades ante o olhar da professora confirmou-se com as observações. E essas estratégias pareciam estar pautadas no “ser” um aluno “escolarmente suportável”. Entre o “sucesso” ou “fracasso” definidos pela instituição escolar, os alunos e alunas que ocupavam um lugar de “invisibilidade”, eram crianças classificadas com um desempenho mediano e que não apresentavam questões de indisciplina. Na tentativa de escutar as crianças, percebi que os sentimentos de medo e vergonha apareciam de forma muito acentuada ao justificarem os motivos que levariam a construção de estratégias para colocarem-se num lugar de (in)visibilidade na sala de aula. Em pesquisa com alunos e alunas do 4º ano do ensino fundamental sobre o que as crianças dizem sobre avaliação escolar, Beatriz Cortese (2004) enfatiza que o sentimento de vergonha aparece no discurso dos alunos e o medo de senti-la “faz as pessoas refletirem sobre qual a melhor atitude a ser tomada, e isso pode ser feito de modo a favorecer ou prejudicar o desenvolvimento individual” (p.86). Isso me levou a pensar o quão negativo seria ocupar esse lugar de “invisibilidade”, por limitar as formas de expressão de determinadas crianças e, em decorrência disso, poderia prejudicar suas aprendizagens. 101 Busquei, entretanto, entender mais que avaliar os comportamentos de “invisibilidade” observados em alguns alunos e alunas. Dois estudos (Canetti, 1995; Orlandi, 1997) foram importantes para ter um outro olhar sobre o lugar do silêncio, do segredo e do “não aparecer”: Aquele que é exteriormente indefeso recolhe-se em sua armadura interior. Tal armadura interior a protegê-lo da pergunta é o segredo. Este jaz no interior do corpo qual num segundo corpo, mais bem protegido; quem se aproxima demais dele há de se estar preparado para surpresas desagradáveis. Na qualidade de algo mais denso, o segredo é apartado de seu entorno e mantido numa escuridão que somente poucos logram iluminar. O que ele possui de perigoso é sempre colocado acima de seu conteúdo propriamente dito. O mais importante, o mais denso – poder-se-ia dizer – no segredo é a defesa eficaz contra toda e qualquer pergunta. (Canetti, p.286, grifos do autor) E também: Significa dizer que o silêncio é garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O silêncio não é pois, em nossa perspectiva, o “tudo” da linguagem. Nem o ideal do lugar “outro”, como não é tampouco o abismo dos sentidos. Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa na relação do “um” com o “múltiplo”, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa. (Orlandi, p.23) Com esse enfoque, pude reconhecer que ao optar por estratégias de estarem “invisíveis” perante o olhar da professora, alunos e alunas da turma pesquisada estariam, certamente, buscando formas de vivenciar, se proteger e sobreviver às normas e exigências da instituição escolar. Com isso, teriam um espaço de maior liberdade para agir, mesmo na quietude, observando sem necessariamente serem observados. Ao olhar para essas estratégias e procurar compreendê-las, reitero o convite de Dussel e Caruso (2003) para “ativar nossas forças no sentido de ‘habitar’ o lugar que apenas ‘ocupamos’” (p.26) em sala de aula, como professores e alunos que sempre seremos. Em outras palavras, olhar para as cenas do cotidiano escolar com mais atenção, cuidado e buscar decifrar quais são as estratégias utilizadas, criar outras, recriar e, assim, entender a diversidade, com o intuito de construir um espaço mais acolhedor na escola. 102 3.1 “SUCESSO” ESCONDIDO ELIAS Pardo/Pardo até R$ 380,00 Recuperação REGINA Pardo/Pardo Recuperação LAÍS Branco/Branco até R$ 760,00 Recuperação Como parte do cotidiano conhecido, os “de sempre” [Leonardo, Graziela, Luciana, Caroline, Gustavo, Júlio] respondem e, quando se espera o final da atividade (já que ninguém mais demonstra vontade de “contar” sua notícia), Alana pede que Laís leia sua notícia. Ela lê muito baixo. A professora pergunta o tema. Ela tenta ler, mas pára por um momento [parecia aflita]. Alana, então, pergunta sobre a notícia de Laura. Laís continua concentrada, parece ter certeza que a professora a chamaria novamente. A aula é interrompida pela assistente de direção Mirian e, ao retomar, Alana faz um comentário geral sobre as notícias e propõe a elaboração de um texto coletivo sobre as notícias pesquisadas. Novamente, com exceção de Laís, todas as crianças citadas acima participam efetivamente na construção do texto até o sinal do recreio. (Caderno de campo, aula de História, 11.04.07) Elias, Regina e Laís, são exemplos de alunos que, apesar da quietude e do nãofalar, são avaliados positivamente pela professora Alana e a surpreendem, quando ela consegue intervir em suas produções ou incitar alguma resposta individualmente. A professora reconhecia no aprendizado dessas crianças dificuldades pontuais e por isso os considerava como alunos “medianos”. Ao falar sobre essas crianças, acreditava que o grande número de alunos por turma dificultava o melhor desempenho delas: O Elias é um cara muito tímido, fala muito pouco e fala muito baixinho... mas é legal. Não é um cara alheio, quando você o solicita está sempre em contato com o que você falou e tem grande vontade de aprender. Não está nem aí por ser um cara muito calado. O Elias é um cara que esconde o que ele pode, tem dificuldade, sim, e tem uma letra difícil de entender, mas quando você chama e conversa, ele retorna, melhora e pronto: passou aquilo! Ele também é um cara que precisava de uma turma menorzinha. (professora Alana, entrevista em 17.08.07) A Regina é uma menina muito calada... é, assim, parecida com o Elias... tímida e calada e, provavelmente, continuará assim a vida inteira, não vejo uma mudança na adolescência, por exemplo. É uma aluna mediana também, mas se tivesse um grupo menor, ela se colocaria mais, ela renderia mais. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) A Laís é uma menina muito atenta, quietíssima, como o Elias, muito tímida e não quer se expor. Ela tem vontade de fazer as coisas, mas se sente muito insegura... É uma menina que quer se envolver, muito criativa e quando se sente bem se expressa de forma madura. É outra criança que num grupo menor, se daria super bem... Um dia, chegou em mim e falou que não estava 103 entendendo nada de ‘divisão’, ficamos até depois do horário tirando dúvidas. Depois perguntei se tava tudo bem e se precisava de ajuda e ela respondeu: ‘tô indo bem, tá tudo bem’, bem ‘madurinha’... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Essa preocupação com o número de alunos por turma apareceu logo no início das reflexões de Alana sobre o porquê das (in)visibilidades em sala de aula. No final do primeiro semestre, houve um período de recuperação de três dias letivos. A professora, além de convocar os alunos com problemas de aprendizagem e disciplina, chamou também muitos alunos e alunas com desempenho escolar mediano: Patricia: Quais eram suas expectativas para as aulas de recuperação? Nas aulas expositivas, no dia a dia, tem muita conversa e como o grupo é muito heterogêneo, algumas crianças são engolidas. Optei por chamar para a recuperação os alunos que eu não tinha muito contato no dia a dia e tinha dúvida sobre algumas questões. Percebi que o Elias, a Laís se forem provocados, vão responder, da forma deles. Demoram para responder, mas com uma resposta mais elaborada. O Otávio, Marcelo e Cássio dispensei já no final do primeiro dia... (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Com comportamentos adequados de disciplina, ordem e dedicação às atividades, Regina, Elias e Laís optavam por não se expor como faziam os ditos “bons alunos”. No lugar de “responder tudo que a professora pergunta” (Leonardo), essas crianças tinham uma postura tranqüila e sossegada em classe e, no silêncio, demonstravam interesse em aprender. Ao contrário do incomodo mencionado por Alana do “estar invisível” de alguns alunos com dificuldades de aprendizagem, a “invisibilidade” dessas três crianças era considerada, pela professora, como uma estratégia relativamente positiva, construída devido ao grande número de alunos. Alana acreditava que, se houvesse uma turma menor, essas crianças participariam mais da aula. Para as crianças essas estratégias estavam relacionadas com timidez, medo e vergonha de errar e, assim, de ficarem expostos. No discurso de Elias a vergonha aparece como proteção. Proteger-se do olhar depreciativo do outro, do riso que oprime e que expõe as dificuldades de maneira a estabelecer quem sabe e quem não sabe: “tenho vergonha [de falar] porque senão todo mundo vai zoar...” (Elias, entrevista em dupla com Otávio, 29.10.07). Na turma pesquisada, havia uma grande competitividade de desempenho entre as crianças. Uns avaliavam os outros e, muitas vezes, procuravam realçar os erros 104 cometidos. Esse comportamento era, de certa forma, estimulado pela professora que, por exemplo, ao entregar as avaliações escritas das crianças, “retirava pérolas” das provas76. Mesmo que a professora não falasse de quem era a prova, os “bons alunos” pareciam ter certeza que não era deles, ficavam tranqüilos e curiosos e o restante da turma, parecia vivenciar um momento mais tenso. “Agora vou entregar a avaliação de Ciências. Vai rezando que foi uma tragédia!”, alerta Alana com mais um punhado de papéis sobre o braço. Começa retomando as idéias centrais do conteúdo estudado e Leonardo, Graziela, Julio e Luciana respondem satisfatoriamente. Graziela demanda: “Professora, por favor, entrega!”, mas Alana contesta sorrindo: “Vamos ver as pérolas! Tem umas coisas legais! Preciso ler...” A professora aponta alguns erros que ela percebe como inexplicáveis. Embora não se fale, as crianças parecem saber quem foi que errou e as risadas e olhares dirigidos, são inevitáveis. Quem não ri, parece sentir-se “culpado” e não ousa se expressar. Outras crianças parecem perceber essa atitude como um momento legal, de brincadeira. O tempo é curto, já está para tocar o sinal do recreio e, rapidamente, Alana entrega as provas, já dispensando as crianças para lancharem. (Caderno de campo, aula de 24.07.07) Durante as entrevistas com os grupos, os ditos “bons” alunos foram os únicos que comentaram tais atitudes de depreciação do outro pelo erro: Mesmo que ela não levante a mão e não bagunce, se tira boas notas ‘aparece’ e errando na prova também... (Laura, entrevista em grupo dos “bons alunos”, 04.08.07) É... errando nas provas (risadas), né? (Leonardo, idem) Patricia: Errando nas provas, aparece? Como aparece? Com a professora zoando... (Leonardo, idem) Tem criança que tira notas baixas e aí as pessoas dão risadas. Quando nós damos risada da pessoa que tirou nota baixa, ela reclama, tem uns que choram, acham ruim, porque a professora não foi boazinha... Mas elas que não estudam, não se dedicam mais. (Adriana, idem) Se no cotidiano em sala de aula, Elias não se sentia à vontade para perguntar suas dúvidas ou participar mais das aulas, Alana avaliou que sua participação no momento de recuperação realizado no final do primeiro semestre foi positivo porque 76 As “pérolas” eram, segundo a professora, a explicitação dos erros mais absurdos escritos nas avaliações. Alana justificava o uso dessa estratégia dizendo que era uma maneira dos alunos perceberem que erram por distração, por não prestarem atenção no que é pedido no enunciado. 105 “ele participou bastante”77. Quando perguntado sobre isso, Elias disse: “é legal [falar], se tivesse menos [crianças] seria melhor para cuidar...”78. Talvez Alana compartilhe da mesma sensação de que a possibilidade de “cuidar”, de poder olhar para todos os seus alunos e alunas numa turma menor promova uma aprendizagem mais efetiva. Os momentos de “visibilidade” dessas crianças por Alana eram raros e a professora apontou seu descontentamento de não poder auxiliá-los mais: O Elias tem vontade de aprender, de sair desse lugar... Quando a gente chama, ele responde, mas tem que estar num grupo menor... Naquele “fuzuê”, ele não se atreve, mas também não recusa... Precisava de uma turma menorzinha para poder dar esse espaço pra ele, porque ele é “engolido” pelas Lucianas, Leonardos e Grazielas... (professora Alana, entrevista em 17.06.07) Aquela “muvuca” de sala de aula atrapalha. E quando eu chamo e dou uma bronca “puxa, Regina, poderia ter feito uma coisa melhor”, ela retoma, faz. Eu lembro que ela fez uma prova de história e tava muito ruim. Em seguida fez um ótimo trabalho. Era sobre arqueologia e ela escreveu coisas bem interessantes. Ela tem uma posição de entender o que eu estou falando, uma postura de se envolver... mas tem bastante dificuldade em matemática... difícil atravessar a arrebentação e chegar até mim: passar aquela ‘massa’ de gente, passar por aquela bagunça de todos que vêm até minha mesa... Mas se eu pergunto alguma coisa, porque percebo que a hipótese dela está equivocada, ela consegue perceber e retomar. (professora Alana, entrevista em 24.08.07) Elias, em sua fala, reconheceu que a professora “é legal, mais ou menos, porque ela é brava”79 e que o bom aluno “tem que ficar quieto e fazer a lição”, mas não se considerou um “bom aluno”, apesar de não saber explicar os motivos de se ver como um aluno “mais ou menos”. Quando questionado sobre quem eram as crianças que não apareciam na turma, Elias citou Laís e explicou que “ela é quietinha e só”. Esse aluno parecia associar a visibilidade das crianças ao fazer bagunça. Para ele os alunos que apareciam eram César, André, Cássio e Daniel. Eram os alunos que mais levavam bronca da professora no dia a dia. Apesar de ser amigo de dois desses meninos tidos como bagunceiros - César e André - Elias disse que ele próprio “não aparece porque é quietinho”. E que tinha que ser “quietinho senão apanha da mãe em casa”. No recreio, além de estar com os meninos ditos indisciplinados, também bagunçava, mas ao entrar na sala de aula, voltava a estar quieto. 77 Professora Alana em entrevista no dia 24 de agosto de 2007. Elias em entrevista em dupla com Otávio, no dia 29 de outubro de 2007. 79 Os trechos de fala de Elias neste e nos dois próximos parágrafos foram retirados da entrevista em dupla, citada acima. 78 106 É interessante que Elias tenha contado que, no seu primeiro ano na escola foi “bagunceiro, porque não fazia lição e levava muita bronca da professora”. No 2º ano aprendeu a ler e ficou “menos bagunceiro”. O 3º ano foi um ano de “muita lição e eu era quieto... legal”. Destaca-se nesse discurso um “aprender” a ser quieto. Aprender, seja porque a professora “briga” ou porque a mãe “bate”. E ele percebeu que isso era bom, era bom ser “quietinho e só” e não aparecer na turma. Associava diretamente o bom comportamento à idéia de estar próximo ao ideal de bom aluno e podemos perceber que ele tinha razão até certo ponto, quando Alana afirmou que apesar das dificuldades pontuais “é um cara legal”. O aprender a quietude parece-nos estar associado também a uma construção de certa “invisibilidade”: são crianças que apresentam certas dificuldades no contexto escolar, em meio à turma não se expõem, raramente perguntam suas dúvidas, respondem satisfatoriamente ao chamado da professora, criam estratégias de aprender sem incomodar, não são alvos de preocupação da professora e, por não falarem, não correm o risco de serem alvos de risos de seus colegas. Renata e Laís eram meninas quietas dentro e fora da sala de aula. Nas cenas que observei, Renata sempre estava nas bagunças discretas das meninas, ao cochichar, trocar bilhetinhos, andar pela classe sem chamar atenção. Também era uma aluna que apresentava muitas faltas nas aulas. Laís, sempre presente e ao lado de Leonardo e Caroline, dividia-se entre o momento de classe, dedicado a fazer as atividades com atenção e o recreio, quando jogava futebol com seus amigos. Ao falar sobre esse “não aparecer” na classe e não ser “vista” pela professora, Laís refletiu: “Tenho vergonha, tenho medo de errar palavras, das outras pessoas...” (entrevista em grupo, 08.08.07). Como se a vergonha viesse mais do medo de errar frente aos seus pares que do medo da professora, pois a menina dizia gostar da escola, “de fazer lição” e “não gosto quando a professora falta”. E pude constatar que Alana tinha uma avaliação bastante positiva de Laís, tanto quanto de Renata, particularmente quando, no processo de pesquisa, ela foi levada a pensar sobre as possíveis (in)visibilidades em classe. A professora citava os nomes dessas crianças ao referir-se aos comportamentos de “invisibilidade”. 107 3.2 “FRACASSO” DISFARÇADO JANAÍNA Branco/Branco até R$ 1.900,00 - JÉSSICA Pardo/Preto até R$ 760,00 - BIANCA Pardo/Branco Recuperação Se os nomes de Laís, Elias e Renata eram sempre lembrados pela professora Alana ao pensar nas crianças que estariam construindo estratégias de invisibilidade na sala de aula, os nomes de Bianca, Janaína e Jéssica não eram sequer citados pela professora. Essas três meninas pareciam ter conseguido efetivamente ocupar o lugar de “não ser visto” por sua professora. Nas observações de campo, Janaína e Jéssica também “sumiam” para mim no meio dos demais. Mesmo tendo, durante a pesquisa de campo, o foco para possíveis “invisibilidades”, pouco conseguia anotar sobre essas meninas. Quase não as via falar, brincar ou sair da carteira. Mesmo depois de algumas idas a campo, eu ainda tinha dificuldade em observá-las. Eram crianças nas quais eu tinha que focar o olhar, para tentar perceber algo. Presenciei, em poucos momentos, que Janaína tentava chegar até a mesa da professora, mas a vi, algumas vezes, desistindo de esperar e voltar à sua carteira. Com um comportamento mais ativo, Bianca era uma aluna com uma freqüência baixa às aulas e isso parecia contribuir muito com a construção de sua “invisibilidade” em classe. No entanto, quando estava presente, observei-a em movimentos discretos: muitas vezes de bate-papo com outras crianças, andava pela classe e, vez ou outra, até chegava à mesa de Alana para perguntar algo. Avaliadas como alunas com desempenho escolar mediano, essas três meninas apresentam limitações na aprendizagem dos conteúdos escolares, de forma mais acentuada que os três colegas descritos no item anterior. Todavia, é importante destacar que apenas Bianca foi convocada para as aulas de recuperação no final do 1º trimestre, lembrando que a professora afirmou ter convocado muitas crianças, inclusive aquelas com as quais ela não tinha muito contato no dia-a-dia e carregava dúvidas. Nas falas sobre essas crianças, a professora apontou questões pessoais e de ordem familiar, que justificariam seu desempenho na escola: Na Bianca eu sinto uma falta de compromisso também, mas não é só dela, é uma dinâmica da casa. Ela foi minha na segunda série e sempre teve esse número de faltas... Toda volta de feriado, ela não volta. Depois das férias ela não aparece na primeira semana, parece que a família sempre se 108 organiza pra viajar quando não é mais hora de estar viajando... A Bianca se ‘vira’ sozinha! Quando ela tava na segunda série meu primo passava para trabalhar e via a Bianca fechando o portão sozinha, portão grande, semiautomático. Ou seja, ela saía sozinha, ninguém a acompanhava, vinha sozinha. Então, assim, uma coisa meio que de sobrevivência. (professora Alana, entrevista em 17.08.07) A Janaína é uma menina que caminha na linha do ruim, sabe... Mas ela não é tão ruim, já foi minha aluna. Ela é repetente, ela melhorou bastante desde que eu a deixei na segunda série, ela tava recém alfabetizada. Então ela evoluiu bastante, mas ela escreve e tem bastante erro de ortografia por troca de letra de t por d, f por v... É uma menina muito quieta, calada, não fala o que pensa, o que vê, nem o que sente... Nunca fala e nunca falou, nem na outra série, que foi aluna minha, mas tem demonstrado um bom rendimento, melhor do que eu esperava... O relacionamento dela em casa é bem complicado. O pai dela tinha uma família e depois fez outra família e já é um senhor já, um cara mesmo de idade... e ela me contava umas histórias esquisitas. A irmã da Janaína andava com uma foto da mãe e era público essa história da menina que ficava na sala chorando, tirava a foto da mãe e ficava beijando... Quando os pais se separaram ela falou ‘graças a Deus, não preciso mais dividir minha mãe com você’! E a Janaína ficava acabando na rabeira dessa história. (professora Alana, entrevista em 17.08.07) A Jéssica também foi minha na segunda série e troca um pouco as letras. Mas eu acho, assim, que a Jéssica é mais pro lado de ser ‘malandra’, malandragem. Às vezes ela anda com algumas garotas que gostam de fazer um certo movimento meio ‘fora da lei’. Mas ela é uma excelente menina, de coração mesmo, tem uma família super preocupada. Ela vive com a avó, ela e o irmão gêmeo. A mãe e o pai só vêm final de semana. Tem um bom convívio com os pais e eles têm função de mãe e pai mesmo, embora a avó seja quem manda no pedaço... (professora Alana, entrevista em 17.08.07) O “estar invisível” ante o olhar da professora, a quietude, o silêncio refletiam nesses casos um comportamento permeado por algumas estratégias de sobrevivência na aula: não perguntar dúvidas, ter uma desatenção silenciosa, copiar muitas vezes atividades dos colegas, entregar somente aquilo que era extremamente cobrado. Essas estratégias pareciam ser percebidas de formas diferentes pela professora ao falar de cada menina: Também aquilo de não ter muita vontade de fazer [a demanda escolar]. A Bianca faz porque tem que fazer, porque eu vou ficar brava e já que ela tá ali, faz. Mas depois ela sai e acabou. Não tem mais o que fazer. Tem um bom potencial e ela pode responder melhor, mas para ela tanto faz. “Fez a lição de casa?”, eu pergunto. “Não... porque eu esqueci...” E, quando faz, parece não ter aquela vontade de fazer, não tem empenho, não se preocupa em fazer uma verificação, para ver se tá certo e... ela vai indo assim: se bater um vento ela vai, se não bater, fica... (professora Alana, entrevista em 27.06.08) 109 Mas, assim, a Janaína tem muita dificuldade e ela até vem me perguntar como faz, mas naquela bagunça da sala, muita gente, logo já vem outra pergunta em cima... Então, se ela vê que tem um espaço aberto, ela vem e pergunta. Se não, se retrai um pouco... Até sinto que ela tem necessidade de fazer algo melhor, de tentar bastante, de acertar, sabe... (professora Alana, idem) A Jéssica poderia ser até melhor, porque ela é bem devagar... Apesar que eu até me surpreendi agora na quarta série... Ela está bem melhor do que tava na segunda. Em leitura e escrita eu sinto a Jéssica muito insegura, mas agora no final do semestre ela tava com uma boa produção de texto, livre, boa mesmo... (professora Alana, idem) A discrição nas atitudes em classe, o fazer sem tanta cobrança, uma nãoexpectativa da professora de um bom desempenho, pareciam ser marcas dessas meninas que não apareciam no cotidiano, apesar de estarem ali. Certamente não incomodavam e talvez por isso estivessem quase “invisíveis” no meio de um todo mais “visível”. Esses comportamentos foram explicados por Janaína e Bianca como opções no contexto escolar. As duas meninas, durante a entrevista em dupla80, apresentaram discursos bem conscientes sobre qual deve ser o comportamento em classe. Janaína, vista por Alana como uma criança que não fala, surpreendeu-me durante as entrevistas, com suas respostas completas e coerentes sobre o que eu perguntava. Desde o primeiro ano do ensino fundamental nessa escola, as duas meninas contaram boas lembranças de sua vida escolar. Bianca com o seu “foi divertido e legal” e Janaína com “a gente aprendeu bastante”, relataram que foi no terceiro ano que “as coisas começaram a ficar difíceis”. O terceiro ano do ensino fundamental parece ser decisivo para aprender a “ser aluno” para algumas crianças. Na outra entrevista em dupla, com alunos considerados com desempenho mediano, Elias disse que foi aprendendo a ficar quieto, porque “é bom, né?” (entrevista em 29.10.07) e Otávio contou que a professora era brava e tinha que “ficar quietinho” (idem). Se Janaína e Bianca já eram de antemão quietas, perceberam que as exigências quanto à aprendizagem neste ano aumentavam: Patricia: E como foi o terceiro ano? Aí já começou a ficar muito difícil porque já tinha prova, né... e a professora já brigava com a gente. (Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07) 80 Entrevista em dupla com Janaína e Bianca, realizada em 29 de outubro de 2007. 110 A terceira série foi um pouco difícil: a gente já fazia prova e a gente já tava pra ir pra quarta série e era difícil... (Janaína, idem) Quando perguntadas se elas se consideravam “boas alunas”, a resposta variou entre “não sei” (Janaína) e “mais ou menos” (Bianca). E consideravam que ser “bom aluno”: É saber das coisas, se comportar bem na aula... e ... acompanhar a professora e ajudar outros alunos que precisam... (Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07) É fazer as lições, prestar atenção nas aulas, não conversar, responder as perguntas que a professora faz, ah... é isso. (Janaína, idem) Retomei a questão ao perguntar por que elas não se consideravam “boas alunas”: Ah, eu não acompanho a professora, sabe? A professora está na página 50 e eu na 41...[risos] (Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07) Patricia: E por quê? Porque às vezes eu não quero, eu não acho legal. Aí eu vou virando as páginas e se tá interessante o que a professora tá falando eu viro lá naquela página... (idem) Eu não converso na aula, mas eu tenho vergonha, entendeu? Vergonha de falar, de falar errado, de falar baixo... Aí todo mundo vai rir... (Janaína, idem) De certa forma, parece que Bianca tinha uma liberdade maior para lidar com as situações do cotidiano escolar. “Desaparecer” do olhar de controle da professora trazia vantagens para lidar até com suas dificuldades no contexto escolar. Ela admitiu não ser “muito boa”, mas que faltava porque não gostava de ir “a escola às segundas-feiras”. Ao falar de dificuldades, Bianca afirmou que no 4º ano “a coisa começou a engrossar, porque tem Prova São Paulo e tem que estudar muito” e terminou dizendo que, apesar das dificuldades, gostava da escola porque “eu acho legal... a gente brinca de ‘stop’, fica ‘viajando’...” Por outro lado, Janaína disse ter muita preocupação com seu desempenho. Ao contar os motivos de sua reprovação conseguiu denunciar além de suas próprias 111 dificuldades, ou melhor, justificar suas dificuldades por condições insatisfatórias de aprendizagem: Eu repeti de ano porque a sala era muito barulhenta e a professora só tirava licença e a gente não aprendia nada. Com a outra professora a sala ficava quieta e a gente aprendia. Os bagunceiros a professora deixou passar... E a minha mãe conversou com a professora que era pra eu repetir o ano. (Janaína, entrevista em dupla, 29.10.07) No entanto, por acreditar que teve boas oportunidades de aprendizagem no ano de 2006, quando cursou pela primeira vez o 4º ano do ensino fundamental, Janaína parecia crer que suas dificuldades eram inerentes a ela, como se admitisse sua culpa nas dificuldades de escolarização. Ao falar de como estava sendo o atual 4º ano, comentou: Tá sendo um pouco difícil, porque tem muita tarefa e lições. Quando eu não consigo fazer, a professora fica brava, porque ela ensina, sabe? Eu não consigo fazer fração, aí é ruim, né? Porque não entra na minha cabeça. Eu peço pro meu pai explicar e quando chego na escola a professora diz que é de outro jeito... (idem) Jéssica, por sua vez, como todas as demais crianças “invisíveis”, afirmava: Tenho vergonha que a professora fale alto e todo mundo vai ficar rindo... Aí, fico quieta porque tenho medo que a professora vai brigar, essas coisas... (entrevista em grupo com alunos “medianos”, 08.08.07) Não posso afirmar que essas meninas “fracassavam” na escola. Quando remeti ao título “fracasso” disfarçado meu objetivo foi diferenciar que, apesar de terem estratégias de “invisibilidade” como as crianças do item anterior (“sucesso” escondido), essas estratégias pareciam estar mais próximas de não dar visibilidade às suas dificuldades escolares reais. Isto porque, a meu ver, os fatos de Janaína e Jéssica sequer terem sido chamadas para o período de recuperação e do número excessivo de faltas às aulas de Bianca, podem sinalizar que, de alguma forma, elas mesmas teriam que se responsabilizar pelo que aprendiam ou não na escola. Por outro lado, ao “disfarçar” suas dificuldades essas crianças pareciam conseguir uma liberdade maior naquele contexto. Cumpriam o que se espera de comportamento de um aluno ideal e lidavam com suas dificuldades buscando não se expor, evitando o olhar judicativo da professora e, principalmente de seus pares. * * * 112 O medo de sentir vergonha apareceu nas falas de algumas das crianças do 4º ano C, principalmente aquelas que nesse trabalho foram analisadas como tendo estratégias ativas de construção de invisibilidades ante o olhar da professora, uma postura que foi construída e alicerçada ao longo de sua trajetória escolar. Acredito ser fundamental pensar nas relações que se estabelecem em sala de aula entre alunos, alunas e professores. As crianças também disseram que gostariam de falar mais, se houvesse possibilidade e espaço para isso: Patricia: Você gostaria de participar mais da aula? Elias: Sim, mas eu tenho vergonha das pessoas rirem... Patricia: E como foi na recuperação, com menos alunos na classe? Elias: Foi legal... Falei mais com a professora... (entrevista em dupla, outubro de 2007) Justificar o não falar, o não aparecer, pelo medo do olhar do outro, nos faz pensar que a escola tem incentivado a valorização de um comportamento de retraimento que pouco ou nada contribui para a aprendizagem efetiva de muitas crianças. A escola longe de ser apenas o espaço de ensino-aprendizagem, é um espaço permeado por relações de poder. Além de eventuais dificuldades de aprendizagem, esse comportamento pode gerar muito sofrimento e isolamento frente aos colegas: Num clima de tranqüilidade, duplas vão se formando e as crianças conversam, enquanto Alana entrega a questão que deverá ser respondida por cada dupla. Débora fica sem dupla, vai até a mesa da professora e volta muito chateada, algumas lágrimas caem. Senta-se e abaixa a cabeça, fica assim por um tempo e depois começa a realizar a atividade. O barulho aumenta com a formação das duplas.“Vou esperar vocês pararem de falar...”, alerta Alana com a voz baixa. De repente, o silêncio ecoa. Depois que ela termina de explicar novamente qual será a atividade, as crianças voltam a conversar, mas muito baixo, cochichando. [...] Quando muitas crianças já terminaram a atividade e há movimentação na classe, Sabrina e Janaína vão conversar com Débora, que estava cabisbaixa. Conversam baixinho e percebo até sorrisos entre elas. Penso que medo/vergonha, retraimento/silenciar estão menos associados a comportamentos individuais e mais relacionados com a forma de exercício de poder que tem privilegiado certos comportamentos e atitudes, classificando os alunos e alunas e, a meu ver, consolidando trajetórias escolares de “sucesso” e “fracasso” escolares. Retomando Sirota (1994): 113 Na medida em que todo processo de aprendizagem passa por um processo relacional, este pode se situar na oposição ou na concordância, mas nunca indiferentemente. Essa interação entre o saber e o relacional determina tanto as possibilidades de aprendizagem do aluno quanto às condições de ensino do professor. (p.58) É nesse sentido, que proponho um olhar mais atento às práticas cotidianas de sala de aula, às formas de avaliação implícitas e explícitas e às relações entre as crianças que muitas vezes reforçam a competição e uma classificação “natural” entre os “bons” e “maus alunos”. São essas práticas que produzem, a meu ver, um não falar justificado por sentimentos de medo e vergonha. Contudo, é preciso atentar ao fato de que, se algumas crianças fogem do padrão socialmente aceito do que vem a ser um “bom aluno” (participativo e visível), alunos e alunas menos visíveis ao olhar da professora utilizavam estratégias relacionadas à proteção e defesa dessa estrutura classificatória da escola e construíam um espaço de maior liberdade e sobrevivência em sala de aula. Retomo aqui, as observações de Elias Canetti (1995) e Eni Orlandi (1997) acerca dos mecanismos de defesa, proteção, silêncio e segredo, que no contexto escolar estudado, traduziam-se bem como estratégias de “invisibilidade”. Nesta perspectiva, essas crianças “invisíveis” ao olhar da professora puderam constituir-se como alunos “sem problemas”, no silenciar e não aparecer (nem sempre sem sofrimento), tendo suas trajetórias escolares menos controladas e, assim, com mais liberdade pra lidar com suas dificuldades escolares. Enfim, contrastando com um olhar essencialmente negativo sobre a possível construção de invisibilidades escolares, ao me deparar com as observações e falas das crianças, pude ver que suas estratégias são positivas, à medida que a escola como está é um espaço pouco acolhedor para lidar com configurações plurais de sujeitos e situações no cotidiano. 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas) A busca pelo decifrar, descrita na introdução deste texto, mostrou-me que há muito mais perguntas que respostas no final desse trabalho. Ao tentar decifrar as cenas de (in)visibilidade daquele cotidiano escolar, estruturei minha análise intercalando cenas do cotidiano, reflexões da professora sobre seus 33 alunos e alunas com falas das crianças entrevistadas. Debrucei-me sobre esse material, procurando dividi-las em grupos baseados no que considerei “sucesso” e “fracasso” escolar naquele contexto. E, a cada um destes grupos, propus um olhar a partir da intersecção das análises baseadas nas relações de gênero e raça social. As observações na classe de Alana e as entrevistas com ela e seus alunos me permitiram colocar em questão uma idéia linear de “invisibilidade”, mostrando que as crianças encontram múltiplas formas de sobreviver à dinâmica escolar, tornando-se mais ou menos visíveis ao olhar da professora, no contexto de sala de aula. Para além da “visibilidade” ativa dos alunos e alunas participativos e com bom desempenho escolar e dos alunos com problemas de indisciplina, havia ainda muitos outros alunos e alunas “visíveis” para Alana por conseqüência de seu desempenho escolar, mas que se utilizavam tanto de estratégias de visibilidade quanto de invisibilidade em sala de aula. Havia o grupo das meninas “boas alunas”, quietas e com uma boa produção escolar, o grupo dos alunos e alunas com dificuldades de aprendizagem que buscavam (sem sucesso) um lugar de invisibilidade para não expor seu “fracasso”. Já os alunos e alunas que eram considerados com desempenho mediano e “visíveis” foram, neste trabalho, por sua vez divididos em três subgrupos. Os meninos “medianos” disciplinados e considerados pela professora com potencial de aprendizagem. As meninas “medianas” e “visíveis” com uma bagunça discreta e busca por estar perto de “bons alunos” para realizar suas atividades. E, também, a resistência exercida e sofrida de Débora e Daniel na classe, mas que conseguiam manter conceitos satisfatórios nas suas atividades escolares. 115 Ainda entre a heterogeneidade dos alunos “medianos”, há dois grupos que eram considerados “invisíveis” pela professora Alana. Um grupo de alunos e alunas que na sua quietude, timidez, não expressavam dúvidas ou comentários sobre as aulas, mantinham-se longe do olhar da professora e conseguiam manter um desempenho razoável. E um outro grupo de meninas que, além das características do grupo anterior, ainda não eram vistas pela professora com potencial para alcançarem “sucesso” escolar. Esses dois grupos assinalam que as estratégias de invisibilidades construídas ao longo de suas trajetórias de escolarização tinham como grande influência os sentimentos de medo e vergonha vivenciados no espaço escolar. Dito isto, avalio que parte das estratégias escolhidas pelas crianças decorre das múltiplas dificuldades descritas por Alana no trabalho escolar: classes grandes, falta de planejamento, ausência de um trabalho sistemático de reforço. E resultam em barreiras a mais, interpostas ao pleno desenvolvimento intelectual de parte das crianças. Outra parte, dado o caráter classificatório e pouco acolhedor da instituição escolar, são estratégias de liberdade e menos controle que algumas crianças criavam. Por fim, parece-me que há uma lição aprendida e seguida por grande parte dos alunos e alunas da turma pesquisada. É a idéia de que “bom aluno é aquele que não dá trabalho”81, que aprende a ser “escolarmente suportável”. Essa “lição” é vivenciada à revelia do discurso explícito da escola sobre alunos participativos e é coerente com a postura das professoras sobre “alunos copistas”, tão criticada pela professora Alana. Gostaria de retomar aqui o incômodo inicial das professoras que me questionaram sobre qual seria meu objetivo com a pesquisa sobre possíveis “invisibilidades” escolares. Estaria eu buscando trazer mais um problema para a grande demanda escolar, fazê-las pensar em quem é quieto e não dá trabalho? A professora Alana lembra que foi por sentir essa resistência das outras professoras que decidiu aceitar que a pesquisa fosse realizada em sua turma: Comecei a entender como as coisas funcionam, quando você veio propor a pesquisa... As pessoas se sentem ameaçadas... Dizer que “enxerga” todos? Não enxerga, não tem como enxergar todas... Com essa quantidade de crianças... (entrevista em 24.08.07) Em seguida diz que os alunos “copistas” seriam as crianças que, ao não se apropriar efetivamente do conteúdo, acabam realizando as atividades de forma 81 Otávio (aluno com desempenho mediano), em entrevista no dia 29 de outubro de 2007. 116 mecânica, tendo bom comportamento e uma boa apresentação de atividades e cadernos e isso a incomodava. Apesar disso, reconhecia que essa postura seria de alguma forma valorizada, por ser uma postura que não atrapalha a dinâmica de aula e gera uma produção, ainda que apenas copiada, por parte das crianças. Seria essa uma estratégia das professoras incentivarem a postura mais quieta e não-questionadora das crianças para, assim, lidar com o grande número de alunos em classe? Seriam essas crianças “escolarmente suportáveis” no plano comportamental, mas que não atingem o “sucesso” escolar em termos de aprendizagem? Ao contrário do discurso pedagógico moderno do modelo único do “aluno independente-responsável” (Ramos do Ó, 2007), a escola no cotidiano teria um outro modelo também valorizado, ao lado do bom aluno participativo, pois a instituição também não é linear e carrega paralelamente múltiplos modelos contraditórios. Esse modelo do aluno quieto e que produz um mínimo, talvez seja “mais antigo”, não explicitamente dominante, mas estava disponível e foi aprendido e apreendido por parte das crianças da turma do 4º ano C. * * * As considerações finais dessa dissertação, ainda que provisórias, indicam caminhos que podem contribuir para os estudos que enfoquem a questão da qualidade de ensino, produzida no cotidiano escolar. As perguntas formuladas procuram trazer um olhar sobre as relações produzidas entre professora e alunos em sala de aula, na construção de trajetórias de e entre “sucesso” e “fracasso” escolares. Nesse sentido, fica relativamente claro que o que está em jogo, em última instância, é a reflexão sobre a tensão entre professores que não têm condições efetivas de interferir na aprendizagem e seus alunos e alunas que constroem estratégias mais ou menos eficazes para estar (in)visíveis ao olhar desses professores, no pouco acolhedor espaço de sala de aula. Considero importante destacar que as reflexões contidas neste texto surgiram durante o processo de imersão no campo e análise do material coletado. Como alerta Inês Teixeira (2003) é preciso reconhecer a incompletude e “considerar a relatividade e provisoriedade dos conhecimentos produzidos, por serem eles uma das várias formas de se pensar e de se interrogar o mundo da educação, nada tendo de absoluto ou acabado” (p.101) 117 Quem sabe esse não seja o desafio que nos é imposto: reconhecer essa incompletude de nossos estudos, formular hipóteses e enunciar respostas prováveis e provisórias às questões apresentadas, esperando ao final, releituras e o surgimento de novas perguntas. 118 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Tereza Cristina. A classificação de ‘cor’ nas pesquisas do IBGE: notas para uma discussão. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63, p.14-15, nov. 1987. BERNARDES, Nara Maria Guazzelli. Crianças oprimidas: autonomia e submissão, Porto Alegre, 1989. 347 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1989. BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. 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Quem seriam os bons alunos da turma? • No contexto escolar, que tipo de dificuldade os alunos podem apresentar? • Por favor, indique-me alguns nomes de crianças com dificuldades na turma. • Quem foram os alunos convocados para a recuperação no final do 1º semestre? Como avaliou essa convocação? Quais os resultados? 3) Visibilidade e invisibilidade no cotidiano escolar • Quem são os alunos que mais aparecem no cotidiano da classe? Quais comportamentos e atitudes geram essa visibilidade? • Por favor, indique-me alguns nomes de crianças que aparecem na classe. • Por outro lado, parece-me que algumas crianças desaparecem no cotidiano da classe. Em sua opinião, isso acontece? Quais comportamentos e atitudes geram essa invisibilidade? • Por favor, indique-me alguns nomes de crianças que “não aparecem” na classe. 124 ANEXO B – Roteiro semi-estruturado das entrevistas realizadas com as crianças em grandes grupos Temas específicos: Quando eu falei que iríamos conversar sobre diferenças na classe, o que vocês imaginaram? • O que mais gosta na escola? • O que não gosta na escola? • Fale-me sobre sua turma. • Fale-me sobre sua professora. • Há diferenças entre meninos e meninas na escola? Conte-me como você percebe essas diferenças no cotidiano? • Há outras diferenças entre os alunos na classe? Quais? Fale-me sobre situações que você vivenciou? • O que é ser um bom aluno e mau aluno? • Quais são os comportamentos e atitudes de um bom aluno? • Existem alunos que mais aparecem na classe? Por que isso acontece? • Por outro lado, existem alunos que não aparecem na classe. Em sua opinião, por que isso acontece? 125 ANEXO C – Roteiro semi-estruturado das entrevistas realizadas com as crianças em dupla I. Questões iniciais: • Nome, idade e série. • Onde você nasceu? • Qual a sua cor? • Com quantos anos começou a freqüentar a escola? • Em qual escola fez o 1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental? II. Temas específicos: • Fale-me um pouco de como foram as suas primeiras séries. • Conte-me o que recorda de experiências boas ou não dos anos anteriores do ensino fundamental. • Conte-me como se sente aqui na escola hoje. Qual é a importância da escola no seu dia-a-dia? • O que mais gosta na escola? O que não gosta? • Fale-me sobre sua turma. • Fale-me sobre sua professora. • Há alguns alunos que mais aparecem na classe. Quem são eles? Por que isso acontece? • Por outro lado, alguns alunos não-aparecem na classe. Quem são eles? Por que isso acontece? • Conte-me como você percebe essas diferenças no cotidiano? • Há outras diferenças entre os alunos na classe? Quais? Fale-me sobre situações que você vivenciou? • Você se considera um bom aluno? Por quê? • Quem são os bons alunos da sua turma? • Quais são os comportamentos e atitudes de um bom aluno? • Quais são as dificuldades que você sente no contexto escolar? • Para você é importante estar na escola? Por quê? • Quem o/a acompanha nas tarefas escolares? 126 ANEXO D - Tabulação dos dados socioeconômicos Nº escola82/ nome fictício Idade Quem acompanha? Escolaridade 84 mãe Escolaridade pai 1º ano Ensino Médio Ensino Médio Escolaridade outro Préescola85 Renda familiar86 Sim, pública Entre 2 e 3 SM 83 10 Pai 01 Quantos vivem dessa renda? Mais de 5 pessoas Benefício do Governo não Residência Casa alugada 2 quartos 1 banheiro 1 automóvel 0 telefone fixo própria 3 quartos 1 banheiro 0 automóvel 1 telefone fixo ou até R$ 1139,00 André 10 02 Adriana 82 Mãe 1º ano Ensino Médio Ensino Superior não Até 1 SM ou até R$ 380,00 4 pessoas não Equipamentos 1 geladeira 0 forno microondas 1 máquina lavar 2 televisões 0 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 1 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 0 máquina lavar 2 televisões 1 rádio portátil 1 aparelho som 0 aparelho DVD 0 tel. celular 1 computador 0 impressora O “número escola” refere-se ao número que consta na lista oficial de chamada da turma. Da questão: “Quem acompanha a criança nas atividades escolares em casa?” 84 Escolaridade máxima concluída por cada pessoa (mãe, pai e/ou outra pessoa que acompanhe, em casa, a criança nas atividades escolares) 85 Da questão: “A criança freqüentou a pré-escola? Se sim, a escola pertencia à rede pública ou rede privada? 86 Nas alternativas do questionário constam valores em reais, baseadas números de Salários Mínimos (SM). Para facilitar a leitura da tabela, opto aqui por contabilizar em Salários Mínimos. O valor de um Salário Mínimo no mês de junho de 2007 é de R$ 380, 00 (trezentos e oitenta Reais). 83 127 Nome Idade 10 Quem acompanha? Mãe e pai Escolaridade mãe Escolaridade pai Ensino Médio Ensino Médio Escolaridade outro Préescola Renda familiar Sim, pública Entre 5 e 6 SM 03 Quantos vivem dessa renda? 5 pessoas Benefício do Governo não Residência Casa própria 3 quartos 1 banheiro 0 automóvel 1 telefone fixo alugada 3 quartos 1 banheiro 0 automóvel 1 telefone fixo própria 2 quartos 1 banheiro 0 automóvel 1 telefone fixo ou até R$ 2279,00 Caroline 10 Mãe e pai Ensino Fundamental 2º ano Ensino Médio Sim, pública 05 Mais de 6 SM 5 pessoas não mais de R$ 2280,00 Cássio 10 06 César 128 Mãe Ensino Médio Ensino Médio Sim, pública Até 1 SM ou até R$ 380,00 3 pessoas não Equipamentos 1 geladeira 1 forno microondas 0 máquina lavar 2 televisões 1 rádio portátil 1 aparelho som 0 aparelho DVD 0 tel. celular 1 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 3 televisões 1 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 0 máquina lavar 1 televisão 1 rádio portátil 1 aparelho som 0 aparelho DVD 0 tel. celular 0 computador 0 impressora Nome Idade 10 Quem acompanha? Escolaridade mãe Mãe Ensino Médio Escolaridade pai Escolaridade outro Pré-escola Sim, pública Renda familiar Até 1 SM ou até R$ 380,00 07 Quantos vivem dessa renda? Benefício do Governo Mais de não 5 pessoas Residência Casa Própria (dos avós) 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo alugada 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo alugada 2 quartos 2 banheiros 1 automóvel 1 telefone fixo Elias 09 Mãe 4º ano do Ensino Fundamental Sim, privada 08 Entre 2 e 3 SM 3 pessoas não ou até R$ 1139,00 Gustavo 10 09 Graziela 129 Mãe e pai 1º ano do Ensino Médio 2º ano do Ensino Médio Sim, pública Entre 5 e 6 SM ou até R$ 2279,00 4 pessoas não Equipamentos 1 geladeira 0 forno microondas 0 máquina lavar 1 televisão 0 rádio portátil 0 aparelho som 1 aparelho DVD 0 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 2 televisões 2 rádios 1 aparelho som 1 aparelho DVD 3 tels. celular 1 computador 1 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 3 televisão 2 rádios 1 aparelho som 1 aparelho DVD 3 tels. celular 1 computador 1 impressora Nome Idade 10 Quem acompanha? Escolaridade mãe Escolaridade pai Mãe Ensino Médio Ensino Médio Escolaridade outro Préescola Renda familiar Sim, pública Mais de 6 SM 10 Quantos vivem dessa renda? 5 pessoas Benefício do Governo não Residência Casa alugada 3 quartos 2 banheiros + de 3 automóveis 1telefone fixo própria 3 quartos 2 banheiros 1 automóvel 1 telefone fixo Própria (sogra) 2 quartos 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo mais de R$ 2280,00 Gisele 10 Mãe, pai e irmã Ensino Médio Ensino Fundamental 7º ano do Ensino Fundamental Sim, pública 11 Entre 4 e 5 SM 5 pessoas não ou até R$ 1899,00 Janaína 10 12 Jéssica 130 Mãe e pai Ensino Superior incompleto Ensino Médio Sim, pública Entre 1 e 2 SM ou até R$ 759,00 Mais de 5 pessoas não Equipamentos 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 3 televisões 2 rádios 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 1 computador 1 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 3 televisões 2 rádios 1 aparelho som 2 aparelho DVD 2 tel. celular 1 computador 1 impressora 1 geladeira 0 forno microondas 0 máquina lavar 2 televisões 0 rádio portátil 0 aparelho som 0 aparelho DVD 0 telefone fixo 1 tel. celular 0 computador 0 impressora Nome Idade 10 Quem acompanha? Escolaridade mãe Escolaridade pai Mãe Ensino Fundamental 4º ano do Ensino Fundamental Escolaridade outro Pré-escola Renda familiar Quantos vivem dessa renda? Sim, pública Entre 2 e 3 SM 14 Benefício do Governo Residência Casa 3 pessoas não própria 3 quartos 2 banheiros 1 automóvel 1 telefone fixo Mais de 5 pessoas Sim, Bolsa Família e Renda Mínima prefeitura 2 quartos 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo alugada 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 1 telefone fixo ou até R$ 1139,00 Laura 11 padrasto Ensino Fundamental Não estudou Sim, pública 18 Entre 1 e 2 SM ou até R$ 759,00 Ricardo 10 21 Natália 131 Mãe, pai e tia Ensino Médio Não preencheu Ensino Superior incompleto Sim, pública Não preencheu 3 pessoas não Equipamentos 1 geladeira 0 forno microondas 1 máquina lavar 1 televisão 0 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 0 forno microondas 1 máquina lavar 2 televisões 1 rádios 1 aparelho som 1 aparelho DVD 0 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 3 televisões 0 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora Nome Idade 10 25 Débora 10 26 Quem acompanha? Escolaridade mãe Mãe, irmã, irmão Ensino Fundamental Mãe, pai e avó Ensino Superior Escolaridade pai Ensino Superior Escolaridade outro Préescola Renda familiar Ensino Fundamental Sim, pública Entre 1 e 2 SM (não consegui identificar se é a escolaridade do irmão ou da irmã) ou até R$ 759,00 Ensino Médio Mais de 6 SM Sim, pública 09 Sabrina 132 Benefíci o do Governo 5 pessoas Sim, Renda Mínina 4 pessoas não Residência Casa Barraco de madeira 2 quartos 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo própria 3 quartos 2 banheiros 1 automóvel 1 telefone fixo prefeitura 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo mais de R$ 2279,00 Daniela 29 Quantos vivem dessa renda? Mãe 3º ano do Ensino Fundamental 4º ano do Ensino Fundamental Não Até 1 SM ou até R$ 380,00 5 pessoas Sim, Renda Mínina Equipamentos 1 geladeira 1 forno microondas 0 máquina lavar 1 televisão 0 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar 2 televisões 1 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 3 tel. celular 1 computador 0 impressora 1 geladeira 0 forno microondas 0 máquina lavar 1 televisão 0 rádio portátil 1 aparelho som 0 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora Nome Idade 10 Quem acompanha? Escolaridade mãe Mãe 5º ano do Ensino Fundamental 30 Escolaridade pai Escolaridade outro Préescola Renda familiar Sim, pública Até 1 SM Quantos vivem dessa renda? 3 pessoas Benefício do Governo Residência Casa sim própria 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo alugada 1 quarto 1 banheiro 0 automóvel 0 telefone fixo própria 2 quartos 1 banheiro 2 automóveis 1 telefone fixo ou até R$ 380,00 Estela 11 tio 32 3º ano do Ensino Fundamental 5º ano do Ensino Fundamental Ensino Médio não 10 Valéria 133 4 pessoas ou até R$ 759,00 Laís 33 Entre 1 e 2 SM Mãe 6º ano do Ensino Fundamental 4º ano do Ensino Fundamental Sim, pública Entre 1 e 2 SM ou até R$ 759,00 3 pessoas Sim, Bolsa Família Sim, Renda Mínina Equipamentos 1 geladeira 0 forno microondas 0 máquina lavar 0 televisão 1 rádio portátil 1 aparelho som 0 aparelho DVD 0 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 0 forno microondas 0 máquina lavar 1 televisão 1 rádio portátil 1 aparelho som 1 aparelho DVD 1 tel. celular 0 computador 0 impressora 1 geladeira 1 forno microondas 1 máquina lavar + 3 televisões 2 rádios 1 aparelho som 1 aparelho DVD 2 tel. celular 0 computador 0 impressora