UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PATRICIA MARTINS PENNA
Cenas do cotidiano escolar:
visibilidades e invisibilidades
São Paulo
2009
PATRICIA MARTINS PENNA
Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades
Dissertação apresentada a Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Área de concentração: Sociologia da Educação
Orientadora: Profa. Dra. Marilia Pinto de Carvalho
São Paulo
2009
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
37.047
P412c
Penna, Patricia Martins
Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades / Patricia
Martins Penna; orientação Marilia Pinto de Carvalho. São Paulo: s.n.,
2009.
133p. ; anexos
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Educação. Área de Concentração: Sociologia da Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
1. Rendimento escolar 2. Relações de gênero 3. Relações étnicas
e raciais 4. Crianças 5. Etnografia I. Carvalho, Marilia Pinto de, orient.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Patricia Martins Penna
Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades
Dissertação apresentada a Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Área de concentração: Sociologia da Educação
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:________________________
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Raimundo e Floriza.
Com amor, respeito e gratidão.
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Marilia Pinto de Carvalho, quem admiro por sua sabedoria,
seriedade, respeito e dedicação nas atividades acadêmicas. Ainda agradeço o carinho, a
amizade, a paciência e a confiança sempre demonstrados nos últimos dez anos que
compartilhamos trajetórias.
Às participantes da banca examinadora do Relatório de Qualificação, a professora
Flávia Inês Schilling e a professora Tânia Mara Cruz, pelas imprescindíveis observações
tecidas acerca da leitura do relatório. Estas foram fundamentais para o enriquecimento e
desenvolvimento da pesquisa.
A todos aqueles que se dispuseram a ler, reler e descobrir as entrelinhas dos meus
textos, desde o projeto de pesquisa, compartilhando idéias, inquietações, dúvidas.
À direção, coordenação pedagógica, professores e funcionários da escola em que
realizei a pesquisa. Especialmente à professora e aos alunos e alunas da turma
pesquisada pelo acolhimento, interesse, entusiasmo e ensinamentos que me
proporcionaram ao longo do trabalho de campo.
Aos meus alunos e alunas, de ontem, de hoje e de amanhã, por me fazerem ser uma
pessoa cada vez melhor.
A todos que me abraçaram com amor e carinho. Amigos e amigas de muito perto, de
perto, de longe, de muito longe... Mas sempre presentes. Cada palavra, cada gesto, cada
olhar, cada sorriso, cada auxílio, trago em minha memória e em meu coração. Esse
trabalho não seria concluído sem a presença de vocês.
Àqueles que me ensinaram as alegrias e dores da vida: minha admirada família, pela
paciência, compreensão, cuidado e amor. A eles dedico esse trabalho.
RESUMO
PENNA, Patricia Martins. Cenas do cotidiano escolar: visibilidades e invisibilidades.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2008.
O objetivo desta pesquisa é compreender como alunos constroem ativamente estratégias
de visibilidades e invisibilidades no cotidiano de sala de aula frente ao olhar do
professor, buscando entender como essas estratégias marcam suas trajetórias escolares e
quais sentidos representam no “tornar-se” aluno. Para tanto, foi importante um olhar
mais atento às práticas escolares, nitidamente marcadas por gênero e raça, e aos seus
efeitos no rendimento escolar. A pesquisa com enfoque etnográfico foi realizada em
uma escola pública do Município de São Paulo e contou com observações do espaço
escolar, tendo como foco uma sala de aula de quarto ano do ensino fundamental, e
entrevistas semi-estruturadas com a professora e alunos da turma investigada. De forma
implícita, esse estudo vincula estratégias de visibilidade ou não a desempenho escolar e,
portanto, traz questionamentos acerca da efetiva aquisição de conhecimento.
Palavras chave: Desempenho escolar. Gênero. Raça. Crianças. Etnografia.
ABSTRACT
PENNA, Patricia Martins. Scenes of daily life at school: visibilities and invisibilities.
Dissertation (Master Thesis) – Faculty of Education, University of São Paulo, São
Paulo, 2008.
The objective of this research is to comprehend how students actively build strategies of
visibility and invisibility in a school daily basis in relation to the teacher’s perception. It
is an attempt to understand how these strategies influence students’ school trajectories
and the role they represent at the “becoming a student” progress. It was important thus
to have an attentive look at schooling practices, clearly marked by gender and race, and
to their effects on school performance. The ethnographic research was developed at a
public school in Sao Paulo. The observations were focused on a fourth grade classroom
and there were semi-structured interviews with its teacher and students. Implicitly, this
study relates strategies of (in)visibility and school performance. As a result, it brings
some questions about the effective acquisition of knowledge.
Key words: School performance. Gender. Race. Children. Ethnography.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
17
DEFINIÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA
18
PARTE 1: CAMINHOS PERCORRIDOS
24
1.1 ESCOLHA E ENTRADA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR
24
1.2 PESQUISA DE CAMPO: OLHAR ETNOGRÁFICO
31
A) OBSERVAÇÕES DO ESPAÇO ESCOLAR
33
B) ENTREVISTAS COM A PROFESSORA
37
C) TESTE SOCIOMÉTRICO
39
D) QUESTIONÁRIO DE AUTO-ATRIBUIÇÃO DE COR/RAÇA
42
E) QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO
47
F) ENTREVISTAS COM AS CRIANÇAS
49
PARTE 2: CENAS DO COTIDIANO ESCOLAR
53
CAPÍTULO 1 – A TURMA PESQUISADA: 4º ANO C
E SUA PROFESSORA
57
CAPÍTULO 2 – VISIBILIDADES EM SALA DE AULA:
66
2.1 “SUCESSO” DECLARADO
68
A) ESPERTO/A, PARTICIPATIVO/A, ESTUDIOSO/A, LEGAL
68
B) ESPERTA, TRANQUILA, ESTUDIOSA, BACANA
71
2.2 “FRACASSO” PREVISTO
76
A) DISPERSO, NÃO ENVOLVIDO, INDISCIPLINADO
76
B) INVISÍVEL, QUIETO/A, IMATURO/A, INFANTIL
79
2.3 ENTRE A BUSCA POR “SUCESSO” E A FUGA DO “FRACASSO”
86
A) LEGAL, INTERESSANTE, AVOADO
86
B) DISTRAÍDA, PREOCUPADA COM OUTRAS QUESTÕES
90
C) RESISTÊNCIA COM CONCEITOS RAZOÁVEIS
93
CAPÍTULO 3: INVISIBILIDADES: VER E NÃO SER VISTO
101
3.1 “SUCESSO” ESCONDIDO
103
3.2 “FRACASSO” DISFARÇADO
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
119
ANEXOS
123
ANEXO A – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DA ENTREVISTA
REALIZADA COM A PROFESSORA
124
ANEXO B – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DAS ENTREVISTAS
REALIZADAS COM AS CRIANÇAS EM GRUPOS
125
ANEXO C – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO DAS ENTREVISTAS
REALIZADAS COM AS CRIANÇAS EM DUPLAS
ANEXO D – TABULAÇÃO DOS DADOS SOCIOECONÔMICOS
126
127
INTRODUÇÃO
Este é, antes de tudo, um trabalho de uma professora-pesquisadora. Isso implica
conseqüências sobre as quais julgo necessário refletir: por um lado, acredito ser
fundamental que professores busquem pensar sobre sua experiência na área de
educação, pois a pesquisa acadêmica é uma oportunidade importante para superar
explicações superficiais freqüentes na agitação cotidiana e ver de outra maneira o que a
realidade nos apresenta; por outro lado, pude, ao longo dessa pesquisa, perceber que
meu olhar de professora precisou ser contestado e substituído por um olhar crítico e
questionador sobre a problemática inicial.
Acompanhar o cotidiano de uma turma do 4º ano do ensino fundamental, buscar
compreender a diversidade de fatos, temas, motivações e conflitos dessa realidade levanos a um certo decifrar. Decifrar o que há por trás de uma cena corriqueira, de falas
comuns, de atitudes esperadas, da ordenação clara e óbvia. Neste trabalho, ao adentrar
no dia-a-dia de uma professora e seus trinta e três alunos e alunas, busquei responder,
inicialmente, a seguinte questão: haveria crianças construindo um lugar de
invisibilidade naquele coletivo?
É fato que há na escola um enfoque especial aos alunos que se destacam, seja
por apresentarem ótimos conceitos ou por terem algum tipo de dificuldade escolar.
Deles falamos, comentamos, refletimos acerca de seus avanços e retrocessos e
apontamos alternativas para o trabalho. No entanto, há um grande número de alunos e
alunas sobre os quais não temos muitos comentários a tecer. A minha hipótese inicial
era de que alguns deles colocavam-se como invisíveis no meio de muitos bastante
visíveis. Invisíveis frente ao olhar da professora no agitado cotidiano de sala de aula
repleto de demandas.
Em busca de desvelar aquele cotidiano e perceber as relações e os sentidos
produzidos por professora e alunos, iniciei um trabalho de observação em campo.
Efetivamente, as observações dessa pesquisa indicaram que o estar presente em aula, o
simples cumprir as atividades esperadas, o silenciar no meio dos que falam, o não
movimentar-se na inquietude de outros parecem garantir a invisibilidade de alguns
alunos e alunas ante o olhar da professora.
No entanto, entre idas e vindas a campo, evidenciou-se a necessidade de pensar
o outro lado da questão da invisibilidade: quem tem visibilidade e por quê. A
17
diversidade da sala de aula e as relações ali estabelecidas demonstraram atitudes nem
sempre esperadas do grupo de crianças.
O que de início foi o foco da presente pesquisa (as invisibilidades em sala de
aula) mostrou-se parte de um todo. Partindo de um olhar negativo sobre crianças que
construíam estratégias para manterem-se “invisíveis”, considerando que poderia ser uma
forma de ocultar dificuldades escolares, a pesquisa caminhou na direção de observar
também outros pontos importantes, eventualmente positivos, para pensarmos
visibilidades ou invisibilidades1 em sala de aula ante o olhar da professora.
Mais que isso, o objetivo não foi apresentar crianças que têm tido um trabalho
ativo de tentativa de construção de uma invisibilidade na escola como um problema.
Dessa forma, é importante ressaltar que não pretendo ampliar o escopo de “alunos
problema” que fogem dos padrões de comportamento ideais na escola e indicar
soluções.
O que esse estudo pretende ser é uma pequena contribuição aos trabalhos sobre
cotidiano escolar com ênfase nas interações estabelecidas entre os seus atores e suas
conseqüências para o desempenho escolar, por meio da observação do modo pelo qual
alunos e alunas constroem estratégias diante do que a professora (escola) espera deles e
também do que eles pensam sobre esse processo.
DEFINIÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA
“A ideologia não está fora de nós como um poder
perverso que falseia nossas boas intenções: ela está
dentro de nós, talvez porque tenhamos boas intenções.”
(Chauí, Cultura e Democracia, 2006)
Considerando que toda problematização de pesquisa surge da própria vida dos
pesquisadores - de suas histórias individuais e coletivas; de suas trocas de conhecimento
e das “inquietações, indignações, desejos, sonhos e utopias que (...) traz consigo como
sujeito
1
sócio-histórico”
(Teixeira,
2003),
este
trabalho
está
relacionado
a
Como esses termos aparecerão no texto muitas vezes juntos, utilizarei a forma (in)visibilidades.
18
questionamentos que trago enquanto auxiliar de pesquisa e professora do ensino
fundamental.
Durante os anos de 2000 e 2001, auxiliei a professora Marilia Pinto de Carvalho
em sua pesquisa “Escola e relações de gênero: explorando as causas do fracasso escolar
de meninos e rapazes”. Em paralelo, desenvolvi um estudo de iniciação cientifica2 com
a temática do fracasso escolar e gênero.
Pouco depois, nos anos de 2004 e 2005, trabalhei com crianças com dificuldades
no contexto escolar, num atendimento em pequenos grupos, em uma escola pública do
município de São Paulo. Por isso, participei de reuniões dos Conselhos de Classe das
turmas dos dois últimos anos do primeiro ciclo (3º e 4º anos) e dos dois primeiros anos
do segundo ciclo (5º e 6º anos) do ensino fundamental.
Nos Conselhos de Classe, naquela escola como em outras em que já trabalhei e
como pude verificar conversando com professoras de outras escolas, era comum
escutarmos as palavras “mediano” e “esforçado” e expressões como “tudo bem”, “sem
problemas”, “apresenta dificuldades, mas não é preciso freqüentar um trabalho
extraclasse...”, quando os professores referiam-se a alunos e alunas que apresentavam
um conceito escolar satisfatório, na média.
Em determinado momento, essas falas começaram a me incomodar, pois esse
tipo de adjetivação parece transmitir a idéia de que não há nada a ser pensado a respeito
dessas crianças. O que seria mediano/a? O que significa ser esforçado/a? Por que a
criança apresenta dificuldades, mas não é indicada para um trabalho de
acompanhamento extraclasse?
Tinha a impressão de que certas crianças passavam, de alguma forma,
imperceptíveis ao olhar dos/as professores/as. A instituição escolar facilmente
enxergaria dois extremos: o grupo de “bons alunos” e o grupo dos “alunos com
dificuldades”, nos quais estariam centradas as atenções.
Para dar embasamento a essas reflexões baseadas na prática, busquei apoio
teórico e nele constatei que também a pesquisa educacional quase sempre mantém
silêncio sobre esse grupo de alunos medianos e, assim, embora saiba que essa
problematização provém de um contexto mais amplo de debates sobre a cultura escolar,
pude dialogar diretamente com poucos autores/as.
2
Intitulada “Por que meninos fracassam mais que meninas na escola?”, financiada pela FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) entre 2000 e 2001.
19
Alguns textos fundamentais nessa fase inicial da pesquisa foram os artigos de
Carvalho3, que tinham o objetivo de conhecer as formas cotidianas da produção do
fracasso escolar e o fato deste ser mais acentuado entre meninos nas séries iniciais do
ensino fundamental. Especialmente nos artigos de 2004a e 2005, as professoras são
provocadas a classificar seus alunos e alunas em “bons alunos4” e “alunos com
problemas de disciplina ou de aprendizagem”.
Neles, Carvalho constata que, classificando as crianças dessa maneira, as
professoras deixam de citar cerca de um terço dos alunos, denominados de “nãocitados”. Ao analisar os dados do estudo considerando sexo, nível socioeconômico e
cor/raça, pude inferir que os alunos não citados são em sua maioria meninas, de nível
sócio-econômico mediano5, autoclassificadas6 como negras7 e heteroclassificadas8 como
brancas.
Essa tabulação de dados, de certo modo, foi ao encontro de minhas inquietações,
pois percebi que havia uma coincidência entre a proporção de “bons alunos”, “alunos
com dificuldades” e “alunos medianos”. Seriam os alunos e alunas com desempenho
mediano, os “não-citados” da pesquisa de Carvalho?
Régine Sirota (1994), ao adentrar o cotidiano de salas de aula em escolas
primárias francesas e buscar compreender como as rotinas escolarizadas fazem surgir as
qualidades do “ofício de aluno” e como acontecem as redes de comunicação entre
professores e alunos, centra sua observação nos “extremos que permitem distinguir
melhor a polaridade dos julgamentos: os bons e os alunos ditos maus” (p. 59, grifo
meu). Isso porque considera que nesses extremos a observação é menos ambígua. Nesse
estudo, a autora classifica os alunos em três grandes categorias: um quarto de “bons
alunos”, outro dos ditos “maus alunos” e a metade restante na categoria dos “médios”9.
No entanto, meu incômodo persistia. Existiriam, na escola, crianças mais ou
menos visíveis e que, por não se destacarem, seriam denominadas “medianas”? Ou
3
Ver os artigos Carvalho de 2001, 2004a, 2004b e 2005.
Categorias como “sucesso” e “fracasso” escolar e termos relacionados como “bons alunos” e “alunos
medianos” aparecerão nesse texto entre aspas por se tratarem de categorias e termos que variam histórica,
institucional e socialmente. (Lahire, 2004)
5
Entre 5 e 10 Salários Mínimos.
6
As crianças assinalaram entre as alternativas de categoria de cor/raça elaboradas pelo IBGE (branco,
preto, pardo, amarelo e indígena), apenas uma opção.
7
Da classificação de cor (preto, pardo, branco), a autora constrói seus dados utilizando o agrupamento
racial (brancos e negros), considerando negros todas as crianças classificadas como preto e pardo.
8
A heteroclassificação foi realizada pelas professoras.
9
Neste estudo, dois terços das meninas são classificados como “alunas médias”.
4
20
ainda: no cotidiano escolar, os alunos com desempenho mediano, seriam menos visíveis
frente ao olhar dos professores?
Minha inquietação aumentava com a vivência institucional como professora. Por
que só há a preocupação com quem apresenta dificuldades no contexto escolar, não se
dá importância para o que aparentemente está correndo bem? Parecia-me que, além de
pensar o que estaria indo bem, ainda havia a necessidade de refletir sobre quem estaria
entre o que é considerado “sucesso” e o “fracasso” escolar.
Inicialmente, por constatar a falta de espaço institucional para refletir sobre os
alunos e alunas que não apresentavam trajetórias de “sucesso” ou “fracasso” escolares, a
impressão que trazia era de que certas crianças estariam institucionalmente “invisíveis”
no cotidiano escolar repleto de demandas de resolução de problemas e conflitos.
Dessa maneira, buscar compreender o que chamei de “crianças invisíveis” na
escola estava mais próximo do observá-las (caso realmente existissem), descrevê-las
considerando dados de seus perfis (sexo, idade, cor e nível socioeconômico) e escutálas: o que pensam sobre a escola e sobre suas trajetórias de escolarização?
É importante ressaltar que a princípio eu trazia comigo um olhar negativo a
respeito da invisibilidade de certas crianças. No entanto, leituras e discussões acerca
dessas primeiras idéias trouxeram-me outro ponto de vista acerca do que eu vinha
pensando10, trazendo perguntas como: “Não estariam essas crianças ocupando esse
lugar na turma para se protegerem do olhar e avaliação do outro? Para protegerem-se
do olhar da professora, dada a relação desigual estabelecida na escola?”, ou ainda,
“Não seriam elas mais ajustadas e que se adaptariam mais facilmente à sociedade por
estarem na média?”.
O assunto também apareceu de forma contundente, como veremos a seguir,
numa reunião com o grupo de professoras que lecionavam nas turmas do quarto ano do
ensino fundamental da escola em que realizei meu trabalho de campo, que foi pautada
na apresentação do projeto de pesquisa e na idéia de certas crianças poderiam estar no
lugar de invisibilidade frente ao olhar da professora.
As reflexões presentes no relatório de qualificação indicavam que o meu
desassossego inicial por presenciar invisibilidades no cotidiano escolar era
10
Muitos amigos e integrantes do grupo de estudos (EdGES) contribuíram para essa reflexão. No entanto,
agradeço formalmente as notas a respeito do projeto de pesquisa da Professora Maria Helena Souza Patto
e do Professor Jorge Ramos do Ó, no momento em que eu realizava suas respectivas disciplinas na pósgraduação.
21
compartilhado pela professora da turma pesquisada e pelos alunos e alunas que
percebiam diversas formas de “estar invisível” na sala de aula.
O exame de qualificação foi de extrema importância para que emergisse outra
abordagem do material empírico e possibilitou-me tecer reflexões sobre as análises até
então realizadas11, na busca de delinear o problema de pesquisa.
As considerações da banca na ocasião do exame de qualificação me levaram a
refletir sobre a heterogeneidade entre os alunos e alunas “medianos”, sobre padrões e
modelos em jogo no cotidiano escolar, sobre o aluno/a que ocupa diferentes posições e
formas e, principalmente, sobre o perigo de atribuir ao “estar invisível” um problema,
passível de maior controle e busca por uma visibilidade associada a um modelo
institucionalmente e socialmente aceito do que venha a ser um “bom aluno”: aquele que
participa da aula e responde satisfatoriamente às intervenções de seus professores12.
Tornou-se premente a necessidade de reconhecer que muito do meu ser e atuar
como professora estava influenciando o ser e pensar como pesquisadora. Ou seja, foi
necessário separar, desvelar possíveis marcas do pensar ideológico e ter um
posicionamento mais crítico frente ao problema proposto. Assim, foi necessário buscar
explicar sociologicamente o fato do senso comum que alguns alunos e alunas parecem
estar como que “invisíveis” ao olhar de seus professores.
Nas reflexões que se seguiram, tinha clareza de que meu objetivo, seja como
professora ou pesquisadora, não era contribuir com a construção de mais um problema
para a demanda escolar, o de impedir que existissem “crianças invisíveis”. Antes de
tudo e, ao rever análises e material empírico, algo mais pungente parecia estar por trás
das preocupações iniciais: a efetiva aprendizagem de crianças que permanecem na
escola fundamental pública ao longo de, ao menos, três anos de escolarização.
Dessa maneira, o trabalho deslocou-se do problematizar negativamente
invisibilidades na escola para compreender como, frente ao olhar de uma professora de
4º ano do Ensino Fundamental, crianças constroem estratégias de (in)visibilidades no
cotidiano em sala de aula e como isso está relacionado com o seu desempenho escolar.
A partir dessa redefinição, busquei entender como essas estratégias marcam a trajetória
escolar dessas crianças e que sentidos representam.
11
Agradeço, mais uma vez, as valiosas contribuições das professoras Flávia Inês Schilling e Tânia Mara
Cruz durante o exame de qualificação.
12
Ver Sirota (1994), Carvalho (2001), Lahire (2004), Brito (2004), Cortese (2004).
22
Em outras palavras, se de fato o enfoque na escola está sobre os extremos, ou
seja, sobre quem apresenta “sucesso” ou “fracasso” escolar, é inevitável assinalar que
esses conceitos são construídos historicamente e são variáveis. Constroem-se a partir de
padrões e modelos socialmente aceitos. Visto assim, crianças que estariam no “meio”
estariam vivenciando maneiras de aceitar ou recusar parcialmente esses padrões.
Resumindo, o objetivo deste trabalho não é avaliar ou classificar esses grupos
que estão em jogo na cena escolar, apesar de utilizar a categorização institucional de
alunos “bons”, “com problemas (indisciplina ou aprendizagem)” e “medianos”. Tentarei
focalizar, dentro dos limites dessa pesquisa, como se dá a construção de
(in)visibilidades escolares e como isso pode estar relacionado à efetiva aquisição de
conhecimentos dessas crianças, tendo como pressuposto a qualidade de ensino como
direito de toda criança, em especial em uma escola pública.
Este trabalho estará estruturado em duas partes: caminhos percorridos e cenas do
cotidiano escolar. Com o objetivo de situar o leitor nos caminhos escolhidos pela
presente pesquisa, a primeira parte terá como foco o desenvolvimento do trabalho de
coleta de dados empíricos: como se deu a escolha e entrada na instituição escolar e o
porquê do enfoque etnográfico. Por último, apresentarei os instrumentos de pesquisa
utilizados e refletirei sobre a aplicação desses.
Na segunda parte, ao procurar compreender como, frente ao olhar de uma
professora de 4º ano do ensino fundamental, crianças constroem estratégias de
visibilidades e invisibilidades repletas de sentidos, apresentarei cenas do cotidiano
escolar estudado, permeadas por análises baseadas nas falas dos sujeitos pesquisados
(alunos, alunas e professora).
Em síntese, no primeiro capítulo caracterizarei brevemente a turma e no segundo
e no terceiro capítulos procurarei responder à seguinte questão: quais seriam as
estratégias construídas ao longo dos primeiros anos de escolarização por alunos e alunas
que os tornariam mais ou menos visíveis frente ao olhar de sua professora?
23
PARTE 1
CAMINHOS PERCORRIDOS
“O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é
por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou
guardada, que vai rompendo rumo.”
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
1.1 A ESCOLHA E ENTRADA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR
A escola na qual realizei o trabalho de campo já era uma escola por mim
conhecida, pois trabalhei lá alguns meses, logo que ingressei na rede municipal de
ensino através de concurso público. Dessa forma, a entrada e conversas iniciais com
secretaria, coordenação e direção da escola foram facilitadas e tranqüilas.
Conhecia também parte do grupo de professoras do primeiro ciclo (1º a 4º ano)
do ensino fundamental, que me receberam muito bem, algumas vezes exclamando:
“Que bom que escolheu nossa escola pra sua pesquisa!” (professora Anita13), “Bom
revê-la aqui...” (professora Renata), “Conte-nos o que anda fazendo. Como está o
trabalho na nova escola?” (professora Shirley)14.
No entanto, desde o princípio preocupei-me em deixar claro a todos que estava
voltando à instituição não a trabalho ou estágio e sim para a realização de uma pesquisa
de campo do meu mestrado e que só iniciaria meu contato formal com as professoras
depois de esclarecer à equipe técnica (coordenação e direção escolar) meus objetivos
enquanto pesquisadora
Já no início do ano letivo, em meados de fevereiro, marquei uma reunião com
Mônica, coordenadora do primeiro ciclo. Ela me recebeu com entusiasmo e ao explicitar
minha questão de pesquisa (invisibilidade na escola), demonstrou-se interessada e
instigada a refletir sobre o tema. A escolha de uma turma do quarto ano deu-se a partir
da hipótese de que crianças com pelo menos três anos de escolarização teriam atitudes,
13
A fim de garantir o sigilo e a integridade ética da unidade escolar que me acolheu, bem como de
professoras, funcionários e alunos que me auxiliaram neste trabalho, todos os nomes utilizados são
fictícios.
14
Anotações de conversas informais em caderno de campo, dia 14 de fevereiro de 2007.
24
comportamentos e idéias escolares sobre o que é ser aluno/a em sala de aula mais
definidas do que crianças com menor vivência escolar. O quarto ano é também o ano de
conclusão do 1º ciclo do ensino fundamental, no qual as crianças são avaliadas com a
possibilidade de retenção no final do ano, caso não atinjam os objetivos do ciclo.
Dessa forma, se a pesquisa se propunha a refletir sobre invisibilidades
construídas em sala de aula, apostei que crianças de turmas do 4º ano poderiam ser
fundamentais para decifrar como e porque essa invisibilidade acontece. Com o material
recolhido nas entrevistas, ao escutar as crianças, constatei que essa opção foi acertada,
já que elas se posicionaram de maneira bastante clara e interessada e se dispuseram a
pensar sobre o cotidiano escolar e sobre os sentidos e significados diversos de ser aluno
e aluna.
Mônica falou um pouco de cada uma das professoras de 4º ano e terminou
afirmando:
Acredito que não haja maiores problemas, mas não vou indicar nenhuma
delas. Você poderia conversar com o grupo de professoras do 4º ano e ver
quem se interessa. Eu não preciso estar com você, né? Já estão devidamente
apresentadas!
(anotação de caderno de campo, em 14 de fevereiro de 2007)
O grupo de professoras que trabalhava com as quatro turmas de 4º ano do ensino
fundamental no período da manhã era bastante heterogêneo (tempo de magistério,
tempo de trabalho naquela escola, idade) e, no dia 15 de fevereiro de 2007, consegui
conversar com as seguintes professoras: Celine (4º ano A), Anita (4º ano B), Alana (4º
ano C) e Simony (4º ano D).
Desse grupo eu só conhecia Anita e Celine, que trabalhavam há mais de 15 anos
nessa escola: Alana ingressou em 2004 e Simony em 2006. Estávamos no início do ano
letivo de 2007. Simony assumiu, como professora eventual, a turma do 4º ano D até o
retorno da professora efetiva, Amanda.
Iniciei a exposição do meu projeto de pesquisa, em linhas gerais e o termo
“crianças invisíveis” causou bastante inquietação15:
O aluno invisível seria aquele aluno quietíssimo que não ‘se mexe’ na
classe? (Anita)
Não... esse a gente vê! (contesta Celine)
15
A conversa não foi gravada e durante as falas ia anotando as palavras e expressões “chave” para
posterior sistematização. A reescrita foi realizada logo após a saída da escola no caderno de campo.
25
Então, não entendo... O que quer dizer com invisível? Na minha turma do
ano passado não identifico nenhum aluno “invisível”... Essa turma eu ainda
estou conhecendo... (Anita)
Talvez teríamos que pensar no aluno mediano, quieto, mas que entrega
todas as tarefas. Mas eu não vejo isso como problema. Na nossa sociedade é
assim, os medianos não se destacam, tampouco fracassam... (Celine)
E se pensarmos em termos de mediocridade. Quanto esse aluno ao não se
posicionar, torna-se medíocre, sem expressão? (Alana)
Dizer que há alunos “invisíveis”, significa dizer que não vemos nossos
alunos?... Não entendo sua questão... Isso não é confortável... (Anita)
Conheço todas as minhas crianças. (Celine)
Concordo com Anita... (Simony)
Vamos esperar ela explicar... Talvez faça algum sentido... (Alana)
Expliquei que minha hipótese de invisibilidade era a de um lugar que a criança
acaba ocupando na turma, por não se expor, por não se destacar no coletivo. Nesse
momento, não percebia essas inquietações das professoras como questionamentos
fundamentais para o meu olhar sobre o problema de pesquisa. Compreendi isso como
uma atitude desconfiada em relação à pesquisa, uma resistência imediata, decorrente da
idéia de que o pesquisador/a na escola é visto como alguém que estaria numa busca por
problemas e, conseqüentemente, por culpados.
Tentei, assim, ao explicitar detalhes do trabalho de campo e hipóteses da
pesquisa, deixar claros meus objetivos enquanto pesquisadora e comprometi-me a dar o
retorno da pesquisa, por meio dos textos produzidos (relatórios e dissertação).
Ao longo da conversa, os ânimos se tranqüilizaram. Mesmo não concordando, as
professoras pareciam aceitar a proposta de trabalho, ao escutar os objetivos propostos e
a metodologia pensada.
Num momento, a professora Simony me atordoou a pergunta:
Deixa eu ver se entendi: você quer propor mais uma demanda pro nosso
cotidiano? Quer problematizar os alunos que não apresentam problemas,
que são tranqüilos e que não nos dão trabalho? Cuidar para que não haja
“invisíveis”?
Parei para pensar e disse que não tinha uma resposta naquele momento. Retomei
minha trajetória profissional e expliquei o porquê de minha inquietação. Mais uma vez,
relembrei a intenção da reunião (expor o projeto e ver o interesse de participação) e
26
ressaltei que a pesquisa só seria realizada se todos os envolvidos estivessem de acordo.
Não seria uma imposição da coordenação ou direção da escola aceitar-me em sala de
aula e que teriam tempo para conversar entre si, refletir, para decidir participar ou não.
Essas perguntas pareciam confirmar certa resistência do grupo de professoras e
uma negativa de aceitação da pesquisa. Porém, a professora Alana, que pouco falou
durante a exposição do projeto, disse compreender minha questão, acreditando que fazia
algum sentido, comentou as contribuições que percebeu numa parceria que teve com
uma pesquisadora da área de fonoaudiologia em outra instituição em que trabalhou e
concluiu dizendo:
Acho interessante pensar nisso... Se quiser, pode fazer as observações na
minha classe. Podemos pensar juntas no que acontece...
Anita, Celine e Simony quase que ao mesmo tempo, também se dispuseram a
contribuir com a pesquisa “se não der certo na classe da Alana”. Afirmei que pretendia
acompanhar uma só turma e agradeci toda disposição e atenção em compartilharem
comigo aquele momento.
Logo depois, me despedi delas e fui ao encontro de Alana para agradecer a
predisposição em receber-me em sua classe. Entreguei uma cópia do meu projeto de
pesquisa apresentado ao Programa de Pós Graduação e marquei, para a semana
seguinte, uma conversa sobre a leitura do projeto.
Alana disse que já me conhecia por comentários a respeito da turma à qual
ministrei aulas no período em que trabalhei naquela escola. Realmente, no ano de 2003
lecionei para uma classe que era considerada uma “turma problema”: uma classe de
alfabetização que havia tido três professoras, antes que eu assumisse as aulas (em
meados de junho) e, conseqüentemente, era uma turma que não pudera estabelecer
vínculos afetivos e de autoridade com nenhuma professora até então. Pelo trabalho
realizado e pela mobilização que causei no coletivo da escola, muitos me reconheciam
naquele espaço.
Senti-me acolhida pela professora Alana e acredito que a empatia esteve
presente desde este nosso primeiro contato.
A escola e seu contexto
27
Situada num bairro residencial da região oeste do Município de São Paulo (SP),
a escola municipal onde realizei a pesquisa de campo, no ano de 2007, atendia alunos e
alunas do bairro e redondezas oferecendo o curso do ensino fundamental regular (1º a 8º
ano) e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Esse é um bairro antigo que surgiu em torno de uma grande fábrica16 à margem
de uma das principais rodovias de acesso à cidade de São Paulo e, atualmente,
caracterizava-se por ser um bairro residencial, com famílias de renda média. Em 2007,
havia dois grandes agrupamentos não urbanizados de casas (construções precárias de
madeira e/ou alvenaria) em duas extremidades do bairro, afastados da escola17. O bairro
dispunha de posto de saúde, escola de educação infantil pública, escolas de educação
infantil privadas, igrejas, bancos e grande variedade de pontos comerciais. Próximo à
escola havia um parque bem arborizado, que servia como alternativa de lazer. Havia
linhas de ônibus que interligavam o bairro aos principais destinos da cidade de São
Paulo.
A escola situava-se em uma das avenidas principais do bairro e era avaliada uma
“boa escola” pelos profissionais que aí trabalhavam e pela comunidade. Apresentava
um quadro de professores estável e recebia pedidos de matrículas de crianças das
localidades vizinhas (bairros e município próximos).
Quanto à estrutura física, a escola tinha dois prédios. No prédio térreo, a partir
da entrada principal, onde havia o balcão que dá acesso à secretaria, encontravam-se
também as salas da direção e coordenação escolar, a sala dos professores e uma sala que
era utilizada para reuniões e outras atividades que necessitassem de certo isolamento
acústico, com poucas pessoas. Uma porta separava o corredor das salas de aula da
escola. O segundo prédio com dois andares comportava o refeitório/dispensa/cozinha, a
biblioteca, a sala de informática, uma sala de apoio pedagógico-SAP (utilizada para
trabalho com alunos que apresentavam dificuldades escolares) e os banheiros que eram
utilizados pelos alunos e alunas.
A sala de aula, especialmente a que acompanhei, tinha uma estrutura razoável:
carteiras, lousa e armários em bom estado de conservação, cortinas nas janelas
(protegendo da luz do sol), ventiladores. Em formato retangular, a classe contava com
35 carteiras de alunos, dispostas em cinco fileiras. À frente das carteiras, havia a mesa
16
Informações coletadas por meio de conversas informais e pesquisa no site da Prefeitura do Município
de São Paulo, a saber: www.portal.prefeitura.sp.gov.br/subprefeituras
17
Freqüentemente nas falas de professoras, funcionários e crianças da escola, havia referência às favelas
do bairro.
28
da professora e ao fundo, dois armários. Havia também um grande mural que era
utilizado para expor os trabalhos das diferentes turmas, nos diferentes períodos.
Com um total de 1.313 alunos e alunas matriculados no final do ano de 200718, a
escola funcionava em três períodos: manhã, das 7h às 11h50; tarde, das 13h30 às 18h20
e noite, das 19h às 23h. Nos períodos da manhã e tarde, havia as turmas dos cursos de 1º
a 8º anos do ensino fundamental (EF) regular e no período da noite, os cursos de
Educação de Jovens e Adultos (EJA), para os alunos e alunas que não fizeram ou
completaram o ensino fundamental na idade prevista (até 14 anos de idade).
No período da manhã19 existiam 13 turmas em aula: três classes de turmas do 1º
ano, quatro turmas do 4º ano, três turmas do 5º ano e três turmas do 6º ano, que
compartilhavam o mesmo espaço e tempo de recreio. No entanto, o horário do lanche
era organizado da seguinte forma: às 8h50 lanchavam no pátio as turmas de 1º ano, às
9h chegavam as turmas de 4º ano e a partir das 9h10, as turmas de 5º e 6º anos. O sinal
de final do recreio tocava às 9h30 e todos os alunos e alunas dirigiam-se ao local de fila
(1º e 4º anos) ou iam direto às salas de aula (5º e 6º anos).
Nesse período, nas turmas do primeiro ciclo do ensino fundamental (1º ao 4º
ano), havia uma professora20 polivalente por turma, totalizando sete professoras. As
crianças das turmas de 3º e 4º anos tinham aulas de Educação Física, Informática e Sala
de Leitura que eram ministradas por professores/as especialistas. Duas professoras
eventuais auxiliavam no trabalho pedagógico de todo 1º ciclo conforme solicitado pelas
professoras de classe e, ainda, ministravam aulas quando alguma professora estivesse
ausente (fosse por uma falta pontual ou licença-médica).
Já nas turmas do segundo ciclo do ensino fundamental, havia um/a professor/a
especialista por disciplina e muitos trabalhavam nos dois períodos (manhã e tarde),
dividindo as aulas entre as turmas. Para essas turmas não havia professor/a eventual e
quando algum professor/a faltava, os membros da equipe técnica se alternavam,
ministrando aulas.
A equipe técnica da escola (direção e coordenação escolar) era composta pela
diretora: Miriam, assistente de direção: Ingrid e pelas coordenadoras pedagógicas:
Dilma e Mônica (que dividiam horários de forma que houvesse em todos os períodos,
18
Informações retiradas de documentos da secretaria da escola. Agradeço especialmente às secretárias da
escola, do período da manhã, pela atenção e apoio.
19
Todo trabalho de campo desta pesquisa foi realizado no período da manhã.
20
No primeiro ciclo todas as professoras de classe eram mulheres. O único professor que trabalhava com
as turmas do 1º ciclo era Márcio, que ministrava as aulas de Educação Física para as turmas do 3º e 4º
anos do ensino fundamental.
29
pelo menos, uma coordenadora na escola). Durante a manhã, Beatriz (professora
designada auxiliar de coordenação no período) era responsável pelo atendimento
emergencial às crianças (resolvendo conflitos durante o recreio, por exemplo) e às
professoras cabiam as demandas cotidianas e eventuais coberturas de aulas nas turmas
do segundo ciclo do ensino fundamental, caso algum professor estivesse ausente.
30
1.2 PESQUISA DE CAMPO: OLHAR ETNOGRÁFICO
“A etnografia visa apreender a vida, tal qual ela é
quotidianamente produzida, simbolizada e interpretada
pelos atores sociais nos seus contextos de acção.”
(Sarmento, Itinerários de pesquisa, 2003)
Ir ao encontro de uma nova realidade, arriscar-se, conhecer outras situações e
sujeitos, observar, arquitetar idéias, vivenciar o cotidiano do outro e, por outro lado,
relatar, descrever e refletir sobre os significados que aí se encontram: o trabalho
etnográfico implica um processo de permanente refinamento do olhar e busca por aquilo
que não está evidente nas relações, gerando, assim, novas descobertas.
Esse movimento de buscar no cotidiano a articulação de fatos, decifrar o que
está obscuro, deve resultar numa descrição densa da realidade na qual o pesquisador
interprete e reinterprete os acontecimentos, a fim de torná-los inteligíveis e parte de uma
totalidade mais ampla (Geertz, 1987).
Assim, no caso dos estudos sobre a instituição escolar, observações, relatos e
interpretações devem fazer parte de uma busca de compreender os processos que
ocorrem na escola como um conjunto de relações e dinâmicas sociais que são
construídas em contexto histórico-cultural definido, permeado por relações de poder
(Carvalho, 2003).
Se uma das premissas do trabalho etnográfico é ter uma postura de
“estranhamento” (Fonseca, 1999) frente a algum acontecimento no campo, sabemos que
para nós, que passamos pela escolarização, é um desafio grande manter um olhar atento
e curioso ao entrar em contato com uma escola. Ainda mais, sendo pela manhã
pesquisadora e, à tarde, professora também numa classe do primeiro ciclo do ensino
fundamental, o desafio de manter-me em estranhamento era insistentemente buscado.
O estar em sala de aula como pesquisadora trouxe muitas indagações. Ao final,
pude perceber que tanto com as crianças quanto com a professora, foi se estabelecendo
um vínculo de aceitação e cumplicidade que me trouxe tranqüilidade e acolhimento. No
entanto, em meio a silêncios, olhares e interações, fui vivenciando a complexidade do
cotidiano, das relações que ali se estabelecem, do ser aluno/a, do ser professora, do ser
pesquisadora. Pois, como afirma Rockwell (s.d.):
em situações de campo, também se enfrenta um chamado “problema
ético”. O sentir-se estranho no local, sentir-se intruso, espião,
acadêmico, avaliador etc. Encontra-se com as culpas que isso gera
31
num meio especialmente carregado de sentido, como é a escola (p. 20,
tradução minha).
Erickson (1989) alerta sobre um princípio ético básico que é proteger os
interesses particulares dos envolvidos na pesquisa, pois são mais vulneráveis a correr
riscos com possíveis intervenções do pesquisador. Essa questão torna-se mais complexa
quando o trabalho pressupõe o contato com crianças, como é o caso da presente
pesquisa.
Em sua tese de doutorado, Tânia Cruz (2004), ao investigar como crianças
vivenciam relações de gênero no recreio escolar, nos faz refletir sobre o dilema ético da
metodologia de pesquisa com crianças. Opta por uma visão da criança como sujeito
sócio-histórico, criticando “a visão positivista de ‘objeto de pesquisa’, na qual o sujeito
que pesquisa é objetivo e distanciado” e acredita que “é a interação entre pesquisador e
pesquisado que produz a pesquisa” (p.29).
A hierarquia etária está posta entre pesquisador e crianças, tal como a imagem
do pesquisador na escola, visto sempre como um adulto com autoridade, seja como
estagiário, seja como possível professor. Como lidar com essa assimetria? Como as
crianças podem produzir conhecimentos juntamente com o pesquisador?
Como adverte Inês Teixeira (2003), é preciso ter claros objetivos e finalidades
da pesquisa social, numa busca da objetividade que vai além das subjetividades para a
elaboração de “conhecimentos historicamente contextualizados, inscritos em interesses,
estruturas e relações de poder, implicados em projetos e forças na vida social,
implicados nos conflitos sociais e nas disputas pelo poder simbólico.” (p. 84)
Assim, ao entrar em campo, levei comigo alguns princípios adotados como
auxiliar de pesquisa e pesquisadora (em trabalhos anteriores já citados) que considerava
como éticos para o desenvolvimento do trabalho: solicitar permissão à direção da
escola; informar a todos os envolvidos na pesquisa sobre objetivos e atividades a serem
realizadas; ser cautelosa nas aproximações com os sujeitos, buscando evitar possíveis
transtornos provocados pela minha presença durante as observações; garantir o caráter
sigiloso das informações coletadas; a não-identificação dos sujeitos e instituição em
produções escritas e, ao final do trabalho, fornecer um retorno dos dados analisados.
Quanto aos procedimentos e instrumentos de pesquisa, realizei observações no
espaço escolar, entrevistas semi-estruturadas com professora e alunos/as da turma
investigada,
teste
sociométrico,
preenchimento
de
questionários
de
auto
e
heteroclassificação racial e questionário socioeconômico.
32
No texto a seguir, apresento brevemente esses procedimentos e instrumentos que
serviram como base de dados para o que se espera de um estudo etnográfico, definido
por Geertz (1978): num esforço intelectual estabelecer relações entre dados e análise do
material empírico, buscando a descrição densa de determinada realidade. É importante
frisar que, para essa descrição, busquei dialogar com estudos que levam em
consideração gênero21, raça/cor22 e classe social23 como categorias de análise de
trajetórias escolares.
A) Observações do espaço escolar
Após a reunião com o grupo de professoras do 4º ano do ensino fundamental e
com a indicação de interesse da professora Alana (4º ano C), entreguei-lhe uma cópia
do projeto de pesquisa, como descrito. Uma semana depois, conversamos sobre as
idéias presentes no projeto e a professora demonstrou muito interesse em compartilhar
os caminhos da pesquisa. Agendamos o início do trabalho de campo e, de forma mais
simples, também apresentei a pesquisa aos alunos e alunas do 4º ano C, no primeiro dia
de observação em sala de aula.
Certamente essa opção dos sujeitos conhecerem o objeto inicial de investigação
trouxe, em parte, pensamentos e atitudes congruentes com o que eles imaginaram que
eu esperava, enquanto pesquisadora. No entanto, vale ressaltar que é impossível no
agitado cotidiano escolar, repleto de demandas, manter controle sobre os
acontecimentos ou direcionar todas as situações. Alana, em certos momentos e de
maneira evidente, procurou intervir em sua forma de lidar com a turma com intenção de
auxiliar na coleta de dados. Procurei levar isso em conta nas análises construídas,
considerando a opção de compartilhar inicialmente as idéias presentes no projeto de
pesquisa.
21
Ao propor o uso categoria de gênero na análise, recorro aos estudos de Joan Scott (1995) e Linda
Nicholson (2000).
22
A análise estará pautada na categoria de raça social, definida em Guimarães (1999).
23
Ao optar por realizar o trabalho de campo em uma escola da rede pública de ensino, apoiei-me em
estudos clássicos (Patto, 1991 e Paro, 2001) que apresentam um olhar crítico sobre a instituição escolar,
refletindo sobre a produção de desigualdades sociais.
33
Com o propósito de focar o cotidiano, iniciei as observações24 das aulas e outros
espaços escolares com a presença de alunos e alunas, como pátio, refeitório e quadra de
esportes. Essas observações foram agendadas em dias determinados, conciliando os
melhores horários para professora e pesquisadora.
Demandou muita perseverança e atenção compartilhar o cotidiano de uma
professora com mais de quinze anos de experiência no magistério e seus alunos e
alunas, que já possuíam, ao menos, três anos de escolarização25 e tentar compreender
como, nesse espaço relacional que é a sala de aula, certas crianças constroem
ativamente estratégias e tornam-se (in)visíveis frente ao olhar da professora.
No primeiro dia de observação, cheguei com Alana no início da aula e, antes de
começar, a professora proporcionou um espaço na aula para que me apresentasse e
falasse sobre a pesquisa. Momento importantíssimo: expliquei que pretendia
acompanhar a turma durante o ano, fazendo observações em classe, no recreio e outros
espaços da escola, realizaria entrevistas e outras formas de coletar informações para a
pesquisa.
Diferentemente de uma estagiária, estaria ali buscando perceber se há diferenças
entre as crianças e como acontecem as relações em classe. Falei, até mesmo, que esse
olhar está pautado num campo de estudos chamado Sociologia. Obviamente as crianças
tiveram muitas dúvidas sobre o que falei e, ao responder atentamente cada pergunta ou
esclarecer dúvidas, enfatizava o que para mim era essencial: eles/as seriam participantes
ativos na pesquisa. Juntos refletiríamos sobre as possíveis diferenças e como as crianças
se relacionavam em classe. Depois de quase uma hora de “apresentação”, agradeci a
Alana, sentei-me no fundo da classe, de imediato, percebi olhares interessados em mim.
E a aula começou...
Nas observações seguintes as crianças pareciam já entender minha presença e,
aos poucos, aproximavam-se para buscar algum contato, sempre cauteloso e
correspondido. Muitas vezes vieram perguntar-me o que eu já havia visto de diferente,
apontando o olhar delas: um olhar que via basicamente a diferença entre meninos e
meninas. Comentários, principalmente das meninas, eram comuns: “Professora, você
viu que o André não pára sentado?”, “O Rodrigo só quer chamar atenção...”26.
24
Seguindo as recomendações procedimentais de investigação qualitativa encontradas em Bogdan &
Biklen, 1994.
25
Na turma investigada havia também três crianças reprovadas no ano anterior, tendo assim quatro anos
de escolarização no ensino fundamental.
26
Notas do caderno de campo.
34
Vale ressaltar que no dia da apresentação às crianças, quando questionada sobre
o que seriam “diferenças entre as crianças”, respondi de maneira abrangente e falei de
diferenças entre alunos que sentam no fundo ou na frente; de atitudes na classe; de
como eram os alunos e alunas naquele espaço.
Com a convivência com as crianças e suas observações sobre as diferenças entre
os sexos, nas entrevistas que realizei com esses alunos, perguntei explicitamente se eles
percebiam alguma diferença entre meninos e meninas na escola e posso afirmar que as
diferenças expressadas por eles e elas estão muito mais relacionadas com denúncias
leves e provocações entre os grupos que pareciam já estar buscando uma maior
proximidade entre os sexos, do que questões estritamente relacionadas ao aprender
escolarizado:
Sabe, professora27, eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo, porque ele faz
umas brincadeiras muito bestas, tipo assoprar no nosso ouvido, abraçar as
meninas...
(Luane, entrevista em grupo 28, em 08.08.07)
As meninas são mais bagunceiras, porque ficam o tempo todo cochichando.
(Rodrigo, idem)
É, o Rodrigo tem umas brincadeiras sem graça, fica agarrando as
meninas...
(Tamires, idem)
Já as observações das aulas de Educação Física e do recreio me proporcionaram
momentos de conversa com as crianças, que me procuravam para contar casos, fazer
perguntas ou ainda, simplesmente, dizer um “Oi, Patricia!” (alguns/mas só com um
olhar). Nesses momentos, a quantidade de anotações em caderno de campo se
multiplicava e eu buscava registrar tudo o que via e escutava, imersa numa diversidade
de acontecimentos.
Ao mesmo tempo, o contato com Alana também se estreitou. Conversávamos,
trocávamos impressões sobre as crianças (em relação à pesquisa), discutíamos
pedagogicamente demandas específicas das nossas turmas e até compartilhávamos
27
Muitas crianças me chamavam de “professora”, apesar da minha insistência que eles me tratassem
apenas pelo nome.
28
Trechos da entrevista realizada com os alunos e alunas avaliados com desempenho mediano pela
professora.
35
algumas questões pessoais como, por exemplo, o desenvolver da gravidez de Alana29.
Firmou-se um acordo de proximidade com certo afastamento, no qual busquei sempre
ter cuidado na aproximação, colocar-me no lugar da outra e respeitá-la. Ao mesmo
tempo, o olhar de pesquisadora demandava, acima de tudo, a interpretação crítica da
realidade vivida e observada. Como nos alerta Sarmento (2003):
Com efeito, o envolvimento efectivo – pessoal, intelectual e emotivo –
com as problemáticas e situações estudadas na investigação, se afasta
a ilusão da distância, não obnubila necessariamente o sentido crítico:
este é mesmo uma das componentes necessárias àquele envolvimento.
(p.158)
Observar, interagir com os sujeitos envolvidos, buscar entender os processos
sociais repletos de sentidos que remetiam a conteúdos históricos e sociais; interpretar o
que era vivenciado, selecionar o que havia de significativo, criar hipóteses, reinterpretar,
tudo isso faz parte do enfoque etnográfico e é um processo que traz consigo referenciais
teóricos que embasam a construção do objeto de estudo. Ezpeleta e Rockwell (1986) ao
dissertarem sobre a relação entre etnografia e desenvolvimento teórico atentam que:
A tarefa etnográfica supera a descrição da organização interna das
categorias sociais, porque essa não é suficiente para explicar a
realidade social. Explicar processos sociais em estudo exige outro
nível de construção teórica. (p.51)
Para além da vivência e descrição do observado, o desafio seria apreender
analiticamente o que a vida cotidiana reúne (Rockwell, 1986). No dia-a-dia daquela
turma, o observar “tudo”, a tentativa de ver quem poderia ocupar os lugares de “ser
visto” e “não-visto” e a busca por compreender como isso acontecia, se constituíram
como desafios teóricos e metodológicos.
As observações do espaço escolar foram valiosas na tentativa de apreensão e
compreensão do cotidiano da turma investigada e das trajetórias escolares que ali se
construíam. Sirota (1994) se propõe a compreender o cotidiano como fato social e para
isso aponta ser necessário “atribuir ao detalhe de cada instante, à banalidade, à
repetitividade de todos os dias, o sentido e a força dos grandes eventos que cristalizam
os pontos de inflexão dos itinerários sociais” (p.10).
29
A professora Alana soube de sua gravidez em meados de março e trabalhou na escola até final de
agosto de 2007. As observações em classe encerraram-se, assim, em agosto. Porém, continuei a observar
os outros espaços escolares e dei continuidade às entrevistas com as crianças, sob a autorização da
professora Simony, que assumiu as aulas da turma do 4º ano C.
36
B) Entrevistas com a professora
Com o intuito de conhecer o olhar da professora em relação à sua turma, ainda
no início do ano letivo, e perceber possíveis (in)visibilidades presentes numa
classificação baseada no desempenho escolar, realizei, duas semanas após o início das
observações em sala de aula, uma entrevista semi-estruturada30 com a Alana.
Nessa entrevista inicial pedi para que a professora classificasse seus 33 alunos e
alunas entre “bons alunos”, “alunos com dificuldade de aprendizagem” e “alunos com
problemas disciplinares”. Com uma lista em mãos e sem resistência quanto a
classificação, a professora indicou rapidamente os alunos e alunas que pertenciam a
esses grupos.
Quase metade da turma não foi classificada com base nesses critérios
abrangentes. Alana falou ainda sobre duas crianças com desempenho mediano que
apresentavam dificuldades pontuais no contexto escolar31. Esses comentários estavam
pautados no incômodo da professora de que a classificação proposta pela pesquisa não
abarcava a totalidade de diferenças entre as crianças da turma. Destarte, a professora
classificou: 10 “bons alunos”, ou seja, alunos e alunas como bom desempenho escolar;
dois meninos que apresentavam questões de indisciplina, o que interferia no
desempenho escolar; seis alunos e alunas com dificuldades de aprendizagem e 15 alunos
e alunas que não se enquadraram em nenhuma dessas classificações e foram avaliados
pela professora Alana como “medianos”.32
Seguindo os procedimentos de pesquisa realizados no conjunto de estudos
realizados por Marilia Carvalho33, procurei considerar as dimensões das relações de
gênero, de classe e raça ao buscar a compreensão dos processos que têm levado crianças
a ocupar lugares específicos no contexto escolar, seja de visibilidade ou invisibilidade,
frente ao olhar da professora.
30
Entrevistas semi-estruturadas apresentam um roteiro prévio a ser seguido.
Os alunos Daniel (“postura em classe”) e Janaína (“é devagar, mas consegue”). Notas posteriores das
falas em caderno de campo.
32
A partir desse momento, todas as referências aos alunos segundo desempenho escolar, estarão pautadas
nessa classificação da professora.
33
Ver os artigos Carvalho de 2001, 2004a, 2004b e 2005.
31
37
Assim, após essa avaliação por desempenho, pedi a Alana que classificasse seus
alunos e alunas segundo as categorias de cor/raça estabelecidas pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística): branco, preto, pardo, amarelo ou indígena34.
A essa proposta de classificação Alana foi sutilmente resistente, afirmando que
não considerava marcantes as diferenças raciais entre seus alunos e alunas: “É estranho
pensar nisso, Patricia. Não sei muito bem como classificá-los.”. Busquei compreender
esse estranhamento e resistência de Alana e, ao expor meus objetivos de pesquisa,
contextualizei a dificuldade de pensar em termos raciais na nossa sociedade. Refletimos
até mesmo sobre a utilização simultânea de categorias de cor (preto, branco, pardo,
amarelo) e de etnia (indígena) pelo IBGE e sobre as discussões atuais com grande
visibilidade pública, como ações afirmativas para negros e indígenas, principalmente,
no acesso ao ensino superior.
Depois dessa conversa, a professora concordou em fazer a classificação. No
entanto, presenciei algo de constrangedor na atitude de Alana ao realizar essa
heteroclassificação de seus alunos e alunas em termos de cor/raça35, principalmente
quanto à classificação de pertencimento à raça negra36. Conseqüentemente, a professora
via sua turma como majoritariamente formada por crianças brancas. Temos 11 crianças
negras (nove pardos e dois pretos) e 22 crianças classificadas como brancas.
No início das observações de aulas e outros espaços voltei minha atenção para o
acompanhamento dos alunos e alunas que foram avaliados com desempenho escolar
medianos nessa entrevista primeira entrevista. Pela necessidade de um estudo em
profundidade, busquei melhor caracterizar as diferenças de comportamentos dentro do
grupo-classe, descrevendo e analisando como eu percebia essas crianças naquela
realidade, na complexidade das relações com seus pares e professora.
Ainda entrevistei a professora Alana em dois outros momentos. Na segunda
entrevista, realizada em 04 de julho de 2007, ela contou-me sobre sua opção pelo
magistério
e
trajetória
profissional,
trazendo
muitas
inquietações
sobre
as
(im)possibilidades de se realizar um bom trabalho com as turmas. Essa entrevista
34
Desde 1950, o IBGE aplica nos Censos as opções de cor: branco, pardo, preto e amarelo e, em 1991 e
2000, incluiu a categoria indígena (Telles, 2003). A respeito da discussão sobre a utilização da
classificação de cor pelo IBGE ver Araújo (1987).
35
Utilizo os termos relacionados cor/raça por considerar que “a classificação por cor é orientada pela
idéia de raça.” (Guimarães, 2003).
36
Dessa forma, a partir da classificação de cor (preto, pardo, branco), entendo dois agrupamentos raciais:
brancos e negros, considerando negras todas as crianças classificadas como preto e pardo.
38
antecedeu o Conselho de Classe das turmas de 4º ano, que por questão de horário, não
pude participar.
A terceira entrevista, realizada com o propósito de que Alana falasse sobre cada
um de seus alunos e alunas, iniciou-se num período de aula, em 17 de agosto de 2007, e
foi concluída uma semana depois (em 24 de agosto), na casa da professora, que entrou
em licença-maternidade a partir de 23 de agosto. Essa última entrevista foi mais longa
(cerca de uma hora e meia) e, também nela, Alana expôs algumas de suas considerações
acerca do tema pesquisado e sobre a influência da temática da pesquisa na sua indicação
de alunos e alunas para o período de recuperação do final do 1º semestre. Esse foi o
nosso último encontro formal.
C) Teste sociométrico37
Ao considerar as crianças como sujeitos de pesquisa, tive o cuidado de explicar
cada uma das atividades realizadas com a turma. Desde a explicitação de meu papel
como pesquisadora e não estagiária, do meu objetivo de observar a turma e perceber
diferenças entre eles, de ter um olhar sociológico sobre as relações entre o grupo, até
perguntar-lhes sobre o desejo de serem entrevistados.
A primeira atividade de pesquisa de que alunos e alunas efetivamente
participaram foi o teste sociométrico38. A intenção ao utilizar esse instrumento de
pesquisa era verificar se a formação de grupos de escolhas entre as crianças refletia a
configuração de classificação dos alunos feita pela professora como “bons alunos”,
“alunos com dificuldades no contexto escolar (disciplina e/ou aprendizagem)” e “alunos
medianos”.
Para tanto, as crianças foram convidadas a escrever o nome de três colegas com
quem eles/as gostariam de realizar atividades escolares. Utilizei uma questão positiva,
por expressar o desejo de estar juntos. Expliquei que esse instrumento de pesquisa era
chamado de teste sociométrico e resultaria num sociograma (representação gráfica das
escolhas), que me auxiliaria a perceber como as crianças formavam seus grupos.
37
Agradeço às professoras Maria Helena Souza Patto e Rosangela Gavioli Prieto por indicarem o uso do
teste sociométrico como instrumento de pesquisa.
38
Atividade realizada dia 28 de março de 2007.
39
Jacob Levy Moreno (1972) em sua obra “Os fundamentos da Sociometria” assim
define esse procedimento:
O teste sociométrico é um instrumento que serve para medir a
importância da organização que aparece nos grupos sociais. Consiste
expressamente em pedir ao sujeito que eleja, no grupo ao qual
pertence ou poderia pertencer, os indivíduos que gostaria de ter como
companheiros. (p. 83, tradução minha)
Em testes sociométricos mais complexos, temos também a consideração
negativa e a consideração neutra (por quem não sente afinidade, tampouco repulsa em
realizar atividades juntos). Acreditei que utilizar apenas a opção positiva seria mais
simples naquele contexto e já forneceria dados relevantes para análise de como estaria o
relacionamento entre as crianças daquela turma.
Antes do início do teste, num momento de euforia, as crianças fizeram muitas
perguntas: “É pra pensar em quem gostaríamos de fazer grupo de lição?”, “Posso
escrever o nome de quem faltou?”, “É para escrever os nomes dos meus amigos?”, “A
professora vai escolher os grupos assim?”39 e assim por diante. Respondi às questões,
uma por vez, explicando que os dados seriam utilizados somente para a pesquisa, que
eles poderiam escrever os nomes de qualquer criança da turma, considerando a vontade
de estar juntos. Poderia ser de alguém que está muito próximo (amigos), de alguém com
quem desejariam fazer alguma atividade juntos, de pessoas que faltaram naquele dia,
enfim, três pessoas com quem gostariam de estar juntos realizando atividades escolares.
Certamente, a partir do momento que esclareci as dúvidas, abri múltiplas
possibilidades de escolha. Dessa maneira, pude perceber que as opções foram pautadas
tanto no aspecto relacional, considerando afinidade e amizade, quanto no aspecto de
aprendizagem, considerando o grande número de indicações recebidas por algumas
crianças consideradas como “bons alunos”.
O teste sociométrico se materializa em sua representação gráfica, o sociograma.
Para a análise das escolhas feitas pelas crianças, alguns pontos norteavam a construção
do sociograma: a) Como se configuram as relações entre as crianças na classe do ponto
de vista de grupo?; b) As categorias “bom aluno”, “aluno com dificuldade” e “aluno
mediano”, conforme definidas pela professora, coincidiam com a escolha de grupos
pelas crianças?; c) Como se refletem os aspectos da distribuição de grupos na dinâmica
39
Notas de perguntas que lembrei ao escrever o relato de campo. Não identifiquei essas falas com nomes
das crianças.
40
cotidiana da turma? e d) Quem são os alunos que têm maior visibilidade e invisibilidade
entre as crianças?
De acordo com o número de indicações, classifiquei as crianças da seguinte
forma: crianças que tiveram seus nomes indicados por quatro ou mais crianças,
representei com o símbolo de “estrela cheia” (Ì); crianças que receberam três
indicações, representei com uma “estrela vazia” ( ); crianças que tiveram apenas uma
ou duas indicações, foram representadas por “um círculo com ponto” () e crianças que
não receberam qualquer indicação, utilizei um “losango” (‘).
O resultado, por um lado, confirmava alguns grupos de interação observados em
campo, mas, de outro, trouxe surpresa ao mostrar rechaços ou muitas indicações de
algumas crianças que eu não percebia como visíveis durante as observações do espaço
escolar.
Em aplicação do teste sociométrico em escolares, Moreno (1972) aponta uma
complexidade, tal como constatei:
Mediante a aplicação de testes a essas crianças, foi possível por em
evidência uma complexa estrutura de organização da classe, muito
diferente do que se supunha. Alguns alunos não foram escolhidos por
ninguém e ficaram isolados; outros se escolhiam reciprocamente e
constituíam assim ‘pares’, ‘triângulos’ ou ‘cadeias’; outros atraíam
sobre si tantas escolhas que pareciam ocupar o centro da cena,
semelhantes às “estrelas”. (p.112)
A primeira análise do material coletado mostra uma grande rede formada por
quatro grupos: 1. rede dos alunos e alunas considerados “bons alunos”; 2. rede formada
pelos avaliados como “indisciplinados” e dos alunos avaliados com dificuldades de
aprendizagem; 3. rede formada pelos meninos “medianos” e 4. rede formada pelas
meninas consideradas com desempenho mediano.
Dentro dessa grande rede encontrei cinco redes menores. Três delas com
bastante interligação entre as crianças que fazem parte delas e duas redes com menos
interligações. Esse procedimento vem de outra indicação de Moreno (op. cit):
Os sociogramas estão combinados de tal forma que, do primeiro mapa
de uma coletividade, pode-se tomar pequenas partes para desenhá-las
em uma escala maior e estudá-las, por assim dizer, sob um
microscópio. (p.86)
As três redes mais consolidadas e fechadas em si, configuraram-se de forma
quase coincidente com a avaliação da professora entre: “bons” alunos e alunas, meninos
41
com desempenho mediano e meninos com problemas de “indisciplina” e meninas
avaliadas com desempenho escolar mediano. Duas redes menores se formaram também:
uma das crianças avaliadas pela professora que apresentavam problemas de
aprendizagem, que escolheram uma a outra e quase não receberam indicações e uma
rede formada por alguns meninos medianos que indicaram bons alunos/as em suas
escolhas.
Como se pode perceber o olhar da professora sobre o desempenho escolar da
turma coincidiu com as escolhas de afinidades das crianças e mesmo as redes menores
não desconsideravam a questão da avaliação do desempenho escolar em sua formação.
Com esses
dados,
pude
entender
e
observar
mais
atentamente
os
comportamentos em sala de aula e buscar relacionar quais os sentidos dessas escolhas
que, de certa forma, coincidiam com a classificação de desempenho escolar feita pela
professora.
D) Questionário de auto-atribuição de cor/raça
A segunda atividade realizada com a participação efetiva das crianças foi um
questionário de auto-atribuição de cor/raça40. Nele havia as alternativas correspondentes
aos critérios de cor/etnia definidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), a saber: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Além disso, também
propus uma autoclassificação aberta de cor/raça às crianças com a seguinte pergunta:
Como você se classificaria quanto à cor/raça? Justifique.
Antes da aplicação do questionário, retomei a proposta de pesquisa, explicitei a
importância de pensarmos nas relações permeadas por cor/raça na nossa sociedade e
justifiquei a utilização dos critérios utilizados pelo IBGE e o porquê da questão aberta.
Discuti sobre a fragilidade da classificação racial, no Brasil, ser feita por meio de cores
e que gostaria de saber como eles se auto classificariam se não houvessem as opções do
IBGE.
As crianças fizeram muitos comentários, alguns remetendo a discriminações
raciais vivenciadas ou apontadas pela mídia. Tomaram uma postura de seriedade e
crítica em suas falas41:
40
41
Atividade realizada dia 16 de maio de 2007.
Notas de falas registradas no caderno de campo em 16.05.07.
42
Eu acho assim, professora, as pessoas parecem não gostar de negros. Eu
não sou branco e não me importo... sou normal como qualquer um. E olha
que na minha certidão tá marcado que sou branco.
(Leonardo)
No jogo do São Paulo, jogaram uma banana no campo... Era pra chamar o
cara de macaco, porque ele era negro! Não tem graça nisso, não, né?! Tá
todo mundo falando que é errado!
(Rodrigo)
Durante o preenchimento do questionário, havia sussurros que apontavam a
dificuldade de escolher uma alternativa: “Tem alguém amarelo?”, “Pardo é assim meio
marrom?”, “Que estranho isso de indígena...” e também a surpresa de se depararem
com a questão aberta: “Sei lá, não sei...”, “Acho que sou branca e pronto”, “Não sei, é
difícil, né...”. Esses sussurros eu apenas anotava, sem conseguir identificar quem falou.
Com a tabulação do questionário de auto-atribuição de cor/raça, temos as
respostas de 31 crianças (Adriana e Regina estavam ausentes)42 que se classificaram,
segundo a cor, como: 11 opções branco, 18 opções pardo e duas opções pela cor preto.
A seguir, apresento uma tabela com as respostas ao questionário de autoatribuição de cor/raça, com as escolhas com base nas categorias do IBGE e as respostas
escritas das crianças que justificaram essas escolhas:
42
Em uma conversa, sem o registro por escrito, perguntei às meninas como se auto-classificariam quanto
à cor/raça. Renata respondeu “negra” e Adriana, depois de pensar um pouco respondeu “morena”. Ao
apresentar as categorias utilizadas pelo IBGE, ambas apontaram para a cor pardo.
43
Alunos/as
Auto-atribuição
Questão fechada:
categorias do IBGE
Auto-atribuição
Questão aberta: Como você se classificaria quanto à
cor/raça? Justifique.
Bom desempenho
DANIELA
branco
GISELE
branco
Eu me acho branca porque minha mãe é
branca e meu pai branco.
-
NATALIA
branco
Eu me classifico como branco.
LUCIANA
pardo
GUSTAVO
branco
Café com leite misturado com indígena
(tataravô).
Sou meio amarelo, mas sou branco.
LEONARDO
pardo
LAURA
pardo
GRAZIELA
pardo
JULIO
pardo
Eu me classifico porque minha pele tem
essa cor.
Eu me acho morena porque meu pai é
negro e minha mãe branca.
Eu acho que sou morena.
Eu me acho mulato porque meu pai é
negro e minha mãe é branca.
Problemas de comportamento
ANDRÉ
preto
Preto.
CÉSAR
preto
Acho que sou moreno.
Problemas de aprendizagem
ESTELA
branco
SABRINA
pardo
VALÉRIA
branco
Branca.
MAURO
pardo
Pardo.
RICARDO
pardo
DENIS
branco
Eu me acho pardo porque meu pai é preto
E minha mãe é branca.
Eu sou mais ou menos branco.
Branco.
-
Desempenho mediano
JANAÍNA
branco
Acho que sou bem branca.
BIANCA
pardo
Leite com café.
JÉSSICA
LAÍS
pardo
branco
Porque eu sou mais ou menos branco.
LUANE
branco
CAROLINE
pardo
Eu acho que sou branca porque minha
mãe é branca e meu pai preto. As meninas
puxam a mãe e os meninos, o pai.
Nem branca, nem preta.
TAMIRES
branco
Eu me acho branca porque minha mãe é
branca e meu pai branco.
44
Alunos/as
Auto-atribuição
Questão fechada:
categorias do IBGE
Auto-atribuição
Questão aberta: Como você se classificaria quanto à
cor/raça? Justifique.
Desempenho mediano
DÉBORA
pardo
MARCELO
pardo
Eu me acho pardo porque minha mãe é
morena e meu pai branco.
Eu me acho pardo.
OTÁVIO
pardo
Eu me acho pardo.
RODRIGO
pardo
-
DANIEL
pardo
ELIAS
pardo
Eu me acho cor parda, raça dos brancos e
forte.(sic)
Pardo.
CÁSSIO
pardo
Pardo.
Tabela 1 – Auto-classificação de cor feita pelos alunos e alunas e a justificativa anotada por eles na
questão aberta.
Como se pode observar na tabela acima, a perplexidade das crianças e o
estranhamento de escolher uma cor/etnia são justificados com respostas intrigantes na
pergunta aberta43. Analisando as perguntas feitas antes da aplicação do questionário,
parece que na ausência do termo “moreno”, as crianças utilizam a cor parda em
substituição. Das 18 crianças que se declararam pardas na questão fechada, 16
justificaram sua declaração. Dessas, nove utilizaram a palavra pardo na pergunta aberta.
Ainda assim, quatro se declararam como morenos.
Concordo com pesquisadores como Rocha e Rosemberg (2007) e Fazzi (2004)
que afirmam que não declarar-se preto/negro estaria relacionado com a inferiorização e
depreciação social dessa categoria, que é alvo de inúmeras expressões hostis. Declararse moreno, porém, afasta os sentidos negativos do pertencimento à raça negra e é um
termo bem aceito pela sociedade brasileira, que encobre e silencia o enfrentamento do
racismo.
Dado que na nossa sociedade a tendência de fazer a classificação racial está
pautada tanto em características físicas (cor da pele, tipo de cabelo) e ascendência ou
origem, quanto no status sócio econômico da pessoa (Carvalho, 2004a), temos na
divergência entre a heteroclassificação da professora e a autoclassificação das crianças a
indicação de como é variável e fluída essa classificação (Telles, 2003).
43
Avalio a não resposta à questão por parte de algumas crianças de duas formas: de um lado, por parecer
desnecessário repetir a escolha da categoria cor e, por outro, uma dificuldade de justificar determinada
opção por não terem espaço para refletirem sobre a questão do pertencimento racial.
45
Anteriormente, a professora Alana44 também havia classificado, em entrevista,
seus alunos utilizando os critérios do IBGE. Dessa forma, a classificação de cor feita
por Alana de seus alunos e alunas apresenta a tendência de “branquear” as crianças
frente à autoclassificação. Dos 33 alunos e alunas, a professora classificou 22 crianças
como brancas e 11 como negras (nove com a cor pardo e duas com a cor preto).
A seguir, temos uma tabela que separa os alunos e alunas quanto ao desempenho
escolar e aponta, respectivamente, a auto e a heteroclassificação de cor feita por criança
e professora. As concordâncias estão destacadas em amarelo e as divergências em rosa:
Bom
desempenho
Problemas de
comportamento
Problemas de
aprendizagem
Desempenho
mediano
DANIELA
ANDRÉ
ESTELA
LUANE
Branco/Branco
Preto/Preto
Branco/Branco
Branco/Branco
Pardo/Pardo
GISELE
CÉSAR
VALÉRIA
TAMIRES
DANIEL
Branco/Branco
Preto/Branco
ELIAS
Branco/Branco
Branco/Branco
Pardo/Pardo
NATALIA
SABRINA
JANAÍNA
OTÁVIO
Branco/Branco
Pardo/Pardo
Branco/Branco
Pardo/Branco
GUSTAVO
DENIS
LAÍS
RODRIGO
Branco/Branco
Branco/Pardo
Branco/Branco
Pardo/Branco
LEONARDO
RICARDO
DÉBORA
CÁSSIO
Pardo/Pardo
Pardo/Branco
Pardo/Pardo
Pardo/Branco
LUCIANA
MAURO
CAROLINE
MARCELO
Pardo/Pardo
Pardo/Branco
Pardo/Pardo
Pardo/Branco
GRAZIELA
REGINA
Pardo/Branco
Pardo/Pardo
LAURA
JÉSSICA
Pardo/Branco
ADRIANA
Pardo/Branco
Pardo/Preto
BIANCA
Pardo/Branco
JULIO
Pardo/Branco
Tabela 2 – Classificação dos alunos por desempenho e comparação, respectivamente, entre autoatribuição de raça/cor pelos alunos e alunas e hetero-atribuição de raça/cor, segundo a professora da
turma.
Podemos perceber que entre as meninas há mais concordância com a
classificação da professora. Já entre os meninos a discordância é acentuada,
principalmente entre aqueles que a professora classifica como brancos e que, por sua
vez, se autoclassificam como pardos.
A concordância com as crianças ocorreu na classificação de André (preto) e com
todas as crianças que se autoclassificaram como brancas (com exceção de Denis que foi
heteroclassificado como pardo). Também entre oito crianças que se autoclassificaram
utilizando a cor pardo.
A discordância ocorreu no caso de 11 crianças, que se autoclassificaram como
pardas e foram classificadas por Alana como brancas. Também houve a discordância
44
Tanto professora quanto pesquisadora se autoclassificam como brancas.
46
com Jéssica que se classificou como parda e foi heteroclassificada como preta e com
César que se classificou como preto e foi heteroclassificado como branco pela
professora.
Por outro lado, se pensarmos em apenas dois grupos raciais (brancos e negros)
temos uma turma de maioria negra (20 crianças) na declaração das crianças e uma turma
de maioria branca (22 crianças) para a professora.
Essa tendência das professoras que se autoclassificam como brancas
“branquearem” os alunos e alunas foi apontada nos estudos anteriormente citados de
Carvalho (2001, 2004a, 2004b e 2005) e no artigo de 2004a temos a seguinte afirmação:
A idéia de que era constrangedor para as professoras, ou até mesmo
ofensivo, classificar as crianças como pardas ou pretas aparece como
explicação possível para esse branqueamento frente à auto-percepção
dos próprios alunos e alunas. (p. 271, 272)
Além disso, considerando que no contexto escolar as classificações e
apreciações sobre os alunos são perpassadas pelos atributos de desempenho e
comportamento, as concordâncias e discordâncias de classificação de cor devem ser
pensadas como variáveis relacionadas e (re)significadas naquele coletivo.
E) Questionário socioeconômico
O questionário socioeconômico foi entregue às crianças após a minha
participação na Reunião de Pais45, no dia 24 de maio de 2007, dois meses depois de
iniciadas as observações no espaço escolar46.
Estavam presentes os responsáveis por 24 crianças da turma. Logo no início da
reunião, a professora Alana pediu para que eu me apresentasse e explicasse o projeto de
pesquisa. Esclareci todas as dúvidas, nenhum responsável reclamou ou indagou
negativamente minha exposição. Ao contrário, muitos pareciam me ver como alguém
45
Reuniões de final de semestre que constam no Calendário Escolar, onde as professoras recebem os pais
e responsáveis pelas crianças para apresentar o panorama da turma, as questões que estão em evidência,
avaliar o planejamento proposto e entregar avaliações e conceitos atribuídos aos alunos e alunas.
46
Questiono-me sobre dois pontos quanto ao início das observações no espaço escolar: a) não ter
conversado com as crianças sobre participarem dessa atividade, se permitiriam ou não, e b) não ter
comunicado anteriormente aos pais sobre a pesquisa. Penso que são pontos éticos importantes a serem
considerados numa próxima entrada em campo.
47
que “vai ajudar meu filho”. Durante a reunião, como sentei no meio deles, conversei
brevemente com as mães de Otávio, de Estela e Graziela.
No final de junho, tive o retorno de apenas 16 questionários preenchidos.
Entreguei um novo aos alunos que haviam “perdido”, obtive mais quatro. Dois alunos
disseram tê-lo dado à professora e a uma funcionária da secretaria da escola, mas os
papéis não foram localizados. Dessa maneira, tive acesso a apenas 20 questionários47.
Dos 20 recebidos, constatei que apenas cinco famílias apresentavam uma renda
familiar mensal acima de cinco Salários Mínimos (SM)48 e 10 famílias apresentavam
uma renda até dois SM, ou seja, uma renda de até R$ 760,00. Além disso, nessas
famílias com renda mensal até dois SM, a renda era responsável por manter de três a
cinco pessoas na família49.
Quanto à escolaridade dos responsáveis em acompanhar as crianças nas
atividades escolares (a grande maioria de mães), temos apenas a indicação de três mães
que não completaram o ensino fundamental, mas apresentam ao menos quatro anos de
escolarização. Os outros responsáveis indicaram ter completado o ensino fundamental e
o ensino médio. Duas mães e um pai estavam cursando o ensino superior.
Para pensar na articulação entre renda e desempenho escolar, podemos ter
algumas indicações, ainda que limitadas devido ao número de questionários não
respondidos: a) frente aos demais alunos/as da turma, entre os “bons alunos” temos uma
renda maior (acima de três SM), e apenas Adriana indicou uma renda até um SM; b) já
entre as cinco crianças que apresentavam dificuldades no contexto escolar, a renda
variou entre 1 e 2 SM e apenas André indicou renda de até três SM e, c) dos 16
alunos/as considerados com desempenho mediano, apenas 8 o responderam e a renda,
nesses casos, é muito variável, desde a situação de Elias (até um SM) à de Cássio (de
mais de seis SM).
No entanto, gostaria de ponderar duas observações. Primeiro, como os dados são
escassos, não tenho o intuito de adotá-los como centrais para essa análise. E, mesmo
com os dados coletados, não pude perceber quais sentidos relacionados à classe social
estariam contribuindo ou não para a construção de estratégias escolares de
(in)visibilidade.
47
Ver tabulação dos dados no Anexo D.
Em maio/junho de 2007, no Brasil, o valor equivalente a um SM (Salário Mínimo) era de R$ 380,00
(trezentos e oitenta reais).
49
Em alguns casos mais de cinco pessoas, mas o questionário não especifica quantas pessoas no total.
48
48
Avaliei, assim, que a opção de apenas aplicar um questionário socioeconômico
não foi capaz de captar sentidos para compreender o estar (in)visível em sala de aula. A
única informação evidente é que há uma correlação entre aluno com desempenho
mediano que não trouxe o questionário: seria uma estratégia de “estar ausente”,
“invisível”?
Acredito que seria muito interessante ter o discurso das crianças sobre eventuais
diferenças de status social. As observações em sala de aula indicaram possíveis
diferenciações entre as crianças em quesitos do cotidiano, como ter o melhor caderno,
canetas coloridas, mochila diferente, equipamentos (calculadora, celular, jogo
eletrônico), trazer lanches de casa, ter uma troca de roupa para a aula de educação física
ou simplesmente o uso do uniforme completo (distribuído gratuitamente pela
prefeitura), elementos não evidenciados apenas com o preenchimento do questionário
socioeconômico.
F) Entrevistas com as crianças
A partir das orientações baseadas nos estudos da Sociologia da Infância que
visam “compreender aquilo que a criança faz de si e aquilo que se faz dela, e não
simplesmente aquilo que as instituições inventam para ela” (Sirota, 2001), a opção por
entrevistar as crianças vem de encontro com a proposição de que elas participariam da
pesquisa como atores sociais:
O estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma
outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações
infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite
revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra
ou obscurece totalmente. (Pinto e Sarmento, 1997, p. 27)
A proposta inicial era entrevistar todas as crianças da turma. Mais uma vez,
como toda intervenção da pesquisa, tive uma conversa com a turma para explicar a
importância de escutá-los, de refletir juntos sobre algumas idéias que, até aquele
momento, me chamavam a atenção na minha busca de perceber as diferenças entre as
crianças na classe. Contei como pensava o formato da entrevista, expliquei que gravaria
o que falassem para “não perder nenhuma informação”, que faria a entrevista
inicialmente em grupo e depois pretendia fazer entrevistas em duplas. Após responder
49
todas as perguntas das crianças, entreguei uma filipeta que continha um espaço para as
crianças escreverem seus nomes, a pergunta “Gostaria de ser entrevistado/a?” e as
alternativas “sim” e “não”.
Com uma postura de seriedade e demonstrando muita vontade em colaborar com
a pesquisa, recebi em menos de dez minutos todas as filipetas respondidas. Com
exceção do aluno Daniel50, todas as crianças aceitaram participar de mais essa atividade
de pesquisa.
Escutei, pautada na classificação por desempenho escolar feita pela professora,
as crianças em três grandes grupos: o grupo dos “bons alunos”, o grupo dos “alunos
medianos” e o grupo dos “alunos com dificuldades”. Contudo, a fim de não estigmatizar
nenhuma criança, essa denominação não foi explicitada no momento de chamá-los para
a entrevista. Entretanto, um integrante do grupo dos “bons alunos” explicitou durante a
entrevista reconhecer essa classificação51.
Essas entrevistas aconteceram durante o mês de agosto de 2007, momentos em
que julguei já estar familiarizada com alunos e alunas, após os meses de observação em
classe. Essa opção pareceu-me acertada já que, no decorrer das entrevistas, pude intervir
dizendo “percebi isso, durante as aulas” ou ainda escutar das crianças “ficamos mais
bonzinhos quando você está lá, a classe fica mais quieta (risos)”.
Terceira atividade que demandou a participação direta das crianças, a entrevista
foi realizada a partir de um roteiro com quatro temáticas: 1) Questões gerais sobre a
escola: o que gostam ou não na escola, opinião sobre a turma e sobre a professora; 2)
Definição sobre o que é ser um bom aluno e aluna; 3) Diferenças percebidas na turma
entre meninos e meninas e 4) Visibilidade e invisibilidade na turma: quem aparece e
quem não aparece na classe?
O roteiro semi-estruturado permitiu que outras questões aparecessem durante as
entrevistas, abarcando outros pontos que muito me auxiliaram nas análises. Todas as
entrevistas duraram aproximadamente 40 minutos, com grupos de até dez crianças. Na
falta de uma sala de aula, realizei-as numa escadaria ao ar livre, próxima ao
50
A última entrevista realizada com grupos foi realizada dia 10 de agosto. Nesse momento, descumprindo
o que me propus como ética, ao chamar as crianças, simplesmente falei: “Vamos? Quem não foi
entrevistado ainda?” e olhei para Daniel. Ele rapidamente levantou e abaixou a mão. Depois da
entrevista, em momento de observação de aula, Daniel veio mostrar-me seu trabalho, perguntando se
estava bonito e eu perguntei: “Por que não quis ser entrevistado?” e ele simplesmente respondeu: “Eu
marquei ‘não’ naquele papelzinho, você lembra?” e, assim, me alertou sobre como respeitar as crianças,
dada a desigual relação de poder estabelecida entre crianças e adultos.
51
Julio, quando questionado sobre quais alunos não apareciam em classe, afirmou: “Fora esses alunos que
estão aqui, todos outros não aparecem muito. Acho que aqui estão os bons alunos, né...”
50
estacionamento da escola. Ali estávamos mais protegidos dos ruídos das salas de aulas.
No dia marcado para o início das entrevistas (04.08.07), perguntei a Alana qual
seria o grupo que deveria entrevistar primeiro. Depois de olhar minhas listas e me dizer
quem estava na aula ou não, concluiu: “Comece com esse grupo [dos “bons alunos”]
porque estão todos aí...”
As entrevistas seguiram o padrão de comportamento em classe. Destarte, a
entrevista com o grupo dos alunos classificados com bom desempenho escolar fluiu
facilmente, com respostas completas e reflexões construídas coletivamente. Em nenhum
momento percebi desatenção ou distração. Mesmo não sentadas, pois algumas estavam
em pé perto de mim, as crianças não perderam a concentração na atividade.
O grupo que apresentava bom desempenho escolar é composto pelos seguintes
alunos e alunas52: Gustavo, Julio, Leonardo, Adriana, Graziela, Natalia, Daniela, Gisele
e Laura.
A segunda entrevista (08.08.07), realizada com as crianças consideradas com o
desempenho mediano aconteceu com um pedido meu de maior atenção. As crianças
começaram respondendo seriamente às perguntas, mas em pouco tempo, se viam
distraídas com as respostas, algumas não permaneceram sentadas e começaram a brincar
umas com as outras, conforme seus nomes eram citados pelos companheiros. Algumas,
mais quietas, pareciam incomodar-se com a movimentação dos outros. No entanto, foi
uma entrevista que trouxe informações importantes.
Desse grupo faziam parte os seguintes alunos/as53: Rodrigo, Otávio, Elias,
Cássio, Jéssica, Laís, Tamires, Luane, Bianca e Janaína.
O último grupo a ser entrevistado (10.08.07) compunha-se das crianças que
haviam faltado nos dias das entrevistas anteriores e também dos alunos que foram
indicados por Alana por apresentarem alguma dificuldade no contexto escolar
(comportamento ou aprendizagem). Alunos extremamente quietos em classe se
revelaram agitados durante a entrevista (indisciplinados), pois não pareciam estar
interessados nas perguntas por mim formuladas e queriam brincar uns com os outros.
As meninas tentaram colaborar mais com o processo, mas os meninos tomavam a cena.
Intervi algumas vezes, pedindo que parassem de se provocar e até perguntei se
gostariam de voltar para a classe. A qualquer manifestação de incômodo meu, as
52
Totalizando nove crianças entrevistadas. A aluna Luciana foi transferida de escola no final de maio.
Das 15 crianças classificadas como medianas pela professora, entrevistei apenas dez. O aluno Daniel
não aceitou ser entrevistado e Caroline, Regina, Débora e Marcelo estavam ausentes.
53
51
crianças aquietavam-se e buscavam responder às questões, mas pareceu difícil
compreender o que eu estava perguntando. Senti como se essas crianças estivessem
sendo provocadas por mim naquele exato momento e que nunca tivessem tido contato
com o que eu estava propondo pensar coletivamente. Respostas curtas e muitas vezes
sem sentido deram o ritmo dessa entrevista.
Caroline e Débora, classificadas como alunas medianas também participaram
dessa entrevista com o grupo considerado de alunos/as com dificuldades no contexto
escolar (aprendizagem e/ou disciplina), por terem faltado no dia da entrevista com o
grupo dos alunos “medianos”. Com elas estavam também na entrevista: Mauro, Denis,
Ricardo, André, César, Valéria, Sabrina e Estela.
Já em outubro54 retomei as entrevistas com as crianças, incorporando questões
que apareceram nos grandes grupos. As novas entrevistas foram realizadas em duplas,
segundo afinidades apresentadas no sociograma. Nesse momento, interessava-me
escutar e saber mais das crianças que se apresentaram, no decorrer do ano, como duplas
interessantes para pensar como alunos e alunas que pareciam construir estratégias de
invisibilidade, principalmente.
O final de ano é um período bastante agitado em uma escola. Eu não pretendia
atrapalhar nenhuma atividade programada pela professora. Tive, também, uma limitação
de horários para o trabalho de campo e, por esse motivo, só consegui realizar três
entrevistas com as seguintes crianças: os meninos Otávio e Elias, e duas duplas de
meninas: Bianca e Janaína, Natália e Débora. Apesar disso, essas entrevistas foram
fundamentais para as análises aqui elaboradas. Num momento mais individualizado,
pude aprofundar com as crianças algumas idéias que apareceram nas entrevistas com os
grandes grupos e, também, perceber outros temas importantes para esse trabalho.
A opção de produzir conhecimento incorporando as falas das crianças, como
sujeitos de pesquisa, legitimando sua expressão, apareceu como acertada. Alunos e
alunas puderam refletir e falar sobre questões relacionadas às suas experiências e
percepções acumuladas nesses anos de escolarização, com encontros/desencontros,
coerências/contradições que demandaram esforço para desvelar os sentidos que eles
construíram e reconstruíram durante as entrevistas.
54
A professora Simony assumiu as aulas de Alana durante a licença-maternidade. Não realizei
observações em classe nesse período. No entanto, Simony sabia da proposta da pesquisa e mostrou-se
disposta a me auxiliar. Pedi, então, a permissão de retirar alguns alunos e alunas da sala de aula para
realizar as entrevistas, no dia 29 de outubro de 2007.
52
PARTE 2
CENAS DO COTIDIANO ESCOLAR
“Somente quando temos a possibilidade de apreender o
heterogêneo no aparentemente homogêneo, o plural onde
se costuma falar no singular, é que adquirimos condições
de realizar a ascensão do abstrato ao concreto de que fala
o materialismo dialético.”
(Patto, A produção do fracasso escolar, 1991)
Na primeira parte deste trabalho, descrevi e apresentei os caminhos percorridos
por essa pesquisa. Contudo, para realizar o que Geertz (1978) chama de descrição
densa, foi necessário desvelar o que o material empírico trazia a cada visita de campo.
Foi a partir de muita reflexão e do entrecruzar de experiências, anotações de caderno de
campo, ações vivenciadas na cotidianidade que emergiam análises antes não
imaginadas.
Quem tem visibilidade na sala de aula? Por quê? Como visto, inicialmente,
minha hipótese era de que alunos e alunas com bom desempenho escolar e com
dificuldades de comportamento e/ou aprendizagem seriam alvos visíveis da professora
em classe. O que me incomodava era o silêncio a respeito de determinados alunos e
alunas que pareciam estar “invisíveis” frente ao olhar da professora.
Esse incômodo inicial, como já foi exposto, vejo como conseqüência do meu
olhar de professora, pautado num modelo de aluno ideal que participa, que ao interagir
com o professor constrói de maneira satisfatória seu desempenho escolar. Tanto o
silêncio dos professores a respeito dessas crianças “invisíveis”, quanto o silêncio delas
no cotidiano me parecia, a priori, algo extremamente negativo. De maneira linear,
minha percepção era de que o professor não teria sua atenção para o processo de
aprendizagem desses alunos e, por sua vez, os alunos não se envolveriam com o
conhecimento por colocarem-se num lugar de invisibilidade permeado por sentimentos
de medo e vergonha.
No entanto, se caminhasse nessa direção, a pesquisa estaria contribuindo para a
ampliação do escopo de “problemas” a serem resolvidos na escola. Teríamos mais uma
categoria a ser pensada: “crianças invisíveis na escola”. Ou seja, professores teriam que
53
ter controle e intervir para que não houvesse alunos “invisíveis” em sala de aula, do
mesmo modo com que tentam intervir para que não haja alunos com problemas de
aprendizagem e de comportamento. E avalio essa possibilidade como bastante negativa.
Em contraposição, o que esse trabalho se propõe é buscar compreender, no
cotidiano escolar pesquisado, como se dão as estratégias de construção de visibilidades
e invisibilidades em sala de aula. E nessa perspectiva, pensar como crianças que já tem
uma trajetória escolar de pelo menos três anos de escolarização, se apropriaram dessas
estratégias de estar mais ou menos visíveis ao olhar do professor e quais sentidos
representam no “torna-se aluno”.
Dessa forma, ao procurar alargar a compreensão acerca de visibilidades e
invisibilidades no contexto escolar, me defrontei com uma tarefa mais complexa. As
visibilidades em sala de aula poderiam, sim, estar centradas em alguns “bons e maus”
alunos, mas essa categorização não abarcou efetivamente as questões presentes naquele
cotidiano. Tornou-se necessária uma reorganização das análises acerca dos alunos e
alunas classificados pela professora como “bons alunos”, “alunos com dificuldades de
aprendizagem e/ou disciplina” e “alunos medianos”.
Pois se, por um lado, temos “bons alunos” destacando-se no cotidiano, pela
interação efetiva com sua professora, por outro é também verdade que alguns desses
“bons alunos” não interagem, respondem ou contestam a professora, mas garantem
conceitos satisfatórios nas suas atividades. O mesmo acontece com alunos com
dificuldades de aprendizagem, que não apresentam questões de indisciplina e que se
colocam quase como invisíveis frente à professora. Sua visibilidade, no entanto, é
garantida pelos seus conceitos insatisfatórios, que chamam a atenção da professora
sobre eles.
Alguns alunos e alunas medianos, por sua vez, destacam-se na interação em
classe, seja com a professora, seja com os seus pares. Porém, seu desempenho escolar
oscila entre satisfatório e insatisfatório. Outros alunos e alunas com desempenho
mediano silenciam, cumprem as atividades propostas de maneira satisfatória, mas não
expõem suas idéias e opiniões. Experimentam a possibilidade de estarem “invisíveis”
frente ao olhar da professora, que tem como padrão o aluno participativo e socialmente
bem aceito.
Busco compreender, em síntese, como nessa situação específica que é a sala de
aula, as relações estabelecidas fazem com que surjam as qualidades necessárias para se
exercer o papel de aluno/a. O tornar-se aluno é uma construção baseada no que a criança
54
entende que a escola espera ou não dela. Há modelos relacionados com “sucesso” ou
“fracasso” na escola, marcados por comportamentos cotidianos estabelecidos na relação
professor-aluno. Em outras palavras:
compreender como e em que medida, na situação pedagógica que a
escola primária propõe, efetua-se este ou aquele trabalho de
transposição, de reinterpretação e de transformações mútuas de cada
um dos atores sociais, e isso através da interação social que coloca
frente a frente professores e alunos. (Sirota, p. 11, 1994).
Ao adentrar no cotidiano da sala de aula, onde alunos/as e professora
expressariam de alguma forma seus sentidos, capacidades intelectuais, habilidades
manipulativas, sentimentos, paixões, idéias (Heller, 2000), tentaria decifrar quais
modelos estariam em cena: modelos múltiplos e mutáveis, que ao se generalizarem,
objetivamente marcavam sua posição nas relações ali estabelecidas, no “deve-ser na
vida cotidiana” (idem, p.94), nesse caso, vida cotidiana na sala de aula.
Assim, a partir do entrelaçar das falas de crianças e professora, no texto a seguir,
busquei deslindar estratégias e sentidos que pudessem ajudar na compreensão do estar
(in)visível frente ao olhar da professora no cotidiano escolar.
As reflexões introdutórias contidas neste texto buscam contribuir com os estudos
que buscam evidenciar as dimensões de gênero e raça presentes no cotidiano escolar e
criar espaços para se pensar qual a responsabilidade da escola na construção de relações
mais igualitárias nesse espaço.
Ao optar por um enfoque não centrado nas diferenças baseadas na bipolaridade
menino/menina e fazer comparações genéricas sobre “meninos” ou “meninas”, este
estudo pretende utilizar-se da categoria gênero como categoria analítica. Ou seja, um
olhar que enfatiza a necessidade de atenção às linguagens e ao papel das diferenças
percebidas entre os sexos na construção de um sistema simbólico, especialmente na
significação das relações de poder (Scott, 1990 e Nicholson, 2000), refletindo sobre as
práticas sociais e as possibilidades de ação dos sujeitos (Varikas, 1994).
Proponho, ao lado do enfoque de gênero, observar alguns indícios de marcas que
remetem à categoria raça, ao desvelar discursos e práticas observados nas relações entre
professora e alunos/as e entre alunos e alunas. O conceito de raça utilizado aqui é o de
“raça social”, como construção social baseada na diferenças percebidas entre os
sujeitos, muito eficaz para justificar, manter e reproduzir desigualdades e privilégios
(Guimarães, 1999).
55
Com isso, procurarei compreender, também, como os diferentes significados de
gênero e raça, construídos e redefinidos naquele contexto, se relacionam com
desempenho escolar das crianças e, consequentemente, com suas estratégias de
(in)visibilidades em sala de aula.
56
CAPÍTULO 1
A TURMA PESQUISADA: 4º ANO C E SUA PROFESSORA
Eu sou pedagoga, me formei na FMU com especialização em Educação de
Surdos e depois eu fiz Psicopedagogia Clínica, na UNISA, em Santo Amaro.
[pausa]. Ah, eu fiz também Magistério numa escola pública em Santo
Amaro, o Alberto Comte. Depois que eu saí do Magistério eu fui dar aula,
mas tive uma grande decepção e fui fazer Turismo. Pensei: “Não vou dar
aula mais não... isso não é pra mim... onde já se viu, você desenvolve um
bom trabalho e vem o diretor e tira você da escola, então vou fazer outra
coisa...isso não é futuro...”. E aí fui para o turismo. Mas, antes de iniciar,
fui fazer um curso de emissão de passagens nacional e depois internacional.
O tempo todo eu imaginava aquilo numa aula de geografia como seria: isso
de trabalhar localização, por exemplo. Quem trabalha com emissão de
passagens tem que ser muito bom em geografia, pra ele poder passar
horário direitinho de chegada, tem diferenças de horário em alguns Estados
brasileiros... tudo aquilo eu imaginava dentro de uma aula. Uma figura da
Disney numa viagem, eu pegava e imaginava na aula... Tudo eu imaginava:
aula, aula, aula... Não conseguia me separar daquilo. [pausa] Aí eu falei
“quer saber de uma coisa, vai logo dar aula e pronto” [risos]. E aí fui fazer
Pedagogia e não me arrependi, principalmente por causa do EDAC55, que
foi o que me abriu um monte de portas, melhorou a minha prática em sala
de aula, por causa do conhecimento de se trabalhar com crianças que têm
uma certa dificuldade...
(professora Alana, entrevista 04.07.07)
Alana, professora que exercia o magistério desde 1991, sempre demonstrou ser
uma pessoa inquieta e com vontade de aprender mais. Em nenhum momento parecia
acomodada frente às dificuldades encontradas em seu dia-a-dia e, acima de tudo, sua
atitude sempre foi a de indagar o que parecia não estar correto.
Com uma empatia e cumplicidade sem igual, Alana expunha seus pontos de
vista e inquietações em nossas conversas. Com um olhar questionador sobre a situação
do professor em sala de aula e sobre as possibilidades ou não de se realizar um bom
trabalho, refletia:
Gosto da prática pedagógica mesmo e acho que a gente tem que mudar a
nossa proposta. Acho que está na mão do professor boa parte dessa
mudança. Tem uma parte também que é burocrática, que é do número de
alunos por turma, em sala. A oportunidade de se ter um espaço bacana de
reforço, que seja sistematizado e não uma coisa que esteja dependendo do
55
EDAC: Educação pra Deficientes em Áudio Comunicação, habilitação oferecida no curso de graduação
em Pedagogia.
57
outro, sem interrupções. Seria importante uma troca com os professores
sobre esses alunos que têm certa dificuldade.
(professora Alana, entrevista 04.07.07)
Alana trabalhava em duas escolas. Pela manhã dedicava-se à turma do 4º ano C
e à tarde trabalhava como professora de Sala de Leitura em outra escola, localizada no
Município de São Paulo, que atende apenas crianças portadoras de deficiência auditiva.
Na ocasião da última entrevista, ela pensava em formas de reorganizar seus horários de
trabalho, devido ao nascimento de sua filha. Se isso não fosse possível, iria exonerar-se
de um dos cargos, o que lhe daria mais tempo para lidar com as necessidades do bebê.
A professora, que acompanhei durante os meses de março a agosto de 2007,
demonstrou, ao longo desse tempo, algumas facetas que constituíam seu jeito de
atuação na escola. Institucionalmente, era uma profissional muito crítica em relação às
exigências da coordenação e direção da escola. Como professora, foi definida por si
mesma como “exigente”, afinal “quero que eles pensem!”. Para os seus alunos e alunas,
sua caracterização girava em torno do “é brava, mas legal e divertida”.
Preciso aqui fazer uma ressalva a respeito do que algumas crianças
caracterizavam como “divertida”. Alana muitas vezes, em tom de brincadeira, fazia
comentários que a mim pareciam mais irônicos que divertidos. Em alguns momentos eu
tinha a impressão de que as crianças não entendiam suas falas, apesar de rirem e
demonstrarem interesse pelo que falava.
Refletindo sobre as condições de aprendizagem de seus alunos, a professora
Alana afirmava trabalhar com uma turma “condicionada a não ler” e que “só querem a
resposta pronta”. Ela sentia-se incomodada com uma fala usual entre professoras do 1º
ciclo do ensino fundamental que, para justificar o baixo desempenho sem problemas de
disciplina de alguns alunos/as, usam a expressão “aluno copista”. Essas crianças seriam
aquelas que, ao não se apropriarem efetivamente do conteúdo, acabam realizando as
atividades de forma mecânica, tendo bom comportamento e uma boa apresentação de
atividades e cadernos:
Eu não sei o que é um aluno copista! Minhas atividades não são só pra
copiar, não sei o que é um copista... Eu pego minha sala que tem alunos que
copiam e não pensam! A escola tem uma dinâmica assim...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Alana, ao se opor a aulas menos participativas, ao mesmo tempo questionava seu
modo de apresentar conteúdos, de querer a participação ativa das crianças, buscar dar
58
sentido ao conhecimento aprendido, ao analisar o baixo desempenho da sua turma no
simulado56 para a “Prova São Paulo57”:
Será que eu estou perdida, “viajando”? Que estou fazendo as coisas de uma
maneira maluca? Será que esse tipo de trabalho será melhor pra eles?
Voltar pra uma realidade de uma escola que copia! Eu não sei... Depois do
resultado dessa prova, vi que os caras foram mal... eram 20 questões,
Tamires acertou 4, não é porque não sabe ler! A Jéssica não respondeu, não
terminou...
(entrevista em 24.08.07)
Alana se preocupava com os alunos e alunas de sua turma que, em especial a
partir da pesquisa, passou a perceber como não participativos, “invisíveis”. Sempre
comentávamos alguma cena, falávamos sobre o que presenciávamos em sala de aula.
A professora indicava uma série de fatores que influenciavam nessa dinâmica
escolar que não atende satisfatoriamente um grande número de crianças: “... a sala
numerosa provoca isso, a falta de projeto provoca isso (a escola não tem...), a gente
não senta pra fazer planejamento...” (entrevista em 04.07.07)
Antes da reunião de Conselho de Classe no final do 1º semestre de 2007, a
professora lamentou a falta de espaço institucional para pensar efetivamente a
recuperação de alunos e alunas que têm construído trajetórias de “fracasso escolar”.
Remeteu-se ao exemplo do aluno Ricardo que sequer estava alfabetizado (apesar de
estar cursando pela segunda vez o 4º ano do ensino fundamental), mas que “certamente
irá passar de ano [ser aprovado]... E como será na quinta série58?” (entrevista em
04.07.07). Alana afirmou ter se disposto a ministrar aulas em turmas com projeto de
recuperação, mas tampouco teve apoio institucional. O único momento proporcionado
pela escola para recuperação aconteceu na última semana de aula do 1º semestre, em
apenas três dias letivos.
Em suas falas, Alana passava a sensação de estar sozinha, imaginando uma outra
escola, uma outra forma de possibilitar oportunidades efetivas de aprendizagem para as
56
Antes da prova oficial, as turmas foram submetidas a um simulado, que foi corrigido pelas professoras
de classe.
57
A Prova São Paulo é um exame aplicado a todos os alunos e alunas dos 2º, 4º, 6º e 8º anos do ensino
fundamental da rede municipal de São Paulo. Aplicada no final de novembro de 2007, a prova, com
questões de Língua Portuguesa e Matemática, utiliza a mesma base metodológica da Prova Brasil, exame
do governo federal aplicado em 2005 nas turmas de 4º e 8º anos. Assim, os resultados são comparáveis.
58
Apesar da escola estar organizada em ciclos de quatro anos, observamos que tanto professoras como
alunos utilizam a expressão “série” ao invés de ano escolar. Acredito que, de algum modo, a expressão
pode ser ainda utilizada por costume e repetição, por outro, é fato que a escola pouco mudou efetivamente
em sua organização que marcasse a diferença de um curso seriado ou em ciclos.
59
crianças. Não aceitava facilmente as condições dadas, questionava o tempo todo e até
arriscou-se ao aceitar que uma pesquisadora entrasse em sua sala de aula e desvelasse o
que não estava evidente. Com isso, eu – professora – sentia-me feliz ao compartilhar
com a Alana as dores e alegrias da docência, acreditando sempre na construção de uma
escola melhor.
Aos poucos, fui conhecendo seus trinta e três alunos e alunas. Cada anotação de
campo, cada reflexão sobre o que via e descrevia do cotidiano, sobre o que parecia
repetido, normal e até banal, foi se configurando com força e sentidos não previstos ou
imaginados.
Ao articular dados da observação de campo com os dados coletados por meio
dos demais instrumentos de pesquisa utilizados (teste sociométrico, questionários de
classificação racial e socioeconômico), construí “mapas” de classe que não apenas me
indicavam os nomes das crianças e o respectivo local que ocupavam na sala de aula,
mas também traziam informações que levam a uma caracterização da turma.
Em síntese, informações já apresentadas na primeira parte desse trabalho foram
organizadas, considerando a localização espacial dos alunos e alunas em sala de aula.
A seguir, apresento o mapa de classe do dia 11 de abril de 2007. Proponho a
observação deste “mapa de classe”, considerando as seguintes informações:
ƒ
O sexo das crianças é identificado pelas cores azul nos nomes para meninos e
rosa para meninas.
ƒ
Do teste sociométrico há uma seqüência de símbolos representando a quantidade
de indicações recebidas por cada criança: Ì (estrela cheia), para quem recebeu quatro
ou mais indicações;
(estrela vazia), para crianças que receberam três indicações; (círculo e ponto), para as crianças que tiveram apenas uma ou duas indicações e
‘
(losango), para as crianças que não receberam qualquer indicação de seus pares.
ƒ
A classificação racial está indicada por abreviações das categorias de cor do
IBGE, sendo: PR, preto; PA, pardo; B, branco59 e os pares representam,
respectivamente, a autoclassificação e heteroclassificação feita pela professora.
ƒ
A informação sobre a renda familiar encontra-se em valores absolutos a partir do
número de Salários Mínimos: 1 SM corresponde a R$ 380,00; 2 SM correspondem a R$
760,00; 3 SM correspondem a R$ 1.140,00; 4 SM correspondem a R$ 1.520,00; 5 SM
correspondem a R$ 1.900,00 e 6 SM correspondem a R$ 2.280,00.
59
Nenhuma criança se autoclassificou ou foi classificada pelas categorias “amarelo” ou “indígena”.
60
ƒ
As cores dos quadros referem-se à classificação feita pela professora, quando
questionada sobre quem são os “bons alunos” (quadros amarelos), os alunos “com
dificuldades de aprendizagem” (quadros verdes) e os “alunos com problemas de
comportamento” (quadros azuis). Os alunos não inseridos em nenhuma dessas
classificações, são representados pelos quadros cinzas.
ƒ
A letra R, em vermelho, corresponde às crianças convocadas para as aulas de
recuperação60 que aconteceram no final do 1º semestre de 2007. Ressaltei a importância
de indicar esse ponto, pois Alana revelou-me que, por causa da pesquisa, convocou
muitos alunos e, dentre eles, um número de crianças sobre cujas aprendizagens ela
carregava dúvidas.
ALANA
Professora
‘ MAURO
SABRINA
PA/B
R
RICARDO
PA/B
até R$ 760,00
R
GUSTAVO
B/B
até R$ 1140,00
MARCELO
PA/B
R
Ì LEONARDO
PA/PA
REGINA
PA/PA
R
RODRIGO
PA/B
-
PA/PA
até R$ 380,00
R
‘DANIEL
PA/PA
R
VALÉRIA
B/B
até R$ 760,00
R
CÁSSIO
PA/B
mais de R$ 2280,00
R
OTÁVIO
PA/B
R
ELIAS
PA/PA
até R$ 380,00
R
‘ LUCIANA
PA/PA
-
DANIELA
B/B
mais de R$ 2280,00
DENIS
B/PA
R
JÉSSICA
PA/PR
até R$ 760,00
ANDRÉ
PR/PR
até R$ 1140,00
R
LAÍS
B/B
até R$ 760,00
R
Ì ADRIANA
PA/B
até R$ 380,00
GISELE
B/B
mais de R$ 2280,00
Ì GRAZIELA
PA/B
até R$ 2280,00
-
JANAÍNA
B/B
até R$ 1900,00
Ì TAMIRES
B/B
R
ESTELA
B/B
até R$ 380,00
R
‘ JULIO
PA/B
LAURA
PA/B
até R$ 1140,00
PATRICIA
Pesquisadora
CAROLINE
PA/PA
até R$ 2280,00
R
CÉSAR
PR/B
até R$ 380,00
R
Ì LUANE
B/B
R
BIANCA
PA/B
R
DÉBORA
PA/PA
até R$ 760,00
NATALIA
B/B
-
A cada ida a campo com observação em sala de aula, fazia mapas de localização
na classe. No início, sem saber os nomes de todos os alunos, identificava apenas os
60
Nos três últimos dias letivos do primeiro semestre, antes do recesso escolar, foram convocadas para as
aulas de recuperação apenas as crianças que apresentavam algum tipo de dificuldade, por indicação da
professora.
61
lugares de meninos e meninas. Aos poucos passei a observar outros aspectos. Cada
mapa constituiu-se um conjunto de reflexões. No entanto, no decorrer do ano pude
perceber semelhanças nessas composições. Pois, se de um lado houve mobilidade física
no espaço da sala de aula entre as crianças, por outro, é também verdade que alunos e
alunas ocuparam lugares muito próximos aos anteriores.
Proponho uma leitura específica do mapa acima, considerando os seguintes
aspectos: a) localização na classe x desempenho escolar; b) localização na classe x sexo;
c) localização na classe x cor/raça x renda familiar e d) localização na classe x redes de
afinidades.
Quanto aos lugares ocupados, havia a interferência da professora na escolha,
principalmente dos alunos considerados indisciplinados e dos alunos e alunas com
dificuldades de aprendizagem, sempre colocados mais perto de sua mesa e/ou nas
primeiras duas carteiras de cada fileira. Parece-me que essa opção de Alana decorria da
intenção de ter mais controle das atividades e disciplina dos alunos/as que demandavam
mais sua atenção, prática recorrente entre professoras do 1º ciclo, que buscam prestar
atendimentos individualizados durante suas aulas. Vale ressaltar que, no decorrer das
observações, essas crianças foram as que tiveram mais mobilidade no espaço físico da
sala de aula.
Ao passo que, alunos e alunas com bom desempenho escolar, na maioria das
vezes, escolhiam seus lugares e essa opção parecia ser preferencialmente por lugares ao
fundo da sala ou, ainda, perto de crianças com as quais tinham maior afinidade.
Alunos e alunas com desempenho mediano pareciam preencher o espaço entre
esses dois grandes grupos, buscando consolidar as redes de amizade. Entretanto, a
professora também intervinha nesse caso, separando grupos que pudessem conversar e
atrapalhar a aula.
A escolha da professora por determinar que crianças que apresentavam
problemas de aprendizagem e/ou disciplina sentassem mais próximo à sua mesa levava
a que muitos meninos sentassem-se próximos à sua mesa. As meninas, no geral,
sentavam-se nas fileiras mais afastadas e as meninas “boas alunas” concentravam-se no
fundo da classe.
A situação das crianças quanto à declaração racial e de renda (apesar de não ter a
totalidade das informações) não parecia determinar sua localização na classe, tampouco
a formação de grupos de trabalho ou de amizade, que estariam baseados muito mais na
avaliação de desempenho escolar. Com o resultado do teste sociométrico e a construção
62
de sociogramas, confirmei que a impressão de que a escolha de lugares na classe
buscava manter redes de afinidades entre as crianças.
Sabendo da opção dos “bons alunos” pelo fundo da classe e da premissa de que
os alunos com dificuldades no contexto escolar precisavam sentar próximos à
professora, percebi que as meninas consideradas com desempenho mediano
apresentavam, efetivamente, uma grande afinidade entre si e, ao escolherem seus
lugares, pareciam buscar por seus pares. Nas observações de classe, percebia um
movimento, mesmo que muito sutil, dessas meninas: buscavam ajudar-se nas tarefas e
constantemente iniciavam as trocas de confidências, mensagens ou papéis de cartas,
discretamente, durante as aulas.
Já os meninos “medianos”, optaram por indicar no teste sociométrico alunos
com dificuldades de comportamento ou em alguns poucos casos, indicaram bons alunos
em sua formação de grupo. Isso se refletia na localização na sala de aula. Esses
meninos, embora quietos e comportados em sala de aula, nas ausências de Alana ou nos
espaços como recreio e aula de educação física, tornavam-se tão indisciplinados quanto
André e César (únicos alunos avaliados com problemas de indisciplina pela professora).
A configuração dos mapas auxiliou-me na leitura de dados e posterior
categorização dos alunos e alunas para as análises sobre (in)visibilidades em sala de
aula, cujas estratégias procurarei analisar nos dois próximos capítulos.
Tornou-se evidente que não há como dissociar o desempenho escolar avaliado
pela professora dos comportamentos demonstrados pelas crianças em sala de aula. A
classificação entre alunos “bons”, “maus” e “medianos” estava muito presente para a
professora e para a turma. E, a partir dessa classificação, as crianças pareciam agir de
acordo com o que era esperado delas. Entretanto, um olhar mais atento indicou nuances,
semelhanças e diferenças entre os comportamentos das crianças frente a essa
classificação.
Havia modelos em jogo naquele cotidiano escolar. E as crianças, ao longo do seu
processo de escolarização, aprenderam a lidar com esses modelos. Haveria tanto alunos
“bons”, “maus” e “medianos” muito visíveis ante o olhar da professora, quanto alunos e
alunas com desempenho mediano que optaram claramente por tornarem-se “invisíveis”
ao olhar da professora.
Considerando o alerta de Ramos do Ó de que o “discurso pedagógico moderno
projetou um e um só ideal-tipo moral, o do estudante independente-responsável” (2007,
grifo do autor), posso afirmar que na turma do 4º ano C também o modelo que era
63
declarado com o ideal de aluno seria aquele que conseguia conciliar bom
comportamento, produção escolar e participação ativa nas aulas. Modelo esse que
parece permear o imaginário escolar, já que outros estudos recentes sobre desempenho
escolar indicam situação semelhante61.
E parece-me que as estratégias utilizadas pelas crianças no contexto da sala de
aula traduziam-se em comportamentos de aceitação, recusa, resistência ou invisibilidade
perante esse modelo do “bom aluno”.
Os alunos com bom desempenho escolar, a partir da classificação de Alana,
aceitavam e buscavam afirmar seu lugar de visibilidade e “sucesso”. Os alunos com
dificuldades de aprendizagem pareciam não conseguir superar uma trajetória de anos de
escolarização marcada por “fracasso” e buscavam estar “invisíveis” (sem sucesso)
frente ao olhar da professora. Já os alunos considerados indisciplinados e que não se
dedicavam às atividades escolares opunham-se claramente ao modelo exigido e
“fracassavam” na escola. Os alunos e alunas medianos jogavam mais com essas
estratégias, ora aceitando, opondo-se, resistindo, ora se colocando como “invisíveis”.
Após muitas idas e vindas, classificações e reclassificações, acabei por agrupar
as crianças do 4º ano C em quatro grandes grupos: 1. “bons” alunos; 2. alunos e alunas
com dificuldades no contexto escolar (disciplina e/ou aprendizagem); 3. alunos e alunas
medianos e “visíveis” ao olhar da professora e 4. alunos e alunas medianos e
“invisíveis” ante olhar da professora.
Esse agrupamento plural pareceu-me ir ao encontro da categorização dos
comportamentos fundamentais frente aos papéis sociais proposta por Agnes Heller, em
O Cotidiano e a História (2000), em que distingue quatro comportamentos
fundamentais do indivíduo frente ao seu papel ou a seus papéis: 1. identificação com as
regras dominantes; 2. distanciamento aceitando as regras de jogo dominantes (incógnito
dissimulado); 3. distanciamento recusando intimamente as regras de jogo dominantes
(incógnito oposicionista) e 4. recusa do papel. (p.98).
Assim, os alunos e alunas “visíveis” e com “sucesso” declarado seriam os que se
identificam plenamente com o ideal de bom aluno participativo. Aqueles/as “visíveis” e
com “fracasso” previsto seriam as crianças que vêm percorrendo trajetórias de fracasso
escolar, recusando o modelo em parte ou no todo, muitas vezes porque foram
convencidas de que não conseguem se adequar a ele. Os dois tipos de “incógnitos”
61
Ver Carvalho (2001), Brito (2004), Cortese (2004), Pereira (2008).
64
propostos por Heller seriam, a meu ver, os alunos e alunas com desempenho mediano
que seriam “visíveis” que se distanciavam e aceitavam as regras e também os
“invisíveis” que se distanciam e recusavam as regras dominantes.
É claro que nenhum desses tipos aparece de forma fixa ou “pura” e
frequentemente pude observar comportamentos ambíguos, contraditórios e em mudança
numa mesma criança.
Em essência, a sala de aula é um lugar relacional. Proponho um olhar plural
sobre o que aqui se denomina “sucesso” e “fracasso” que busque desvendar como os
trinta e três alunos e alunas da turma pesquisada participavam ativamente de cenas do
cotidiano escolar, utilizando-se de estratégias de estar mais ou menos “visíveis”.
65
CAPÍTULO 2
VISIBILIDADES EM SALA DE AULA
“29% dos alunos de 2ª série da prefeitura não sabem o
que lêem
Prova aplicada em novembro mostra que 29% deles não
conseguem responder a questões de português e
matemática. Na quarta série, 26,9% também tiveram
dificuldades; para a prefeitura, ‘a situação ainda é ruim’,
mas melhor do que esperada.”
(Folha de S.Paulo, 02.02.08. Caderno Cotidiano)
O desempenho escolar de alunos e alunas ao final do 1º ciclo do ensino
fundamental na rede municipal da cidade de São Paulo tem apresentado uma
porcentagem alta de resultados insatisfatórios. Este problema demonstra que o sistema
de ensino público pouco tem avançado para assegurar o mínimo que se espera de um
alunado que tenha ao menos quatro anos de escolarização: saber ler, interpretar e
escrever.
A manchete acima faz referência aos resultados da chamada “Prova São
62
Paulo” , um exame aplicado a todos os alunos e alunas do 2º, 4º e 8º anos do ensino
fundamental da rede municipal de São Paulo, em novembro de 2007. Com questões de
Língua Portuguesa e Matemática, essa avaliação externa pretende averiguar os níveis de
desempenho dos seus alunos. Sem entrar no questionamento da validade ou não desses
exames e da metodologia utilizada, pode-se afirmar que elas revelam que existem
porcentagens significativas de alunos e alunas que não se apropriam, ao longo de anos
de escolarização, dos processos de leitura e escrita.
Em estatísticas nacionais, os dados apontam que cerca de 97% das crianças
brasileiras de 7 a 14 anos freqüentam a escola de ensino fundamental (Oliveira, 2007),
num processo histórico de progressiva democratização do acesso, que hoje é evidente e
incontestável. E, ao lado da adoção do sistema de ciclos na rede municipal de São
Paulo, a permanência das crianças tende a ser por um período maior, já que a
reprovação seguida de evasão, como mecanismo de exclusão tem sido minimizada.
62
Sobre a Prova São Paulo ver nota 57.
66
Dessa forma, à área educacional, colocam-se outros desafios, como afirma Oliveira
(op.cit):
A superação da exclusão por falta de escola e pelas múltiplas
reprovações tende a viabilizar a exclusão gerada pelo não aprendizado
ou pelo aprendizado insuficiente, remetendo ao debate acerca da
qualidade de ensino. (p.686)
As questões centrais que se colocam atualmente não são de natureza
quantitativa, mas sim qualitativa: a) O que acontece no interior da escola que produz
trajetórias de fracasso ao longo de anos? b) Se a reprovação, no caso do Município de
São Paulo, não é mais um mecanismo de exclusão, de interrupção da escolaridade de
muitas crianças, como compreender um aluno não alfabetizado depois de, pelo menos,
três anos de escolarização contínua? c) Como, por outro lado, uma grande parte dessas
crianças lêem e escrevem, mas sua produção está à beira da mediocridade, muito parca e
limitada?
Foi a partir desse quadro que emergiram para mim as questões relativas ao não
aprendizado, em especial das crianças que sequer eram notadas pelas professoras
(“invisíveis”) e por esse motivo considero relevante conhecer em que medida os
comportamentos que levam à invisibilidade ou visibilidade em sala de aula contribuem
ou não para a aprendizagem, objetivo fundamental da escola.
Nesse capítulo e no seguinte, a partir da análise de estratégias observadas e das
falas de professora e alunos, apresentei modelos de ser aluno/a que foram aprendidos ao
longo do processo de escolarização dessas crianças e vivenciados, por meio de
estratégias ativas pelas crianças da turma pesquisada, já que como nos lembra Dubet
(1997), tornar-se aluno não é um processo natural e sim um trabalho que se dá via
muitos ensinamentos.
Iniciarei com modelos “visíveis” na sala de aula pela professora e no capítulo
seguinte apresentarei modelos de ser aluno/a pouco perceptíveis ao olhar da professora
da turma. Baseada na classificação feita por ela a partir do desempenho escolar, as
expressões “sucesso” e “fracasso” escolar aparecem para agrupar os modelos que,
acredito, foram construídos e reconstruídos por essas crianças e aqui são apresentados
como possíveis parâmetros de análise. Também utilizarei alguns adjetivos utilizados
pela professora Alana para caracterizar seus alunos e alunas, ao considerarmos as
variantes de cada modelo proposto.
67
2.1 “SUCESSO” DECLARADO
Nas cenas do cotidiano do 4º ano C, parecia estar muito claro quem eram as
crianças que conseguiam representar o modelo de “aluno com bom desempenho
escolar”. As variantes abaixo delineam diferentes marcas de gênero e raça no ser “bom
aluno”, em modelos aceitos e valorizados naquele contexto.
A) Esperto/a, participativo/a, estudioso/a, legal
LEONARDO Ì63
Pardo/Pardo 64
GUSTAVO Branco/Branco
até R$ 1.140,00
-
GRAZIELA Ì
Pardo/Branco
até R$ 2.280,00
LUCIANA ‘
Pardo/Pardo
-
65
LAURA
Pardo/Branco
até R$ 1.140,00
JULIO ‘
Pardo/Branco
-
“É como eu que toda hora fico levantando a mão, aí a professora me
manda abaixar a mão,para outras pessoas responderem... E é por isso que
eu fico aparecendo, porque toda hora quero responder o que sei...”
(Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, em 04.08.07)
“Fala, Leonardo! Qual foi sua notícia?”
(professora Alana, caderno de campo, 11.04.07)
Leonardo, Graziela, Luciana, Julio. Nomes sempre ouvidos no cotidiano da
turma do 4º ano C. Crianças que querem responder todas as questões propostas por
Alana, que parecem superar o que a professora chamava de “condicionamento recortecole”. Em diversos momentos (conversa informal e entrevista de 24.08.07), a professora
reclamou do que chamou de postura condicionada da turma que, em geral, não buscava
contextualizar, interpretar, apropriar-se do conhecimento. Ao contrário, pareciam o
tempo todo esperar por uma resposta pronta e em textos, buscavam as respostas com um
olhar seletivo e pontual, uma cópia de um trecho do texto simplesmente, um “recortecole”, tal como podemos fazer em comandos de um editor de texto em computador.
Os alunos e alunas com bom desempenho escolar, segundo avaliação da
professora Alana, eram participativos, arriscavam no falar, tomavam iniciativa, e seus
braços estavam sempre levantados a qualquer questão de professora. Disputavam seu
63
Os símbolos ao lado dos nomes, como a “estrela cheia”, referem-se ao número de indicações no teste
sociométrico, como apresentado anteriormente.
64
Refere-se à auto e hetero atribuição de cor, segundo categorias do IBGE.
65
Refere-se à renda familiar total expressa no questionário socioeconômico.
68
olhar, apareciam e aparentemente não se constrangiam se, por acaso, não respondiam
satisfatoriamente às questões propostas:
O Leonardo é ótimo, né? Sem muitos comentários... Sempre lá, interessado
na aula e contribuindo para as atividades...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
A Graziela se destaca por ser uma excelente aluna. Tem pouquíssimos erros.
Os pais dela são super preocupados com o desempenho...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
[Gustavo] Tem um bom vocabulário, mas na hora de fazer perde um tempo
contando história e batendo papo, fazendo fofoca. Mas ele é bom, um aluno
muito bom, apesar de que acho que ele poderia ter um desempenho muito
melhor.
(professora Alana, idem)
O Julio é um bom aluno. Excelente aluno, embora sem muita regra. Um
moleque que não gosta muito de regras.(...) Um dia fiquei observando o
Julio de longe... Eu falava, mas de olho nele e parecia que ele não estava
nem aí. De repente, ele levantava a mão fazendo uma colocação bacana
dentro do que eu estava falando ou emendava com que eu estava falando.
Eu vi nele um pouco de mim porque eu detesto ficar olhando para a pessoa
que eu estou falando... Eu prefiro desenhar, “viajo”, mas eu recebo muitas
informações. E parece que o Julio também é assim.
(professora Alana, entrevista, idem)
A Laura é ótima, né... Não falta e está sempre maquiada, tem unha de
mulher de 40 anos, uma unha grandona e envergada para baixo, como de
mãe. Ela é uma menina responsável e bacana. A mãe dela é super
preocupada e super gente boa.66
(professora Alana, entrevista, idem)
Esses alunos pareciam ditar, de certa forma, o ritmo cotidiano de aula. Eram os
que sempre respondiam, e quando não havia mais o que comentar, encerrava-se a
atividade.
Nesses alunos percebi uma certa ampliação de limites, já que tanto Gustavo
quanto Julio freqüentemente se distraíam com outras coisas em classe: observei-os
brincando com tesouras, celular e jogos portáteis, sem que fossem repreendidos por
isso. Até mesmo Alana comentou sobre esses comportamentos:
O Julio é assim: a gente briga com ele e quando está brigando, ele não olha
para a gente... No começo eu pegava bastante no pé do Julio. Ele saca um
relógio do bolso e fica fuçando... isso me incomodava.(...) É um menino
66
Trechos das falas de Alana em entrevista quando instigada a falar de cada um de seus 33 alunos e
alunas. Essa entrevista iniciou-se 17 de junho de 2007 (14 alunos) e foi concluída em 24 de agosto, com
sua fala sobre outros 15 alunos e alunas. Como Luciana havia sido transferida no final de junho de 2007,
a professora não falou sobre ela.
69
diferente porque ele é meio desleixado... A letra dele é meio ruim e feinha,
mas quando ele é solicitado, é um cara que tem uma disciplina de esporte e
faz bem quando ele é desafiado. Tem bastante potencial.
O Gustavo é um cara que tem um potencial muito bom, mas ele é malandro
e gosta de bater papo. Gosta de ficar sem fazer nada e quando a gente
chama a atenção, ele não gosta. Mas também não se empenha para ter um
resultado melhor. Deu alguns problemas nos anos anteriores, separaram de
algumas crianças. Eu conversei com ele e acho que hoje ele é muito bom.
Também as atitudes das meninas “boas alunas” não incomodavam Alana que
apenas comentou algo sobre Laura:
Ela conversa bastante, bate papo e sempre busca nas outras meninas que
sentam perto dela uma referência para fazer cada vez melhor.
No entanto, na opinião de outras crianças com menos destaque na classe, tanto
Graziela quanto Laura eram consideradas “metidas”, exibidas, o que acredito decorrer
de certos comportamentos de competitividade. Pude perceber que terminar primeiro a
tarefa era algo em constante disputa entre Graziela, Laura e Luciana. Como se o
destaque por terminar a atividade primeiro, ter a letra mais bonita, o caderno mais
caprichado e responder o que a professora propunha fossem fatores determinantes para
seu “sucesso” na escola. Algumas crianças demonstraram, em suas falas, certo rancor
com a postura dessas meninas:
Elas se ‘acham’... se acham muito espertas... alguns meninos também...
(Janaína, entrevista em dupla com Bianca, 29.10.07)
Não gosto de responder porque fico com medo da professora brigar comigo.
Tenho raiva da Graziela, ela atrapalha...
(Otávio, entrevista em dupla com Elias, 29.10.07)
[Patricia: Quem são os “bons alunos”?] As pessoas mais metidas são a
Graziela, Laura...
(Luane, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07)
Em atividades de produção escrita, eram as meninas “boas alunas” que,
geralmente, entregavam primeiro o exercício, o que parecia acontecer num clima de
competição. Em muitos momentos eu escutava comentários como: “já terminei”, “onde
você está?”, “estou na última atividade...”. Não percebi tais comentários entre os
meninos considerados pela professora como “bons alunos”: eles faziam, entregavam e
pronto.
70
B) Esperta, tranqüila, estudiosa, bacana
ADRIANA Ì
Pardo/Branco
até R$ 380,00
-
DANIELA
Branco/Branco
mais de R$ 2.280,00
-
GISELE
Branco/Branco
mais de R$ 2.280,00
-
NATALIA Branco/Branco
-
“Elas são mais espertas, tiram ‘P’67nas provas.”
(Bianca, entrevista em dupla com Janaína, 29.10.07)
Apesar de não se destacarem no agitado coletivo da classe, diferentemente do
grupo anterior (que estava o tempo todo interagindo com a professora e respondendo às
suas questões, falando e se expressando), Daniela, Adriana, Gisele e Natalia eram
também meninas consideradas “boas alunas”. Elas exerciam o papel de “boas alunas”
mais no silenciar das atividades. Exceto Adriana, que se autoclassificou como da cor
“pardo”, as demais meninas se classificaram e foram classificadas pela professora com a
categoria “branco”.
De alguma forma, essas meninas pareciam descobrir o que a professora esperava
e queria delas e tinham estratégias para conseguir atingir esse “querer”. Não pretendo
afirmar com isso que a escola seria um espaço que privilegie meninas, mas sim que há
uma grande rede de interesses, valores e atitudes que perpassam as relações e práticas
escolares, permeados por significados de gênero e que as crianças se apropriam e
constroem suas estratégias diante do que vivenciam no dia a dia.
Nas cenas que presenciei percebia que: atendiam aos pedidos da professora;
ficavam quietas e conversavam discretamente; procuravam fazer a tarefa da melhor
forma, querendo acertar; quando erravam, retomavam e corrigiam; quando solicitadas,
respondiam satisfatoriamente; demonstravam interesse em aprender e apresentavam
autonomia ao realizarem as tarefas. Além disso, essas meninas formavam um grupo
entre si e buscavam por outros “bons alunos/as”, que se destacavam por apresentarem
bom desempenho, como companhia para resolverem atividades.
Essas estratégias eram bem avaliadas pela professora e fazia com que fossem
vistas como “boas alunas” pelas outras crianças. Daniela, Adriana, Natalia e Gisele
eram alunas mais tranqüilas que garantiam uma visibilidade positiva por apresentarem
bons conceitos em seus trabalhos e sempre formarem grupo com outros alunos e alunas
67
Três eram os conceitos utilizados nessa escola para designar o desempenho escolar dos alunos: “PS”,
que significa Plenamente Satisfatório; “S”, Satisfatório e “NS”, Não Satisfatório. No entanto, as crianças
utilizavam, ao falar, apenas a letra “P” ao se referirem ao conceito Plenamente Satisfatório.
71
que se destacavam. Eram, também, muito dedicadas às tarefas e, no olhar de outras
crianças, tornavam-se mais espertas em comparação ao resto da turma:
Eu acho as meninas espertas, porque tiram “P” nas provas, fazem toda
lição e ainda ficam cochichando e a professora não percebe.
(Rogério, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07)
Elas não conversam e tiram “P” em todas lições. (Tamires, idem)
Observações semelhantes às de Rogério de que meninas são espertas e têm
bagunças diferentes que não incomodam o desenvolver das aulas, aparecem também nos
estudos de Nara Bernardes (1989) e Marília Carvalho (2001). Esses estudos, ocorridos
em duas décadas diferentes, constatam uma permanência de comportamentos para esse
grupo de meninas “boas alunas” pouco visíveis, não competitivas. Marília Carvalho fala
sobre “a arte das meninas em conciliar diversão e estudo e driblar muito melhor a
vigilância e as punições das educadoras, através de uma postura menos desafiadora”
(idem, p.570, grifo da autora).
Ao falar sobre essas alunas, a professora oscilou entre características positivas e
negativas:
A Adriana é uma boa aluna e bacana, não tem problema de aprendizagem.
Tem lá um errinho ou outro, mas por falta de prestar atenção mesmo, dá
uma “viajada” também...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
A Natália é uma menina que pensa muito rápido, muito comunicativa e
muito atenta às coisas do mundo. Ela tem uma vontade de aprender as
coisas! Mas a produção escrita da Natália é muito ruim, porque ela
confunde as palavras, ela “come” letra e tem uma ansiedade muito grande.
É uma boa aluna, uma criança que questiona muito as coisas e de uma
forma coerente, é pertinente o que ela está te perguntando. Muito boa aluna
na minha concepção, por ser muito interessada e comunicativa. Os
resultados das provas dela não são tão bons, porque, nas palavras que
escreve, ela ‘come’ letra e aí acaba escrevendo uma outra coisa, né... mas
se você falar pra ela retomar, reler, ela retoma e, se não entender, ela
pergunta “professora, como é que faz isso?”... As coisas que você ensina
pra ela marcam e depois ela retoma “professora, você não falou isso no
começo do ano?”, questiona.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
A Gisele é uma aluna bem mediana e não é pior porque anda com uma
‘panelinha’ muito boa: Adriana, Laura, Graziela, o Leonardo... A Gisele é
aquela pré-adolescente que está meio desnorteada, que não sabe muito bem
o que ela quer. Ela poderia ser uma aluna muito melhor, mas ela não faz de
qualquer jeito porque a turma dela é muito boa: as meninas corrigem as
coisas, mas ela troca muitas letras. Poderia ser uma aluna melhor, se tivesse
72
um incentivo, se fizesse com que sentisse necessidade de ter um desempenho
melhor...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
Daniela era uma “boa aluna” que tinha uma rede de amizade composta por
outras meninas avaliadas com um desempenho “pior” e, por isso, sempre as ajudava nas
tarefas:
Daniela é ótima aluna... Embora ela ande com um grupo de meninas mais
fracas, que não sabem muito... Tem a postura de ajudar e, muitas vezes,
fazer pra elas... Tamires, Sabrina. A Daniela está começando a despertar
pra essas coisas de namorinho, mas nada precoce, nada de sair beijando
meninos atrás da escola...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Com essas meninas Daniela mantinha uma rede de comunicação eficiente e
muito discreta e, muitas vezes, eu observava troca de papéis por entre as carteiras, entre
olhares cúmplices, distanciando-se do modelo da “boa aluna” que estaria sempre
concentrada nas atividades e demandas estritamente escolares.
Um aspecto merece destaque, na fala da professora, quando remete a uma
avaliação negativa de comportamentos associados ao despertar da sexualidade de
meninas. Parece-me que essa avaliação em relação à Daniela está muito mais
relacionada com o fato dela ser uma “boa aluna” que se relacionava com um grupo
“mais fraco” (o que a prejudicaria) do que a percepções de atitudes da menina. Isso
porque outras meninas “boas alunas”, como Graziela, Laura e Gisele, demonstravam
bastante interesse nas “questões de namoro”, mas a professora sequer mencionou essa
preocupação.
Vale ressaltar que, apesar de estarem presentes nas falas de algumas crianças, as
questões de “namorinhos” para as meninas “boas alunas” não eram vistas como um
problema para Alana (exceto no caso de Daniela), diferentemente de sua avaliação
sobre outras meninas com um desempenho não tão satisfatório. Isso nos leva a pensar
que a professora tinha expectativas diferentes entre meninas com desempenho menos
satisfatório e meninas com bom desempenho escolar, reservando às últimas um espaço
de maior liberdade para expressar sua feminilidade. Em relação aos meninos, a
preocupação com o despertar da sexualidade não foi sequer mencionada pela professora.
Cenas do cotidiano mostravam que nessa turma a questão dos “namorinhos” era
presente nas atitudes de grande parte das crianças, nas entrelinhas de conversas,
bilhetinhos e explicitamente nas falas de algumas crianças.
73
Final da primeira aula, minutos antes da aula de Educação Física.
“Professora, posso trocar minha calça para a Educação Física?”.
Gisele e Graziela saem e voltam para a classe, como se estivessem
desfilando, e os meninos olham encantados...
(Caderno de campo, aula de Português, 28.03.07)
Na fila em frente à lousa, para mostrar a atividade para a professora,
Débora escreve na lousa “Rodrigo e Iasmim”. Luane avisa Rodrigo
que vai correndo apagar. De longe, reclama com Débora e os dois
riem...
(Caderno de campo, aula de Língua Portuguesa: produção de texto,
09.05.07)
Meninas como Graziela, Laura, Gisele, Tamires, Natalia, Débora e Luane
apareciam no grupo como as mais interessadas nessas questões. Alguns meninos
entravam nas cenas, como coadjuvantes importantes: Marcelo, Rodrigo, Julio, Otávio,
Cássio.
Na entrevista com o grupo de alunos com desempenho mediano, Tamires,
Jéssica e Luane “reclamavam” do que disseram não gostar na escola:
Eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo, sem graça! [risos]
(Tamires, entrevista em grupo, em agosto de 2007)
Eu também não gosto das brincadeiras do Rodrigo, porque ele faz umas
brincadeiras muito bestas, tipo assoprar no nosso ouvido, abraçar as
meninas...
(Jéssica, idem)
Eu não gosto das brincadeiras do Rodrigo porque ele fica ‘batendo’ nas
meninas, agarrando as meninas...
(Luane, idem)
Rodrigo se defende dizendo que “é tudo brincadeira” e as meninas provocam os
meninos para correrem atrás delas no recreio. Aliás, brincadeiras de “pega-pega” no
recreio eram constantes.
No artigo de Cruz e Carvalho (2006), as observações de meninas e meninos no
recreio, levam a pensar na idéia de conflito por aproximação entre os sexos já que “(...)
na maioria das interações que envolviam meninos versus meninas, predominava uma
mescla de agressividade com elementos lúdicos, com intuito de aproximação” (p.120,
grifo das autoras). E também:
(...) a idéia de conflitos por aproximação, para os jogos de gêneros,
que envolviam conflito e elemento lúdico, desencadeados por um dos
sexos sobre o outro, quando tinham como objetivo a aproximação
entre eles – conforme apreendemos por meio de pistas dadas pelos
próprios sujeitos (idem, p.138, grifos das autoras)
74
As crianças da turma do 4º ano C também me deram pistas que as brincadeiras
envolvendo meninas “contra” meninos, mais do que oposição, eram apenas artifícios
para aproximação entre eles.
75
2.2 “FRACASSO” PREVISTO
Se o “sucesso” era declarado, também é verdade que o “fracasso” de alguns
alunos e alunas era previsto naquele contexto. Assim, os extremos do jogo escolar eram
facilmente reconhecidos pela professora e para os alunos da turma.
A) Disperso, não envolvido, indisciplinado
CÉSAR
Preto/Branco
até R$ 380,00
Recuperação68
ANDRÉ Preto/Preto
até R$ 1.140,00
Recuperação
“Acho que para ser um bom aluno, primeiro de tudo, você tem que ouvir
tudo o que a professora fala e responder o que ela pergunta. Depois você
tem que ser bonzinho, não ficar zoando e não brigar fora e dentro da
classe.”
(Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, 04.08.07).
César e André pareciam não se apropriar do modelo exposto por Leonardo que
poderia garantir “sucesso” escolar. Em sala de aula, não demonstravam interesse em
participar das atividades propostas por Alana e ela lhes chamava a atenção por
indisciplina.
Não
participavam
das
atividades
ou
as
realizam
de
forma
descompromissada e ainda, quando podiam, manifestavam comportamentos que
afetavam a ordem imposta pela professora. Assim, pareciam se encaixar no estereótipo
do “menino bagunceiro”.
De fato, por assumir essa postura, eram facilmente reconhecidos como os que
atrapalhavam a aula e com quem a professora sempre brigava. Entre as meninas ecoava
a reclamação sobre alguns meninos “chatos” que só sabiam brigar e que “se acham os
valentões” (Gisele). Elas explicitaram que as posturas desses meninos eram muito
inadequadas e reclamavam porque lhes parecia que eles faziam isso de propósito:
Eles só querem chamar atenção dos outros... Eles não sabem fazer a lição e
ficam sem nada pra fazer e ficam chamando atenção da professora. Porque
eles não têm coisa melhor pra fazer...
(Janaína, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, em 08.08.07)
68
Refere-se à indicação e convocação da professora para participar do período de recuperação no final do
1º semestre de 2007.
76
Na turma tem algumas pessoas que ficam quietas, como o Leonardo e as
meninas, algumas... E tem outras pessoas, como o André que fica fazendo
bagunça e a professora fica reclamando com ele...
(Laís, idem)
A professora, por sua vez, ponderou alguns motivos do mau desempenho desses
meninos:
O André é um menino que não tem dificuldade de aprendizagem, mas
mantém uma dificuldade de fazer, de produzir... De não perceber que aquilo
ali é para a vida dele. Parece que o papel que ele deve exercer, que ele quer
exercer, é nenhum! Então, ele não está afim, né? Ele não tem problema de
aprendizagem, mas ele não quer mudar... Ele não quer fazer. Já tá
começando ficar naquela boa e velha rebeldia adolescente... (...) Não é o
cara que fica sem fazer absolutamente nada... Ele dá uma tapeada. Acho
que ele até se incomoda um pouco do fato de ficar sem fazer nada... Mas ele
não conclui o que tem que fazer, larga lá...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
O César é um cara largado ele não tá nem aí com nada... Acho que ele
ainda é pior que o André... A impressão que eu tenho do César é que ele tem
que ficar de capacete e armadura, sabe? Você dá uma bronca nele e isso
não o atinge, dá um certo, um elogio, nada... parece um cara que está
flutuando... (...) Na aula não faz nada... não está nem aí... ele até copia e se
suja todo de branquinho, a caneta estoura ou ele rabisca a mão, a boca, a
cara dele... (...) É daquelas crianças que escreve tudo e apaga vinte vezes...
algo meio tenso. No dia a dia fica fazendo piadas com os outros, mas fazer
mesmo a tarefa, com empenho e dedicação, isso não faz. Não é uma criança
do tipo que precisa encaminhar para o reforço, acho que ele precisa de uma
escola menor para que a professora fique ao lado dele, bem perto dele.
(professora Alana, idem)
A associação do mau comportamento (indisciplina) de meninos e seu baixo
desempenho escolar feita por Alana vem reiterar estudos que mostram a marca das
diferentes percepções dos professores sobre os sexos (Walkerdine, 1995; Silva, 1999;
Brito, 2006; Carvalho, 2001, 2004a). Esses estudos assinalam que há uma confusão
entre comportamento e aprendizagem, já que – como Alana mesma admite – esses dois
meninos não tinham problemas de aprendizagem e não precisariam de reforço. São
meninos com comportamentos inadequados, que parecem estar construindo estratégias
anti-escola como fonte alternativa de poder, exercendo o que Robert Connell (1995,
1997) chama de “masculinidade de protesto”. É, ao final, um problema de postura, de
não estar “nem aí” com nada, não fazer o que se espera de um aluno nesse ano de
escolarização.
77
Lahire (2004) afirma: “Os professores evocam tanto – senão mais – o
comportamento dos alunos, suas qualidades morais, quanto seus desempenhos ou
qualidades intelectuais.” (p. 56)
Em contraposição aos comportamentos desejados em sala de aula, utilizados por
Leonardo, Julio e Gustavo (meninos “bons alunos”), César e André não estariam se
apropriando das características de uma “masculinidade da razão” (Connell, 1995), uma
masculinidade com ênfase em racionalidade e responsabilidade que resulta no ganho de
um poder através do conhecimento aprendido e status escolar (Jackson, 1998).
Isso também confirma a impressão das crianças de que o comportamento vale
tanto ou mais que a produção efetiva em sala de aula, como elas afirmam ao comentar
sobre “o que é ser um ‘bom aluno’?”:
Fazer isso que todos falaram [estudar, participar da aula] não brigar, não ir
para diretoria, não implicar com as pessoas e não se meter nas conversas
da professora.
(Leonardo, entrevista no grupo dos “bons alunos”, 04.08.07)
Se dedicar mais ao estudo, não bagunçar e participar mais da aula...
(Graziela, idem)
Saber das coisas, se comportar bem na aula... E acompanhar a professora...
E ajudar outros alunos que precisam.
(Bianca, entrevista em dupla com Janaína, 29.10.07)
É fazer as lições, prestar atenção nas aulas, não conversar, responder as
perguntas que a professora faz, ah... é isso.
(Janaína, idem)
O bom aluno tem que ficar quieto e fazer a lição...
(Elias, entrevista em dupla com Otávio, idem)
Participar da aula, não tirar NS, não levar bronca, nem bilhete pra casa.
(Otávio, idem).
Como indicam também outras pesquisas69, a professora buscava razões
familiares para explicar tal problemática. As razões seriam da ordem de uma suposta
ausência dos pais na responsabilidade de inculcar nesses meninos os valores e
expectativas em torno da valorização do espaço escolar:
[André] É moleque, sempre está batendo em alguém, tá sempre cutucando
alguém... Mas é um bom menino... [pausa] Embora, às vezes, ele dê
mancada e aí eu brigo com ele. A família dele [o pai] na reunião ficou até o
ultimo minuto porque a família dele queria conversar sobre o desempenho
69
Ver Patto, 1991; Cortese (2004), Pereira, 2008.
78
dele. O André precisa de disciplina mesmo, eu disse, e talvez de uma
cobrança externa para saber que o quê ele aprendeu aqui dentro da escola
tem uma importância fora, né?
(professora Alana, entrevista em 17/08/07)
Acho que o César é filho único de pais separados. Ele fica o dia inteiro na
rua, mas a mãe vem falar que ela vai ajudar... Tem algo por trás e até
psicológico. De aprendizagem não, porque ele tem uma boa aprendizagem
de leitura. É daquelas crianças que escreve tudo e apaga vinte vezes... algo
meio tenso. No dia a dia fica fazendo piadas com os outros, mas fazer
mesmo a tarefa, com empenho e dedicação, isso não faz.
(professora Alana, idem)
Em minhas observações, eu só percebia o “mau” comportamento destes meninos
nas ausências da professora da classe. Mas não considerava isso muito diferente do que
faziam os outros alunos, no mesmo contexto. No entanto, as crianças me alertaram que
eles ficavam “mais bonzinhos” quando eu estava lá, pois “ficam como medo de você
contar pra a professora” (Natália, “boa aluna”).
Chamou minha atenção, a auto e heteroclassificação racial desses meninos.
Houve concordância entre a auto-classificação e a da professora no caso de André. Já
César se autoclassificou como “preto” e Alana o classificou como “branco”. Essa
discordância talvez sinalize por parte de César, o fato de assumir de maneira clara e
explícita, o estereótipo do “menino negro e indisciplinado”, que afirmaria um lugar de
destaque naquele coletivo, e para si próprio confirmaria aspectos de uma masculinidade
de protesto, baseada na afirmação de uma masculinidade expressa por resistência, com
atitudes opostas ao que se espera de um “bom aluno” no processo escolar.
No final do ano letivo de 2007, os dois alunos foram reprovados e cursariam, em
2008, novamente o 4º ano do ensino fundamental.
B) Invisível, quieto/a, imaturo/a, infantil
RICARDO Pardo/Branco
até R$ 760,00
Recuperação
DENIS
Branco/Pardo
Recuperação
SABRINA Pardo/Pardo
até R$ 380,00
Recuperação
VALÉRIA
Branco/Branco
até R$ 760,00
Recuperação
ESTELA Branco/Branco
até R$ 380,00
Recuperação
MAURO ‘
Pardo/Branco
Recuperação
Ricardo, que sempre permanece quase que imóvel na carteira, é
recepcionado por Alana logo no início da aula: “Esse está como eu...
Tá tudo bem?”. Além de não responder-lhe, Ricardo permanece com o
79
capuz da blusa na cabeça, como que acuado. Num dado momento,
Alana pede que os alunos da “fileira do César”70 façam uma fila em
frente à lousa, para ela ver o texto. Dirigem-se para o quadro Gustavo,
Leonardo e Gisele. Ao mesmo tempo, Tamires e Jéssica começam a
brincar e, com a agitação, Alana pede para que todos se sentem e
depois os repreende por causa da falta de disciplina. Ela registra na
lousa o modo como as crianças devem dispor as palavras no cartão.
Forma-se uma nova fila e Alana atende algumas crianças. Já não há
mais o clima de silêncio e muitas crianças se movimentam na sala. No
entanto, no meio da agitação de muitos, algumas crianças parecem não
movimentar-se: Laís, Janaína, Valéria, Ricardo, Daniel e Denis. Todas
as vezes que eu os olhava, estavam nos seus lugares fazendo algo.
(Caderno de campo, Aula de Língua Portuguesa, 09.05.07)
Com André e César, compondo o total de alunos reprovados da turma do 4º ano
C, temos mais os nomes de Denis, Mauro, Estela e Valéria. Ricardo e Sabrina foram
preservados da reprovação por motivos diversos.
Sabrina foi transferida de escola em meados de outubro porque a família mudouse do bairro. Sua reprovação provavelmente aconteceria, apesar dos pequenos avanços
apresentados no ano:
Eu vejo a Sabrina com vários problemas familiares. A mãe sempre procura
uma doença nela, já a levou em todos os especialistas que você possa
imaginar. E a Sabrina participa e colabora com essa dinâmica. Ela esconde
o que ela sabe e acho que a questão do segredo em casa deve ser algo
complicadíssimo. Desde a segunda série que ela foi minha aluna eu dizia:
“eu sei que você sabe, então produza”. E ela dava um jeito de esconder. Ela
começou a fazer terapia e melhorou bastante... A escrita dela ainda é muito
complicada, mas ela já consegue se expressar, já consegue ler, já
demonstrar um pouco mais o que ela sabe. Ela é preocupada em fazer as
tarefas e a impressão que eu tenho é que a relação com a mãe está
começando a mudar. Se você ficar com ela sozinha, ela faz.
(professora Alana71, entrevista 24.08.07)
Já Ricardo, não poderia repetir novamente o 4º ano, segundo recomendações
institucionais, pois já estaria fora do que se espera de série/idade e como avaliou a
professora Alana: “não há muito que fazer... a escola não oferece muito e ele nem
mochila abre”. O menino era uma das crianças que mais me chamaram atenção desde o
início das observações de aula. Lembrava do rosto de Ricardo, pois, embora ele não se
recordasse, fui professora de seu irmão no 1º ano do ensino fundamental, no ano de
70
A professora identificava as fileiras pelos alunos que sentavam na primeira carteira. Mas, nesse
momento, o primeiro da fila não era César e, sim, Ricardo.
71
Os comentários da professora de todos os alunos e alunas desse item foram feitos nessa entrevista de 24
de agosto de 2007.
80
2003. Como o irmão, Ricardo também foi reprovado no ano de 2006, no final do quarto
ano do ensino fundamental.
Ricardo apresentava uma estratégia de tornar-se invisível na turma de forma
mais evidente. Se essa era sua estratégia frente aos colegas, para Alana era algo
extremamente perturbador. Muitos dias presenciei que ele sequer abria a mochila para
colocar o material na mesa ou, ainda, que cochilava sobre a carteira. A professora
percebia alguns comportamentos e tentava intervir:
O Ricardo é o invisível camuflado e se ele puder não aparecer, não aparece.
A escola é o lugar para onde ele tem que ir, mas ele não precisa produzir
nada, não tem que fazer nada, é... e ele não se incomoda mais com isso
também. Quando eu chamo pra fazer uma tarefa diferente, perto de mim, ele
nunca conclui nada, nenhuma tarefa. Não demonstra nada do seu
desempenho, nem interesse e está lá...
Ou ainda:
Ele [Ricardo] vem pra escola, mas a gente nem percebe ele lá, já que ele não
conversa, embora tenha um bom relacionamento com as outras crianças,
não faz absolutamente nada, então não incomoda essa coisa de ser colocado
de lado, porque ele mesmo se coloca de lado... Ele faz o papel do bom
menino para não ser importunado por ninguém, a não ser pela professora
que insiste em pedir que ele faça a tarefa...
Observei que essa “invisibilidade” materializava-se em Ricardo de forma cruel:
um aluno repetente, que não sabia ler e escrever (mesmo após quatro anos de
escolarização), mas que aprendeu que estar na escola com essa postura, sem incomodar,
pode ser uma possibilidade de continuar nesse espaço:
Acho que o Ricardo vai para a quinta série, porque ninguém vai bancar o
que não fez antes, ele já é repetente e a escola diz que é complicado repetir
de novo. Mas ninguém “pegou” o caso pra discutir, ver o que fazer. Ele até
escreve, mas não lê nada. Se eu pergunto, não fala nada. Mas, até que vem
contar as coisas particulares dele, mas é uma criança bem distante...
(professora Alana)
Apesar de avaliar na entrevista que Ricardo também tem uma “desestrutura
familiar muito séria”, Alana reconhecia que o aluno ali estava e que a escola não havia
feito muito para garantir a aprendizagem dessa criança. Penso que se estivesse em uma
escola seriada com reprovação ao final de cada ano letivo e não conseguindo atingir os
objetivos de ensino-aprendizagem esperados, talvez, Ricardo já não estivesse mais
numa sala de aula.
81
E, ao final do ano letivo de 2007, constatei que Ricardo foi aprovado para o 5º
ano do ensino fundamental, mesmo sem se apropriar de forma satisfatória do processo
de leitura e escrita.
Com Sabrina e Ricardo, Estela completava o grupo escolhido pela professora
para freqüentar, semanalmente, aulas de reforço72, oportunidade para um trabalho mais
individualizado na escola, ministrado por uma estagiária do curso de Pedagogia, Rita:
A Estela é, para mim, uma caixinha de surpresas. Cheguei até a pensar em
um diagnóstico de dislexia, porque é uma criança que sempre teve auxílio,
mas ela não responde, não entende o que você fala, embora ela tente. Agora
ela está tendo aulas de reforço com a Rita, que também faz um trabalho com
ela fora da escola. Ela está respondendo, um pouco mais... Eu não sei o que
fazer com a Estela, só sei que aquela sala não dá pra ela. Quinta série pra
ela, nem pensar...
(professora Alana)
Estela e Sabrina apresentavam dificuldades e, embora as suas mães estivessem
mais presentes, ainda não haviam conseguido superá-las:
A mãe não quer que ela [Estela] reprove, acha que ela vai conseguir, diz “se
Deus quiser, ela consegue”, uma postura sem ter o “pé no chão”, sabe...
Não é uma menina que se esforce mesmo, é outra que quer pintar, desenhar,
muito imatura, muito infantil... E a mãe mantém isso, porque são só as duas,
então... Eu me preocupo bastante com a Estela porque há algo errado...
(professora Alana)
A mãe dela [Sabrina] é complicada, ela tem uma vida muito pobre e a mãe
encobre e eu não consigo entender isso. Ela está sempre bem arrumadinha,
com coisinhas da moda, mochila da Barbie, essas coisas.
(professora Alana)
Uma questão que merece atenção é o fato de que a professora, em muitas
descrições de alunos e alunas, insiste em culpabilizar a família e, principalmente, as
mães por contribuir com o “fracasso” escolar das crianças. Walkerdine (1995) constata
tal posicionamento num discurso disseminado do papel da mãe como primeira e melhor
educadora e que com isso “colocou-se um grande peso sobre seus ombros e, portanto,
permaneceu o risco de que as crianças que iam mal na escola podiam ser o produto da
educação e do cultivo defeituosos” (p.217). Um discurso que naturaliza o “ser mãe”
como portadora de amor, cuidado, sensibilidade sem se considerar as condições
72
Não havia um horário e profissional da instituição escolar para ministrar aulas de recuperação paralela
(reforço). Esse atendimento era viabilizado por meio de estagiárias do curso de graduação em Pedagogia,
o que acontecia em períodos curtos e com grande rotatividade de pessoas.
82
concretas de vida, de como as hierarquias de classe, raça e gênero podem influenciar nas
práticas cotidianamente vividas. Destarte, não se pensa no que acontece no interior da
escola, já que o problema do “fracasso” escolar parece ter origem e ser produzido em
outro lugar, em outros sujeitos.
Os outros alunos que tiveram a marca de seu “fracasso” escolar com a
reprovação foram Valéria, Denis e Mauro. Na avaliação da professora, essas crianças
falhavam por serem imaturas, infantis, além de não apresentarem envolvimento com as
atividades:
Mauro também tem uma característica muito infantil, de ser bebezão, de ser
preguiçoso, de não querer fazer as coisas... O Mauro, eu deixaria na 4ª série
pra ele amadurecer, com mais um ano o Mauro ganharia. Ele evoluiu
bastante desde o começo. Ele chegou sem ler, silábico-alfabético e melhorou
bastante, ele escreve melhor que o Denis, porque escreve devagar, é mais
cuidadoso... Ele tem vontade de fazer as coisas quando está concentrado,
porque quando tem obstáculos, ele cansa, abandona e começa a brincar.
Tem uma postura de brincadeira mesmo. Ele não senta corretamente na
carteira, está sempre ajoelhado, o tempo de concentração dele é pequeno,
mas ele produz, ele aproveita esse pouco. Uma aula expositiva pro Mauro
não é legal, porque ele perde. A posição dele é de ficar alheio ao que está
acontecendo... então... é outro que a sala numerosa é complicada pra ele.
Denis é o tipo de filho caçula, né? Mimadinho... se eu não me engano, ele só
tem irmãs... Tem aquela cara de bebê bonitinho, aquela coisinha, aquele
olhinho de cachorro que caiu da mudança... Ele tem dificuldade de
aprendizagem. É o cara que vai dançando conforme a música: “se eu for
bonzinho, a professora não vai mais chamar a atenção e eu fico lá
quietinho. E a professora me dá nota de vez em quando”. Quando ele traz
algo para eu corrigir e peço para ele retomar e me trazer de volta, ele
demora em me trazer.
Valéria é filha temporã e se coloca como bebê da casa... Ela nunca entende
nada... não tem um ponto de partida... Pergunto: “Qual é a sua dúvida? Por
que tem que começar do zero?”. Nada, Valéria, nada... Parece estar sempre
cansada... Mas vejo que pelo bairro anda, extrovertida... na classe, sempre
numa postura, de “não sei, tá... vou continuar bebê.”
(professora Alana)
Ao não se envolverem com o processo de ensino-aprendizagem, não
participarem das discussões em classe, tornavam-se “invisíveis” (apesar da visibilidade
ante o olhar da professora), que incomodavam por sua ausência-presença na turma.
Crianças que estão lá, não faltam, mas fazem as tarefas de modo mecânico, sem
envolvimento. Com sua postura pedagógica questionadora, Alana incomodava-se
bastante com esses comportamentos, que pareciam ser opções dessas crianças:
83
(...) o grupo grande pra ela [Valéria] é excelente... Ela some e não se
envolve...
(...) numa turma grande como a gente tem, ele [Denis] fica na invisibilidade
e parece que fica por baixo dos panos mesmo. Não conversa comigo, a não
ser que seja solicitado... Coloca-se na invisibilidade como tática.
(professora Alana)
Parece-me que essa invisibilidade (tão visível para a professora) era construída
como uma estratégia de não ser visto/a, como defesa do olhar avaliativo e repleto de
exigências de Alana e, conseqüentemente, de toda a turma. Em classe, realmente, era
difícil “ver” Denis, Mauro e Valéria, mesmo quando eu observava suas ações. Sempre
quietos, comportados, não se movimentando pela classe.
Apenas no caso de Ricardo, essa invisibilidade era também percebida pelas
crianças. Poucos foram os momentos que vi Ricardo interagindo com seus colegas. O vi
e brincar apenas uma vez, quando trouxe um saco de balas sortidas para a escola e, entre
o término da atividade e o início de outra, enquanto a turma estava bastante agitada, ele
teve o olhar de seus colegas ao distribuir os seus diversos sabores de balas.
Diferentemente, Mauro, Denis, Estela, Sabrina e Valéria pareciam ter redes de
amizade estáveis e eram, assim, visíveis para as demais crianças da turma. Mauro e
Denis na bagunça e agitação pontual com alguns outros meninos e as meninas
envolvidas nas bagunças, muitas vezes imperceptíveis, com trocas de olhares, risos e
brincadeiras mais quietas.
Estela e Sabrina eram amigas quase inseparáveis. Faziam atividades juntas,
sentavam perto e no recreio buscavam brincar com meninas menores de outras turmas.
Na classe participavam de brincadeiras com o grupo de meninas que sentavam mais
próximas, sempre muito discretas.
Ricardo, Valéria e Mauro continuavam imóveis na sua carteira até nos
momentos de ausência de Alana. Vez ou outra eu observei Valéria conversando com as
crianças sentadas por perto. Janaína, Tamires e Jéssica sempre buscavam conversar com
ela. No recreio, estava com esse grupo de meninas, conversando, tranquilamente.
Observei Mauro algumas vezes rindo com as brincadeiras dos colegas, mas não tinha
uma boa rede de amizades e em trabalhos em duplas, sentava-se com Gustavo (“bom
aluno”).
Seis crianças, três meninos e três meninas. É evidente que as concepções da
professora sobre masculinidade e feminilidade influenciavam nas suas avaliações,
84
relações e práticas escolares num complexo jogo de conflitos, tensões e contradições no
cotidiano de sala de aula.
Meninos com estratégias de invisibilidade, percebidos como infantis, imaturos e
muito quietos seriam crianças que “erram” por não corresponderem ao que se espera de
um menino “bom aluno”. Podemos encontrar no artigo de Marilia Carvalho (2001) as
seguintes representações de professoras sobre um bom aluno: “bem humorado”, “uma
liderança positiva”, “curioso”, “danado fora da sala de aula”. Em Silva (1999), constatase que os meninos são vistos como “agitados, malandros, dispersivos, indisciplinados,
mas inteligentes”. E essas características levam a uma certa masculinidade aceita e
valorizada na sociedade, tornando-se uma masculinidade hegemônica (Connel, 1995).
Tal como aponta Carvalho, no mesmo artigo citado, os alunos com conceitos não
satisfatórios nessa pesquisa tinham a marca da “apatia”, juntamente com a nãoorganização, desleixo, desinteresse. A professora Alana não utilizava o termo “apático”
para definir esses alunos, mas parecia que o excesso de quietude e não participação nas
atividades denotariam uma invisibilidade muito mais próxima de apatia e longe de uma
agitação “natural” de meninos.
Já as meninas pareciam falhar ao demonstrarem o extremo de dependência,
obediência e quietude. Um outro ponto importante é que pareciam não se esforçar para
superar suas dificuldades de aprendizagem, algo que parece ser esperado de meninas
durante o processo de escolarização. Walkerdine (op.cit.) em estudos sobre garotas
inglesas e Matemática constata que o desempenho escolar das meninas em geral é
percebido como mais ligado ao seu esforço do que a um desempenho excelente.
Entretanto, considerar a oposição menino versus menina não é suficiente para
explicar o fracasso escolar dessas crianças. Há modelos de masculinidades e
feminilidades em jogo nas cenas do cotidiano da turma pesquisada, modelos
experimentados, construídos e reconstruídos por todas as crianças do 4º ano C.
Ademais, podemos concluir que essas seis crianças eram exemplos típicos de
fracassos da escola em ensinar e pareciam desenvolver estratégias de esconder-se da
professora para esconder esse “fracasso”, possivelmente percebido como “culpa” de si
mesmos e de suas famílias.
85
2.3 ENTRE A BUSCA POR “SUCESSO” E/OU A FUGA DO “FRACASSO”
Ao voltar minhas atenções para a presença de visibilidades e invisibilidades na
sala de aula, percebi que os modelos dos ditos “bons” e “maus” alunos e alunas parecem
mesmo ter atitudes ser menos ambíguas, escolarmente determinadas (apesar de
reconstruções permanentes) e certamente os mais visíveis na relação diária com a
professora. Entretanto, se esses modelos de “sucesso” e “fracasso” institucionalizados
pela avaliação de desempenho podem garantir visibilidade, pude perceber no cotidiano
outras crianças que construíam estratégias para tornarem-se “visíveis” ante o olhar da
professora, em trajetórias que jogavam entre os modelos dos extremos. Alunos e alunas
que pareciam apropriar-se parcialmente de determinadas características, numa busca ora
de alcançar “sucesso escolar”, ora de distanciar-se do que seria considerado “fracasso”.
Vê-se, neste item e no capítulo seguinte, uma grande heterogeneidade de
comportamentos entre os 15 alunos e alunas classificados pela professora como
“medianos”, que construíam suas trajetórias escolares de visibilidades e invisibilidades
equilibrando expectativas escolares de aprendizado e comportamento.
Neste item, entretanto, apresentei apenas os alunos e alunas com desempenho
mediano e que são “visíveis” para a professora, ou seja, nove crianças. Divido em três
grupos caracterizados por: a) alunos “medianos” que apresentavam dificuldades de
aprendizagem, mas que buscavam expressar algumas características e comportamentos
que pareciam associar ao que a professora consideraria como “bons alunos”; b) alunas
“medianas” que apresentavam dificuldades de aprendizagem, mas que buscavam
expressar algumas características e comportamentos que pareciam associar ao que a
professora consideraria como “bons alunos” c) duas crianças que apresentavam um
comportamento de resistência à professora, mas que obtinham conceitos razoáveis, o
que as distanciava de uma trajetória de “fracasso” escolar.
A) Legal, interessante, avoado
RODRIGO
Pardo/Branco
-
CÁSSIO
Pardo/Branco
mais de R$ 2.280,00
Recuperação
OTÁVIO
Pardo/Branco
Recuperação
MARCELO Pardo/Branco
Recuperação
86
A professora Alana usou palavras como “avoado”, “legal”, “interessante” e
“esperto” para descrever estes meninos:
O Cássio é um menino interessante porque é um carinha inteligente, mas é
tão avoado e tão sem ligação com o mundo real! Ele tem essa característica
de ser mais influenciável e não tem uma força para sair para um lugar
melhor: vai ficando por questão dos colegas, da maioria, mas é um aluno de
potencial melhor...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
Otávio é um aluno mediano, ele tenta se esconder pra não se envolver
demais. É comunicativo, falante, se dá bem com vários meninos, é um
moleque de 10 anos mesmo. Tá super certinho para sua idade: quer brincar,
jogar bola. Se ele não se sentir muito seguro do que está fazendo, ele não
responde. Tem isso de deixar as coisas de escola pra lá e vai jogar bola,
sabe...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Na aula expositiva, ele [Marcelo] não se concentra, não se envolve muito.
Tem um potencial bacana, mas só responde aquilo que você pergunta sem
questionar muita coisa... A sensação que tenho é que ele não quer se
envolver, só responder o que for realmente pedido. A mãe dele também acha
que ele é muito avoado.
(professora Alana, idem)
O Rodrigo é uma figura, super comunicativo, simpático e doido, assim,
avoado, completamente alheio ao que acontece na escola, por mais que a
gente chame atenção dele, tiro um sarro das respostas que ele dá, às vezes
malucas, porque ele não pensa no que está falando... O Rodrigo é um cara
legal, um aluno também mediano, esperava que ele fosse melhor, pelo tanto
que é comunicativo e esperto, mas também não se envolve com as coisas da
escola, com a realidade, é até meio imaturo. Extremamente sociável, ele está
sempre com as meninas, pra ele não tem isso de idade, de ser menino ou
menina, ele brinca com qualquer um, conversa com todos...
(professora Alana, idem)
São meninos ativos, mesmo que numa quietude aparente (Cássio, Marcelo e
Otávio). Já Rodrigo “aparece” mais por participar das aulas, mesmo com suas respostas
“malucas”, segundo a professora. Alana os percebe como crianças que poderiam “dar
mais”, poderiam ter um desempenho melhor, caso se envolvessem efetivamente com as
atividades e buscassem sentido e significados para o que aprendem:
[Cássio] tem resultados medianos e pra ele tá bom, poderia ser melhor, é
assim pelo que ele apresenta, tem potencial pra algo melhor... Hoje com a
turma um pouco menor, na produção de texto, eu cobrei mais dele e ele foi
lá e escreveu só mais um parágrafo, mas foi um parágrafo que deu conteúdo
para a história, ao final...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
87
Ele [Otávio] faz o que tem que fazer porque a mãe manda e a professora fica
brava. Reclama muito de mim em casa, faz corpo mole, não quer fazer lição
comigo, não quer pensar, quer ir lá cumprir tabela e sair fora. A mãe até
quis mudá-lo de sala, ela achava que ele ia sofrer comigo, porque eu vou
exigir, que eu vou brigar (cria algo muito mais “cabeludo” do que a
realidade). Eu confirmo que sou brava, que quero que ele produza, mas eu
nem pego no pé do Otávio... Mas se ele puder ficar sem fazer lição e contar
uma história em casa, ele conta. Quando eu pergunto alguma coisa em sala
ele não responde. A mãe falou que ele faz a tarefa em casa, mas não me
mostra, principalmente quando a tarefa é aberta e eu pergunto: “o que você
respondeu?” e ele chega a dizer que não fez a tarefa. Se ele não se sentir
muito seguro do que está fazendo, ele não responde.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
O Marcelo também tem problema de concentração. Ele lê muito mal, lê
como se fosse uma criança do 2º ano, silabando. Ele não está preocupado
com o que está escrito no texto, ele se preocupa em ler, em não errar. Não
está preocupado em incorporar a proposta, ele precisa fazer a tarefa logo. É
aquele cara que diz ‘eu sei, mas não sei por que é assim, só sei que é assim’,
sabe... Não tem um tempo curto de concentração, mas uma má qualidade de
concentração. Se você ensina uma técnica pra ele e resolve ‘tá ótimo, eu vou
ficar nela, sem entender muito’...
(professora Alana, idem)
Mas, pra mim, o Rodrigo é um analfabeto funcional: ele lê um texto, mas
não entende absolutamente nada... A impressão que dá é que o texto pro
Rodrigo é uma porção de palavras que não faz nenhum sentido e não
precisa fazer. Lê com fluência, escreve as palavras corretamente, mas
parece que as coisas não precisam ter muita coerência... Parece que o
mundo é assim, não precisa muita explicação mesmo, como o mundo da
televisão onde as coisas acontecem sem muito sentido e tudo parece ser
muito fácil... Adora fofoca sobre famosos, adora Rebeldes73, coisas da
‘modinha’, só. Coisas simples que ele se apropria muito bem! Mas agora
elaborar, pensar é mais complicado... Mas também chega a falar
‘professora, não estou entendendo nada, explica isso direito’. Não é um
cara que vai passar despercebido nunca...
(professora Alana, idem)
Apesar de alheios ao conhecimento, esses quatro meninos pareciam ter
estratégias de aprendizagem no meio escolar que lhes garantiam um desempenho
razoável. A expectativa em relação a eles parecia ser menor do que em relação às
meninas, pois eram, segundo a professora, meninos “legais”, “super certinho para
idade” e o ser “avoado” para os conteúdos escolares não os prejudicava. Mais ainda, o
brincar, se preocupar com os colegas e outras coisas extra-escolares, contribuía para que
não passassem despercebidos nunca para os colegas, talvez, na vida.
73
Grupo musical adolescente mexicano que tem feito muito sucesso entre as crianças. Em vários
momentos de observação, percebíamos as crianças citarem integrantes do grupo em suas falas, trocavam
figurinhas, pôsteres e revistas sobre a banda.
88
Esses meninos são coadjuvantes importantes das cenas observadas de conflitos
de aproximação entre os sexos (Cruz, 2004). Eram os meninos mais interessados em
chamar a atenção das meninas, que brincavam de pega-pega no recreio com elas, que
foram citados, “denunciados” por elas a mim por suas atitudes de brincadeira.
Cássio e Rodrigo ficam se cutucando, como se tivessem se preparando
para uma briga. Rodrigo, rindo, diz: “Na hora do recreio, vou te
pegar”. Cássio chama André e enfatiza: “André, o outro aqui quer
brigar comigo na hora do recreio... demorou!”.
(Caderno de campo, aula de história, 20.06.07)
Luane conversa sobre papéis de carta com Tamires e Daniela,
enquanto faz a atividade. Em outro momento, Laura começa a
maquiar Luane, que ainda não havia terminado a atividade. Um
murmúrio cheio de risos entre Tamires, Cássio, Daniela e Otávio:
parece que há um papel de carta com algo “interessante” escrito, mas
que não pode ser dito. Cássio ameaça entregar para a professora e
negocia com Tamires.
(Caderno de campo, aula de Português, 27.07.07)
Os quatro meninos foram classificados como “brancos’ pela professora Alana.
No entanto, todos se autoclassificaram como “pardos” ao utilizarem as categorias de cor
do IBGE. Rodrigo, no dia do preenchimento do questionário de auto-atribuição de
cor/raça, comentou uma cena de racismo que havia sido noticiada há pouco tempo na
televisão sobre um jogador de futebol. Pelas respostas dos questionários na classe como
um todo, pareceu-me que as crianças já tinham, em algum momento, refletido sobre
questões das relações raciais. E, desse modo, não resistiram em marcar a opção “pardo”
em sua auto-atribuição de cor. Entretanto, a opção de “branquear” seus alunos e alunas
feita por Alana, represente a dificuldade de identificar, falar e pensar sobre a questão
racial no seu trabalho cotidiano.
Cássio, Marcelo, Otávio e Rodrigo parecem representar uma maneira de ser
aluno bem adaptado e mediano, com uma masculinidade “na dose certa”74, que não
aparecem, sem desaparecer por completo. São meninos que parecem estar alheios ao
que acontece na classe, que fazem as tarefas apenas para garantir um desempenho
mínimo, mas não prejudicial.
Ao mesmo tempo, apesar de terem desempenho mediano, são interessados e
participativos em tudo o que acontece na turma, tendo a escola como o espaço
74
Expressão utilizada por Marilia Carvalho no artigo de 2001: “Mau aluno, boa aluna? Como as
professoras avaliam meninos e meninas?”, publicado na Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.9,
n.2, p.567.
89
privilegiado da socialização e nesse quesito eles conseguem muito sucesso. Nos
registros de campo, há várias anotações sobre o aparecer discreto e bem entrosado
dessas crianças com outras na classe e no recreio. Há uma postura controlada e, ao
mesmo tempo, ativa, pois eles procuram não atrapalhar o andamento das atividades em
classe. Não precisam e não querem levar “bronca” da professora por estar fazendo algo
que não seja estritamente escolar.
B) Distraída, interessada em outras questões
LUANE Ì
Branco/Pardo
Recuperação
TAMIRES Ì
Branco/Branco
Recuperação
CAROLINE
Pardo/Preto
até R$ 2280,00
Recuperação
Se os meninos “medianos” para a professora eram descritos com características
positivas, mesmo tendo suas dificuldades de aprendizagem citadas, ao falar sobre as três
meninas “visíveis” e participativas, consideradas de desempenho mediano, Alana
parecia tentar explicar e não entender alguns comportamentos dessas meninas:
A Caroline ‘viaja’, é a ‘viagem’ perdida no espaço. Ela escreve umas
‘coisas’ na prova dela! No dia que vamos ‘tirar as pérolas’, a prova da
Caroline é digna de ser lida. Eu não sei o que acontece com a Caroline. Ela
é muito sapeca, muito divertida. É uma menina super animada, tem muitos
amigos e não ‘leva’ desaforo para casa. Joga futebol, é super ligada como
que no 220V...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
A mãe da Tamires a está levando ao psicólogo, fazendo terapia, mas já pedi
à mãe que não dê remédios. Tem um histórico de anorexia, não come
sentada... É toda preocupada com essas coisas do corpo, mas come errado...
Ela quer comer pirulito o dia inteiro e depois não quer comer comida... Está
sempre com a Daniela, na sombra dela, se deixar a Daniela faz por ela. A
Tamires tem essa coisa da hiperatividade, eu não sei...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
A Luane é uma menina repetente. Na verdade, não sei por que a
reprovaram, já que só reprova quem está muito ruim. Ela é ruim em
Matemática, tem dificuldade com regras, problemas matemáticos...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Caroline, Tamires e Luane, tal como os meninos, não apresentavam destaque por
suas notas (nem excelentes, nem muito ruins) e apresentavam dificuldades de
aprendizagem pontuais. Também como os meninos citados acima, pareciam ter certo
90
sucesso no estar em classe, ou seja, um sucesso na convivência com seus colegas da
turma. Elas receberam mais que três indicações no teste sociométrico, indicando uma
boa rede de amizades. Além disso, essas três meninas eram associadas a grupos de
crianças que apresentavam bom desempenho na escola. Caroline sempre realizava suas
atividades com Leonardo, Luane com Adriana ou Laura e Tamires com Daniela.
Apesar de buscarem “bons alunos” para a realização das atividades escolares,
para a professora, eram meninas que não se envolviam efetivamente com as aulas,
mesmo tentando participar. Aliás, essa característica do aluno ou aluna de não se
envolver, não buscar sentido, não relacionar o que aprende com a realidade foi
freqüentemente encontrado no discurso de Alana, como algo que a angustiava, que
produzia certo descontentamento, como se esperasse sempre mais de seus alunos:
A Caroline tem uma família que ‘cobra’ bastante, quer que ela seja uma boa
aluna. Ela freqüenta direitinho e o pai dela ameaçou tirá-la da aula da
fanfarra, por causa do desempenho dela. Foi difícil fazer com que ele
voltasse atrás, teve uma intervenção minha e teve uma intervenção da Lucia,
professora da fanfarra. Eles não queriam que ela continuasse por achar que
era muita coisa para ela ‘administrar’. Mas, eu fico pensando nisso: a
Caroline não faz muita ligação com o real, está ali porque os pais mandam
e ela tem que obter sucesso. Ela responde as coisas, mas muitas que não tem
nada a ver, parece distraída... A escrita e leitura dela são razoáveis, mas
não faz uma conexão com o real, sabe... Ela ‘viaja’ e tem horas que chega
até ser mais infantil do que deveria para a idade dela.
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
Ela [Tamires] faz a tarefa, na verdade finge que está fazendo a tarefa
melhor possível e quando você vai olhar, não dá pra entender nada. É muito
desconcentrada, faz o que pedi, mas sem preocupação. Também é outra que
no grupo grande não vai. Quando estou numa aula expositiva, ela até
responde coerentemente, presta atenção no que você fala. Mas ela não
elabora, não está envolvida, não está fazendo a tarefa pra elaborar
pensamento melhor, pra corrigir, retomar... Se você pede pra corrigir, ela
não vai lá e se concentra, apaga e faz de novo certo. Se der pra ela não
fazer e me enganar, é isso que ela vai fazer. Ou apaga alguma coisa e deixa
o resto... É mais um descompromisso com todo o processo do que falta de
atenção, só.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Ela [Luane] não tem envolvimento com que está sendo apresentado na
matéria, escreve com palavras rebuscadas pra tentar tapear. Aí eu
pergunto: ‘O que você escreveu aqui?’ ou ‘O que você entendeu do trecho
que leu?’, nada! Parece que está ali pra cumprir ‘tabela’. A gente pede pra
ela corrigir o caderno, de coisas que não estavam bem escritas, ela dá um
jeito de não fazer. E aí faz igual a Débora: ‘borda’ o caderno com caneta
colorida e de gel, sem conteúdo nenhum, nada. Também não é legal a sala
grande pra ela porque faz a linha do ‘vou me esconder atrás da moita’: eu
fico aqui, a professora não me importuna e tudo bem.
(professora Alana, idem)
91
Estas meninas tinham estratégias que as aproximavam de serem “boas alunas”:
realizar as tarefas, buscar participar da aula, ter um comportamento satisfatório. E,
apesar disso, seus conceitos não coincidiam com seus esforços.
No cotidiano apareciam na turma cada uma a seu jeito. Caroline sempre
requisitando a atenção da professora para responder as questões, mesmo com respostas
insatisfatórias. Tamires com sua inquietude, alegre e ativa, comandando muitas
bagunças discretas durante as ausências de Alana na classe. Luane sempre perto de
“boas alunas”.
Na fala de Alana, alguns dos comportamentos de Luane não eram adequados e
justificavam, de certa forma, seu mau desempenho:
Eu vejo a Luane assim como uma pré-adolescente que não questiona, mas
também não cumpre a regra. Ela finge de ‘boazinha’, mas ela ‘tá ligada’ no
que os outros estão fazendo, quem vai beijar quem... Então o foco de
interesse é completamente outro... Mora com a avó, embora a avó seja avó
materna, a mãe não está e aí tapeia a avó também, né... Mas é uma boa
menina, uma menina que não faz mal a ninguém, a não ser pra ela mesma.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
No meu entender, a professora teria uma avaliação diferente entre os
comportamentos de meninas “boas alunas” e de meninas com desempenho escolar
mediano, como Luane.
E a questão da explicitação da feminilidade por meio do
cuidado com a aparência e conversas entre as crianças sobre namoros parecia atrapalhar
mais algumas crianças, já que pude observar que “boas alunas” como Graziela e Laura
demonstravam adesão a padrões de feminilidade tão explícitos quanto Luane, mas não
eram criticadas por Alana.
Ao observar a relação que professoras faziam entre o despertar da sexualidade e
mau desempenho escolar, também com alunas de 10, 11 anos, Marília Carvalho (2001)
constata em seu estudo que mesmo meninas “boas alunas” eram avaliadas
negativamente devido a comportamentos ligados ao despertar da sexualidade, pois “com
a incorporação de uma série de características de uma feminilidade sedutora, estariam
atrapalhando o desempenho escolar.” (p.564). No entanto, com exceção de uma citação
explícita de questões de “namorico” de Daniela (“boa” aluna), que nem chegava a ser
uma preocupação de fato, a professora Alana não avaliava as atitudes de meninas “boas
alunas” como avaliava e se incomodava com atitudes de Luane, Tamires e Débora.
92
Tanto Luane quanto Tamires muitas vezes estavam envolvidas nas cenas que
indicavam uma aproximação entre os sexos e na entrevista em grupo, ficou evidente que
entre risos e denúncias, as crianças marcavam as diferenças e aproximações entre
meninos e meninas:
Eu gosto da sala de leitura, eu gosto de brincar no recreio, de ficar fazendo
lição... O que eu mais gosto é brincar no recreio [Tamires, ao fundo: “de
ficar correndo atrás das meninas”], É... de beijar as meninas ‘zoando’ no
recreio e só!
(Rodrigo, entrevista no grupo dos “alunos medianos”, 08.08.07)
Eu não gosto que a professora grite comigo e não gosto que ninguém
grite...E das brincadeiras sem graça do Rodrigo que fica agarrando as
meninas...
(Tamires, idem)
Ela que correu atrás de mim hoje no recreio!
(Rodrigo, idem)
Resumindo, apesar das diferenças, no que tange à construção de estratégias para
lidar com o cotidiano em sala de aula, tanto os meninos quanto as meninas desse grupo
se caracterizavam por buscarem identificação com certos aspectos relacionados com o
que se espera ser ideal para um “bom aluno”. Identificavam as regras do jogo escolar e
se apropriavam delas de maneira pouco exigente e bastante livre, talvez sem a
expectativa de ocuparem o lugar do extremo “sucesso”.
A interação escolar cotidiana dessas crianças com a professora e demais alunos
parece ser mais um movimento de adaptar-se às regras comportamentais esperadas do
que uma efetiva preocupação com a apropriação de conhecimento.
C) Resistência com conceitos razoáveis
DANIEL ‘
Pardo/Pardo
Recuperação
DÉBORA Pardo/Pardo
até R$ 760,00
-
Meninas “boas alunas” ficam o tempo todo se perguntando entre si:
“Que conta você está?”, “Já tá terminando?” ou afirmando: “Já estou
quase na última!”, “Vou terminar primeiro!”... Como se uns
“controlassem” os outros, como se estivessem competindo. Débora e
Regina conversam o tempo todo. Muitos perguntam e querem saber a
tabuada. As meninas utilizam-se mais de tabuadas impressas no papel.
Julio questiona Natália: “Por que você usa tabuada? Por que não usa
93
a mente?”. Ela não responde e vira para frente. Ele diz que decorou
todas. Depois de um tempo, chama Natália novamente e diz que “Só
quer ver a tabuada do 9”. Ela ri. Débora diz alto: “Terminei!”. Como
ninguém ainda havia terminado e ela está ao meu lado, peço para ver a
atividade. Com a letra caprichada e vários desenhos em volta, as
operações estão incorretas. Pego uma folha e tento explicar,
discretamente, [...] como desenvolver o algoritmo. Pergunto: “Você
entendeu o que eu fiz? Tente resolver.” Ela diz entender, pega a folha,
apaga uma conta, mas não consegue responder. Fica um tempo em
silêncio. Quando a olhei, me falou com a voz baixa: “Eu não sei nada
disso... não entendo... Vou entregar assim mesmo...”. Insisto,
perguntando se ela quer que eu a ensine. Desanimada ela me diz:
“Não adianta, tia, eu não vou aprender isso agora...”.
(Caderno de campo, aula de Matemática, 26.07.07)
Daniel não aceitou participar dos momentos de entrevista propostos por essa
pesquisa. Minha leitura dessa opção é que Daniel me veria como uma pessoa que faz
parte da instituição escolar, mais uma que precisaria saber de suas verdades e
pensamentos sobre a escola. Se o aluno não aceitou ser questionado por mim
formalmente, em contraponto, buscava-me em diversos momentos para compartilhar
sua vivência escolar, ora mostrando sua produção, ora perguntando dúvidas, ou somente
cumprimentando-me no recreio ou avisando-me sobre a falta de sua professora no dia.
Débora, por sua vez, também sempre me procurava para contar alguma coisa,
mostrar suas atividades. No entanto, na entrevista em grupo não falou quase nada e
pareceu vivenciar aquele momento como um horário de brincar, longe do olhar da
professora. Já na entrevista em dupla, pude observar algo que me inquietou bastante.
Apesar de não recusar o convite para a entrevista junto com Natália (ambas escolheramse no teste sociométrico), Débora, enquanto Natália respondia algumas questões,
murmurava que não gostaria de responder tais perguntas.
Após o término da entrevista com Natália, conversei com Débora sobre sua
liberdade em não realizar a atividade. Ela pensou e quando eu imaginei que não
aceitaria, ela disse: “tá bom, mas vou responder tudo ‘não’, tá?” (entrevista em dupla,
29.10.07). Concordei e, aos poucos, estabelecemos um breve diálogo.
Para além de expressar sentimentos de resistência com seus “nãos”, percebi que
algumas questões relacionadas com o cotidiano de aula e sentidos de estar no espaço
escolar a faziam refletir, expressando muito mais sentimentos de dúvida e angústia.
Entre silêncios e frases curtas, Débora se expressava:
Patricia: O que é ser um bom aluno?
Débora: É fazer a lição, responder e não brigar...
94
Patricia: Você gostaria de ser uma boa aluna?
Débora: Gostaria...
Patricia: Por quê?
Débora: Porque é bom, né...
Patricia: Vamos pensar nisso... Se você gostaria de ser uma boa aluna,
por que não consegue?
Débora: Porque eu brigo, fico brincando... Eu bagunço... [fala com a
cabeça baixa e em baixo tom]
Patricia: E por quê?
Débora: Porque sim. [pausa] Eu não sei não... [parecia-me triste]
Débora considerava que não aparecia na classe, tal como Ricardo e Estela. O
aparecer na turma estava, para ela, relacionado com o ter “sucesso” escolar e apesar de
manter conceitos razoáveis, a menina não se considerava uma “boa aluna”.
Tanto Débora quanto Daniel não tinham muitos amigos. Daniel não recebeu
nenhuma indicação no teste sociométrico e Débora, apenas foi indicada por Regina,
com quem compartilhava até os momentos de recreio. No entanto, eram muito
“visíveis” ao olhar de Alana, pareciam a incomodar com suas atitudes, que na minha
avaliação oscilavam entre a busca por esse olhar e a defesa dele. Observou Alana:
Débora até faz alguma coisa, mas não vem me mostrar. Senta no ‘fundão’,
porque ela é grande e também se senta no meio fica conversando, com
brincadeirinhas e as crianças chegam a reclamar dela. Mas também para
ela ‘tá tudo bem’, lá ela pinta, desenha, borda (como a Luane), troca de
lápis, de caneta, mas conteúdo nada... Apesar que acho que ela é melhor de
rendimento que a Luane. Ela guarda o que aprende ‘dentro dela’, como um
‘caixa dois’, e suas respostas não chegam a serem tão absurdas...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
O Daniel tem uma estratégia, mas eu não sei qual é essa estratégia. Não é
uma estratégia de um menino de 10 anos numa quarta série, que quer
brincar, bagunçar ou quer ser o certinho... Ele não quer, está fora de um
padrão. Não faz nada, não porque ele não tenha condições, ele tem. Tem um
bom vocabulário. Não tem dificuldades, mas a escrita dele é ruim porque ele
não exercita...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
A professora, ao perceber que Débora teria uma espécie de “caixa dois” onde
guardava seu conhecimento e não demonstrava, e ao não entender a “estratégia” de
Daniel, parecia reconhecer uma resistência desses alunos à situação escolar. E isso a
inquietava.
95
Percebi, no tempo de pesquisa, que essas duas crianças expressavam
comportamentos de retraimento, de recuo e de resistência. Mas, também, de expectativa.
A menina parecia buscar seu lugar no grupo: estar nas bagunças discretas das
meninas, trocar papéis de carta e até o fato de enfeitar suas atividades com canetas
coloridas eram sinais de que queria ser aceita naquele espaço. No entanto, era fato seu
pouco acolhimento pela turma (professora e alunos) e ela se defendia disso,
demonstrando comportamentos de resistência e rebeldia:
A Débora é outra menina que tem um potencial muito bom, ela sabe ler com
fluência, ela escreve até bem, mas não está nem aí... Ela não tem uma
vontade de aprender, de se sair bem nas tarefas. Se ela puder não fazer
nada, ela não faz... Se eu pergunto algo, ela não responde, não quer saber
de nada... Só quer saber de ‘coisas de mocinha’, está sempre de salto alto,
de brincos, com as unhas pintadas. O que uma menina de 10 anos precisaria
fazer, ela não faz. Está interessada nos namoricos, nos meninos e nada.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Tal como em Luane, o comportamento de Débora de apresentar interesse em
questões ligadas ao despertar da sexualidade e cuidados com a beleza física,
explicitando sua feminilidade, era avaliado como precoce e não condizente com um
bom desenvolvimento nas questões escolares.
Avalio que essa questão da explicitação da feminilidade associada ao despertar
para a sexualidade tem uma marca pejorativa na avaliação da professora
especificamente para as crianças do sexo feminino. Isso talvez porque, como adverte
Carvalho,
o padrão de feminilidade mais valorizado pelas professoras na
avaliação de suas alunas era próximo daquele dominante entre os
setores médios intelectualizados, uma feminilidade que rejeita a
afirmação exacerbada das diferenças de gênero e propõe um padrão de
mulher mais independente que submissa, mas assertiva que sensual.
(2001, p.565)
Já a estratégia de Daniel era de uma resistência mais declarada e incluía a
expectativa de não ocupar um lugar de “fracasso”. Certa vez Daniel foi repreendido por
Alana de forma contundente e, mesmo assim, não fez a atividade solicitada pela
professora.
Passado algum tempo, muitas crianças já haviam terminado a
atividade e Alana disposta a começar a aula de Matemática, pergunta:
“Tem alguém que eu ainda não vi a atividade?”. Ninguém se
manifesta. Ela pergunta de novo. Sabrina e Laís levantam a mão.
Silêncio. “Mais alguém?!”. Nada. Eu sei que Daniel ainda não havia
levado a tarefa. De pronto, Alana ressalta: “Você está fingindo de
96
morto. Deixa você vir aqui!”, olhando para ele. Ela se senta
calmamente. As crianças parecem estar tensas e começam a
aconselhar Daniel: “Daniel, vai lá, a professora tá te chamando!”,
“Vai lá e entrega a folha pra ela!”. Cássio, Luane e Tamires
aproximam-se da carteira dele e conversam. Mas nada, nada faz com
que ele sequer olhe para elas. Continua como se estivesse escrevendo.
[...] Alana vai até a lousa, coloca data e o título da atividade: “Vamos
multiplicar!”. Laura entrega para a turma a folha na qual deverá ser
realizada a tarefa. Daniel que está na primeira atividade, deixa alguns
papéis caírem no chão. Cássio alerta: “É para entregar para a
professora!” [...] A professora está auxiliando Mauro em sua mesa,
quando Daniel decide entregar seu trabalho. Estão próximos à mesa
Denis, Cássio e André. Daniel fica “pulando”, se mexendo, parece
incomodado com a espera. Depois de alguns minutos entrega sua
atividade anterior a Alana. Volta para sua carteira e começa a fazer as
multiplicações.
(Caderno de campo, correção e entrega de atividade de Língua
Portuguesa, 26.06.07)
A resistência era aliada a uma postura de fechamento, pois pouco interagia com
as outras crianças. Surpreendeu-me quando, após um tempo de observação, Daniel
passou a me cumprimentar, fazer perguntas rápidas e demonstrar querer saber minha
opinião sobre suas produções.
Ao falar de Daniel, Alana demonstrou um certo incômodo por não entender, não
conseguir atingir esse seu aluno:
Se eu chamo a família, a família não vem, eu não sei que expectativa essa
família tem dele e ele faz a linha do menino bonzinho e pequenino, mas com
uma fala de adulto. Parece, porque ele não troca nada comigo, quando
solicitado, finge que não é com ele... Se ele vem de touca, coloca na cabeça
pra ficar o mais camuflado possível... Eu não sei muita coisa dele mesmo
porque ele se esconde mesmo. Depois que troquei de lugar, ele está mais
comunicativo com os amigos, mas continua solitário: ele brinca sozinho,
desenha na carteira o tempo todo, com traços escuros... Não sei qual é a
dele... Nas provas ele vai muito mal, não faz nada, porque falta bastante...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Mesmo como um aluno inatingível, Daniel demonstrava, de alguma forma, suas
idéias, produzindo e realizando atividades que faziam com que Alana o classificasse
como um aluno mediano, sem problemas de aprendizagem. Apesar de “ir mal” nas
provas, quando fazia alguma tarefa, fazia de forma satisfatória.
Daniel apresentava comportamentos que iam desde o alheamento até o
enfrentamento da autoridade da professora. Não conversava, passava o tempo fazendo
as atividades escolares, desenhando ou brincando com suas coisas na carteira.
Levantava somente ao sinal do recreio ou de ir embora. No recreio, também pude notar
97
que ficava sozinho, mas aproximava-se de mim para contar algo, sempre que possível.
No sociograma indicou Gustavo e Daniela (“bons alunos”) e Tamires (amiga de
Daniela), crianças que apareciam em classe, muito ativas e isso me faz pensar que havia
uma vontade de interagir com elas.
Após o alerta ético que me proporcionou75, penso que sua resistência tem algo
bem estruturado e é conscientemente realizada. Não quis “falar” na pesquisa sobre a
escola e as relações ali estabelecidas, mas me procurou diversas vezes como alguém
que, de alguma forma, o olhava e poderia dar opinião sobre o seu desenho e produção.
*
*
*
Estas eram, portanto, as crianças “visíveis” para a professora. Havia entre essas
crianças tanto alunos e alunas classificados/as pela professora da turma como “bons”,
“maus” ou “medianos”. E mais que o desempenho escolar, foram as atitudes dessas
crianças que pareciam garantir sua “visibilidade”, até mesmo a atitude de fazer-se
visivelmente ausentes, como no caso de alguns alunos com baixo desempenho escolar
ou ainda, no caso de Daniel, que incomodava muito a professora.
Os modelos extremos de “sucesso” e “fracasso” escolar em jogo nas cenas do
cotidiano da turma estudada, traziam consigo uma série de características que pareciam
marcar o processo de escolarização dessas crianças todas com, ao menos, três anos de
escolarização. Alunos e alunas que reconheciam esses modelos e buscavam adaptar-se
de alguma forma ao que a escola esperava ou não deles.
Ao descrever esses modelos, busquei contestar a naturalização de modelos e
padrões escolarmente aceitos como de “sucesso” ou “fracasso” e mostrar que as
crianças escolhem, constroem e reconstroem esses modelos e oscilam entre o manter
estereótipos e criar novas possibilidades.
Procurei indicar a grande heterogeneidade entre os 27 alunos e alunas que
construíam seu lugar de “visibilidade” ante o olhar da professora. “Bons” alunos e
alunas sabiam que estavam em uma posição privilegiada e buscavam manter esse lugar.
Os alunos indisciplinados pareciam não se apropriar do modelo ideal de menino “bom
aluno” (esperto, inteligente, participante e “legal”) e afirmavam sua masculinidade
expressando um não esforço para aprender, atitudes agressivas e brincadeiras
75
Ao lembrar-me de que ele não gostaria de ser entrevistado.
98
turbulentas em classe e fora dela, muitas vezes repreendidos pela instituição escolar. Os
seis alunos e alunas com problemas de aprendizagem, no seu silêncio, mostravam à
escola que ela não consegue ensinar satisfatoriamente o mínimo esperado nesse início
de escolarização e ainda culpabiliza, ainda, a família por esse “fracasso”.
Sinalizando ainda um fracasso da instituição escolar em ensinar, temos ainda
uma grande maioria de alunos e alunas que eram avaliados com um desempenho
mediano, mas que apresentavam muitas dificuldades no domínio da leitura, da produção
escrita e interpretação de textos. Esses encontravam estratégias para estarem “visíveis’ e
“invisíveis” (capítulo 3) na situação escolar e indicavam que há uma grande
possibilidade de ações frente ao que entendiam ser as exigências da escola.
Por fim, a noção de visibilidade para a professora não é a mesma percebida pelas
crianças. Se para a professora essa noção estaria delimitada na classificação de
desempenho (bons e maus alunos e alunas) e permeada pelas características associadas a
esses extremos (no caso dos alunos e alunas medianos), para as crianças o estar
“visível” na classe estava intrinsecamente associado a comportamentos previstos ou
opostos ao que se espera de um “bom aluno” e, também, pelas relações entre eles
mesmos. Aliás, a sociabilidade entre as crianças pareceu-me como elemento
fundamental nas falas das crianças sobre o “estar” na escola.
Nas entrevistas em grupos pude identificar algumas nuances quanto à
visibilidade por desempenho. Para o grupo dos “bons alunos”, só seriam visíveis na
turma os alunos que participavam efetivamente da aula, interagindo com a professora na
produção de conhecimento. Já para os alunos “medianos” a visibilidade estaria
associada àqueles que aparecessem na classe, seja por participar da aula ou por serem
repreendidos pela professora por indisciplina. Para o grupo de alunos com dificuldades
de aprendizagem, eles seriam o foco de visibilidade da professora, tanto quanto os
“bons alunos”.
Patricia: Quem seriam os alunos que mais aparecem na classe?
Parece que só a gente aparece.
(Julio, em entrevista com o grupo dos “bons alunos”, em 04.08.07)
A Graziela, Leonardo, Adriana, Laura, Natália...
(Luane, em entrevista com o grupo dos “alunos medianos”, em 08.08.07)
O Julio, a Graziela, o André, César, Daniel, Débora...
(Rodrigo, idem)
99
O André porque a professora chama atenção dele. Eu, mais ou menos.
(Otávio, idem)
É... a Débora aparece muito, mas não responde. A Regina não aparece
também não responde. O Mauro aparece, mas ele não responde... É...
[pausa] o César aparece e não responde. O Denis, é... ele aparece? Não
aparece e não responde. A Estela aparece e não responde e a Sabrina. E...
quem mais? [pausa] O Elias não aparece direito e não responde e... são
essas as pessoas que eu reparo mais...
(Caroline, em entrevista com o grupo dos “alunos com dificuldades no
contexto escolar”, em 10.08.07)
No capítulo a seguir, o foco deteve-se nas seis crianças avaliadas pela professora
como alunos e alunas com desempenho escolar mediano, que construíam estratégias de
colocarem-se como “invisíveis” perante o olhar da professora Alana e conseguiam
ocupar esse lugar de “invisibilidade” em sala de aula. Crianças que também jogam com
os modelos propostos, mas de forma peculiar.
100
CAPÍTULO 3
INVISIBILIDADES EM SALA DE AULA: VER E NÃO SER VISTO
A expressão “escolarmente suportável” é utilizada por Bernard Lahire (2004) ao
afirmar que os professores avaliam as crianças de acordo com uma seleção de fatos e
gestos que é pertinente para a escola, e que evocam tanto ou mais o comportamento dos
alunos e suas qualidades morais, que seus desempenhos ou qualidades intelectuais,
principalmente nos primeiros anos de escolarização. Esse autor assegura que:
(...) é mais freqüente encontrar crianças “escolares” ou “escolarmente
suportáveis” no plano comportamental e em “fracasso” escolar, que
alunos “escolarmente insuportáveis” no plano comportamental e com
“sucesso” na escola. (p. 55)
O mesmo pude observar na classe de Alana. A hipótese de que há, no agitado
cotidiano de uma sala de aula, crianças que constroem estratégias de invisibilidades ante
o olhar da professora confirmou-se com as observações. E essas estratégias pareciam
estar pautadas no “ser” um aluno “escolarmente suportável”. Entre o “sucesso” ou
“fracasso” definidos pela instituição escolar, os alunos e alunas que ocupavam um lugar
de “invisibilidade”, eram crianças classificadas com um desempenho mediano e que não
apresentavam questões de indisciplina.
Na tentativa de escutar as crianças, percebi que os sentimentos de medo e
vergonha apareciam de forma muito acentuada ao justificarem os motivos que levariam
a construção de estratégias para colocarem-se num lugar de (in)visibilidade na sala de
aula.
Em pesquisa com alunos e alunas do 4º ano do ensino fundamental sobre o que
as crianças dizem sobre avaliação escolar, Beatriz Cortese (2004) enfatiza que o
sentimento de vergonha aparece no discurso dos alunos e o medo de senti-la “faz as
pessoas refletirem sobre qual a melhor atitude a ser tomada, e isso pode ser feito de
modo a favorecer ou prejudicar o desenvolvimento individual” (p.86). Isso me levou a
pensar o quão negativo seria ocupar esse lugar de “invisibilidade”, por limitar as formas
de expressão de determinadas crianças e, em decorrência disso, poderia prejudicar suas
aprendizagens.
101
Busquei, entretanto, entender mais que avaliar os comportamentos de
“invisibilidade” observados em alguns alunos e alunas. Dois estudos (Canetti, 1995;
Orlandi, 1997) foram importantes para ter um outro olhar sobre o lugar do silêncio, do
segredo e do “não aparecer”:
Aquele que é exteriormente indefeso recolhe-se em sua armadura
interior. Tal armadura interior a protegê-lo da pergunta é o segredo.
Este jaz no interior do corpo qual num segundo corpo, mais bem
protegido; quem se aproxima demais dele há de se estar preparado
para surpresas desagradáveis. Na qualidade de algo mais denso, o
segredo é apartado de seu entorno e mantido numa escuridão que
somente poucos logram iluminar. O que ele possui de perigoso é
sempre colocado acima de seu conteúdo propriamente dito. O mais
importante, o mais denso – poder-se-ia dizer – no segredo é a defesa
eficaz contra toda e qualquer pergunta. (Canetti, p.286, grifos do
autor)
E também:
Significa dizer que o silêncio é garantia do movimento de sentidos.
Sempre se diz a partir do silêncio. O silêncio não é pois, em nossa
perspectiva, o “tudo” da linguagem. Nem o ideal do lugar “outro”,
como não é tampouco o abismo dos sentidos. Ele é, sim, a
possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a
que o situa na relação do “um” com o “múltiplo”, a que aceita a
reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso
sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa.
(Orlandi, p.23)
Com esse enfoque, pude reconhecer que ao optar por estratégias de estarem
“invisíveis” perante o olhar da professora, alunos e alunas da turma pesquisada
estariam, certamente, buscando formas de vivenciar, se proteger e sobreviver às normas
e exigências da instituição escolar. Com isso, teriam um espaço de maior liberdade para
agir, mesmo na quietude, observando sem necessariamente serem observados.
Ao olhar para essas estratégias e procurar compreendê-las, reitero o convite de
Dussel e Caruso (2003) para “ativar nossas forças no sentido de ‘habitar’ o lugar que
apenas ‘ocupamos’” (p.26) em sala de aula, como professores e alunos que sempre
seremos. Em outras palavras, olhar para as cenas do cotidiano escolar com mais
atenção, cuidado e buscar decifrar quais são as estratégias utilizadas, criar outras, recriar
e, assim, entender a diversidade, com o intuito de construir um espaço mais acolhedor
na escola.
102
3.1 “SUCESSO” ESCONDIDO
ELIAS
Pardo/Pardo
até R$ 380,00
Recuperação
REGINA Pardo/Pardo
Recuperação
LAÍS Branco/Branco
até R$ 760,00
Recuperação
Como parte do cotidiano conhecido, os “de sempre” [Leonardo,
Graziela, Luciana, Caroline, Gustavo, Júlio] respondem e, quando se
espera o final da atividade (já que ninguém mais demonstra vontade
de “contar” sua notícia), Alana pede que Laís leia sua notícia. Ela lê
muito baixo. A professora pergunta o tema. Ela tenta ler, mas pára por
um momento [parecia aflita]. Alana, então, pergunta sobre a notícia de
Laura. Laís continua concentrada, parece ter certeza que a professora a
chamaria novamente. A aula é interrompida pela assistente de direção
Mirian e, ao retomar, Alana faz um comentário geral sobre as notícias
e propõe a elaboração de um texto coletivo sobre as notícias
pesquisadas. Novamente, com exceção de Laís, todas as crianças
citadas acima participam efetivamente na construção do texto até o
sinal do recreio.
(Caderno de campo, aula de História, 11.04.07)
Elias, Regina e Laís, são exemplos de alunos que, apesar da quietude e do nãofalar, são avaliados positivamente pela professora Alana e a surpreendem, quando ela
consegue intervir em suas produções ou incitar alguma resposta individualmente.
A professora reconhecia no aprendizado dessas crianças dificuldades pontuais e
por isso os considerava como alunos “medianos”. Ao falar sobre essas crianças,
acreditava que o grande número de alunos por turma dificultava o melhor desempenho
delas:
O Elias é um cara muito tímido, fala muito pouco e fala muito baixinho...
mas é legal. Não é um cara alheio, quando você o solicita está sempre em
contato com o que você falou e tem grande vontade de aprender. Não está
nem aí por ser um cara muito calado. O Elias é um cara que esconde o que
ele pode, tem dificuldade, sim, e tem uma letra difícil de entender, mas
quando você chama e conversa, ele retorna, melhora e pronto: passou
aquilo! Ele também é um cara que precisava de uma turma menorzinha.
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
A Regina é uma menina muito calada... é, assim, parecida com o Elias...
tímida e calada e, provavelmente, continuará assim a vida inteira, não vejo
uma mudança na adolescência, por exemplo. É uma aluna mediana também,
mas se tivesse um grupo menor, ela se colocaria mais, ela renderia mais.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
A Laís é uma menina muito atenta, quietíssima, como o Elias, muito tímida e
não quer se expor. Ela tem vontade de fazer as coisas, mas se sente muito
insegura... É uma menina que quer se envolver, muito criativa e quando se
sente bem se expressa de forma madura. É outra criança que num grupo
menor, se daria super bem... Um dia, chegou em mim e falou que não estava
103
entendendo nada de ‘divisão’, ficamos até depois do horário tirando
dúvidas. Depois perguntei se tava tudo bem e se precisava de ajuda e ela
respondeu: ‘tô indo bem, tá tudo bem’, bem ‘madurinha’...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Essa preocupação com o número de alunos por turma apareceu logo no início
das reflexões de Alana sobre o porquê das (in)visibilidades em sala de aula. No final do
primeiro semestre, houve um período de recuperação de três dias letivos. A professora,
além de convocar os alunos com problemas de aprendizagem e disciplina, chamou
também muitos alunos e alunas com desempenho escolar mediano:
Patricia: Quais eram suas expectativas para as aulas de recuperação?
Nas aulas expositivas, no dia a dia, tem muita conversa e como o grupo é
muito heterogêneo, algumas crianças são engolidas. Optei por chamar para
a recuperação os alunos que eu não tinha muito contato no dia a dia e tinha
dúvida sobre algumas questões. Percebi que o Elias, a Laís se forem
provocados, vão responder, da forma deles. Demoram para responder, mas
com uma resposta mais elaborada. O Otávio, Marcelo e Cássio dispensei já
no final do primeiro dia...
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Com comportamentos adequados de disciplina, ordem e dedicação às atividades,
Regina, Elias e Laís optavam por não se expor como faziam os ditos “bons alunos”. No
lugar de “responder tudo que a professora pergunta” (Leonardo), essas crianças tinham
uma postura tranqüila e sossegada em classe e, no silêncio, demonstravam interesse em
aprender.
Ao contrário do incomodo mencionado por Alana do “estar invisível” de alguns
alunos com dificuldades de aprendizagem, a “invisibilidade” dessas três crianças era
considerada, pela professora, como uma estratégia relativamente positiva, construída
devido ao grande número de alunos. Alana acreditava que, se houvesse uma turma
menor, essas crianças participariam mais da aula.
Para as crianças essas estratégias estavam relacionadas com timidez, medo e
vergonha de errar e, assim, de ficarem expostos. No discurso de Elias a vergonha
aparece como proteção. Proteger-se do olhar depreciativo do outro, do riso que oprime e
que expõe as dificuldades de maneira a estabelecer quem sabe e quem não sabe: “tenho
vergonha [de falar] porque senão todo mundo vai zoar...” (Elias, entrevista em dupla
com Otávio, 29.10.07).
Na turma pesquisada, havia uma grande competitividade de desempenho entre as
crianças. Uns avaliavam os outros e, muitas vezes, procuravam realçar os erros
104
cometidos. Esse comportamento era, de certa forma, estimulado pela professora que,
por exemplo, ao entregar as avaliações escritas das crianças, “retirava pérolas” das
provas76. Mesmo que a professora não falasse de quem era a prova, os “bons alunos”
pareciam ter certeza que não era deles, ficavam tranqüilos e curiosos e o restante da
turma, parecia vivenciar um momento mais tenso.
“Agora vou entregar a avaliação de Ciências. Vai rezando que foi
uma tragédia!”, alerta Alana com mais um punhado de papéis sobre o
braço. Começa retomando as idéias centrais do conteúdo estudado e
Leonardo, Graziela, Julio e Luciana respondem satisfatoriamente.
Graziela demanda: “Professora, por favor, entrega!”, mas Alana
contesta sorrindo: “Vamos ver as pérolas! Tem umas coisas legais!
Preciso ler...” A professora aponta alguns erros que ela percebe como
inexplicáveis. Embora não se fale, as crianças parecem saber quem foi
que errou e as risadas e olhares dirigidos, são inevitáveis. Quem não
ri, parece sentir-se “culpado” e não ousa se expressar. Outras crianças
parecem perceber essa atitude como um momento legal, de
brincadeira. O tempo é curto, já está para tocar o sinal do recreio e,
rapidamente, Alana entrega as provas, já dispensando as crianças para
lancharem. (Caderno de campo, aula de 24.07.07)
Durante as entrevistas com os grupos, os ditos “bons” alunos foram os únicos
que comentaram tais atitudes de depreciação do outro pelo erro:
Mesmo que ela não levante a mão e não bagunce, se tira boas notas
‘aparece’ e errando na prova também...
(Laura, entrevista em grupo dos “bons alunos”, 04.08.07)
É... errando nas provas (risadas), né? (Leonardo, idem)
Patricia: Errando nas provas, aparece? Como aparece?
Com a professora zoando... (Leonardo, idem)
Tem criança que tira notas baixas e aí as pessoas dão risadas. Quando nós
damos risada da pessoa que tirou nota baixa, ela reclama, tem uns que
choram, acham ruim, porque a professora não foi boazinha... Mas elas que
não estudam, não se dedicam mais.
(Adriana, idem)
Se no cotidiano em sala de aula, Elias não se sentia à vontade para perguntar
suas dúvidas ou participar mais das aulas, Alana avaliou que sua participação no
momento de recuperação realizado no final do primeiro semestre foi positivo porque
76
As “pérolas” eram, segundo a professora, a explicitação dos erros mais absurdos escritos nas avaliações.
Alana justificava o uso dessa estratégia dizendo que era uma maneira dos alunos perceberem que erram
por distração, por não prestarem atenção no que é pedido no enunciado.
105
“ele participou bastante”77. Quando perguntado sobre isso, Elias disse: “é legal [falar],
se tivesse menos [crianças] seria melhor para cuidar...”78. Talvez Alana compartilhe da
mesma sensação de que a possibilidade de “cuidar”, de poder olhar para todos os seus
alunos e alunas numa turma menor promova uma aprendizagem mais efetiva.
Os momentos de “visibilidade” dessas crianças por Alana eram raros e a
professora apontou seu descontentamento de não poder auxiliá-los mais:
O Elias tem vontade de aprender, de sair desse lugar... Quando a gente
chama, ele responde, mas tem que estar num grupo menor... Naquele
“fuzuê”, ele não se atreve, mas também não recusa... Precisava de uma
turma menorzinha para poder dar esse espaço pra ele, porque ele é
“engolido” pelas Lucianas, Leonardos e Grazielas...
(professora Alana, entrevista em 17.06.07)
Aquela “muvuca” de sala de aula atrapalha. E quando eu chamo e dou uma
bronca “puxa, Regina, poderia ter feito uma coisa melhor”, ela retoma, faz.
Eu lembro que ela fez uma prova de história e tava muito ruim. Em seguida
fez um ótimo trabalho. Era sobre arqueologia e ela escreveu coisas bem
interessantes. Ela tem uma posição de entender o que eu estou falando, uma
postura de se envolver... mas tem bastante dificuldade em matemática...
difícil atravessar a arrebentação e chegar até mim: passar aquela ‘massa’
de gente, passar por aquela bagunça de todos que vêm até minha mesa...
Mas se eu pergunto alguma coisa, porque percebo que a hipótese dela está
equivocada, ela consegue perceber e retomar.
(professora Alana, entrevista em 24.08.07)
Elias, em sua fala, reconheceu que a professora “é legal, mais ou menos, porque
ela é brava”79 e que o bom aluno “tem que ficar quieto e fazer a lição”, mas não se
considerou um “bom aluno”, apesar de não saber explicar os motivos de se ver como
um aluno “mais ou menos”. Quando questionado sobre quem eram as crianças que não
apareciam na turma, Elias citou Laís e explicou que “ela é quietinha e só”.
Esse aluno parecia associar a visibilidade das crianças ao fazer bagunça. Para ele
os alunos que apareciam eram César, André, Cássio e Daniel. Eram os alunos que mais
levavam bronca da professora no dia a dia. Apesar de ser amigo de dois desses meninos
tidos como bagunceiros - César e André - Elias disse que ele próprio “não aparece
porque é quietinho”. E que tinha que ser “quietinho senão apanha da mãe em casa”. No
recreio, além de estar com os meninos ditos indisciplinados, também bagunçava, mas ao
entrar na sala de aula, voltava a estar quieto.
77
Professora Alana em entrevista no dia 24 de agosto de 2007.
Elias em entrevista em dupla com Otávio, no dia 29 de outubro de 2007.
79
Os trechos de fala de Elias neste e nos dois próximos parágrafos foram retirados da entrevista em dupla,
citada acima.
78
106
É interessante que Elias tenha contado que, no seu primeiro ano na escola foi
“bagunceiro, porque não fazia lição e levava muita bronca da professora”. No 2º ano
aprendeu a ler e ficou “menos bagunceiro”. O 3º ano foi um ano de “muita lição e eu
era quieto... legal”. Destaca-se nesse discurso um “aprender” a ser quieto. Aprender,
seja porque a professora “briga” ou porque a mãe “bate”. E ele percebeu que isso era
bom, era bom ser “quietinho e só” e não aparecer na turma. Associava diretamente o
bom comportamento à idéia de estar próximo ao ideal de bom aluno e podemos
perceber que ele tinha razão até certo ponto, quando Alana afirmou que apesar das
dificuldades pontuais “é um cara legal”.
O aprender a quietude parece-nos estar associado também a uma construção de
certa “invisibilidade”: são crianças que apresentam certas dificuldades no contexto
escolar, em meio à turma não se expõem, raramente perguntam suas dúvidas,
respondem satisfatoriamente ao chamado da professora, criam estratégias de aprender
sem incomodar, não são alvos de preocupação da professora e, por não falarem, não
correm o risco de serem alvos de risos de seus colegas.
Renata e Laís eram meninas quietas dentro e fora da sala de aula. Nas cenas que
observei, Renata sempre estava nas bagunças discretas das meninas, ao cochichar, trocar
bilhetinhos, andar pela classe sem chamar atenção. Também era uma aluna que
apresentava muitas faltas nas aulas. Laís, sempre presente e ao lado de Leonardo e
Caroline, dividia-se entre o momento de classe, dedicado a fazer as atividades com
atenção e o recreio, quando jogava futebol com seus amigos.
Ao falar sobre esse “não aparecer” na classe e não ser “vista” pela professora,
Laís refletiu: “Tenho vergonha, tenho medo de errar palavras, das outras pessoas...”
(entrevista em grupo, 08.08.07). Como se a vergonha viesse mais do medo de errar
frente aos seus pares que do medo da professora, pois a menina dizia gostar da escola,
“de fazer lição” e “não gosto quando a professora falta”. E pude constatar que Alana
tinha uma avaliação bastante positiva de Laís, tanto quanto de Renata, particularmente
quando, no processo de pesquisa, ela foi levada a pensar sobre as possíveis
(in)visibilidades em classe. A professora citava os nomes dessas crianças ao referir-se
aos comportamentos de “invisibilidade”.
107
3.2 “FRACASSO” DISFARÇADO
JANAÍNA
Branco/Branco
até R$ 1.900,00
-
JÉSSICA
Pardo/Preto
até R$ 760,00
-
BIANCA
Pardo/Branco
Recuperação
Se os nomes de Laís, Elias e Renata eram sempre lembrados pela professora
Alana ao pensar nas crianças que estariam construindo estratégias de invisibilidade na
sala de aula, os nomes de Bianca, Janaína e Jéssica não eram sequer citados pela
professora.
Essas três meninas pareciam ter conseguido efetivamente ocupar o lugar de “não
ser visto” por sua professora. Nas observações de campo, Janaína e Jéssica também
“sumiam” para mim no meio dos demais. Mesmo tendo, durante a pesquisa de campo,
o foco para possíveis “invisibilidades”, pouco conseguia anotar sobre essas meninas.
Quase não as via falar, brincar ou sair da carteira. Mesmo depois de algumas idas a
campo, eu ainda tinha dificuldade em observá-las. Eram crianças nas quais eu tinha que
focar o olhar, para tentar perceber algo. Presenciei, em poucos momentos, que Janaína
tentava chegar até a mesa da professora, mas a vi, algumas vezes, desistindo de esperar
e voltar à sua carteira.
Com um comportamento mais ativo, Bianca era uma aluna com uma freqüência
baixa às aulas e isso parecia contribuir muito com a construção de sua “invisibilidade”
em classe. No entanto, quando estava presente, observei-a em movimentos discretos:
muitas vezes de bate-papo com outras crianças, andava pela classe e, vez ou outra, até
chegava à mesa de Alana para perguntar algo.
Avaliadas como alunas com desempenho escolar mediano, essas três meninas
apresentam limitações na aprendizagem dos conteúdos escolares, de forma mais
acentuada que os três colegas descritos no item anterior. Todavia, é importante destacar
que apenas Bianca foi convocada para as aulas de recuperação no final do 1º trimestre,
lembrando que a professora afirmou ter convocado muitas crianças, inclusive aquelas
com as quais ela não tinha muito contato no dia-a-dia e carregava dúvidas.
Nas falas sobre essas crianças, a professora apontou questões pessoais e de
ordem familiar, que justificariam seu desempenho na escola:
Na Bianca eu sinto uma falta de compromisso também, mas não é só dela, é
uma dinâmica da casa. Ela foi minha na segunda série e sempre teve esse
número de faltas... Toda volta de feriado, ela não volta. Depois das férias
ela não aparece na primeira semana, parece que a família sempre se
108
organiza pra viajar quando não é mais hora de estar viajando... A Bianca se
‘vira’ sozinha! Quando ela tava na segunda série meu primo passava para
trabalhar e via a Bianca fechando o portão sozinha, portão grande, semiautomático. Ou seja, ela saía sozinha, ninguém a acompanhava, vinha
sozinha. Então, assim, uma coisa meio que de sobrevivência.
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
A Janaína é uma menina que caminha na linha do ruim, sabe... Mas ela não
é tão ruim, já foi minha aluna. Ela é repetente, ela melhorou bastante desde
que eu a deixei na segunda série, ela tava recém alfabetizada. Então ela
evoluiu bastante, mas ela escreve e tem bastante erro de ortografia por
troca de letra de t por d, f por v... É uma menina muito quieta, calada, não
fala o que pensa, o que vê, nem o que sente... Nunca fala e nunca falou, nem
na outra série, que foi aluna minha, mas tem demonstrado um bom
rendimento, melhor do que eu esperava... O relacionamento dela em casa é
bem complicado. O pai dela tinha uma família e depois fez outra família e já
é um senhor já, um cara mesmo de idade... e ela me contava umas histórias
esquisitas. A irmã da Janaína andava com uma foto da mãe e era público
essa história da menina que ficava na sala chorando, tirava a foto da mãe e
ficava beijando... Quando os pais se separaram ela falou ‘graças a Deus,
não preciso mais dividir minha mãe com você’! E a Janaína ficava
acabando na rabeira dessa história.
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
A Jéssica também foi minha na segunda série e troca um pouco as letras.
Mas eu acho, assim, que a Jéssica é mais pro lado de ser ‘malandra’,
malandragem. Às vezes ela anda com algumas garotas que gostam de fazer
um certo movimento meio ‘fora da lei’. Mas ela é uma excelente menina, de
coração mesmo, tem uma família super preocupada. Ela vive com a avó, ela
e o irmão gêmeo. A mãe e o pai só vêm final de semana. Tem um bom
convívio com os pais e eles têm função de mãe e pai mesmo, embora a avó
seja quem manda no pedaço...
(professora Alana, entrevista em 17.08.07)
O “estar invisível” ante o olhar da professora, a quietude, o silêncio refletiam
nesses casos um comportamento permeado por algumas estratégias de sobrevivência na
aula: não perguntar dúvidas, ter uma desatenção silenciosa, copiar muitas vezes
atividades dos colegas, entregar somente aquilo que era extremamente cobrado. Essas
estratégias pareciam ser percebidas de formas diferentes pela professora ao falar de
cada menina:
Também aquilo de não ter muita vontade de fazer [a demanda escolar]. A
Bianca faz porque tem que fazer, porque eu vou ficar brava e já que ela tá
ali, faz. Mas depois ela sai e acabou. Não tem mais o que fazer. Tem um
bom potencial e ela pode responder melhor, mas para ela tanto faz. “Fez a
lição de casa?”, eu pergunto. “Não... porque eu esqueci...” E, quando faz,
parece não ter aquela vontade de fazer, não tem empenho, não se preocupa
em fazer uma verificação, para ver se tá certo e... ela vai indo assim: se
bater um vento ela vai, se não bater, fica...
(professora Alana, entrevista em 27.06.08)
109
Mas, assim, a Janaína tem muita dificuldade e ela até vem me perguntar
como faz, mas naquela bagunça da sala, muita gente, logo já vem outra
pergunta em cima... Então, se ela vê que tem um espaço aberto, ela vem e
pergunta. Se não, se retrai um pouco... Até sinto que ela tem necessidade de
fazer algo melhor, de tentar bastante, de acertar, sabe...
(professora Alana, idem)
A Jéssica poderia ser até melhor, porque ela é bem devagar... Apesar que eu
até me surpreendi agora na quarta série... Ela está bem melhor do que tava
na segunda. Em leitura e escrita eu sinto a Jéssica muito insegura, mas
agora no final do semestre ela tava com uma boa produção de texto, livre,
boa mesmo...
(professora Alana, idem)
A discrição nas atitudes em classe, o fazer sem tanta cobrança, uma nãoexpectativa da professora de um bom desempenho, pareciam ser marcas dessas meninas
que não apareciam no cotidiano, apesar de estarem ali. Certamente não incomodavam e
talvez por isso estivessem quase “invisíveis” no meio de um todo mais “visível”.
Esses comportamentos foram explicados por Janaína e Bianca como opções no
contexto escolar. As duas meninas, durante a entrevista em dupla80, apresentaram
discursos bem conscientes sobre qual deve ser o comportamento em classe. Janaína,
vista por Alana como uma criança que não fala, surpreendeu-me durante as entrevistas,
com suas respostas completas e coerentes sobre o que eu perguntava.
Desde o primeiro ano do ensino fundamental nessa escola, as duas meninas
contaram boas lembranças de sua vida escolar. Bianca com o seu “foi divertido e legal”
e Janaína com “a gente aprendeu bastante”, relataram que foi no terceiro ano que “as
coisas começaram a ficar difíceis”.
O terceiro ano do ensino fundamental parece ser decisivo para aprender a “ser
aluno” para algumas crianças. Na outra entrevista em dupla, com alunos considerados
com desempenho mediano, Elias disse que foi aprendendo a ficar quieto, porque “é
bom, né?” (entrevista em 29.10.07) e Otávio contou que a professora era brava e tinha
que “ficar quietinho” (idem). Se Janaína e Bianca já eram de antemão quietas,
perceberam que as exigências quanto à aprendizagem neste ano aumentavam:
Patricia: E como foi o terceiro ano?
Aí já começou a ficar muito difícil porque já tinha prova, né... e a professora
já brigava com a gente.
(Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07)
80
Entrevista em dupla com Janaína e Bianca, realizada em 29 de outubro de 2007.
110
A terceira série foi um pouco difícil: a gente já fazia prova e a gente já tava
pra ir pra quarta série e era difícil...
(Janaína, idem)
Quando perguntadas se elas se consideravam “boas alunas”, a resposta variou
entre “não sei” (Janaína) e “mais ou menos” (Bianca). E consideravam que ser “bom
aluno”:
É saber das coisas, se comportar bem na aula... e ... acompanhar a
professora e ajudar outros alunos que precisam...
(Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07)
É fazer as lições, prestar atenção nas aulas, não conversar, responder as
perguntas que a professora faz, ah... é isso.
(Janaína, idem)
Retomei a questão ao perguntar por que elas não se consideravam “boas alunas”:
Ah, eu não acompanho a professora, sabe? A professora está na página 50 e
eu na 41...[risos]
(Bianca, entrevista em dupla, 29.10.07)
Patricia: E por quê?
Porque às vezes eu não quero, eu não acho legal. Aí eu vou virando as
páginas e se tá interessante o que a professora tá falando eu viro lá naquela
página...
(idem)
Eu não converso na aula, mas eu tenho vergonha, entendeu? Vergonha de
falar, de falar errado, de falar baixo... Aí todo mundo vai rir...
(Janaína, idem)
De certa forma, parece que Bianca tinha uma liberdade maior para lidar com as
situações do cotidiano escolar. “Desaparecer” do olhar de controle da professora trazia
vantagens para lidar até com suas dificuldades no contexto escolar. Ela admitiu não ser
“muito boa”, mas que faltava porque não gostava de ir “a escola às segundas-feiras”.
Ao falar de dificuldades, Bianca afirmou que no 4º ano “a coisa começou a
engrossar, porque tem Prova São Paulo e tem que estudar muito” e terminou dizendo
que, apesar das dificuldades, gostava da escola porque “eu acho legal... a gente brinca
de ‘stop’, fica ‘viajando’...”
Por outro lado, Janaína disse ter muita preocupação com seu desempenho. Ao
contar os motivos de sua reprovação conseguiu denunciar além de suas próprias
111
dificuldades, ou melhor, justificar suas dificuldades por condições insatisfatórias de
aprendizagem:
Eu repeti de ano porque a sala era muito barulhenta e a professora só tirava
licença e a gente não aprendia nada. Com a outra professora a sala ficava
quieta e a gente aprendia. Os bagunceiros a professora deixou passar... E a
minha mãe conversou com a professora que era pra eu repetir o ano.
(Janaína, entrevista em dupla, 29.10.07)
No entanto, por acreditar que teve boas oportunidades de aprendizagem no ano
de 2006, quando cursou pela primeira vez o 4º ano do ensino fundamental, Janaína
parecia crer que suas dificuldades eram inerentes a ela, como se admitisse sua culpa nas
dificuldades de escolarização. Ao falar de como estava sendo o atual 4º ano, comentou:
Tá sendo um pouco difícil, porque tem muita tarefa e lições. Quando eu não
consigo fazer, a professora fica brava, porque ela ensina, sabe? Eu não
consigo fazer fração, aí é ruim, né? Porque não entra na minha cabeça. Eu
peço pro meu pai explicar e quando chego na escola a professora diz que é
de outro jeito...
(idem)
Jéssica, por sua vez, como todas as demais crianças “invisíveis”, afirmava:
Tenho vergonha que a professora fale alto e todo mundo vai ficar rindo... Aí,
fico quieta porque tenho medo que a professora vai brigar, essas coisas...
(entrevista em grupo com alunos “medianos”, 08.08.07)
Não posso afirmar que essas meninas “fracassavam” na escola. Quando remeti
ao título “fracasso” disfarçado meu objetivo foi diferenciar que, apesar de terem
estratégias de “invisibilidade” como as crianças do item anterior (“sucesso” escondido),
essas estratégias pareciam estar mais próximas de não dar visibilidade às suas
dificuldades escolares reais. Isto porque, a meu ver, os fatos de Janaína e Jéssica sequer
terem sido chamadas para o período de recuperação e do número excessivo de faltas às
aulas de Bianca, podem sinalizar que, de alguma forma, elas mesmas teriam que se
responsabilizar pelo que aprendiam ou não na escola.
Por outro lado, ao “disfarçar” suas dificuldades essas crianças pareciam
conseguir uma liberdade maior naquele contexto. Cumpriam o que se espera de
comportamento de um aluno ideal e lidavam com suas dificuldades buscando não se
expor, evitando o olhar judicativo da professora e, principalmente de seus pares.
*
*
*
112
O medo de sentir vergonha apareceu nas falas de algumas das crianças do 4º
ano C, principalmente aquelas que nesse trabalho foram analisadas como tendo
estratégias ativas de construção de invisibilidades ante o olhar da professora, uma
postura que foi construída e alicerçada ao longo de sua trajetória escolar.
Acredito ser fundamental pensar nas relações que se estabelecem em sala de aula
entre alunos, alunas e professores. As crianças também disseram que gostariam de falar
mais, se houvesse possibilidade e espaço para isso:
Patricia: Você gostaria de participar mais da aula?
Elias: Sim, mas eu tenho vergonha das pessoas rirem...
Patricia: E como foi na recuperação, com menos alunos na classe?
Elias: Foi legal... Falei mais com a professora...
(entrevista em dupla, outubro de 2007)
Justificar o não falar, o não aparecer, pelo medo do olhar do outro, nos faz
pensar que a escola tem incentivado a valorização de um comportamento de retraimento
que pouco ou nada contribui para a aprendizagem efetiva de muitas crianças. A escola
longe de ser apenas o espaço de ensino-aprendizagem, é um espaço permeado por
relações de poder. Além de eventuais dificuldades de aprendizagem, esse
comportamento pode gerar muito sofrimento e isolamento frente aos colegas:
Num clima de tranqüilidade, duplas vão se formando e as crianças
conversam, enquanto Alana entrega a questão que deverá ser
respondida por cada dupla. Débora fica sem dupla, vai até a mesa da
professora e volta muito chateada, algumas lágrimas caem. Senta-se e
abaixa a cabeça, fica assim por um tempo e depois começa a realizar a
atividade. O barulho aumenta com a formação das duplas.“Vou
esperar vocês pararem de falar...”, alerta Alana com a voz baixa. De
repente, o silêncio ecoa. Depois que ela termina de explicar
novamente qual será a atividade, as crianças voltam a conversar, mas
muito baixo, cochichando. [...] Quando muitas crianças já terminaram
a atividade e há movimentação na classe, Sabrina e Janaína vão
conversar com Débora, que estava cabisbaixa. Conversam baixinho e
percebo até sorrisos entre elas.
Penso que medo/vergonha, retraimento/silenciar estão menos associados a
comportamentos individuais e mais relacionados com a forma de exercício de poder que
tem privilegiado certos comportamentos e atitudes, classificando os alunos e alunas e, a
meu ver, consolidando trajetórias escolares de “sucesso” e “fracasso” escolares.
Retomando Sirota (1994):
113
Na medida em que todo processo de aprendizagem passa por um
processo relacional, este pode se situar na oposição ou na
concordância, mas nunca indiferentemente. Essa interação entre o
saber e o relacional determina tanto as possibilidades de aprendizagem
do aluno quanto às condições de ensino do professor. (p.58)
É nesse sentido, que proponho um olhar mais atento às práticas cotidianas de
sala de aula, às formas de avaliação implícitas e explícitas e às relações entre as crianças
que muitas vezes reforçam a competição e uma classificação “natural” entre os “bons” e
“maus alunos”. São essas práticas que produzem, a meu ver, um não falar justificado
por sentimentos de medo e vergonha.
Contudo, é preciso atentar ao fato de que, se algumas crianças fogem do padrão
socialmente aceito do que vem a ser um “bom aluno” (participativo e visível), alunos e
alunas menos visíveis ao olhar da professora utilizavam estratégias relacionadas à
proteção e defesa dessa estrutura classificatória da escola e construíam um espaço de
maior liberdade e sobrevivência em sala de aula. Retomo aqui, as observações de Elias
Canetti (1995) e Eni Orlandi (1997) acerca dos mecanismos de defesa, proteção,
silêncio e segredo, que no contexto escolar estudado, traduziam-se bem como
estratégias de “invisibilidade”.
Nesta perspectiva, essas crianças “invisíveis” ao olhar da professora puderam
constituir-se como alunos “sem problemas”, no silenciar e não aparecer (nem sempre
sem sofrimento), tendo suas trajetórias escolares menos controladas e, assim, com mais
liberdade pra lidar com suas dificuldades escolares.
Enfim, contrastando com um olhar essencialmente negativo sobre a possível
construção de invisibilidades escolares, ao me deparar com as observações e falas das
crianças, pude ver que suas estratégias são positivas, à medida que a escola como está é
um espaço pouco acolhedor para lidar com configurações plurais de sujeitos e situações
no cotidiano.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a
fazer outras maiores perguntas.”
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
A busca pelo decifrar, descrita na introdução deste texto, mostrou-me que há
muito mais perguntas que respostas no final desse trabalho.
Ao tentar decifrar as cenas de (in)visibilidade daquele cotidiano escolar,
estruturei minha análise intercalando cenas do cotidiano, reflexões da professora sobre
seus 33 alunos e alunas com falas das crianças entrevistadas. Debrucei-me sobre esse
material, procurando dividi-las em grupos baseados no que considerei “sucesso” e
“fracasso” escolar naquele contexto. E, a cada um destes grupos, propus um olhar a
partir da intersecção das análises baseadas nas relações de gênero e raça social.
As observações na classe de Alana e as entrevistas com ela e seus alunos me
permitiram colocar em questão uma idéia linear de “invisibilidade”, mostrando que as
crianças encontram múltiplas formas de sobreviver à dinâmica escolar, tornando-se
mais ou menos visíveis ao olhar da professora, no contexto de sala de aula.
Para além da “visibilidade” ativa dos alunos e alunas participativos e com bom
desempenho escolar e dos alunos com problemas de indisciplina, havia ainda muitos
outros alunos e alunas “visíveis” para Alana por conseqüência de seu desempenho
escolar, mas que se utilizavam tanto de estratégias de visibilidade quanto de
invisibilidade em sala de aula. Havia o grupo das meninas “boas alunas”, quietas e com
uma boa produção escolar, o grupo dos alunos e alunas com dificuldades de
aprendizagem que buscavam (sem sucesso) um lugar de invisibilidade para não expor
seu “fracasso”.
Já os alunos e alunas que eram considerados com desempenho mediano e
“visíveis” foram, neste trabalho, por sua vez divididos em três subgrupos. Os meninos
“medianos” disciplinados e considerados pela professora com potencial de
aprendizagem. As meninas “medianas” e “visíveis” com uma bagunça discreta e busca
por estar perto de “bons alunos” para realizar suas atividades. E, também, a resistência
exercida e sofrida de Débora e Daniel na classe, mas que conseguiam manter conceitos
satisfatórios nas suas atividades escolares.
115
Ainda entre a heterogeneidade dos alunos “medianos”, há dois grupos que eram
considerados “invisíveis” pela professora Alana. Um grupo de alunos e alunas que na
sua quietude, timidez, não expressavam dúvidas ou comentários sobre as aulas,
mantinham-se longe do olhar da professora e conseguiam manter um desempenho
razoável. E um outro grupo de meninas que, além das características do grupo anterior,
ainda não eram vistas pela professora com potencial para alcançarem “sucesso” escolar.
Esses dois grupos assinalam que as estratégias de invisibilidades construídas ao longo
de suas trajetórias de escolarização tinham como grande influência os sentimentos de
medo e vergonha vivenciados no espaço escolar.
Dito isto, avalio que parte das estratégias escolhidas pelas crianças decorre das
múltiplas dificuldades descritas por Alana no trabalho escolar: classes grandes, falta de
planejamento, ausência de um trabalho sistemático de reforço. E resultam em barreiras a
mais, interpostas ao pleno desenvolvimento intelectual de parte das crianças. Outra
parte, dado o caráter classificatório e pouco acolhedor da instituição escolar, são
estratégias de liberdade e menos controle que algumas crianças criavam.
Por fim, parece-me que há uma lição aprendida e seguida por grande parte dos
alunos e alunas da turma pesquisada. É a idéia de que “bom aluno é aquele que não dá
trabalho”81, que aprende a ser “escolarmente suportável”. Essa “lição” é vivenciada à
revelia do discurso explícito da escola sobre alunos participativos e é coerente com a
postura das professoras sobre “alunos copistas”, tão criticada pela professora Alana.
Gostaria de retomar aqui o incômodo inicial das professoras que me
questionaram sobre qual seria meu objetivo com a pesquisa sobre possíveis
“invisibilidades” escolares. Estaria eu buscando trazer mais um problema para a grande
demanda escolar, fazê-las pensar em quem é quieto e não dá trabalho?
A professora Alana lembra que foi por sentir essa resistência das outras
professoras que decidiu aceitar que a pesquisa fosse realizada em sua turma:
Comecei a entender como as coisas funcionam, quando você veio propor a
pesquisa... As pessoas se sentem ameaçadas... Dizer que “enxerga” todos?
Não enxerga, não tem como enxergar todas... Com essa quantidade de
crianças... (entrevista em 24.08.07)
Em seguida diz que os alunos “copistas” seriam as crianças que, ao não se
apropriar efetivamente do conteúdo, acabam realizando as atividades de forma
81
Otávio (aluno com desempenho mediano), em entrevista no dia 29 de outubro de 2007.
116
mecânica, tendo bom comportamento e uma boa apresentação de atividades e cadernos
e isso a incomodava. Apesar disso, reconhecia que essa postura seria de alguma forma
valorizada, por ser uma postura que não atrapalha a dinâmica de aula e gera uma
produção, ainda que apenas copiada, por parte das crianças.
Seria essa uma estratégia das professoras incentivarem a postura mais quieta e
não-questionadora das crianças para, assim, lidar com o grande número de alunos em
classe? Seriam essas crianças “escolarmente suportáveis” no plano comportamental,
mas que não atingem o “sucesso” escolar em termos de aprendizagem?
Ao contrário do discurso pedagógico moderno do modelo único do “aluno
independente-responsável” (Ramos do Ó, 2007), a escola no cotidiano teria um outro
modelo também valorizado, ao lado do bom aluno participativo, pois a instituição
também não é linear e carrega paralelamente múltiplos modelos contraditórios. Esse
modelo do aluno quieto e que produz um mínimo, talvez seja “mais antigo”, não
explicitamente dominante, mas estava disponível e foi aprendido e apreendido por parte
das crianças da turma do 4º ano C.
*
*
*
As considerações finais dessa dissertação, ainda que provisórias, indicam
caminhos que podem contribuir para os estudos que enfoquem a questão da qualidade
de ensino, produzida no cotidiano escolar. As perguntas formuladas procuram trazer um
olhar sobre as relações produzidas entre professora e alunos em sala de aula, na
construção de trajetórias de e entre “sucesso” e “fracasso” escolares.
Nesse sentido, fica relativamente claro que o que está em jogo, em última
instância, é a reflexão sobre a tensão entre professores que não têm condições efetivas
de interferir na aprendizagem e seus alunos e alunas que constroem estratégias mais ou
menos eficazes para estar (in)visíveis ao olhar desses professores, no pouco acolhedor
espaço de sala de aula.
Considero importante destacar que as reflexões contidas neste texto surgiram
durante o processo de imersão no campo e análise do material coletado. Como alerta
Inês Teixeira (2003) é preciso reconhecer a incompletude e “considerar a relatividade e
provisoriedade dos conhecimentos produzidos, por serem eles uma das várias formas de
se pensar e de se interrogar o mundo da educação, nada tendo de absoluto ou acabado”
(p.101)
117
Quem sabe esse não seja o desafio que nos é imposto: reconhecer essa
incompletude de nossos estudos, formular hipóteses e enunciar respostas prováveis e
provisórias às questões apresentadas, esperando ao final, releituras e o surgimento de
novas perguntas.
118
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121
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122
ANEXOS
123
ANEXO A – Roteiro semi-estruturado das entrevistas realizadas com a professora
I. Questões iniciais:
Nome e idade; Local de nascimento; Estado civil; Número de filhos; Nível de
escolaridade dos pais; Formação acadêmica; Formação profissional; Tempo no
magistério; Outros trabalhos.
II. Temas específicos:
1) Caracterização da turma
•
Fale-me do seu dia-a-dia como professora na turma do 4º ano. Pontos positivos e
negativos.
•
Fale-me sobre a turma no geral.
•
Fale-me um pouco de cada aluno e aluna da turma.
•
De maneira geral, quais são suas expectativas de trabalho em relação aos seus
alunos?
2) Bom aluno, aluno com dificuldade
•
Em sua opinião, o que é ser um bom aluno ou aluna? Quem seriam os bons
alunos da turma?
•
No contexto escolar, que tipo de dificuldade os alunos podem apresentar?
•
Por favor, indique-me alguns nomes de crianças com dificuldades na turma.
•
Quem foram os alunos convocados para a recuperação no final do 1º semestre?
Como avaliou essa convocação? Quais os resultados?
3) Visibilidade e invisibilidade no cotidiano escolar
•
Quem são os alunos que mais aparecem no cotidiano da classe? Quais
comportamentos e atitudes geram essa visibilidade?
•
Por favor, indique-me alguns nomes de crianças que aparecem na classe.
•
Por outro lado, parece-me que algumas crianças desaparecem no cotidiano da
classe. Em sua opinião, isso acontece? Quais comportamentos e atitudes geram
essa invisibilidade?
•
Por favor, indique-me alguns nomes de crianças que “não aparecem” na classe.
124
ANEXO B – Roteiro semi-estruturado das entrevistas realizadas com as crianças
em grandes grupos
Temas específicos: Quando eu falei que iríamos conversar sobre diferenças na classe, o
que vocês imaginaram?
•
O que mais gosta na escola?
•
O que não gosta na escola?
•
Fale-me sobre sua turma.
•
Fale-me sobre sua professora.
•
Há diferenças entre meninos e meninas na escola? Conte-me como você percebe
essas diferenças no cotidiano?
•
Há outras diferenças entre os alunos na classe? Quais? Fale-me sobre situações
que você vivenciou?
•
O que é ser um bom aluno e mau aluno?
•
Quais são os comportamentos e atitudes de um bom aluno?
•
Existem alunos que mais aparecem na classe? Por que isso acontece?
•
Por outro lado, existem alunos que não aparecem na classe. Em sua opinião, por
que isso acontece?
125
ANEXO C – Roteiro semi-estruturado das entrevistas realizadas com as crianças
em dupla
I. Questões iniciais:
•
Nome, idade e série.
•
Onde você nasceu?
•
Qual a sua cor?
•
Com quantos anos começou a freqüentar a escola?
•
Em qual escola fez o 1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental?
II. Temas específicos:
•
Fale-me um pouco de como foram as suas primeiras séries.
•
Conte-me o que recorda de experiências boas ou não dos anos anteriores do
ensino fundamental.
•
Conte-me como se sente aqui na escola hoje. Qual é a importância da escola no
seu dia-a-dia?
•
O que mais gosta na escola? O que não gosta?
•
Fale-me sobre sua turma.
•
Fale-me sobre sua professora.
•
Há alguns alunos que mais aparecem na classe. Quem são eles? Por que isso
acontece?
•
Por outro lado, alguns alunos não-aparecem na classe. Quem são eles? Por que
isso acontece?
•
Conte-me como você percebe essas diferenças no cotidiano?
•
Há outras diferenças entre os alunos na classe? Quais? Fale-me sobre situações
que você vivenciou?
•
Você se considera um bom aluno? Por quê?
•
Quem são os bons alunos da sua turma?
•
Quais são os comportamentos e atitudes de um bom aluno?
•
Quais são as dificuldades que você sente no contexto escolar?
•
Para você é importante estar na escola? Por quê?
•
Quem o/a acompanha nas tarefas escolares?
126
ANEXO D - Tabulação dos dados socioeconômicos
Nº escola82/
nome fictício
Idade
Quem
acompanha?
Escolaridade
84
mãe
Escolaridade
pai
1º ano
Ensino
Médio
Ensino
Médio
Escolaridade
outro
Préescola85
Renda
familiar86
Sim,
pública
Entre 2 e
3 SM
83
10
Pai
01
Quantos
vivem dessa
renda?
Mais de
5 pessoas
Benefício
do
Governo
não
Residência
Casa
alugada
2 quartos
1 banheiro
1 automóvel
0 telefone fixo
própria
3 quartos
1 banheiro
0 automóvel
1 telefone fixo
ou até
R$ 1139,00
André
10
02
Adriana
82
Mãe
1º ano
Ensino
Médio
Ensino
Superior
não
Até 1 SM
ou até
R$ 380,00
4 pessoas
não
Equipamentos
1 geladeira
0 forno
microondas
1 máquina lavar
2 televisões
0 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
1 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
0 máquina lavar
2 televisões
1 rádio portátil
1 aparelho som
0 aparelho DVD
0 tel. celular
1 computador
0 impressora
O “número escola” refere-se ao número que consta na lista oficial de chamada da turma.
Da questão: “Quem acompanha a criança nas atividades escolares em casa?”
84
Escolaridade máxima concluída por cada pessoa (mãe, pai e/ou outra pessoa que acompanhe, em casa, a criança nas atividades escolares)
85
Da questão: “A criança freqüentou a pré-escola? Se sim, a escola pertencia à rede pública ou rede privada?
86
Nas alternativas do questionário constam valores em reais, baseadas números de Salários Mínimos (SM). Para facilitar a leitura da tabela, opto aqui por contabilizar em
Salários Mínimos. O valor de um Salário Mínimo no mês de junho de 2007 é de R$ 380, 00 (trezentos e oitenta Reais).
83
127
Nome
Idade
10
Quem
acompanha?
Mãe e
pai
Escolaridade
mãe
Escolaridade
pai
Ensino
Médio
Ensino
Médio
Escolaridade
outro
Préescola
Renda
familiar
Sim,
pública
Entre 5 e
6 SM
03
Quantos
vivem dessa
renda?
5 pessoas
Benefício
do
Governo
não
Residência
Casa
própria
3 quartos
1 banheiro
0 automóvel
1 telefone fixo
alugada
3 quartos
1 banheiro
0 automóvel
1 telefone fixo
própria
2 quartos
1 banheiro
0 automóvel
1 telefone fixo
ou até
R$ 2279,00
Caroline
10
Mãe e
pai
Ensino
Fundamental
2º ano
Ensino
Médio
Sim,
pública
05
Mais de
6 SM
5 pessoas
não
mais de
R$ 2280,00
Cássio
10
06
César
128
Mãe
Ensino
Médio
Ensino
Médio
Sim,
pública
Até 1 SM
ou até
R$ 380,00
3 pessoas não
Equipamentos
1 geladeira
1 forno
microondas
0 máquina lavar
2 televisões
1 rádio portátil
1 aparelho som
0 aparelho DVD
0 tel. celular
1 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
3 televisões
1 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
0 máquina lavar
1 televisão
1 rádio portátil
1 aparelho som
0 aparelho DVD
0 tel. celular
0 computador
0 impressora
Nome
Idade
10
Quem
acompanha?
Escolaridade
mãe
Mãe
Ensino
Médio
Escolaridade
pai
Escolaridade
outro
Pré-escola
Sim,
pública
Renda
familiar
Até 1 SM
ou até
R$ 380,00
07
Quantos
vivem dessa
renda?
Benefício
do
Governo
Mais de não
5 pessoas
Residência
Casa
Própria
(dos avós)
1 quarto
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone
fixo
alugada
1 quarto
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone
fixo
alugada
2 quartos
2 banheiros
1 automóvel
1 telefone
fixo
Elias
09
Mãe
4º ano do
Ensino
Fundamental
Sim,
privada
08
Entre 2 e
3 SM
3 pessoas não
ou até
R$ 1139,00
Gustavo
10
09
Graziela
129
Mãe e
pai
1º ano do
Ensino
Médio
2º ano do
Ensino
Médio
Sim,
pública
Entre 5 e
6 SM
ou até
R$ 2279,00
4 pessoas não
Equipamentos
1 geladeira
0 forno
microondas
0 máquina lavar
1 televisão
0 rádio portátil
0 aparelho som
1 aparelho DVD
0 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
2 televisões
2 rádios
1 aparelho som
1 aparelho DVD
3 tels. celular
1 computador
1 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
3 televisão
2 rádios
1 aparelho som
1 aparelho DVD
3 tels. celular
1 computador
1 impressora
Nome
Idade
10
Quem
acompanha?
Escolaridade
mãe
Escolaridade
pai
Mãe
Ensino
Médio
Ensino
Médio
Escolaridade
outro
Préescola
Renda
familiar
Sim,
pública
Mais de 6
SM
10
Quantos
vivem dessa
renda?
5 pessoas
Benefício
do
Governo
não
Residência
Casa
alugada
3 quartos
2 banheiros
+ de 3
automóveis
1telefone fixo
própria
3 quartos
2 banheiros
1 automóvel
1 telefone
fixo
Própria
(sogra)
2 quartos
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone
fixo
mais de
R$ 2280,00
Gisele
10
Mãe, pai
e irmã
Ensino
Médio
Ensino
Fundamental
7º ano do
Ensino
Fundamental
Sim,
pública
11
Entre 4 e 5
SM
5 pessoas não
ou até
R$ 1899,00
Janaína
10
12
Jéssica
130
Mãe e
pai
Ensino
Superior
incompleto
Ensino
Médio
Sim,
pública
Entre 1 e 2
SM
ou até
R$ 759,00
Mais de
5 pessoas
não
Equipamentos
1 geladeira
1 forno microondas
1 máquina lavar
3 televisões
2 rádios
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
1 computador
1 impressora
1 geladeira
1 forno microondas
1 máquina lavar
3 televisões
2 rádios
1 aparelho som
2 aparelho DVD
2 tel. celular
1 computador
1 impressora
1 geladeira
0 forno microondas
0 máquina lavar
2 televisões
0 rádio portátil
0 aparelho som
0 aparelho DVD
0 telefone fixo
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
Nome
Idade
10
Quem
acompanha?
Escolaridade
mãe
Escolaridade
pai
Mãe
Ensino
Fundamental
4º ano do
Ensino
Fundamental
Escolaridade
outro
Pré-escola
Renda
familiar
Quantos
vivem dessa
renda?
Sim,
pública
Entre 2 e
3 SM
14
Benefício
do
Governo
Residência
Casa
3 pessoas
não
própria
3 quartos
2 banheiros
1
automóvel
1 telefone
fixo
Mais de
5 pessoas
Sim,
Bolsa
Família e
Renda
Mínima
prefeitura
2 quartos
1 banheiro
0
automóvel
0 telefone
fixo
alugada
1 quarto
1 banheiro
0
automóvel
1 telefone
fixo
ou até
R$ 1139,00
Laura
11
padrasto
Ensino
Fundamental
Não
estudou
Sim,
pública
18
Entre 1 e
2 SM
ou até
R$ 759,00
Ricardo
10
21
Natália
131
Mãe, pai
e tia
Ensino
Médio
Não
preencheu
Ensino
Superior
incompleto
Sim,
pública
Não
preencheu
3 pessoas
não
Equipamentos
1 geladeira
0 forno
microondas
1 máquina lavar
1 televisão
0 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
0 forno
microondas
1 máquina lavar
2 televisões
1 rádios
1 aparelho som
1 aparelho DVD
0 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
3 televisões
0 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
Nome
Idade
10
25
Débora
10
26
Quem
acompanha?
Escolaridade
mãe
Mãe,
irmã,
irmão
Ensino
Fundamental
Mãe, pai
e avó
Ensino
Superior
Escolaridade
pai
Ensino
Superior
Escolaridade
outro
Préescola
Renda
familiar
Ensino
Fundamental
Sim,
pública
Entre 1 e 2
SM
(não consegui
identificar se é
a escolaridade
do irmão ou
da irmã)
ou até
R$ 759,00
Ensino
Médio
Mais de 6
SM
Sim,
pública
09
Sabrina
132
Benefíci
o do
Governo
5 pessoas Sim,
Renda
Mínina
4 pessoas não
Residência
Casa
Barraco
de
madeira
2 quartos
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone fixo
própria
3 quartos
2 banheiros
1 automóvel
1 telefone fixo
prefeitura
1 quarto
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone fixo
mais de
R$ 2279,00
Daniela
29
Quantos
vivem dessa
renda?
Mãe
3º ano do
Ensino
Fundamental
4º ano do
Ensino
Fundamental
Não
Até 1 SM
ou até
R$ 380,00
5 pessoas
Sim,
Renda
Mínina
Equipamentos
1 geladeira
1 forno
microondas
0 máquina lavar
1 televisão
0 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
2 televisões
1 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
3 tel. celular
1 computador
0 impressora
1 geladeira
0 forno
microondas
0 máquina lavar
1 televisão
0 rádio portátil
1 aparelho som
0 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
Nome
Idade
10
Quem
acompanha?
Escolaridade
mãe
Mãe
5º ano do
Ensino
Fundamental
30
Escolaridade
pai
Escolaridade
outro
Préescola
Renda
familiar
Sim,
pública
Até 1 SM
Quantos
vivem dessa
renda?
3 pessoas
Benefício
do
Governo
Residência
Casa
sim
própria
1 quarto
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone
fixo
alugada
1 quarto
1 banheiro
0 automóvel
0 telefone
fixo
própria
2 quartos
1 banheiro
2 automóveis
1 telefone
fixo
ou até
R$ 380,00
Estela
11
tio
32
3º ano do
Ensino
Fundamental
5º ano do
Ensino
Fundamental
Ensino
Médio
não
10
Valéria
133
4 pessoas
ou até
R$ 759,00
Laís
33
Entre 1 e
2 SM
Mãe
6º ano do
Ensino
Fundamental
4º ano do
Ensino
Fundamental
Sim,
pública
Entre 1 e
2 SM
ou até
R$ 759,00
3 pessoas
Sim,
Bolsa
Família
Sim,
Renda
Mínina
Equipamentos
1 geladeira
0 forno
microondas
0 máquina lavar
0 televisão
1 rádio portátil
1 aparelho som
0 aparelho DVD
0 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
0 forno
microondas
0 máquina lavar
1 televisão
1 rádio portátil
1 aparelho som
1 aparelho DVD
1 tel. celular
0 computador
0 impressora
1 geladeira
1 forno
microondas
1 máquina lavar
+ 3 televisões
2 rádios
1 aparelho som
1 aparelho DVD
2 tel. celular
0 computador
0 impressora
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Cenas do cotidiano escolar: - Biblioteca Digital de Teses e