volume 8 / número 15/ julho 2009 ISSN 1677-4973 FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Rua Alagoas, 903 - Higienópolis São Paulo, SP - Brasil Revista de Economia e Relações Internacionais / Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado. - Vol. 8, n. 15 (2009) - São Paulo: FEC-FAAP, 2007 Semestral 1. Economia / Relações Internacionais - Periódicos. I. Fundação Armando Alvares Penteado. Faculdade de Economia. ISSN 1677-4973 CDU - 33 + 327 volume 8 / número 15 / julho 2009 Sumário John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca André Azevedo Alves e José Manuel Moreira 5 Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil Stela Luiza de Mattos Ansanelli 20 Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar de decisões sobre risco Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni 36 Brazil – India: A roadmap to follow Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali 61 A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio mundial de petróleo, os desequilíbrios americanos e os efeitos sobre os ciclos financeiros Bouzid Izerrougene 75 Impacto de la crisis financiera global en América Latina Luis Alberto Moreno 93 105 A contribuição da Psicologia Analítica para a compreensão do comportamento econômico Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação 118 do mercado brasileiro com o chinês (2003-2008) Lucy Sousa Resumos de Monografia Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento Rafaella Cordeiro Antoniazzi 136 Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008) Daniela Alvarenga Cunha 159 Resenhas Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento econômico Ricardo Abramovay 190 A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: 193 o Estado gerido como bem familiar Luiz Alberto Machado Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro Manuel Nunes 198 Redefinindo estratégia global Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta 202 Orientação para colaboradores 207 John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca André Azevedo Alves e José Manuel Moreira* Resumo Resumo: Depois de uma breve introdução à importância de Locke no contexto da tradição liberal, o texto faz um enquadramento histórico e teórico da Escola de Salamanca de modo a possibilitar uma fundamentada aproximação de Locke ao rico e fecundo pensamento da escolástica católica tardia. Tal aproximação visa mostrar como em vários domínios – do econômico e político ao moral e religioso – as teorias assumidas por Locke têm antecedentes entre os grandes autores de uma escola que não só terá sido a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico, como terá constituído crucial fonte nutrícia do liberalismo político, cem anos antes de Locke. Palavras-chave: Locke, Escola de Salamanca, liberalismo, direito natural, religião. “[T]he greater part of the political ideas of Milton, Locke, and Rousseau, may be found in the ponderous Latin of Jesuits who were subjects of the Spanish Crown, of Lessius, Molina, Mariana, and Suarez” Lord Acton, Selected Writings of Lord Acton, Vol. I: Essays in the History of Liberty, p. 71. 1. Introdução: importância de Locke no contexto da tradição liberal A importância de Locke no contexto da tradição liberal é sobejamente conhecida e quase unanimemente reconhecida. Desde a admiração de Voltaire por le Sage Locke até a profunda influência de Locke nos pensadores contemporâneos, o seu papel central no pensamento liberal é indisputável. Hayek, por exemplo, recorre frequentemente a Locke para abordar questões como a de * André Azevedo Alves é Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto (2003). Mestre em Ciência Política, variante de Teoria Política, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (2005). Doutorando em Ciência Política na London School of Economics. Tem colaborado com a Universidade de Aveiro, o Instituto Nacional de Administração, a Escola de Gestão do Porto e o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. E-mail: <[email protected]>. José Manuel Moreira é Licenciado e doutorado em Economia e em Filosofia, é Professor Catedrático da Universidade de Aveiro (SACSJP). Contribuiu para a redescoberta e divulgação em Portugal de quatro grandes temáticas: ética econômica e empresarial, tradição austríaca da economia, análise econômica da política e governança e políticas públicas. Tem colaborado com entidades tais como o Instituto de Estudos Políticos (da UCP), o Instituto Nacional de Administração, a Escola de Gestão Empresarial e a Ordem dos Engenheiros. É também Membro da Direção da Associação Portuguesa de Ciência Política. E-mail: <[email protected]>. Texto com base na comunicação apresentada ao Simpósio comemorativo dos 300 anos da morte de John Locke (Lisboa, março de 2006). Uma primeira versão (mais reduzida) foi publicada em MORUJÃO, C.; MOIA, L. (orgs.) John Locke nos 300 anos da sua morte. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2009, p. 165-179. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 5 saber qual a função própria das assembleias legislativas ou qual a concepção de justiça que deve ser aplicada na avaliação dos processos de competição. Nozick, por sua vez, baseia parte importante da sua influente teoria da justiça num refinamento da teoria da aquisição de Locke. Noutra linha, Strauss vê, pelo menos até certo ponto, Locke como o autor que melhor conseguiu estabelecer uma ligação entre as concepções tradicionais e as doutrinas modernas do direito natural. Os contributos de Locke continuam a ocupar uma posição de destaque na generalidade das discussões sobre o liberalismo, constituindo, nalguns casos, o ponto de partida para o desenvolvimento de novas perspectivas nessa área. Vejase, a título de exemplo, o caso de Huyler (1997), que encontrou em Locke a chave para definir um enquadramento conceitual que permite combinar o republicanismo com o liberalismo. Para este autor, a resolução das tensões entre republicanismo e liberalismo passa por uma reavaliação da própria teoria liberal clássica de Locke, em que a ênfase na participação cívica e na natureza social do homem acompanha de perto a defesa da propriedade e dos direitos naturais. Para a extraordinária riqueza e pluralidade das leituras e construções teóricas baseadas na obra de Locke muito terão contribuído, para além de fatores históricos1, a diversidade dos seus interesses. De fato, contrariamente ao elevado grau de especialização que caracteriza uma boa parte da filosofia política contemporânea2, Locke, como era característico dos mais destacados autores do seu tempo, dedicou-se a campos tão aparentemente díspares como a teologia, a filosofia, a economia, a medicina ou a educação. Por sua vez, mesmo no âmbito da filosofia, é verdadeiramente notável a abrangência dos contributos de Locke, que vão desde a metafísica e a lógica à epistemologia e à ética. A obra de Locke é assim, compreensivelmente, um ponto de partida obrigatório e repetidamente referenciado no tratamento dos mais diversos temas para uma grande parte dos autores que dão continuidade à tradição liberal clássica. Infelizmente, a (justificada) atenção dedicada a Locke raramente tem sido acompanhada por uma reflexão sobre o pensamento da escolástica católica ibérica que o precedeu e – em alguns importantes aspectos – antecipou3. Procuraremos neste âmbito chamar a atenção para os pontos de ligação entre as teorias de Locke e as contribuições dos autores da chamada Escola de Salamanca. Ainda que correndo o risco de levantar interrogações mais do que dar respostas, dedicaremos particular atenção a alguns aspectos em que as contribuições da Escola de Salamanca assumem maior relevância para a compreensão e 1 Entre os quais se destaca a influência que os seus escritos viriam a ter no germinar da Revolução Americana e da Revolução Francesa. 2 Uma especialização que, em cada vez mais circunstâncias, assume um caráter de tal forma excessivo que o debate e a compreensão entre algumas das subdisciplinas da filosofia política contemporânea se tornam praticamente impossíveis. 3 Uma omissão a que Lord Acton alude, porventura hiperbolicamente, nos termos da citação com que abrimos este texto, chamando a atenção para o fato de muitas das mais importantes ideias políticas de Milton, Rousseau e Locke terem sido antecipadas por autores jesuítas ligados à tradição escolástica católica. 6 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 enquadramento do pensamento de Locke e de todos os autores que seguiram na sua tradição. Procuramos dessa forma suscitar o interesse por várias possíveis linhas de investigação futura relativamente a esta relação. 2. Escola de Salamanca: enquadramento histórico e teórico O papel germinador do pensamento católico ibérico nos séculos XVI e XVII – a que não é alheia a influência árabe e principalmente a reintrodução de Aristóteles, a partir da conquista de Toledo em 1085 – foi muito significativo. A Escola de Salamanca (que não se reduz a Salamanca, já que da mesma “Escola” faziam parte Coimbra e Évora, por exemplo) não só foi a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico – nomeadamente através das importantes contribuições do “português” Luis de Molina – como foi também a fonte que alimentou o liberalismo político, 80 anos antes de Locke. Que, depois, as coisas tenham mudado só prova que a subsequente prostração e atraso econômico da Península Ibérica acompanhou o esgotamento do pensamento liberal. Mas a falta de continuidade ibérica que afetou o pensamento dos escolásticos de Salamanca é um outro tema, que em nada afeta a sua relevância no âmbito da história do pensamento político e econômico4. Terá sido esta história de descontinuidade no seu local de origem que nos impediu de reparar no potencial de valor da sementeira de uma Escola tão notável que outros se encarregaram, felizmente, de disseminar e cuidar para que desse fruto. Disseminação que não anula o nome de “Escola de Salamanca”5 como o mais adequado para denominar um movimento que ultrapassou o mundo ibérico e que Marjorie Grice-Hutchison consagrou e deu a conhecer a todo o mundo científico (em especial ao europeu) com a sua obra The School of Salamanca (1952)6. De fato, a Universidade de Salamanca (de onde deriva o nome da Escola) esteve na gênese de uma importante tradição intelectual, resultante do trabalho de um conjunto de professores de moral e teologia, majoritariamente jesuítas e dominicanos, que contribuíram para os mais variados domínios do saber humano. O trabalho destes autores é particularmente interessante porque aplica uma abordagem escolástica em larga medida tradicional e com firmes raízes católicas 4 Para uma mais completa abordagem desta problemática, cf. MOREIRA (1992) e ALVES (2005). 5 “Escola hispânica” espelharia melhor a ideia de que a escola não se limitou a Salamanca (não se pode esquecer a Complutense, em Alcalá de Henares), mas ao mesmo tempo também dá a entender uma excessiva identificação com a Espanha quando é sabida a importância de autores portugueses como Rebelo e Manuel Rodrigues; isto para além de distintos espanhóis que lecionaram em Portugal (Coimbra) como é o caso de Suárez e Martín de Azpilcueta, sem falar em Luis de Molina, que fez não só o noviciado como quase toda a carreira acadêmica em Portugal. Neste sentido, Coimbra e Évora devem ser vistas pelo menos a par de Alcalá de Henares. Para um breve apanhado da vida acadêmica (“estudos” e “magistério”) de Molina, cf. CAMACHO (1990, p. XVII-XXXI). Sobre a notória e marcante influência das obras de Molina, que não só chegaram às mais importantes universidades europeias (incluindo as da Áustria e da Alemanha) como dividiram professores e estudantes em grupos a favor e contra as ideias de Molina, ver ROMANO (1982, p. 261-287). 6 Mais tarde, a mesma autora publicou um outro artigo com a mesma denominação: “La escuela de Salamanca”, na Revista del Instituto de Estudios Economicos, 2, 1980, p. 45-52. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 7 a campos que adquiriram uma importância renovada no seu tempo, com a descoberta do Novo Mundo7. Muitos dos problemas teóricos com que os doutores de Salamanca se confrontaram encontram, até certo ponto, paralelo nas preocupações de Locke e essa poderá ser (sem desprimor para a genealogia das ideias) uma das razões pelas quais a obra deste último acaba em vários pontos por ter importantes semelhanças com a escolástica ibérica tardia. 3. T eologia, Estado e tolerância Teologia, Uma abordagem muito comum é a de identificar Locke com uma ruptura no modo de reflexão filosófica e política prevalecente, afastando-o dos métodos supostamente antiquados da filosofia tradicional e abrindo as portas da modernidade. Insere-se nesta linha, por exemplo, a análise de Aarsleff quando refere que o principal legado de Locke foi “libertar-nos do fardo da tradição e da autoridade”, através do seu apelo ao empiricismo e da sua crença nas faculdades inatas da razão humana8. Esta visão de Locke, hoje tão difundida, não deixa de ser curiosa se tivermos em conta que toda a sua filosofia assenta, tal como a dos escolásticos católicos que o antecederam, em fundamentos profundamente religiosos9. Importa aqui recordar a forma como o próprio Locke concebia a teologia, o papel da autoridade divina e o objetivo último do conhecimento: Existe uma ciência ... incomparavelmente superior a tudo o resto ... refirome à teologia, a qual, contendo o conhecimento de Deus e das suas criaturas, dos nossos deveres para com Ele e para com as criaturas nossas semelhantes e uma visão do nosso estado presente e futuro, consiste na compreensão de todo o restante conhecimento dirigido ao seu verdadeiro fim, i.e., a honra e a veneração do Criador e a felicidade da humanidade. Este é um estudo nobre que é dever de todos os homens e que todo aquele que possa ser chamado uma criatura racional é capaz de realizar.10 A este propósito vale a pena salientar as posições tanto da Escola de Salamanca como de Locke a respeito da tolerância. É verdade que os autores da 7 Para além das múltiplas questões morais e jurídicas suscitadas pelo contato com o Novo Mundo (que motivaram o aprofundamento da reflexão sobre muitos temas de direito natural), o grande incremento do comércio e dos fluxos monetários impulsionou importantes inovações no âmbito da teoria econômica. Para uma análise das contribuições dos escolásticos da Escola de Salamanca para a ciência econômica cf., GRICE-HUTCHISON (1952 e 1978), CHAFUEN (2003) e HUERTA DE SOTO (2005, p. 95-108). 8 Cf. AARSLEFF (1994, p. 252). 9 A generalidade dos estudos sobre Locke reconhece, como não poderia deixar de ser, as bases cristãs do pensamento do autor. Mas o que se trata aqui, no que diz respeito ao papel desempenhado pela religião, é de avaliar se Locke terá efetivamente entrado em ruptura com os métodos empregados na escolástica tardia. Embora não seja possível responder cabalmente a essa questão, é nosso entendimento que a proximidade da obra de Locke com as de escolásticos como Molina, Mariana e Suárez faz com que a tese da “ruptura” seja de muito difícil sustentação. 10 The Works of John Locke (12 ed.), 9 vols. (1824), Vol. II, p. 360. Citado em ASCHCRAFT (1990). Igualmente revelador é o fato de Locke possuir na sua biblioteca mais livros de teologia (870) do que de qualquer outra matéria; cf. ASHCRAFT (1990, p. 227). 8 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 chamada escolástica tardia, fiéis à tradição católica, enfatizavam a importância da unidade religiosa, salientando a relação entre a religião e as virtudes cívicas11. Esta posição pode parecer estranha por padrões contemporâneos, mas convém recordar que mesmo mais tarde, no fim do século XVII, o próprio Locke, na sua Letter Concerning Toleration, negava explicitamente a extensão da tolerância aos ateus e à Igreja Católica com os seguintes fundamentos: Essa Igreja não pode ter direito a ser tolerada pelo governante, já que todos os que nela ingressam se colocam, ipso facto, sob proteção e ao serviço de outro príncipe. Se tal acontecesse, o governante estaria a possibilitar o estabelecimento de uma jurisdição externa no seu próprio país e a permitir que os seus próprios súditos se alistassem, por assim dizer, como soldados contra o seu próprio governo. Nem a distinção frívola e falaciosa entre a corte e a Igreja remedeia esta inconveniência; especialmente quando tanto uma como a outra estão igualmente sujeitas à autoridade absoluta da mesma pessoa, que não só tem poder para persuadir os membros da sua Igreja de tudo o que decida, seja em termos puramente religiosos ou orientados pela religião, como pode também impor-se invocando a ameaça do fogo eterno. (…) Por último, não poderão ser tolerados de forma alguma aqueles que negam a existência de Deus. As promessas, pactos e juramentos, que são os laços que unem a sociedade humana, não significam nada para um ateu. O afastamento de Deus, ainda que apenas em pensamento, tudo dissolve. Além disso, aqueles que através do seu ateísmo minam e destroem toda a religião não podem ter fundamentação religiosa alguma para reclamar o privilégio da tolerância.12 Em suma, é certo que Locke revela confiança nas potencialidades da razão humana como instrumento para a prossecução do fim último da existência humana (um fim que é inquestionavelmente marcado pela autoridade divina). Mas a valorização da reta razão está longe de ser uma inovação, tendo desde sempre sido uma característica predominante da filosofia tomista, a ponto de ter assumido um lugar de destaque no pensamento da Escola de Salamanca. A ideia de Locke como “libertador” da filosofia das correntes da tradição e da autoridade abrindo-a às Luzes da modernidade parece, por isso, de difícil sustentação13. É possível que muito da análise contemporânea de Locke esteja a imputar ao autor um secularismo que, na realidade, existe apenas na mente dos historiadores contemporâneos. 11 Sobre este tema, veja-se ALVES e MOREIRA (2009, no prelo). 12 LOCKE (1990, p. 63-64). Sobre a tolerância religiosa em Locke, veja-se também HENRIQUES (2009, p. 123-125). 13 Parece-nos a este respeito bem mais sustentável a posição de WALDRON (2002) com a sua preocupação de articular as posições de Locke quanto aos direitos e dignidade dos indíviduos com as bases cristãs do seu pensamento. Ainda que o igualitarismo atribuído por Waldron a Locke seja no mínimo contestável, o método empregue na exposição desse argumento parece-nos mais correto do que o dos autores contemporâneos que sucumbem à tentação de descobrir um Locke secularizado, por vezes quase pósmoderno, ignorando a forma como Locke efetivamente apresentou e fundamentou as suas posições. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 9 4. Molina, Lugo e Grócio: para uma aproximação de Locke ao pensamento da Escola de Salamanca Sendo certo que não há uma presença direta e imediata da escolástica católica tardia na obra de Locke, é ainda assim possível estabelecer uma ligação indireta muito significativa. Se deixarmos de lado as origens gregas (Aristóteles) e o seu renascimento escolástico (primeiro com Tomás de Aquino e depois com o desenvolvimento da Escola de Salamanca), deparamo-nos com um conjunto de formulações pré-racionalistas dos filósofos centro-europeus do direito natural, em especial Grócio14. Conviria aqui recordar a problemática religiosa e política que agitava a Europa para compreender o porquê das omissões e ausência de referências escolásticas nas fontes dos autores protestantes do século XVII. Neste âmbito, a opinião hoje aceita é que Grócio não só desempenhou um papel de transmissão indireta (pertencia à corrente reformadora do arminianismo15, que o tornava aceitável para anglicanos, calvinistas e luteranos) como conhecia os textos da maior parte dos teólogos escolásticos, ainda que, por compreensíveis razões de oportunidade, os citasse pouco. Mesmo assim, na sua obra, aparecem nomes como Vitoria, Covarrubias, Azpilcueta e outros membros da Escola de Salamanca. A este respeito, o que nos interessa mais é assinalar as influências de toda esta doutrina jusnaturalista no posterior pensamento econômico e político de Locke, e precisamente por meio dos escritos de Grócio e outros filósofos do direito. Nesta linha, que interliga as ideias greco-romanas sobre a “ordem natural” e o “Direito das Gentes” escolástico, Pribram (1983, p. 60) sustenta que se chegou a um novo corpus de pensamento que cristaliza em Grócio: Estas perspectivas foram elaboradas em 1625 pelo autor holandês Hugo Grócio (1583-1645), que ensinou na sua obra De iure belli ac pacis que o sancionamento divino das regras do direito natural foram dadas a conhecer à humanidade pelos imperativos da reta razão [recta ratio]. A mente humana, tomando parte na razão universal, foi considerada capaz de compreender as leis que a natureza “ensinava”. Esta concepção da relação entre razão e direito natural gozou de uma aceitação abrangente. Ela forneceu também a coluna dorsal para uma amplamente lida obra sobre direito natural e direito internacional (1672) da autoria do professor alemão Samuel von Pufendorf. Trata-se assim de uma “versão secular” da “Lei Natural” que arranca com Grócio16 e que define os “direitos naturais que a razão demonstra como 14 Grócio, que parece ter sido um autor particularmente relevante para Locke se atendermos não só ao número de obras do primeiro de que Locke dispunha na sua biblioteca pessoal, mas também às abundantes anotações e citações de Grócio presentes nos manuscritos não publicados de Locke. Cf. ASHCRAFT (1990, p. 237) 15 Doutrina dos seguidores do teólogo holandês J. Harmensen (1560-1609), mais conhecido por Armínio, que defendia a teoria da predestinação absoluta. 16 10 A este propósito veja-se também León GÓMEZ RIVAS (2005). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 pertencentes aos indivíduos em virtude da sua humanidade”, e que correspondem à posterior formulação de Locke como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A este propósito, Hayek constituiu uma exceção entre os lockeanos, não deixando de salientar as raízes gregas e romanas da tradição não-racionalista do “direito natural”, mas insistindo em que se deve aos escolásticos ibéricos do século XVI o impulso maior que conduziu à descoberta e explicação da ordem autogerante nos assuntos sociais. Uma ordem baseada no reforço das normas gerais de conduta justa que protegem um domínio privado reconhecível dos indivíduos. Ora, foi a “descoberta” desta ordem espontânea de atividades humanas de muito maior complexidade do que alguma vez podia ser produzida por arranjo deliberado17 – devida aos últimos escolásticos, aos jesuítas espanhóis e aos portugueses do século XVI – que acabou por conduzir a um debate que levou a “um questionamento sistemático sobre a forma como se teriam ordenado as coisas se não tivessem sido dispostas pelos esforços deliberados do governo; desta forma eles produziram o que eu denominaria as primeiras teorias modernas da sociedade se o seu ensinamento não tivesse sido submergido pela maré racionalista do século posterior”18. Em nota a esta passagem, Hayek considera Luis de Molina, deste ponto de vista, como o mais importante dos jesuítas do século XVI19. Para Hayek, como por certo para Molina, tanto a palavra “razão” como a expressão “lei natural” não podem ser assimiladas à “lei da razão”20, e por isso critica todos aqueles cujo racionalismo construtivista os levou “a pensar que não só todas as instituições culturais eram produto de uma construção deliberada, mas também que tudo o que fosse concebido a partir desta era necessariamente superior a toda a mera evolução”21. Só a partir desta posição de Hayek é possível perceber porque insiste ele, por um lado, em que a “razão” inclui, como para Locke, a capacidade do espírito para distinguir entre o bem e o mal, isto é, entre o que estava ou não estava de acordo com as normas estabelecidas; e, por outro, nega à razão a capacidade de construir tais normas por dedução de premissas explícitas. De igual modo se justifica que, para Molina, a determinação do preço justo suponha a livre atuação de múltiplos homens que atuam de acordo com regras a que se submetem, independentemente dos seus objetivos e da influência de inúmeras circunstâncias exteriores particulares que na sua totalidade ninguém 17 Cf. HAYEK (1967, p. 162). 18 HAYEK (1985, p. 255). 19 Ibidem. Recorde-se que a obra de Molina esteve na origem da corrente filosófica e teológica designada por “molinismo”, a qual foi amplamente difundida e comentada nos séculos XVII e XVIII. 20 HAYEK (1998, Vol. I, p. 21). 21 No que diz respeito às consequências desta assimilação, Hayek acrescenta que: “Sob esta influência, a concepção tradicional da lei natural transformou-se, a partir da ideia de que algo se tinha formado pela adaptação gradual à ‘natureza das coisas’, em algo que a razão, com que no princípio o homem tinha sido dotado, lhe permitiria projetar”. Cf. HAYEK (1985, p. 255-256). John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 11 pode conhecer22. O que levou mesmo Hayek, apoiando-se no cardeal Johannes de Lugo, a salientar que o “preço matemático” exato a que uma mercadoria podia ser justamente vendida só Deus o podia conhecer, dado que ele depende de muitas mais circunstâncias do que qualquer homem podia conhecer, e, por conseguinte, a determinação do “preço justo” deve ser deixada ao mercado23. Isto conduzirá Hayek a, apoiando-se de novo em Molina e Höffner, entre outros, defender que, depois de muitas disputas, os últimos escolásticos acabaram por reconhecer que os preços se determinavam pela conduta justa dos participantes no mercado, isto é, que o que a justiça requeria era que os preços competitivos fossem alcançados sem fraude, monopólio e violência24. Foi desta tradição que, segundo Hayek, John Locke e os seus contemporâneos fizeram derivar a concepção liberal clássica que reconhece que, no que se refere à economia de mercado, só se pode falar verdadeiramente de justiça quanto ao comportamento dos participantes no jogo, não quanto ao seu resultado25. A interpretação de Locke no que diz respeito a estas temáticas é matéria controversa (e provavelmente sempre o será). No entanto, como explica Rothbard (1995, p. 313-134), muitas das dicotomias habitualmente estabelecidas podem ser vistas como artificiais: A discussão historiográfica sobre o grande teórico político liberal John Locke (1632-1704) que decorreu a seguir à Guerra Civil, e em especial durante a década de 1680, tem estado imersa num turbilhão de interpretações em conflito. Terá sido Locke um pensador político radicalmente individualista ou um escolástico protestante conservador? Individualista ou defensor das maiorias? Filósofo puro ou intriguista revolucionário? Arauto radical da modernidade ou alguém que olhava para o passado, para a virtude medieval ou clássica? Curiosamente, a maioria das interpretações não são realmente contraditórias. Atualmente, temos obrigação de compreender que os escolásticos, além de terem dominado as tradições medievais e pós-medievais, também foram pioneiros e responsáveis pela elaboração do direito natural e dos direitos naturais. O choque entre “tradição” e “modernidade” é uma antítese em boa medida artificial. “Modernos”, como Locke, e talvez mesmo Hobbes podem ter sido individualistas e “pensadores de direita”, mas também estavam imbuídos de escolasticismo e de 22 Cf. HAYEK (1985, p. 10). A ênfase na livre atuação dos sujeitos (que expressa o reconhecimento de “uma limitação radical no conhecimento humano da lei natural e a sua aplicação à realidade” e também a dimensão temporal e expectativas implicadas na livre decisão num dado “momento do tempo”) e no peso das múltiplas circunstâncias concretas que definem a natureza dos casos (a “natura rei”) é também notada por Camacho. Segundo Camacho, a recusa por parte de Molina de uma aplicação tanto mecanicista como arbitrária da lei natural está na raiz filosófica do seu probabilismo e implica a valorização do juízo prático da reta razão. Cf. CAMACHO (1989, em especial, p. XVII-XVIII). 23 LUGO, J. Disputatio de iustitia et iure tomus secundus (Lyon, 1642), disp. 26, sec. 4, nº 40: “incertitudo ergo nostra circa pretium iustum Mathematicum ... provenit ex Deo, quod non sciamus determinare”; ver HÖFFNER, J. Wirtshaftsethik und Monopole im fünfzehnten und sehzehnten Jahrhundert (Jena, 1941), p. 114-115. Citado em HAYEK (1998, Vol. I, p. 21 e 151 [nota 24] ). 12 24 HAYEK (1998, Vol. 2, p. 73). 25 Ibid., p. 73-74. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 direito natural. Locke pode ter sido, e certamente foi, um empenhado protestante, mas também foi um escolástico (protestante) fortemente influenciado pelo fundador da escolástica protestante, o holandês Hugo Grócio. Tendo em conta que estão presentes em Grócio fortes influências da escolástica católica tardia, Rothbard argumenta que, embora Locke tenha desenvolvido a teoria dos direitos naturais de forma mais completa do que os seus predecessores, a sua abordagem se encontra, em larga medida, na continuidade da tradição escolástica do direito natural26. Ainda sobre este ponto, vale a pena ter em conta a chamada de atenção feita por Zaratiegui, num texto “sobre a propriedade em alguns autores da Escola de Salamanca”, sobre a assombrosa similitude entre Lugo e Locke. Uma afirmação que se apoia na posição de Lugo em relação ao estado de natureza – em que todas a coisas eram comuns –, mas com duas ressalvas importantes: a população era reduzida e, sobretudo, havia uma grande abundância de bens à disposição desses poucos. A ponto de que “cada um tinha tudo o que necessitava para a vida sem necessidade de esforço”, mas entendendo a apropriação como atividade natural do homem: a pacífica e necessária ocupação de algo que, de outro modo, ficaria estéril e vazio. Tal similitude é ainda mais clara se atendermos à relação que Lugo estabelece entre propriedade e trabalho e que leva Zaratiegui a defender que Locke, ainda que pertencendo a um mundo muito diferente, conheceria os escritos de Lugo. Uma relação em que Lugo, ao contrário da maioria dos escolásticos e corrigindo Vitoria, diz não ser preciso ninguém decretar por lei quem é proprietário de algo, basta apropriar-se: ocorre que como as árvores que, sendo comuns antes de cortadas, uma vez cortadas passam a ser próprias de quem as corta, e já não do domínio da comunidade, dado que só eram comuns até serem de alguém por meio do corte (Lugo). O que significa a admissão da propriedade privada no estado de natureza original. Locke, como Lugo, apontariam assim para um entendimento da riqueza como unida à ideia de eficácia, no sentido de que, mais que uma questão moral, o problema da riqueza seria, no limite, um problema técnico. Daí que, em vez de insistirem nas virtudes da redistribuição, os dois autores tendam a realçar o trabalho (até como fonte de melhoria pessoal): a abundância de bens materiais, própria do estado de natureza, transforma-se assim numa situação – a da sociedade civil – em que grande parte desses bens são escassos (econômicos) a ponto de ser necessário o esforço diligente para que sejam suficientes em ordem a atender às necessidades humanas27. 26 Cf. ROTHBARD (1995, p. 314). Uma posição que leva a que ROTHBARD (1995, p. 339) seja, como seria de esperar, fortemente crítico da forma como STRAUSS (1953) concebe uma hipotética quebra de Locke (até certo ponto seguindo Hobbes) com a tradição do direito natural. 27 O que significa inclusive dar entrada a conceitos básicos de economia como escassez e eficiência. A este propósito Zaratiegui admite até que Locke possa ter tomado de Lugo a ideia de enriquecimento, a produtividade ilimitada dos bens. Para um mais completo desenvolvimento sobre todos estes pontos, veja-se, ZARATIEGUI, J.M. La propiedad en algunos autores de la Escuela de Salamanca. Cuadernos de CC.EE y EE, 2000, p. 87-93. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 13 5. Suárez, Mariana e os escolásticos de Salamanca como precursores de Locke Hayek, que se assumiu muitas vezes como um velho Whig, defende que, apesar da clara contribuição de alguns pensadores da Antiguidade Clássica, a primeira tentativa sistemática de explicitação dessa ordem espontânea foi levada a cabo pelos escolásticos, a partir dos fundamentos derivados de Aristóteles por Santo Tomás de Aquino28. Um esforço que os últimos escolásticos ibéricos souberam aproveitar para criar os alicerces de um sistema de política liberal, especialmente no campo econômico, em que anteciparam muito do que só foi restaurado depois pelos filósofos escoceses do século XVIII e, em alguns aspectos, por Locke29. Assim, por exemplo, como demonstra Tully (1994, p. 168-172), a abordagem de Locke ao estado de natureza e ao direito da guerra, apesar de algumas diferenças relativamente aos seus antecessores, é essencialmente uma reafirmação das teorias de Pufendorf, Grócio e Suárez, sendo que, por sua vez, estes autores adaptaram os anteriores contributos de escolásticos como Francisco de Vitoria (fundador da Escola de Salamanca), Alonso de la Vera Cruz e Bartolomé de las Casas. Entre os autores que rejeitam a ideia de “ruptura” e observam na obra de Locke a continuidade da tradição escolástica do direito natural, inclui-se também Simmons (1992, p. 96), que dificilmente poderia ser mais claro quando afirma: Foi até recentemente quase obrigatório começar as discussões sobre a teoria dos direitos naturais com a observação de que o conceito de direito natural é essencialmente um conceito moderno. (...) Sabemos agora, claro, que as teorias dos direitos naturais (pelo menos numa forma rudimentar) foram desenvolvidas bastante mais cedo do que a sabedoria convencional sugeria. (...) Essas primeiras teorias dos direitos foram largamente ignoradas durante a Renascença mas foram reanimadas na década de 1580, desenvolvendo-se finalmente através das obras de Molina, Suárez e Grócio até originarem a forma de teoria dos direitos naturais que mais diretamente influenciou Locke. Mas o caráter precursor da Escola de Salamanca ter-se-á estendido também ao campo da ação política, com uma contribuição decisiva para a aventura do maior empreendimento do novo mundo: os EUA. É aqui de grande ajuda o professor Joris Steverlynck, da Universidade Católica de Buenos Aires, quando sustenta a tese30 de que a primeira constituição do povo norte-americano, a chamada Fundamental Orders do Estado de Connecticut, promulgada em 1639, 28 Daí que Maritain, subscrevendo a opinião de Lord Acton, diga: “Não foi o diabo, foi Santo Tomás de Aquino o primeiro Whig”; cf. MARITAIN (1960, p. 55). 29 Cf. HAYEK (1985, p. 123). Para uma perspectiva divergente, que considera as divergências de Locke relativamente a Hooker como um afastamento implícito da abordagem jusnaturalista tomista, cf. SCHNEEWIND (1994, p. 208-212). 30 14 Cf. STEVERLYNCK (1986). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 não pode ser devida ao pensamento de John Locke (1632-1704), considerado como o primeiro inspirador da democracia americana moderna, já que Locke, que efetivamente teve grande relação na década de 1670 com os 13 Estados Coloniais, só publicou as suas primeiras obras em 1687 e 1690. Muito provavelmente foi o contrário que aconteceu. O pai da democracia política, Locke, recebeu as suas ideias do pensamento liberal que imperava nas longínquas colônias americanas. Mas de onde surgiu a genial inspiração que levou a uns quantos colonos, afastados dos centros de pensamento da velha Europa, a desenvolver uma teoria política tão em contraste com a que imperava na sua época? Steverlynck aponta uma hipótese segundo a qual a fonte seria a Escola de Salamanca e que as coisas poderão ter acontecido da seguinte forma: Francisco Suárez (1548-1617), eminente doutor da dita Escola, publicou em 1613 a sua famosa Defensio fidei catholicae, que, pelas suas ideias políticas, não religiosas, foi mandada queimar tanto pelo rei anglicano inglês (Jaime I) como pelo cristianíssimo rei francês (Luís XIII), mas foi acolhida favoravelmente na Península Ibérica, apesar da insistência do inglês sobre o monarca reinante Filipe III, já que na altura o absolutismo não imperava plenamente na Espanha, ainda que fosse a doutrina oficial na Inglaterra e na França. Ora, a Defensio fidei terá sido conhecida por Thomas Hooker, clérigo puritano que estudava em Cambridge desde 1611. Hooker, por oposição às teorias absolutistas de Jaime I, teve de fugir para a Holanda e daí, em 1633, emigrou para Massachusetts, donde atuou como um dos líderes dos dissidentes que fundaram Connecticut em 1638, e cuja constituição verteu ideias de tal natureza que a única fonte doutrinária de onde poderão ter sido extraídas foi de Francisco Suárez31 (1548-1617), o destacado jesuíta espanhol, que ensinou teologia na Espanha, em Roma e em Portugal (1597) – exímio professor da Universidade de Coimbra –, onde permaneceu até a sua sepultura na igreja de São Roque. Por sua vez, Rothbard (1995, p. 117-118) realça a importância de Juan de Mariana (1536-1624) como precursor de Locke, argumentando que a sua importância deve ser considerada superior até à de Suárez: [É] Mariana, e não Suárez, quem deve ser considerado o precursor da teoria, exposta por Locke, do consentimento popular e da permanente superioridade do povo sobe o governo. Mais ainda: Mariana também se antecipou a Locke ao sustentar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos com o fim de preservar os seus direitos de propriedade. Mariana foi também muito mais além do que Suárez ao postular um estado de natureza, uma sociedade, prévia à instituição do governo. 31 A importância de Suárez para a América Latina está aliás bem patente no livro (veja-se entre nós a recensão de António PAIM, em Nova Cidadania, 7, 2001, p. 68-70) de Ricardo Vélez RODRIGUEZ, Estado, Cultura y Sociedade en la América Latina (2000). Texto em que o autor, a partir da obra de Silvestre Pinheiro e dos gaúchos Assis Brasil e Silveira Martins, chama a atenção para a influência da tradição liberal peninsular e, em especial, de Francisco Suárez, afirmando que tendo presente “o contexto da doutrina suareziana sobre o Estado, podemos entender que não era necessário pensar num influxo de ideias revolucionárias francesas ou americanas sobre os neogranadinos para explicar as reivindicações políticas durante a Colônia e na geração anterior à independência” (p. 189). John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 15 (...) Mariana também acrescentou – em frases que antecipam o direito à rebelião formulado por Locke e contido na Declaração de Independência – que não temos de nos preocupar excessivamente em termos de ordem pública pelo fato de poder haver um número excessivo de pessoas dispostas a praticar o tiranicídio. Trata-se, segundo Mariana, de uma iniciativa perigosa, que muito poucos estarão dispostos a cometer com risco da própria vida. A experiência demonstra que são muitos os tiranos que não conheceram a morte violenta, e também que os tiranicidas quase sempre foram proclamados como heróis pela população. Em vez de colocar objeções comuns ao tiranicídio seria saudável que os governantes temessem o povo e compreendessem que cair na tirania poderia levar o povo a chamá-los a prestar contas pelos seus crimes. Cremos que a partir dos exemplos apresentados é possível ter uma ideia, não só da riqueza e fecundidade das contribuições dos escolásticos de Salamanca, como também da multiplicidade de questões que se colocam quanto à relação da obra de Locke com as teorias e problemas já considerados pela escolástica católica tardia. 6. Conclusão Está ainda por fazer um inventário sobre os reais prejuízos materiais e humanos que pagamos, ao longo da nossa história, por uma equívoca relação entre “liberalismo” e “catolicismo”. Um equívoco que quase eliminou o papel germinal do pensamento econômico ibérico dos séculos XVI e XVII, tanto ao nível do liberalismo econômico como do liberalismo político. Não está em causa o muito que devemos à tradição do pensamento econômico e político anglosaxônico, mas tal não se deve fazer com o esquecimento do que aconteceu antes de autores tão notáveis como Adam Smith e John Locke. A denúncia fundamentada da abusiva ligação feita por Weber entre protestantismo e desenvolvimento (versus catolicismo e subdesenvolvimento) passa também pela recuperação dos ensinamentos dos pensadores da Escola de Salamanca. Uma recuperação pode ajudar-nos a compreender melhor as razões por que fomos tão longe e por que tão cedo acabamos por perder a dianteira. Ao procurar evidenciar pontes entre a obra de Locke e as contribuições dos escolásticos da Escola de Salamanca, este texto pode ser visto como uma oportunidade para resgatar um saber a que não soubemos dar continuidade. Um saber que encerra em si as “contradições” que acompanharam a “aventura das descobertas”, mas que, aprofundado, pode constituir-se como impulso para uma nova visão das coisas humanas, ajudando assim a esboçar um novo caminho do meio entre as “sociedades de pobreza” e as “sociedades de consumo”. Acresce que a familiaridade com o papel seminal do pensamento católico ibérico é hoje fulcral também para descobrir que a tradição liberal clássica possui na realidade raízes cuja profundidade vai muito para além da filosofia política moderna. Daí que o estudo das contribuições dos escolásticos de Salamanca e a 16 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 análise da sua relação com os filósofos liberais que se lhes seguiram possa ser tanto um valioso exercício de história do pensamento político como também – em tempos de crise – fonte para uma abordagem política mais integralmente humana e, por isso, mais genuinamente personalista. Na verdade, como se procurou evidenciar, a Escola de Salamanca não só terá sido a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico, como terá constituído uma importante fonte nutrícia do liberalismo político, cem anos antes do justamente celebrado Locke. Referências bibliográficas AARSLEFF, H. Locke’s Influence. In: CHAPPEL, V. (ed.) The Cambridge Companion to Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. ACTON, J.E.E.D. Selected Writings of Lord Acton, Vol. I: Essays in the History of Liberty. Indianapolis: Liberty Fund, 1985. ALVES, A.A. Estudo introdutório. In: HUERTA DE SOTO, J. Escola Austríaca: Mercado e criatividade empresarial. Lisboa: Espírito das Leis, 2005. ALVES, A.A.; MOREIRA, J.M. The Salamanca School. Continuum. Obra inserida na coleção Major Conservative and Libertarian Thinkers, editada por John Meadowcroft (2009, no prelo). ASHCRAFT, R. John Locke’s library: portrait of an intellectual. In: YOLTON, J.S. (ed.). A Locke Miscellany: Locke Biography and Criticism for All. Bristol: Thoemmes, 1990, p. 226-245. ________. (ed.). John Locke: Critical Assessments. Vol. II. London: Routledge, 1991. CAMACHO, F.G. Introducción. In: MOLINA, L. Tratado sobre los prestamos y la usura. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1989, p. XI-XLI. _________. (1990), Introducción. In: MOLINA, L. Tratado sobre los cambios. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1990, p. XI-XCI. CHAFUEN, A.A. Faith and Liberty. The Economic Thought of the Late Scholastics. 2 ed. New York: Lexington Books, 2003. Existe tradução para o espanhol publicada em 1991 com o título Economia y Ética (Madrid: Ediciones RIALP). GÓMEZ RIVAS, L. Economía Y Guerra, el pensamiento económico y jurídico desde vitória a Grocio (y después). Stvdia Historica (História Moderna), Ed. Universidad Salamanca, vol 27, 2005, p. 135-159. GRICE-HUTCHISON, M. The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory, 1544-1605. Oxford: The Clarendon Press, 1952. ____________. Early Economic Thought in Spain, 1177-1740. Londres: George Allen & Unwin, 1978. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 17 ____________. La escuela de Salamanca. Revista del Instituto de Estudios Economicos, 2, 1980, p. 45-52. HAYEK, F.A. Studies in Philosophy, Politics and Economics. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1967. ___________. New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1985. ___________. Law, Legislation and Liberty: A new statement of the liberal principles of justice and political economy. Londres: Routledge (Vol. I: Rules and Order, 1 ed de 1973; Vol. II: The Mirage of Social Justice, 1 ed de 1976; Vol. III: The Political Order of a Free People, 1 ed de 1979; 1 ed. dos três volumes num único tomo de 1982), 1998. HENRIQUES, M.C. John Locke e a génese das ideologias modernas. In: MORUJÃO, C.; MOIA, L. (orgs.). John Locke nos 300 anos da sua morte. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2009, p. 113-131. HUERTA DE SOTO, J. Escola Austríaca: Mercado e criatividade empresarial. Lisboa: Espírito das Leis, 2005. HUYLER, J. Was Locke a Liberal? The Independent Review, Vol. I, n. 4, 1997, p. 523542. LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. New York: Prometheus Books, 1990. MARITAIN, J. Princípios duma política humanista. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1960. MOREIRA, J.M. Luis de Molina e as origens ibéricas da economia de mercado. Actas do Encontro Ibérico sobre História do Pensamento Económico. Lisboa: Cisep, 1992, p. 41-62. NOZICK, R. Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974. PAIM, A. Recensão à obra de Ricardo Vélez RODRIGUEZ, Estado, Cultura y Sociedade en la América Latina (Colombia: Universidad Central, 2000). Nova Cidadania, 7, 2001, p. 68-70. PRIBRAM, K. A history of economic reasoning. Baltimore, Md., and London: The Johns Hopkins University Press, 1983. ROTHBARD, M.N. Economic Thought before Adam Smith, Vol. I de An Austrian Perspective on the History of Economic Thought (2 vols). Cheltenham: Edward Elgar, 1995. RIMA, I. H. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Ed. Atlas, 1977. ROMANO, O. A difusão do pensamento de Luis de Molina na primeira metade do século XVII. Cultura, História e Filosofia, 1, 1982, p. 261-287. 18 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 SCHNEEWIND, J. Locke’s Moral Philosophy. In: CHAPPEL, V. (ed.). The Cambridge Companion to Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. SIMMONS, A.J. The Lockean Theory of Rights. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1992. STEVERLYNCK, J. Raíces católicas del Liberalismo. Buenos Aires: Instituto de Estudios Económicos y de Ética Social, 1986. STRAUSS, L. Natural Right and History. Chicago: The University of Chicago Press, 1953. TULLY, J. Rediscovering America: The Two Treatises and Aboriginal Rights. In: ROGERS, G.A.J. (ed.). Locke’s Philosophy: Content and Context. Oxford: Clarendon Press, 1994. WALDRON, J. God, Locke and Equality: Christian Foundations in Locke’s Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. ZARATIEGUI, J.M. La propiedad en algunos autores de la Escuela de Salamanca. Cuadernos de CC.EE y EE, 2000, p. 87-93. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 19 Exigências ambientais exter nas como bar externas barrreiras comerciais ao Brasil Stela Luiza de Mattos Ansanelli* Resumo: O objetivo deste artigo é verificar os casos nos quais o rigor excessivo das exigências ambientais dos países desenvolvidos constituiu barreiras técnicas e sanitárias às exportações brasileiras, bem como os desafios impostos e as possibilidades de superação. É permitido o protecionismo no âmbito dos acordos multilaterais de comércio para a proteção da saúde animal, vegetal, humana e do meio ambiente. Mas os mercados dos Estados Unidos, União Europeia e Japão impõem algumas exigências excessivas sobre produtos agropecuários e, recentemente, sobre certos manufaturados. Esse quadro representa um desafio à competitividade do Brasil, visto que os produtos tradicionalmente superavitários da pauta brasileira são os mais afetados por essas medidas. A superação desses obstáculos passa pela montagem de um sistema de informações, de capacitação institucional, técnica e financeira e da articulação entre as principais organizações de comércio dentro e fora do país. Palavras-chave Palavras-chave: barreiras comerciais, exigências ambientais 1. Introdução A preocupação ambiental vem tomando espaço crescente na agenda política dos governos nacionais desde os anos 60 e, a partir de então, os instrumentos de política ambiental têm sido utilizados com maior frequência e de forma cada vez mais variada. Inicialmente as medidas de política ambiental foram estabelecidas pelos países avançados por meio da implementação de multas e proibições da produção, seguida pela adoção progressiva de instrumentos econômicos como taxas e de instrumentos de comunicação como selos ambientais. As questões ambientais têm uma interface com o comércio internacional na medida em que o país que estabelece regras sobre a produção e a importação de produtos de modo ambientalmente adequado pode afetar a produção e a comercialização do país exportador. Essas relações, embora inseridas na ordem dos acordos de comércio multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC), tornam-se nebulosas diante da dificuldade de identificar a real intenção * Stela Luiza de Mattos Ansanelli é Doutora em Economia Aplicada pela Unicamp e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: <[email protected]>. 20 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 do país importador na implementação de uma medida ambiental sobre certos produtos. Em muitos casos as medidas restritivas estabelecidas pelo país importador sobre determinados produtos visam garantir objetivos legítimos de proteção ambiental, mas em outros, tais exigências podem ser medidas protecionistas revestidas de pretextos ambientais. Ainda há discussões quanto a essa questão, mas as evidências indicam que, com a redução das barreiras tarifárias ao comércio resultante do avanço das negociações multilaterais desde o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt1947), tem sido crescente a quantidade de barreiras não-tarifárias estabelecidas pelos países, com destaque para as barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias. Essas barreiras associam-se à segurança nacional, alimentar e à proteção ambiental (FONTAGÉ, VON KIRCHBACH, MIMOUNI, 2001). Alguns estudos concluíram que países em desenvolvimento enfrentam maiores dificuldades no cumprimento das exigências ambientais externas, pois são exportadores de produtos primários e possuem deficiências em termos de recursos técnicos, financeiros e institucionais (HOFFMAN, ROTHERHAN, 2006; VERBRUGGEN et al, 1998) O objetivo deste artigo é verificar em quais casos a proteção ambiental excessivamente rigorosa colocada por países desenvolvidos tem se tornado obstáculo comercial para o Brasil, e avaliar as implicações decorrentes. Neste trabalho será discutido o significado das exigências ambientais para a dinâmica do comércio internacional. Serão apresentadas as principais barreiras comerciais (técnicas, sanitárias e fitossanitárias) de caráter ambiental colocadas sobre as exportações brasileiras pelos mercados desenvolvidos e a caracterização de seus marcos regulatórios. Por fim, discutem-se os desafios colocados por essas barreiras, bem como os possíveis caminhos de superação. 2. As exigências ambientais na dinâmica do comércio internacional Ao longo do processo de liberalização comercial iniciado com o Gatt em 1947 e sucedido por uma série de rodadas de negociação, vem sendo buscada a eliminação gradativa de barreiras tarifárias ao comércio internacional. A fim de evitar que outras medidas não-tarifárias configurassem obstáculos ao comércio, durante a Rodada Tóquio (1973-1979) foi negociado o Standard Code, formalizado como o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) na Rodada Uruguai (1986-1993), na qual também foi estabelecido o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) no âmbito da OMC. Esses acordos estabeleceram regras quanto às características dos produtos comercializados e permitem a restrição de produtos que ameaçam a vida humana, vegetal, animal e o meio ambiente. Mas em alguns casos essas medidas podem ter propósitos estritamente protecionistas e se tornar barreiras comerciais. As exigências técnicas estabelecidas pelos países se constituem de normas, regulamentos e procedimentos de avaliação da conformidade. Tanto as normas quanto os regulamentos referem-se às características do produto e podem incluir prescrições, símbolos e embalagens, entre outros, mas normas são medidas Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 21 voluntárias e os regulamentos são mandatórios1. Um procedimento de avaliação de conformidade é aquele utilizado para, direta ou indiretamente, determinar que se cumpram as prescrições pertinentes dos regulamentos técnicos ou normas, como avaliação, prova, inspeção e registro (INMETRO, 2004). As implicações destas exigências ao comércio internacional são diversas: se um produto não cumpre as especificações da regulamentação técnica, sua venda não será permitida, enquanto o não-cumprimento de uma norma, embora não inviabilize a venda, pode reduzir sua participação no mercado (INMETRO, 2004). Barreiras técnicas ou sanitárias e fitossanitárias são caracterizadas quando os regulamentos são usados de forma não transparente ou não são embasados em normas internacionalmente aceitas; ou, ainda, decorrentes da adoção de procedimentos de avaliação da conformidade não transparentes e/ou demasiadamente dispendiosos, bem como de inspeções excessivamente rigorosas (WTO, 1994). Conforme algumas evidências, grande parcela do comércio internacional consiste de produtos que podem ser afetados por barreiras comerciais associadas ao meio ambiente. Em 1999, 88% das importações foram potencialmente afetadas por exigências ambientais, US$ 679 bilhões do comércio mundial foram diretamente afetados por essas medidas e 137 países estabeleceram exigências ambientais sobre a maioria dos bens comercializados. Esses dados sugerem que, na prática, essas barreiras restringem o comércio internacional de certos produtos, sobretudo da cadeia agroalimentar (FONTAGÉ, VON KIRCHBACH, MIMOUNI, 2001). Para o caso dos países em desenvolvimento, a situação é mais complexa e exige maior atenção. Foi verificado que as barreiras técnicas têm se tornado relativamente mais importantes para o acesso a outros mercados por estes países. Um quinto das exportações de países em desenvolvimento esteve sujeito a requisitos ambientais estabelecidos pela União Europeia em 1992 (VERBRUGGEN et al, 1998). Assim, uma lista crescente de exigências ambientais ameaça restringir o acesso e a entrada de produtos dos países em desenvolvimento no mercado dos países avançados. Isso implica levantar quais têm sido os casos mais evidentes para o Brasil e avaliar as dificuldades e os possíveis meios de superação indicados pela bibliografia pertinente. 3. As barreiras comerciais de caráter ambiental aplicadas sobre as exportações brasileiras Os mercados dos Estados Unidos (EUA), União Europeia (UE) e Japão são os mais exigentes em questões ambientais e de segurança alimentar, o que nos permite listar as principais barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias dessa natureza que afetaram (ou afetam) as exportações brasileiras. 3.1. Estados Unidos 1 No âmbito do TBT são considerados apenas os regulamentos técnicos. Há somente um guia de boa conduta como orientação para adoção de normas. 22 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 O mercado norte-americano é importante para o Brasil, pois as vendas brasileiras têm se direcionado crescentemente para esse país. Contudo, os exportadores enfrentam muitos desafios compostos por barreiras comerciais2. Os EUA contam com inúmeros regulamentos federais, estaduais e municipais aplicáveis à qualidade, sanidade e inocuidade da produção nacional e das importações. Tais regulamentos incluem padrões de rotulagem, de boa fabricação, de embalagem, de práticas sanitárias e sobre aditivos, pesticidas, corantes em alimentos, certificação de produtos farmacêuticos, de produtos biológicos, níveis de acidez em enlatados, padrões industriais e sistemas de inspeção sanitários (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). Em geral, o sistema normativo norte-americano é complexo e pode representar barreiras às exportações de produtos brasileiros a partir de elevados custos e demora nos procedimentos. Existe grande quantidade de normas e regulamentos em diferentes níveis (federal, estadual e municipal), gerando incompatibilidade e duplicidade na realização de testes e certificação. Por exemplo, existem mais de 80 mil normas e regulamentos técnicos federais, estaduais e municipais e as normas são feitas por mais de 600 instituições. Outros problemas são a falta de transparência no estabelecimento de normas, regulamentos e processos de avaliação de conformidade, a demora nos processos de avaliação de conformidade e o uso limitado de normas e regulamentos internacionais com equivalência técnica ao regulamento doméstico e a contínua alteração dos regulamentos (FERRAZ FILHO, 1997; EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). Um outro tema relevante recente refere-se à Lei de Bioterrorismo estabelecida após o 11 de setembro de 2001. Foram estabelecidos novos requisitos para a proteção da cadeia alimentar contra riscos terroristas, incluindo registros de empresas da área alimentar junto à Food and Drug Administration (FDA), exigências de notificação prévia à importação de alimentos no território dos EUA e o estabelecimento de regras de rastreabilidade dos alimentos na cadeia produtiva e de distribuição e novas disposições para detenção administrativa e/ ou destruição de produtos julgados como suspeitos (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003). Quanto aos requisitos estritamente ambientais, cabe inicialmente avaliar a posição do governo dos EUA sobre a vinculação entre comércio internacional e proteção ambiental no plano multilateral, regional e bilateral. No plano multilateral, o discurso do governo Clinton era a defesa de medidas de proteção ambiental e a participação de grupos ambientalistas na OMC; no plano de integração hemisférica, o governo buscou avançar no suposto vínculo entre temas ambientais e o comércio continental. No governo Bush houve uma mudança na perspectiva de vários problemas relacionados ao meio ambiente. Na relação 2 Cerca de 60% dos produtos exportados pelo Brasil aos EUA são afetados por barreiras comerciais (tarifárias e não-tarifárias), principalmente os produtos brasileiros de maior competitividade (EMBAIXADA DO BRASIL NOS EUA, 2003; FUNCEX, 2007). Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 23 comércio-meio ambiente, essas questões não têm sido mais prioritárias nas negociações da OMC e da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). No entanto, os riscos protecionistas de medidas inspiradas por motivos ambientais têm demandado atenção dos parceiros comerciais dos EUA. Por exemplo, o país utiliza uma lista de espécies do Apêndice II da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção para proibir certas importações, como o mogno. Além disso, a proliferação de rótulos ambientais pode constituir barreiras, o que conduz ao debate interno sobre ecolabelling e sobre acordos ambientais multilaterais (BRASIL, 2001). Como requisitos e instituições relacionados de forma indireta com a proteção ambiental pode-se destacar o Sistema de Análises de Risco e Pontos Críticos de Controle (Hazard Analysis and Critical Control Point System – HACCP), que é o principal instrumento de controle de sanidade dos produtos consumidos nos EUA dos seguintes tipos: alimentos enlatados de baixa acidez, produtos de pesca, sucos de frutas sob a égide do FDA e carnes e frango sob a égide do Departamento da Agricultura. Os requisitos do HACCP são operacionais em todas as fábricas brasileiras autorizadas a exportar carnes processadas para os EUA; para a pesca, o importador é responsável pela verificação de conformidade com o HACCP do produto originário do Brasil. Todos os embarques precisam ser inspecionados e certificados pelas autoridades brasileiras. O importador é obrigado a vistoriar as instalações do exportador e obter registros da implementação de seu sistema HACCP (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). As regras de etiquetagem também estão indiretamente relacionadas às restrições ambientais. Estas envolvem procedimentos que objetivam fornecer ao consumidor informações, mas o excesso de exigências pode constituir entrave às importações. Nos EUA há um baixo nível de uso, desconhecimento ou contradição com os padrões internacionais. Existem 2,7 mil autoridades que requerem certificados particulares de segurança para produtos vendidos ou instalados em suas jurisdições. Nestas condições, adquirir informações necessárias e satisfazer os procedimentos exigidos constitui um grande desafio aos exportadores (BRASIL, 2001). Dentre os casos específicos de barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias registrados, há exigência de certificação anual dos países exportadores de camarão desde os anos 90, que depende da existência, nas legislações nacionais, de programas ambientais compatíveis com os programas em vigor nos EUA para a proteção de tartarugas marinhas (Emenda de 1989 à Lei de Proteção a Espécies em Perigo de Extinção – Endagered Species Act). Segundo tal condição, o Departamento de Estado exigiu que redes de pesca de arrasto de camarão em alto mar estejam equipadas com dispositivos de escape para tartarugas (Turtle Excluder Devices – TEDs). Como resposta, a frota camaroneira da costa nordestina brasileira se converteu ao uso do equipamento requisitado (a fim de 24 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 exportar com certificado) e o Brasil tornou claro seu compromisso com a preservação da espécie por meio do projeto Tamar e da assinatura da Convenção Interamericana para Proteção e Conservação das Tartarugas Marinhas (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). A legislação dos EUA foi questionada e, em 1998, o Órgão de Apelação da OMC determinou que a pesca com TEDs constituía discriminação arbitrária e injustificada ao comércio internacional, devendo os EUA mudar sua legislação até 1999. Os EUA propuseram uma regulamentação mais flexível e transparente no exame dos programas de pesca de outros países, considerando diferentes condições de pesca de camarões, e foi autorizada a importação de camarão de países que, mesmo não certificados, comprovassem a pesca com TEDs. O Brasil, apesar de exportar com certificado de uso do equipamento, continuou fora da lista dos países certificados até 2002 (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001). Podemos ter uma idéia do impacto da exigência dos TEDs e da “descertificação” sobre as exportações brasileiras de camarão para os EUA a partir da tabela 1. Os dados indicam que, apesar das restrições, o Brasil tem grandes vantagens comparativas neste produto. Tabela 1. Brasil: Expor tações de camarão aos Estados Unidos Exportações Fonte: EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003 Outro caso é o da gasolina gasolina. O Regulation of Fuels and Fuel Additives – Standards for Reformulated and Conventional Gasolines, instituído pela Environmental Protection Agency (EPA) em 1993 para controlar a emissão de poluentes, determinava o padrão de emissão de poluentes com base no nível de emissão de gasolina produzida pelas refinarias domésticas em 1990. O caráter discriminatório referia-se à diferença na base de cálculo de emissão para estrangeiros, uma vez que as refinarias domésticas poderiam calcular sua própria base de comparação, ou seja, o nível de emissão de seu produto em 1990, enquanto as refinarias estrangeiras teriam de utilizar uma base de comparação estabelecida pela EPA, ancorada na emissão média das diferentes gasolinas vendidas nos EUA em 1990. Por este motivo o caso resultou na abertura de painel na OMC em 1995 pela Venezuela e com posterior associação do Brasil (BRASIL, 2001). Para frutas e vegetais vegetais, as exportações brasileiras têm sido prejudicadas pela aplicação de regulamentos sanitários e fitossanitários. A certificação e a autorização dessas importações também envolve um processo longo e custoso, bem como procedimentos de inspeção nas duas pontas: nos portos exportadores e nos portos de entrada (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; FUNCEX, 2007). O FDA elaborou em 1998 uma proposta Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 25 de padrões voluntários de segurança para minimizar os riscos microbianos à segurança alimentar para frutas e vegetais (Guide to minimize microbial food safety hazards for fresh fruits and vegetables). Com isso a exportação de produtos brasileiros, sobretudo de pequenos produtores, tem sido prejudicada pelo grande número de exigências e de entidades administradoras, pela falta de compatibilidade dos padrões nacionais com os internacionais do Codex Alimentarius e pela necessidade de recursos humanos e financeiros significativos para cumprir os requisitos de exportação e os custos das modificações exigidas nos processos de fabricação e embalagem. Outros obstáculos seriam a proibição de importações por razão de fitossanidade de mamão e melão (exceto os originários de áreas certificadas), cítricos, figos, abacate, caqui, maracujá e carambola. Soma-se a isso a necessidade de licença prévia, que abrange 100% dos produtos, e de tratamentos especiais, como para o ingresso de produtos por portos específicos ou tratamentos químicos e térmicos para produtos com entrada permitida (abacaxi, agrião, alho, maçã, inhame, uva e manga, entre outros). Há ainda a burocracia do Departamento de Agricultura dos EUA no exame de controle de pragas dos exportadores para este mercado, sendo que estes procedimentos podem levar anos, como ocorreu com o mamão papaia, cuja aprovação durou 5 anos (BRASIL, 1999; EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003, FUNCEX, 2007; BRASIL, 2001). nes Também por razões de fitossanidade, as exportações brasileiras de car carnes estão restritas ou proibidas. Quanto à carne bovina in natura, tem sido proibida a importação de carne fresca e congelada em razão da ocorrência de febre aftosa no rebanho, apesar dos progressos na prevenção e da erradicação da doença no Brasil, que são suficientes para viabilizar o processo de certificação de carne in natura procedente de certas regiões do país. Em relação à carne bovina processada, os EUA têm um esquema rigoroso de fiscalização da qualidade sanitária pelo Food Safety and Inspection Service (FSIS), por meio de inspeções periódicas em frigoríficos e processadores brasileiros e de reinspeção aleatória de produtos importados nos portos de entrada. Recentemente o FSIS orientou para o estabelecimento da equivalência entre as práticas sanitárias dos países exportadores em relação às aplicadas nos EUA com ênfase no HACCP (FUNCEX, 2007). Foi proibida a importação de carne suína in natura e é requisitada uma declaração de que o produto esteja livre de cólera suína, doença vesicular suína e febre suína pelo Ministério de Agricultura para ingresso no processo regulatório. No caso da carne de frango, o Brasil não comercializa este produto nos EUA, embora seja o maior exportador do mundo; os obstáculos enfrentados referem-se à necessidade de certificação do sistema de inspeção sanitário brasileiro pelo FSIS como equivalente ao norte-americano e de certificação, pelas autoridades brasileiras, de que o Brasil está livre da doença de Newcastle3 (FUNCEX, 2007). O Ministério da Agricultura passou a requerer a partir de outubro de 2002, no âmbito do Programa Nacional Orgânico, a certificação da rotulagem de 3 26 O Brasil já tem declarações de estar livre desta doença em algumas regiões. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 produtos orgânicos nacionais e importados. Há três tipos de rótulos: “100% organic”, devendo conter apenas ingredientes orgânicos (exceto sal e água); “organic”, devendo conter 95% de ingredientes orgânicos; e “made with organic ingredients”, devendo conter, no mínimo, 70% de ingredientes orgânicos. Os exportadores podem obter certificação de rotulagem diretamente de agência reconhecida pelo Ministério ou obter reconhecimento da avaliação da conformidade, a partir da garantia por parte do governo do país fornecedor de que uma agência certificadora naquele país pode cumprir os requisitos da legislação norte-americana de rotulagem e de certificação de produtos orgânicos (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; FUNCEX, 2007). Além desses requisitos de certificação de rotulagem, há um novo requisito estabelecido pela Lei Agrícola de 2002 de rotulagem por país de origem – Lei de Rotulagem por País de Origem (Country of Origin Labelling – Cool). Este se iniciou de modo voluntário e é aplicável à comercialização varejista de cortes de carne bovina, suína e ovina, peixes, frutas, vegetais e amendoim. Tais legislações, por resultarem em custos adicionais associados com a verificação de origem do produto e despesas adicionais de rotulagem, podem desestimular as exportações brasileiras (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; FUNCEX, 2007). 3.2. União Europeia O sistema normativo da União Europeia tem se caracterizado por exigências rigorosas (e algumas vezes divergentes das internacionais) em termos de regulamentos técnicos e de certificação, bem como por demora nos processos de certificação e de aprovação sobre as exportações de países fora da região, o que aumenta os custos destes. De uma maneira geral, tais restrições se devem à falta de uniformidade de normas e regulamentos técnicos entre países-membros, o que dificulta a adequação a diferentes requisitos nacionais. Alguns regulamentos referem-se também a processos produtivos que devem seguir o padrão de produção da União Europeia. Outras exigências constituem-se de rótulos específicos, cuja entrada de produtos no mercado deve ser aprovada somente por laboratórios localizados na Europa e reconhecidos pela UE. Apesar de o exportador de outros países para a região poder adotar os padrões da UE para atender aos requisitos essenciais mediante soluções de equivalência, não há registros destes casos (BRASIL, 2001; FERRAZ FILHO, 1997; FERRAZ et al, 1997b). No que se refere diretamente aos requisitos de regulamentação ambiental, há uma vasta legislação com destaque para o Programa Comunitário de Rotulagem Ambiental e os requisitos de etiquetagem de produtos e materiais recicláveis. O primeiro baseia-se no uso do selo ecológico aprovado pelo Conselho de Ministros da UE em 1992, que visa influenciar o comportamento do consumidor quanto aos impactos ambientais do produto. Para obtenção do selo é necessário comprovar que o processo e o ciclo de vida do produto atendem aos Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 27 critérios estabelecidos. Tais critérios existem para certos produtos, como fertilizantes, máquinas de lavar e papel higiênico. O caráter restritivo do selo é indireto por meio da influência sobre a decisão dos consumidores, o que tende a elevar os custos para exportadores brasileiros realizarem testes de avaliação de conformidade (BRASIL, 2001). Outro importante requisito parte da aplicação de uma norma estabelecida em 1996, uma Diretiva da Comissão Europeia que estabelece requerimentos de marcação para identificar a possibilidade de reutilização e reciclagem das embalagens (BRASIL, 2001). Em termos de regulamentos relacionados de forma indireta à questão ambiental, encontram-se os regulamentos sanitários, fitossanitários e de saúde animal que proíbem a importação de alguns animais e carnes sob a exigência de serem originários de estabelecimentos aprovados pela Comissão Europeia. No que se refere às barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias específicas por produtos, as exigências colocadas sobre a importação de animais e carnes resumem-se, principalmente, à sanidade animal e à inocuidade alimentar. Quanto à sanidade, é necessária a habilitação pela Comissão Europeia dos estabelecimentos exportadores de produtos de origem animal para a região conforme Diretiva Comunitária 92/46. Este regulamento constitui uma barreira técnica na medida em que o processo de habilitação é lento, realizado sem os recursos necessários, há requisitos nacionais que não coincidem com os comunitários e as restrições da UE são mais rigorosas do que as estabelecidas pelo Codex Alimentarius4 (BRASIL, 2001). Em relação à inocuidade, as exportações de origem animal estão condicionadas pela Diretiva Comunitária 96/23 à existência no país de origem de planos de controle de resíduos, que são classificados na legislação comunitária como substâncias proibidas (hormônios de crescimento), medicamentos veterinários (antibióticos e vermífugos) e contaminantes (pesticidas e metais pesados, entre outros). Essa é uma barreira técnica, pois a diretiva não foi notificada à OMC e incluiu exigências tanto de controle de substâncias não permitidas nos terceiros países (como hormônios de crescimento) como de controle mais rigorosas do que as recomendadas internacionalmente. Os países podem perder a habilitação de exportação se descumprirem os requisitos e é exigida uma etiquetagem de rastreabilidade de toda a carne bovina comercializada na UE (BRASIL, 2001). Também existem requisitos sanitários e fitossanitários relacionados ao controle da higiene, de doenças e de resíduos para frutas e vegetais vegetais. Os controles da higiene são realizados no desembarque, quando é necessário o certificado sanitário de exportação por controles de higiene e de sanidade vegetal. Destacamse os seguintes casos: mangas, goiabas e papaia, cujo acesso é afetado por controles de higiene; cítricos, nos quais a adoção de medidas contra o cancro cítrico e a 4 Alguns exemplos: carne bovina, cuja importação é restrita pela ocorrência de febre aftosa e, para tanto, a UE coloca condições específicas de criação, engorda e manuseio, além da adoção de medidas referentes à crise da “vaca louca”, embora não haja registros da doença no Brasil; carne bovina com osso, bovinos vivos e sêmen de bovinos, cuja importação é proibida devido à febre aftosa; carne suína fresca, cuja importação é proibida devido à febre suína clássica; ovinos em pé que necessitam de certificação para entrada. 28 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 mancha negra é desproporcional aos níveis de risco, além de serem modificadas sem avaliação de análise de riscos (BRASIL, 1999; BRASIL, 2000). Os controles de contaminantes alimentares são tidos como barreiras científicas e envolvem a fixação de limites de tolerância para substâncias como aflatoxinas, ocratoxinas, dioxina e resíduos de pesticidas. Como exemplos de obstáculos às exportações brasileiras, tem-se o estabelecimento de níveis de aflatoxina acima dos sugeridos pelo Codex para frutas secas e o estabelecimento de uma legislação mais rigorosa para o limite aceitável de resíduos de pesticidas (ditiocarbamato) sobre o mamão papaia, que se fixam na casca desta fruta, do que o limite para produtos ingeridos diretamente, como alface e morango (BRASIL, 2001; BRASIL 2000). Encontram-se exigências sobre a produção agrícola biológica e requerimentos para a comercialização de produtos orgânicos no mercado comunitário. Para tanto foram definidas normas para a produção, o sistema de controle, as disposições administrativas e o estabelecimento das modalidades para exportadores de terceiros países sob o Regulamento 2092/91 do Conselho de 24 de junho de 2001. Dos exportadores desses produtos para a UE, apenas 6 países encontram-se certificados, sendo a Argentina o único país do Mercosul. Também pode ser identificado como um obstáculo adicional à exigência da UE o cumprimento de determinados requisitos para que entidades sejam reconhecidas como certificadoras de produtos orgânicos ou biológicos (BRASIL, 2001). Para a exportação de alimentos processados são exigidos, conforme a regulamentação Novel Foods Regulation de 1997, selos identificando os ingredientes e os produtos elaborados a partir da biotecnologia, como ocorre nos casos do milho e da soja (BRASIL, 2001). Para produtos químicos encontra-se em vigor desde junho de 2007 o regulamento Reach (Registration, Evaluation and Authorization of Chemicals) sobre o registro, a avaliação, a autorização e a restrição de substâncias químicas, aplicável a todas as empresas que comercializam na região ou com países da região. O Reach visa assegurar um elevado nível de proteção da vida humana e do meio ambiente, exigindo o registro de cerca de 30 mil substâncias a ser efetuado ao longo de 11 anos. A comercialização da produção com ou na UE exigirá testes, análises químicas e toxicológicas e elaboração de estudos, entre outros procedimentos para cada substância. Esse regulamento pode se tornar uma barreira técnica para o Brasil na medida em que a empresa exportadora do país precise incorrer em altos custos para regularizar as substâncias contidas em seus produtos para venda ao mercado europeu (HENRIQUE; ANTUNES, 2007). Outros produtos industrializados, como eletroeletrônicos eletroeletrônicos, enfrentam novas regulamentações para entrar no mercado europeu por causa da diretiva que restringe o uso de substâncias perigosas, como chumbo, mercúrio, cádmio e cromo, entre outros, em vigor desde 2006. Esse requisito, conhecido pela sigla RoHS (Restriction of the certain Hazardous Substances), pode se tornar uma barreira comercial por ser bastante rigorosa e complexa, pois envolve alterações de produto e processo significativas e procedimentos específicos para a Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 29 demonstração da conformidade. De qualquer forma, a produção do setor no Brasil já tem sido alterada, porque essa medida vem sendo transmitida principalmente pelas empresas transnacionais e pelos clientes (ANSANELLI, 2008). 3.3. Japão O sistema japonês de normas e regulamentos técnicos caracteriza-se, de uma forma geral, por exigências muito rigorosas, diferentes das internacionais, por lentidão nos processos de certificação e pela falta de transparência nos procedimentos. Alguns desses padrões têm se tornado barreiras técnicas, pois seu estabelecimento pelo governo e pela indústria não tem acompanhado a evolução tecnológica e vem contribuindo para restringir as exportações de outros países (BRASIL, 2001). Em termos de requisitos ambientais, o Japão possui um oneroso esquema de certificação de produtos orgânicos. No que toca aos regulamentos indiretamente relacionados à questão ambiental, o país impõe uma severa legislação sanitária e fitossanitária, sobretudo à importação de frutas. Esses também são os produtos com reduzida participação no mercado japonês (BRASIL, 2001). O Japão vem aplicando severas restrições de ordem técnica e fitossanitária que impedem o acesso de frutas e vegetais em seu mercado desde a Rodada Uruguai. Foram identificadas barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias que inviabilizaram as exportações brasileiras devido à exigência de certificado fitossanitário emitido por uma autoridade competente no país exportador, à inspeção japonesa no local do plantio (como a importação por portos específicos de alguns grãos) e à não aceitação dos métodos brasileiros de controle de doenças (BRASIL, 1999). A Lei Sanitária de Alimentos japonesa sofreu mudanças desde 1998 e compreende barreiras aos exportadores brasileiros por motivos fitossanitários ou de quarentena. Conforme os regulamentos do país, foram estabelecidas categorias de classificação dos vegetais e para a sua preparação, que incluem: 1) itens de importação proibida, tais como vegetais provenientes de regiões com incidência de pestes não existentes no Japão, pestes e patogênicos vegetais, terras e vegetais plantados, que incluem manga, tomate, maçã e jabuticaba, entre outros; e 2) itens sujeitos a quarentena, tais como vegetais cuja importação não é proibida, mas que estão sujeitos à inspeção no local de cultivo ou na entrada e incluem plantas vivas de tomate e batata, as raízes vivas de abacate e cana de açúcar, chá, milho e amendoim5 (BRASIL, 2001). Outros aspectos relacionados à importação de frutas e vegetais e que se tornaram barreiras técnicas são: a falta de transparência nas exigências de fumigação, pois o tratamento de fumigação para produtos hortifrutícolas frescos é necessário, caso 5 Um dos problemas da Lei de Quarentena, embora ela tenha sido revisada na Rodada Uruguai, é que não distingue organismos nocivos de inofensivos. 30 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 haja insetos vivos no carregamento, o que aumenta o tempo de desembaraço das importações e afeta sua qualidade6; e a demora na certificação, já que a política de certificação de tratamento adequado contra pestes exige a avaliação de conformidade individualizada para cada produto, implicando a realização de testes adicionais para importação de cada nova espécie (BRASIL, 2001). Na área da biotecnologia biotecnologia, o governo japonês previa a implementação de rotulagem obrigatória para 24 alimentos processados e semiprocessados feitos de milho e soja em 2001. Quanto aos suplementos alimentares alimentares, estes produtos são considerados como drogas pelo Japão, o que tende a resultar em restrições severas na fórmula, dosagem e formato para varejo e a criar custos excessivos para os países que desejam exportar para esse país. Em relação aos alimentos processados, alguns aditivos, mesmo admitidos internacionalmente como seguros para a saúde humana, são proibidos no Japão (BRASIL, 2001). Os produtos orgânicos orgânicos, mesmo certificados pelos Estados Unidos, devem também ser certificados pelas organizações acreditadas pelo Ministério Japonês de Agricultura, Floresta e Pesca (Maff) e sediadas no Japão, sendo estes processos onerosos e demorados (BRASIL, 2001). A importação de carne bovina é proibida devido à febre aftosa em alguns pontos no Brasil, mesmo da carne originária de áreas certificadas que não apresentam a doença. A carne de frango possui importações restritas em decorrência da alegada contaminação por resíduos de nicarbazina (BRASIL, 2001). Uma síntese de todos esses casos encontra-se no quadro 1. 6 As exportações brasileiras de laranja foram inviabilizadas por este motivo. Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 31 Quadro 1. Barreiras técnicas ambientais, sanitárias e fitossanitárias que afetaram as exportações brasileiras (por produto e mercado de destino) 32 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 4. Os desafios e as possibilidades de superação do Brasil Das barreiras técnicas e sanitárias e fitossanitárias listadas por mercado de destino, a maioria se concentra em produtos primários, como frutas e vegetais, animais e carnes e alimentos. Todos os mercados analisados colocam barreiras sobre esses produtos. Mas também se nota que alguns regulamentos recentes e extremamente rigorosos, como as exigências sobre produtos químicos e eletroeletrônicos, têm efeitos potenciais sobre as exportações de ramos mais intensivos em tecnologia. Na pauta exportadora brasileira, a categoria de produtos primários é classificada como atividade superavitária. Apesar da oscilação do saldo comercial brasileiro, desde 1993 esses produtos, constituídos por commodities em sua maioria (como abate de animais e agropecuários), registraram elevados superávits comerciais acima de US$ 1 bilhão ao ano. No outro extremo, os setores de elementos químicos, farmacêutica e perfumaria, refino de petróleo e petroquímicos, químicos diversos e equipamentos eletrônicos foram classificados como os altamente deficitários, pois são importadores líquidos desde 1993 (RIBEIRO, 2007). Esses setores altamente deficitários coincidem com a segunda categoria de produtos sobre os quais podem incidir barreiras técnicas ambientais. Dessa forma, a contraposição da frequência e incidência de barreiras ambientais com a caracterização da pauta exportadora brasileira pode sinalizar as fragilidades e os desafios que o país venha a enfrentar. As barreiras não-tarifárias (técnicas, sanitárias e fitossanitárias) de caráter ambiental tendem a evitar o aumento da participação das exportações de produtos nos quais o Brasil possui vantagens no comércio mundial, visto que são os altamente superavitários. Mas as barreiras técnicas ambientais também têm um potencial negativo sobre manufaturados, no sentido de inibir o crescimento da participação de exportações de produtos de maior conteúdo tecnológico, produtos nos quais se poderia agregar valor. Quais são as sugestões, em termos de orientação política, diante desses desafios? Há poucos estudos realizados no Brasil sobre barreiras técnicas colocadas sobre as exportações brasileiras. Mas os trabalhos disponíveis nos permitem identificar diagnósticos e recomendações gerais7. As causas das insuficiências encontradas diante das exigências técnicas e sanitárias e fitossanitárias são de natureza interna e externa. No Brasil os maiores obstáculos encontrados devemse à falta de: • informação por parte das empresas sobre as barreiras técnicas e sobre as legislações internacionais; • capacitação, pelo baixo grau de desenvolvimento do sistema de normalização, falta de homologação dos laboratórios brasileiros, precariedade do sistema de avaliação interna de conformidade e reduzida interação com organismos internacionais de normalização; 7 Os estudos utilizados, cujas orientações são semelhantes ou complementares, são: BRASIL (2003); FERRAZ FILHO (1997); FERRAZ et al (1997 a e b); EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS (2003); BRASIL (2001); BRASIL (2000); BRASIL (1999) e ALMEIDA E PRESSER (2003). Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 33 • apoio técnico por parte das instituições governamentais e falta de convergência entre as ações dos Pontos Focais do TBT e do SPS no Brasil, respectivamente, Inmetro e Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No exterior os obstáculos foram atribuídos aos altos custos dos procedimentos de certificação e de testes estrangeiros, aos prazos e à submissão a critérios seletivos nem sempre justificados cientificamente. Também merece destaque a lenta adoção de normas internacionais pelos países importadores e a incapacidade, no âmbito da OMC, de solucionar estes problemas. As recomendações sugeridas referem-se ao esforço de criar, internamente, um sistema de informações para identificar as barreiras de forma adequada; buscar a harmonização das exigências em nível internacional; criar um sistema de avaliação de conformidade com reconhecimento internacional; obter maior conhecimento dos acordos TBT e SPS; agir com maior agressividade e interesse por parte dos exportadores; fornecer assistência técnica e treinamento do pessoal dos Pontos Focais; e realizar capacitação em áreas específicas de saúde, meio ambiente e segurança. Para alcançar tais metas, torna-se necessário o apoio do governo, bem como a cooperação entre níveis de governos e, do ponto de vista externo, o fornecimento de assistência técnica e financeira por parte dos países desenvolvidos, por meio de programas de cooperação com organismos de normalização e avaliação de conformidade, transferência tecnológica e o desenvolvimento de maior cooperação regional no âmbito do Mercosul para harmonização dos regulamentos técnicos e sanitários. É importante também que a estrutura institucional para o estabelecimento de normas e regulamentos técnicos e a promoção de políticas públicas, como os requerimentos ambientais e de agricultura orgânica, não seja separada das instituições necessárias para a promoção do comércio exterior. Referências bibliográficas ALMEIDA, L. T.; PRESSER, M. F. Os acordos SPS e TBT da OMC: uma avaliação das necessidades de capacitação técnica para o desenvolvimento sustentável no Brasil. ENCONTRO NACIONAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA ECOLÓGICA, 5, 2003, Caxias do Sul. Anais..., Caxias do Sul, RS: Universidade de Caxias do Sul, 2003. ANSANELLI, S.L.M. Os impactos das exigências ambientais europeias para equipamentos eletroeletrônicos sobre o Brasil. Tese (Doutorado), 2008. Instituto de Economia: Unicamp, 2008. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Mapa/Fipe/Iica. Barreiras comerciais internacionais tarifárias, quantitativas e sanitárias. In: ______. Estudos sobre o mercado de frutas. Brasília, DF, 1999. ______. Missão do Brasil junto às Comunidades Europeias. Obstáculos ao acesso das exportações do Brasil ao mercado comunitário. Brasília, DF, 2000. 34 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 ______. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. MDIC/Secex. Barreiras externas às exportações brasileiras para Estados Unidos, Japão e União Europeia. Brasília, DF, 2001. ______. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. MDIC/Sisbatec. Sistema de informação sobre barreiras técnicas enfrentadas por exportadores brasileiros. Brasília, DF, 2003 (Cartilha). EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS. Barreiras aos produtos e restrições a serviços e investimentos nos EUA. 3 ed. São Paulo: Aduaneiras, 2003. FERRAZ FILHO, G. Barreiras técnicas ao comércio internacional: a experiência das exportações brasileiras. Revista Brasileira de Comércio Exterior, n. 52, jul-set. 1997 (Estudo Funcex). FERRAZ FILHO, G. et al. Barreiras técnicas ao comércio internacional: a experiência brasileira das exportações brasileiras. Rio de Janeiro: Funcex, 1997 (Relatório). FERRAZ FILHO, G.; CAVALCANTI, M.A.F.; RIBEIRO, M.B.R. Barreiras técnicas ao comércio internacional: aspectos teóricos e as experiências regionais de harmonização. Rio de Janeiro: Funcex, 1997 (Relatório). FONTAGÉ, L.; VON KIRCHBACH, F.; MIMOUNI, M.A. First assessment of environment related trade barriers. Paris: CEPII, 2001 (Document de Travail n. 1-10). FUNCEX. Barreiras a produtos brasileiros no mercado dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: 2007. HENRIQUE, N.M.M.; ANTUNES, A. Reach: barreira técnica ou econômica? Revista Brasileira de Comércio Exterior, v. 21, n. 92, jul-set 2007. HOFFMAN, U.; ROTHERHAM, T. Environmental requirements and market access for developing countries: promoting environmental – not trade – protection. In: UNCTAD/ DITC – UNITED NATIONS. Trade and environmental review. 2006. INMETRO. Barreiras técnicas. Disponível em: <www.inmetro.gov.br/barreirastecnicas>. Acesso em: 2 jan 2004. RIBEIRO, F.J. Saldos comerciais no Brasil: composição setorial e sustentabilidade. Revista Brasileira de Comércio Exterior, v. 21, n. 93, out-dez 2007. ROTHERHAM, T. Implemeting environmental, health and safety (EH&S) standards, and technical regulations: the developing country experience. Canada: International Institute of Sustainable Development, 2003. VERBRUGGEN, H.; KUIK, O.; BENNIS, M.; HOOGEVEEN, H.; MOLLERUSS, R. Environmental Product Measures: barriers for South-North trade? Creed Working Papers Series, n. 18. International Institute for Environment and Development. March 1998. WTO. Acordo sobre barreiras técnicas ao comércio. 1994. Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 35 Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar de decisões sobre risco Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni* Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir o processo de tomada de decisão no contexto de produção do índice EMBI+ do JP Morgan e das notas referentes à avaliação de investimento, fornecidas por agências especializadas como Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, assim como a repercussão dessas variáveis no mercado financeiro e na estabilidade de um país, utilizando a campanha presidencial de 2002 e início do novo governo em 2003 como ilustração. A hipótese deste trabalho aponta para a ocorrência de vieses tanto no cálculo como na utilização destas variáveis por parte dos agentes econômicos, mídia e autoridades, os quais estão sujeitos a inúmeras limitações e distorções cognitivas e emocionais de diversas ordens, conforme se pôde verificar também nos eventos associados à crise financeira mundial nitidamente verificada em 2008. Palavras-chave Palavras-chave: concurso de beleza keynesiano, funcionamento mental, índice EMBI+, Psicologia Econômica, risco-país, tomada de decisão. Introdução No momento em que muito se discute sobre risco e sua avaliação, apontando-se graves falhas na atuação das agências especializadas, que deixaram de apontar situações de insolvência em grandes bancos, seguradoras e outras empresas na profunda crise econômica que o mundo enfrenta desde 2008, mostrase oportuno lançar outro tipo de luz sobre essa questão, a partir de um episódio * Vera Rita de Mello Fer Ferrreira é psicanalista e doutora em Psicologia Social (PUC-SP), professora da PUC-SP e representante no Brasil da International Association for Research in Economic Psychology (Iarep). E-mail: <[email protected]>. Thiago Lisoni é economista formado pelas Faculdades de Campinas (Facamp) e corretor financeiro no mercado imobiliário na província de Ontário (Canadá). Email: <[email protected]>. Elementos do presente artigo foram apresentados, em versões preliminares, por FERREIRA, em Again, what is it that you believe? – a study of psychological factors at work over the market throughout major political-economic events. Anais do XXVIII Iarep Annual Colloquium on Research in Economic Psychology. Christchurch, Nova Zelândia, 2003; e Informações econômicas e ilusão – uma contribuição psicanalítica ao estudo de fenômenos econômicos. Ágora – Revista de Teoria Psicanalítica, 10 (1): n.º1, 2007; e por LISONI, em O risco país e os fundamentos macroeconômicos: a utilização do índice EMBI+. Trabalho de Conclusão de Curso, Facamp, 2004 (não publicado). 36 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 recente na história brasileira. É possível que, em 2002, o Brasil possa ter sido alvo de avaliações enviesadas, o que afetou de modo drástico o cenário econômico da época. Este artigo discute as limitações e vieses de diversas ordens (cognitiva, emocional, temporal e política, para enumerar algumas delas) a que estariam sujeitos, a exemplo de todas as demais pessoas, aqueles especialistas que são responsáveis pelas classificações de risco de crédito (fornecidas por agências especializadas, como Standard & Poor’s, Moody’s e Fitchy) e risco de mercado (calculado pelo JP Morgan através do EMBI+). A discussão tem como foco o processo de tomada de decisão envolvido na produção dessas variáveis e sua repercussão no mercado financeiro e na estabilidade de um país, utilizando o caso brasileiro, à época da penúltima campanha presidencial, em 2002, e início do novo governo, em 2003, como ilustração. A questão proposta para debate é: até que ponto as informações contidas nestas referências gerais mencionadas são objetivas e indiscutivelmente confiáveis? Embora ampla e quase unanimemente aceitas por analistas econômicos, governos e mercados financeiros, levanta-se a hipótese de haver parcialidade de ordem psíquica em sua elaboração. Nossa argumentação apoia-se em três grandes linhas teóricas e, em alguns casos, também empíricas, representadas por: 1. teorias desenvolvidas pelo economista John Maynard Keynes, que, ao contrapor-se à teoria econômica clássica, oferece importante material para uma discussão sobre tomada de decisões a partir de hipóteses como a do “concurso de beleza”; 2. dados coletados em experimentos realizados por pesquisadores da interface Psicologia-Economia a respeito das limitações, distorções e vulnerabilidades apresentadas pelos agentes em processos decisórios, com destaque para: a teoria da racionalidade limitada de Simon (1978); o programa de pesquisa empreendido por Kahneman, Tversky e colaboradores, sobre heurísticas, vieses e a teoria do prospecto (Tversky e Kahneman [1974], Kahneman e Tversky [1979], Kahneman [2002]); regras de decisão, de Earl et al. (2007); pressões a que estão submetidos gestores do mercado financeiro, de Lundberg (2000); influência de fatores afetivos sobre a percepção na mídia, de Roos (2006) e Rosa, Enrietto e Gioiosa (2005); 3. teorias psicanalíticas sobre o funcionamento psíquico e o pensar, com ênfase sobre o papel das emoções sobre a razão (Freud, 1911-1976; Klein, 19631985; Bion, 1961-1967). Para discutir o exemplo de impacto sobre a economia em geral promovido pela interação entre a divulgação do risco-país (EMBI+) e outros fatores de natureza político-econômica do Brasil entre 2002 e 2003, são analisadas manchetes de jornal da época, cotejadas com índices relevantes de desempenho econômico do país. Uma breve retrospectiva, a respeito do estabelecimento dos índices de avaliação de risco, referentes à capacidade de os países honrarem dívidas contraídas com credores internacionais, refletidos diretamente no comportamento de seus mercados financeiros, é apresentada a seguir. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 37 Risco-país – uma breve retrospectiva e debate Políticas econômicas e decisões no âmbito financeiro costumam ser balizadas por parâmetros usados como referências gerais. O risco-país, índice elaborado pelo JP Morgan, e as notas referentes à classificação de risco de crédito, fornecidas por agências especializadas, como Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, são alguns deles. Economistas podem explicar, com relativa facilidade, como estas referências gerais são obtidas, com base em fatores quantitativos e qualitativos. Em 2007, no Brasil, questionou-se as classificações de risco em função de sua lentidão para adequar-se aos novos índices resultantes da modificação da metodologia adotada pelo IBGE para medir o PIB dos últimos anos. Esta revisão metodológica representou uma melhoria deste indicador e de outros que dele decorrem. Enquanto o JP Morgan absorveu com maior agilidade esta modificação por ser sensível a eventos de curto prazo, as demais agências de classificação de risco não o fizeram de modo concomitante, tornando-se alvo de críticas por parte de alguns analistas de mercado1. De acordo com Canuto e Santos (2003, p. 6), os riscos oriundos da assimetria de informação podem ser eliminados ou minimizados, dependendo do aperfeiçoamento de transações financeiras entre aplicadores e tomadores de recursos de fatores que mitiguem a ocorrência dessas assimetrias2. Tais mecanismos elevam a disposição a pagar por parte do devedor, mas operam com custos e nem sempre com eficácia suficiente para contornar o problema. As agências ou instituições – privadas e públicas – de classificação (rating) de riscos de crédito inserem-se na coleta e processamento de informações antes das operações, tornando-as viáveis a um custo menor. A rigor, a presença de agências supridoras de ratings constitui elemento necessário para que a oferta de recursos financeiros, em qualquer economia, não fique restrita a bancos (Canuto e Santos, 2003, p. 6). Portanto, em um primeiro momento, as agências de rating inseriram-se no mercado para viabilizar as operações de potenciais compradores de bônus, notas promissórias, commercial papers e ações, que não eram investidores sofisticados como os bancos, tendo a seu dispor um departamento de análise de crédito pronto para classificar qualquer empresa no quesito capacidade de pagamento. Para atender a esses investidores, a principal missão dessas agências de rating era calcular o risco corporativo, ou seja, avaliar de forma independente as empresas e dar-lhes, dentro de uma escala adotada por todas, um conceito para sua capacidade de cumprir obrigações (Franco, 2000). Já num segundo momento, quando países emergentes, ou empresas neles sediadas, desejam inserir-se nos mercados de capitais dos países centrais para vender bônus de forma similar às empresas locais, os investidores sentem-se 1 Ver, a este respeito, por exemplo, matéria do jornal O Estado de S.Paulo, 15 abr 07, sob a manchete “Agências de risco são ‘rebaixadas’”. 2 Os exemplos de Canuto e Santos (2003, p. 6) são: coleta e processamento de informações antes das operações; firmação de contratos e monitoramento de sua execução de modo a controlar o uso dos recursos após o repasse; estabelecimento de garantias com o fim de minimizar as perdas em caso de inadimplência do devedor. 38 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 atraídos pelas elevadas taxas de remuneração, mas não têm instrumentos de análise suficientes para avaliar os riscos envolvidos. Nesse momento, a indústria de “classificação de risco”, que se dedicava predominantemente à análise de risco corporativo, passou a lidar com um outro tipo de risco, o risco soberano (Franco, op. cit.). Risco soberano é o “(...) risco de crédito associado a operações de crédito concedido a Estados soberanos” (Canuto e Santos, 2003, p. 13) e, embora fortemente relacionado ao risco-país, é distinto deste. O segundo é mais abrangente, pois engloba tanto o risco associado ao governo central como o risco de inadimplência dos demais devedores residentes em um país. Já o primeiro refere-se somente à capacidade e disposição de o governo central honrar integralmente, nos prazos e condições acordados, suas dívidas com credores privados. Os riscos de conversibilidade ou transferência de divisas, decorrentes da possibilidade de controles de capitais serem subitamente estabelecidos pelo Estado soberano, podem, porém, comprometer a realização de compromissos externos de empresas privadas, mesmo que elas detenham capacidade e disposição para realizá-los. Segundo pesquisa do FMI (1999), as classificações não são resultado da aplicação de um modelo estatístico específico que determine quantitativamente a probabilidade de moratória. Canuto e Santos (2003, p. 19) acrescentam que o processo de pontuação dos diversos critérios em uma escala ordenada que permite chegar a uma classificação em um determinado ponto de escala de risco envolve algum grau de subjetividade, tornando esses modelos pouco eficazes para a avaliação de risco soberano. A classificação é, portanto, a combinação de uma análise por meio de métodos quantitativos com a sensibilidade dos analistas a parâmetros qualitativos. Este processo é composto por três etapas: a) avaliação de conjuntura3; b) quantificação dos fatores avaliados, mesmo que qualitativos, por meio de um “modelo de pontuação”; e c) decisão da classificação por votação em um comitê, com base na análise das informações levantadas em (a) e (b)4 (Canuto e Santos, op. cit.). Os modelos de pontuação das agências de rating são diferentes entre si, mas podem ser representados em cinco categorias gerais: risco político, civil e institucional; setor real; setor monetário e financeiro; setor externo; e setor fiscal. A despeito das diferenças entre os modelos de pontuação das agências de rating, os autores concluem que, empiricamente, as classificações de países quanto ao risco soberano podem ser explicadas por um conjunto relativamente pequeno de variáveis: nível de renda per capita em dólares; inflação (medida pelo índice de preços ao consumidor); taxa de crescimento econômico; relação entre a dívida 3 Para a análise da conjuntura, dois ou mais analistas visitam o país em avaliação, onde realizam reuniões com os principais funcionários do governo, analistas do setor privado, jornalistas, pesquisadores universitários e membros da oposição política (Canuto e Santos, 2003). 4 Os fatores qualitativos – como, por exemplo, a probabilidade de um golpe de Estado – são avaliados com base na experiência e entendimento subjetivos dos membros do comitê. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 39 externa total e as receitas em conta corrente; relação entre dívida bruta do governo geral e receitas fiscais totais; episódios de moratória a partir de 1975; e, finalmente, grau de abertura comercial, medida pela corrente de comércio (soma de exportações e importações como percentual do PIB). Enquanto os ratings são atribuídos com base em uma análise técnica e comparativa entre países – ainda que condicionados a fatores subjetivos –, que avalia indicadores econômicos, sociais e políticos padronizados, as oscilações dos prêmios de risco de títulos soberanos referem-se a múltiplos fatores além dos aspectos macroeconômicos (Dupita e Ferreira, 2004), tais como: alterações de humor quanto à confiança dos aplicadores na qualidade de informações e nos parâmetros mais gerais de cálculo, o estado de sua aversão a riscos, a liquidez colocada pelas políticas monetárias de economias desenvolvidas e outros fatores de curto prazo (Canuto e Santos, 2003, p. 16). Classificação de risco feita pelas agências de rating de um determinado crédito, referindo-se ao risco de crédito envolvido na aquisição de um determinado título, não pode, portanto, ser confundida com o risco de mercado ligado à variação de preços do título5, com os índices do JP Morgan como os principais exemplos de acompanhamento de risco de mercado (Dupita e Ferreira, 2004). Canuto e Santos (2003, p. 16) acrescentam ainda que os ratings possuem uma perspectiva mais estável e de maior alcance temporal, enquanto os índices de preços de mercado do JP Morgan são sensíveis a eventos conjunturais, de curto prazo, o que os leva a flutuações gerais ou específicas a países. É frequente e esperado que haja oscilações no prêmio de risco dos títulos, sem que haja mudança na classificação de risco do emissor. No caso dos países emergentes, o índice mais conhecido que mede o prêmio de risco de títulos soberanos, o Emerging Markets Bond Index Plus (EMBI+), divulgado pelo banco de investimento norte-americano JP Morgan6, é composto por uma cesta de títulos, denominados em moeda estrangeira, emitidos pelos governos centrais de diversos países emergentes e negociados em mercados secundários, predominando os títulos da dívida externa (Bradies e Eurobônus), mas incluindo também empréstimos negociados (traded loans) e títulos domésticos denominados em moeda estrangeira. Os critérios para que um título da dívida faça parte do EMBI+ são: um valor mínimo a vencer de US$ 500 milhões; classificação igual ou inferior a BBB+ (S&P) e Baa1 (Moody’s); mais de um ano para o vencimento; e a possibilidade de ser compensado internacionalmente, por meio de sistemas como o Euroclear7. 5 Embora existam diferenças, esses dois riscos possuem certa relação. Segundo Franco (2000), as agências “(...) seguem o mercado muito mais do que o influenciam, ou seja, acompanham a horda apenas alegando que sua lentidão em mudar de opinião é conservadorismo”. 6 O EMBI, EMBI (Global) e EMBI (Global constrained) são outros índices divulgados pelo JP Morgan. Os índices diferem quanto à classe de ativos incluídos, o conjunto de emissões dos países e o peso atribuído a eles (Cunningham, 1999). A existência dessas diferenças, aliada às características intrínsecas a cada índice, faz do EMBI+ o índice mais utilizado para a mensuração do prêmio de risco dos países emergentes. 7 40 Para maiores informações sobre as características dos títulos, ver JP Morgan (1995). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 O índice representa uma média ponderada, pelo volume negociado no mercado secundário, dos preços dos papéis que compõem a cesta. Para se obter a margem soberana8, é preciso calcular a diferença entre os rendimentos dos títulos governamentais e os títulos considerados de risco zero, como é o caso dos títulos do governo dos EUA (Aaa/AAA, na classificação das agências). O EMBI+ pode ser decomposto em subíndices, um para cada país (ex. EMBI+ Brasil), e esta margem soberana é usualmente referida como risco-país9. A remuneração adicional (spread) em relação aos títulos do governo dos EUA é dada para compensar o maior risco dos títulos de países emergentes. Quanto maior a margem, maior é a probabilidade de inadimplência inferida pelos investidores10. Decisões, limitações e seu contexto Considerando que a análise técnica e os cálculos matemáticos descritos acima envolvem tomada de decisões, introduzimos a presença de fatores que extrapolam o nível técnico e matemático dos cálculos envolvidos naquelas avaliações, apresentando agora a perspectiva das distorções inerentes a este processo. O ângulo da racionalidade limitada, vieses e outros tipos de comprometimento da percepção e avaliação das circunstâncias, que se refletirão nas decisões efetivamente tomadas11, têm sido abordados frequentemente por pesquisadores das áreas de Psicologia Econômica, Economia Comportamental, Finanças Comportamentais e, mais recentemente, Neuroeconomia12. De acordo com estes estudos, apesar de haver o propósito de agir racionalmente, todos os envolvidos em sistemas e processos econômicos – agências, agentes, mercado, autoridades econômicas e políticas, população em geral – estariam sujeitos a limitações cognitivas e, como será enfatizado a seguir, também emocionais, conforme tem sido demonstrado por experiências em laboratórios ou detectado por meio de entrevistas, levantamentos ou observação. Além das limitações expressas pelas pessoas em suas fragilidades individuais, potencializadas por situações grupais, é importante assinalar que vivemos, atualmente, em contextos caracterizados por fatores que contribuem, em grande escala, para a exacerbação destas operações, como a incerteza recente na economia global. 8 O JP Morgan divulga os níveis do índice e as margens soberanas (sovereign spreads). 9 Para Canuto e Santos (2003) há imprecisão na denominação “risco-país”, uma vez que no cálculo da margem soberana são considerados apenas títulos emitidos pelos governos centrais, referindo-se, portanto, a uma medida de risco soberano. 10 Para maiores informações sobre metodologia de cálculo, ver JP Morgan (1995). 11 Dois prêmios Nobel de Economia já contemplaram esta agenda de pesquisa: em 1978, a Herbert Simon, pai da teoria da racionalidade limitada e, em 2002, a Daniel Kahneman, pelos estudos sobre heurísticas e vieses, que resultaram na teoria do prospecto (realizados ao lado de Amos Tversky, falecido em 1996) e outros desdobramentos. Cabe observar que algumas destas ideias já haviam sido trazidas à luz por Keynes, em sua obra seminal Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, em 1936-1986. 12 Camerer et. al. (2005) sugerem, por exemplo, que as descobertas proporcionadas pelos avanços da neurociência, aplicados ao estudo do comportamento econômico, poderiam chegar a revolucionar, de forma radical, a própria ciência econômica. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 41 No início dos anos 70, o sistema de Bretton Woods, que funcionou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e utilizava o regime de câmbio fixo como principal instrumento de gerenciamento do sistema, entrou em colapso. Durante os seus 25 anos de funcionamento, os agentes que realizavam transações financeiras estavam sempre informados sobre a taxa de câmbio pela qual eles poderiam trocar uma moeda pela outra. As taxas fixas eram protegidas pelo poder de controle sobre os fluxos de capitais entre países. O fato de os governos manterem uma taxa de câmbio fixa significava que o setor privado estava livre dos riscos de câmbio. Contudo, o crescimento do capital especulativo durante a década de 60 e sua consequente pressão sobre as paridades fixas, principalmente a paridade entre dólar e ouro, teve grande impacto para a estabilidade do sistema (Eatwell e Taylor, 1999). Seguindo o raciocínio desses autores, após a ruptura do sistema as flutuações nas taxas de câmbio se tornaram comuns, as oportunidades de ganho proliferaram e o sistema regulatório que controlava o fluxo de capital foi considerado ineficiente. O incentivo para a desregulamentação internacional dos fluxos de capitais estava no fato de que o setor privado precisava se proteger dos custos que as flutuações na taxa de câmbio geravam13. Para reduzir o risco, aqueles que operavam nos mercados internacionais precisavam diversificar seu portfólio, mudando o mix de moedas e de ativos financeiros conforme a percepção do risco de câmbio. Na vigência do sistema de Bretton Woods, o risco do câmbio era mantido pelo setor público. Com o fim desse sistema, esse risco foi privatizado, dando origem ao moderno sistema financeiro, com grande liquidez e complexos instrumentos de proteção, caracterizado pela especulação 14 e arbitragem15 nos spreads16 do mercado. Neste novo sistema, o investimento via aquisição direta da capacidade produtiva leva grande desvantagem com relação ao investimento por meio de ações na Bolsa. Isso ocorre devido ao mercado organizado e contínuo em que as ações podem ser transacionadas, o que não se verifica para equipamentos de capital de segunda mão. A falta de liquidez dos equipamentos torna a decisão de investir praticamente irrevogável para a empresa, enquanto que os detentores dos títulos representativos desses equipamentos se aproveitam da liquidez na Bolsa para rever suas aplicações todos os dias (Macedo, 1999). 13 Além da importância dos agentes privados, também deve ser considerado o papel dos Estados nacionais, principalmente daqueles com um processo de industrialização avançado. Segundo Helleiner (1994), três considerações políticas explicam o movimento de liberalização nos anos 80: o específico interesse “hegemônico” dos Estados Unidos, Inglaterra e Japão na adoção das novas medidas, e o crescimento do poder financeiro; o fortalecimento do movimento neoliberal; e a predominância das estratégias de desregulamentação competitiva. Para os Estados Unidos, a motivação para a liberalização financeira estava na possibilidade de enxugar os mercados offshore (ex. Euromercado de dólares) e de utilizar o mercado financeiro internacional para reter uma política autônoma em face de um grande déficit doméstico e externo. 14 Na acepção de ato de prever a psicologia do mercado (Keynes, 1936-1986). 15 O conceito de arbitragem é usado para descrever operações que envolvam pouco risco como comprar (barato) em um mercado e revender (mais caro, em outro mercado) ativos muitos semelhantes (Garcia e Didier, 2001). 16 42 Diferença entre a taxa de captação e aplicação (Eatwell e Taylor, 1999). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Dentro das operações na Bolsa de Valores, existem dois comportamentos distintos de aplicadores. Dados o prêmio de liquidez e a taxa de risco e incerteza da ação, o preço que o aplicador estará disposto a pagar por ela dependerá de dois fatores: o fluxo de dividendos e o produto esperado de uma eventual revenda do título. Para o investidor que adquire uma ação apenas na expectativa de obter ganhos com os fluxos futuros de dividendos, as variações na cotação dos títulos serão secundárias. Todavia, para aquele que a adquire visando a desfazerse dela brevemente, o fluxo de rendimentos relevante é aquele oriundo da revenda do título no momento adequado, necessitando, portanto, de um horizonte de cálculo muito menor. Neste caso, o comportamento do aplicador consiste em prever a psicologia do mercado e utilizar sua liquidez para obter ganhos de curto prazo. Macedo (op. cit.) conclui que a liquidez dos títulos e a dinâmica desse sistema financeiro propiciam um ambiente adequado à atividade especulativa voltada à conquista de ganhos de capital mediante operações de revenda. Conforme Keynes (1936-1986, p. 131), “(...) estas tendências são uma consequência quase inevitável do êxito de se terem organizado os mercados de investimentos líquidos”. Keynes acrescenta ainda que, além da causa atribuída à especulação, a instabilidade econômica encontra outra causa, inerente à natureza humana. Segundo o autor, a maior parte de nossas decisões não deve ser considerada como resultado de cálculos complexos, mas sim como manifestações do nosso entusiasmo, como um instintivo espontâneo de agir17. Para Keynes (1936-1986), o empreendedor procura convencer a si próprio de que a principal força motriz da sua atividade reside nas afirmações de seu propósito. Segundo este raciocínio, o comportamento dos agentes não seria totalmente previsível, uma vez que a intuição18 tem grande relevância na tomada de decisão. Diante das incertezas inerentes ao futuro, o cenário no longo prazo não pode ser perfeitamente calculável. Isso faz com que as expectativas de longo prazo se tornem prognósticos espúrios com relação ao futuro, já que dependem da confiança dos agentes quanto a seus cenários. Mendonça (2005) acrescenta que a incerteza existe porque os agentes não conhecem o futuro, mas, em especial, porque não têm como adiantar os efeitos de suas ações e de outros agentes relevantes sobre o mundo real. De acordo com esta perspectiva, em ambientes sujeitos a transformações, as decisões econômicas são tomadas sem que seja possível o uso de previsões de eventos futuros a partir de informações presentes19. 17 Este enfoque remete às heurísticas estudadas pelos autores de Psicologia Econômica e abordadas à frente. 18 É importante assinalar que, para a Psicanálise, intuição pode ser vista como “uma forma da razão que a razão não reconhece”, relacionada ao pressentimento, mas não ao desejo nem à memória, como processo inconsciente que procura organizar impulsos emocionais despertados pela experiência do momento (Longman, 1997, p.41); já o psicólogo econômico Kahneman associa intuição ao sistema de funcionamento mental caracterizado pelo automatismo, julgamentos e decisões rápidas e o recurso às regras-de-bolso que redundarão em vieses (2002, p.450). 19 Segundo Mendonça (2005), em processos nos quais as decisões a tomar são rotineiras e repetitivas, com relativa imutabilidade no período considerado, em geral em prazos curtos, o cálculo probabilístico pode ser viável. Observamos, por outro lado, que sob tais circunstâncias pesquisas levadas a cabo dentro da Psicologia Econômica indicam maior suscetibilidade ao uso de heurísticas, ou regras-de-bolso, com consequentes vieses na percepção e avaliação dos dados. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 43 Mendonça (2005, apud Aglietta, 1995) trabalha com a ideia de uma racionalidade específica, a que chama de “racionalidade situada”, termo que caracteriza o comportamento dos agentes em ambientes de incerteza, quando não conseguem perceber os efeitos de suas ações, delineadas no nível individual e de forma racional, sobre os outros e sobre o mercado como um todo. Estas falhas de coordenação mostrariam que, mesmo que os agentes tomassem decisões a partir de sua racionalidade micro, a posição macro resultante não seria a melhor possível. Para o autor, a possibilidade de risco sistêmico não se baseia no comportamento irracional dos agentes, mas na interdependência de sua atuação, condicionada pelo ambiente de incerteza. Simon (1978), por sua vez, afirma não ser possível adquirir a proporção necessária de informações que seriam requeridas a fim de proceder a uma escolha racional entre as alternativas apresentadas. Para ele, a impossibilidade poderia se revelar tanto na complexidade da situação a ser analisada como na insuficiência de nossas operações cognitivas, que não dariam conta de processar todos aqueles dados de modo adequado e/ou em tempo hábil. Consequentemente, teria de ocorrer uma simplificação numa ponta ou noutra – ou a complexidade do contexto teria de ser reduzida, ou a administração das informações teria de acontecer de modo simplificado – o que obedeceria, inclusive, a alguma racionalidade, pois o custo para obtenção de dados mais completos, ou para seu perfeito processamento, teria de ser avaliado em relação aos benefícios trazidos. Ao contrário do que preconiza a Economia tradicional, ao invés de otimização, Simon acredita que se buscaria as melhores soluções possíveis (satisficing é o termo que ele usa) e, acrescentamos, este parâmetro pode afastar-se, por vezes de maneira significativa, do que seria desejável, em especial quando o que está em jogo é a economia de um país, como veremos depois. Como consequência, as decisões tomadas poderiam apresentar parcialidades decorrentes de todas estas limitações. Para Keynes (1936-1986), o investimento baseado nas previsões autênticas no longo prazo é tão difícil que mal pode ser posto em prática, uma vez que existe uma precariedade da base do conhecimento sobre o qual temos que fazer cálculos das rendas esperadas. Fontana (2000, p. 30) complementa que “(...) não importa a sofisticação da capacidade dos agentes de processamento, uma vez que todas as informações relevantes não existem”. Economias capitalistas, portanto, tendem a ser marcadas pela incerteza, nas quais cálculos probabilísticos de eventos futuros a partir de informações passadas e presentes podem não se mostrar relevantes. Diante desse cenário, conforme Keynes, os agentes econômicos adotam comportamento convencional para fazer face à falta de informações e ausência de parâmetros que permeiam as tomadas de decisões. Observando-se uns aos outros, os agentes estariam se protegendo. Ao recorrerem às convenções, supõem que a situação atual dos negócios continuará por tempo indeterminado, a não ser que existam motivos concretos que levem a uma alteração deste panorama. Isso não significa que os agentes acreditem que as mudanças não ocorrerão. Na verdade, eles estão supondo, tendo em vista as informações disponíveis, que a avaliação do mercado 44 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 existente seja a melhor dentro das possibilidades. Nas palavras de Keynes: “A sabedoria universal indica ser melhor para a reputação fracassar junto com o mercado do que vencer contra ele” (1936-1986, p. 130). Este tipo de comportamento pode gerar, por um lado, relativa estabilidade ao sistema, pois a formação de convenções implica em socialização de comportamento e tomada de decisão em bloco. Por outro lado, em situações em que ocorram fraturas entre o comportamento coletivo adotado e o movimento econômico, coloca-se a possibilidade de crises financeiras. Portanto, a adoção desse tipo de comportamento pelos agentes tende a agravar ondas tanto de otimismo como de pessimismo, que implicam entradas e saídas, em bloco, de posições assumidas em determinados mercados financeiros (Mendonça, 2005). O concurso de beleza keynesiano Após analisar a especulação existente nos mercados financeiros e investigar a natureza humana e suas implicações, Keynes conclui que a maioria dos agentes financeiros “(...) dedica-se não a fazer previsões abalizadas em longo prazo sobre a renda provável de um investimento por toda sua vida, mas em prever mudanças de curto prazo com certa antecedência em relação ao público geral” (19361986, p. 128). O raciocínio acima nos permite entender que o agente que queira auferir ganhos no mercado financeiro se vê induzido a “adivinhar as reações do público melhor que o próprio público” (op. cit., p. 130). O autor resume com essa frase a metáfora do “concurso de beleza”, remetendo a uma competição muito popular à época, organizada pelo jornal British Sunday: os leitores eram solicitados a selecionar fotos de jovens mulheres na ordem que acreditavam ser a preferência dos outros entrevistados como um todo; para vencer, o jogador não deveria expressar sua preferência, nem tentar estimar a verdadeira opinião quanto às preferências; ao invés disso, o jogador de sucesso deveria antecipar a seleção que correspondia mais aproximadamente à média prevista pelos competidores em conjunto. A partir desta observação, Keynes fez uma analogia com o raciocínio empregado pelos agentes no mercado financeiro. Da mesma forma, a chave do sucesso neste contexto não é o que um investidor individual considera ser verdade, nem aquilo em que a massa de investidores acredita. O “investidor profissional”20 está preocupado em estabelecer o que todos acreditam que seja a opinião geral. Assim, desde que o mercado seja guiado pelo que a opinião de todos espera que seja a opinião geral, uma enorme recompensa é trocada por qualquer sinal que prove a mudança na média prevista pelos agentes econômicos em conjunto. Essas mudanças são impossíveis de ser previstas detalhadamente pela maioria dos agentes. Dessa forma, o investidor profissional “(...) sente-se forçado a estar 20 Segundo Keynes (1936-1986), o “investidor profissional”, que possui as mesmas energias e habilidades de um especulador, é aquele que não se preocupa com o que realmente significa um valor de investimento para o indivíduo que o comprou com uma expectativa de longo prazo, mas com o valor que lhe atribuirá o mercado dentro de três meses ou um ano, sob a influência da psicologia de massa. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 45 alerta para antecipar essas variações iminentes nas notícias ou na atmosfera que, como demonstra a experiência, são as que exercem maior influência sobre a psicologia coletiva do mercado” (op. cit., p. 129). Com a alta velocidade e enorme volume de dados sobre economia e política circulando no mundo de hoje, com impacto sobre decisões que podem dar origem, como no caso de nosso exemplo, ao cálculo do risco-país, identifica-se uma pressão externa, que leva o mercado a reagir a essas informações e a produzir novos dados, sob a forma de avaliações ou previsões que, junto às pressões internas que teriam origem na situação de incerteza do contexto, desembocariam na utilização de operações mentais mais rápidas, porém menos precisas, muito influenciadas por sentimentos primitivos de desamparo e medo, com uma desproporcional aversão a perdas – e não a riscos – em determinadas circunstâncias. Seria uma dinâmica de natureza quase emergencial, desencadeada na urgência de responder de forma imediata aos acontecimentos ou às suas pistas, mesmo quando são imprecisas ou rudimentares. Submetidos a tais pressões, os agentes poderiam apresentar abdução do raciocínio, quando o processo decisório é afetado pelo fato de acreditar-se, ao olhar retrospectivamente, que se havia alcançado sentido e previsto com acerto no passado (Lundberg, 2000). Frequentemente encontrado em profissionais do mercado financeiro, o sentido lembrado diverge do que realmente ocorreu à época, fato que escapa à consciência dos envolvidos e leva o autor a argumentar que a tomada de decisão seria mais guiada por plausibilidade do que por precisão. Dessa forma, ter uma explicação precisa pode ser menos importante do que ter alguma informação que traga ordem e agilidade às ações, uma vez que, como defende Bruner (1973, apud Lundberg, 2000), o custo que se tem para obter uma informação precisa é geralmente muito alto sob condições de velocidade, risco e capacidade limitada dos organismos, devido ao ambiente ou à sua constituição. A agilidade em usar poucos sinais, rapidamente, para caracterizar os eventos do ambiente é o que dá ao organismo a liderança em se ajustar a tais eventos. Análises precisas que exigem certo tempo inevitavelmente atrapalham a preciosa rapidez deste processo de ajustamento. Outro ponto importante é apontado por Earl et al. (2007), a respeito da degradação das regras de decisão. Entendendo regras de decisão como replicadores de informação cultural que uma mente transmite a outra, os autores acreditam que, após serem criadas por especialistas, elas sofram distorções, ao estilo “telefone sem fio”, enquanto são disseminadas entre o público mais amplo, perdendo seu valor original. Novamente dentro do mercado financeiro, esta deterioração das regras de decisão pode ajudar a explicar tanto a formação de bolhas como equívocos individuais. Ao mesmo tempo, a sequência de notícias e seus possíveis reflexos sobre a economia real, seja em sua face mais volátil ou na outra, tradicional, pode indicar o íntimo entrelaçamento que une e, possivelmente, realimenta fontes, produção de informações, opiniões de especialistas, reações do mercado e posição do país. Embora avaliar de modo quantitativo o impacto de fatores desta natureza sobre o âmbito macroeconômico represente um grande desafio, começamos a ter 46 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 estudos direcionados para este objetivo, como Roos (2006), que verificou a influência de manchetes de jornal – em especial quando possuem tom emocionalmente carregado, ou saliência emocional (p.17) – sobre a visão do público a respeito da economia, de forma experimental. Sua hipótese: a maneira como informações econômicas são apresentadas na mídia poderia influenciar a previsão que os leitores fazem de eventos futuros, contribuindo, portanto, para gerar flutuações na esfera macroeconômica. Concluiu que as reações variavam conforme a nuance emocional utilizada na veiculação da informação e destacou também que, apesar de seus sujeitos, quando estudantes de Economia, manifestarem maior isenção em suas análises do que seus pares no experimento (alunos de Administração de Empresas), aqueles não chegaram a escapar de todo da influência dos vieses emocionais, mostrando-se em dúvida, como se experimentassem um tipo de conflito interno. Embora pudessem empreender análises cognitivas corretas, tendiam a suprimi-las, como se sucumbissem à impressão afetiva que pode ser mais forte que a razão, conforme veremos. Rosa, Enrietto e Gioiosa (2005) investigaram o papel das representações sociais econômicas nas tendências da Bolsa de Valores por meio da análise de relatórios de meios de comunicação e concluíram que eventos críticos, caracterizados por destacada atenção da mídia e impacto emocional, possuem significativa importância nas flutuações dos preços. Portanto, argumentam os autores que as representações sociais desempenham um importante papel no comportamento dos investidores e estes, uma vez influenciados por eventos especialmente impactantes, acabam envolvidos na dinâmica que afeta a variação dos índices. Neste sentido, meios de comunicação criam e expõem representações sociais, que são, por sua vez, influenciadas pela mídia (Sommer, 2000 apud Rosa, Enrietto e Gioiosa, 2005). Segundo Shiller (2000, p. 25 apud Rosa, Enrietto e Gioiosa, 2005), as surpresas que os mercados nos revelam periodicamente seriam resultado do impacto inesperado das reportagens dos meios de comunicação sobre nossas motivações, e não sobre reações lógicas e racionais. O processo decisório O processo decisório pode ser decomposto em três etapas básicas: perceber, avaliar e escolher (Ferreira, 2007a). A definição de Tversky e Kahneman (1974) para tomada de decisão – muitas decisões seriam baseadas em crenças sobre a probabilidade a respeito de eventos incertos – parece caber adequadamente no cenário e índices aqui analisados tanto para quem os produz como para quem os adota. Os autores concluíram que operações de edição, com o objetivo de simplificar e abreviar as funções da percepção e avaliação, teriam lugar rotineiramente no modo como se faz julgamentos – inclusive em quem é especialista, conforme descobriram ao testar estatísticos, por exemplo, que não respeitavam regras básicas de probabilidade, como considerar o tamanho de amostras, dentre outras. Em todas estas etapas, o indivíduo sofreria as deformações impostas pelo que chamaram de heurísticas ou regras-de-bolso, os atalhos mentais que nos ajudam a formular apreciações rápidas das situações observadas, embora Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 47 possam, também, levar a incorrer em erros sistemáticos. Os três principais grupos de heurísticas identificados por eles seriam: representatividade: como acreditar que o acaso deva ser “justo”, crer em alternativas que pareçam encaixar-se melhor com as próprias previsões, manter concepções errôneas sobre a tendência estatística de regressão à média; disponibilidade: a facilidade com que determinadas ideias, lembranças ou situações imaginadas vêm à mente como se fossem elementos relevantes à análise da presente situação, sem que o sejam, efetivamente; e ancoragem: estimativas feitas a partir de um valor inicial tomado como ponto de partida, seja no que diz respeito à formulação do problema ou como resultado de uma computação inicial, o que implicará a necessidade de ajustamentos em função desta “âncora”, geralmente insuficientes para uma apreciação rigorosa da situação e independentemente da pertinência daquele valor numérico ao caso. Como resultado de diferentes processos de decomposição das informações, vértices de análise diversos podem ser gerados, o que indica, por um lado, a possibilidade de duas pessoas enxergarem – e avaliarem – a situação de modo divergente e, por outro lado, a dificuldade de programas computacionais, por exemplo, reproduzirem as milhares de desmontagens e recombinações possíveis a partir dos mesmos dados, condição que pode ser corriqueiramente encontrada em grupos de seres humanos, cada um processando-os à sua maneira. Para os autores, o ponto de referência adotado para deflagrar as estimativas sobre probabilidade e a maneira como os problemas de escolha são codificados e editados seriam os fatores críticos para a análise de decisões (Kahneman e Tversky, 1979). Poderiam estar incluídos neste processo inúmeros fatores irrelevantes que, de acordo com eles, podem até mesmo toldar a visão para o que, de fato, interessaria (Tversky e Kahneman, 1974)21. A concepção que Kahneman (2002) expõe sobre o funcionamento mental, em seu discurso por ocasião do recebimento do Nobel de Economia, contém todos os elementos encontrados nos estudos previamente realizados com Tversky e outros colegas. Ele cita duas modalidades básicas: a que denomina intuitiva22, que seria rápida e automática, fazendo uso de todas aquelas heurísticas e, em decorrência disso, sujeita aos muitos vieses assim implicados; e a outra, que ele chama de deliberada, mais lenta, decorrida em etapas, e capaz de corrigir erros provocados pelo primeiro tipo. Neste caso, o centro da questão estaria localizado na acessibilidade às informações, isto é, com quais dados o tomador de decisão pode contar para fazer sua escolha. 21 Apontam para a influência de informações irrelevantes para a avaliação de probabilidades, como por exemplo, ao pedir que se calculasse a probabilidade de alguém ter determinada profissão, depois de receber uma breve descrição de sua personalidade – quanto menos sabiam, mais acertavam, ao usar leis de probabilidade “puras”, isto é, não contaminadas por outros dados que poderiam impressionar, embora não ajudassem, de fato, a chegar ao resultado correto. Podemos estender este ângulo de análise para o cálculo de moratória feito pelas agências de rating. Neste caso, os fatores qualitativos envolvidos – como, por exemplo, a probabilidade de um golpe de Estado – são avaliados com base na experiência e entendimento subjetivos dos membros do comitê, estando sujeitos, portanto, a todos estes vieses. 22 48 Ver nota 19. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Adicionamos a esta discussão contribuições originadas na observação psicanalítica dos fenômenos psíquicos, que poderão iluminar, a partir de outras perspectivas, a questão da acessibilidade aos elementos mentais e sua influência sobre as decisões econômicas. Cinco operadores são introduzidos para este exame: a maior parte dos conteúdos mentais encontra-se no inconsciente (Freud, 19151976), noção que não estaria distante, do ponto de vista funcional, da acessibilidade de Kahneman; haveria dois regimes básicos para nossos processos mentais (Freud [1911-1976], Klein [1952-1981], [1963-1985], Bion [19611967], [1965], [1970-1973]), novamente em convergência com os dois sistemas de Kahneman; nossos pensamentos estão intimamente vinculados às nossas emoções, sendo indissociados delas (Klein [1957-1974], Bion [1962-1984], [1963-1984], [1992]), o que revelaria alguma harmonia com teorias e experimentos realizados pela neurociência (e.g. Damásio, 1994); haveria três níveis de realidade – interna, externa e psíquica (Eva et al., 1995); grupos tendem a comportar-se de modo diferente de indivíduos (Freud [1921-1976], Bion [1970-1973]). De acordo com estas teorias, os processos inconscientes, predominantes em nossa vida mental, seguiriam leis próprias, que não poderiam ser consideradas racionais no sentido da lógica formal. Seu determinante é o desejo, o impulso em direção à satisfação e redução de tensão. Entre estes conteúdos e aqueles que são conscientes encontra-se uma barreira dificilmente transposta, criada pelas exigências da realidade – não podemos, de fato, comportarmo-nos como animais, embora a vontade de que não houvesse qualquer limite à realização de nossos desejos permaneça em todos ao longo da vida. Conteúdos conscientes e inconscientes obedeceriam, portanto, a regras diferentes, implicando, da mesma forma, resultados distintos de suas operações, embora ambos compartilhem o mesmo objetivo, que é evitar desprazer e buscar prazer23. O lado inconsciente seguiria o chamado princípio do prazer, que postula a impossibilidade de adiar a satisfação, mesmo que isto traga consequências deletérias, empregando, para tal fim, operações mentais primitivas e rudimentares, que abrem mão da precisão em nome da rapidez, recorrendo, de modo especial, a ilusões, caso não sejam encontradas, de imediato, soluções para os problemas. Já o lado consciente percorrerá trajeto mais longo e complexo com o mesmo intuito – solucionar o problema da insatisfação –, levando em conta, contudo, as condições da realidade e, o que é mais importante, com a capacidade de tolerar a falta de gratificação imediata enquanto põe em prática todos os recursos para encontrar uma saída ou transformação consistente para a situação. Na verdade, apenas na falta de satisfação é que a mente seria capaz de acionar a condição para pensar pensamentos (Bion, 1961-1967), ou seja, para alcançar as ideias de forma tão precisa e isenta 23 Cabe ressaltar que, embora partam destes elementos – prazer e desprazer – para apresentar o panorama psicológico, a Psicanálise difere dos economistas utilitaristas e marginalistas, como Bentham, Jevons, Menger e outros que, apesar de utilizar pressupostos até certo ponto semelhantes – aqueles seriam os polos básicos que norteariam a existência humana –, adotam métodos diametralmente opostos para desenvolver suas ideias, tais como a tentativa de medir com exatidão as experiências de prazer e dor, a fim de obter-se valores exatos dos cálculos realizados pelos indivíduos para chegar às suas decisões (cf. Ferreira, 2007). Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 49 quanto possível, no que diz respeito à possibilidade de não se deixar guiar apenas pelas qualidades de prazer ou desprazer contidas nas alternativas examinadas. Ao invés disso, as situações são percebidas e avaliadas em suas características reais, do modo mais imparcial possível. É dentro desta perspectiva que se pode afirmar que os pensamentos teriam raízes emocionais, pois a instalação do pensar dependerá, essencialmente, da capacidade emocional de tolerar frustrações, condição que permitirá que surjam pensamentos ou não. Quando isto não se mostra possível, no lugar de pensamentos são encontradas ilusões ou as chamadas descargas (motoras ou psíquicas), que servem somente para tentar aplacar o desconforto causado pela ausência de gratificação. Partindo do pressuposto de que a realidade pode se manifestar em três dimensões – externa, ou sensorial, que é comum à maior parte das pessoas; interna, composta pelos impulsos carregados de desejo, que não conhecem normas sociais; psíquica, como resultante do interjogo entre as duas anteriores –, concluise que ela nunca seria apreendida inteiramente despida de transformações (Eva, Vilardo e Kubo [1995], Bion [1965]). Em outras palavras, tudo que identificamos, seja dentro ou fora de nós, traz reflexos de como foi percebido. Assim, as distorções na percepção detectadas pelos pesquisadores da Psicologia Econômica estariam sujeitas, antes de mais nada, às determinações emocionais que imprimem sua marca, indelével, sobre a cognição. Todas estas teorias auxiliam na compreensão das limitações a que estão sujeitos indivíduos, autoridades políticas e econômicas e, talvez em ainda maior grau, grandes grupos, o mercado de modo geral e a população como um todo. Estes, agindo individualmente e/ou em grupo, sob tais limitações, provocam variações nos índices de mercado, que não são relacionadas ao desempenho real da economia. Neste contexto, os índices do JP Morgan e as avaliações de risco das agências de rating sofrem grande influência desta dinâmica, na qual os agentes econômicos estão inseridos. A visão psicanalítica do funcionamento dos grupos revela seu modo rudimentar de operar mentalmente. Grupos seriam alvo fácil de ilusões, manifestadas como fenômenos popularmente obser vados, tais como comportamento de manada, sugestionabilidade e contágio emocional que pode levar a descontrole, com tendência à onipotência, impulsividade e paixões e interesses intensos, embora efêmeros. Grandes grupos tampouco consideram o aspecto temporal e apresentam volubilidade, irritabilidade e credulidade, com suscetibilidade a estímulos repetidos ou excessivos, ainda que não sejam lógicos, com pouca capacidade de crítica. Seus processos cognitivos são mais condicionados por imagens e associações que dispensam verificação criteriosa, ao lado de emoções simples, exageradas e extremadas, com ausência de dúvida ou questionamento (Freud, 1921-1976). Somando às limitações cognitivas que os pesquisadores mencionados (Simon [1978], Kahneman e Tversky [1974], [1979], Kahneman [2002], Lundberg [2000], Earl et al. [2007], Roos [2006] e Rosa et al. [2005]) apontaram estas outras, de origem emocional e investigadas pela Psicanálise, temos tomadores 50 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 de decisão apresentando vulnerabilidades significativas, o que permitiria supor a existência de uma grande precariedade no que diz respeito às operações psíquicas responsáveis pelas etapas da decisão – percepção, avaliação e escolha –, todas elas comprometidas pelo desejo de encontrar o que traria gratificação, independentemente de ser real ou não. Shafir e Thaler (2006) demonstram que o valor está longe de ser atribuído em função de balizas objetivas e consistentes, estando antes vinculado a deformações no tempo e na história, numa concepção de contabilidade mental inteiramente refratária a ser representada por inteligência artificial, por mais sofisticado que seja o software em questão. Gigerenzer afirma que computadores não conseguem captar tudo aquilo que a inteligência humana consegue, uma vez que os softwares para calcular e, em especial, interpretar, não são capazes de traduzir e processar as operações necessárias a estas complexas tarefas (2005, p. 14-15). Todos estes fatores indicam a prevalência das limitações sobre a racionalidade nas decisões econômicas. Supondo que, como foi proposto nos inúmeros exemplos acima, apresentemos todos a tendência a transformar os dados da realidade de diferentes maneiras, haveria suficiente confiabilidade nas informações contidas nos índices de avaliação que analisamos? Estariam eles, de alguma forma, excluídos dos processos de edição e simplificação? Não obedeceriam à lei do desejo? Contornariam o prazo de validade das regras de decisão? Escapariam à contabilidade mental, tão distinta daquela fornecida pelo onipresente computador? Em suma, o que nos permite afirmar que aqueles índices seriam plenamente confiáveis? E mais, qual seria a margem para sua correção? Porque uma vez publicados, produzem efeitos instantâneos sobre todos os níveis da vida econômica de um país. Se equivocados, o estrago já estará feito e quase nada poderá ser acionado para reparar o dano. Além disso, não há registros de autocorreção rápida por parte das próprias instituições emissoras das informações, nem da mídia que as propaga. O processo se dá como se todos confiassem na memória curta que, efetivamente, parece prevalecer em geral. Em face deste panorama, pode-se esperar que surjam manifestações de onipotência, arrogância e suscetibilidade ao contágio, sempre presididas pela premência de recorrer a ilusões para dar conta de tantas exigências. Vejamos, agora, alguns destes fatores atuando em nossa história recente. A experiência brasileira – o caso 2002-2003 O Brasil viveu uma experiência desta natureza em sua história recente, entre os anos 2002-03. Num primeiro momento, houve a campanha presidencial, que teve como principais candidatos Luís Inácio Lula da Silva, José Serra, Anthony Garotinho e Ciro Gomes. Com exceção de Serra, todos os demais eram temidos pelo mercado financeiro, tanto doméstico como internacional. Assim, apesar de Lula afirmar que não tomaria medidas heterodoxas, chegando a lançar um documento neste sentido em junho de 2002, o que de fato ocorreu Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 51 foi difícil de ser explicado com a utilização de argumentos racionais. O processo pareceu escapar à lógica e à compreensão, conforme se pode depreender ao acompanhar algumas das manchetes de jornal da época24, que refletem intensa turbulência prevalente na área política e econômica. Se em abril de 2002 o dólar valia R$ 2,30; o risco-país (EMBI+ do JP Morgan) estava em 700; a Selic, a 19%; o índice Bovespa, em 13.000; e a inflação, abaixo de 1% ao mês, em outubro do mesmo ano, quando teve início o processo eleitoral, o dólar bateu em R$ 3,90; o risco explodiu para quase 2.500; a Selic chegou a 21%; a Bovespa despencou para 8.000; e a inflação subiu para 1,57%. Sugerimos que alterações tão extremas teriam se devido a uma combinação de fatores na qual destacamos a possibilidade de falhas no processo decisório. Com o início da campanha eleitoral, os investidores sentiram-se inseguros quanto aos fundamentos do país25, embora a situação conjuntural, até este ponto, permanecesse sem grandes alterações (ex. PIB, estoque da dívida, superávit primário, inflação, balança comercial, transações correntes etc.). Este ambiente de insegurança implicou evasão de divisas e aumento do volume de vendas dos papéis da dívida brasileira. Consequentemente, os preços desses papéis despencaram, o risco-país disparou e a taxa de câmbio se desvalorizou abruptamente. A situação foi agravada pela existência de um estoque de dívida mobiliária com perfil desfavorável, com cerca de 30% (janeiro/02) da dívida indexada ao dólar. No momento de maior volatilidade, meados de 2002 a início de 2003, o real se desvalorizou em cerca de 40% em relação ao dólar, o que contribuiu para que a relação dívida/ PIB atingisse seu ponto máximo (de 61,7%) em setembro de 2002. No dia 20 de junho de 2002, a Fitch reduz a classificação (rating) de risco em moeda estrangeira do Brasil de BB– para B+. Segundo esta agência, a redução do rating ocorreu à medida que os investidores demonstravam preocupação com a liderança de Lula nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República: “Dada a vulnerabilidade da dívida pública do Brasil e do balanço de pagamentos ao humor do investidor e pouca probabilidade de que esse sentimento melhore acentuadamente nos próximos meses, os fundamentos de crédito soberano do Brasil mudaram para pior”, informou a Fitch em relatório divulgado no dia do rebaixamento. 24 As manchetes foram coletadas no jornal O Estado de S.Paulo. Agradecemos a colaboração de Danilo Fariello para reunir as edições anteriores ao início deste estudo, em 2003, bem como parte dos indicadores econômicos. Outros foram pesquisados por Lisoni na Folha Online e Uol economia. 25 Podemos sintetizar o conceito de “fundamento” como a união de variáveis econômicas que podem afetar a economia de um país como um todo, levando a bruscas variações nos mercados financeiros dessa economia. Contudo, para Eatwell e Taylor (1999), o que é mais importante depreender desse conceito é que os fundamentos analisados para a formação de expectativas de um agente variam de um país para outro, conforme avaliação subjetiva dos investidores. Neste sentido, os autores argumentam que “fundamento” é aquilo que a média das opiniões (opinião geral) acredita ser fundamental, como se fosse uma verdade incontestável. Dessa forma, mudanças nas convenções do mercado muitas vezes são provocadas independentemente do comportamento da economia como um todo. Como regra geral, quando um país liberaliza o seu mercado de capitais, automaticamente a sua situação macroeconômica será julgada por potenciais investidores, preocupados, basicamente, com a capacidade de o país honrar os seus compromissos financeiros. 52 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Em 12 de agosto de 2002, a agência de rating Moody’s reduz de B1 para B2 a classificação da dívida em divisas do Brasil, sob o argumento de que cresce o risco de o Brasil entrar em moratória com a acelerada desvalorização do real em relação ao dólar, o que encarece o pagamento da dívida. No mês seguinte (2 de setembro de 2002), a Standard and Poor’s também rebaixa a dívida de longo prazo em divisas do Brasil de BB– para B+. A menos de uma semana do segundo turno presidencial (21 de outubro de 2002), a Fitch volta a reduzir a nota dada à dívida soberana brasileira de B+ para B alegando dúvidas em relação à política econômica e à sustentabilidade do endividamento do país. Elementos emocionais parecem povoar todo o cenário econômico, nos dois tempos, pré e pós-eleição, conforme atestam as manchetes selecionadas: “tensão no mercado testa o Banco Central novamente” (12 jun 02); “nervosismo no mercado” (23 jul 02); “[receio de que o dólar pudesse romper a] barreira psicológica” e “alterações de humor no mercado financeiro” (23 set 02); “confiança reduz o risco-país” (02 abr 03); “euforia no mercado” (06 abr 03); “crise de confiança em relação a um Lula imaginário” (28 abr 03). Torna-se difícil excluir este componente do exame do que teria ocorrido no país naquele período. Estavam os agentes econômicos operando de acordo com o sistema intuitivo (Kahneman, 2002) ou o princípio do prazer (Freud, 1911), quando reagiram imediatamente – e, a nosso ver, subjetivamente – a indícios tão pouco objetivos tais como rumores ou declarações destemperadas, por exemplo? Pode ter sido este o caso com Paul O’Neill, então secretário do Tesouro dos EUA, cujas declarações podem ter atuado como importante fonte das oscilações. Depois de afirmar, em 21 de junho de 2002, que não lhe parecia “muito inteligente jogar o dinheiro dos contribuintes de seu país na incerteza política brasileira”, sobre a perspectiva de um novo empréstimo do FMI ao Brasil, a reação do mercado foi tão forte que sua “gafe” precisou ser emendada pelo também quase instantâneo anúncio de um empréstimo de US$ 10 bilhões. Um mês mais tarde, em 28 de julho de 2002, ele afirma que Brasil, Argentina e Uruguai deveriam garantir que ajudas daquele tipo não fossem parar em contas bancárias na Suíça, gerando novas – e previsíveis – tempestades nas contas nacionais. Não contente, no dia seguinte, desmentiu que o FMI fosse oferecer nova ajuda ao Brasil, o que provocou novas quedas no mercado. Teria a ancoragem entrado em ação aqui? Embora seus comentários não fossem determinantes para as ações subsequentes, o mercado, além de ver neles poder de oráculo, passou a guiar seus movimentos tomando-os como base. Se os grupos não precisam de muito para reagir de forma extremada, todas estas declarações explosivas podem ter funcionado como combustível altamente inflamável no sentido de disparar o desmoronamento do que já não se mantém solidamente em pé, como é o caso das economias emergentes, tal como a brasileira, naquele período bastante dependente do fugidio capital especulativo. Internamente, boatos e declarações inoportunas de candidatos, como Ciro Gomes, em julho, prometendo “parar com a farra” das contas estrangeiras de não-residentes, seguida pela fuga de aproximadamente US$ 1,5 bilhão naquele mês, por meio dessas mesmas contas, por exemplo, são respondidos com Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 53 manifestações de pânico por parte do mercado (em 23 jul 02, a manchete: “a bolsa cai 6,53% [o índice mais baixo desde agosto de 1999] e o dólar bate o recorde de alta [já estava 25% mais caro no ano] para o Real”, apontando para a instabilidade de mercados estrangeiros e a boatos sobre uma subida de Ciro Gomes nas pesquisas, com declínio de Serra). No que diz respeito a previsões, várias delas foram registradas, sem que tenham ocorrido conforme previamente vaticinado, como por exemplo: em 5 de agosto de 2002, o The New York Times alegava que poderia haver uma evasão de divisas em massa do país, independentemente de quem vencesse as eleições; muitos bancos declaravam que o dólar chegaria a R$ 3,20 em 2003 (23 set 02); o Financial Times, em seu editorial de 15 de outubro de 2002, afirmava que ocorreria um aprofundamento da crise caso Lula vencesse as eleições, adiantando que se seguiriam, então, moratória no pagamento da dívida externa, aumento dos gastos públicos, alta acentuada na taxa de juros, grande desvalorização cambial, perda da confiança internacional e insolvência geral. Dado o contexto de grande volatilidade, peculiar ao nosso tempo, somado à insegurança e desconfiança que costumam acompanhar os assuntos econômicos, não é difícil supor a extensão do estrago provocado por este tipo de exercício de futurologia, equivalente, portanto, em sua essência, ao conceito de concurso de beleza keynesiano. Rumores de que um banco não vai bem podem, rapidamente, tornarse realidade, caso seus clientes, temerosos face à possibilidade de o boato concretizar-se, corram para retirar da instituição seus recursos. Por outro lado, deve-se contabilizar também o chamado princípio da refletividade, segundo o qual a própria observação dos fenômenos já os modifica – se um economista prevê que os juros cairão e faz suas aplicações levando em conta esta variável, outros que o observem podem imitar seus movimentos e, por esta razão, os juros podem deixar de cair, uma vez que o cenário já não será o mesmo daquele observado originalmente, e sobre o qual a previsão inicial foi feita (Lea, 2000). Igualmente, a profecia autorrealizadora, pela qual as expectativas podem influenciar os resultados ou, no mínimo, fazer com que estes sejam percebidos como se aquelas fossem confirmadas, novamente ao estilo do concurso de beleza; e a ilusão de validade, manifestada como a confiança inabalável produzida por um encaixe perfeito entre o resultado previsto e a informação recebida (Tversky e Kahneman, 1974), desempenham papel importante aqui. A percepção do início do novo governo, após a vitória de Lula, no fim de 2002, apresentou dinâmica equivalente, porém em direção inversa. Desta vez, a parcialidade, antes exageradamente pessimista, sem que houvesse evidências para tal, oscilou na direção oposta, de grande euforia e, mais uma vez, sem que houvesse nenhum indício mais claro para justificar, agora, tamanho otimismo. Até antes do segundo turno, em 18 de outubro de 2002, mas com Lula já considerado eleito, temos as seguintes notícias: Antonio Palocci anuncia que o PT fará todos os esforços fiscais necessários para manter as contas públicas em equilíbrio; Anoop Singh, diretor do FMI, afirma que os mercados estão reagindo de forma exagerada ao Brasil e diz confiar no Banco Central do país, já que seus 54 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 fundamentos econômicos são sólidos, com o fortalecimento também das instituições financeiras nos últimos anos; e, por fim, os papéis brasileiros no mercado externo sobem. É o começo da bonança. Em 1.º de março de 2003, analistas econômicos fazem um mea culpa por terem reduzido a recomendação sobre os papéis brasileiros e agora demonstram confiança na política econômica do país; em 2 de fevereiro de 2003, temos “o melhor resultado da balança comercial desde 1993”, “otimismo contamina o dólar” e “confiança derruba o risco para 989 pontos”, portanto, a “barreira psicológica dos 1000 pontos” teria sido quebrada – Palocci atribui o fato à credibilidade de Lula, emprestando-lhe sentido psicológico mais do que financeiro. Em 6 de abril de 2003, alguém se lembra de visitar a realidade: “euforia no mercado não chega a entusiasmar a economia real”, citando o fraco crescimento do PIB, taxas de desemprego ainda altas e nenhum sinal de recuperação salarial. Esta experiência de maior proximidade ao desempenho econômico real, contudo, não dura muito, já que analistas comentam, também, que esta distância seria ultrapassada em breve, o que não chegamos a verificar, com taxas de crescimento nunca superiores a 5%26. De todo modo, o tom de confiança prossegue: “otimismo com o Brasil derruba o risco-país”, acompanhada dos elogios de diretores do FMI e do Banco Mundial à política econômica do governo do PT (14 abr 03); ao mencionar a turbulência do ano anterior, considerada “um teste” para o país, que dele se saíra bem, fica “claro que o governo não vai declarar a moratória”, e Palocci, satisfeito, apela aos investidores e analistas: “confiem no Brasil” (16 abr 03); chega ao ápice em 18 de abril de 2003 – “o otimismo ‘cauteloso’ em relação ao Brasil, que já prevalecia entre analistas estrangeiros desde as primeiras semanas do ano, começa agora a dar lugar a apostas mais ambiciosas sobre as perspectivas do país. Bancos e fundos de investimento estrangeiros, quase em consenso, preveem que o risco-país continuará a cair nas próximas semanas” e “na base deste sentimento favorável, nós temos confiança crescente que o governo de Lula será capaz de realizar sua agenda de reformas”. Pouco depois, o dólar tem sua maior queda nos últimos oito meses (24 abr 03) e, em 28 de abril de 2003, “o risco de Lula cai e se aproxima do de FHC”, com o comentário de que o país não teria passado impunemente pela crise de confiança em relação a um “Lula imaginário”. Uma indagação pertinente seria: quem criou o “Lula imaginário” e por que tantos formadores de opinião teriam comprado este peixe? E mais importante: quem paga esta conta? Em 30 de abril de 2003, Horst Köhler, diretor do FMI, elogia as administrações FHC e Lula e o Brasil pelas “medidas corajosas” que havia tomado em 2002, como por exemplo o empréstimo de US$ 30 bilhões em agosto, já que, para ele, o país “merece a confiança” da sua instituição; no mesmo dia, a Standard & Poor’s eleva a nota do Brasil. 26 A variação percentual real do PIB em 2004 (ano com maior crescimento entre 2003 e 2007) foi 4,9%. Contudo, com a nova metodologia de cálculo do IBGE (que entrou em vigor em março deste ano), o PIB de 2004 teve uma variação de 5,7%. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 55 Duas manchetes, em 3 de maio de 2003, apontam para as agudas mudanças de percepção do país por parte das autoridades econômicas – “Brasil é o mercado favorito dos analistas” e “do inferno ao céu”, sobre a inversão das críticas anteriores, agora transformadas em elogios. O risco cai para 776 pontos e, no dia seguinte, Vinod Thomas, diretor do Banco Mundial, afirma que a instituição está encantada com “a combinação de responsabilidade macroeconômica e urgência social pregada pelo novo presidente do Brasil”. Num interessante exemplo de abdução de raciocínio (Lundberg, 2000), o Financial Times tece elogios rasgados, em 7 de maio de 2003, à mesma administração para a qual fizera previsões catastróficas alguns meses antes, acrescentando que nem o otimista mais ingênuo teria podido esperar um retorno tão rápido e bem-sucedido do Brasil aos mercados internacionais. Em 03 de junho de 2003 a Fitch eleva a perspectiva de rating do Brasil de estável (B) para positiva (B+), citando sinais de que o governo Lula poderia garantir um caminho de sustentabilidade para a economia do país e salientando o compromisso do novo governo com as reformas estruturais. Alguns analistas concederam recomendações, como a de que a política brasileira não deveria se deixar cegar pela euforia do momento, pois há necessidade de empreender reformas de longo prazo nos sistemas previdenciário e fiscal. De fato, quando em 9 de maio de 2003 os papéis da dívida brasileira atingem uma alta histórica, ao lado de nova queda do risco-país e do dólar, dias mais tarde (13 mai 03) fomos informados de que “a indústria tem o seu maior declínio em vendas nos últimos oito anos”, com o salário líquido caindo mais de 7% no mês. Em outras palavras, a economia não parecia ir tão bem, à época, quanto retratada nas avaliações de especialistas, maciçamente divulgadas na mídia. Conclusão Os dados analisados – previsões e afirmações sobre o estado da economia brasileira, por parte de autoridades no período 2002-03, ao lado de índices econômicos – não oferecem resposta adequada à pergunta: qual foi o grau de objetividade de ambos os tipos de afirmação, pessimista anteriormente, e otimista mais tarde? Tampouco permitem afirmar que teria havido análise criteriosa daquela conjuntura. As avaliações de risco, tanto pelas agências de rating quanto pelos índices do JP Morgan, desempenham papel de grande importância na tomada de decisão dos agentes econômicos. Embora sejam, rotineiramente, consideradas interpretações inquestionáveis das informações econômicas, demonstram poder ser, também, reflexo de expectativas ilusórias que provêm das limitações emocionais e cognitivas de indivíduos e grupos que as geram e adotam, em processo de realimentação. A necessidade de empreender-se estudos cuidadosos e interdisciplinares, levados a cabo no longo prazo, sugerida neste artigo, pretende trazer ao debate a maneira como estas avaliações vêm sendo feitas, sua fundamentação e interpretação por parte de analistas, autoridades e mercado em geral. As sucessivas 56 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 experiências de euforia e pessimismo detectadas no Brasil com relação a estes indicadores oferecem matéria-prima para pesquisas desta natureza, tal como observa-se, por exemplo, em 2007, com a atual baixa no risco-país, acompanhado por especulações sobre upgrade ao grau de investimento. Recomenda-se que tomadores de decisão levem em conta o conhecimento sobre estas limitações encontradas no mercado e em suas próprias operações de percepção e avaliação de dados, e que cursos de Economia aprofundem os conhecimentos sobre o tema, o que não acontece na atualidade, a fim de capacitar futuros economistas a trabalhar com estes índices com maior precisão, sentido mais apurado de seu alcance e vulnerabilidade a distorções. Referências bibliográficas BION, W. A Theory of Thinking. In: Second Thoughts – Selected Papers on Psychoanalysis. Londres: William Heinemann Medical Books Limited, 1967. __________. Learning from experience. Londres: Maresfield Reprints, 1984. __________. Elements of Psycho-Analysis. Londres: Maresfield Reprints, 1984. __________. Transformations. Londres: William Heinemann Medical Books Limited, 1965. __________. Atenção e Interpretação – uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1973. __________ . Cogitations. Londres: Karnac Books, 1992. CAMERER, C.; LOEWENSTEIN, G.; PRELEC, D. Neuroeconomics: how neuroscience can inform economics. Journal of Economic Literature, vol. XLIII: 9-64, 2005. CANUTO, O.; SANTOS, P.F.P. Risco-soberano e prêmio de risco em economias emergentes. Temas de Economia Internacional n.° 01/03. Brasília: SAIN-MF, out 2003. CUNNINGHAM, A. Emerging economy spread indices and financial stability. England: Bank of England, nov 1999. DAMÁSIO, A.R. O Erro de Descartes. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. DUPITA, A.B.; FERREIRA, C.K.L. Brasil: grau-investimento? São Paulo, 2004. EARL, P.E.; PENG, T.-C.; POTTS, J. Decision-rule cascades and the dynamics of speculative bubbles. Journal of Economic Psychology, 28 (3): 351-364, 2007. EATWELL, J.; TAYLOR, L. Global finance at risk:: The case for international regulation. New York: The New Press, 2000. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 57 EVA, A.C.; VILARDO, R.; KUBO, Y. Realidade Psíquica, Realidade Interna, Realidade Subjetiva. In: FRANÇA, M.O.A.; GONÇALVES, S.M. (orgs.). Fórum de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. FERREIRA, V.R.M. O componente emocional – funcionamento mental e ilusão à luz das transformações econômicas no Brasil desde 1985. Rio de Janeiro: Papel e Virtual, 2000. _________. Ilusão e informação: podemos contribuir para aumentar o conhecimento sobre a conjuntura econômica? Pré-Encontro de Psicologia e Economia – fronteiras, convergências, dilemas. São Paulo, ago 2002. __________. Again, what is it that you believe? – a study of psychological factors at work over the market throughout major political-economic events. Anais do XXVIII International Association for Research in Economic Psychology Annual Colloquium. Christchurch, Nova Zelândia, 2003. __________. Psicologia Econômica: origens, modelos, propostas. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2007a. (não publicada, disponível em versão eletrônica em <www.verarita.psc.br>). __________. Informação Econômica e Ilusão – uma contribuição psicanalítica ao estudo de fenômenos econômicos. Revista Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica, 10 (1): 107126, 2007b. FMI – FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. International capital market: developments, prospects, and key policy issues. Washington, set 1999. Capítulos IV e V e anexos IV, V e VI. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/icm/1999/ index.htm>. Acesso em: 1 out 03. FONTANA, G. Post Keynesians and circuitists on money and uncertainty: an attempt at generality. Journal of Post Keynesian Economics, 23 (1): 27-48, 2000. FRANCO, G.H.B. O “risco Brasil” e seus avaliadores. O Estado de S. Paulo, 20 ago 2000. Disponível em: <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/gfranco/a77.htm>. Acesso em: 1 abr 04. FREUD, S. Lembranças encobridoras. Vol. 3 da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1976. _________. Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental. Vol. 12, idem. _________. O Inconsciente. Vol. 14, idem. _________. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Vol. 18, idem. _________. O mal-estar na civilização. Vol. 21, idem. GARCIA, M.G.P.; DIDIER, T. Taxa de juros, risco cambial e risco Brasil. Anais da Anpec, Campinas, 2001. 58 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 GIGERENZER, G. I think, therefore I err. Social Research, 72: 195-218, 2005. HELLEINER, E. States and the reemergence of global finance:: from Bretton Woods to the 1990s. Ithaca: Cornell University Press, 1994. JP MORGAN SECURITIES INCORPORATION. Introducing the emerging markets bond index plus (EMBI+). Emerging Markets Research, 1995. KAHNEMAN, D.; TVERSKY, A. Prospect Theory: an analysis of decision under risk. Econometrica, 47 (2), 1979. KAHNEMAN, D. Maps of bounded rationality: a perspective on intuitive judgment and choice. Prize lecture – Nobel Prize, 8 dez 02. Disponível em: <http://nobelprize.org/ economics/laureates/2002/kahnemann-lecture.pdf>. Acesso em: 24 jan 03. KEYNES, J.M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Editora Atlas, 1986. KLEIN, M. Algumas Conclusões Teóricas sobre a Vida Emocional do Bebê. In: KLEIN, M. Contribuições à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1981. _________. Inveja e Gratidão – um estudo das fontes do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1974. _________. Nosso Mundo Adulto e suas Raízes na Infância. In: KLEIN, M. O Sentimento de Solidão – Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1985. LISONI, T. O risco-país e os fundamentos macroeconômicos: a utilização do índice EMBI+. Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Ciências Econômicas das Faculdades de Campinas, 2004 (não publicado). LONGMAN, J. O objeto psicanalítico. In: SANDLER, P. (org.). Ensaios clínicos em psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1997. LUNDBERG, C.G. Made sense and remembered sense: Sensemaking through abduction. Journal of Economic Psychology, 21 (6): 691-709, 2000. MACEDO E SILVA, A.C. Macroeconomia sem equilíbrio. Petrópolis: Vozes, 1999. MENDONÇA, A.R.R. Instabilidade e ocorrências de crises em mercados financeiros: um estudo a partir de diferentes contribuições teóricas.. Pesquisa & Debate, 27, PUC-SP. Sao Paulo, jan-jun 2005. ROOS, M.W.M. An experiment on economic news, affective news and readers’ macroeconomic predictions. Anais da Iarep-Sabe Conference Behavioral Economics and Economic Psychology. Paris: Université Paris 1 Panthéon Sorbonne, Elsevier, Inra, Regionelle de France, Centre National de la Recherche Scientifique, Université Paris 5 René Descartes, 2006. ROSA, A.S.; ENRIETTO, G.; GOIOSA, C. Key events in the media, emotions and risk in the stock market. Anais do 30.º Congresso de Psicologia Econômica – Absurdity in the Economy. Praga, 2005. Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60 59 SHAFIR, E.; THALER, R. Invest now, drink later, spend never: on the mental accounting of delayed consumption. Journal of Economic Psychology, 27 (5): 694-712, 2006. SIMON, H.A. Rational decision-making in business organizations. Nobel Memorial Lecture 8 dez 1978. Economic Science 1978, 343-371. Disponível em: <http://nobelprize.org/ economics/laureates/1978/simon-lecture.pdf >. Acesso em: 15 fev 06. TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, 185: 1124-1131, 1974. 60 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Brazil – India: A roadmap to follow Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali* Abstract: The general disappointment with the failure of the Doha Round of the World Trade Organization (WTO) negotiations on July 2008 was mostly the result of a last minute change by India on its positioning in the agricultural negotiations. Due to domestic elections and the impact such negotiations would have on internal migration and economics, the negotiations stumbled on the basic issue of safeguards. India acted exactly as expected in accordance with its past behavior in similar negotiations, although it now has become a very important player in the international arena. The scope of this article is to analyze briefly the Indian rationale during the negotiations and verify some areas where Brazil and India, two newcomers to the club of great powers, can work together in securing their voices are heard in the new world order, with both becoming major powerhouses struggling in a world where the shift in the balance of power becomes even more tangible. A greater cooperation between both democracies will certainly improve the economies, increase synergies, particularly in agriculture, where Brazil, a major exporter, can become a reliable partner for India. Keywords: Brazil, India, Roadmap, WTO Doha Round, IBSA “But talk we will; listen we have to; disagree from time to time we may; but united we must always remain.” (Queen Elizabeth II) Many Brazilian internationalists felt disappointed with the end results of the World Trade Organization (WTO) Doha Round1 on July 2008 in Geneva, particularly accusing India for the final collapse of the negotiations. This is not true. India did precisely what its circumstances demanded, due to its own internal and external dynamics. * Marcus Vinícius Freitas Freitas, International Partner of Cerqueira Leite Advogados Associados, is a Professor of International Law and Relations at Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), and a holder of an LL.B. degree from Universidade de São Paulo, an LL.M degree from Cornell University and an M.A. from The Johns Hopkins University School of Advanced International Studies (Sais). E-mail: <[email protected]>. Juliana Baeza Buralli is a student of International Relations at Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) and former Academic Coordinator of the XIV Latin American Meeting of International Relations Students and Professionals held in Ribeirão Preto, Brazil, on May 2008. E-mail: <[email protected]>. A preliminary version of this article was presented at the III National Foreign Policy and International Politics Conference “Brazil in the World to come”, organized by Foundation Alexandre de Gusmão of the Brazilian Ministry of Foreign Affairs, and held in Rio de Janeiro, on August 28, 2008. 1 Special thanks to Ambassador Rubens Ricupero, Dean of the School of Economics at FAAP for his constant support and contribution to our understanding of the WTO and the international system. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 61 Our purpose in this article is to analyze a few aspects regarding India as a negotiator and set up a possible roadmap for improvement in Indo-Brazilian relations in the near future in order to set the ground for the new world order and balance of power that is starting to be designed. India is certainly one of the most interesting countries in the world. Diverse and traditional, yet it has one of the most entrepreneurial societies, with great potential for continued contribution to humankind, international trade and the South-South dialogue. Modernization and tradition constitute the paradox that accompanies this country in the international scenario throughout history. India has completely changed over the last 20 years. In the eighties, economists who used to work with India were divided into two groups: the optimists and the pessimists. The joke they had then was that the pessimist would say: “Oh, goodness. Things are so bad; one cannot imagine them getting any worse.” To which the optimist would then reply: “But I can!” India has gone through major changes. Its recent history, after independence in 1947 from two centuries of British colonial rule, has been a continuous path of challenges and victories. With 1.1 billion people, its economy has grown steadily, currently 12th largest in the world, when measured in nominal US dollars, and 4th when measured at purchasing power parity exchange rates. Its success derives from a democratic regime, where the rule of law and democratic values are highly respected. The Indian economy has been booming for the last ten years. With an average growth rate of 7-8% over the last few decades, India changed its inwardlooking and state-interventionist policies that deeply tormented its economy, restricting trade and economic freedom. The decades of low growth, termed the “Hindu rate of growth”, are now a part of its past. The future looks bright and India is on the track to become the world’s second largest economy by 2050. Table 1 presents some macroeconomic data covering India´s economy in 2007 and in the years 2003-2007. 62 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Table 1 Macroeconomic Data covering India´s Economy 2007 and 2003-2007 Such strong economic performance has allowed the government to achieve major positive results when it comes to reducing the fiscal deficit from 6% of GDP in 2000-01 to 2.8% of GDP in 2007/08. Such growth has raised concerns about inflation, similarly to the challenge Brazil has faced since 2007. Table 2 shows, among other indicators, India’s projected GDP and inflation for the five year period starting in 2007, where it is clear that though inflation is under control, it may become a threat to the successes achieved. Table 2 Key Indicators for India’s Economy 2007-2012 Source: Economist Intelligence Unit Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 63 Historical background in international negotiations With its independence in 1947, India began to engage actively in global politics, becoming one of the leaders of developing countries, many of them also former colonies that sought autonomy, particularly during the Cold War. India adopted an anti-liberal stance, by investing and deeply implementing the process of import substitution. The first Indian Prime Minister, Jawaharlal Nehru (1947-1964), believed that liberalism would undermine the commercial development of the country, thus increasing state intervention in the economic realm was required in order to create an industry with a solid foundation. Similarly to Brazil at the time, this approach enabled a domestic industry that flourished initially, with the development of sectors such as steel, machinery, together with large investments in agriculture. Such policies, however, were in place far too long. India participated actively in the creation of the G-77 in 1963 in order to enhance the levels of engagement and international participation of developing countries, particularly within the United Nations General Assembly framework. In 1964, the United Nations Conference on Trade and Development (Unctad) was created as a demand by developing countries to create a permanent forum to address their international trade needs. In 1968, the G-77, then led by India, was able to secure an important rule within the General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt) in which developing countries would be entitled to differential treatment. India in the 1970s continued to restrict foreign investments into its territory, clearly opting to produce goods domestically, even if the relative cost was much higher than foreign products. The domestic industr y, despite its little competitiveness, strengthened its base slowly. The protectionist investment measures produced steady and gradual growth and generated good results temporarily, and not sudden economic booms like the Brazilian “Economic Miracle”2. The Indian success in the Gatt Tokyo Round negotiation was the result of a close cooperation with Brazil at the time, when both countries led the developing world by seeking to guarantee differential treatment in international trade to developing countries. A similar partnership would be later repeated in the Uruguay Round, although less successfully3. Through the 1980s, India suffered the results derived from oil crises of the preceding decade forcing a dramatic change in its economic strategy and requiring it to open its markets to foreign investors. Historically, however, we can argue that India is a defensive and autonomous negotiator. Through protectionist tactics, India has sought to increase its domestic 2 The so-called “Brazilian Economic Miracle” covers the period between 1968 and 1973, during which GDP growth averaged more than 11% annually. Between 1974 and 1980, the growth rate fell to an average of 6%, as a result of the increased costs of imported oil. 3 During the Uruguay Round, the United States pushed the inclusion of service industries, for which the General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt) had never established rules. Brazil and India opposed such proposal by the US fearing multinationals with much more advanced technology would greatly damage local industries and annihilate local undeveloped companies. 64 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 development and somehow advocate the rights of developing countries. India was one of the founding members of the World Trade Organization (WTO)4 in 1995, and has actively participated in larger groups of trade negotiation such as the G-205, G-336 and G-777. In all forums, India occupies a prominent position. As a WTO member country, India has been a complainant seventeen times against irregular measures opposing its products, particularly with the United States and the European Union. The majority of such complaints have involved protectionist measures on textiles, agricultural and mineral products. India has responded to nineteen complaints, coming mostly from the United States and the European Union, especially in the segments of pharmaceuticals, automobiles and exports of certain commodities8 This demonstrates that India has been an even more active player in the field of international trade since becoming a WTO member. However, the level of openness to trade still remains very low, and the benefits of international trade have not yet contributed to improvement of welfare and higher education, as widely expected. However, India’s faith in the multilateral trading system has not decreased. India has sought to implement a multilateral trading system that somehow serves the needs of the weakest sections of society worldwide. Table 3 lists the intensive activity India has had both as a complainant and respondent at the WTO’s panels. 4 India was also a Gatt founding member in 1948. 5 The G-20 was created in 2003 in the Cancun Conference. This group consists of emerging countries with strong agriculture. G-20 member countries have 60% of the world’s population, 70% of rural population and 26% of world agricultural exports. 6 The G-33 is a group of developing countries that has proposed differential rules on international trade for its member countries. 7 The G-77, founded in 1964, is a group of developing countries, whose goal is to secure common economic interests and increase bargaining power at the United Nations. Currently, G-77 has expanded to approximately 130 member countries. 8 See <http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11, 2008. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 65 Table 3 Source: WTO database. 9 Poland import regime for automobiles (1995), United States – Measures affecting imports in wool coats (1996), United States – Measures Affecting Imports of Woven Wool Shirts and Blouses from India (1997), Turkey – Restrictions on Imports of Textile and Clothing Products (1999), United States – Import Prohibition of Certain Shrimp and Shrimp Products (1998), European Communities – Restrictions on Certain Import Duties on Rice (1998), European Communities – Anti-Dumping Investigations Regarding Unbleached Cotton Fabrics from India (1998), European Communities – Anti-Dumping Duties on Imports of Cottontype Bed Linen from India (1999-2002), South Africa – Anti-Dumping Duties on Certain Pharmaceutical Products from India (1999), United States – Continued Dumping and Subsidy Offset Act of 2000 (20002004), Brazil – Anti-Dumping Duties on Jute Bags from India (2001), Argentina – Measures Affecting the Import of Pharmaceutical Products (2001), European Communities – Conditions for the Granting of Tariff Preferences to Developing Countries (2002-2004), European Communities – Anti-Dumping Duties on Certain Flat Rolled Iron or Non-Alloy Steel Products from India (2004), United States – Customs Bond Directive for Merchandise Subject to Anti-Dumping/Countervailing Duties (2006-2008). See, <http:// www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11, 2008. 10 USA – Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural Chemical Products (1996-1997), European Communities – Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural Chemical Products (1997-1998), USA – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1999), Australia – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1998), Canada – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products 1997-1998), New Zealand – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1998), Switzerland – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (19971998), European Communities – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1998), European Communities – Measures Affecting Export of Certain Commodities (1998), European Communities – Measures Affecting the Automotive Sector (1998-2002), European Communities – Import Restrictions (1998), European Communities – Measures Affecting Customs Duties (1998), USA – Measures Affecting Trade and Investment in the Motor Vehicle Sector (1999-2002), European Communities – Import Restrictions Maintained Under the Export and Import Policy (2002-2007), European Communities – Anti-Dumping Measures on Imports of Certain Products from the European Communities (2003), India – Anti-Dumping Measure on Batteries from Bangladesh (2004), India – Anti-Dumping Measures on Certain Products from the Separate Customs Territory of Taiwan, Penghu, Kinmen and Matsu (2004), European Communities – Measures Affecting the Importation and Sale of Wines and Spirits from the European Communities (2006), India – Additional and Extra-Additional Duties on Imports from the United States (2007-2008). See, <http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11, 2008. 66 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 India’s commercial strength also comes from its natural wealth. Because of its geological formation, India is rich in natural resources like oil, bauxite, manganese and iron. The abundance of such resources allows competitiveness in exports. However, foreign trade still represents a small portion of GDP (around 10%), with major trading partnerships such as Australia, Belgium, China, Germany, Singapore, United Arab Emirates, United Kingdom and United States, ranging from textile products, gems and precious stones, chemicals, manufactured leather, tea, jute, cotton and other agricultural products to petroleum, machinery, precious stones, fertilizers, chemicals. Table 4 shows India’s international trade, its partners, major items commercialized and the corresponding GDP percentage for the years 2006-2007. Table 4 Foreign trade data for India 2006-2007 Source: Economist Intelligence Unit India’s current challenges Brazil, Russia, India and China are expected to become major economic powerhouses11 by 2050, with a new realignment of the world order. Out of these four countries, India is most likely to grow beyond current expectations. India has truly been the most effective and genuine democracy operating in the world after the Second World War, with an efficient, yet too bureaucratic civil service, which, similarly to Brazil’s, does have at times a very negative impact on the entrepreneurial spirit of the country. Though anxious to play a major role in the international scenario, India still remains an impermeable society to foreign cultures. This is partly due to 11 Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Global Economics Paper No.: 99 (2003), Goldman Sachs Global Economic Website. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 67 Hinduism, which, as a rule, does not accept converts as a sign of an inevitable destiny to those who are born into it. This constitutes an important factor when considering how India sees and positions itself internationally. By seeking to preserve itself based upon its moral qualities, India has resisted the temptation of engaging in problematic issues of the international agenda. We can observe such behavior, for instance, as an advocate for the developing world, when India led the Non-Aligned Movement12, proclaiming itself as the neutral moral arbiter of world affairs13. Such positioning from India comes from its own challenges, since India is at the center stage of a ver y hostile scenario, both domestically and internationally. Any movements carried out by India can lead to immediate risks14. Such threats come from either problems with bordering nations or conflicts with its several different ethnicities. Therefore, India’s policies tend to be best defined by a non-confrontational approach, where issues with whatever type of impact on internal policies or the regional balance of power are immediately discarded. That is why India will not play a balance of power role against China. It is neither a real perspective nor an “Indian thing to do”. India may serve as a mediator with Gulf countries but to expect it to lead in certain situations which may adversely affect its own situation could not be farther from reality. Nuclear policies established by India have taken this approach into consideration, since its purpose was to project the image of a world power with full capability to defend itself against the dangers and threats that may come from abroad, besides its serious security concerns with China and Pakistan. Since nuclear weapons afford some protection against external threats, then the greatest concern shifts to domestic issues currently threatening peace and local security. India’s internal diversity, though its greatest asset, is also its most relevant challenge for security reasons. Such unsettling scenario has been the reason for a perennial domestic turmoil involving several diverse groups. This is one of the reasons why international criminal networks have found fertile soil in certain regions of the country15, particularly resulting from drug trafficking networks that have established South Asia as a transition area towards larger consumption markets of Europe and North America. Ethnic conflicts resulting from illegal immigration coming from Bangladesh, together with religious conflicts and intolerance have contributed to several conflicts, particularly in Northeast India. Sri Lanka has added to this instability, together with Nepal. If the situation of neighboring countries worsens, immigrant waves may generate even more problems for India. However, India remains a relevant partner in the fight against international terrorism with the U.S. and 12 The Non-Aligned Movement (NAM), initially led by Egypt, India and Indonesia, had its origin in the Asia-Africa Conference held in Bandung, Indonesia, in 1955 with 29 former colonies. The NAM purpose was to maintain a neutral positioning in the Cold War. The main goals were to secure economic development, fight poverty and national independence movements, in clear opposition to neo-colonialism. 13 See KISSINGER, H.A. Does America Need a Foreign Policy? Touchstone, 2001, p. 156. 14 Kissinger again emphasizes that India would not endanger its internal security for the sake of issues not directly associated with its affairs. According to his perception, India would never risk positioning itself against the USSR during the Cold War for the sake of freedom in Berlin, for instance. Nor would it risk unsettling Muslims living within its territory on behalf of Israel. 15 Vohra Committee Report submitted to the Ministry of Home Affairs, Government of India, 9th July 1993, p. 4. 68 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Western countries, par ticularly when dealing with radical Islamic fundamentalism. Several major attacks have attempted to increase violence between Muslims and Hindus16. Another challenge India currently faces is the spread of HIV/Aids contamination. Approximately 1% of the Indian population17 is now infected and in certain areas of the country, this may reach more than 5%. A severe epidemic may lead to the death of approximately 100 million people by 2020. Considering all these aspects, it is easier to understand why India opposed so vigorously the concluding negotiations of the Doha Round. The eventual limitation of India’s possibilities of subsidizing the agricultural sector would adversely affect its growth strategy18. This was a particular concern because Doha’s negotiations implied India would be forced to open its domestic markets to heavily subsidized agriculture from the US and Europe. The only way to avoid such would be the assurance of an effective safeguard mechanism that could be used whenever imports exceeded 10% in certain agricultural products and for a certain period of time. Since approximately 60% of the workforce is in the agricultural sector (which generates 16% of GDP), migratory flows from rural to urban areas constitute a major concern. The adoption of Doha as is would certainly impact India’s path to its bright future. That is why India insisted on safeguards19. Such measures protect temporarily the domestic sector suffering loss or threat of loss due to an increase in the quantity of imported goods, and are applied for a certain period of time in order to ensure that the domestic producer can compete with imported goods. This is because the pattern of agricultural production in India is a legacy of the plantation model implanted in colonial times stimulating rural migration in the country20. Indian agriculture tends to be much more inward-looking, since most of the production supplies its own growing population and seeks to ensure self-sufficiency in food production, with occasional surpluses. Production bottlenecks, like Brazil, constitute major hurdles for increased output. Such obstacles include diseconomies and logistics challenges that have not yet been fully addressed by the government. This has caused major crucial problems for the maximization of agricultural exports. This, together with the internal instabilities currently affecting India, clarifies its rationale and positioning before the final collapse of the Doha round. Added to that, the internal political scene does not welcome major shifts affecting domestic policies, particularly in a country where 300 million people live on US$ 1 a day and almost 700 million live on US$ 2 a day. A general election is due by May 2009, with regional parties playing an ever increasing 16 During the month of July 2008, several attacks took place. For instance, in Eastern Varanasi an explosion interrupted Hindu devotees when lighting oil lamps to Hanuman, the monkey god. In Hyderabad, a homemade bomb was placed in a mosque, killing many people. Blasts have also killed commuters in trains in Mumbai. Such attacks clearly raised concerns about terrorist network activities in India. 17 HAPPYNON, J. HIV/AIDS as a Security Threat to India. New Delhi: Marohar, 2005. 18 Although the agricultural safeguard clause would be entirely justified in case of subsidized products, in the case of Mercosur it would be necessary to negotiate a more flexible mechanism. The reason for this is, of course, the fact that Mercosur countries do not subsidize their agriculture. 19 Safeguards have been a constant feature of the multilateral trading system. Though limited in its use, it has always served to address domestic concerns related to trade opening commitments as a “safety net” to negotiating countries. It is quite ironic to see that the negotiations stumbled over such issue. 20 POMAR, W. Curso de formação em política internacional. p. 124. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 69 role, which may necessarily be important for the governmental coalitions that will be established. Signs have already been given by the government that it will keep increasing spending on health, education and rural welfare projects, with the purpose to improve living standards outside major urban areas. Such perspective evidences why India opted out of the Doha negotiations, since major changes in the agricultural sector would adversely affect the country and impede India from achieving the goal of becoming one of the world´s most important countries in the near future. Therefore, India’s leadership role in the future depends on an efficient and balanced management of its internal and external threats. A roadmap for Brazil and India There is a clear shift taking place in the world today regarding the balance of power. For the last three hundred years, Asia has not played such an important role in the field of international relations. However, over the last two decades, India and China have reasserted themselves as major international powerhouses with a clear goal to become the largest economies in the world. Economic power necessarily will lead to military strengthening. Many studies have shown that Indian and Chinese economies will surpass the US economy much sooner than current projections, unless bad policies are implemented or as a result of just plain bad luck21. Within this new framework of balance of power, it would seem appropriate for Brazil to place itself as a strategic partner to India in the Western Hemisphere, particularly in South America. Though very diverse societies, both share common values when it comes to democracy, advocacy for developing countries and even common values regarding the international system. Our purpose is to suggest a few areas where interaction should take place in a way to strengthen the current and future ties. Cultural ties There is a weak communication between Indian and Brazilian grassroots movements and political groups. A stronger lead, not necessarily by government, is required in order to increase the dialogue between the two countries. Special emphasis should be given to a constant exchange of students at all levels and professors. By encouraging joint degrees and programs, students and professors would be more stimulated to visit and learn about each country. Brazilian perspectives on India are outdated and do not reflect the changes of the last two decades. Overall relations could greatly benefit when similarities between both sides are emphasized. Brazil also has a great tradition in soap operas. India, on the other hand, has an exciting movie segment, represented by Bollywood. Both countries could find ways to cooperate in this segment either by trading knowledge or having joint productions, or with greater exchange of such art and by better introducing one country to the other. Militar Militaryy cooperation The recent discovery of major oil reserves alongside the coast have been a source of great news to the Brazilian government. Such reserves, when explored, will make 21 See, Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Global Economics Paper No.: 99 (2003), Goldman Sachs Global Economic Website. 70 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Brazil one of the world’s largest oil producers. This will change the dynamics of the Brazilian economy. The protection of such resources and assets is essential for ensuring national sovereignty and the fight against piracy. In order to protect our shores, the Brazilian navy has already set up future operations in the Brazilian continental shelf as training for the protection of oil resources. Joint training operations between the Brazilian and Indian navy – the third largest in the world – together with the Air Force, could be beneficial for both sides. Both countries use outdated military equipment and possible joint initiatives could result in the development of more updated technology with the corresponding technology sharing. Jointly, new technologies and weaponry could be designed for both military and civilian use. This would be particularly interesting for the case of Brazilian developments of satellite launching and military nuclear equipment. Economic integration India has increased the amount of exports to Brazil over the last years, as shown in the chart below. Yet our commercial relations are not as strong as they could be. This is depicted in Table 5, which shows the trade flows between Brazil and India for the years 1988 through 2008. Table 5 Trade flows between Brazil and India 1988-2008 Sour ce: Oportunidades de Comércio e Investimentos entre Índia e Brasil, Source: by Consul Rajeev Kumar, Indian Consulate, July 10, 2008. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 71 This table reveals a steady increase of the commercial ties between both countries; however, India only represents approximately 1% (one percent) of Brazil’s foreign trade, ranking 16th in the list of Brazil’s major trading partners in the year 200722. Indo-Brazilian trade continues to grow from year to year, but a stronger commercial relationship is required, with lines of credit to exports available on both countries. With the collapse of the Doha round, it was clear that Brazil did not understand India’s positioning and internal dynamics very well. This is why a bilateral trade agreement between India and Brazil or India and Mercosur becomes even more needed. A preferential tariff agreement was signed between Mercosur and India in 2005, but a more concerted effort is now required to ensure that commercial ties expand the cooperation, particularly in technology and biofuel areas. Strengthening private sector cooperation is essential to ensure an increase in investments and international trade. The Forum of CEOs launched in India in June 2007 upon President Luis Inácio Lula da Silva’s visit to India still has to show greater strength by holding constant meetings with governmental authorities and academia to develop joint projects for improvement of economic conditions, thus generating new business opportunities and employment rates. Brazil could greatly learn from India’s microcredit mechanisms to improve the lives of poor populations throughout the country. India, on the other hand, could greatly benefit from technology transfer of the Brazilian banking sector, one of the most technologically advanced in the world. This is particularly important as India integrates itself in a more globalized society and millions of people currently out of the economic system enter its banking system. Another venue for joint activity could be an exchange of outsourcing opportunities in order to provide customers worldwide with the best possible quality of service. India is a major sugar cane producer. Therefore, investments into ethanol usage as a fuel should increase, as India’s concerns for climate change increase. The enormous growth of India’s automobile sector in the last few years has increased the number of vehicles in the market. This will greatly impact the environment, particularly due to CO2 emissions. The recent requirement of an addition of 5% of ethanol to all consumed gasoline in the country will certainly create more trade between both countries23. Technology exchange between Brazil and India should take place with crossed investments into development of cleaner energy in India. As a result of India’s GDP per capita increase in the coming years, millions of people will enter the consumer market, particularly anxious to enjoy the abundance of resources, especially food24. Since India is not self-sufficient in agricultural terms to supply this new demand, a major partnership with India could be set up in order to provide for such needs and demand. Brazil will need 22 See, <http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/september/tradoc_113359.pdf>, as of August 12, 2008. 23 Since 2007, the Brazilian government has been pushing India to use Brazilian ethanol production technology, particularly increasing the addition level from 5 to 10% of ethanol into gasoline. 24 The stabilization of the Brazilian economy as a result of the Real Economic Plan in the 1990s brought in millions of consumers left out of the economic system. 72 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 to reform and modernize its infrastructure and logistics in order to improve the distribution networks and open the Asian markets to its products. Maritime routes will need to be established with higher level frequency in order to secure ontime delivery. Substantive investments in each other’s economies will certainly help smooth any sorts of disagreements, misunderstandings or likely sensitivities that may distort perceptions on both countries. India will need to improve its serious structural barriers to foreign direct investment. If the rules are clear and the basic investment infrastructure is set up, both countries will greatly benefit from a constant thread of mutual investments. This requires India to implement and expedite the pace of economic reforms, similarly to what Brazil did in the 1990s. If India wants to play a major role in the international scene, many of its current obstacles to foreign investment will need to be overcome. By establishing common economic interests and ties, a joint action internationally will help create an even more important well-being in economic terms, which will strengthen both countries as they interact more intensively in a globalized economic system. Conclusion The collapse of the Doha Round should serve as an eye opener of the new world order, now starting to be designed. In this new world order, China and India will become major powerhouses, definitely altering the balance of power now existing in the world and shifting its center substantially to Asia. Due to its commitment and historic respect for democracy and institutions, India should be regarded as a prime strategic partner for Brazil. Both countries, though different, can greatly benefit from a more intensive business, economic, cultural and political relationship. There will be divergences of opinions throughout this process. It is important for Brazil to understand clearly India’s current challenges and perspectives, both domestically and internationally. Doha clearly proved Brazil still does not understand India. A greater cooperation between India and Brazil, two of the world´s largest democracies, is in order and will certainly benefit both countries, since their economies can share enormous synergies and supplement each other, particularly in agriculture, where Brazil, a major exporter, can become a reliable partner for India. Great partnerships only happen after many successful negotiations take place. It is time to negotiate and secure greater cooperation. The future looks bright for Brazil and India. Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74 73 References GHEMAWAT, P. Redefinindo a estratégia global: Cruzando fronteiras em um mundo de diferenças que ainda importam. São Paulo: Artmed, 2008. GOVERNMENT OF INDIA. Vohra Committee Report submitted to the Ministry of Home Affairs. 9th July 1993. HAPPYNON, J. HIV/AIDS as a Security Threat to India. New Delhi: Marohar, 2005. JAKOBSEN, K. Um olhar sobre o mundo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. KISSINGER, H.A. Does America need a foreign policy? Touchstone, 2001. POMAR, W. Curso de formação política internacional: Um olhar sobre a Índia. São Paulo: São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. WILSON, D.; PURUSHOTHAMAN, R.. Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Eletronic publishing at Goldman Sachs Global Economic Website: Oct 2003. Available at: <http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/99-dreaming.pdf.>. Access on: August 13, 2008. <http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>. Access on August 11, 2008. <http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/september/tradoc_113359.pdf>. Access on: August 12, 2008. 74 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 A rrelação elação dólar -petróleo, a dólar-petróleo, nova configuração do comércio mundial de petróleo, os desequilíbrios americanos e os efeitos sobre os ciclos financeiros Bouzid Izerrougene* Resumo Resumo: O artigo procura analisar a inversão da relação dólar-petróleo que se verificou no período 2000-2008, num contexto marcado pelos desequilíbrios da economia americana e pelo surgimento de novas relações no comércio e nas finanças internacionais. Palavras-chave Palavras-chave: dólar, petróleo, juro, déficits americanos, China. 1. Introdução Este trabalho procura interpretar os movimentos de alta sustentada do preço do petróleo e de queda rápida da cotação do dólar entre 2002 e 2008, que significaram uma inversão da relação positiva tradicional entre as duas variáveis. O período referido é marcado pela crescente incerteza nos mercados monetários, em razão dos colossais déficits externo e fiscal estadunidenses, que geram uma dinâmica de desequilíbrio na economia mundial, modificam os ciclos financeiros e acentuam os sobressaltos do mundo em transição. A nova correlação, negativa, do preço do petróleo para o dólar pode estar refletindo um novo regime que derivaria de quatro mudanças profundamente estruturais e interligadas: o aprofundamento dos desequilíbrios externos da economia americana, que tornou negativo o saldo líquido da sua conta rendimentos de capitais; as novas práticas de comércio internacional, que levam à redução do dólar como meio de pagamentos no mercado mundial; a generalização do regime de câmbio flutuante, que tende a multiplicar e diversificar os mercados cambiais; e a emergência da China como importante ator no comércio e nas finanças mundiais. Sendo o yuan ancorado ao dólar, uma * Bouzid Izerrougene é Pós-doutor pela Universidade Paris-Dauphnine e professor de economia no curso de Mestrado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: <[email protected]>. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 75 desvalorização deste tende a aumentar o superávit comercial chinês e influenciar os mecanismos de criação monetária internacional através de intervenções cambiais. 2. A inversão da relação dólar/petróleo Os preços internacionais das commodities estão ainda dominantemente cotados em moeda americana. Mas somente os preços em moedas nacionais podem avaliar as receitas e despesas reais associadas às transações comerciais para todos os países onde as taxas cambiais não são fixas em relação ao dólar. Fora os Estados Unidos, os países importadores de petróleo não podem ser proporcionalmente beneficiados por uma queda no preço de petróleo quando esta queda é acompanhada por uma valorização do dólar, como foi o caso na primeira metade da década de 1980. Inversamente, o encarecimento do petróleo pode ser atenuado por uma depreciação da moeda americana, como ocorreu no período de 2002-2008. Portanto, a avaliação das contas de petróleo passa necessariamente pela comparação do preço do barril com as taxas cambiais. A verificação empírica mostra uma relação positiva entre o preço do óleo e a cotação do dólar entre 1973 e 19901. A partir de 1971, os gastos crescentes em petróleo implicavam numa liquidez também crescente em dólar, o que pressionava a valorização deste. A quantidade de moeda americana encontrada fora dos Estados Unidos aumentava na medida da ampliação do comércio internacional, gerando uma dívida correspondente dos EUA junto ao resto do mundo2. Contrariamente ao que ocorre em todos os países, os recorrentes déficits comerciais americanos não geravam necessariamente pressões depreciativas sobre o dólar. Isso porque a procura pela moeda americana era crescente, desde que crescesse a economia mundial e, com ela, as transações internacionais. Quando a Opep encarece seu produto, novos dólares são injetados nos mercados internacionais. Se a economia mundial mantém crescimento, a liquidez adicional pode ser emitida sem alteração cambial. Os americanos gastam cerca de um quarto da produção mundial de petróleo. Quando a cotação do dólar aumenta, ela atinge os três quartos restantes. Para os EUA, o preço não muda. Este país produz atualmente um pouco menos da metade do petróleo que consome, importando a outra metade, que representa um oitavo do consumo mundial. Se todo o petróleo vendido no mercado internacional fosse negociado em dólar, de todos os dólares adicionais e necessários quando aumenta o preço do petróleo, 7/8 seriam destinados ao resto do mundo. Em outros termos, a cada elevação do preço de petróleo, os americanos podem financiar seu acréscimo de gasto energético via sua moeda e, ainda, fornecer sete vezes esse acréscimo para os demais países. Quando a trajetória do preço do petróleo se inverte, a procura pelo dólar cai e os americanos 1 Ver Throop (1993), Zhou (1995), Dibooglu (1996), Amano e van Norden (1998); Krugman (1980), e Golub (1983). 2 Cada dólar detido por não-residente americano significa um reconhecimento de dívida dos Estados Unidos; uma promessa de que este país entregará algo de volta ao possuidor estrangeiro do dólar. 76 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 podem, de um lado, comprar parte da sua própria moeda depreciada contra títulos do Tesouro do país e outras dívidas e, por outro lado, reduzir o seu déficit comercial, graças à subsequente elevação da sua competitividade-preço. Certo, um dólar desvalorizado significa mais gastos americanos para as importações irredutíveis, mas, ao mesmo tempo, a depreciação cambial provoca inflação mundial, o que gera uma redução quase proporcional da dívida externa estadunidense. Frente a uma forte depreciação da moeda americana, os parceiros comerciais dos EUA são levados a comprar maciçamente dólares para manter a estabilidade de suas respectivas moedas e não comprometer suas balanças comerciais. Ademais, as reservas acumuladas em dólar significam, no fim, maiores pressões sobre a solvabilidade americana e, portanto, maiores pressões sobre a cotação do dólar. Assim, os bancos centrais dos países superavitários ficam presos entre a ameaça da depreciação de suas reservas cambiais e a necessidade de continuar a comprar dólares para manter a paridade de suas moedas. Teoricamente, a relação entre o preço do petróleo e a cotação do dólar foi interpretada de duas formas. Na primeira, que considera o preço do óleo como maior determinante dos termos cambiais, a associação das duas variáveis é analisada através de um modelo simples a dois setores: um setor que produz bens comercializáveis no mercado internacional (tradables) e outro, que produz bens negociados exclusivamente no mercado doméstico (non-tradables). Ambos os setores usam um bem tradable, que é o petróleo, e um non-tradable, que é a mão-de-obra (Amano e van Norden, 1998). Nesse modelo, a elevação do preço do petróleo provoca contração salarial, devido à necessidade de manter a competitividade internacional do setor tradable. Se o setor non-tradable é mais intensivo no uso da energia do que o tradable, seus preços irão crescer e a inflação doméstica resultante causará uma elevação semelhante na taxa de câmbio real. Essa interpretação ignora a possibilidade de uma elevação de preços nos dois setores, como consequência do encarecimento do petróleo no mercado mundial. A segunda interpretação parte do balanço de pagamentos, levando em consideração tanto o setor tradable quanto as escolhas de portfólio internacional (Krugman, 1980; Golub, 1983). Aqui, a mudança de preço de petróleo representa uma redistribuição de renda entre os países exportadores e os países importadores de petróleo. Os movimentos cambiais dependem dessa distribuição e da sua consequente variação nas preferências de importações e de investimento internacional em portfólio. Quando, por exemplo, aumenta o preço de petróleo, os países exportadores compram mais títulos nos mercados desenvolvidos de capitais e importam mais bens industrializados. Portanto, as variações nas taxas reais de câmbio dependem da distribuição geográfica das importações dos países da Opep e de suas preferências de portfólio. No seu modelo, Krugman supõe que as economias da Opep preferem amplamente os ativos denominados em dólar e tendem a importar mais dos países europeus. Por isso, a elevação do preço de petróleo provoca uma apreciação do dólar no curto prazo, que é atenuada no longo prazo, devido a uma maior rapidez nos investimentos financeiros em relação à compra de importados. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 77 O óleo negociado no mercado mundial chega a cerca de 50 milhões de barris por dia. Um incremento no preço do barril de 20 dólares, por exemplo (como foi o caso em 2004, quando o petróleo passou de US$ 40 para US$ 60), provoca uma necessidade de liquidez adicional em dólar de 1 bilhão por dia3. É um volume considerável de liquidez que se reflete no crescimento da dívida externa americana. Uma dívida adicional contratada, essencialmente, junto aos países superavitários: os asiáticos e os árabes que aplicam suas poupanças no mercado financeiro americano, financiando os déficits gêmeos (externo e fiscal) dos Estados Unidos4. A elevação do preço do petróleo que obriga todos os países importadores a comprarem mais dólares para pagar o petróleo, o reembolso das dívidas por parte dos países árabes e a reciclagem dos excedentes via financiamentos dos déficits americanos formam um tripé que sustentava o dólar valorizado. Todavia, pode-se observar que, no período de 2000 a 2008, enquanto a cotação do petróleo aumentava firmemente, o dólar sofria uma queda contínua, apesar da elevação das taxas americanas de juro. Como explicação, evocam-se a contração dos estoques americanos de petróleo, a demanda elevada, a falta de investimentos no refino, a instabilidade geopolítica no Oriente Médio etc. Um grande número de analistas mostra, ainda, que os déficits nas transações correntes dos EUA são a verdadeira razão do encarecimento do petróleo. De 1973 a 1979, período contido entre duas crises energéticas, o preço do petróleo foi multiplicado por 2,1 vezes e o dólar havia se desvalorizado 18%5. Opostamente, de 2002 a 2008, o preço do petróleo quase triplicou, ao tempo em que o dólar sofreu uma desvalorização de cerca de 40%, passando de 1,32 (em janeiro do primeiro ano) para 0,74 euro (em dezembro do último)6. Essa comparação mostra como se atenuou o papel do encarecimento do petróleo na alimentação do valor do dólar. É verdade que o dólar desvalorizado diminui o valor real do óleo em outras moedas. No entanto, a valorização do petróleo foi bem maior do que a depreciação do dólar, o que resultou em um considerável aumento da fatura energética dos importadores líquidos de petróleo. Quando se compara a cotação média anual do câmbio euro/dólar com o preço do barril de petróleo dos anos de 2002 e de 2007, respectivamente um barril a US$ 25 por um euro a US$ 0,94 e um barril a US$ 75 por um euro a US$ 1,36, pode-se constatar que em 2000 o barril custava 26,5 euros e, em 2007, estava em 55,5 euros: o dobro, conforme mostra o Gráfico 1. 3 Esse capital adicional de giro pode dobrar quando são considerados os derivados de petróleo, que são também faturados em dólar. 4 No caso dos países árabes, endividados, uma parte do excedente ser ve a quitar dívidas e, consequentemente, não reintegra o circuito econômico mundial, isto é, a moeda adicional associada ao petróleo é destruída. 5 Dados calculados em relação ao marco alemão. Fonte: World Perspective, Janeiro 2008: <http:// perspective.usherbrooke.ca/bilan/servlet/BilanEssai?codetheme>. 6 78 Dados do Fed (2009). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Gráfico 1 Cotação US$/euro e preço do barril de petróleo no mercado “Spot” Fontes: Opep e BCE A relação negativa entre o preço do petróleo e a cotação do dólar se deve, na realidade, ao excesso dos déficits americanos e à reconfiguração das relações comerciais e financeiras internacionais, na qual emerge a China como grande player nos mercados mundiais, influenciando substantivamente tanto os preços internacionais quanto as decisões de investimento nos mercados cambiais e de capital. 3. Os desequilíbrios americanos — uma configuração inédita O considerável e crescente déficit externo dos EUA e a acumulação subsequente de excedentes na maior parte do resto do mundo constituem um dos paradoxos mais flagrantes da economia mundial nessa era de globalização. Os déficits das transações correntes americanas, que representam a conta comércio exterior e a de transferências de renda, depois que passaram por dois processos de saneamento em 1980 e 1991, persistem numa trajetória de alta constante, gerando uma situação nova de endividamento internacional. A posição externa dos EUA se deteriora nitidamente e o país mais potente do mundo está sendo o maior devedor de todos. O aprofundamento da diferença entre o volume dos haveres americanos e o seu engajamento bruto no mundo ajudou a inverter a tradicional posição favorável à balança de pagamentos americana, quando, a partir de 2006, o saldo líquido da conta rendimentos de capitais se tornou negativo, com um déficit equivalente a 2% do PIB estadunidense. Simplesmente, os EUA recebem mais investimentos do resto do mundo do que investem fora do país e se tornam, pela primeira vez na história da hegemonia americana, pagadores líquidos de renda de fatores. Isso significa que a dívida americana tenderá a se aprofundar e o seu financiamento, necessariamente insustentável. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 79 Em 2001, a política econômica americana realizou uma reviravolta total, aplicando uma política monetária e orçamentária expansionista. Através de um processo de grandes dimensões, o banco central americano, conhecido como “Fed”, reduziu sua taxa básica de juros de 6,5% para 1%, desencadeando a queda do conjunto das taxas com impacto expansionista sobre a demanda global. Quanto à política fiscal, o confortável excedente de US$ 224,8 bilhões que o governo Bush herdou do governo Clinton se transformou logo em déficit. Após o 11 de Setembro de 2001, para evitar a recessão que poderia vir da grave crise de confiança pós-atentados, o governo Bush ampliou gastos e cortou impostos. Isso elevou o crescimento econômico e, claro, gerou um enorme déficit que, logo em 2002, alcançou o nível de US$ 254 bilhões, um déficit que irá se acentuar para atingir os US$ 445 bilhões em 2008, equivalente a 3,2% do PIB7. No setor externo, o déficit nas contas correntes americanas, que era de US$ 413 bilhões em 2000, passou para US$ 474 bilhões em 2002 e continuou na trajetória ascendente, atingindo o seu recorde em 2006, US$ 856,7 bilhões, correspondente a 6,5% do PIB. Esse déficit caiu no fim de 2008, passando para 2,5% do PIB. Uma queda que se deveu à forte contração das importações (15%), acoplada a uma retração das exportações (9%) 8. Fundamentalmente atrelados à fraqueza da poupança doméstica e ao aprofundamento do déficit público, os desequilíbrios correntes americanos se sustentaram durante mais de 15 anos graças ao apetite dos investidores internacionais pelos títulos americanos, em razão dos lucros auferidos e, também, devido à situação privilegiada do dólar no comércio mundial. Porém, em razão do desfalque dos capitais europeus nos últimos anos, o financiamento dos déficits americanos passou a contar essencialmente com a intervenção maciça dos bancos centrais asiáticos. Dentre estes, o da China está sendo o maior credor da economia estadunidense, com um montante de cerca de US$ 696 bilhões e reservas que beiram os US$ 2 trilhões, no fim de 2008. No início da década atual, a parte da dívida pública americana financiada pela China representava apenas 1% do total. No início de 2009, a relação passou para 7%, fazendo da China o maior detentor não-residente dos títulos do tesouro americano, US$ 744 bilhões9. Os déficits gêmeos tomaram dimensões astronômicas de mais de US$ 1 trilhão por ano. Para o seu financiamento, a economia americana absorve mais de 70% das transferências mundiais de poupança10. Porém, esses fluxos de capital não são suficientes para fechar as contas estadunidenses. A cobertura dos déficits correntes americanos não passa de 80% e o hiato financeiro chega a um valor de US$ 1,8 bilhão por dia. Pode-se pensar, nessas circunstâncias, que a queda do dólar se constitui numa variável de ajustamento dos grandes desequilíbrios nas contas externas do país. Os americanos monetizam uma parte dos seus déficits 7 Em 2006/2007 o déficit chegou ao ponto máximo de 4,9% do PIB, devido às catástrofes naturais (Katrina e Rita) e à invasão do Iraque. 8 Dados do Departamento de Comércio Americano. 9 Dados do BCE, 2009. 10 80 Unctad, 2008. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 (aquela que não está coberta por capitais estrangeiros) emitindo dólares, o que implica necessariamente depreciação da moeda americana nos mercados monetários. A posição do dólar como meio de pagamento e reserva de valor no mundo se viu seriamente afetada após o lançamento do euro, em janeiro de 1999, quando a moeda europeia começou a ser usada como uma das variáveis de ajustamento dos desequilíbrios mundiais. Lançada a uma cotação de US$ 1,183, a moeda europeia única se desvalorizou em seguida, atingindo seu nível mais baixo de US$ 0,84 em 2000. No ano subsequente, o euro reagiu para alcançar a sua taxa mais elevada em dólar, 1,195, com uma progressão de 40%. Em fevereiro de 2004, a sua cotação estava em US$ 1,30 e se manteve alta nos anos 2005 e 2006. No dia 8 de novembro de 2007, o euro bateu um novo recorde, chegando a US$ 1,44. Diante daquele cenário de queda da moeda americana, a China e outros países superavitários começaram a temer seriamente pelo desmoronamento de suas reservas (US$ 1,44 trilhão nas reservas chinesas em 2007) e acelerar o processo de diversificação de seus haveres cambiais11. Consequentemente, o dólar se desvalorizou mais ainda frente ao euro, o qual atingiu, em julho de 2008, o nível de US$ 1,58. Essas mudanças cambiais monetárias, junto com a consequente evolução dos preços mundiais, são variáveis importantes que definem os ciclos financeiros. De 1999 até 2008, a economia mundial passou por dois ciclos financeiros, tendo o ano de 2004 como data de início do segundo deles. 4. Os ciclos financeiros da década de 2000 É importante lembrar a situação econômica dos EUA antes que o Fed procedesse ao aperto monetário de 1999 (início do primeiro ciclo). A década de 1990 foi tão proveitosa para a economia americana que alguns comentaristas econômicos evocaram o new age americano. A performance estadunidense havia superado significativamente a de outros países ocidentais e a do Japão e isso foi explicado pelo sucesso da nova economia e do aumento da produtividade. Com um crescimento econômico relativamente elevado e as contas públicas superavitárias, os capitais asiáticos, árabes e europeus disputavam o ingresso no mercado americano, valorizando o dólar. Em 1998, a economia mundial entrou numa zona de alta instabilidade. Naquele momento, a oposição conjuntural entre a recessão profunda na qual mergulhavam o Japão e os países do Sudeste Asiático e o bom vigor aparente das economias europeias e americana parecia incoerente com o processo de globalização. A força desestabilizadora da recessão que se propagou ao longo do ano de 1997, partindo do Sudeste Asiático para atingir a Rússia em 1998 e a América Latina em 1999, foi o resultado, pela primeira vez, de um ataque especulativo em escala global. 11 No fim de 2008, o euro representava cerca de 30% dos US$ 2 trilhões de reservas cambiais chinesas, com equivalente contração de reservas em dólar. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 81 Em junho de 1999, o Fed procedeu a um aperto monetário para combater a inflação e corrigir os inchaços nominais das bolsas de valores, que foram motivados pelo excesso de capitais. Mas as consequências do aumento da taxa de juro nos EUA foram as duas grandes quebras que sofreu Wall Street em abril e setembro de 2000. A procissão de crises financeiras que eclodiram no mundo, no fim da década de 1990, marcou o fim de um ciclo financeiro (1994-1998) e abriu espaço para o novo ciclo de 1999-2004. O início deste novo ciclo coincidiu com a criação do euro. 4.1. O primeiro ciclo – junho 1999 a junho 2004 O início do ciclo.. A introdução da nova moeda, com cotação acima de 1 dólar, levou alguns analistas a prever uma diversificação das carteiras de títulos internacionais da Ásia, os quais concentram uma grande parte das reservas internacionais. A análise que prevaleceu naquela época (e que ainda prevalece hoje) é que se os países asiáticos superavitários determinassem substituir de forma significativa parte de seus haveres em dólar por haveres em outras moedas – para evitar a instabilidade da moeda americana e ampliar suas margens de manobra frente às pressões econômicas e políticas dos EUA –, o financiamento do crescente déficit da balança de pagamentos americana se complicaria e, a termo, o estatuto de moeda internacional hegemônica do dólar estaria ameaçado. O euro manteve sua paridade frente ao dólar e o Banco Central Europeu (BCE) aproveitou essa vantagem cambial para rebaixar sua taxa básica de juros de 3% para 2,5%, em abril de 1999. Mas, dois meses depois, em junho, o Fed aplicou uma constrição monetária, aumentando sua taxa básica de 4,75% para 5%. Era o início do primeiro ciclo financeiro, a partir do qual os EUA, em seis vezes consecutivas, haviam aumentado sua taxa de juros, que chegou ao nível de 6,5% em maio de 200012. Nesse tempo, o dólar começou a se valorizar, passando de 1,01 euro, em julho de 1999, para 1,17 euro em outubro de 2000. Em 15 meses, o euro perdeu em torno de 20% do seu valor frente ao dólar. A sua queda favoreceu as exportações europeias, mas inibiu os investidores internacionais que irão preferir os títulos americanos, acentuando assim a queda do euro. O BCE foi obrigado a aumentar sua taxa básica para limitar a fuga de capitais. No dia 15 de novembro a taxa europeia passou a 3%. O preço do barril de petróleo, que era de US$ 10 em janeiro de 1999, aumentou para US$ 14 em abril do mesmo ano, saltando para os US$ 26 em janeiro de 2000. Com o encarecimento do petróleo e das demais matérias-primas, a inflação importada ameaçava o mercado europeu. No dia 4 de janeiro, o BCE antecipou uma mudança na sua taxa de juros, que foi elevada a 3,25%, dando início a uma serie de altas que culminaram com um 12 Os dados sobre as taxas de juro americanas são do Fed (Statistical Release). Os dados sobre preço de petróleo são da Opep (Monthly Oil Market Report). Os dados sobre as taxas de juro europeias são do BCE . Os dados sobre as taxas cambiais são do Fed e do BCE. 82 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 nível de 4,75% no dia 6 de outubro de 2000. No dia 6 de setembro, a cotação do petróleo atingiu os US$ 36 dólares/barril, enquanto o dólar se manteve entre 1,16 e 1,17 euro. A estratégia americana de elevar a taxa de juros visava atender a dois objetivos essenciais e associados: atrair os capitais estrangeiros, notadamente europeus, para financiar as transações correntes e, ao mesmo tempo, suprir, com esses capitais, a demanda adicional de liquidez em dólar, a qual se devia ao encarecimento das commodities. A reciclagem desses capitais minimiza, em geral, o recurso a uma emissão monetária maciça para assegurar as importações e, ainda, permite manter a força do dólar acima do euro. No entanto, as elevadas taxas americanas de juro, acopladas a um dólar em alta, prejudicaram não somente os agregados internos (nível fraco de consumo, crédito muito caro para as famílias e empresas), mas também a competitividade da indústria americana. De fato, o dólar caro freou as exportações americanas e, junto com o juro alto, contribuiu para as derrocadas da bolsa de Wall Street em abril e setembro de 2000. A guinada do ciclo. A elevação das taxas americanas de juro, embora moderada, contraiu o consumo e o investimento domésticos. No primeiro trimestre de 2001, o crescimento da economia americana, que foi de 1,9% no último trimestre de 2000, passou para 1,3% e, em seguida, caiu para 0,7% no seu ritmo anual, embora o Fed tivesse antecipado a recessão desde janeiro de 2001, quando reduziu a taxa básica de 6,5% para 6%, marcando com isso a virada do ciclo. Para reanimar as bolsas de valores, as autoridades monetárias dos EUA procederam a seis reduções na taxa básica de juros durante o primeiro semestre, fazendo com que a taxa interbancária (de curto prazo) passasse nesse pouco tempo de 6,5% a 3,75%. Os juros de curto prazo ficaram mais elevados na Europa em relação aos EUA pela primeira vez desde a criação do euro. Depois da tragédia do 11 de Setembro de 2001, no mesmo ano em que houve o crash dos valores tecnológicos, a taxa de juro americana de curto prazo sofreu mais cinco cortes no último trimestre de 2001, passando para 1,75% no fim do ano. O processo de contração prosseguiu e, em junho de 2003, a taxa em questão caiu para 1%, o nível mais baixo desde 1951. Do lado europeu, o BCE operou, em maio de 2001, isto é, quatro meses depois da intervenção do Fed, um corte de 1/4 ponto percentual na sua taxa básica, a qual havia se mantido estável desde novembro de 1999 (4,75%). Como nos EUA, a taxa básica europeia continuou na trajetória de queda até 2003, quando chegou a 2%. O contexto de taxas de juro em queda nos dois continentes não foi suficiente, contudo, para evitar uma redução na taxa de crescimento da economia mundial. Mas, com o subsistente diferencial de juros, o euro se fortaleceu e atingiu, no dia 27 de maio de 2003, a barra de US$ 1,19, acima do seu nível de introdução, em janeiro de 1999. 4.2. A ofensiva americana e o segundo ciclo financeiro dos anos 2000 Se a década de 1990 foi estável e confortável para os EUA, a década de 2000 está, em oposição, repleta de inconveniências que ameaçam a posição A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 83 americana no mercado mundial, o que explica, num primeiro momento, a acentuação da belicosidade dos EUA na política internacional. Qual é o parafuso roído que alui a máquina lubrificada do império americano? O grão de areia é precisamente a redução da importância do dólar como moeda internacional: são as crescentes transações internacionais que se efetuam sem o uso do dólar; são os intercâmbios que se realizam entre as nações e as firmas transnacionais por outros meios como o euro, as moedas regionais dentro de blocos econômicos e até mesmo via escambo. Daí o interesse do governo americano em dominar as reservas de petróleo no mundo e segurar a sua exploração pelas firmas americanas, um meio de enfraquecer as moedas que tentam partilhar o privilégio do dólar. Privilégio este que consiste essencialmente em transferir o ônus financeiro dos déficits da economia hegemônica ao resto do mundo. Os americanos invadiram o Iraque em 20 de março de 2003 e, em três semanas, derrubaram a ditadura do temerário Saddam Hussein, dando um fim a um regime que se atreveu, a partir de setembro de 2000, a faturar em euro suas exportações de petróleo. No dia 2 de maio de 2003, o presidente Bush anunciou precipitadamente o fim da resistência no Iraque e, num clima de euforia, os neoconservadores americanos sugeriam a utilização da mesma força contra a Síria, o Irã, o Sudão e até mesmo a Arábia Saudita (uma antiga aliada). Na crise que surgiu do unilateralismo americano dentro das Nações Unidas estava claro que a ofensiva contra o Iraque obedecia a uma estratégia diferente do pretexto extravagante de que os americanos iriam civilizar os beduínos do Oriente Médio13. Tratava-se mesmo de defender a hegemonia econômica e monetária dos EUA no mundo. Aos países árabes, majoritários na Opep, a invasão do Iraque serviria de aviso contra qualquer pretensão de mudança no plano monetário do petróleo14. No entanto, o que os estratégicos da Casa Branca não previram é que a guerra no Iraque perdurasse e saísse muito mais cara para os cofres públicos americanos, contribuindo assim para a depreciação do dólar. Nos meados de novembro de 2003, a moeda americana registrou a sua mais baixa cotação histórica frente ao euro (0,83 euro por 1 dólar). Consequentemente, um número importante de investidores internacionais tendeu a aplicar partes crescentes de suas poupanças na Europa, acentuando a desvalorização da moeda americana que, em fevereiro de 2004, caiu para 0,77 euro. Diante disso, em junho, o Fed aumentou de 1/4 ponto sua taxa básica, que passou de 1% para 1,25%. Uma nova fase de ascensão do juro se iniciou então, como se pode observar no Gráfico 2, dando lugar ao segundo ciclo financeiro. A taxa americana de curto prazo continuou em alta ao longo dos anos 2004 e 2005, alcançando em setembro de 2005 o nível de 3,75%15. Mas isso não foi suficiente para reverter a baixa do dólar, que terminou o ano de 2004 cotado a 0,74 euro. 13 O pretexto das armas químicas também não vale, pois os americanos só invadiram o Iraque depois que tiveram a certeza, através dos inspetores da ONU que fizeram este trabalho, de que não havia armas de destruição maciça. Não teriam corrido tamanho risco. 14 Não foi por acaso que o governo dos EUA apresentou uma atitude moderada face ao regime de Pyongyang na Coreia do Norte, o qual rompeu os acordos sobre a energia atômica em dezembro de 2002, enquanto que, face ao Iraque, o mesmo governo de Bush se mostrou altamente intransigente. 15 Esse crescimento dos juros coincide com a consolidação dos déficits gêmeos americanos. Em 2004, o déficit público americano atingiu US$ 422 bilhões, e o comercial, cerca de US$ 640 bilhões. 84 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Gráfico 2 Taxa básica de jur os nos EUA – 1999-2008 juros Fonte: Federal Reserve System. A política americana de contração monetária, iniciada em junho de 2004, foi comparada à mesma política que o Fed adotou em junho de 1999, quando reverteu o processo de queda na sua taxa básica de juros. Naquela época, a contração monetária obedeceu essencialmente à necessidade de contrair a pressão inflacionária que se deveu ao excesso de liquidez. Mas, em 2004, a conjuntura econômica americana estava diferente, marcada pelo enfraquecimento do dólar, pela redução dos ingressos de capital estrangeiro e pela expansão dos déficits gêmeos. Em junho de 2004, as autoridades monetárias dos EUA, ao elevarem de forma moderada a taxa de curto prazo, estavam conscientes de que a política monetária, por si só, não era mais suficiente para tornar atraentes os investimentos em dólar, ao mesmo tempo em que o controle da inflação não poderia ser garantido sem a volta maciça dos capitais estrangeiros. A repatriação dos lucros das firmas americanas, que foi estimulada pelos incentivos fiscais, se revelou limitada, e sua realização, custosa, pesou sobremaneira sobre as contas públicas, já bastante deficitárias. Havia necessidade de encontrar recursos externos em volumes crescentes para o financiamento das dívidas. Razão pela qual os americanos passaram a usar a sua política monetária como instrumento de sucção de liquidez, de capitais e de bens e serviços asiáticos. Propiciaram uma espetacular expansão do crédito ao consumo e à “alavancagem” financeira, fonte da imensa “bolha” formada nos mercados imobiliários e da crise financeira mundial que estourou no fim de 2008. Essa política só foi viável porque correspondeu às estratégias dos países asiáticos, concebidas para geração de superávits comerciais que implicam necessariamente a demanda de ativos denominados em dólar. Estabeleceu-se, assim, uma interdependência monetária e comercial EUA-Ásia que amplia os déficits americanos e obriga os asiáticos a financiá-los, alimentando o poder de senhoriagem do dólar (Belluzzo, 2005). A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 85 5. Enfraquecimento do dólar etton W oods II” e “equilíbrio do dólar,, “Br “Bretton Woods terror financeiro” São principalmente os países asiáticos e, numa certa medida, os países árabes exportadores de petróleo que financiam os déficits externos americanos. As intervenções cambiais dos bancos centrais asiáticos para sustentar o dólar deram maior impulso às importações americanas. Frequentemente, os asiáticos condicionam suas concessões de empréstimos à conquista de mercados nos países financiados, o que eleva suas exportações para os países que se endividam, particularmente os EUA. Para os países árabes, embora as informações sobre seus investimentos diretos não estejam claras, pode-se considerar que sua situação seja semelhante à que associa a Ásia aos EUA. Quanto aos europeus, acanhados, relutam em comprar ativos americanos. Ficaram duplamente incomodados pela supervalorização do euro e pelo encarecimento desproporcional do petróleo. O BCE não sabia como agir para corrigir o câmbio sem gerar mais inflação. Permaneceu, então, inerte na expectativa de uma solução externa, confinado na sua função de garantir a estabilidade dos preços e, com o encarecimento das matérias-primas, sustentava o juro para contrariar a inflação importada, agindo de forma pró-cíclica. Uma interpretação do aparecimento desses desequilíbrios e de uma possível mudança no sistema monetário internacional foi dada pelos economistas do Deutsche Bank Mike Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Garber (2007). Segundo essa equipe, o sistema mundial atual pode ser visto como um novo Bretton Woods: um conjunto de países asiáticos aplica um regime cambial fixo ou quase fixo em relação ao dólar, formando um sistema monetário padrãodólar informal. Como no regime original de Bretton Woods, os EUA representam o “centro” que se beneficia do privilégio de emitir a principal moeda-reserva internacional que os países da “periferia” desejam adquirir, a fim de acelerar o seu desenvolvimento. Essa tese se inspira, é claro, da época do pós-guerra, quando as economias da Europa e do Japão estavam em ruínas e se recuperavam dolorosamente da Segunda Guerra Mundial; suas moedas estavam desvalorizadas e inconversíveis. Algumas semelhanças podem ser observadas entre os dois esquemas monetários, é verdade, mas as diferenças são grandes e suas consequências, diferentes. Naquela época, o valor do dólar estava garantido pela conversibilidade em ouro e por uma taxa fixa. No sistema original de Bretton Woods, contrariamente ao sistema atual, a economia americana estava amplamente superavitária. No pós-guerra eram os americanos que exportavam capital e, hoje, são importadores líquidos. Segundo Larry Summers, a Ásia e os EUA estão condenados a se sustentarem mutuamente, qualificando essa situação de “equilíbrio do terror financeiro”. Os asiáticos estariam pressionados a prosseguir na compra dos títulos americanos, apesar do risco cambial crescente dos engajamentos em dólar. Uma atitude contrária pode levar a um crash financeiro desastroso para o mundo e do qual os países credores da Ásia sairiam como principais vítimas (Summers, 2007). 86 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Sob a pressão internacional, Pequim aceitou abandonar a sua política de fazer sua moeda acompanhar as oscilações do dólar na mesma proporção, como fez entre julho de 2005 e agosto de 2008, a fim de proceder a uma apreciação progressiva, mas controlada, do yuan. Com isso, a moeda chinesa, que valia US$ 0,12, passou a valer US$ 0,147, uma significativa valorização de 18,5%. Desde então, a paridade dólar/yuan se manteve estável. Essa desvalorização do dólar não reduziu o ritmo do crescimento do déficit comercial americano junto à China, que logo depois da mudança na política cambial chinesa, em 2006, registrou um recorde de US$ 232 bilhões (num total de US$ 856,7 bilhões). Na realidade, não há provas suficientes de que a apreciação do yuan, de modo a adaptar sua cotação aos fundamentos da economia chinesa, contenha as exportações da China e reduza de forma satisfatória os desequilíbrios internacionais. Primeiro, porque a vantagem da China no comércio mundial deriva essencialmente do custo baixo da sua mão de obra, com um salário médio por hora trabalhada de US$ 0,50, contra US$ 16 nos EUA. Segundo, porque os desequilíbrios americanos têm como foco principal o excesso de gastos públicos16, particularmente os gastos militares17. Terceiro, um outro fator de instabilidade americana é a debilidade da poupança doméstica, como prova a crise imobiliária e bancária atual. Portanto, um yuan desvalorizado é apenas um dos fatores que alimentam a dinâmica dos desequilíbrios americanos e mundiais18. O embaraço da hegemonia monetária americana está precisamente na contração do papel do dólar nos mercados internacionais, principalmente enquanto meio de pagamentos, comprometendo a relação positiva entre o preço das commodities e o dólar. Dois fatores interligados explicam a tendência à redução da importância do dólar: o primeiro é que, como já foi dito, muitos países optam por efetuar suas transações comerciais internacionais com suas próprias moedas, com o euro ou com a troca direta de mercadorias e serviços por outras mercadorias e outros serviços. Consequentemente, afrouxa-se a necessidade de mobilizar dólares para o faturamento internacional, contraindo assim os investimentos em ativos americanos. O segundo fator está no surgimento da China no mercado monetário mundial, um país que se tornou, a partir de março de 2006, o maior detentor de reservas internacionais. Praticando um regime cambial quase fixo em relação ao dólar, a China está induzida a se opor à volatilidade da moeda americana. Uma diversificação de suas reser vas cambiais que pudesse provocar a desvalorização da moeda americana garantiria a sua competitividade no mercado mundial. Outros países seguem o exemplo da China de se desengajar em dólar19. Pode-se entender assim o fim da relação positiva entre os movimentos de preços das commodities e o comportamento da moeda americana. 16 O déficit público americano ficou em torno de US$ 1,3 trilhão em 2008. A previsão para 2009 é de um déficit de US$ 1,7 trilhão. 17 A manutenção de 737 bases militares pelo mundo exige orçamentos colossais, sem contar as guerras realizadas a partir de 2001. 18 Ademais, o governo chinês aplica uma política cambial que lhe convém, da mesma forma que as autoridades americanas sempre manipularam o dólar conforme seus interesses. 19 O banco central da Suécia (Riksbank) procede, desde abril de 2006, a uma diversificação de suas reservas a favor do euro e contra o dólar, quando a proporção da moeda europeia aumentou de 37% para 50% e aquela da moeda americana caiu de 37% a 20%. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 87 6. A crescente importância da China no mercado mundial e as novas práticas de comércio internacional Por mais de 20 anos a economia chinesa cresceu a uma taxa média anual de 9% a 10%, em contraste com o fraco desempenho da economia ocidental, sobretudo a europeia20. O crescimento chinês, intensivo em energia, tornou a China o segundo maior importador de petróleo (atrás dos EUA), elevando sua participação a cerca de 9% da demanda mundial (211 milhões de toneladas em 2008)21. A China, que já é a quarta potência mundial, na frente da França e da Inglaterra, se aproxima da terceira colocação. A expansão da economia chinesa ficaria sem explicação se a abertura de sua economia não contasse com uma mão-de-obra qualificada e barata. Graças ao surto econômico, o “Império do Meio” atrai a cada ano volumes consideráveis de investimento direto. A sua moeda continuou de fato ancorada a uma cesta de moedas constituída essencialmente pelo dólar americano, e a depreciação deste favorecia a competitividade da China. Com seus excedentes comerciais extraordinários, o país acumulou grandes reservas cambiais e, por pouco que as autoridades chinesas busquem diversificar suas reservas cambiais, uma elevação do preço de petróleo conduzirá à maior depreciação do dólar. A oferta nacional de energia nesse país, realizada à base do carvão, cobre apenas a metade da demanda e sua participação no mercado doméstico está em queda, razão pela qual as importações de petróleo cresceram significativamente e sustentaram os preços das commodities em geral, o petróleo em particular. No longo prazo, a elevação desses preços acabou por gerar efeitos positivos sobre o saldo exterior chinês, em razão da participação relativamente elevada e crescente da China nas importações dos países exportadores de matérias-primas. A China mostrou praticar uma estratégia de abastecimento energético seguro e diversificado, junto a países diferentes como Arábia Saudita, Irã, Indonésia, Rússia e países da África e da Ásia Central. A penetração chinesa na África e no Golfo Pérsico fica cada vez mais precisa. O Sudão e, particularmente, o Irã, dois países que os EUA ameaçavam invadir, se tornaram parceiros privilegiados da China22. Em troca de petróleo com Irã, Nigéria, Angola e Sudão, a China exporta bens e tecnologias23. As empresas petroleiras chinesas, todas estatais, entram em concorrência direta com as majors americanas, atuando até mesmo em áreas petroleiras de predomínio americano, como na Arábia Saudita, onde negociam a formação de estoques de petróleo saudita na China. Na África, a presença chinesa é mais sentida. As importações da China no continente africano cresceram, em 2006, a uma taxa de 25%, contra 15% em 20 A economia americana, que cresceu no período 1988-2008 a uma taxa que flutuou entre 3% e 4%, gastou muito mais do que produziu. 21 Segundo informações da Embaixada da França na China. 22 A China é o primeiro cliente do Sudão e do Irã. Os chineses se declararam contra o embargo americano contra o Sudão, sustentando o regime de Cartum na questão do Darfur. São também contrários a qualquer intervenção americana no Irã. 23 88 Particularmente armamentos no caso do Irã. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 1986. Os chineses estabelecem contratos de longo prazo, que consistem em adquirir petróleo investindo nos setores energéticos e na infraestrutura dos países fornecedores. Essa estratégia se traduz por uma atividade sustentada para as empresas chinesas de construção e engenharia civil, as quais arrebatam as licitações públicas, em virtude dos custos mais baixos que se devem basicamente à mãode-obra qualificada e barata deslocada da China. Frequentemente, os chineses financiam as obras dos seus parceiros africanos sem cobrar juros24, tendo o reembolso garantido através do fornecimento em commodities. Outros acordos adaptados às economias exportadoras de matérias-primas são realizados pelos chineses na América do Sul, como é o caso do Equador, país membro da Opep que acaba de negociar um empréstimo de US$ 1 bilhão junto ao Banco Popular da China, a ser amortizado por entregas de petróleo (Leclerc, 2009). No próprio continente asiático, as autoridades chinesas criaram um fundo de investimento e de cooperação, dotado de US$ 10 bilhões e destinado a desenvolver, nos países membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), programas de infraestrutura que favorecem o intercâmbio entre as partes sem a necessidade de recorrer ao dólar. Os chineses alocaram um valor de US$ 15 bilhões em empréstimos para seus vizinhos, oferecendo-lhes uma fonte de financiamento que substitui o recurso ao FMI (Leclerc, 2009). Quando são considerados os prejuízos causados por um dólar instável, a negociação de matérias-primas em outras moedas ou em troca de bens industrializados e de serviços se revela mais benéfica aos parceiros comerciais do que quando se recorre à intermediação do dólar. É o que desvenda a política de “parceria estratégica” pregada pela China. Outros países, em número crescente, tendem também a praticar políticas comerciais que dispensam o dólar como meio de pagamentos, substituindo a moeda americana por acordos bilaterais. Países como Rússia, Venezuela, Irã, Bolívia e Sudão (hostis aos EUA) e outros como a Noruega trocam parte de seus produtos energéticos ou por outra moeda que não seja o dólar, ou por outras mercadorias ou serviços, mesmo que as cotações e os valores continuem a se referir à moeda americana. Embora ela continue a ocupar um papel central como padrão de valor, sua importância como meio de pagamentos e reserva de valor tende a se contrair nessas novas relações, as quais tendem a reduzir o volume dos excedentes em dólar que regressam aos EUA e privar este país de uma parte do seu “direito de senhoriagem” forjado sobre o mundo. Considerações finais Desde junho de 2008, diante da iminente recessão americana e da redução do ritmo de crescimento na China, o preço do petróleo vem apresentando um insistente e forte recuo, depois de seu recorde de US$ 146/barril. O estouro da bolha do subprime, em setembro de 2008, determinou uma maior contração da economia mundial e, sob a pressão da queda generalizada, os corretores 24 A China perdoou a dívida de 31 países africanos. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 89 aceleraram a venda de contratos futuros e os fundos de hedge correram para se desfazer de sua posições. Consequentemente, acentuou-se a queda dos preços de commodities, particularmente o petróleo, o qual afundou para o nível mais baixo dos últimos quatro anos, quando passou a US$ 42 em dezembro de 2008, apesar da decisão da Opep em realizar um corte histórico de 2,2 milhões de barris. No mesmo tempo, a busca de proteção em dólar e em títulos do Tesouro americano determinou uma recuperação significativa da moeda estadunidense, que passou de 0,63 euro para 0,74 euro, entre julho e dezembro de 2008. O dólar sobe no momento em que a economia americana passa por uma grande crise e os preços das commodities despencam25. Não seria isso um paradoxo? O questionamento faz sentido, uma vez que, afinal, se a crise se deflagrasse em outro país, a moeda deste país se depreciaria ao invés de se valorizar. Ocorre que o dólar, apesar do seu flagrante arrefecimento dos últimos anos, é a moeda mais utilizada no comércio internacional e ainda mantém a sua qualidade de valor-refúgio no momento de perturbação global. Com a crise bancária nos EUA, falta liquidez em dólar, ao mesmo tempo em que os investidores fogem dos ativos comprometidos, como papéis comerciais, derivativos, opções e ações, para se refugiar no dólar, fazendo com que a cotação deste suba. Uma vez desencadeada a trajetória de valorização, os agentes que atuam no comércio internacional passaram a demandar mais dólares para efetuar suas transações presentes e proteger suas posições futuras contra um risco de câmbio maior, pressionando o dólar nos mercados futuros. No entanto, num cenário de recessão como o atual, os operadores do mercado terminarão por devolver à circulação os dólares retidos, quando, no médio prazo, se derem conta do excesso de liquidez. Portanto, a valorização atual do dólar, que não corresponde a nenhum fortalecimento real, é apenas de ordem conjuntural, e a reversão das expectativas provocará logo pressões baixistas sobre a moeda americana. Em função da crise, o superávit da China se retrai e o país não poderá mais investir em moeda e ativos americanos na mesma dimensão dos últimos anos. Acentuar-se-á, então, a falta de dinheiro para financiar o enorme déficit público americano, cuja evolução será necessariamente explosiva, devido à elevação incontida das despesas e à contração inevitável das receitas orçamentárias dos EUA. A solvência da economia americana se torna uma questão crucial que poderá determinar um novo cenário de economia internacional protecionista e estagflacionária. Isso é praticamente inevitável, a menos que os países superavitários se juntem para absorver parte dos déficits estadunidenses e, associados aos europeus, aproveitem o enfraquecimento da hegemonia monetária dos EUA para forçar este país a aceitar uma reforma do sistema monetário internacional, criando uma moeda-padrão internacional que se refira a uma cesta ampla de moedas nacionais. 25 Não só o preço de petróleo caiu. Despencaram os preços de todas as matérias-primas. Entre julho e novembro, as quedas foram expressivas: petróleo (59%), cobre (55%), óleo de soja (45%), zinco (39%), alumínio (37%), estanho (37%), suco de laranja (32%), café (19%), celulose (15%) e açúcar (9%). 90 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Referências bibliográficas AMANO, R.; VAN NORDEN, S. Oil Prices and the Rise and Fall of the US Real Exchange rate. Journal of International Money and Finance, 17 (2), 1998, p. 299-316. BASE DE DADOS. Disponível em: <http://www.yahii.com.br/euro.html> e <http:// www.easy-forex.com/en/>. BELLUZZO, L.G. O dólar e os desequilíbrios globais. Revista de Economia Política, v. 25, n.º 3, jul/set 2005. DIBOOGLU, S. Real Disturbances, Relative Prices, and Purchasing Power Parity. Journal of Macroeconomics, 18 (1), 1996. FEDERAL RESERVE. Disponível em: <http://www.federalreserve.gov/econresdata/>. FOLKERTS-LANDAU, D., DOOLEY M.P.; GARBER P.M. The Two Crises of International Economics. NBER Working Paper, n. W13197, junho 2007. DEPARTAMENTO DE COMÉRCIO AMERICANO. Economic Indicators. 2007. Disponível em: <www.esa.doc.gov/ei.cfm>. BANCO CENTRAL EUROPEU. Euro foreign exchange reference rates. 2009. Disponível em: <http://www.ecb.int/stats/exchange/eurofxref/>. EMBAIXADA DA FRANÇA NA CHINA. Contexte energétique chinois. 2009. Disponível em: <http://www.ambafrance-cn.org/1-Contexte-energetique-chinois.html>. FEDERAL RESERVE. Statistical Release. 2009. Disponível em: <http:// www.federalreserve.gov/releases/g5a>. GOLUB, S. Oil Prices and Exchange Rates. The Economic Journal, 93, 1983, p.576-593. KRUGMAN, P. Oil and the Dollar. NBER working paper 554, 1980. LECLERC, F. La guerre feutrée du dollar a commencé. 2009. Disponível em: <http:// www.newstin.fr/tag/fr>. O GLOBO Online. 2009. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/, 08/01/>. OBSERVATÓRIO FRANCÊS DE CONJUNTURA ECONÔMICA. Indicateurs & Prévisions. Janeiro 2006. OPEP. Monthly Oil Market Report. Janeiro 2009. Disponível em: <http://www.opec.org/ home/Monthly%>. UNCTAD. World Investment Report. 2008. SUMMERS, L. Wake up to the dangers of o deepening crisis. The Financial Times, 25 nov 2007. A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92 91 THROOP, A. A Generalized Uncovered Interest Parity Model of Exchange Rates. Federal Reserve of San Francisco Economic Review, 2, 1993, p. 3-16. WORLD PERSPECTIVE. 2008. Disponível em: <http://perspective.usherbrooke.ca/ bilan>. ZHOU, S. The Response of Real Exchange Rates to Various Economic Shocks. Southern Journal of Economics, 1995, p. 936-954. 92 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Impacto de la crisis financiera global en América Latina Luis Alberto Moreno* Resumen Resumen: El artículo estudia el origen de la crisis financiera global y las consecuencias para América Latina. El origen se encuentra en el exceso de construcción de viviendas en Estados Unidos, en los últimos años, y en la estructura de financiamiento de las viviendas. La crisis financiera global ha pasado por tres fases, con efectos muy diferenciados para América Latina. Durante la primera fase las economías emergentes de América Latina estuvieron bastante aisladas de las vicisitudes de los mercados financieros en el mundo desarrollado. En la segunda fase las economías emergentes se vieron súbitamente afectadas por la sequía de recursos financieros, la caída del comercio mundial y el desplome de los precios de los commodities. En la tercera fase las economías emergentes seguramente seguirán acopladas al mundo desarrollado, como ha sido lo usual, pero la efectividad de las políticas que se adopten influirá mucho en sus posibilidades de recuperación y en su resistencia a posibles shocks futuros. La conclusión es que la economía mundial se encuentra en un momento crítico y, que de las acciones que se tomen en los próximos meses, dependerá la severidad y la duración de la crisis. Palabras-clave Palabras-clave: crisis financiera global, América Latina, economía mundial, tasas de interés, FMI, BID. Introducción La crisis financiera global ha pasado por tres fases, con efectos muy diferenciados para América Latina. En esta charla quiero explicar esas tres fases, a partir del origen de la crisis, y explorar sus repercusiones en América Latina. La conclusión principal de mi charla es que la economía mundial se encuentra en un momento crítico y, que de las acciones que se tomen en los próximos meses, dependerá la severidad y la duración de la crisis, así como sus repercusiones en América Latina. * Luis Alberto Moreno es titulado en Administración de Empresas y Economía por la Florida Atlantic University (EUA) y Master en Administración de Empresas (MBA) por la Thunderbird School of Global Management, del mismo país. Fue Embajador de Colombia en Estados Unidos durante siete años y desde octubre de 2005 preside el Banco Interamericano de Desarrollo (BID). Este artículo es un resumen de la conferencia proferida por el autor en la Facultad de Economía de la FAAP el día 23 de abril de 2009. E-mail: <[email protected]>. Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 93 El origen de la crisis El origen de esta crisis se encuentra en el exceso de construcción de vivienda en Estados Unidos en los últimos años y en la estructura de financiamiento que se montó para financiarlo. Las condiciones favorables de financiamiento para la vivienda llevaron a aumentos de precios que hacían cada vez más atractiva la compra de vivienda y su financiamiento, creando así un círculo aparentemente virtuoso de acumulación de capital, mayor financiamiento y mejores estándares de vida para los norteamericanos. Sin embargo, este círculo aparentemente virtuoso dependía de las expectativas continuas de valorización de las viviendas, especialmente las que se financiaron en los últimos años a través de las llamadas hipotecas subprime. En el momento en que estas expectativas de valorización no pudieron realizarse, muchos de los deudores habrían de encontrarse con que sus deudas valdrían más que sus viviendas, y con ello tendrían muy pocos incentivos para continuar pagando las deudas. El sector financiero, por mucho tiempo, no prestó atención a estos riesgos, lo que lo llevó no solo a prestar en grandes cantidades, sino también a crear instrumentos financieros que le permitían reempaquetar las hipotecas y generar más oferta de activos financieros de creciente complejidad y muy poco transparentes en sus niveles de riesgo. Las tres fases en el mundo Todo este castillo de naipes empezó a resquebrajarse a mediados del año 2007, cuando empezaron a surgir dudas sobre las hipotecas subprime y sobre otros instrumentos financieros apalancados en ellas. Durante la primera fase de la crisis, que se extendió hasta mediados del 2008, los problemas parecían contenidos a unas pocas entidades financieras y, aunque la confianza del consumidor en Estados Unidos empezó a caer, y la actividad del sector de la construcción a debilitarse, no parecía que la economía fuera a entrar en recesión ni mucho menos que fuera a estallar una crisis financiera sistémica. Sin embargo, a mediados del 2008, empezó a hacerse evidente que muchas entidades financieras estaban contaminadas con hipotecas subprime u otros instrumentos derivados de ellas, y que había, además, otros instrumentos financieros muy riesgosos, que hasta el momento habían escapado a la supervisión oficial y a la vigilancia cuidadosa de los inversionistas, tales como los créditos default swaps y diversas formas de derivados de cobertura de riesgo. Esto dio inicio a la segunda fase fase, en la que la crisis financiera adquirió características sistémicas y, gradualmente, empezó a afectar el sector real de la economía. Esta fase se agudizó brutalmente a mediados de septiembre de 2008, con la quiebra de Lehman Brothers, que creó una sensación de pánico entre los 94 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 inversionistas a cerca de los riesgos en todo el sistema financiero, y que puso de presente que no había una estrategia consistente para responder a los casos de entidades financieras en problemas. Esta segunda fase se ha extendido hasta semanas recientes, pero es posible que estemos entrando en una tercera fase en la que, si se hace efectivo un conjunto de decisiones de política acordadas por Estados Unidos y los países europeos principalmente, podría iniciarse prontamente una recuperación de los sistemas financieros y del crecimiento económico de los países desarrollados. Como señalaré más adelante, sin embargo, aun es muy pronto para declarar victoria y hay muchas dudas que todavía deben despejarse. Las tres fases para América Latina Durante la primera fase de la crisis financiera, las economías emergentes de América Latina, en particular, estuvieron bastante aisladas de las vicisitudes de los mercados financieros en el mundo desarrollado. Durante esta primera fase, se hablaba del “desacoplamiento” del mundo en desarrollo, puesto que las condiciones financieras para los países en desarrollo continuaron siendo muy favorables, continuó creciendo el comercio mundial, y los precios de los productos básicos continuaron aumentando, como lo voy a mostrar con gráficos en unos minutos. Sin embargo, durante la segunda fase, el desacoplamiento llegó a su fin y las economías emergentes se vieron súbitamente afectadas por la sequía de recursos financieros, la caída del comercio mundial y el desplome de los precios de los commodities. En la tercera fase, que posiblemente se está iniciando ahora, las economías emergentes seguramente seguirán acopladas al mundo desarrollado, como ha sido lo usual, pero la efectividad de las políticas que se adopten influirá mucho en sus posibilidades de recuperación y en su resistencia a posibles shocks futuros. Evolución de algunas variables claves Permítanme ahora que les muestre unas pocas gráficas que muestran la evolución de algunas de las variables claves a las que me he referido. Primero, quiero mostrarles la evolución de los márgenes de financiamiento para los países latinoamericanos (gráfico 1). Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 95 Gráfico 1 - Factores externos Condiciones financieras internacionales: “EBMI spreads” por país 2007 – 2009 - Enero 2007 = 100 Fuente: Bloomberg. Los márgenes de financiamiento son el costo adicional, con respecto al gobierno de Estados Unidos, que tienen que pagar los gobiernos que quieren endeudarse internacionalmente. Durante la fase 1 de la crisis, estos márgenes se elevaron muy poco, manteniéndose en niveles muy bajos, de entre 100 y 200 puntos básicos, para los países con mejores calificaciones de riesgo, entre los cuales está Brasil. 96 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Sin embargo, durante la fase 2 y, especialmente, a partir de la quiebra de Lehman Brothers, en septiembre de 2008, los márgenes dieron un brinco súbito, alcanzando niveles entre tres y cuatro veces más altos. Después del periodo más crítico, entre septiembre y noviembre, han tendido a descender, aunque manteniéndose aun en niveles históricamente altos. Es importante notar que, a pesar de las perturbaciones de los meses más críticos, Brasil ha mantenido márgenes bastante moderados, gracias a la solidez de su situación macroeconómica, sus altos niveles de reservas internacionales y la sana estructura de su deuda pública. Los cambios en las condiciones financieras también se han reflejado en los flujos de capitales hacia los países emergentes. Durante la fase 1, los flujos se mantuvieron altos, mientras que, en la fase 2, declinaron en forma muy brusca. Según el Instituto de Finanzas Internacionales —una prestigiosa asociación internacional de bancos privados— los flujos de capitales a América Latina que han alcanzado un pico de US$184.000 millones se reducirán en el 2009 a US$43.000 millones. Quiero ahora mostrarles los cambios en las perspectivas de crecimiento de las principales economías, ya que esto refleja muy bien la agudización de la crisis (gráfico 2). Gráfico 2 Factores Externos –Crecimiento del PIB real en 2008 e 2009 – En % Previsiones en Mayo de 2008 e Febrero de 2009 – Países Seleccionados Fuente: JP Morgan y Economist Intelligence Unit. EU-15 incluye Austria, Bélgica, Chipre, Finlandia, Francia, Alemania, Grecia, Irlanda, Italia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Portugal, Eslovenia y España. Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 97 Hacia mediados del 2008, o sea, a finales de la fase 1 de la crisis, se esperaba que el crecimiento de Estados Unidos en 2009 fuera de más del 2%. Las proyecciones más recientes hablan de una caída de más de dos puntos. De igual forma, las perspectivas de crecimiento de los países de la Unión Europea para 2009 y para Japón han pasado de ser de más de 1% a mostrar caídas en 2 y 3%. También se espera que China e India tengan menores tasas de crecimiento en el 2009, aunque posiblemente sigan siendo relativamente robustas. Más adelante, mencionaré algunas proyecciones para América Latina. El tercer gráfico que quiero mostrarles describe el comportamiento de los precios de los principales commodities de exportación de América Latina. Gráfico 3.1 Factores externos – Precios de commodities - Alimentos 2007 – 2009 - Enero 2007 = 100 Fuente: Bloomberg. 98 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Gráfico 3.2 Factores externos – Precios de commodities – Metales y otros 2007 – 2009 - Enero 2007 = 100 Fuente: Bloomberg. Como ya mencioné, durante la primera fase de la crisis, los precios de los commodities continuaron aumentando, alcanzando en la mayoría de los casos máximos históricos que, corregidos por inflación, llegaron a ser comparables a los máximos alcanzados a comienzos de los 70s. Sin embargo, durante la fase 2, estos aumentos se revirtieron casi completamente, al estallar la burbuja especulativa que había inflado los precios de los commodities, y esto se ha agravado por la caída del comercio mundial. Implicaciones para América Latina Los efectos más inmediatos de la crisis financiera mundial se han sentido en los tipos de cambio y en las bolsas de valores de América Latina. En la primera fase, las monedas latinoamericanas siguieron apreciándose y las bolsas de valores continuaron en auge. Las tendencias se revirtieron abruptamente en la fase 2. Las monedas de América Latina, en promedio, se han depreciado 24%, pero los países que tienen sistemas monetarios atados a la inflación (inflation targeting) han visto depreciaciones aun mayores. Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 99 En el gráfico 4, se muestra el comportamiento de las tasas de cambio para las economías más grandes de América Latina. Gráfico 4 Tasas de interés por país Tasas nominales en moneda local por dólar - 2007 – 2009 Enero 2007 = 100 Fuente: Bloomberg. Como ustedes ven, el real brasileño es la moneda que tuvo la apreciación más pronunciada en la fase 1, la cual luego fue completamente revertida en la fase dos. Es importante señalar que la flexibilidad de la tasa de cambio, aunque puede tener efectos disruptivos en el corto plazo, constituye un mecanismo de ajuste de los precios relativos que ayuda mucho a asimilar los shocks externos. Naturalmente, los efectos de la crisis mundial se han transmitido también a los sectores reales de las economías. Las perspectivas de crecimiento para América 100 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Latina en el 2009, que eran de más de 5% antes de iniciarse la crisis, bajaron a 4.4% hacia el final de la fase 1 y, durante la fase 2, fueron ajustadas hacia abajo varias veces. Actualmente, se cree que la región en su conjunto tendrá una tasa de crecimiento negativa de alrededor de 0.5% en el 2009. La mayoría de los observadores cree que todas las economías grandes de la región, con la única excepción de Perú, estarán estancadas o caerán en el presente año. Con respecto a la inflación, no se esperan cambios muy pronunciados. Hay que recordar que, en el 2008, la inflación en casi todos los países de la región aumentó debido a los altos precios de los commodities y, por consiguiente, de los alimentos de consumo básico. En la medida en que los precios de los commodities se han reducido, esta presión ha desaparecido, permitiendo que las devaluaciones no se traduzcan en mayor inflación. Es importante señalar que este es un fenómeno bastante nuevo en América Latina donde, en el pasado, los periodos de crisis externa resultaban en importantes aumentos de inflación. El lado negativo de conseguir bajas tasas de inflación es que, en esta ocasión, aumentará más el desempleo que en recesiones pasadas. La razón es que los salarios reales caerán muy poco, y que el ajuste del mercado laboral ocurrirá mucho más a través de pérdidas de empleos que en el pasado. Ya se han observado importantes aumentos en las tasas de desempleo en la mayoría de los países, especialmente en aquellos con regímenes laborales más rígidos como es el caso de Colombia. Por supuesto, el aumento del desempleo y la caída de los salarios tendrán efectos sociales muy nocivos. Es importante recordar que América Latina había logrado reducir considerablemente sus tasas de pobreza. Entre 1990 y 2008, el porcentaje de latinoamericanos pobres había descendido de 48.3% a 33.2% de la población. Se teme que alguna parte de este progreso se pierda en los próximos años. Si la crisis durara solo un año, las tasas de pobreza aumentarían no más de 2 puntos, y el número de pobres podría elevarse entre 3 y 6 millones de personas. Sin embargo, una crisis prolongada por tres años llevaría a aumentos mucho mayores y de efectos más persistentes. La razón es que las familias agotarían sus escasos recursos para poder afrontar la crisis y tendrían entonces que acudir a medidas extremas tales como recortar sus gastos básicos de alimentos, sacar a los niños de la escuela, y vender activos productivos. Estos mecanismos de respuesta ante la crisis podrían llevar a pérdidas permanentes en el capital humano y en la capacidad productiva de los pobres. Respuestas de Políticas Casi sin excepción, los gobiernos latinoamericanos han respondido rápidamente a los retos que implican las tendencias económicas y sociales que he descrito. La respuesta típica de política ha tenido cuatro componentes. Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 101 El primero, el componente monetario, ha consistido en reducir tasas de interés y en proveer liquidez por diversos canales, con el objeto de mantener el flujo de crédito, especialmente a los sectores exportadores y a las pequeñas y medianas empresas, que suelen ser dos sectores muy vulnerables a la falta de crédito. El segundo componente es el fiscal, que ha consistido en recortar impuestos, aumentar los subsidios fiscales a algunas actividades económicas, y acelerar los programas de gasto público, especialmente en infraestructura. El tercer componente han sido las políticas sectoriales dirigidas a estimular sectores claves por su potencial de generación de empleo, tales como la construcción de vivienda, la agricultura y las pequeñas y medianas empresas. El cuarto componente han sido las políticas sociales cuyos principales objetivos han sido estimular la generación de empleo y ofrecer protección social mediante transferencias de ingresos a los sectores más vulnerables. Brasil ha tomado acción en todos estos frentes, en algunos casos con innovaciones de política muy acertadas. Fue uno de los primeros países en responder a la crisis con políticas de apoyo crediticio a los sectores exportadores y ha sido líder en movilizar recursos financieros a través de una poderosa red de bancos de desarrollo, que son la envidia de muchos otros países de América Latina. Los riesgos de política El paquete de políticas que he descrito es el paquete ideal que todo país desearía implementar para restablecer la confianza, estimular la demanda interna y minimizar los costos sociales de la crisis. Por desgracia, no todos los países cuentan con las condiciones macroeconómicas o con los programas e instituciones necesarios para ponerlo a andar cabalmente. El principal riesgo que enfrentan los países es que, por falta de espacio fiscal, o por no contar con financiamiento de largo plazo en buenas condiciones, su estabilidad macroeconómica futura se vea en peligro. Este riesgo no existiría si durante los años de bonanza los gobiernos hubieran seguido una política de ahorro que les hubiera permitido llegar al periodo de las vacas flacas con recursos disponibles para aumentar el gasto público. Chile es el único país que siguió esta política de ahorro en forma consistente. En los demás casos, los márgenes de maniobra son limitados y, en algunos países, francamente inexistentes. Puesto que la crisis genera automáticamente un deterioro fiscal, debido a la caída de los ingresos tributarios, y al mayor costo de financiamiento, en algunos países será inevitable, tarde o temprano, recortar el gasto público. Debo decir que este no es el caso de Brasil que, como ya lo he dicho, parte de una situación fiscal y de deuda bastante sólida. Una fuente fundamental de riesgo macroeconómico se origina en que los países no puedan conseguir el financiamiento que necesitan, aún cuando su situación fiscal sea, en principio, sostenible. 102 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 La razón es que, si los mercados financieros internacionales y domésticos perciben que un gobierno no podrá encontrar suficiente financiamiento, se volverán renuentes a comprar sus títulos de deuda, y exigirán mayores rendimientos para hacerlo. Puesto que esto eleva los costos de financiamiento, puede acelerar el surgimiento de una crisis de financiamiento, que no tendría por qué haber ocurrido de otra forma. El riesgo de que ocurra una crisis de financiamiento es, por supuesto, mayor en la medida que se prolongue o se agudice la recesión internacional o la caída de los precios de los commodities, o en el caso de que llegaran a ocurrir aumentos sustanciales en las tasas de interés en el mundo desarrollado. La encrucijada actual Por estas razones, es que son tan cruciales las políticas que se adopten en los meses que vienen. Del lado de los países desarrollados, es esencial que se recupere la confianza de los consumidores y de los inversionistas sobre su propia situación económica, la solidez del sector financiero, y la estabilidad del fisco. Ninguna de estas cosas está garantizada todavía. Se requiere que los programas de estímulo fiscal y una estrategia de fortalecimiento de los sectores financieros, conjuntamente, sean efectivos para estimular la demanda privada de consumo e inversión pero, a la vez, despejando las dudas sobre la calidad de los activos y los niveles de riesgo del sector financiero, y sin comprometer en exceso la capacidad fiscal futura. Por el lado de los países en desarrollo, es necesaria no solamente la recuperación del mundo desarrollado sino la certeza de que contarán ahora con el financiamiento necesario para los años futuros, que los proteja del riesgo de la crisis de financiamiento. Nada de esto parece fácil, pero no hay ninguna duda de que, ahora más que nunca, existe voluntad política y posibilidades de coordinación internacional. Hace unas semanas, se reunieron en Londres los representantes de las veinte economías más grandes del mundo, el llamado G-20, para coordinar esfuerzos y prevenir acciones de política que serían contraproducentes para la recuperación mundial, tales como el proteccionismo comercial o financiero. Uno de los temas centrales de acuerdo fue el fortalecimiento de las entidades multilaterales de crédito y, en especial, del Fondo Monetario Internacional. Los gobiernos acordaron incrementar la capacidad de préstamo del FMI de US$250.000 millones a US$750.000 millones. Gracias a la expansión de su capacidad crediticia, el FMI está ahora en capacidad de ofrecer recursos contingentes de liquidez a través de su nueva “línea de crédito flexible”. Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104 103 El diseño de esta línea de crédito busca precisamente financiar, con recursos de mediano plazo, a las economías que cuentan con buenos fundamentos macroeconómicos, pero que podrían ser víctimas de una crisis de financiamiento si no contaran con este tipo de recursos. Hasta el momento, México, Polonia, Costa Rica y Colombia han solicitado recursos de esta fuente. Estos recursos se suman a los que ha ofrecido la Reserva Federal de los Estados Unidos, a través de sus swap lines para México, Brasil y algunos países de otras regiones del mundo. Por su parte, el BID está ya movilizando toda su capacidad de crédito para atender las necesidades de los países de la región. El BID fue la primera entidad multilateral que creó una línea de crédito de rápido desembolso para responder a la crisis, en cuantía de US$6.000 millones. Aunque estos recursos representarán un aumento sustancial en el volumen de operaciones del Banco en el 2009, son claramente insuficientes frente a las necesidades de crédito de la región. En adición, el BID está gestionando la ampliación de su base de capital para poder responder mejor, en forma permanente, a las necesidades de financiamiento de la región. Los recursos del BID se han quedado atrás frente al tamaño de las economías, las necesidades de inversión de los países, el avance que requieren sus programas sociales, y la aparición de nuevos clientes que se beneficiarían del apoyo del BID, tales como los gobiernos estatales y provinciales, y como algunos segmentos del sector privado cuya participación es esencial para las nuevas inversiones que requieren los países en áreas tales como la infraestructura de transporte y la generación de nuevas fuentes de energía. Es claro para mí que, aunque la región está abocada a un momento especialmente crítico, contará con la respuesta de los países desarrollados, y con los mecanismos de cooperación entre los países de la región para responder a los retos de la crisis actual. 104 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 A contribuição da Psicologia Analítica para a compreensão do compor tamento econômico comportamento Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques* Resumo: No cenário atual, em que várias tendências estão convergindo para mudar, de forma profunda, o modo como vivemos, faz-se necessário analisar e determinar os mecanismos adaptativos que possam garantir a sobrevivência em tempos de crise. Entre esses mecanismos, parece-nos fundamental considerar as maneiras pelas quais os seres humanos chegam à tomada de decisões. Neste artigo vamos abordar o papel da Psicologia Econômica ao desafiar o modelo do homo economicus, o de um processo de tomada de decisão puramente racional. Mas, por outro lado, recorrendo-se à Psicologia Analítica, focalizamos na grande contribuição feita por Jung ao descrever um processo que pode representar um modelo “ideal” de tomada de decisão, composto por quatro passos, os quais em muito podem contribuir para a melhoria do processo de tomada de decisão, particularmente nesta época de grandes mudanças, como as que estamos vivendo. Palavras-chave: processo de tomada de decisão, decisões econômicas, psicologia econômica, tipos psicológicos, crise global. 1. Introdução Vivemos, sem dúvida, nesta primeira década do século XXI, um momento histórico no qual governos, instituições, organizações e indivíduos veem-se confrontados com grandes mudanças e com a necessidade de adaptar-se a elas para garantir sua sobrevivência. Inúmeras tendências globais têm convergido, qualquer uma delas com potencial de fazer ruir o presente modo de vida no planeta e provocar uma grande inflexão histórica. Poderíamos citar algumas delas: * Anna Mathilde Pacheco e Chaves é Ph.D. em Psicologia Social pela London School of Economics, professora aposentada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) e Diretora do Espaço Sophia – Cursos e Eventos Culturais. E-mail: <[email protected]>. Rose Mar Maryy Almeida Lopes é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e docente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). E-mail: <[email protected]>. Sonia Marques é Mestre em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e docente da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: <[email protected]>. A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 105 1) Mudanças no sistema financeiro a nível planetário, que nos confrontam com uma crise financeira global. 2) As ameaças de uma recessão global, frente às quais vários países do mundo estão tomando medidas keynesianas clássicas, como a ampliação de gastos governamentais, além da diminuição de taxas de juros, desvalorização de suas próprias moedas, subsídios para seu mercado de trabalho e utilização de mecanismos de proteção aos seus negócios e empresas. A retórica protecionista dos discursos políticos somente provocará retaliações e colocará a economia global em uma espiral descendente. 3) Os Estados Unidos da América, nos últimos anos, têm se tornado dependentes do financiamento de seu débito, tanto por parte dos países exportadores de petróleo quanto da China e do Japão. Entretanto, no ano de 2008, os exportadores de petróleo viram os seus lucros cair em 70%, provocando desequilíbrio em suas contas, criando suas próprias dificuldades. O Japão, que ainda tinha conseguido se recuperar da crise que enfrenta desde a década de 90, ficou agora em situação muito pior. Na China, com uma queda muito drástica em seu ritmo de crescimento e nas exportações afetadas, assiste-se ao fechamento de fábricas. Todos estes países terão de encontrar formas de estimular suas economias. 4) Já passamos o ponto do pico de exploração do petróleo, a partir do qual as reservas mundiais de petróleo só irão diminuir. A produção mundial tem ficado no mesmo nível nos últimos três anos. Os poços da Arábia Saudita estão se esgotando rapidamente e, do mesmo modo, os do complexo de Cantarall, no México. Este último fornece cerca de 12% de todo o petróleo importado pelos EUA e as previsões são dramáticas: em cinco anos o México se tornará importador de petróleo. E isto tudo agravará imensamente seus problemas sociais. Por outro lado, o preço atual de US$ 50/barril torna não competitivas as fontes alternativas de energia, o que somente aprofundará a crise. Por exemplo: projetos de exploração em águas profundas tornamse inviáveis ou cancelados e a escala de exploração de gás natural tem sido reduzida. Este cenário, de reservas e suprimento do petróleo decrescentes, manutenção dos níveis de demanda e as previsões sobre o preço do petróleo, sinaliza para a possibilidade de preços cada vez maiores, o que viria a ameaçar todo um modo de vida dependente desta fonte de energia. 5) O sistema climático está mudando em nível global. E as opiniões são divergentes: alguns cientistas sinalizam a possibilidade de um aquecimento global, enquanto outros afirmam que seguimos em direção a uma mini era glacial. Seja como for, a crescente irregularidade climática tem um impacto direto na agricultura, levando a uma possível escassez de alimentos, com aumento de preços. Esta tendência para alta dos preços dos alimentos seria agravada pelo possível aumento do preço de energia, que iria afetar os insumos e transporte dos produtos agrícolas. 6) Além disto, tem-se o aumento das erupções solares, que atingem e abrem buracos na magnetosfera, podendo vir a atrapalhar as comunicações globais nos próximos 3 a 4 anos, causando mau funcionamento ou mesmo danos aos satélites de comunicação. Acreditamos que esses problemas com os quais nos defrontamos são graves e globais. Todo o sistema está desequilibrado. Diante desta grande crise econômica 106 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 mundial torna-se importante entender e avaliar o processo de globalização. É crucial examinar como o Brasil está encarando atualmente a sua adaptação à globalização, que faz com que fenômenos e acontecimentos que ocorrem muito longe daqui possam vir a afetar profundamente as futuras condições de vida no nosso país. Não nos parece realista afirmar, ante as tendências e problemas acima referidos, que outros países terão de enfrentar uma tsunami, e nós, apenas uma “marolinha”. A globalização atual não é o primeiro fenômeno desta natureza e os historiadores já identificaram vários outros períodos onde tal fenômeno ocorreu, como por exemplo as conquistas territoriais de Alexandre o Grande; o Império Romano; as navegações e a construção de impérios coloniais no século XVI por Portugal, Espanha e, mais tarde, a Inglaterra; e a expansão colonial dos Estados europeus durante o século XIX. Uma análise, mesmo superficial, desses diferentes processos de globalização mostra-nos que sempre houve quem pereceu e quem soube se adaptar, conseguindo, em muitos casos, evoluir. Esta mesma análise também contribui para chamar nossa atenção à importância capital da flexibilidade e da criatividade dos governos, instituições, organizações e indivíduos, como um diferencial decisivo entre os que não se aperfeiçoaram e foram destruídos pelo processo, e os que aproveitaram o momento histórico para encontrar formas de adaptar-se e se posicionar diante das novas realidades, de inovar e de melhorar a qualidade do sistema político-econômico conseguindo, assim, melhorar a qualidade de vida das populações. Diante deste cenário de crise, torna-se muito importante a pesquisa sobre os mecanismos adaptativos de que os indivíduos, bem como os governos e as instituições, podem utilizar-se ao enfrentar os desafios da crise atual. Dentre estes mecanismos adaptativos, parece-nos fundamental considerar as maneiras pelas quais os seres humanos chegam à tomada de decisões. Diversos fatores influenciam o processo de tomada de decisão. Fatores externos a nós, como o contexto social, histórico, econômico e político; ou fatores pessoais, como história de vida, experiência, conhecimento e características psicológicas. Dentre os fatores pessoais, neste artigo discutiremos sinteticamente a influência das características de personalidade, pois consideramos imprescindível que as pessoas estejam familiarizadas com os diferentes fatores que interferem nos processos de tomada de decisão e cientes de que certas características pessoais, que as tornam únicas e diferentes das demais, em muito influenciam a maneira pela qual irão enfrentar os desafios do atual momento histórico. 2. Tipos psicológicos Diferentes teóricos têm se preocupado em criar esquemas explicativos para as diferenças e semelhanças aparentes da personalidade humana. Cada autor e pesquisador tende a conceituar personalidade a partir de postulados teóricos diferentes, a partir dos quais constroem instrumentos empíricos distintos para avaliar a personalidade. No entanto, segundo a maior parte dos psicólogos, a personalidade seria constituída por uma série de características internas relativamente estáveis, responsáveis por fazer com que as pessoas se comportassem de maneira semelhante e consistente frente a estímulos de seu meio ambiente. Dentre os diferentes estudiosos da personalidade existe um, cuja obra Tipos Psicológicos, publicada pela primeira vez em 1921, é ainda hoje considerada como A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 107 nuclear para a compreensão do conceito. Este autor é Carl Gustav Jung. Para Jung (1991), existiriam certas diferenças individuais, que inclusive teriam uma base genética, as quais influenciariam significativamente os indivíduos em termos de suas motivações para comportar-se de uma ou outra maneira, seu modo de pensar, seu padrão de tomada de decisões, a maneira como reagem a diversas situações, bem como seus padrões emocionais. A esta gestalt, construída a partir da combinação destas preferências nucleares por um ou outro tipo de orientação básica diante do meio ambiente interno e externo, Jung denominou Tipo Psicológico, que segundo ele seria um modelo, um exemplo característico, um padrão habitual dos indivíduos (JUNG, 1991). Jung começa por afirmar que uma das diferenças mais fundamentais entre as pessoas está no fato de que algumas mostrariam uma preferência em concentrar sua atenção e energia no mundo externo, naquilo que está acontecendo no meio ambiente, e chamou esta preferência de extroversão. Por outro lado, outras pessoas têm sua atenção dirigida para aquilo que acontece em seu mundo interior, suas ideias, sentimentos, emoções, sensações; a estas pessoas Jung chamou de introvertidos e, a esta tendência, de introversão. Jung também notou que os extrovertidos tendem a ser sociáveis, a se orientar para a ação e estariam, constantemente, buscando estimulação no mundo externo. Preferem estar com pessoas: socializando, falando pessoalmente ou por telefone/internet, interagindo e costumam pensar em voz alta enquanto buscam as soluções e saídas para as situações e problemas. Assim, desenvolvem uma rede de amigos e de conhecidos, gostam de estar em grupo, resolver as coisas juntamente com os outros, apreciando reuniões, trabalhos e projetos em grupo. Para os que preferem a extroversão, o mundo é um mundo objetivo, onde tudo já está colocado a priori. Sua atenção se volta para as pessoas, coisas, animais, carros, máquinas, equipamentos, processos, instalações, ou seja, tudo que lhes seja externo. Desta forma, não apreciam se voltar para seu interior e ter um tempo para si mesmos. Por outro lado, e em contraste com os extrovertidos, os introvertidos tendem a preferir a contemplação à ação, mostrando-se geralmente tímidos, não apreciando situações onde haja excesso de barulho e excesso de pessoas. Assim, são geralmente classificados como solitários. Apreciam ficar sozinhos conversando com seus botões, lendo, apreciando sua própria companhia, gostando de ficar em um ambiente mais tranquilo. Precisam ficar quietos, consigo mesmos, para abastecer sua energia e se restaurar. Preferem pensar as coisas antes de lidar com elas no mundo externo. Vivem muito dentro de suas próprias cabeças e apreciam uma perspectiva subjetiva do mundo. São seletivos quanto a amizades e companhias. Em vez de falar, como os extrovertidos, preferem escutar e observar. Se pudessem, evitariam estar em grupos, em reuniões e também envolvidos em conversas demoradas. Estas atitudes correspondem a um dos aspectos mais públicos e facilmente identificáveis da personalidade e são dois modos de lidar com a energia mutuamente exclusivos, ou seja, não acontecem ao mesmo tempo. Comportamos-nos de forma extrovertida ou de forma introvertida e temos preferência por uma ou outra destas atitudes, mesmo que possamos transitar de um modo para outro. 108 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Além desta diferenciação básica – extroversão e introversão –, Jung identifica diferenças na forma de as pessoas interagirem com seu meio ambiente interno e externo. Define, então, quatro funções psíquicas, organizadas em dois grupos, um dos quais teria a ver com o modo preferido de recebimento de informação, e o outro, com o processo preferido para a tomada de decisões a partir dessas informações. As funções de recebimento e metabolização das informações são sensação e intuição, e as outras duas, referentes aos critérios para tomada de decisão, denominam-se pensamento e sentimento. Enfoquemos primeiramente as funções de recebimento das informações. As pessoas desenvolvem, diferentemente, uma de duas formas contrastantes e bem diversas de receber e perceber as informações. As pessoas com preferência pela sensação se baseiam mais pelos dados recebidos diretamente por meio dos seus cinco órgãos dos sentidos, ou seja, observam e admitem dados a partir de sua própria experiência concreta. São pessoas mais interessadas na atualidade, que se orientam para o presente e observadoras de seu entorno. Percebem, registram, trabalham sobre o que pode ser visto, sentido, tocado, cheirado, escutado ou degustado. Possuem um enfoque prático, tendo certa aversão às abstrações. Segue-se daí que confiam mais em suas próprias experiências do que em dados que recebam de forma indireta, como a palavra escrita ou falada (MYERS E MYERS, 1995, p. 57). Precisam ter acesso aos dados e ter tempo para assimilá-los, e apreciam se familiarizar com as coisas e tarefas. Então, são pessoas muito dependentes do objeto e, consequentemente, têm dificuldade para vislumbrar as implicações e derivações do curso dos eventos. Assim, não conseguem antecipar e dificilmente vão alterar o rumo das coisas, o statu quo; são, portanto, mais mantenedoras. São pouco inovadoras, mais presas às circunstâncias – precisam saber onde estão “navegando” todo o tempo, então teriam dificuldade para ver além, para lidar com uma crise ou com inovação. Geralmente, as crianças com preferência pela sensação têm menos interesse acadêmico do que os intuitivos que, na média, se saem melhor nos testes de inteligência. Mas os testes não captam bem a linguagem que o tipo sensação domina mais, a linguagem da realidade tal qual lhes é transmitida através dos sentidos. Assim, não confiam em percepções que “surjam de repente, do nada” e também não gostam quando sua imaginação é solicitada (MYERS E MYERS, 1995, p. 59). Em contraste, as pessoas com predominância da função intuição percebem as possibilidades e os significados e se orientam mais para o futuro: o que lhes interessa mais não é o momento presente, mas o que pode ser. Através da intuição a pessoa extrapola a limitação dos seus sentidos, captando o que poderia ser e o que pode vir a ser feito (MYERS E MYERS, 1995, p. 23). Pessoas com esta preferência percebem, captam o global, os padrões gerais, buscam os significados, as relações, daí terem facilidade para lidar com símbolos e com analogias. Percebem, registram tendências, os princípios subjacentes aos fatos, o padrão, a “grande figura”, notam as relações entre os fenômenos, percebendo novas possibilidades na situação presente ou em situações similares, não se atendo ou limitando às circunstâncias concretas. Apresentam mais facilidade para interpretar as informações que recebem, confiando em seu “sexto sentido”. São pessoas A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 109 mais abertas à mudança, dúvidas e complexidade. Os intuitivos aprendem melhor por insight e têm dificuldade para se ater e lembrar detalhes e trabalhar com fatos concretos. Por se voltarem mais às possibilidades, abrem-se mais para o futuro, percebendo as implicações, as consequências e alternativas para alterar o curso das coisas, e alterarem o statu quo. Apresentam uma “ampla gama de ideias originais, projetos, empreendimentos, inventos...” (MYERS E MYERS, 1995, p. 57). Portanto, os pioneiros, os inovadores, as pessoas criativas provavelmente são intuitivas, porque dão novas soluções para os problemas, buscam novas maneiras de resolver e fazer as coisas, são imaginativas, inventivas e inspiradas (MYERS E MYERS, 1995). Estas pessoas se entusiasmam com novos projetos, mas não apreciam se envolver em rotinas, coisas repetidas, coisas práticas. Confiam em seu próprio senso, seu sentido de direção. Dispensam mapas e manuais, mas podem se atrapalhar em situações práticas e banais. A intuição parece ser um processamento muito rápido de informação: “é uma percepção indireta pela via do inconsciente, incorporando ideias ou associações que o inconsciente relaciona com as percepções que vêm de fora. Essas contribuições inconscientes vão desde o mero ‘palpite’ masculino ou da ‘intuição feminina’ até os exemplos culminantes da arte criativa ou da descoberta científica” (MYERS E MYERS, 1995, p. 2). A função psicológica intuição estaria associada à escolha de soluções muitas vezes arriscadas, e a pessoa com esta preferência age de maneira inovadora, preferindo campos desconhecidos e resolver os problemas complexos. Jung (1991, p. 349-350) afirma que os intuitivos encontram possibilidades e “têm faro aguçado para o embrionário e para o que promete futuro”. “É compreensível, sem mais, que este tipo seja muito importante econômica e culturalmente. Se tiver boas intenções, isto é, se não for muito egocêntrico, pode obter grandes méritos como iniciador ou, ao menos, estimulador de grandes empreendimentos.” O que existe de comum entre estas citações é que o intuitivo como que se descola do conhecido, do já estabelecido e apresenta-se muito à frente. Consequentemente, estas pessoas têm dificuldades em mostrar os passos intermediários do processo de metabolização das informações. Não podem demonstrá-los porque foram processados no inconsciente, com muita rapidez, e brotam em suas consciências com um sentimento de certeza, ou como uma inspiração (MYERS E MYERS, 1995, 57). Após o recebimento da informação, as pessoas necessitam organizá-las e julgálas segundo alguns critérios para chegar a conclusões. Segundo Jung, existiriam “... duas formas distintas e agudamente contrastantes de chegar às conclusões” (MYERS E MYERS, 1995, p. 3): 1) através do pensamento, que utiliza o processo lógico e impessoal; 2) através de outro processo que envolve a apreciação, o valor atribuído aos objetos, pessoas e situações, enfim, através do sentimento. As pessoas com preferência pelo pensamento adotam critérios lógicos, da verdade ou inverdade, julgando as informações de forma impessoal, distante. Deste modo, a tomada de decisão acontece por um processo analítico, verificando quais são as evidências e os seus pesos; e, se for preciso, tomando decisões duras, não prazerosas, ou até impopulares. Podem ser tão analíticas ao ponto de parecerem frias e distantes. Em contraste, as pessoas que preferem os critérios de tipo sentimento julgam segundo critérios subjetivos. Assim, a tomada de decisão é baseada em valores pessoais, no 110 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 que é importante para si mesmo e para os outros. Uma pessoa deste tipo tende a ser empática e ter compaixão. Entretanto, Jung enfatiza a diferença entre a função sentimento e emoção: ... Sentimento não tem manifestações físicas ou fisiológicas tangíveis, enquanto a emoção é caracterizada pela condição fisiológica alterada... Mas quando você tem um Sentimento você tem controle. Você está a cavaleiro da situação e pode dizer, ‘Eu tenho um sentimento muito bom ou muito mau sobre isto’. Tudo está quieto, e nada acontece (JUNG, 1991, p. 26). A pessoa que prefere o pensamento se torna mais equipada e madura para organizar fatos e ideias, enquanto a que prefere o sentimento estará mais preparada para lidar com relacionamentos humanos. Há que se enfatizar que o exercício das preferências acarreta o desenvolvimento de traços mais superficiais e distintivos relacionados a elas (MYERS e MYERS, 1995, p. 3). Assim, as características do tipo sentimento são: maior envolvimento pessoal, mais interesse e inclinação pelo social, maior proteção, tato, compaixão e menos análise lógica. O contrário é verdadeiro para o tipo pensamento. No conflito entre pessoas opostas nestas funções, a pessoa de tipo sentimento termina magoada e com raiva. E a de tipo pensamento fica confusa, pois não sabe o que ocorreu. Esta preferência por pensamento ou sentimento é a única que se mostra em proporções diferenciadas segundo os gêneros, pois os tipos pensamento parecem ser muito mais frequentes em homens do que em mulheres (MYERS E MYERS, 1995, p. 66). A preferência tanto por um dos modos de receber informação ou de julgar e tomar decisões leva ao seu maior uso, controle e confiabilidade. Consequentemente, a outra forma, negligenciada, “será uma espécie de opinião de minoria, ouvida pela metade, e com frequência, totalmente desconsiderada” (MYERS E MYERS, 1995, p. 3). As pesquisadoras norte-americanas Isabel Briggs Myers e Katharine Briggs, que desenvolveram um teste psicológico – o Myers-Briggs Type Inventory (MBTI) –, aprofundaram as distinções de função propostas por Jung. Através de pesquisas, demonstraram que as pessoas que utilizam em sua vida cotidiana principalmente as funções sensação ou intuição – ou seja, têm preferência pela percepção – tendem a preferir um estilo mais flexível, mantendo-se abertas para novas informações. E aquelas que preferem utilizar sentimento e pensamento – preferência pelo julgamento – encararam a vida como algo a ser decidido e direcionado segundo a vontade. Procuram viver uma vida ordenada, estruturada, regulada, com as coisas em seus lugares, arranjadas. Gostam de planos, de coisas que têm começo, meio e fim (MYERS E MYERS, 1995). O quadro 1 a seguir apresenta, resumidamente, as atitudes que correspondem às maneiras como nos energizamos; às funções, que indicam como a nossa consciência obtém as informações, as metabolizam e trabalham sobre elas; e aos estilos preferenciais de lidar com o mundo. A combinação das preferências entre as duas atitudes, as quatro funções e os dois estilos de vida produz tipos diferentes de personalidade, com interesses, valores, necessidades e estilos específicos de comportamento, incluindo a tomada de decisões. A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 111 Quadro 1 – Atitudes, funções e estilo de vida com respectivas definições, preferências e palavras-chave Fonte: adaptado a partir de BADER, 2007, p. 122 112 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 3. McCrae e Costa e os “cinco grandes” A teoria junguiana da personalidade, com sua ênfase em duas atitudes e quatro funções, recebeu, nas últimas décadas do século passado, uma confirmação muito interessante. No começo dos anos 80, os psicólogos McCrae e Costa iniciaram, no Centro de Pesquisas de Gerontologia do National Institute of Health, em Baltimore, nos Estados Unidos, um grande programa de investigação. Nesta pesquisa utilizaram diferentes técnicas de coleta de dados, tais como a autoclassificação, testes objetivos, bem como relatórios de observação do comportamento feitos por observadores treinados, obtendo uma lista de adjetivos usados pelas pessoas quando se referiam às diferenças entre as pessoas. Submetendo-os a uma técnica de análise e classificação de dados muito sofisticada, a qual é chamada de análise fatorial, McCrae e Costa (1989, 1993) identificaram cinco grandes fatores, que definem diferenças individuais: • extroversão versus introversão • afabilidade versus hostilidade • responsabilidade versus irresponsabilidade • instabilidade emocional versus estabilidade • flexibilidade cognitiva versus inflexibilidade É interessante notar que entre os “cinco grandes” estão as duas “atitudes” de Jung, introversão e extroversão; a distinção proposta por Myers-Briggs também aparece como responsabilidade versus irresponsabilidade; além disso, dois outros fatores – afabilidade vs. hostilidade e flexibilidade vs. inflexibilidade cognitiva também se referem respectivamente às funções sentimento vs. pensamento e intuição vs. sensação do modelo de Jung. Portanto, torna-se evidente a importância de se utilizar a proposta junguiana para a compreensão da forma como os indivíduos percebem o mundo e os critérios que utilizam para tomar decisões a partir dessa percepção, incluindo decisões de natureza econômica. 4. Contribuição da Psicologia para a Economia A assim chamada “Psicologia Econômica” ganhou visibilidade a partir de 2002, quando o prêmio Nobel para a área de Ciências Econômicas foi para um psicólogo da Universidade de Princeton – Daniel Kahneman. A Psicologia Econômica vem contribuir para alargar a compreensão dos processos de tomada de decisão a partir da contribuição interdisciplinar entre a Psicologia, a Sociologia, a Economia, a Antropologia e, mais recentemente, as Neurociências. Gostaríamos, neste ponto, de sugerir que os tipos psicológicos podem influenciar este processo, já que as decisões, incluindo as econômicas, são tomadas por seres humanos. Portanto, é possível que a proposta junguiana possa nos fornecer uma estratégia simples, porém eficiente, para a compreensão do processo de tomada de decisões econômicas. O modelo junguiano fornece pistas de como chegar a decisões criativas. Vamos, então, seguindo o modelo junguiano, fornecer uma estrutura de quatro passos, a qual descreveria uma maneira “ideal” de tomada de uma decisão. A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 113 Passo 1 – Sensação: acumular fatos básicos usando os sentidos. Vivemos numa sociedade de coleta de informações; todos os dias somos bombardeados por cartas, relatórios, e-mails, telefonemas, revistas, televisão, informações fornecidas por líderes, especialistas e amadores. Informação que nos chega por meio dos sentidos: visão, audição, tato, olfato e gosto. Esta informação é de caráter prático: fatos, especificidades, pormenores, bem como dados em estado bruto, que irão relacionar-se a informações comparáveis do passado. O cérebro irá gravar estas impressões observando-as, colecionando-as e armazenando-as. Passo 2 – Intuição: especulação, busca de alternativas e interpretação destes fatos básicos. O que significa toda esta informação? Neste segundo passo, as pessoas, consciente ou inconscientemente, têm de fazer escolhas entre os fatos, números e dados que recebem. O cérebro irá alocar prioridades, dar significado e tentar conexões entre informações isoladas, criando um todo maior. Quando faltam fatos, ou os dados são incompletos, geralmente as pessoas usam sua imaginação para fazer especulações, inventar e predizer resultados futuros. Passo 3 – Pensamento: lógica, objetividade e análise racional. Depois dos passos anteriores de coleta de fatos e intuição, o cérebro pode se mover para a etapa seguinte, a tomada de decisão. Estas decisões, na esfera microeconômica, podem dizer respeito a, por exemplo, decidir comprar ou não um bem de consumo durável, um imóvel. Pode dizer respeito também a decisões sobre consumir ou poupar. Podemos também pensar sobre a melhor estratégia de investimentos levando em conta a relação entre a segurança do investimento e seu possível retorno. Nesta etapa torna-se necessário estabelecer prioridades e, para isto, é preciso recorrer a um processo racional e lógico, usando, principalmente, critérios objetivos e impessoais. Passo 4 – Sentimento: valores, subjetividade. Como esta decisão irá afetar minha própria vida e aquela das pessoas que são importantes para mim? As decisões econômicas, de forma ideal, deveriam passar por critérios éticos; levando em conta crenças básicas, valores e a ponderação sobre como a decisão poderia afetar os familiares, os amigos, ou mesmo a sociedade. Ademais, neste modelo ideal do processo de decisão fornecido por Jung deveria haver uma sequência “ótima” apresentada acima, o que raramente acontece. Contudo, lembremos que temos inclinações e preferências, enfatizando mais uma função do que outra dentre a sensação ou intuição, ou pensamento e sentimento. E, naturalmente tende-se a minimizar, não enfatizar, desprezar ou mesmo ignorar as outras funções. E isto nos caracteriza como indivíduos: cada um de nós tem seu modo característico, seu estilo, seu padrão de funcionamento no recebimento 114 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 e tomada de decisão. Além disso, funcionamos automaticamente, sem perceber que informações levamos em conta, quais deixamos de lado, que critérios consideramos e quais achamos não relevantes. Ou seja, nosso processo de tomada de decisão é naturalmente desbalanceado. 5. Outras contribuições para a Psicologia Econômica A Psicologia Econômica pode ser bastante desafiadora, pois coloca em xeque o modelo de ser humano proposto pela Economia – o do homo economicus ou do homem racional. Citando Thaler e Sunstein (2008, p. 5-6): Se analisarmos os textos didáticos relativos à Economia, vamos aprender que o homo economicus poderá pensar como Albert Einstein, armazenar a memória de um computador de grande porte, e exercer a força de vontade do Mahatma Gandhi. Mas as pessoas que nós conhecemos não são assim. No mundo real as pessoas têm dificuldade em fazer uma divisão com muitos números se não tiverem à sua disposição uma calculadora, às vezes esquecem o aniversário do seu cônjuge, e sofrem de ressaca depois da festa de réveillon. Não são homo economicus, são homo sapiens. O comportamento irracional do homo sapiens pode, por exemplo, se manifestar quando, em meio a um clima de grande euforia, investidores compram ações quando estas estão no pico para mais tarde, quando o clima de euforia for substituído por um clima de pessimismo, tomados pelo pânico, vender estas mesmas ações a qualquer preço. Chama-se a isto “comportamento de manada”. Portanto, a Psicologia Econômica vai desafiar o modelo do homo economicus afirmando que, na maior parte do tempo, e das vezes, é como se os agentes econômicos fossem controlados, de dentro de seus cérebros e psiques, por um pequeno sabotador, que desarmaria suas funções racionais. Outra área que veio se juntar a esta discussão mais recentemente é a da Neuroeconomia – área na fronteira entre Economia e Neurociências –, que irá nos mostrar ao vivo e em cores como o cérebro toma decisões. Sharon Begley (2007), responsável pela área de Ciências do Wall Street Journal, descreve como os pesquisadores, usando tecnologias de ponta, descobriram, por exemplo, que os circuitos cerebrais ativados pela antecipação de lucros (de ações, por exemplo) eram os mesmos que antecipavam as delícias de uma maravilhosa trufa de chocolate, de uma relação sexual, ou, no caso de um consumidor de drogas, de uma dose de cocaína. Podemos pensar que esta área de investigação poderá nos ajudar no conhecimento dos circuitos cerebrais envolvidos no processo de decisão ideal proposto por Jung, permitindo-nos entender melhor o quebra-cabeças da personalidade. A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 115 Conclusão Qual poderia ser a contribuição da Psicologia Analítica no sentido de nos fornecer pistas para nos ajudar a encarar as mudanças inevitáveis com que teremos de nos defrontar em breve? 1) Planejar a transição: é preciso pensar agora como assegurar a própria sobrevivência e a segurança, em um momento no qual muitas coisas poderão não funcionar da mesma maneira que funcionaram no passado. 2) Conceito crucial: cooperação. É preciso que nos conscientizemos de que a tarefa de superar a crise não é uma tarefa solitária. 3) Pensar sobre um novo mundo: acreditamos que este seja um momento propício para começar a contemplar o planejamento deste novo mundo. Os governos deveriam estar fazendo isto. As empresas deveriam estar fazendo isto. As grandes organizações internacionais deveriam colocar isto nas suas agendas. Para que possamos nos preparar para um novo mundo, torna-se necessário que todos se esforcem em utilizar suas quatro funções. A sensação para obter o maior número de dados concretos sobre a presente situação do planeta. A intuição para projetar para o futuro. O pensamento para tomar decisões que poderão ser duras, mas que provavelmente são necessárias, de maneira lógica e impessoal. E o sentimento para que não se perca de vista que a Economia e a Política, como já dizia Aristóteles, deviam existir para servir às pessoas, e não as pessoas à Economia. Referências bibliográficas BADER, M. Gestão do Relacionamento com Clientes na Indústria Financeira de Varejo: Uma Abordagem da Psicologia Social. Tese (Doutorado em Psicologia Social), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. BEGLEY, S. Train Your Mind. Change Your Brain. New York: Ballantine Books, 2007. FARRELL, P.B. The Millionaire Code: 16 Paths to wealth-building. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons. Inc., 2000. JUNG, C.G. Tipos Psicológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. LOPES, R.M.A. Personalidade e Tipos Psicológicos de Empreendedores: Um Estudo Exploratório. Tese (Doutorado em Psicologia Social), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2004. McCRAE, R.R.; COSTA, P.T. More reasons to adopt the Five-Factor Model. American Psychologist, v. 44, p. 451-452, 1989. 116 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 McCRAE, R.R.; COSTA, P.T.; PIEDMONT, R.L. Folk concepts, natural language, and psychological constructs: The California Psychological Inventory and the Five-Factor Model. Journal of Personality, v. 61, p. 1-26, 1993. MYERS, I.B.; MYERS, P.B. Gifts Differing: Understanding Personality Type. Palo Alto, CA: Davies-Black Publishing, 1995. PETERSEN, J.L. Tai Alert # 18 – A New End: A New Beginning. Disponível em: <http:/ /www.arlingtoninstitute.org/tai-alert-18-new-end-new-beginning>. Acesso em: 3 mar 2009. QUINN, J. Baby Boomers – Your Generation’s Crisis Has Arrived. Disponível em: <http:/ /www.marketoracle.co.uk./Article8800.html>. Acesso em: 7 mar 2009. THALER, R.H.; SUNSTEIN, C.R. Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness. New Haven & London: Yale University Press, 2008. A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117 117 O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação do mercado brasileiro com o chinês (2003-2008) Lucy Sousa* Resumo Resumo: A inserção dos países em desenvolvimento na globalização financeira no período 1990-2007 deu-se de maneira diferenciada, predominando em cada região um tipo de financiamento (empréstimos bancários, investimentos em carteira e investimentos diretos), sendo que na América Latina predominaram os investimentos em carteira, enquanto na China predominou o investimento estrangeiro direto. Contudo, em anos mais recentes (2003-07) observou-se o crescimento do mercado de capitais chinês, com considerável número de companhias abrindo o capital e levantando recursos nesse mercado. O objetivo deste artigo é entender as razões para o recente desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, particularmente focando no seu papel como padrão de financiamento empresarial, e fazer uma comparação com o desenvolvimento também verificado no mercado chinês. Serão feitas comparações dos respectivos marcos regulatórios, das dimensões quantitativas relativas ao tamanho das economias, da profundidade de articulação dos mercados com a globalização financeira e da capacidade de blindagem contra crises internacionais, destacando-se o caso recente da “crise das hipotecas (subprime)” do mercado norte-americano (2007-08). Palavras-chave: Mercado de Capitais, Financiamento Empresarial, Comparação Brasil-China. 1. Principais características do movimento recente de inserção na globalização financeira O mercado de capitais é o segmento do mercado financeiro onde se verificam emissão e negociação de títulos e valores mobiliários, operações com derivativos e a administração de recursos de terceiros. Embora a segmentação do sistema financeiro seja utilizada pelos reguladores e autorreguladores, a * Lucy Sousa é Professora Titular da FAAP e Presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec, 2009-10). Texto concluído em novembro de 2008. Email: <[email protected]>. 118 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 introdução dos avanços tecnológicos e o desenvolvimento das inovações financeiras tornaram os segmentos de crédito, seguros, cambial e de capitais cada vez mais interconectados. De acordo com Freitas e Cintra (2008), os bancos tornaram-se “originadores de ativos financeiros”, tais como créditos e hipotecas que são vendidos no mercado de capitais, a fundos de previdência, seguradoras, fundos de investimento, fundos soberanos e a investidores individuais. Desde a década de 80, os países em desenvolvimento, sob orientação dos organismos internacionais e pressão dos investidores globais, promoveram forte abertura econômica, sendo que no Brasil, a exemplo de muitos países, a abertura financeira foi mais rápida do que a abertura comercial (KLIASS e SALAMA, 2008). Conforme Camara e Salama (2005), a inserção dos países em desenvolvimento na mundialização1 financeira no período 1990-2000 deu-se de maneira diferenciada por região e por tipo de financiamento (empréstimos bancários, investimentos em carteira e investimentos diretos), sendo que na América Latina predominaram os investimentos em carteira, ou seja, operações do mercado de capitais. Em termos do montante dos fluxos de capital, o processo foi restrito a poucos países, e mesmo aqueles que participaram defrontaram-se com um fenômeno contraditório, pois a entrada desse tipo de recursos acaba por trazer instabilidade e novas restrições para os países receptores, em especial a necessidade de manter taxas de juros reais altas, caso do Brasil. No fim dos anos 80, verificou-se a abertura financeira brasileira dentro das orientações do Consenso de Washington. De início, foi uma liberação de mão única, ou seja, para que os investidores estrangeiros pudessem comprar ativos negociados no mercado doméstico. Na sequência, corretoras e bancos estrangeiros se instalaram, para administrar as posições desses investidores. Ao fim dos anos 90, os investidores e administradores estrangeiros se tornaram dominantes, impondo radical transformação de procedimentos operacionais e regulamentação do mercado brasileiro. Por outro lado, as crises dos mercados externos e a consequente volatilidade dos fluxos de capitais passaram a impactar imediatamente o mercado doméstico, resultando em fortes alterações nos preços dos ativos e na taxa de câmbio e aprofundamento da vulnerabilidade externa. A resposta do governo brasileiro à “crise dos mercados emergentes” dos anos 1997-9, iniciada no Sudeste Asiático, foi a elevação da taxa de juros básica, para tentar conter a fuga de capitais, e a reforma da regulamentação do investidor estrangeiro em carteira, no sentido de ampliar sua mobilidade e simplificar procedimentos administrativos. Passada a crise de desconfiança da passagem do governo FHC para o governo Lula, o investidor estrangeiro voltou ao mercado de capitais brasileiro, em busca de valorização que já não encontrava no mercado norte-americano, após o estouro, em 2000, da bolha especulativa da “nova economia”, que na visão de Brenner (2003) foi inflada pela política de juros baixos do FED e pela desregulamentação das finanças e da indústria. 1 Neste artigo, confere-se o mesmo sentido aos termos “globalização” e “mundialização”. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 119 No início do século XXI a referida abertura foi ampliada, introduzido-se também a possibilidade de o investidor doméstico aplicar em ativos financeiros emitidos e negociados em outros países, diretamente ou através de fundos de investimento. O resultado foi o aprofundamento da inserção do mercado de capitais brasileiro no processo de globalização, sendo o Balanço de Pagamentos cada vez mais sensível aos movimentos da conta financeira, com implicações na condução da política econômica. Nesse processo, a estrutura de propriedade das companhias também foi alterada, em função da forte participação do investidor estrangeiro no movimento de ofertas públicas globais (2004-07). Esse capital, especulativo e volátil, cujos movimentos podem ser observados no Gráfico 1, foi aplicado principalmente no mercado acionário, mas também se aproveitou das altas taxas de juros reais do mercado doméstico, em ambos os tipos recebendo tratamento tributário favorável2. No período 2006-07, o mercado brasileiro ficou mais atraente, em função dos bons fundamentos macroeconômicos e a expectativa de que o país fosse atingir o grau de investimento, o que de fato aconteceu em 2008, quando tal classificação foi concedida por duas agências estrangeiras. Em junho de 2008, a carteira consolidada dos investidores não residentes atingiu US$ 250 bilhões (gráfico 2), estando 75% aplicados em ações, 23% em renda fixa e 2% em derivativos e outros ativos. Essa carteira correspondia a cerca de 10% da poupança financeira aplicada no país, a valor de mercado. A partir dessa data, os investidores começaram a sair, em função dos desdobramentos da “crise do subprime” originada no mercado norte-americano. No mercado acionário brasileiro, a movimentação dos recursos dos investidores estrangeiros tornou-se relevante variável explicativa do comportamento dos preços das ações, correspondendo na média a 30% do volume negociado diariamente3. Portanto, o forte movimento de saída verificado no 2.º semestre de 2008 significou forte impacto negativo nas cotações. 2 Não há tributação no ganho de capital e na remessa de dividendos e o rendimento na forma de juros é tributado com alíquota menor do que a devida pelo investidor doméstico. O investidor não residente é tributado como o investidor doméstico apenas quando a origem declarada dos recursos é um paraíso fiscal. 3 Dados disponíveis em <www.bovespa.com.br>. 120 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Gráfico 1 Fonte: www.cvm.gov.br Gráfico 2 Fonte:www.cvm.gov.br Outra articulação com a globalização financeira, e ao mesmo tempo “correia de transmissão” da conjuntura do mercado internacional, foi constituída através da negociação dos DRs, recibos representativos de ações de companhias brasileiras O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 121 negociadas nos Estados Unidos (ADRs), ou em outros mercados internacionais (GDRs). O valor de mercado dos ADRs em negociação atingiu R$ 292 bilhões em julho de 20084, sendo que as ações da Petrobrás e da Vale correspondiam a R$ 104 bilhões e R$ 70 bilhões, respectivamente. Esse valor de mercado correspondia a cerca de 14% do valor de mercado da bolsa brasileira e 29% do valor de mercado das ações da Petrobrás e da Vale. Assim, se o mercado norteamericano entra em baixa, as ações dessas importantes companhias brasileiras são afetadas e transmitem para o mercado doméstico a tendência baixista. De acordo com Akyuz (1991), a abertura financeira se completa com a permissão para os residentes adquirirem ativos financeiros no exterior e com o livre acesso ao mercado doméstico por bancos estrangeiros. Embora a regulamentação brasileira tenha sido flexibilizada no sentido de permitir que o residente aplique no exterior, dado o elevado nível das taxas de juros básicas do mercado brasileiro, a poupança financeira dos investidores residentes tem sido aplicada predominantemente no Brasil, salvo em situações de stress, como os anos de 1998 e 2002 ou em operações de “lavagem de dinheiro”. De acordo com pesquisas da Revista Investidor Institucional (2008), a massa de recursos administrados por terceiros, atividade típica do mercado de capitais, atingiu em junho de 2008 a soma de R$ 1,4 trilhão, sendo que destes apenas 3,6% estão aplicados em fundos off-shore. Com relação ao intermediário financeiro estrangeiro, na administração de recursos de terceiros, atividade típica do mercado de capitais, observa-se na Tabela 1 que os intermediários brasileiros, estatais ou privados, ainda mantêm a liderança, por estarem voltados predominantemente para a administração de recursos do varejo doméstico. Contudo, no segundo bloco, se aproximando do primeiro, encontram-se as instituições estrangeiras, que administram recursos de grandes empresas, famílias das classes altas e investidores estrangeiros. Por causa destes clientes, os administradores estrangeiros apresentaram perdas de recursos a partir do primeiro semestre de 2008, em função da “crise do subprime”. 4 122 Dados obtidos no site <www.cvm.gov.br>. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Tabela 1 Brasil: administradores de recursos de terceiros – Posição em junho de 2008 Fonte: www.investidorinstitucional.com.br *em processo de fusão Nesse contexto de abertura financeira, presença de administradores estrangeiros e concorrência entre praças financeiras globais, em 2007 as bolsas brasileiras, Bovespa (ações) e BM&F (derivativos), passaram por processo de desmutualização, ou seja, deixaram de ser entidades sem fins lucrativos cujos títulos de propriedade pertenciam a corretoras e se tornaram companhias abertas e listadas, seguindo tendência internacional, como pode ser visto na Tabela 2. Finalmente, em 2008, para fortalecer a competitividade do mercado brasileiro, as duas bolsas se fundiram formando a BM&FBovespa. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 123 Tabela 2 Bolsas desmutualizadas e listadas em bolsa, até 2007 Fonte: AGGARWAL (2002) e <www.bolsamadrid.es> apud DEMARCO(2008) *A Euronext é fruto da consolidação das bolsas de França, Holanda, Bélgica e Portugal, sendo posteriormente comprada pela NYSE. As transformações societárias das bolsas internacionais também implicaram considerável entrelaçamento societário, verificando-se a participação de grupos estrangeiros em bolsas locais e até a formação de grupos com amplitude intercontinental, a exemplo do recente grupo NYSE Euronext. No caso brasileiro, a nova bolsa herdou da BM&F participação societária e parceria operacional com a Bolsa de Derivativos de Chicago. A crise subprime, que começou nos 124 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 EUA e se estendeu aos demais mercados financeiros mundiais, interrompeu o processo de globalização e interpenetração societária das bolsas, mostrando as falhas da autorregulação e obrigando os reguladores a mudarem de prioridade, focando na busca de mecanismos de controle para as inovações financeiras, negociadas em bolsas ou mercado de balcão (NASSAR, 2008). Entre os objetivos imediatos da BM&FBovespa está sua expansão para os mercados latino-americanos, através de aquisições ou parcerias e a atração de companhias estrangeiras para a listagem no mercado brasileiro, através do mecanismo de recibos de depósitos, no caso BDRs. O desafio é grande, pois precisa enfrentar, com seu volume da ordem de US$ 3,5 bilhões/dia, a agressividade das bolsas norte-americanas Nasdaq (US$ 60 bi/dia) e NYSE (US$ 160 bi/dia) e europeias, especialmente a Bolsa de Londres (US$ 30 bi/ dia)5. Contudo, comparativamente aos demais mercados emergentes a bolsa brasileira só perde para as bolsas chinesas em valor de mercado, ou seja, soma do valor das companhias listadas, como pode ser visto no gráfico 3. Gráfico 3 Fonte:WFE- www.world-exchanges.org (2008) O mercado bursátil chinês é mais complexo e regrado do que o brasileiro. De acordo com o estudo de PWC (2008), o mercado de bolsa chinês ampliado é composto por quatro mercados: Hong Kong, Xangai, Shenzhen e Taiwan. O primeiro mercado é o mais maduro, herança da dominação inglesa, permitindo 5 Dados disponíveis no Boletim Informativo n.129, set/2008, disponível em <www.bm&fbovespa.com.br>. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 125 a listagem de companhias da China continental, que são chamadas H-shares companies. Tanto a bolsa de Xangai como a de Shenzhen são compostas por plataformas chamadas A-shares e B-shares, emitidas apenas por companhias estabelecidas na China. A plataforma A só permite a negociação por parte de investidores domésticos, enquanto a plataforma B só tem negócios com investidores estrangeiros, que têm restrições severas. Finalmente, a bolsa de Taiwan admite companhias locais e estrangeiras e não estabelece diferenças entre investidores. O mercado chinês nos últimos anos apresentou crescimento expressivo, fruto da forte elevação dos preços das ações, do número das empresas listadas e das perspectivas de crescimento da economia chinesa. Dentre os mercados, o de Xangai se destacou, em função da listagem de grandes companhias e da euforia dos investidores individuais. É importante destacar que, apesar da segregação dos mercados, existe um mecanismo de transmissão entre Hong Kong e os mercados continentais em função da possibilidade de dupla listagem. Em 2007, existiam 146 companhias da China continental listadas em Hong Kong, correspondendo a 12% do número total de companhias e 24% do valor de mercado. Assim, os movimentos da bolsa de Hong Kong, bastante globalizada, acabam influenciando os movimentos de preços das bolsas continentais. Comparativamente ao valor do PIB, o valor de mercado consolidado chinês (Tabela 3) passou a apresentar indicadores de destaque: 196% do PIB de 2007, enquanto os indicadores para os EUA eram de 144% (NYSE, Nasdaq e Amex), para a Inglaterra 140%, e no Brasil 97%. Tabela 3 Fonte: PWC(2008). Contudo, a negociação de ações ou ADRs de companhias chinesas na bolsa NYSE é relativamente menos importante do que as brasileiras, como pode ser observado na tabela 4. O valor negociado de ações/ADRs da China ampliada em 2006 foi da ordem de US$ 70 bilhões, enquanto que as negociações do Brasil atingiam US$ 200 bilhões, estas só ficando atrás dos negócios com 126 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 emissores do Reino Unido e do Canadá. Isto quer dizer que este mecanismo de transmissão da volatilidade no mercado norte-americano é menor no caso da China do que no Brasil. Tabela 4 NYSE: Distribuição geográfica de emissores não-EUA, 2006 Fonte: <www.nyse.com>, dados até 30 nov 2006 2. Movimento de abertura de capital e ofertas públicas Pela legislação brasileira, as companhias abertas são as empresas que distribuem publicamente valores mobiliários de sua emissão, destacando-se as ações, as debêntures e as notas promissórias. Para tanto, as companhias devem obter registro de companhia aberta na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e, para que seus valores mobiliários sejam negociados em mercados secundários organizados, precisam ainda registrar-se na bolsa de valores ou mercado de balcão organizado. Quando a companhia faz sua primeira oferta pública é caracterizada a abertura de capital, sendo essa operação chamada de Oferta Pública Inicial, conhecida no mercado pela sigla em inglês IPO. A partir de 2004, verificou-se um importante movimento de abertura de capital e listagem na Bovespa, inclusive em setores diferenciados, como agronegócio, cosméticos, educação, imobiliário, logística, saúde, seguros e tecnologia da informação. Esse movimento de entrada de novas companhias no mercado deve ser atribuído a vários fatores, tais como; a) forte demanda dos O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 127 investidores, domésticos ou internacionais, em função da alta liquidez internacional, da redução da taxa de juros doméstica, dos bons fundamentos da economia brasileira e da expectativa do grau de investimento (investment grade); b) planos de investimento das companhias frente a uma conjuntura econômica favorável; c ) desinvestimento de grupos controladores e investidores especializados (private equity), aproveitando a alta do mercado acionário; d) esforço da Bovespa em atrair novas companhias e novos investidores para seu ambiente de negociação, destacando-se o lançamento do Novo Mercado; e) reforço do marco regulatório e da autorregulação, convergindo para os padrões internacionais, trazendo maior segurança aos investidores e melhorando a formação de preço dos valores mobiliários distribuídos. Foi dentro dessa referida conjuntura favorável e do marco regulatório aperfeiçoado que se verificou a forte retomada das operações de ofertas públicas de valores mobiliários, como pode ser observado na tabela 5. Tabela 5 Ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil (2000-08) Mercado primário e secundário – R$ milhões Fonte: <www.cvm.gov.br> (2008) *fundos de participação(FIP),certificados de recebíveis e títulos de investimento coletivo. A análise das distribuições públicas de valores mobiliários do período 200408 aponta para a recuperação do mercado de capitais, estando em vigor e assimiladas as novas regras de distribuição da CVM e incorporadas práticas voluntárias de maior transparência e governança, por parte das principais companhias emissoras e intermediários financeiros. No período 2004-07, ocorreram 106 operações de abertura de capital, sendo que 70% foram dentro 128 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 do segmento de maior governaça corporativa, o Novo Mercado. Assim, pode-se afirmar que o mercado de capitais foi, no período 2004-07, relevante opção de financiamento das empresas brasileiras de grande porte, assim como instrumento de reestruturação societária. O movimento chegou a atingir companhias de médio porte, seja pelo lançamento de ações, como por operações de securitização. Os principais tomadores das ofertas de ações foram os investidores estrangeiros, estimulados pelos coordenadores das ofertas, na maioria das vezes bancos estrangeiros, com destaque para o Credit Suisse e o UBS. Esses bancos utilizaram o mecanismo de formação de preço chamado de bookbuilding num contexto de mercado tomador e estipularam os preços das ações das novas companhias em patamares elevados. Não só as companhias e os bancos coordenadores se beneficiaram dessas ofertas a preços elevados: os grupos controladores das novas companhias abertas aproveitaram para vender parte de suas posições acionárias, descarregando, na maioria das vezes, as corretagens de sua parte na oferta pública na conta da companhia, ou seja, ganhos privados e custos socializados entre todos os acionistas. Os investidores individuais, sem adequada informação sobre fundamentos econômicos das companhias e sobre os detalhes das operações, acabaram também atraídos para essa onda de IPOs e logo começaram a se frustrar. Cabe destacar que um dos setores produtivos que mais se beneficiaram no curto prazo foi o da construção civil. Mais de 20 empresas tornaram-se companhias abertas e fortaleceram sua estrutura de capital para enfrentar o ciclo de expansão setorial, estimulado pelo crescimento macroeconômico, elevado déficit habitacional, aumento do crédito e ajuste do marco regulatório. Contudo, as expectativas de continuar se financiando através do mercado de capitais em 2008 não se realizaram em face da crise internacional, dando início ao processo de fusões e aquisições do setor. A partir de 2008 as empresas se defrontaram com um mercado avesso a ofertas primárias de ações, havendo espaço apenas para lançamentos de renda fixa (debêntures e fundos de securitização), a custos crescentes. As empresas que ainda conseguiram se financiar no mercado acionário em 2008 pertenciam aos setores de petróleo, mineração e siderurgia (commodities), aos grupos Eike, Vale e Gerdau, ou ao setor financeiro (empresas de leasing). O ciclo virtuoso das ofertas públicas financiando as empresas também ocorreu em outros mercados chamados de emergentes, particularmente no mercado chinês (tabela 6). E assim, na posição final de 2007 (gráfico 4) a Bolsa de São Paulo e as bolsas de Hong Kong e Xangai destacavam-se como as principais bolsas de listagem das ofertas públicas iniciais, ao lado de Londres e da NYSE, esta já abalada pela “crise do subprime”. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 129 Tabela 6 Mercado acionário chinês: ofertas públicas (IPOs e outras ofertas) US$ bilhões Fonte: PWC (2008), Brasil: Tabela 2, valor das ações prim.+sec., convertido pela taxa de câmbio. Gráfico 4 Fonte: WFE – <www.world-exchanges.org> (2008) 130 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 É interessante destacar, no caso do mercado chinês, que em anos anteriores os valores levantados eram por IPOs de companhias financeiras e de bens de consumo e serviços, mas em 2007 predominaram os recursos captados pelas companhias de energia e serviços de utilidade pública, como a Petrochina e a China Energy. 3. Reflexos da crise do crédito subprime Analisando as raízes da “crise do subprime”, Brener (2008) identifica a bolha imobiliária mundial (2000-05) liderada pelos EUA; o endividamento recorde das famílias norte-americanas, estimulado novamente pelos juros baixos do FED; e as inovações financeiras que ligaram os “empréstimos sem escrúpulos” aos mercados de títulos lastreados por hipotecas. Na mesma linha, Palley (2008) considera que os excessos dessa “bolha financeira” foram causados pela inadequada regulamentação dos empréstimos hipotecários, pelas falhas da política monetária do FED e pelos negligentes empréstimos dos bancos e de Wall Street, mercado de capitais dos EUA. Com a eclosão da crise, em 2007, os principais bancos globais foram obrigados a baixar para seus resultados pesadas perdas, sendo que importantes bancos quebraram ou foram resgatados da falência, caso do Bear Stearns, assumido pelo JP Morgan. A gestão da crise obrigou o FED, o BCE e outros bancos centrais a injetarem liquidez no sistema bancário e a organizarem operações de salvamento de instituições com risco de insolvência (FREITAS e CINTRA, 2008). No segundo semestre de 2008, a crise norte-americana aprofundou-se e assumiu caráter de crise sistêmica internacional. Para evitar depressão da economia doméstica, o governo norte-americano se viu obrigado a aprofundar a operação de salvamento do sistema financeiro, de início com foco no mercado hipotecário. Assim, anunciou em setembro de 2008 a assunção do controle e ajuda da ordem de US$ 200 bilhões à Fannie Mae e à Freddie Mac, empresas privadas de crédito hipotecário que têm o tesouro norte-americano como garantidor de última instância6. Juntas, as duas possuíam quase a metade dos US$ 12 trilhões em empréstimos para a habitação nos EUA. Segundo o Tesouro norte-americano, elas emitiram US$ 5 trilhões em títulos apoiados por dívida e hipoteca, estando US$ 2 trilhões destes títulos nas mãos de instituições estrangeiras, incluindo bancos chineses, japoneses, europeus e bancos centrais. Por ocasião da decisão, o secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, declarou que “Fannie Mae e Freddie Mac são tão grandes e tão importantes em nosso sistema financeiro que a falência de qualquer uma delas provocaria uma enorme turbulência no sistema financeiro de nosso país e no restante do globo”7. 6 A primeira delas, Fannie Mae, foi criada em 1938 como empresa estatal. Em 1968 foi privatizada, e em 1970 foi criada a Freddie Mac para concorrer com a primeira (Financial Times apud Jornal Valor, 9 set 2008) 7 Disponível em <www.uol.com.br>, acessado em 8 set 2008. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 131 Já os bancos de investimentos – onde boa parte das operações de derivativos, exóticas e desreguladas, era desenhada e distribuída – receberam apoio indireto, através de financiamento de operações de fusões e aquisições, praticamente acabando com os grandes de investimento puros. No processo ocorreu a quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Por fim, o governo norteamericano anunciou um programa de ajuda ao sistema financeiro da ordem de US$ 700 bilhões8. Os mercados acionários reagiram fortemente ao cenário de crise. O valor de mercado das bolsas mundiais caiu de US$ 62,1 trilhões em 31 de outubro de 2007 para US$ 44,4 trilhões em 26 de setembro de 20089, com desempenho diferenciado entre as bolsas, como pode ser observado no gráfico 5. Gráfico 5 Fonte: Bloomberg, apud Bradesco (2008). Embora o sistema financeiro brasileiro não tivesse sido comprador de títulos lastreados em subprime, os mecanismos de transmissão decorrentes da abertura financeira começaram a afetar o mercado de capitais doméstico: retração do investidor estrangeiro nas ofertas públicas; vendas maciças, por parte desses mesmos investidores, das posições adquiridas na onda de ofertas públicas; vendas 132 8 O programa de ajuda foi ampliado posteriormente para US$ 850 bilhões. 9 Fonte: <www.bloomberg.com>. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 das ações mais líquidas (Petrobrás e Vale) na NYSE e na Bovespa; e remessas dos recursos para o exterior, estimulando a desvalorização do real. O índice de preços do mercado acionário brasileiro, no acumulado até agosto de 2008, perdeu 21% de seu valor, como pode ser observado no gráfico 6; queda não tão forte como o mercado acionário chinês, que perdeu cerca de 60%10 no mesmo período. Gráfico 6 Fonte:www.bovespa.com.br No caso chinês, seu mercado acionário vinha apresentando aquecimento excessivo desde 2006, já caracterizado como uma bolha, sendo que em 2007 o governo havia prometido fiscalização mais rígida para impedir fraudes em novas emissões e conter o uso de operações e crédito para financiar compra de ações por parte dos investidores individuais, que poupam muito e não têm formas de previdência pública ou complementar. Assim, a forte queda do mercado acionário doméstico chinês decorreu da euforia pregressa, da reversão de expectativas sobre o comércio mundial e do comportamento da bolsa internacional de Hong Kong. 10 De acordo com o correspondente em Xangai do The Wall Street Journal (publicado no jornal Valor Econômico, 9 set 2008). O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 133 Gráfico 7 Fonte: <www.bloomberg.com>. Conclusões No período 1990-2008, o mercado de capitais brasileiro foi aberto ao investidor estrangeiro e se articulou à globalização financeira, tanto pela recepção do investimento em carteira no mercado doméstico como pelo lançamento das ações títulos das companhias no mercado internacional, contribuindo para o movimento mais recente (2004-07) de valorização da moeda local. A abertura para o investidor doméstico aplicar no exterior ocorreu posteriormente, mas não houve saída relevante porque as altas taxas de juros reais e a rentabilidade das companhias domésticas mantêm as aplicações no Brasil. Nesse processo, aumentou a presença dos bancos estrangeiros, na administração de recursos e na coordenação e ofertas públicas. As companhias brasileiras puderam se aproveitar da liquidez internacional e dos fundamentos macroeconômicos domésticos até 2007, lançando ações e títulos e se capitalizando através do mercado de capitais. Já no caso chinês, a abertura do mercado de capitais doméstico ao investidor estrangeiro foi muito pequena, tendo o mercado acionário crescido basicamente por conta do investidor doméstico, com alta propensão à poupança e sem sistema de previdência. Nos últimos anos observou-se um expressivo movimento de ofertas públicas por parte das companhias chinesas, fazendo com que o mercado de capitais passasse a ter relevância como padrão de financiamento. A crise norte-americana do subprime, iniciada em 2007 e transformada em crise sistêmica em 2008, atingiu os mercados de capitais brasileiro e chinês, em 134 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 função dos diversos mecanismos de transmissão da globalização financeira. Todavia, no caso chinês, como a abertura do mercado acionário doméstico é pequena, foi pouco relevante a fuga de capitais dos investidores estrangeiros. Referências bibliográficas AKIUZ, Y. Financial Liberalization in Developing Countries: A neo-keynesian approach. Geneva: Unctad, 1991. BM&FBOVESPA. Boletim Informativo nº 129, set 2008. BOVESPA. Boletim do Novo Mercado. Ano 2007. São Paulo, 2008. Disponível em <www.bovespa.com.br>. BRADESCO. Encontro Apimec-Bradesco 2008. Depec, São Paulo, 2008. BRENNER, R. O boom e a bolha: Os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003. _________. O princípio de uma crise devastadora. Against The Current, jan-fev 2008, disponível em <www.esquerda.net>. CAMARA; SALAMA. A inserção diferenciada. In: CHESNAIS, F. (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005. DEMARCO, A. As Bolsas de Valores face ao desafio da desmutualização no contexto atual de internacionalização dos Mercados Regulamentados. Monografia de conclusão LLM. Faculdade Ibmec. São Paulo, 2008. FREITAS, M.; CINTRA, M. Inflação e deflação de ativos a partir do mercado imobiliário americano. Revista de Economia Política, v. 28(4): 414-443, São Paulo, 2008. KLIASS, P.; SALAMA, P. A globalização no Brasil: responsável ou bode expiatório? Revista de Economia Política, vol 28(4): 371-391, São Paulo, 2008. NASSAR, J. Globalização: fase febril para as bolsas internacionais. Revista da Bovespa, São Paulo, 2008. PALLEY, T. Scapegoating regulation. Informações Fipe, São Paulo, agosto 2008. PWC – PRICE WATERHOUSE E COOPERS. Greater China IPO Watch 2007. Hong Kong, abril 2008. O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135 135 Resumos de Monografia Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento Rafaella Cordeiro Antoniazzi* Resumo: Diante de condições econômicas e sociais desprivilegiadas, alguns países procuram atrair as corporações transnacionais como forma de promover o desenvolvimento. No entanto, ao se instalarem nas regiões subdesenvolvidas, as grandes corporações frequentemente têm grandes dificuldades em realizar suas operações devido às diferenças de interesses e valores éticos e culturais. Esse cenário pode resultar, então, em um conflito entre os três atores envolvidos: o governo, a comunidade local e a empresa. Sendo assim, esta dissertação procura fazer um estudo sobre o relacionamento entre esses três atores. P a l a v r a s - c h a v e : Desenvolvimento, pobreza, corporações transnacionais, globalização, governança corporativa, ética empresarial. Introdução As diferenças econômicas e sociais entre países sempre foram evidentes. A globalização – considerada um fenômeno do qual não se pode escapar – passou a determinar o grau de desenvolvimento dos países, dividindo-os entre aqueles que estavam mais integrados a esse processo e aqueles que ficaram isolados ou que chegaram atrasados. De um lado, ficaram os países cuja participação nesse processo lhes deu condições de competir por uma parcela do mercado internacional. Do outro, estão aqueles cuja pobreza e os escassos recursos econômicos são consequência do pequeno acesso ao mercado. Por essa razão, esses países procuram formas variadas para se integrar no processo de globalização a fim de promover seu desenvolvimento, encontrando nas corporações transnacionais (CTNs) um dos meios para alcançá-lo. Para tanto, a hipótese de investigação deste artigo é a de serem as corporações transnacionais agentes promotores do desenvolvimento do local onde estão instaladas. O objetivo é, então, o de analisar se, ao atuar em uma economia * Rafaella Cordeiro Antoniazzi é graduada em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Este artigo tem como base sua monografia de conclusão de curso, desenvolvida sob orientação do professor Antônio Sérgio Bichir, e selecionada para publicação na forma de resumo. Email: <[email protected]>. 136 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 subdesenvolvida, as CTNs de fato transferem de seu país de origem para a região onde estejam operando as condições para o crescimento econômico e redução da pobreza. A estrutura do presente artigo será composta por três partes: a primeira parte aborda o avanço da globalização, tendo como ênfase a participação dos países em desenvolvimento neste processo. Devem eles se proteger ou se integrar ao processo? Há alternativas? É levantada, então, a seguinte questão: a globalização é realmente o caminho para alcançar o desenvolvimento ou os países em condições desfavoráveis deveriam procurar outros meios para esse fim? Nesse cenário, ocorrem mudanças quanto ao poder dos governos de regular o mercado globalizado. Além disso, é questionado o papel do Estado, levantandose a questão sobre sua parcela de responsabilidade na promoção do desenvolvimento ou se lhe caberia ser apenas o agente que cria os mecanismos para induzi-lo. A partir disso, a segunda parte se concentra em abordar a presença das corporações transnacionais (CTNs) nos países em desenvolvimento. Essas empresas são atraídas para se instalarem nesses países, pois sua presença é considerada indispensável ao aporte de recursos financeiros, entre outros benefícios impulsionadores do desenvolvimento. Além de buscarem maior domínio sobre o mercado mundial, o que leva as empresas a transpor fronteiras, a princípio são as diferenças culturais, políticas e legais que lhes permitem operar com mais liberdade e estar menos sujeitas a riscos devido à diversificação. Mas essas diferenças também podem causar problemas. A ocorrência de interesses distintos entre as CTNs e a comunidade local e/ou o governo causam conflitos que, algumas vezes, podem ser prejudiciais para a região. Isso remete, então, ao tema da terceira parte: a criação de normas e formulação de códigos de conduta reguladores do comportamento das corporações que operam em regiões diversas. O surgimento de regras por parte de organizações intergovernamentais e instituições privadas tem o objetivo de acabar com a ação predatória das empresas. Sendo assim, os conceitos de accountability e responsabilidade social ganham importância nas discussões nacionais e internacionais. 1. Os países em desenvolvimento no contexto da globalização 1.1. Globalização e periferização dos Estados Consolidada através de diferentes meios, como a redução das barreiras geográficas, a rapidez nas comunicações e a evolução tecnológica, a globalização é um processo que resulta no aprofundamento da interdependência entre todas as regiões do mundo. Buscando melhorias em suas condições desprivilegiadas, muitos países se tornaram entusiastas da globalização, considerando ser esta a solução para alguns de seus problemas econômicos. Nesses países, ocorreu, então, a criação de estratégias políticas que implementaram a liberalização comercial e a redução de barreiras ao investimento externo. De acordo com pesquisas feitas pelo Banco Mundial, entre 1977 e 1997, os países subdesenvolvidos “mais Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 137 globalizados”, como China, México, Argentina e Filipinas, tiveram um aumento significativo na relação entre comércio e PIB, enquanto países menos globalizados como Paquistão, Quênia e Togo apresentaram um declínio nestes dados. Os níveis de escolaridade e inflação também se mostraram melhores entre os países mais globalizados neste período1. Embora os dados apresentados pelo Banco Mundial nos levem a crer que a globalização seja um elemento impulsionador do desenvolvimento, existem, por outro lado, teorias que apontam esse processo como um fator decisivo para o aumento da desigualdade social dentro dos países e entre países. De acordo com o relatório do Committee for Development Policy (CDP), da Organização das Nações Unidas (1999), a globalização tem o efeito de aumentar a vulnerabilidade dos países. Partindo dessa premissa, pode-se considerar, portanto, que os países subdesenvolvidos estão ainda mais vulneráveis do que os desenvolvidos. Isso porque normalmente eles não dispõem de recursos para se antecipar ou superar os choques que podem ocorrer no mercado internacional, estando mais sujeitos a sofrer com crises financeiras ou declínio nos preços de commodities. Deste modo, em oposição ao Banco Mundial, o CDP indica que a globalização pode prejudicar o desempenho econômico e desenvolvimento dos países, inclusive aqueles que mais se integraram a esse processo. Ao contrário do que se supôs, mesmo havendo maior integração entre as economias, em 1999 foi constatado que a distribuição dos ganhos advindos da globalização ficou limitada a um grupo restrito de países. As regiões que concentram 70% da população receberam somente 10% dos investimentos estrangeiros diretos (IEDs) e os Least Developed Countries (LDCs)2, com 10% da população, participam em menos de 2% do comércio mundial3. Assim surgiram os movimentos antiglobalização, que, em sua maioria, protestam contra a circulação sem controles de capital e a grande movimentação das corporações, fatores considerados causadores do aumento do desemprego e da pobreza. Muitos críticos da globalização acusam-na de ser um simples instrumento para a livre movimentação das grandes corporações, cuja atuação reforça o gap entre os países ricos e países pobres, enxergando na sua atuação um dos tentáculos do sistema capitalista. As críticas também giram em torno das grandes organizações e acordos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial. Essas instituições, além de exercerem pressão a favor da liberalização comercial, baseiam-se também no princípio da condicionalidade, ou seja, na imposição de condições para oferecer assistência financeira ou técnica. Neste contexto, ao tratar a globalização sob a perspectiva da população dos países pobres, deve-se perguntar se a integração a esse processo é realmente 1 Banco Mundial (2001). 2 O termo LDC se refere aos países com os indicadores de desenvolvimento socioeconômicos mais baixos do mundo, como Etiópia e Ruanda. 3 138 Report of the Comittee for Development Policy on the first session (26-30 April 1999). Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 um mecanismo impulsionador do desenvolvimento. Assim, surgem as perguntas: quais são os meios para a promoção do desenvolvimento? Será mesmo a liberalização dos mercados um dos caminhos para atingir esse fim? 1.2. A busca pelo desenvolvimento e o papel do Estado para alcançar este fim Sen (2000) responde a essas perguntas baseando-se na lógica de que a abertura de mercados é um dos meios que possibilitam expandir a liberdade de que as pessoas desfrutam. Para ele, mesmo se a livre participação no mercado não levar à industrialização ou ao progresso econômico, ela contribui necessariamente para a promoção do desenvolvimento (SEN, 2000: 20-21), porque o conceito de liberdade definido por ele envolve a ideia de liberdade de participação política ou o direito das pessoas a receber educação, por exemplo. Diante disso, os principais elementos que privam os indivíduos da liberdade são a pobreza, a falta de oportunidades, a repressão e a deficiência do Estado. Portanto, a livre participação no mercado é também um dos elementos que contribuem para a expansão da liberdade. Sen defende que a liberdade é o veículo para alcançar o desenvolvimento ao mesmo tempo em que o desenvolvimento é o instrumento que viabiliza a liberdade, daí o conceito de “desenvolvimento como liberdade”. Nesta mesma linha, os economistas neoclássicos defendem que, para favorecer o desenvolvimento, deve ser mínima a intervenção do Estado no comércio e nas transações financeiras, justificando que um mercado insuficiente é uma das causas principais da pobreza nos países subdesenvolvidos (BOYER, 1999: 1-2). Para eles, o comércio internacional, uma vez que incorpora os países no processo produtivo mundial, tem a função de alocar ou tornar mais eficiente a mão-de-obra e os demais fatores de produção ociosos (GONÇALVES, 1998: 68-69). Em contraposição, pode-se levantar argumentos opostos a essa visão. Neste sentido, os estruturalistas defendem que o fator motivador do subdesenvolvimento não é a deficiência, mas o excesso do mercado, que provoca a acumulação irregular do capital (BOYER, 1999: 1-2). Diante das teorias apresentadas, deve-se perguntar se apenas uma delas deve ser considerada correta ou se há apenas um, e não vários caminhos que levam ao desenvolvimento. Para tanto, retomando as duas questões levantadas anteriormente, deve-se acrescentar o seguinte ponto: devem os países pobres aceitar como parâmetro os caminhos já percorridos pelos países ricos, adotando as mesmas políticas econômicas e sociais implementadas como padrões a fim de alcançar estas condições privilegiadas? Arrighi (1997) discute essa questão. Inicialmente, ele faz referência ao tema discorrendo sobre os conceitos de desenvolvimento e industrialização. Segundo ele, para muitas escolas, esses dois conceitos já são admitidos como equivalentes, ou seja, “desenvolver-se” significa “industrializar-se”. Arrighi nota o paradoxo existente entre o processo de desindustrialização ocorrido nos países ricos e os incentivos que os países pobres criaram para fortalecer a indústria, como meio para alcançar o desenvolvimento. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 139 Em face aos argumentos levantados em torno das questões desenvolvimentistas, pode-se aprofundar esta discussão ao tratar do papel do governo na promoção do desenvolvimento. Para tal, deve-se estabelecer como premissa que a atuação do Estado pode ser decisiva para o crescimento econômico, e que o crescimento econômico é variável determinante para o desenvolvimento. Entre as inúmeras políticas que o Estado pode criar na busca da promoção do desenvolvimento é importante frisar que, invariavelmente, ele necessita dispor de recursos financeiros que possam ser aplicados nos mais variados setores, como infraestrutura e programas sociais. Para isso, a primeira alternativa seria recorrer à poupança nacional, tanto pública quanto privada. Isto, no entanto, é geralmente uma possibilidade escassa entre os países pobres, uma vez que a capacidade de investimentos com recursos públicos está normalmente liquidada e a poupança privada é inibida devido às altas cargas tributárias. A segunda alternativa seria, então, realizar empréstimos estrangeiros. Esta opção, todavia, se mostra muitas vezes inadequada tendo em vista os juros muito elevados ou, quando não há implicação de altos custos, são exigidas muitas condições para que o empréstimo seja concedido. Assim, como terceira e última alternativa, só lhes resta recorrer aos investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Partindo daí, deve-se analisar as estratégias governamentais para – aproveitando a oportunidade de grande movimentação financeira internacional – atrair capital externo e impedir a saída daquele já instalado. Para uma análise mais detalhada, convém estudar o momento em que se intensificou a internacionalização do capital, chamando a atenção dos governos para a criação de medidas capazes de reter o capital no mercado local, aumentando, consequentemente, a competição entre países, que disputam ao oferecer retornos mais vantajosos aos investimentos. 1.3. Perda de soberania dos Estados e as corporações transnacionais De acordo com Ianni (2003), após a Segunda Guerra Mundial, e mais intensivamente após o fim da Guerra Fria, o capital perdeu parcialmente suas características nacionais, ultrapassando fronteiras e ampliando seu espaço de atuação. A reprodução de capital em âmbito nacional sofreu modificações e se submeteu à dinâmica da reprodução de capital em âmbito internacional. Segundo Ianni, nos anos pós-Guerra Fria o capitalismo se desenvolveu de modo intensivo e extensivo, já que o fim do bloco soviético passou a representar uma nova área para os negócios. As empresas passaram a ser os agentes responsáveis pela internacionalização do capital, tornando-se os principais atores da economia nacional e mundial: Tanto é assim que as empresas transnacionais redesenham o mapa do mundo, em termos geoeconômicos e geopolíticos muitas vezes bem diferentes daqueles que haviam sido desenhados pelos mais fortes Estados nacionais. (...) Ainda que com frequência haja coincidências, convergências e conveniências recíprocas entre governos nacionais e empresas, corporações e conglomerados, no que se refere a 140 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 assuntos nacionais, regionais e mundiais, é inegável que as transnacionais libertaram-se progressivamente de algumas das injunções ou limitações inerentes aos Estados nacionais (IANNI, 2003: 56). Paralelamente, as limitações impostas pelos Estados nacionais foram reduzidas, fazendo com que as visões da geoeconomia e geopolítica se transformassem em função dos interesses e das ações empresariais, mesmo quando são contrários à visão dos Estados nacionais. Deste modo, as empresas passaram a determinar o cenário nacional, podendo-se dizer que houve uma relativa perda de soberania do Estado – que, por sua vez, se reorganizou de modo a atender as exigências do mercado, o que reduziu sua capacidade de controle sobre os fluxos financeiros. Neste processo, ganharam força no período pós-Guerra Fria as políticas para desestatização, privatização e desregulamentação. Ao mesmo tempo, para atrair investimentos estrangeiros, os governos adotam uma série de medidas que garantem a segurança da movimentação de capital no mercado local ou leis mais flexíveis às transações financeiras. O aprofundamento do processo da globalização, além de ter elevado a competitividade entre empresas no escopo do mercado, aumentou também a competição entre países para atrair capital estrangeiro. Nesta disputa, os governos elaboraram políticas de maneira a oferecer maiores retornos aos investidores. Este é o caso da criação de leis de incentivos fiscais ou de programas de qualificação de mão-de-obra especializados para setores demandados pelo mercado. Com isso, proporcionalmente ao aumento da competição entre Estados para atração de investimentos, cresceu o poder de barganha das empresas ao escolher qual o ambiente mais favorável para se instalarem. As grandes corporações se beneficiam das disputas entre Estados optando por aquele que mais vantagens oferecer, minimizando, por conseguinte, seus custos de produção. 2. As corporações transnacionais nos países em desenvolvimento É inquestionável o fato de que as CTNs são atores relevantes no cenário internacional em termos de economia, poder político e influência na sociedade. Seu largo alcance e domínio ocasionam reflexos diretos e indiretos para toda a população mundial fazendo com que o contato e seus efeitos sejam quase inevitáveis. A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) estima que atualmente existem aproximadamente 79 mil CTNs produzindo bens e serviços ao redor do mundo e que seus investimentos estrangeiros diretos excederam o valor de US$ 15 trilhões em 2007. O total de vendas ficou acumulado em US$ 31 trilhões, 21% a mais do que em 2006. O valor adicionado em filiais estrangeiras representou 11% do PIB mundial. O número de empregados cresceu em torno de 82 milhões4. 4 World Investment Report 2008, Genebra: Unctad, 2008. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 141 2.1. Multinacionais ou transnacionais? Antes de iniciar a discussão sobre a atuação e o impacto das CTNs nos países em desenvolvimento, convém definir, afinal, o que são as corporações transnacionais. Além disso, deve ser esclarecida também qual a diferença entre as CTNs e as corporações multinacionais (CMNs), a que muitos autores se referem. Ao analisar diferentes estudos, pode-se constatar que tanto as CTNs quanto as CMNs são definidas como entidades “cuja propriedade, gerenciamento, produção e vendas se estendem para diversas jurisdições nacionais” (GILPIN, 1987: 233). As CTNs, no entanto, recebem também a atribuição de serem elas “capazes de exercer influência sobre a atividade de terceiros”5. Pode-se concluir, então, que as CTNs e as CMNs têm papéis, políticas e objetivos equivalentes. A diferença entre elas está somente no escopo social, ou seja, enquanto as multinacionais são tidas como agentes exclusivamente econômicos, as transnacionais são vistas como sendo, também, atores sociais. Deste modo, as CTNs são uma evolução das CMNs. O histórico e demais aspectos dessas companhias, que serão descritos a seguir, esclarecerão que essas companhias deixaram de ter natureza somente econômica para assumirem um papel na sociedade, com responsabilidades e direitos específicos. Desta forma, corporação transnacional será o termo adotado neste artigo por dois motivos: primeiro, porque é o termo mais recente; e, segundo, porque é o que mais corresponde à atual realidade das empresas. 2.2. Perspectiva histórica É incerto o momento em que surgiram as CTNs. Com base em alguns estudos, Wilkins (2007) considera que as empresas precursoras dessas corporações foram alguns bancos italianos, que atuavam em território inglês já na Idade Média (WILKINS, 2007: 47). As empresas do setor de serviços podem ser consideradas as pioneiras a transpor fronteiras. De acordo com Jones (2007), durante o século XIX os serviços bancários, de comércio e de infraestrutura eram relativamente comuns no plano internacional (JONES, 2007: 84). Mas uma forma de estudar o surgimento das CTNs pode ser a partir da transnacionalização das corporações dos Estados Unidos, uma vez que foram estas as primeiras a operarem em escala global e que dominaram, durante muitos anos, os investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Segundo Jones, entre 1945 e a metade da década de 60 os Estados Unidos eram responsáveis por 85% dos fluxos de IEDs (JONES, 2007: 88). Neste sentido, Gilpin (1987) descreve que os movimentos para transnacionalização das empresas norte-americanas foram motivados por dois fatores: o avanço dos sistemas de transporte e comunicação e políticas de incentivo à internacionalização, criadas pelo governo dos Estados Unidos. Gilpin explica que a expansão das corporações norte-americanas tinha 5 142 Fonte: <http://www.unctad.org>. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 a característica de ser “horizontalmente integrada”, ou seja, a instalação de subsidiárias produzindo mercadorias iguais ou similares em vários países (GILPIN, 1987: 239). A partir da década de 70, no entanto, a parcela da participação das corporações norte-americanas nos investimentos estrangeiros diretos declinou com a entrada de novos players originários do Japão e da Europa. Nessa década, o fim do colonialismo em regiões da África e Ásia levou ao surgimento de novos Estados que, na sequência, centralizaram as atividades econômicas consideradas cruciais para a promoção do desenvolvimento. Ocorreram, então, ondas de nacionalização de serviços financeiros, indústrias de infraestrutura e de grandes empresas de produtos manufaturados. Neste mesmo período, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) estabeleceu uma política de embargo que resultou no choque do preço do petróleo em 1973, causando efeitos econômicos negativos sobre o mercado mundial. Somados ao contexto da Guerra Fria, esses acontecimentos acabaram, portanto, por inibir o fluxo de IEDs: As corporações aprenderam que elas precisam estabelecer subsidiárias estrangeiras em um número cada vez maior de países, ou participar de jointventures ou outros arranjos com firmas locais para alcançar mercados mais protegidos (...). Neste novo ambiente de inseguranças políticas e econômicas, as multinacionais japonesas começaram a se expandir rapidamente para o mercado norte-americano e, em menor proporção, para os mercados europeus e demais. Tradicionalmente, as corporações japonesas investiam em outros mercados, principalmente, para adquirir matéria-prima ou componentes de baixo custo que eram enviados para o país para processamento e incorporação nos produtos finais, para, então, exportá-los para o mercado mundial (GILPIN, 1987: 240). O momento de instabilidade estimulou as corporações a diversificarem os locais de atuação de modo a se protegerem das crises econômicas do mercado internacional. Sendo assim, as transnacionais, com mais frequência, passaram a penetrar nos mercados nacionais por meio de aquisições, joint-ventures ou fusões6. A participação de novas corporações nos negócios internacionais e o período de instabilidade trouxe também um novo sistema de integração entre empresas. Agora, além da integração horizontal, as CTNs passaram também a estabelecer integrações verticais, o que significa que os vários estágios da produção ficam distribuídos entre diferentes regiões. Gilpin apresenta três fatores que garantiram o sucesso da “integração verticalizada”. O primeiro deles foi a redução dos custos e maior controle da corporação sobre a produção; o segundo consiste na maior permanência dos conhecimentos gerados na própria empresa; e o terceiro foi representado pelos avanços no transporte e nos meios de comunicação. Esse tipo de integração motivou o comércio “intrafirmas” e a exportação e importação de produtos intermediários. 6 Beyond Conventional Wisdom in Development Policy: An Intellectual History of Unctad 1964-2004, Genebra: Unctad, 2004. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 143 Na década de 80, o cenário começou a mudar em direção contrária ao da década anterior. Começaram a ser implementadas políticas de industrialização orientadas para exportação (em países da Ásia – sendo que Malásia, Cingapura e Tailândia se apoiaram, essencialmente, na atração de IEDs) e se observam ondas de privatizações, principalmente na América Latina, indicando um novo rumo para a expansão das transnacionais. Outro fator relevante foi que o aumento da dívida externa em alguns países em desenvolvimento deslocou (forçosamente) seus interesses para a atração de IEDs – como fonte de financiamento externo, sem o risco de intensificar o endividamento. Apesar dos incentivos, a entrada de IEDs nesses países diminuiu de 25% para 20% entre o começo e o final daquela década. Em 1990, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Canadá ainda eram os países que mais recebiam IEDs. De fato, só a partir da década de 90 que o viés de distribuição geográfica dos IEDs passou a mudar. A participação dos países em desenvolvimento como receptores desses investimentos começou a crescer nesse período. Entre 1990 e 2002, o número de transnacionais nos países desenvolvidos cresceu 63%, enquanto que nos países em desenvolvimento esse crescimento foi de 258%7. Além disso, o surgimento de CTNs originárias de economias de transição, como a Companhia Vale, empresa de mineração do Brasil; a Sappi Limited, fabricante de papel da África do Sul; e a Oil and Natural Gas Corporation, da Índia, foi outro acontecimento relevante da década de 90, pois ocasionou o aumento do fluxo de investimentos Sul-Sul. De acordo com a Unctad, entre 1985 e 2002 os IEDs aumentaram de US$ 1 trilhão para US$ 7 trilhões8. Esse crescimento se deve ao reconhecimento da importância dos IEDs para o desenvolvimento, o que fomentou a implementação de políticas para liberalização e proteção dos investidores estrangeiros. 2.3. Características das corporações transnacionais Para descrever as características das transnacionais, deve-se primeiramente abordar o modo como se dá o processo de tomada de decisão das empresas. É possível afirmar que unicamente os investidores detêm o poder de tomada de decisão. Os verdadeiros proprietários das empresas são aqueles que nelas investem, e por isso elas estão mais preocupadas com as margens de lucro e com o marketshare que detêm no mercado do que com o bem-estar da população. As empresas não são instituições filantrópicas. Neste sentido, as corporações transnacionais, em especial, apresentam ainda uma particularidade: as tomadas de decisão são realizadas em sua sede original e não nas regiões onde atuam. As CTNs contam ainda com a vantagem de dispor de uma liberdade espacial. Isto significa que a população e os fornecedores estão presos ao que 7 World Investment Report 2002. Genebra: Unctad, 2002. 8 Beyond Conventional Wisdom in Development Policy: An Intellectual History of Unctad 1964-2004. Genebra: Unctad, 2004. 144 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Bauman (1999) chama de “própria localidade”, não podendo estes seguir a companhia quando ela se muda de um local para outro. Paralelamente, por não haver a percepção das distâncias geográficas, os acionistas estão livres da localidade, e como detentores do poder decisório cabe a eles determinar o local onde é mais conveniente a instalação da empresa. Para Chesnais (1996), a facilidade de mobilidade de capital é consequência da liberalização e da desregulamentação que, por sua vez, constituem fatores inerentes ao processo de globalização/mundialização. A maior movimentação do capital e a modernização dos processos produtivos (evolução da informática, robotização) significou a “terceirização internacional” da produção de bens e serviços e o aumento da subcontratação, transformando o mundo em uma grande “fábrica global”, segundo Ianni. Isso significa, então, que as obrigações dos investidores em relação à comunidade são atenuadas dado o seu distanciamento; ou seja, as corporações não estão condenadas ao comprometimento. “Quem for livre para fugir da localidade é livre para escapar das consequências. Esses são os espólios mais importantes da vitoriosa guerra espacial” (BAUMAN, 1999: 15). A liberdade de movimento se torna, portanto, um dos bens mais valiosos entre as companhias. A falta de limites sobre o capital permite aos acionistas se deslocarem facilmente entre localidades, evitando ambientes que lhes sejam hostis. Surge, assim, o conceito de “fábrica fugitiva”, como definido por Ianni. Segundo Bauman, existe uma diferença entre a nova liberdade do capital e a antiga, a qual ele denomina de “liberdade dos ausentes proprietários”. A atuação destes últimos era obrigatoriamente acompanhada de preocupações e responsabilidades porque também estavam presos à localidade tanto quanto à comunidade. Desta forma, a atuação dos ausentes proprietários era mais passível de ser notada pela população do que o capital móvel, que passa despercebido. Outra característica importante das CTNs é que estas, mais do que as outras empresas, têm condições de adquirir os equipamentos mais modernos, sendo capazes de substituir os recursos humanos por tecnologia, quando conveniente. Deste modo, os recursos financeiros das transnacionais, somados à liberdade espacial, lhes permitem desenvolver uma economia de escala com maior facilidade9. As CTNs também têm maiores condições de diversificar sua produção, até mesmo em produtos que não estejam relacionados entre si. A Unilever, por exemplo, empresa anglo-holandesa, fabrica desde alimentos (como maionese e manteiga) até sabão em pó e sabonete, sendo ela proprietária das marcas Doriana, Hellmann’s, Lipton, Omo, Rexona, CloseUp e Dove, entre muitas outras10. Alguns estudiosos acreditam que as CTNs podem ser um veículo para exercer a política externa de seu país de origem. Por meio de seus produtos e serviços, essas corporações acabam “exportando” padrões de consumo, sendo um instrumento de articulação do poder de seu país, ao que Nye denomina soft power11. 9 Por definição, economia de escala é quando uma empresa consegue diminuir os custos da produção da unidade ao produzir maior quantidade de mercadoria ou serviço. 10 Fonte: <http://www.unilever.com>. 11 Soft power é o termo criado por Joseph Nye para explicar o exercício do poder do Estado através de veículos culturais e ideológicos. O soft power é o contraste do hard power, que se refere ao poder militar dos países. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 145 Por último, deve ser registrado que, apesar de exportar tecnologia e knowhow, as CTNs geralmente concentram em sua matriz os fatores que compõem o que pode ser considerado como sendo o real poder da corporação: as finanças, P&D e o controle administrativo. 2.4. As grandes vilãs Tendo em vista suas características e o fato de que os governos dos países pobres muitas vezes optam por atraí-las como forma de promoção ao desenvolvimento, as transnacionais se deslocam em direção àqueles que atendam às suas necessidades e favoreçam suas operações, proporcionando ambientes mais propícios aos investimentos. “É mais provável que as corporações invistam em países onde o governo é aparentemente estável. Instabilidade é ruim para os negócios” (MADELEY, 1999: 3). Do ponto de vista empresarial, isso muitas vezes significou priorizar os países nos quais os governos apresentavam estruturas de poder centralizadas, o que facilita o lobby. A decisão de formular políticas para atrair e manter as CTNs no país se explica pelo fato de elas poderem colaborar em seis aspectos essenciais para o desenvolvimento: 1) geram um número significativo de empregos para a população através dos IEDs; 2) agregam benefícios a toda a cadeia produtiva; 3) trazem know-how; 4) contribuem com alto valor de impostos; 5) investem em infraestrutura; e 6) colaboram com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) local. No tocante à infraestrutura, os governos procuram atrair as CTNs para, por meio delas (direta ou indiretamente), solucionarem questões relativas às obras de eletricidade, telecomunicações, saneamento básico, estradas, portos e aeroportos. De forma indireta, as transnacionais aumentam os recursos governamentais disponíveis à execução de obras infraestruturais. De forma direta, há aquelas empresas, cuja atividade é a própria construção de infraestrutura, com a função de preencher as lacunas em que o governo não é capaz de atuar. Tanto é assim que, na década de 90, em razão das crises econômicas, aumentou a quantidade de países que abriram para a iniciativa privada a participação em obras de infraestrutura. Entre 1996 e 2006, os investimentos estrangeiros neste setor totalizaram US$ 246 bilhões nos países do Sul. Na África, eles representaram 36% de todas as contribuições destinadas a este setor. Ainda na década de 90, foi constatado pela Unctad que, juntamente com o crescimento dos investimentos privados em infraestrutura, houve um declínio da participação pública nesta atividade. Esse ingresso do setor privado na área de infraestrutura, todavia, não supriu aquelas necessidades. Na África subsaariana, esta deficiência alcançou um índice de mais de 50%, onde seriam necessários US$ 23,5 bilhões de investimentos adicionais por ano em novas obras para que as Metas do Milênio pudessem ser atingidas até 2015. Apesar da tendência em se supor que essas CTNs ampliam o acesso aos serviços de infraestrutura, o resultado é, no entanto, muito variado. Por um lado, a introdução de novas tecnologias pelas transnacionais, além de melhorar 146 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 a prestação de serviços, tendem a aumentar a produtividade, causando impactos na competitividade do setor. No caso das telecomunicações, em geral, a qualidade dos serviços se aprimorou e se tornou mais acessível e eficiente. Muitos países presenciaram a “revolução da telefonia móvel”. Em Uganda, a intensa competição entre a Uganda Telecom (empresa estatal com parte de seu capital privado), a Celtel (empresa holandesa) e a MTN (empresa sul-africana) levou ao aumento da eficiência e à redução de tarifas. Com isso, o número de pessoas que tinham aparelhos celulares em Uganda passou de 2 a cada 1.000 habitantes, em 1998, para 31 a cada 1.000 em 2003. Por outro lado, o impacto da entrada de transnacionais afeta de modo diferente as diversas camadas sociais, dependendo de seu poder aquisitivo e da região onde vivem. Ou seja, o aumento de oferta e qualidade não significa necessariamente maior acesso a esses serviços por toda a população. Em alguns casos, a participação da iniciativa privada tornou inacessíveis alguns serviços de infraestrutura entre a população pobre devido ao aumento das tarifas. Esse quadro ocorreu especialmente entre os serviços de fornecimento de água, saneamento e eletricidade12. Na verdade, nem sempre é nítida a separação entre os interesses dos governos e os das CTNs. O que ocorre frequentemente é que os objetivos acabam convergindo de tal maneira que as ações públicas passam a ter como uma de suas prioridades os interesses empresariais, podendo causar grande insatisfação entre a população. O caso da Shell na Nigéria é um exemplo disso. A Nigéria sempre foi um país extremamente dependente da renda advinda do petróleo e, desde 1937, a Royal Dutch Shell atua no país arrecadando lucros extraordinários. Em um dos locais onde opera, a empresa enfrenta constantes conflitos com o povo Ogoni – minoria étnica que habita a região e que vive em sérias condições de pobreza. Após diversas pressões da Shell, que declarava sofrer frequentes depredações contra suas instalações, o governo nigeriano chegou a enviar militares para apaziguar a região, os quais, no entanto, acabaram por entrar em confronto com a população local, matando um e ferindo outros ativistas (HILL, 2005: 136-138). Este caso, portanto, ilustra como os interesses do governo e da empresa podem convergir de tal maneira que podem se voltar contra os interesses da própria população. Se para alguns governos as CTNs são instrumentos de promoção ao desenvolvimento, para outros elas são as grandes vilãs responsáveis pelo subdesenvolvimento. Entre as décadas de 60 e 70, ocorreram grandes movimentações para a nacionalização das empresas, buscando apropriar-se dos lucros obtidos por elas. Entre 1970 e 1976, segundo Jones, ao menos 18 países nacionalizaram as instalações para extração de petróleo (JONES, 2007: 89). Em pouco tempo, contudo, foi observado que a lucratividade das empresas expropriadas geralmente se reduzia à medida que se tornavam objeto da administração pública. Essas experiências, portanto, indicam que o governo não é capaz de dirigir uma empresa com a mesma eficiência dos investidores da 12 World Investment Report 2008. Genebra: Unctad, 2008. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 147 iniciativa privada. Apesar disso, notam-se novas mobilizações pela nacionalização, particularmente na América Latina. A ascensão de governos com uma retórica esquerdista, como o de Hugo Chávez, eleito presidente em 1998 na Venezuela, despertou novamente as ideias da expropriação como resposta aos problemas do subdesenvolvimentismo e da dependência, sendo que a maioria das restrições implementadas por esses governos ficou concentrada nas indústrias extrativas. Na Venezuela, entre janeiro de 2007 e julho de 2008, ocorreram oito processos de nacionalização13. Como já discutido anteriormente, o poder das transnacionais aumentou ao longo dos anos, comprometendo a soberania dos Estados. Todavia, casos como os de expropriação de empresas colocam em questão essa afirmação, demonstrando, portanto, que o poder de controle dos Estados sobre o mercado e a economia mundial não deve ser menosprezado. O embargo de petróleo realizado pelos países membros da Opep é mais um exemplo disso. 2.5. As relações trabalhistas De acordo com Wallerstein (2005), a luta entre classes é um elemento que determina os custos de produção. Por um lado, os trabalhadores têm o poder de pressionar os empregadores através de mobilizações na produção. Os empregadores, por outro lado, procuram colocar os trabalhadores uns contra os outros de forma a controlar o valor da remuneração. A globalização, todavia, provocou mudanças nesta estrutura. Antes, os empregadores muitas vezes atendiam às demandas dos trabalhadores, uma vez que interromper a produção significava, normalmente, um custo maior do que conceder aumento nos salários. Agora, a ampliação da competição no mercado forçou os empregadores a buscarem custos de mão-de-obra mais baixos. Entram no cenário, então, trabalhadores de outros países, que exercem o mesmo trabalho por um salário mais baixo. O Wal-Mart, rede de varejo, é a transnacional que mais tem empregados no mundo, e é um exemplo que elucida essa discussão. Diante da competição do mercado e buscando oferecer preços mais baixos do que os da concorrência, a empresa optou por internacionalizar a produção de suas mercadorias escolhendo regiões onde o custo da mão-de-obra é mais baixo, como China, Bangladesh, Indonésia e Suazilândia. Nos Estados Unidos, a empresa recebe graves acusações de exercer políticas antissindicais, oferecer baixos salários e ter horas-extras nãoremuneradas. Essas acusações são ainda mais graves nos países em desenvolvimento, onde estão instaladas suas fábricas. Conclui-se, então, que o Wal-Mart passou por um processo de “externalização” dos custos, sendo que, para manter a cultura de oferecer preços mais baixos do que seus concorrentes, a empresa se apoia sobretudo na baixa remuneração de sua mão-de-obra. Além da procura por mercados nos quais a remuneração da mão-de-obra seja mais barata, muitas empresas adotam um tipo diferente de estratégia. Goodwin descreve que é comum as CTNs oferecerem salários mais baixos do 13 148 The Economist, 7 ago 2008. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 que nos países desenvolvidos, mas suficientemente mais altos do que a média nos países em desenvolvimento, de modo a garantir a oferta de mão-de-obra e a fidelidade de seus funcionários. Os salários ainda podem ser altos o bastante para fazer dos trabalhadores também consumidores (GOODWIN, 2005: 139). Chesnais (1996) também discute as relações capital-trabalho, tendo em vista sobretudo as mudanças que os avanços tecnológicos trouxeram para esta dinâmica. As novas tecnologias fizeram com que os trabalhadores ficassem mais suscetíveis aos interesses contratuais das empresas. No setor industrial, principalmente, houve a necessidade de uma flexibilização dos contratos de trabalho de modo a compensar com recursos humanos mais baratos os benefícios que a tecnologia avançada trouxe para as empresas. De acordo com estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é provável que essa evolução tecnológica, acompanhada do processo de globalização e reforma da legislação trabalhista, seja a grande responsável pelo aumento gradativo da desigualdade entre os grupos de alta renda e os grupos de média e baixa renda. O número de empregados das CTNs vem crescendo significativamente ao longo dos anos, quase triplicando no período entre 1990 e 200714. Em 2006, só as 20 maiores transnacionais do mundo somavam mais de 5,3 milhões de funcionários; e destes, mais de 2,4 milhões estavam em países que não os de origem da empresa. Entretanto, ao contrário do que seria previsível, este aumento não acompanhou o crescimento de vendas, rendas e lucros das CTNs, que se expandem em ritmo ainda mais acelerado. A distribuição de parte dos novos ganhos foi direcionada a um grupo limitado de executivos, acentuando as diferenças entre as faixas salariais. Os CEOs (chief executive officers) mais bem pagos do mundo estão nos Estados Unidos, com uma média que excede o valor de US$ 10 milhões ao ano, o que representa 183 vezes mais que o salário de um trabalhador comum no país. Em Hong Kong, na China, e na África do Sul, essa diferença fica em 160 e 104 vezes respectivamente15. São variadas as formas como se dão as relações entre as transnacionais e a população operária dos países em desenvolvimento. Goodwin explica que o modelo de atuação empresarial para com seus funcionários está dividido em dois caminhos: a high road e a low road. O primeiro é o modelo de gerenciamento cooperativo, baseado na participação dos lucros e na interação entre todos os trabalhadores da empresa. Os funcionários devem se sentir parte da corporação cujo sucesso depende integralmente de seu trabalho. Já a low road é o modelo competitivo no qual as ameaças de demissão e redução de salários são os fatores motivadores mais importantes. Este modelo somente é viável onde há excesso de oferta de recursos humanos ou onde o poder político e legal dos trabalhadores é relativamente baixo; caso contrário, ele é insustentável (GOODWIN, 2005: 147-148). 14 World Investment Report 2007. Genebra: Unctad, 2007 15 World of Work Report 2008. Genebra: OIT, 2008. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 149 2.6. Economias duais Até aqui, tratou-se exclusivamente do impacto das transnacionais entre aqueles que estão envolvidos diretamente em suas atividades. Agora, será discutido o efeito indireto da ação das transnacionais sobre a população excluída do processo. Wallerstein (1996) descreve a atual “economia-mundo” estruturada sobre uma divisão do trabalho, tendo como principal finalidade a acumulação desenfreada de capital. Os lugares onde se obtêm os mais altos níveis de lucratividade são denominados por ele como zonas centrais. As zonas periféricas, então, são assim definidas por se tratarem de áreas cujas atividades econômicas são menos lucrativas (WALLERSTEIN, 1996: 88). O centro e a periferia não estão necessariamente separados geograficamente; ao contrário, podem coexistir. A existência de um centro econômico moderno e desenvolvido num país pobre não significa que seus resultados estejam vinculados ao resto da economia ou que seus ganhos possam ser usufruídos pelas demais regiões. Um exemplo de economia dual são as Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), que se constituem em áreas de livre comércio com o objetivo de criar postos de trabalho e trazer investimentos estrangeiros diretos. As indústrias nelas instaladas destinam a maior parte de sua produção ao mercado externo, contando com benefícios fiscais e liberdade cambial, entre outras vantagens, tratando-se, então, de ambientes muito atrativos para a instalação de CTNs: Em teoria, os benefícios do setor moderno podem se transferir para o setor tradicional, ou até mesmo diminuir a pobreza. Mas isso geralmente não tem acontecido. Na verdade, o que acontece é que o dualismo cria desigualdade nos países com duas economias existindo lado a lado, a mais forte alimentando a mais fraca, não trazendo nenhum benefício para a vasta maioria das pessoas (MADELEY, 1999: 11). Complementando esse pensamento, Sklair (1989) descreve que “o que as ZPEs falharam em fazer, com algumas exceções, foi transformar o crescimento econômico em desenvolvimento.” O Programa das Maquiladoras é um exemplo disso. Criado em 1965, o programa tinha, num primeiro momento, o objetivo de encorajar a instalação de empresas estrangeiras em regiões próximas da fronteira entre os Estados Unidos e o México. Ao desenvolver o programa, o governo mexicano esperava que, além da criação de empregos, as “maquilas” alocassem matéria-prima local na produção. As estatísticas indicavam, porém, que apesar da implementação do programa os habitantes da região ainda viviam em graves condições de pobreza. A grande incidência de investimentos no local e o surgimento das maquilas não beneficiou a maioria da população e trouxe ganhos a um grupo limitado de pessoas. 150 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 3. Governança e ética empresarial Os escândalos envolvendo as transnacionais trouxeram um novo tema para debate na pauta dos governos nacionais e entidades internacionais. A preocupação com a violação dos direitos humanos, a falta de ética e o pequeno comprometimento das empresas com a sociedade fizeram com que iniciativas para a regulação dos negócios internacionais fossem criadas. 3.1. Governança corporativa e responsabilidade social Para Oman (2001), o termo “governança corporativa” se refere às leis e práticas que governam o relacionamento entre todos os investidores da corporação. De acordo com o autor, os investidores são aqueles que oferecem recursos que possibilitam o crescimento da corporação, sejam eles financeiros (shareholders), humanos (trabalhadores) ou empréstimos (credores) (OMAN, 2001:13). Desta forma, governança corporativa é o mecanismo que viabiliza o relacionamento entre esses atores e os indivíduos que administram a empresa, sendo ela, portanto, o fator que permite alinhar o comportamento de todos esses agentes, protegendo os interesses e satisfazendo as expectativas de cada um deles. Existem diversas correntes de pensamento em torno do tema da governança corporativa. Mas, de um modo geral, essas correntes podem ser agrupadas em duas categorias: a primeira, fundamentada nos shareholders (acionistas); e a segunda, nos stakeholders (empregados, fornecedores, clientes, comunidade que, entre outros, afetam ou são afetados pela atuação das empresas). Da perspectiva dos shareholders, o princípio é o de que as empresas são instrumentos de seus proprietários com a finalidade exclusiva de atender seus interesses, ou seja, de maximizar os lucros. Letza (2004) considera os pensamentos baseados nessa perspectiva como ortodoxos, explicando que sua origem ideológica está apoiada na propriedade privada e nos princípios do capitalismo. Nessa ordem de ideias, as funções das empresas não podem ser confundidas com as funções dos governos ou de instituições filantrópicas, que se preocupam com o bemestar da sociedade. “A única responsabilidade social dos negócios é a de aumentar seus lucros” (LETZA et al, 2004: 247). Da perspectiva dos stakeholders, a visão sobre governança corporativa é bem distinta. As teorias baseadas nestes princípios definem as corporações como sendo também instituições sociais, uma vez que sua atuação tem impacto sobre a população e pode ser um dos fatores que determina seu bem-estar. É importante sublinhar que tanto as teorias com base nos shareholders quanto aquelas com base nos stakeholders têm como único fim fazer da governança corporativa um instrumento para aumentar a eficiência da empresa. O debate gira em torno, então, de quais são os meios para que isso seja possível, e de como essa governança deve ser exercida. Historicamente, a mudança de perspectiva dos shareholders para a dos stakeholders ocorreu no século XX, na depressão dos anos 30, quando a General Electric acentuou o envolvimento dos stakeholders nas decisões, pois, assim como Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 151 a empresa, eles também buscavam sobreviver à crise econômica. Mais adiante, essa perspectiva foi fortalecida com o crescimento das discussões acadêmicas e políticas sobre responsabilidade social. O crescimento do mercado financeiro consolidou a lógica dos stakeholders entre as teorias de governança corporativa. A bolsa de valores quebrou o paradigma da empresa como sendo uma extensão legal de seus acionistas. “Através da bolsa de valores a propriedade ficou fragmentada e dispersa, tornando os shareholders mais investidores do que realmente proprietários” (LETZA et al, 2004: 247). Houve, portanto, o divórcio entre a propriedade e a gestão da empresa. Os proprietários já não são mais aqueles que administram as empresas, o que faz com que os interesses dos stakeholders devam ser incorporados às decisões da corporação. As empresas passaram a ser consideradas entidades independentes de seus proprietários, com direitos e obrigações próprias. Nessa ordem de ideias, a respeito de suas obrigações, pode-se supor, inicialmente, que as empresas tendem a aceitar um número mínimo de normas que regulem suas operações, de modo a terem maior liberdade de ação no mercado. De acordo com Mügge (2006), a única circunstância capaz de fazer com que as empresas recorram a algum tipo de regulamentação é quando a competição está, de alguma forma, prejudicando-as. Mas as pressões que recaem sob a atuação das grandes empresas aumentam a cada dia, partindo de sindicatos, consumidores, ONGs e stakeholders, que se manifestam através de protestos e boicotes. Os conflitos surgidos a partir das difíceis relações entre empresa e comunidade motivaram os movimentos para exigir das empresas transparência e prestação de contas (accountability). Segundo essa ótica, a responsabilidade social passou a ser um tema relevante nas discussões sobre as atividades das empresas. Um comportamento socialmente responsável é aquele em que a empresa atua buscando proteger ou alcançar os interesses da sociedade. Isso inclui adição ou modificação na produção ou a promoção de projetos nas áreas de educação, saúde e inclusão social. As ações ligadas à responsabilidade social também podem, às vezes, se mostrar lucrativas. A imagem de uma empresa no contexto social tem a capacidade de diferenciá-la de seus concorrentes, agregando maior valor aos seus produtos e atraindo mais consumidores ou trabalhadores mais qualificados. Deste modo, as empresas têm, muitas vezes, grande preocupação em preservar sua boa reputação. A Nike, corporação que produz artigos esportivos, é um exemplo que se encaixa perfeitamente neste contexto. Originária dos Estados Unidos, a Nike sempre prezou pela imagem da empresa, investindo grandes quantias em campanhas publicitárias. As duras acusações contra a Nike em relação às más condições em que mantinha seus trabalhadores em sua fábrica na Indonésia resultou em fortes danos à reputação da companhia. Isso levou seus executivos a criarem códigos que regulassem o comportamento da companhia nos locais onde suas fábricas estavam instaladas. A preocupação com a reputação cresce cada vez mais entre as empresas. Ao pesquisar informações sobre o comportamento das grandes corporações pela internet, observa-se que “os 152 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 websites de quase todas as grandes corporações incluem uma seção detalhando seus esforços na promoção de causas como as do meio ambiente, educação ou de socorro nos casos de catástrofes naturais” (ROACH, 2007: 36). É fato que os sistemas políticos, as leis e a cultura variam de região para região. Essas diferenças também recaem sobre as regras de governança (pois elas expressam as normas e os costumes locais) e sobre as demandas por responsabilidade social, que mudam de acordo com as necessidades e pressões dos governos, comunidades e ONGs. Por esse motivo, ao se lançarem nos negócios internacionais, as empresas frequentemente experimentam um dilema moral: o do choque entre os valores de seu país de origem e os valores do país no qual estão se instalando. 3.2. Alguns aspectos éticos nos negócios internacionais Por causa da diversidade entre países, as corporações, ao se internacionalizarem, necessitam de estratégias para lidar com o choque cultural, diferenças políticas e legais. Neste contexto, a ética constitui uma das questões mais delicadas que surgem nos negócios internacionais, especialmente quando a empresa parte para uma região onde o desenvolvimento econômico é inferior, a instabilidade política é presente e o sistema legislativo é deficiente. DeGeorge (2000) reflete sobre os princípios éticos que devem orientar a conduta das empresas: “(...) quando você está em Roma, não deveria você fazer como os romanos fazem?” (DEGEORGE, 2000: 50). Diante desse impasse, tanto os governos quanto as próprias empresas se esforçam em criar diretrizes e estabelecer códigos de conduta que conduzam as ações corporativas ao redor do mundo. 3.3. Tipos de governança e diretrizes internacionais A preocupação dos governos quanto ao impacto social das operações das transnacionais vem aumentando gradativamente tanto entre aqueles que recebem essas empresas quanto naqueles de sua origem. Dentro da esfera nacional, os governos controlam o comportamento dos agentes privados através dos impostos ou leis internas. Mas, passando para a esfera internacional, os governos já não têm a capacidade de controlar sua atuação. Sendo assim, faz-se necessária a coordenação entre os países para evitar que as CTNs usufruam de sua liberdade espacial para fugir das regras nacionais. Para tanto, as organizações intergovernamentais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) são fóruns internacionais de debate com o propósito de alinhar suas políticas e representar sua vontade na formulação de regulamentações internacionais. Na tentativa de criar um comprometimento das ações empresariais, o United Nations Global Compact foi criado com o objetivo de alinhar as operações e estratégias das corporações com base em dez princípios universalmente aceitos, ligados às áreas de direitos humanos, meio ambiente, trabalho e de luta contra a Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 153 corrupção. Essa pode ser considerada uma das maiores iniciativas para estabelecer consciência cidadã entre as empresas de modo a criar legitimidade nos negócios internacionais16. Além da governança intergovernamental, há também outro conjunto de normas elaborado por atores não-estatais, denominado governança transnacional privada (GTP), que surgiu como alternativa às políticas implementadas pelas iniciativas dos governos. A GTP é realizada através de diversas instituições nãogovernamentais, que também têm o objetivo de estabelecer políticas reguladoras do comportamento dos agentes econômicos no mercado internacional. Essas instituições atuam em diversas áreas, como a International Accounting Standards Board (IASB), que atua na área de finanças criando normas para regular o mercado, e a Fair Labor Association (FLA), que estabelece regras em torno das condições de trabalho ao redor do mundo. É comum essas instituições criarem programas para padronizar o comportamento dos agentes, criando índices ou selos para diferenciar aqueles que estão de acordo com as normas internacionais daqueles que violam esses padrões. Um exemplo disso é o “child-labor free label”, criado pela Rugmark Foundation para indicar as indústrias do Sul da Ásia que estão livres da utilização de mão-de-obra infantil na produção de tapetes17. Muitas vezes, os governos restringem a entrada de produtos que não obedecem às normas determinadas pela GTP. Um exemplo de iniciativa da GTP é a Global Reporting Initiative (GRI), criada em 1997 com o objetivo de padronizar os relatórios que declaram a performance das corporações na área social, econômica e de meio ambiente. A existência de diferentes métodos de publicação desses relatórios impedia que o desempenho das empresas pudesse ser comparado e avaliado pelos governos, pela população e por elas próprias. Esses relatórios padronizados (framework reporting) estabelecem princípios e índices que permitem mensurar a performance das organizações, próximo ao que fazem a Standard & Poor’s e a JP Morgan18. Atualmente, mais de 1,5 mil empresas já aderiram voluntariamente às diretrizes da GRI19. Todavia, Dingwerth (2008) descreve que muitos países do Sul se colocam contra os termos determinados pela governança internacional privada, assim como os da GRI, argumentando que esse sistema os afeta em maior grau do que aos países do Norte. É verdade que as empresas originárias do Sul geralmente não dispõem de estrutura ou recursos financeiros para cumprir os padrões determinados pela GTP. Por essa razão, os países do Sul argumentam que a GTP é uma tentativa de dificultar a entrada de seus produtos nos mercados do Norte e, por isso, se opõem à adesão desses termos no regulamento do comércio internacional. 154 16 <http://www.globalcompact.org>. 17 Fundação Rugmark: <http://www.rugmark.org>. 18 Instituições que calculam o credit rating (avaliações de risco de crédito) e o risco-país, respectivamente. 19 <http://www.globalreporting.org>. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Apesar das discussões, através da análise dos códigos criados pela governança intergovernamental e pela governança transnacional privada, pode ser constatado que, apesar de partirem de fontes distintas, as normas compartilham os mesmos objetivos básicos. DeGeorge (2000) faz um resumo bastante claro desses objetivos. Ele indica que, em primeiro lugar, os códigos defendem o princípio de não causar malefícios intencionalmente e, principalmente, o de levar mais benefícios do que malefícios ao país de destino. As empresas transnacionais devem proporcionar benefícios em suas operações, caso contrário são tidas legitimamente como exploradoras. A relação entre o país em questão e a empresa transnacional deve ser mutuamente benéfica, sendo que esses benefícios devem chegar à população de um modo geral, e não somente à elite ou ao governo. Em segundo lugar, o princípio de estender os valores éticos e respeitar a cultura local, que não é estática, sofrendo constantes modificações, muitas das quais resultantes da atuação das transnacionais. Assim, as empresas devem considerar seu impacto no local e trabalhar com a cultura e não contra ela. Em terceiro lugar, respeito aos direitos dos trabalhadores e de todos aqueles que são afetados por ações ou políticas das empresas. E, por último, o princípio de que as transnacionais devem pagar impostos e cooperar com o governo local, em vez de evitar ou manipular suas obrigações na região (DEGEORGE, 2000: 51). Conclusões O estudo sobre a atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento mostrou, inicialmente, que a maioria dos países pobres optou por se integrar ao processo de globalização na busca do desenvolvimento. Nessa perspectiva foram viabilizadas e/ou implementadas políticas de viés liberal para que o ambiente se tornasse mais atrativo aos investimentos estrangeiros. A partir disso, foi visto que o poder das corporações transnacionais aumentou no decorrer do tempo, uma vez que os países passaram a disputar a atração dos IEDs, considerando ser sua presença capaz de impulsionar o desenvolvimento. As CTNs ganharam a capacidade de barganhar entre os países, forçando-os a oferecer situações cada vez mais vantajosas às suas operações. Ao mesmo tempo, o poder do Estado ficou comprometido, já que as políticas públicas passaram a ter de se adequar às demandas do mercado. Ao analisar o movimento de expansão das CTNs, vimos que as corporações procuram se dirigir para os ambientes considerados mais estáveis. As empresas são avessas ao risco, e só operam em economias instáveis quando são oferecidas grandes vantagens nos custos de mão-de-obra ou nos recursos para a produção. Outro ponto importante é o de que as CTNs apresentam características que as diferenciam das empresas comuns. A facilidade em se deslocar permite que elas evitem os ambientes mais hostis, pois, não estando “presas à localidade”, não criam, consequentemente, vínculos locais. Apesar de trazerem recursos financeiros, as empresas não são necessariamente fatores impulsionadores do desenvolvimento. Há uma diferença entre crescimento Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 155 econômico e desenvolvimento. É preciso haver crescimento econômico para que ocorra o desenvolvimento, mas esse último não é proporcionado necessariamente em função do primeiro. Os casos descritos neste artigo, como o da Royal Dutch Shell, sugerem que interesses divergentes são capazes de gerar conflitos entre as CTNs e a comunidade. Frente a isso, a atuação dos governos é determinante, agindo como árbitro na solução dos problemas ou simplesmente tomando partido do lado mais forte. Algumas vezes, os interesses da corporação são protegidos pelo poder público, desequilibrando o balanço de forças em benefício da empresa. No sentido oposto, há casos em que o governo responsabilizou as transnacionais por provocar o subdesenvolvimento através de ações predatórias. Os escândalos envolvendo as CTNs levaram os organismos internacionais e governos nacionais a se manifestarem contra as violações à Declaração Universal de Direitos Humanos e aos princípios éticos elementares. Surgiram, então, regras e códigos para guiar o comportamento das empresas em outros países e assim reduzir a incidência de casos como os exemplificados neste trabalho. Mas a determinação dessas regras não é em si mesma uma solução. Os códigos de conduta seguem valores éticos e culturais daqueles que os criaram; assim, há relevante diferença entre as regras de governança estabelecidas por organizações intergovernamentais em comparação com aquelas criadas pelas instituições privadas. No primeiro caso, órgãos como a ONU, onde os países têm igual representatividade independentemente de sua condição econômica e social, guiam a atuação dos agentes econômicos na direção dos objetivos dos governos, sem priorizar interesses particulares. Enquanto isso, as instituições da iniciativa privada formulam normas baseadas nos princípios daqueles que estão ali representados, obedecendo tão somente a seus interesses específicos. Com relação a este assunto, é necessário salientar que a adesão aos códigos que conduzem o desempenho e a responsabilidade social das empresas ainda é voluntária. Diante do aumento da pressão dos governos, comunidades, consumidores e organizações internacionais no sentido de exigir accountability e um comportamento socialmente responsável, as empresas acabam se adequando àquelas normas de conduta, buscando preservar sua reputação. Com isso, muitas das grandes corporações decidem criar suas próprias regras de governança, procurando minimizar eventuais problemas que prejudiquem suas operações. A adesão aos códigos de conduta depende, então, exclusivamente da preocupação das empresas em manter sua imagem e/ou seu comportamento altruísta. Referências bibliográficas ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. 6 ed. Trad. Sandra Guardini. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 156 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 BOYER, R. Estado, mercado e desenvolvimento: uma nova síntese para o século XXI?. Trad. Maria Angélica Pfister. Campinas: 1999. CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. Trad. Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996. COLLIER, P.; DOLLAR. D. Globalização, crescimento e pobreza - Relatório de Pesquisa Política do Banco Mundial. Trad. Melissa Krassner. São Paulo: Futura, 2003. DINGWERTH, K. Private Transnational Governance and the Developing World: A Comparative Perspective. International Studies Quartely, (2008) 52, 607-634. DEGEORGE, R.T. Ethics in International Business – A Contradiction in Terms? Business Credits, Vol. 102, 2000. GILPIN, R. The Political Economy of International Relations. Princeton: Princeton University Press, 1987. GONÇALVES, R. et al. A nova economia internacional: uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1998. GOODWIN, N. The Social Impacts of Multinational Corporations: An Outline of the Issue with a Focus on Workers. In: CHANDLER JR., A.D.; MAZLISH, B. (eds). Leviathans: Multinational Corporations and The New Global History. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 135-165. HILL, C.W.L. International Business: competing in the global marketplace. Washington D.C.: McGraw-Hill Irwin, 2005. IANNI, O. Teorias da Globalização. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. JONES, G. Multinationals from the 1930s to the 1980s. In: CHANDLER JR., A.D.; MAZLISH, B. (eds). Leviathans: Multinational Corporations and The New Global History. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 45-79. KOLK, A.; TULDER, R.v. Multinationality and Corporate Ethics: Codes of Conduct in the Sporting Goods Industry. Jornal of International Business Studies, 32, 2 (Second Quartier 2001): 267-283. LETZA, S. et al. Shareholding versus Stakeholding: a critical review of corporate governance. Oxford: Blackwell Publishing Ltd. 2004. MADELEY, J. Big Business, Poor Peoples: The Impact of Transnational Corporations on the World’s Poor. 2 ed. Londres: Zed Books Ltd, 2000. MÜGGE, D. Private-Public Puzzels: Inter-firm Competition and Transnational Private Regulation. Routledge Taylor & Francis Group, 2006. OMAN, C.P. Corporate Governance and national development. Technical Papers of OECD Development Centre, 2001. Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158 157 ROACH, B. A Primer on Multinational Corporation. In: CHANDLER JR., A.D.; MAZLISH, B. (eds). Leviathans: Multinational Corporations and The New Global History. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 19-44. RODRIGUEZ, P. et al. Three lenses on the multinational enterprise: politics, corruption, and corporate social responsability. Journal of International Business Studies, 2006. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. 6 ed. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SKLAIR, L. Assembling for Development: The Maquila Industry in México and the United States. Boston: Unwin Hyman, 1989. WALLERSTEIN, I. After Developmentalism and Globalization What?. The University of North Carolina Press, 2005. WILKINS, M. Multinational Enterprise to 1930: Discontinuities and Continuities. In: CHANDLER JR., A.D.; MAZLISH, B. (eds). Leviathans: Multinational Corporations and The New Global History. New York: Cambridge University Press, 2007. 158 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Uma análise da economia r ussa na era Putin (1999-2008) Daniela Alvarenga Cunha* Resumo: Este artigo analisa a trajetória da economia russa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. Destaque é dado ao desenvolvimento do capitalismo na era Putin, tendo em vista a nova fase da globalização. No caso da Rússia, pode-se dizer que a transição para uma economia de mercado não resultou das contradições do modo de produção soviético, mas significou uma transformação no modo de apropriação dos excedentes, antes pelo Estado e, a partir de então, principalmente pelos chamados “oligarcas”. Palavras-chave: Economia russa, governo Putin, globalização, declínio da União Soviética, Guerra Fria. A decadência da URSS O intuito deste artigo é analisar como a Rússia se desenvolveu durante o governo Putin, e de que modo o país se insere no sistema capitalista no início do século XXI. Para tanto, é necessário retornar à segunda metade do século XX, quando o mundo se dividiu em duas zonas de influência. Após a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, os líderes dos países vencedores se encontraram em uma série de conferências, a fim de redefinir o mundo pós-guerra. O encontro mais relevante foi o de Potsdam, em julho de 1945, no qual os Aliados dividiram a Alemanha em quatro zonas, que seriam controladas por França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética. É preciso assinalar, contudo, que do conflito emergiram, de fato, duas superpotências: de um lado os EUA e, de outro, a URSS. O papel do primeiro seria o de representante do capitalismo e dos valores ocidentais. Já à URSS caberia defender o ideal socialista. A emergência de um mundo bipolar deu início a uma nova configuração geopolítica mundial, antes pautada pelo jogo multipolar e pela grande força britânica. Desse modo, o período que se estende de 1945 até aproximadamente 1990 é chamado “Guerra Fria”. Com a definição de zonas de influência na Europa, Moscou rapidamente estabeleceu sua primazia sobre os Estados do leste do continente, com o objetivo de evitar a recorrência de invasões territoriais similares às efetuadas pela Alemanha * Daniela Alvarenga Cunha é economista, formada pela Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) em 2008. Este artigo tem como base sua monografia de conclusão de curso, desenvolvida sob a orientação da Prof. Dra. Marina Gusmão de Mendonça, e selecionada para publicação na forma de resumo. E-mail: <[email protected]>. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 159 durante a guerra. Quanto à divisão das zonas de influência no restante do mundo, reinava o caos, excetuando-se o Japão. Em grande medida, isto se deveu ao início da desagregação dos impérios coloniais europeus, cuja área de maior disputa era a Ásia. De qualquer modo, a grande maioria dos países periféricos alinhou-se aos EUA1. Do lado econômico, julho de 1947 testemunhou o lançamento do Plano Marshall, capitaneado pelos EUA, com o intuito de recuperar os países afetados pela guerra, inclusive a União Soviética. Porém, os soviéticos recusaram o auxílio, pois consideravam ser esta uma maneira de os EUA exercerem domínio político e econômico sobre o país. Neste mesmo ano, os EUA lançaram também a Doutrina Truman, destinada a prover assistência às populações que se sentissem vítimas das tentativas de subjugação por parte de minorias armadas ou por pressões externas2. Em 1948, EUA, França e Grã-Bretanha decidiram unir suas três zonas de ocupação na Alemanha. Em oposição, Stalin estabeleceu o Bloqueio de Berlim, cortando todo acesso por trem e por rodovia desde o oeste. Truman ordenou então que uma operação aérea enviasse mantimentos e outros produtos a Berlim. Essa operação durou até maio de 1949, quando a URSS levantou o bloqueio. As forças ocidentais imediatamente deixaram a região e aprovaram a criação da República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental). A resposta da URSS foi a criação da República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental). Os temores de uma guerra suscitados pelo bloqueio de Berlim motivaram dez países da Europa Ocidental, além dos EUA e do Canadá, a estabelecer uma aliança militar para a segurança. Assim, em abril de 1949 foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), com a declaração de que um ataque a qualquer membro da aliança seria visto como um ataque contra todos. Em 1955, veio a contrapartida soviética à Otan, o Pacto de Varsóvia. No início da década de 1960, a Guerra Fria, abalada, de um lado, pela Guerra da Coreia (1950-53) e, de outro, pela morte de Stalin (1953), deu sinais de arrefecimento. O primeiro afrouxamento ocorreu com a chegada ao poder de Nikita Kruschev (1958-64), o que deu início a uma fase caracterizada por meras ameaças e provocações mútuas, resultando em relativa estabilidade do sistema internacional, cuja última fronteira foi definida em 1961, com a construção do Muro de Berlim, que separava a cidade em duas partes. O muro foi originalmente construído com o intuito de evitar a evasão de cérebros do Leste para o Oeste, mas acabou por simbolizar a divisão do mundo em duas esferas de influência muito bem delimitadas. Em 1973, o mundo entrou numa grande crise econômica, provocada pelo aumento dos preços do petróleo, cujo clímax ocorreria no início da década de 1980. Durante essa fase, conhecida como “Segunda Guerra Fria” (1979-1985), 1 HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2 ed., 1995, p. 230; SEGRILLO, A. O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 135. 2 160 HOBSBAWM, 1995, op.cit., p. 239. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 as relações EUA-URSS sofreram leve deterioração. Na verdade, o equilíbrio das duas superpotências foi alterado por alguns acontecimentos importantes, como o fracasso americano na Guerra do Vietnã (1965-1975) e o consequente isolamento em relação à Europa, e que seria reforçado na Guerra do Yom Kippur (1973), entre Israel (tendo os americanos a seu lado) e Egito e Síria (com armamentos fornecidos pelos soviéticos). A URSS e seus aliados foram afetados negativamente pela crise do capitalismo na década de 1970. Inicialmente, a crise do petróleo de 1973 trouxe consequências positivas para a URSS – um dos principais produtores mundiais – quando o preço do produto aumentou de US$ 2,53 o barril, em 1973, para cerca de US$ 40, no começo da década de 1980. Os EUA, por sua vez, sofreram com o embargo imposto pelos países árabes à venda do petróleo, que durou de outubro de 1973 até março de 1974, devastando a economia americana. As divisas obtidas com a venda do petróleo e de outras matérias-primas permitiram à URSS importar cereais e bens de consumo3. A Segunda Guerra Fria, contudo, seria agravada pela chamada terceira onda da revolução mundial (com regimes na Ásia, na África e nas Américas atraídos para o lado soviético), e que provocou sérias derrotas para os americanos. A competição entre as duas superpotências foi então transferida para o Terceiro Mundo4. Um dos conflitos mais importantes desse período foi a Guerra do Afeganistão (1979-1986), entre guerrilhas afegãs muçulmanas anti-URSS (mujahidin) e as forças governamentais, apoiadas pelos soviéticos. A guerra teve origem no golpe de 1978, que depôs o presidente afegão, Sardar Khan, o qual, por sua vez, havia chegado ao poder após ter derrubado o rei em 1973. O presidente foi assassinado e um governo pró-comunista, sob o comando de Noor Mohammed Taraki, foi estabelecido. Em 1979, outro golpe levou Hafizullah Amin ao poder, provocando a invasão soviética em dezembro, e a posse de Babrak Karmal como presidente. Os mujahidin, por sua vez, tinham o apoio dos EUA, da China e da Arábia Saudita, por intermédio do Paquistão e do Irã. Apesar de a URSS possuir armamentos superiores, além de domínio aéreo, os rebeldes conseguiam enfrentá-los. Zonas de influência foram estabelecidas, com as forças soviéticas e governamentais controlando as áreas urbanas, enquanto a guerrilha tinha o poder nas zonas rurais e nas montanhas. Conforme a guerra se prolongava, os rebeldes refinaram sua organização e suas táticas e, com a ajuda de armamentos fornecidos pelos EUA, iniciaram a neutralização das vantagens soviéticas. Em 1986, Kamal renunciou, e Mohammad Najibullah tornou-se chefe da liderança coletiva que se estabeleceu. Em fevereiro de 1988, o presidente Mikhail Gorbachev anunciou a retirada das tropas soviéticas, concluída um ano depois. Outro conflito importante iniciou-se em 1982, na Nicarágua, onde grupos paramilitares apoiados pelos EUA (os “contras”) começaram uma guerra civil para lutar contra o regime sandinista que, em 1979, havia derrubado a ditadura 3 REIS FILHO apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 156. 4 HOBSBAWM, 1995, op. cit., p. 243. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 161 Somoza e estabelecido um governo anti-imperialista, com ligações militares com a URSS e Cuba. O conflito armado durou até 1988 e, apesar dos altos investimentos feitos pelos EUA para derrubar o regime sandinista, este se estendeu até 1990, quando foi derrotado em eleições. É preciso assinalar que, apesar do grande poderio militar e da elevada escala em que produzia armamentos, a URSS era infinitamente inferior ao Ocidente em termos econômicos e tecnológicos5. Na verdade, as duas superpotências distorceram enormemente suas economias durante a corrida armamentista, endividando-se. Porém, enquanto a dívida americana era absorvida pelo restante do mundo capitalista, não havia ninguém para absorver a dívida soviética. Assim, foi a combinação dos problemas econômicos internos da URSS com o avanço da economia capitalista que solaparam o socialismo naquele país. A base para essa destruição começou na década de 1960, com a interação da economia soviética com o resto do mundo, tornando-a vulnerável e fazendo com que seus governantes postergassem indefinidamente a tão necessária reforma do sistema econômico6. Outro aspecto extremamente relevante para se compreender o processo de decadência da URSS diz respeito ao atraso tecnológico. A esse propósito é preciso considerar que o fordismo foi o modelo de produção que vigorou na maior parte dos países centrais até o pós-guerra. É uma concepção da produção desenvolvida na época da Segunda Revolução Industrial, entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, e suas principais características são a especialização, a rigidez da produção, economias de escala e fluxos verticais de informação. Porém, nos anos 50, outro sistema começou a ser construído: o toyotismo, que se caracteriza por flexibilidade na produção, grande variedade de artigos produzidos em pequenas séries, desespecialização, tempos partilhados, controle de qualidade simultâneo à produção e fluxos horizontais de informação e de interação. As três principais características desse modelo às quais a URSS teve de se adaptar foram flexibilidade, informação e qualidade7. De fato, quando da Revolução de 1917, a URSS estava em um patamar de desenvolvimento inferior ao dos países capitalistas. Desse modo, ela teria de primeiro alcançá-los para, depois, superá-los. Assim, foram levados à URSS trabalhadores ocidentais já acostumados com o trabalho nos moldes tayloristas: com uma maior especialização, eliminação de movimentos supérfluos e elevado controle8. A tentativa de copiar o modelo fordista veio quando da implementação dos planos quinquenais, a partir de 1928. Além desses planos, outra característica básica do modelo soviético era a utilização completa dos recursos humanos e naturais disponíveis. Assinale-se que, naquele momento, as tecnologias ocidentais eram diretamente absorvidas por meio de contratos de assistência técnica, pelos 162 5 Idem, p. 244. 6 Idem, ibidem. 7 SEGRILLO, 2000, op. cit., p. 91-99. 8 Idem, p. 87. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 quais trabalhadores soviéticos eram treinados pelo fornecedor da tecnologia para poderem exercer determinada função exatamente como se ela estivesse sendo exercida na matriz9. Quantitativamente, os soviéticos obtiveram bons resultados, com altas taxas de crescimento nas décadas de 1930, 1940 e 1950, o que se pode verificar na tabela a seguir: Tabela 1 Fonte: SEGRILLO (2000, p. 247) Nota-se que as taxas de crescimento do Produto Material Líquido (medida soviética similar à do Produto Nacional Bruto, da ONU, mas que exclui os serviços) foram atípicas durante a Segunda Guerra Mundial, alternando valores positivos e negativos. Essas taxas eram altas devido à constante incorporação de novos contingentes de trabalhadores e aos recursos investidos em novos meios de produção e insumos. Como se vê, a inovação técnica não era essencial para o modelo10. Nos anos 60, porém, o crescimento arrefeceu, com a maior expansão da Revolução Científico-Técnica (RCT) e a incapacidade do fordismo de se adequar às novas exigências que ela trazia consigo. Assim, um novo paradigma se impôs, ao qual a URSS não se adaptou e que está no cerne da necessidade da perestroika nos anos 80. Com efeito, a defasagem econômica e tecnológica da URSS só ficou evidente a partir do período Brejnev (1965-1982), que ficou conhecido como “era da estagnação” (zastoi). A característica mais marcante do período foi a falta de um programa de ação por parte do governo central para tentar reverter o desaquecimento econômico, apesar de todas as taxas médias de crescimento estarem diminuindo. Além do atraso tecnológico, outro fator acentuaria a decadência da URSS: a crise do sistema capitalista, que enfrentou um grave problema de superprodução entre 1974 e 1975, resultante dos aumentos de produtividade proporcionados pela RCT e pela queda das taxas médias de lucro. Segundo Mandel, “a recessão generalizada expressa, portanto, de modo sintético, o esgotamento da ‘onda longa expansiva’ (que começou nos Estados Unidos em 1940, na Europa Ocidental e no Japão em 1948, e durou até o final dos anos 60)”11. A crise do 9 Idem, p. 88. RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 165. 11 MANDEL, E. A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista. Campinas: Ensaio/Editora Universidade de Campinas, 1990, p. 13. 10 Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 163 capitalismo foi ainda afetada pelo segundo choque do petróleo, em 1979, que contribuiu para acentuar as pressões inflacionárias. Inicialmente, o problema não atingiu a URSS, mas esta acabou por sofrer seus efeitos no médio prazo. De fato, a URSS era grande exportadora de petróleo, produto cuja cotação elevou-se muito em 1973. Assim, o país foi inundado por divisas provenientes das exportações petrolíferas, e o fluxo comercial com o Ocidente cresceu, como demonstrado na Tabela 2. Tabela 2 Fonte: MANDEL (1990, p. 122) 164 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 É interessante notar o aumento percentual da participação dos Estados Unidos no comércio com a URSS, passando de uma diminuição de 17%, em 1974/75, para crescimento de 48%, em 1975/76. Se, por um lado, as exportações de commodities eram fonte de receita, por outro o aumento da integração econômica acabou por deixar a URSS mais vulnerável a acontecimentos externos e a mercadorias mais baratas vindas de fora. Ressalte-se que, desde a década de 70, o modelo soviético de produção encontrava dificuldades em manter o ritmo de utilização de mão-de-obra e de recursos naturais das décadas anteriores, contribuindo para a desaceleração econômica12. Os motivos para a diminuição do número de trabalhadores estão ligados à redução da taxa de crescimento populacional decorrente da urbanização, dos avanços no saneamento básico e da educação, e ao fato de que os filhos dos nascidos durante a guerra estavam atingindo idade para trabalhar. Como a natalidade havia diminuído durante a guerra, existia um contingente menor de pessoas para trabalhar. Também na década de 80, o número de pessoas em idade de se aposentar aumentou13. Apesar de produzir volumes imensos, a partir da década de 70 a URSS passaria a acumular “um sério atraso tecnológico nos setores de ponta da economia mundial, como a microeletrônica, a robótica, a informática, as telecomunicações e inclusive em tecnologias com aplicações militares”14. O país havia se tornado altamente dependente de tecnologia importada, pondo também em xeque seus esforços no campo de P&D. A Tabela 3 mostra a evolução do crescimento soviético dos anos de 1960 até 1985, com detalhamento das alocações de recursos. Saliente-se que os dados foram obtidos por pesquisadores ocidentais e pelo russo Girsh Khanin. 12 RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 167-168. 13 AGANBEGUIAN apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 168-169. 14 CASTELLS apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 171. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 165 Tabela 3 Fonte: Fischer (1992, Tabela 5, p. 13) * Inclui consumo coletivo, primeiramente saúde e educação. Produção Total do Fator – é calculada assumindo-se uma função de produção de Cobb-Douglas com peso de 0,62 para horas trabalhadas, 0,33 para capital e 0,05 para terras aráveis. Verifica-se que as taxas de crescimento do PNB começaram a recuar nos anos de 1970, coincidindo com a crise do capitalismo. Se os dados de Khanin estiverem corretos, a situação mostra-se ainda pior, com taxas negativas de crescimento já na década de 1960. Fica evidente também o declínio de todos os indicadores durante o período. A população cresceu menos de 1%, limitando o número de pessoas que entravam no mercado de trabalho. Em relação à composição do PNB, a preços correntes, temos leve queda ou estabilização em todos os itens, excetuando-se os gastos com defesa, que passaram de 12% do PNB, no período 1960-1970, para 16%, entre 1975-1980. 166 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Outra explicação para o recuo no crescimento soviético a partir dos anos 70 é que seu modelo produtivo simplesmente havia se esgotado. Enquanto as economias capitalistas centrais tentavam encontrar maneiras de produzir de uma forma mais enxuta, a URSS encontrava-se atravancada por uma máquina burocrática que nada fazia para se adequar às exigências internas ou externas. O trabalho e o capital tinham baixos rendimentos, não havia inovação e o desperdício era altíssimo, assim como os níveis de estoque. A combinação desses fatores fez com que os produtos industrializados soviéticos não mais apresentassem competitividade no mercado externo. Assim, não podendo exportar artigos industriais, a URSS viu-se obrigada a importar equipamentos e bens de consumo. E, na tentativa de reverter o jogo, começou a exportar cada vez mais “commodities, como petróleo, gás natural, metais e outras matérias-primas, que, na década de 80, chegavam a representar 90% das exportações soviéticas para as nações capitalistas”15. Por fim, para se compreender a questão da decadência da URSS, é preciso considerar o problema da globalização, cuja imprecisão do termo comporta muitas definições. Alguns a veem como um processo eminentemente liderado pelas grandes corporações – caso de Michael Porter16 –, enquanto outros a conceituam como um processo financeiro, caso de François Chesnais17. Outros ainda enxergam-na como resultado de um processo histórico que se iniciou com as Grandes Navegações no século XV, ou seja, concomitantemente ao início do desenvolvimento do capitalismo comercial. Um dos fatores que fizeram com que tal mudança ocorresse foi a eleição do republicano Ronald Reagan à presidência dos EUA, e da conservadora Margaret Thatcher para o cargo de primeira-ministra britânica. Com a ascensão de ambos, o que se viu foi a emergência do neoliberalismo em substituição ao keynesianismo então em voga. Sendo assim, a quebra de barreiras virtuais e físicas foi estimulada para que o capital pudesse fluir livremente entre os países18. Porém, a propagada queda de barreiras e a liberalização dos mercados não significou o fim do Estado-nação nem a eliminação da identidade nacional, como muitos anunciavam. Na verdade, chegou até mesmo a fortalecê-los; o que mudou foi o grau de integração entre as nações e a maneira como interagiam. A mudança do padrão de acumulação, passando do capital produtivo e das empresas transnacionais para o capital financeiro portador de juros, acabou por modificar profundamente as relações trabalhistas. Iniciou-se, então, a fase das terceirizações, do corte de postos para diminuição de custos, de consultorias e da supressão de benefícios. O Estado passou a ser o defensor do livre mercado, 15 RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 173. 16 PORTER, M. A Vantagem Competitiva das Nações. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 17 CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. 18 WALLERSTEIN, I. 2008: a globalização neoliberal passou à história. Disponível em: <http:// www.binghamton.edu/fbc/226pr.htm>. Acesso em: 13 ago 2008. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 167 incentivando as privatizações, as fusões e as aquisições, não cedendo às reivindicações das centrais de trabalhadores, que se viam cada vez mais desamparados19. Além disso, nessa época, outra grande integração começaria a ocorrer: a da informação. O mundo iniciou então uma revolução tecnológica que levou, de uma maneira ou de outra, à sua interconexão20. A URSS se encontrava em situação oposta, tendo o Estado como centralizador político e econômico, enquanto a nova fase do capitalismo preconizava sua queda. Além do mais, o controle estatal sobre a informação e a tecnologia impedia que o país e seus habitantes se inserissem nessa nova configuração mundial21. Apesar do arrefecimento da repressão após a morte de Stálin, em 1953, o regime manteve sua natureza autoritária até o início da década de 80, dificultando a inserção da população num mundo cada vez mais conectado. A URSS encontrava-se irremediavelmente atrasada em relação às economias capitalistas centrais, no que tange à produção de microprocessadores e chips, apesar da alta qualificação dos cientistas soviéticos22. A era Gorbachev (1985-1991) e as reformas na URSS Com a morte de Konstantin Chernenko, então Secretário-Geral do PCUS, em 1985, abriu-se caminho para a eleição de Mikhail Gorbachev ao posto, em 11 de março daquele ano. O país herdado por Gorbachev se encontrava em condições extremamente difíceis. A comunidade internacional, por sua vez, só se deu conta da gravidade da situação quando, em outubro de 1985, foram lançados dois programas de reformas: 1) a perestroika, que contemplaria a economia; e 2) a glasnost, que se ocuparia da modernização política. Esses programas eram a materialização do que já havia sido constatado pela alta cúpula soviética: mudanças urgentes eram necessárias. Gorbachev foi o escolhido para torná-las realidade, claramente apoiado por setores da burocracia e pela maioria dos dirigentes do PCUS. Perestroika significa reconstrução, reestruturação, e é a isso que se propunha o programa de reformas econômicas. Porém, ele carecia de consistência. Não se sabia exatamente a intenção do governo ao lançá-lo, apenas que se pretendia ultrapassar um modelo extensivo de produção, adotando-se outro, intensivo, com a introdução de técnicas mais modernas. O que também não estava claro era o destino final que teriam essas reformas nos últimos anos da década de 80. Uma volta à economia de mercado não era aventada inicialmente. Porém, ao analisar as medidas que foram adotadas, vê-se que a tentativa de dinamizar a 19 MENDONÇA, M.G. Impasses e desafios do processo contemporâneo de globalização. Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. Anpuh/SP – Unesp/ Assis, 24-28 de julho de 2006, p. 14. Disponível em: <http://www.anpuhsp.org.br/downloads/CD%20XVIII/pdf/ORDEM%20ALFAB%C9TICA/ Marina%20Gusm%E3o%20de%20Mendon%E7a.pdf >. Acesso em: 13 ago 2008. 20 GREIDER, W. O mundo na corda bamba: como entender o crash global. São Paulo: Geração Editorial, 1998, p. 16; PIRES, H. F. “Ethos” e mitos do pensamento único globaltotalitário. Terra Livre. São Paulo, n. 16, p. 153-168, 1º semestre/2001. Disponível em: <http://www.charlespennaforte.pro.br/ Hindenburgo%20Pires.pdf>. Acesso em: 14 abr 2008, p. 160. 168 21 GIDDENS apud PIRES, 2001, op. cit., p. 165. 22 RODRIGUES, 2006, op. cit., p.181. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 economia seria feita com “o recuo na planificação centralizada, o afrouxamento nos controles sobre as empresas e a reintrodução gradual de mecanismos de mercado na economia soviética”23. Na primeira fase, entre 1985 e 1986, foi feita uma reforma burocrática, principalmente nos sistemas de gestão e controle, com o intuito de melhorar os problemas mais aparentes, como a baixa produtividade, o alcoolismo e a indisciplina. Porém, essa tentativa logo se revelou inócua para fazer funcionar as estruturas da nomenklatura24, que resistia fortemente. Algo mais brusco deveria ser feito. Assim, a partir da segunda metade de 1986, as reformas econômicas seriam acompanhadas por um conjunto de mudanças políticas, denominadas glasnost, pré-condição para a efetivação completa da perestroika. Quanto à glasnost, pode ser traduzida como transparência, visibilidade. Dessa maneira, o programa de mudanças políticas – apoiado pela ala reformista do governo – reconhecia a necessidade de transparência, ao mesmo tempo em que se propunha alterar o sistema como um todo, democratizando-o. Em linhas gerais, a glasnost deveria ser uma abertura política controlada, que atuaria “estimulando” os setores mais importantes da sociedade, buscando, assim, aumentar a produtividade dos fatores de produção e a inovação. A necessidade de manter o controle, porém, acabou rechaçada pela população, que percebeu que seria possível transgredir os limites dados pelo governo25. Outro fator limitador do alcance das reformas era a manutenção do PCUS como partido único, fato que ia de encontro à tentativa de democratização. As reformas pouco avançaram entre 1985 e 1986, explicitando as desavenças entre os reformadores radicais e os conservadores. Todavia, a explosão do reator da usina nuclear de Chernobyl, em abril de 1986, serviu para mostrar ao mundo o grau de atraso tecnológico e de descaso em que vivia a URSS. A partir daí as reformas econômicas foram aceleradas. Em 1.º de maio de 1987, entrou em vigor a resolução que regulamentava o trabalho individual privado nas áreas de serviço e agricultura, legalizando a situação de milhares de pessoas, entre artesãos, pedreiros, médicos privados e outros, acabando, também, por dinamizar a economia. Obviamente, o mercado negro permaneceu intacto. Devido à grande disparidade entre a indústria pesada, de um lado, e a de bens de consumo, agrícolas e de serviços, de outro, surgiram verdadeiras máfias para preencher essas lacunas. Enquanto a glasnost foi muito bem aceita e acatada, a perestroika não conseguiu produzir os resultados econômicos desejados, visto que sua execução provou-se extremamente difícil. “A renda nacional cresceu levemente entre 1986 e 1988, entre 2% e 3%, o que era insuficiente para ser notada pela população. Isso, combinado com a queda do preço do petróleo e com uma safra ruim de cereais, piorou ainda mais a percepção pública”26. Os dados da tabela a seguir corroboram a tese de que a perestroika fracassou, no que tange ao desempenho econômico soviético, apesar de ter contribuído para a abertura do sistema. Pela 23 RODRIGUES, 2006, op. cit., p.219. 24 VOSLENSKII apud SEGRILLO, 2000, op. cit., p. 185. 25 RODRIGUES, 2006, op. cit., p.221. 26 Idem, p.227. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 169 análise dos dados, vemos que os indicadores macroeconômicos deterioraram-se gradualmente, conforme as reformas iam se aprofundando. O crescimento do PNB, por exemplo, atingiu seu auge em 1986, com uma alta de 4,1%, caindo lentamente, até tornar-se negativo em 13%, em 1991. Também vemos sinais de que a economia soviética entrou em uma espiral de preços-salários, uma vez que os sucessivos aumentos dos salários nominais não foram capazes de elevar o poder de compra da população, pois os ganhos reais eram corroídos pela inflação. Tabela 4 Fonte: Fischer (1992, Tabela 7, p. 19) Assim, em 1989 estava claro que o aparelho produtivo havia se desagregado. Nem mesmo os reformistas radicais sabiam como se daria a transição de uma economia centralizada para um modelo com mecanismos de mercado ampliados. A oposição dos conservadores e de setores ligados a eles aumentava27. Por outro lado, a popularidade de Gorbachev caiu drasticamente e a população passou a manifestar cada vez mais sua insatisfação. Os trabalhadores faziam paralisações, que afetavam seriamente a produção e a produtividade. Já em maio de 1990 era irreversível o colapso econômico, que acabou por preparar a última crise política do sistema soviético. A liberalização veio como uma tentativa de derrotar os conservadores. A censura diminuiu e os meios de comunicação de massa foram liberados, assim como os dissidentes. Denúncias sobre os excessos do regime começaram a surgir, e a repulsa à corrupção generalizada na nomenklatura foi um de seus maiores alvos. Assim, um esqueleto do sistema constitucional, criado durante a glasnost, 27 170 Idem, p. 229. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 chegou a ser instalado. E, durante as eleições de 1988-89 para o Congresso de Deputados do Povo, Gorbachev conseguiu acumular poderes para governar por decreto. Todavia, a insatisfação era geral e “a velha URSS se precipitava no abismo”28. Em 1990, deu-se o fim do unipartidarismo e a criação, pelo Soviete Supremo, do cargo de presidente da URSS, cujo primeiro ocupante foi Gorbachev (os subsequentes seriam eleitos). Boris Yeltsin, por sua vez, foi eleito presidente do Soviete Supremo em maio do mesmo ano, dando início à oposição entre a República Russa e o governo central da URSS. Com o caos em que a URSS se encontrava na primeira metade de 1990, os reformistas radicais – ou restauracionistas –, que exigiam uma volta ao capitalismo, se tornaram mais ofensivos politicamente. Isso significava uma mudança em seu discurso inicial por ocasião da instauração da perestroika, quando preconizavam ser ela uma reforma do socialismo. Nem mesmo uma economia mista já lhes servia, dado o estado das coisas29. Em julho de 1990, realizou-se o XXVIII Congresso do Partido Comunista, no qual, além dos apoiadores de Gorbachev, apareceram também outras linhas políticas: a Unidade, que pregava uma volta à luta de classes; a Plataforma Marxista, que preconizava a manutenção da burocracia e do elitismo no PCUS; e a Plataforma Democrática, que queria que o PCUS se transformasse em um partido social-democrata, em moldes ocidentais, e defendia uma volta ao capitalismo30. A relevância do XXVIII Congresso se deve ao fato de ele marcar o fortalecimento do poder pessoal de Gorbachev em detrimento da influência do PCUS. Foi também nesse Congresso que Yeltsin anunciou que se retiraria do partido. Em outubro de 1990, a República Russa aprovou o Plano Shatalin, que propunha uma transição para a economia de mercado em um prazo de 500 dias. Sua principal característica era a privatização em larga escala. Isso aumentou ainda mais o atrito entre a Rússia e o governo central, que não aprovara o plano, desejando uma mudança mais gradual. Não havia consenso na cúpula soviética sobre como fazer as reformas, especialmente em relação à reconversão à propriedade privada, à liberação dos preços e ao medo da volta do desemprego em massa31. Enquanto Gorbachev vivia seu “inferno astral”, o presidente eleito da República Russa, em junho de 1991, Boris Yeltsin, não poderia estar passando por um momento melhor. Seus discursos radicais contra o velho sistema e o Partido Comunista, ao contrário dos de Gorbachev, entusiasmavam a população. Esse desgaste entre as duas figuras veio a calhar para os reformistas, que puderam acelerar o ritmo das mudanças. Outra agravante eram as variadas disputas travadas 28 Idem, p. 237. 29 Idem, p. 239. 30 SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 45. 31 RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 245-46. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 171 entre as quinze repúblicas soviéticas, que “(...) se recusavam a colaborar como antes. O sistema econômico integrado se desarticulava à medida que as diversas regiões passavam a agir independentemente na cadeia produtiva (...)”32. O governo central decidiu, então, negociar, propondo um novo Tratado da União, dando amplos poderes às repúblicas, com apenas algumas funções essenciais mantidas no centro. Porém, antes que o acordo pudesse ser assinado, Gorbachev sofreria uma tentativa de golpe. Com efeito, em 19 de agosto de 1991, enquanto Gorbachev estava de férias na Crimeia, os meios de comunicação anunciaram que o vice-presidente da URSS, Gennady Yanayev, assumiria o governo, uma vez que o presidente estaria acometido por “problemas de saúde”. Entre os apoiadores do golpe encontravam-se pessoas muito próximas a Gorbachev, como o primeiro-ministro, Valentin Pavlov, e o chefe da KGB, Vladimir Kryuchkov. Os golpistas afirmavam não ser contra as reformas econômicas básicas, mas contra a assinatura do Tratado da União, que consideravam precipitada. Foram anunciadas algumas medidas populares, como o combate ao crime, instituindo-se, por outro lado, a censura aos meios de comunicação. Em Moscou, Yeltsin se postou no Parlamento russo, juntamente com seus partidários, posicionando-se contra o golpe. A condenação internacional não demorou a vir. Assim, em função da represália interna e externa, do repúdio popular e da falta de objetivos claros, o golpe terminou em seu terceiro dia. Apesar de não ter se consumado, a tentativa de golpe serviu para enfraquecer ainda mais Gorbachev, ao mesmo tempo em que fortaleceu Yeltsin. Gorbachev se viu forçado a renunciar à sua posição de secretário-geral do PCUS e a assinar decretos limitando o campo de ação do partido no governo. Várias das repúblicas soviéticas declarar-se-iam independentes nos dias seguintes, tornando a situação do presidente insustentável. Em 21 de dezembro, todas as repúblicas da URSS (exlcuindo-se as bálticas e a Geórgia) criaram a Comunidade de Estados Independentes – CEI (Sodruzhestvo Nezavisimikh Gosudarstv). Finalmente, em 25 de dezembro de 1991, Gorbachev renunciou, passando o cargo de presidente da URSS a Boris Yeltsin. No dia 26, o fim da URSS foi oficialmente declarado, com votação no Parlamento soviético. A era Y eltsin (1991-1999) Yeltsin No início de seu governo, Yeltsin representava mudança, contando com apoio popular maciço. Ao deixar o cargo, a situação era inversa, uma vez que a Rússia se afundava em corrupção, problemas sociais e colapso econômico. Ele não teve alternativa senão renunciar em 1999. De fato, com o fim da URSS, os gargalos econômicos, que antes eram cobertos pela integração, apareceram. Houve inclusive interrupções na produção de muitos artigos. Apesar de haver herdado uma situação difícil, Yeltsin seguiu com sua ideia de inserção rápida do país na economia de mercado. Nesse contexto, vale destacar o papel do ministro das finanças, Yegor Gaidar, principal 32 172 SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 53. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 mentor do programa econômico. Ferrenho defensor da “terapia de choque”, acreditava ser essa a única saída para a Rússia. Assim, em janeiro de 1992 foram liberados os preços, o comércio exterior e a flutuação do rublo. Ao mesmo tempo, foi implementado um regime de austeridade, a fim de controlar a inflação: a taxa de juro foi elevada a níveis altíssimos, com o objetivo de restringir o crédito e a circulação monetária. Do lado fiscal, novos impostos foram criados, enquanto subsídios e gastos com a seguridade social foram cortados. “O resultado é que os russos viram um show de remarcação nas vitrines (...). Os preços subiram, em média, de 3 a 5 vezes (alguns até 30 vezes). Para piorar, não houve uma melhora imediata na oferta de produtos, como seria de se esperar numa situação de preços de equilíbrio”33. Obviamente, houve grande descontentamento, tanto do governo quanto da população com a nova política. A alta dos preços dos bens essenciais acabou por esvaziar as poupanças acumuladas durante a era soviética. Seu descontrole também afetou as empresas, que não mais pagavam os impostos nem os empregados. As empresas seguiam acostumadas aos subsídios automáticos oferecidos na época soviética, o que contribuía para postergar sua adaptação à economia de mercado. No início das reformas do governo Yeltsin, esses subsídios permaneceram, fruto das relações entre membros do governo e diretores das empresas. Além do mais, a falta de um sistema tributário claro e compreensível tornava a fiscalização praticamente impossível. Isso só ajudava a aumentar o déficit orçamentário. O Banco Central tampouco ajudava: indo de encontro ao que pregava a terapia de choque, a instituição aumentou a oferta de moeda para atender à demanda dos gerentes das empresas, apesar de a inflação estar na casa dos três dígitos. No que tange ao programa de privatização (Privatizatsiya), este era organizado pelo Comitê Russo Estatal para a Administração da Propriedade Estatal (GKI), e executado pelo Fundo de Propriedade Russo. O programa foi composto por duas fases: (1) distribuição aos cidadãos de cupons no valor de 10 mil rublos (US$ 40, na época), que poderiam ser trocados por ações de empresas estatais. Esta fase iniciou-se em agosto de 1992 e durou até julho de 1994; (2) as ações ainda nas mãos do governo foram negociadas com um pequeno número de oligarcas, em troca de empréstimos para cobrir o orçamento estatal. Até junho de 1993, 60 mil das 200 mil empresas estatais russas tinham sido vendidas, principalmente as pequenas, como restaurantes, lojas etc. Em 1993 acelerou-se o processo de venda das grandes empresas através da troca por ações dos 144 milhões de cupons distribuídos à população. (...) Quando a etapa da “privatização por cupons” foi encerrada em julho de 1994, 70% de todas as empresas industriais da Rússia tinham sido privatizadas e mais de 40 milhões de russos possuíam ações34. O processo de privatização não ocorreu sem sobressaltos: a inflação corroía o valor dos cupons, que eram revendidos pela população por valores irrisórios. 33 Idem, p. 74. 34 Idem, p. 77. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 173 Isso permitiu que fundos de investimento adquirissem participações majoritárias nas empresas por custo baixíssimo. Adicionalmente, o poder outorgado à administração das empresas no processo de privatização por cupons permitiu que ocorressem “arranjos”, que terminavam por deixar as empresas nas mãos de seus gerentes35. Muitas vezes, os coletivos de trabalhadores não conseguiam fazer valer seus direitos nas desestatizações. Além disso, o país se tornou uma “terra de ninguém”, com empresários sendo assassinados por conta de disputas comerciais e tendo de pagar por proteção, que chegava até mesmo a ser contabilizada nos balanços36. No que se refere à liberação dos preços, esta teve efeitos nefastos na economia russa, em 1992. Como bem analisa Segrillo, “A política de abertura do comércio avassalava o mercado interno com mercadorias importadas, frequentemente de qualidade superior às russas, mas, em compensação, as indústrias do país sofreriam uma queda brutal devido à concorrência estrangeira, à queda do poder aquisitivo da população, etc. (...), em 1992 o Produto Interno Bruto da Rússia decresceu em 19% (uma taxa semelhante às destruições de grandes guerras!)”37. Grande parte do Parlamento se voltou contra Yeltsin, tendo em vista a maneira como foi conduzido o processo de liberalização de preços e as privatizações. Em 1993, Yeltsin sobreviveu a uma tentativa de impeachment e a um referendo sobre a confiança do povo em seu governo. O estopim da tentativa de derrubá-lo foi sua aparição em rede nacional para informar à nação que assumiria poderes especiais, de modo a permitir que as reformas fossem implementadas38. Yeltsin declarou então que governaria por decreto, até que um novo Parlamento fosse eleito e que um referendo sobre a nova Constituição ocorresse. A Carta causou outra revolta da oposição, uma vez que propunha um Poder Executivo bastante forte e um Parlamento fraco, apesar da relativa independência mantida na Câmara Baixa, a Duma, eleita por voto popular direto. E, com a renúncia de Gaidar ao cargo de vice-primeiro-ministro, Chernomyrdin se fortaleceu ainda mais39. Em dezembro de 1994, o prestígio de Yeltsin foi colocado à prova com a invasão militar da Chechênia. A Rússia queria manter sua influência na república separatista, situada no sul do país, em uma região rica em petróleo e ponto de ligação entre os mares Cáspio e Negro. Finalmente, após quase dois anos de ocupação, as tropas russas se retiraram da região, que obteve autonomia, mas não independência. Em meados de 1993, a fim de receber apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) para conseguir financiar seu déficit fiscal, a Rússia começou 35 Idem, p. 78. 36 DESAI, P. Russian retrospectives on reforms from Yeltsin to Putin. Journal of Economic Perspectives, Vol.19, Nr. 1, 2005, p. 87-106 (tradução nossa) Disponível em: <http://www.atypon-link.com/AEAP/ doi/pdf/10.1257/0895330053147903?cookieSet=1>. Acesso em: 27 jul 2008. 37 SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 81. 38 GUSEV, D. Russian Presidential Elections – 96. 1996. Disponível em: <http://www.acs.brockport.edu/ ~dgusev/Russian/bybio.html>. Acesso em: 13 ago 2008. 39 174 DESAI, 2005, op. cit., p. 81. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 a utilizar a âncora cambial. Para isso, o Banco Central Russo (CBR, em inglês) apertou a política monetária, e um orçamento “não inflacionário” foi estruturado. Seguindo o receituário do organismo internacional, o país não se preocupou em reformar as instituições, tal como o regime tributário e/ou o modus operandi do Banco Central, mas em controlar rapidamente a inflação e em permitir que os capitais se movimentassem livremente40. Os resultados dessa política não decepcionaram. A inflação caiu com o tempo e uma relativa estabilidade de preços foi alcançada, mas não sem custos41. Ressalte-se que, com a baixa arrecadação, o governo russo não tinha como remunerar os títulos de curto prazo (GKO), o que obrigava o CBR a emitir mais títulos. Para tornar os papéis mais atrativos e manter o rublo valorizado, a taxa de juros foi elevada, provocando, em contrapartida, aumento do déficit orçamentário e uma invasão de capital especulativo de curto prazo. No campo econômico, os fatos cruciais que levaram à deterioração da situação russa ocorreram em 1997. O primeiro foi a queda generalizada dos preços das commodities. Como a economia do país era baseada, em grande parte, na exportação desses produtos, em especial do petróleo e do gás, nem mesmo um aumento nos volumes exportados foi capaz de compensar a queda dos preços mundiais. O segundo foi a eclosão da crise econômica da Ásia, que atingiria a Rússia posteriormente. A crise da Ásia de 1997, assim como a da Rússia no ano seguinte, teve no setor financeiro a maior fonte de pressão, propagando-se posteriormente por outros setores da economia. É preciso lembrar que, nos anos 90, as economias emergentes asiáticas se encontravam em crescimento, grande parte dele patrocinado por investidores estrangeiros. O enorme influxo de capital na região acabou por provocar “bolhas” nos preços de certos ativos. Isto, combinado com a valorização das moedas asiáticas frente ao dólar, pouco a pouco fez com que os agentes – grandes investidores institucionais, bancos, Estados – passassem a duvidar de que seria possível permanecer nesse patamar. Assim, iniciou-se uma crise especulativa, que atingiu as economias asiáticas, notadamente a Tailândia. Houve fuga de capitais, iniciando-se uma crise sistêmica. Os governos foram obrigados a elevar as taxas de juros e a intervir no mercado cambial. Quando isso se mostrou insuficiente, a ligação com o dólar foi abandonada, o que fez com que as taxas de câmbio se desvalorizassem. Em 1998, a crise contaminaria a Rússia. Grandes bancos tinham dificuldades para honrar seus compromissos, e a taxa de câmbio em relação ao dólar, no mercado paralelo, se encontrava extremamente valorizada. Enquanto o dólar ficava mais escasso, com maior demanda dos russos pela moeda, o capital estrangeiro deixava o país. O governo tentou, em vão, conter a depreciação do rublo. A taxa de juro chegou a ser elevada ao patamar de 139,7% em setembro daquele ano42. 40 DESAI apud DESAI, 2005, op. cit., p. 100. 41 SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 81. 42 RICARDO, J. Crises Financeiras em Economias de Mercado Emergente: Origens, Ajustamento e Lições de Política. 19 dez.2003. Disponível em: <http://www.ordemeconomistas.pt/files/Concursos/JVE/jve2004_economia.pdf>. Acesso em: 18 fev 2008; PINTO, B. et al. A Crise Financeira Russa. 2005, p. 6. Disponível em: <http://129.3.20.41/ eps/if/papers/0504/0504003.pdf>. Acesso em: 18 fev 2008; MONTES e POPOV apud PINTO et al, 2005, op. cit., p. 12. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 175 A crise constituiu o estopim para o colapso do governo Yeltsin. A precária situação em que se encontravam a economia e a população tornou a situação do presidente insustentável. Em maio de 1999, ele ainda sobreviveria a mais uma tentativa de impeachment, dessa vez levada a cabo pela oposição na Duma. Ainda em agosto do mesmo ano, Yeltsin demitiu seu primeiro-ministro, Sergei Stepashin, além de todo o gabinete, nomeando o então desconhecido Vladimir Putin para o posto. Finalmente, em dezembro de 1999, Yeltsin anunciou sua renúncia e a ascensão de Vladimir Putin como presidente interino. As eleições foram marcadas para março do ano seguinte. Porém, ainda em 1999 a economia russa começaria a mostrar sinais de recuperação, apoiada nas exportações de petróleo e no rublo desvalorizado, abrindo espaço para mudanças no próximo governo. O primeiro governo Putin (2000-2004) O cenário político russo, ao fim de 1999, se apresentava, segundo Lenina Pomeranz, marcado por “ “uma mudança importante na postura da população em relação ao governo; pesquisas de opinião, realizadas por diferentes institutos especializados, indicam descontentamento com a deterioração das condições de vida, desencanto com o resultado das reformas empreendidas e com base nas quais se prometia uma melhoria de vida, vergonha e revolta diante da onda de escândalos que envolveram de muito perto o presidente Yeltsin e seus auxiliares e assessores, inclusive membros da oligarquia financeira – a chamada ‘família’ – e que, de certa forma, deterioraram a imagem do país no exterior. Como corolário, o sentimento era de cansaço e apatia à política por um lado, e o desejo de uma mão forte para ‘pôr ordem’ no país e restabelecer o orgulho nacional, por outro lado; daí a difusão do nacionalismo, que na campanha eleitoral para o Parlamento deixa de ser bandeira exclusiva da facção nacional-patriótica para impregnar os demais partidos concorrentes”43. Além desse desencanto e da falta de perspectivas, verificava-se o acirramento das tensões com os rebeldes islâmicos chechenos. Assim, em setembro de 1999 a Rússia foi vítima de atentados a bomba, que deixaram cerca de 300 mortos. Tal fato desencadeou uma dura reação por parte do governo russo, que consistiu primeiramente na destruição aérea da infraestrutura chechena, seguindo-se a invasão por terra. A reação militar russa foi bem sucedida e a popularidade do então desconhecido Putin foi às alturas. No início de dezembro de 1999 foram realizadas eleições para a Câmara Baixa, a Duma. Os candidatos estavam divididos nos seguintes partidos ou blocos: o Comunista; a Unidade, baseado em lideranças regionais e formado para apoiar o governo no parlamento; o Pátria – Toda a Rússia, encabeçado por Yevgeny Primakov e Yuri Luzhkov, e maior opositor do governo; a União das Forças de Direita, constituído por democratas radicais e liderado pelos ex-primeirosministros Yegor Gaidar e Sergei Kirienko; e os liberais-esquerdistas da Yabloko. 43 176 POMERANZ, L., 2000, p. 2. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Como se pode ver na tabela abaixo, o Partido Comunista obteve a maioria dos assentos na Duma. Porém, foi seguido de perto pela Unidade que, com a União das Forças de Direita, tinha cadeiras suficientes para fazer frente aos comunistas. Tabela 5 Fonte: POMERANZ (2000, p. 3) Também se destaca a derrota da Pátria – Toda a Rússia, o que acabou por inviabilizar a candidatura do ex-primeiro-ministro Primakov à presidência. Assim, fica claro que Putin havia começado a construir sua rede de apoio já nas eleições parlamentares, saindo do pleito como grande vencedor, o que assegurou a Yeltsin a possibilidade de renúncia sem que fosse criado um vácuo de poder. Putin demonstrou habilidade política ao articular acordos entre a Unidade e os comunistas para a indicação do presidente e do vice-presidente da Duma, bem como para a distribuição das comissões. Assim, os comunistas ficaram com a presidência, uma vice-presidência e com o maior número de cadeiras. A Unidade ficou com outra vice-presidência e seis comissões. A saída antecipada de Yeltsin, em 31 de dezembro de 1999, em meio a fortes acusações de corrupção contra ele e sua família, fez com que as eleições, antes programadas para maio do ano seguinte, fossem antecipadas para 26 de março de 2000. Isso permitiu que Putin tirasse proveito da enorme popularidade de que gozava naquele momento. Quando da saída de Yeltsin, o primeiro decreto assinado por Putin garantia imunidade ao antigo presidente da Rússia e a membros de sua família contra quaisquer acusações de corrupção. Em 2001, a lei foi revista para abranger todos os outros ex-presidentes44. 44 HESLI, V. In HESLI, V.; REISINGER, W. (org.). The 1999-2000 Elections in Russia: Their Impact and Legacy. Cambridge University Press, 2003, p. 5. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 177 O maior opositor de Putin era Gennady Zyuganov, do Partido Comunista. Também se opunham a ele Grigory Yavlinsky (Yabloko), Amangeldy Tuleyev, Vladimir Jirinowsky (PLDR) e Konstantin Titov. De acordo com Lenina Pomeranz, “Sem dúvida, o fator de destaque nas eleições realizadas na Rússia é a formidável ascensão e vitória de Vladimir Putin, já no primeiro turno. Os parcos 2% de eleitores dispostos a sufragar o seu nome para a presidência do país em agosto de 1999 elevaram-se a 58% em janeiro de 2000, dando-lhe finalmente 52,64% dos votos nas urnas, segundo as apurações realizadas em 95,5% delas”45. Putin assumiu o governo em 7 de maio de 2000. Mikhail Kasyanov, aliado de Yeltsin, foi nomeado primeiro-ministro, apesar das denúncias de seu envolvimento com corrupção. Logo após a vitória, o novo presidente mostrou sua intenção de verticalizar o poder no país, que contemplaria, entre outros: a diminuição do número de partidos de tamanho relevante, para cerca de dois ou três; e a redução do poder regional, com centralização no governo federal46. De outra parte, Putin procurou neutralizar o poder político dos oligarcas e restringir os meios de comunicação independentes, muito críticos em relação à sua maneira de governar o país, em especial quanto à condução do conflito na Chechênia47. Entre seus primeiros alvos estavam alguns dos homens mais ricos do país, tais como: Boris Berezosvky (dono da empresa de aviões Aeroflot), Vladimir Gusinsky (barão da mídia) e Mikhail Khodorkovsky (controlador da petrolífera Yukos). Dessa forma, o governo passou a acusá-los dos mais diversos crimes, a grande maioria financeiros, o que culminou na prisão de alguns e no exílio de outros48. Conforme ressaltou Lenina Pomeranz, “a técnica para fazer isso foi a utilização de elementos de natureza econômica, como a fraudação do fisco ou a existência de dívida insolvável (caso da tomada do Most Bank e do canal de TV pertencentes a Gusinsky, neste último caso utilizando a garantia de empréstimos a ele feitos pela Gazprom, e não honrados)”49. Cabe lembrar que, naquela época, não era incomum os oligarcas terem dívidas com o Estado (e pouca ou nenhuma disposição de pagá-las). Na verdade, negócios privados e públicos se misturavam. O sistema funcionava daquela maneira desde sua concepção. Para Lilia Shevtsova, a mudança de posição do Kremlin se deu pelo que Putin percebia como “traição” e como possível fonte de problemas futuros50. Do ponto de vista econômico, Putin mostrou conhecer as deficiências e os problemas da Rússia, especialmente a grande dependência 45 POMERANZ, 2000, op. cit., p. 2. HESLI, 2003, op. cit., p. 6-7. 47 POMERANZ, L. A nova Rússia: resultados da transformação sistêmica. Seminário Nº 29/2004 – FEA/USP, novembro de 2004, p. 9. Disponível em: <http://www.econ.fea.usp.br/seminarios/artigos2/ anovarussia.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008; RIORDAN, J. Entrar no jogo: pela Rússia, pelo dinheiro e pelo poder. Análise Social, 2006, nº 179, p. 477-498. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/ pdf/aso/n179/n179a08.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008. 48 POMERANZ, 2004, op. cit.. 49 Idem, p. 36. 50 SHEVTSOVA, L. Putin’s Russia. Washington, DC: Carnegie Endowment, 2003, p. 104-106 (tradução nossa). 46 178 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 das exportações de petróleo e gás e os gargalos no setor industrial, que impediam que o país passasse de exportador de matérias-primas a exportador de tecnologia e produtos de alto valor agregado. Assinale-se que, já no fim de 1999, a economia russa mostrava sinais de recuperação, o que pode ser atribuído a dois fatores principais: cotações elevadas do petróleo e do gás natural no mercado internacional e uma taxa de câmbio depreciada. Os altos preços dessas commodities fizeram com que as exportações russas desses produtos aumentassem significativamente, e os impostos arrecadados aliviaram problemas fiscais. Também o enfraquecimento do rublo ante o dólar aumentou a competitividade dos produtos russos em relação a similares estrangeiros51. Assim, entre 1999-2003, o PIB russo cresceu em média 6,5% ao ano, com taxas variando entre 4,7% e 10% (ver tabela 6). Não obstante a importância das exportações para o crescimento, cabe notar que, assim que os efeitos da crise se dissiparam, em meados de 1999, a demanda interna rapidamente substituiu a externa como principal força de expansão, como mostram os gráficos a seguir. Como se pode ver na tabela a seguir, o país mostrou considerável acúmulo de reservas em moeda estrangeira (ouro e papel-moeda), que passaram de US$ 12,2 bilhões de dólares em 1998 para US$ 97 bilhões em 2003. Até 1999, as reservas eram suficientes para cobrir cerca de 25% do total de importações. Em 2003, elas já ultrapassavam o valor das importações em 1,15 vezes. A melhora apresentada pela conta corrente é um dos fatores que possibilitaram à Rússia acumular reservas brutas em moeda estrangeira. 51 FERRARI-FILHO, F.; PAULA, L.F. Liberalização financeira e performance econômica: a experiência recente dos BRIC, 2006, p. 11. Disponível em: <http://www.corecon-rj.org.br/pdf/ced_bric_sep.pdf >. Acesso em: 18 ago 2008. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 179 Tabela 6 Fontes: CBR (2008), FMI (2008), FSSS (2008) e OECD (2008) Por outro lado, o drástico aumento das importações fez com que a contribuição das exportações líquidas para o crescimento fosse negativa ou irrelevante desde metade de 2000, como pode ser visto no Gráfico 1. Gráfico 1 Fonte: OECD (2008) 180 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Todavia, isso não quer dizer que o papel dos setores voltados para a exportação diminuiu. Pelo contrário: esses setores continuaram a ser os que mais contribuíram para o crescimento da produção industrial. O papel da produção doméstica no mercado interno vem caindo desde 1999, sendo que desde 2002 o aumento dessa demanda interna foi satisfeito por mais importações. Assim, enquanto a rápida elevação das importações fez com que a contribuição das exportações líquidas para o crescimento se tornasse negativa, o crescimento econômico provavelmente teria sido fraco, não fosse pela força das exportações. Do lado da demanda, é importante notar que o crescimento foi impulsionado pela elevação do consumo privado, que aumentou, em média, mais de 8% ao ano desde 2000. Esse consumo, por sua vez, foi apoiado pela ampliação do poder real de compra das famílias, resultante de maior renda disponível e da apreciação da taxa de câmbio. Os salários reais aumentaram 82% entre 1999 e 2003 e, neste último ano, estavam em um nível 28% mais alto do que aquele verificado antes da crise no início de 2004. Até o fim de 2003, a melhoria na produtividade era suficiente para contrabalançar os efeitos negativos das altas salariais e da taxa de câmbio na competitividade do país52. A queda nas taxas de juros também contribuiu para o crescimento do PIB, uma vez que o crédito ficou mais barato, fomentando a demanda interna. A política fiscal mais prudente foi um dos fatores que mais contribuíram para a sustentação do crescimento russo no período analisado. Os gastos do governo foram reduzidos em cerca de 10% após a crise, enquanto a relação receita/PIB permaneceu nos mesmos níveis pré-crise. A partir de 2000, os orçamentos federais foram feitos com estimativas conservadoras para os preços de petróleo. Isso fez com que os orçamentos apresentassem superávits consideráveis. Assim, caso os preços do petróleo caíssem, poderiam compensar os déficits. As receitas aumentaram em função das boas condições do comércio e do crescimento. O governo utilizou esse excedente para quitar parte da dívida, além de acumular reservas, que foram colocadas em um fundo de estabilização. Os esforços fiscais acabaram por reavivar também os investimentos privados, já que aumentaram a confiança do empresariado. A reforma fiscal permitiu simplificar a cobrança de impostos, ao mesmo tempo em que diminuiu as distorções. Certos tributos foram reduzidos, enquanto algumas bases de contribuição foram aumentadas. O sistema também procurou obter maior contribuição dos lucros dos setores de recursos naturais, especialmente de petróleo e gás. A política monetária durante o primeiro governo Putin não foi muito rígida. O intuito era a redução gradual da inflação enquanto se tentava evitar a rápida apreciação real do rublo, a fim de não limitar a competitividade do país. Assim, o CBR começou a realizar intervenções no mercado cambial. Porém, a falta de uma política concreta levou ao acúmulo de reservas e à expansão monetária. A inflação mostrou arrefecimento, tendo sido beneficiada pela apreciação real da taxa de câmbio, apesar de ainda ter permanecido em patamar elevado. O regime 52 OECD, 2007, op. cit. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 181 cambial russo foi relativamente flexível no período, com a taxa nominal sofrendo forte desvalorização, ao mesmo tempo em que a taxa real se apreciava, em função da queda da inflação. O país fazia uso do câmbio flutuante administrado, com conversibilidade parcial da conta de capital53. Assim, a economia russa, ao fim do primeiro governo de Vladimir Putin, já se mostrava totalmente recuperada da crise de 1998. Apesar de grande parte da melhora se dever a fatores externos, como o crescimento mundial generalizado e os altos preços das commodities, é inquestionável que o país foi beneficiado. De qualquer forma, no início do segundo governo de Putin, um dos maiores desafios era a redução dos riscos associados a uma economia baseada na produção e na exportação de recursos naturais, combinando-a com uma reforma estrutural das instituições. O segundo governo Putin (2004-2008) Em 14 de março de 2004 foram realizadas eleições presidenciais na Rússia, pela terceira vez desde a queda da URSS, em 1991. Assim como em 2000, a escolha do presidente ocorreu logo após a eleição da Duma, em dezembro de 2003. A configuração da Câmara Baixa sofreu grande mudança, pois a Unidade assegurou 2/3 dos assentos, impulsionada pela aliança com o presidente. A oposição, por sua vez, viu sua força drasticamente diminuída. Dessa forma, os candidatos à eleição presidencial acabaram por personificar essa fraqueza, já que eram, em sua grande maioria, desconhecidos nacionalmente e com baixo apoio da opinião pública. Em 24 de fevereiro de 2004, em mais um movimento para consolidação de seu poder em detrimento da oligarquia, Putin demitiu todo o gabinete de governo. A medida visava atingir o então primeiro-ministro, Mikhail Kasyanov, remanescente dos tempos de Yeltsin e forte aliado dos oligarcas. A Constituição não permitia a demissão do primeiro-ministro sem que todo o gabinete fosse removido. A ação acabou por incrementar a visão da população de que Putin estava totalmente comprometido com o corte de laços com a administração anterior. A grande aprovação popular se refletiu nas urnas: Putin reelegeu-se com vitória maciça e elevado índice de comparecimento às urnas. No campo econômico, o governo optou por manter as mesmas diretrizes do mandato anterior, o que implicava a manutenção de grande dependência das exportações de recursos naturais e, consequentemente, das cotações internacionais. Um cenário externo favorável combinado à continuidade do aumento da demanda interna permitiu que a economia russa seguisse apresentando taxas robustas de crescimento, como evidenciado na tabela 7. 53 182 FERRARI-FILHO e PAULA, 2006, op. cit., p. 13. Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Tabela 7 Fontes: CBR (2008), FMI (2008), FSSS (2008) e OECD (2008) A maior demanda interna se apoiou na elevação dos salários, que aumentaram 32% ao ano (14% de crescimento real) entre 2000 e 2007, e na expansão do crédito (média de crescimento anual de 47% desde 1999), que, em 2007, correspondia a cerca de 40% do PIB54. Desse modo, a questão que se levanta refere-se ao plano de ação a ser adotado para que taxas altas de crescimento possam ser obtidas no médio e no longo prazo. No caso russo, as importações consistem, em grande parte, de bens de consumo que não têm similar nacional ou não são competitivos. Como as importações tendem a crescer de acordo com a renda disponível, seria necessário que as exportações crescessem, no mínimo, na mesma velocidade55. A título de exemplo, explicita-se, na tabela a seguir, a dependência russa das exportações de petróleo, além do aumento das cotações do produto durante os dois governos 54 DORBEC, A. Overheating in Russia: towards a soft landing? Ago-set 2008, p. 3-4. Disponível em:<http://economicresearch.bnpparibas.com/applis/www/RechEco.nsf/ Conjoncture%20By%20DateEN/E72265B29D18C47EC12574CE0028AD89/$File/ C0809_A1.pdf?OpenElement>. Acesso em: 28 out 2008. 55 AHREND, R. How to Sustain Growth in a Resource Based Economy?: The Main Concepts and their Application to the Russian Case, 2006, OECD Economics Department Working Papers, No. 478, OECD Publishing. p. 20-21. Disponível em: <http://www.unece.org/ead/sem/sem2005/papers/Ahrend.pdf>. Acesso em: 14 abr 2008. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 183 de Putin. Em 2002, por exemplo, as exportações de petróleo (valor em US$ do petróleo tipo Ural) respondiam por 24% do total de exportações do país. Em 2005, já haviam elevado sua participação para 31% do total. Tabela 8 Fonte: CBR (2008) De outra parte, os fluxos de capital na Rússia aumentaram consideravelmente desde o primeiro governo de Putin, como mostra a tabela a seguir. O crescimento das entradas pode ser atribuído à liquidez global e às taxas de juros mais elevadas do que a média mundial no período. Porém, desde o início da crise no mercado hipotecário americano, na segunda metade de 2007, as entradas de capital mostraram forte desaceleração, sendo suplantadas pelas saídas em US$ 9,4 bilhões no terceiro trimestre. Tabela 9 184 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Nota: As saídas e entradas de capital foram calculadas excluindo-se o movimento de capital ilegal. O saldo considerou o movimento líquido de capital ilegal. Assim, os valores das saídas e entradas não coincidem com o do saldo líquido. Fonte: CBR (2008). Esse movimento precipitou uma elevação nas taxas de juros para pessoas jurídicas, prejudicando sobremaneira as empresas, acostumadas a se recapitalizar por meio de empréstimos a custo quase nulo. Dados do CBR mostram uma situação preocupante em relação à dívida externa privada, que vem crescendo desde 2002. No primeiro semestre de 2007, ela aumentou 31,4%, atingindo US$ 343 bilhões. Mais alarmante ainda é a participação da dívida privada na dívida externa russa, que passou de 20,9% do total em 2002 para impressionantes 89,1% em 200756. Por outro lado, assim como no primeiro mandato de Putin, a presença do Estado continuou crescendo. O aparato federal aumentou de 377 mil funcionários para 593 mil no período compreendido entre 2001 e 2005, e mais 8% em 200657. Porém, em vez de aumentar a regulação e a supervisão econômica, o crescimento do funcionalismo público parece ter servido somente para estimular ainda mais a burocracia e a corrupção. Ações arbitrárias do governo, em especial no que tange aos tributos, fizeram com que o ambiente de negócios sofresse sérios reveses. “Desde meados de 2003, a companhia de petróleo Yukos, que foi privatizada, se tornou centro de uma campanha política e legal liderada pelo Estado contra seus acionistas. (...) Investidas similares foram feitas contra outras empresas, nos planos regional e federal. Os resultados da deterioração do ambiente de negócios foram logo sentidos. Enquanto o crescimento do PIB foi de 7,1% em 2004, reduziu-se ao longo do ano, à medida que os investimentos e a extração de petróleo se desaceleraram e a fuga de capitais aumentou fortemente. Tudo isso apesar de um estímulo fiscal significativo e de melhor resultado da balança comercial”58. A presença estatal é fundamental para o crescimento econômico de um país, mas quando esta se torna muito forte, com elevado grau de burocracia, acaba por reprimir a inovação e os investimentos privados, também cruciais para o crescimento. No caso russo, a questão é ainda mais relevante em função do histórico de autoritarismo no país. É impossível que a Rússia avance sem que haja diminuição nos níveis de corrupção e maior transparência no ambiente de negócios. Outro ponto central para a economia ao fim do segundo governo de Putin diz respeito à capacidade (e interesse) do governo em articular um modelo de desenvolvimento sustentável e que seja capaz de suplantar os ciclos políticos, e não apenas se adequar a eles. 56 CBR, 2008, op. cit.. 57 FMI, 2008, op. cit.. 58 AHREND, 2006, op. cit., p. 222-23 (tradução nossa). Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 185 Balanço e perspectivas Em março de 2008, foram realizadas eleições presidenciais. O pleito foi facilmente vencido por Dmitri Medvedev, candidato do Kremlin, que obteve cerca de 70% dos votos. Porém, mais importante do que a eleição em si foi a nomeação de Vladmir Putin para o cargo de primeiro-ministro. Com os desenvolvimentos vistos até agora, o que se percebe é que Putin continua, de fato, a governar a Rússia. Dessa forma, o país tem mantido as mesmas diretrizes que deram o tom durante seus dois mandatos como presidente, especialmente no que tange à força de sua figura. Entre os fatos mais marcantes da presidência de Medvedev destacam-se a entrada do país em novo conflito militar, desta vez contra a vizinha Geórgia, e a atual crise, ao mesmo tempo sistêmica e cíclica do capitalismo, que assola o mundo. O estopim da crise ocorreu em agosto de 2007, quando o banco francês BNP Paribas congelou o saque de alguns de seus fundos que aplicavam no segmento subprime, alegando ser impossível contabilizar as perdas reais desses fundos. No início de 2008, o governo americano interveio para impedir a quebra de bancos e agências hipotecárias com problemas de liquidez, adiando uma crise que é sistêmica. Porém, em setembro, nada foi feito para impedir a quebra do banco Lehman Brothers, que acabou por levar à deflagração da crise, com a quebra de confiança no sistema59. Desde então, houve uma forte redução da liquidez nos mercados internacionais, com aversão ao risco, e instalou-se a crise de confiança, além de haver aumento das taxas interbancárias e dos spreads. Apesar de esforços conjuntos dos dirigentes das principais economias mundiais para a estabilização do sistema, este ainda se mostra bastante volátil 60. Obviamente, a Rússia não foi poupada dos efeitos da crise. De janeiro até outubro de 2008, os índices de suas duas bolsas, a Micex (denominada em rublo) e a RTS (denominada em dólar), acumularam perdas de 61,49% e 66,88%, respectivamente, tendo de ser fechadas diversas vezes devido às fortes oscilações. Os fluxos de capitais registraram saídas de US$ 18 bilhões apenas nas duas primeiras semanas de outubro. No caso da Rússia, além das incertezas no campo econômico, o conflito com a Geórgia fragilizou o país politicamente. Os russos invadiram a Geórgia após esta ter atacado a região separatista da Ossétia do Sul (oficialmente território georgiano), cuja população é, majoritariamente, de origem russa. Segundo Pomeranz, a guerra opôs, de um lado, os interesses russos e, do outro, os interesses americanos, dos quais a Geórgia é aliada. “A questão de fundo no confronto de interesses não é ideológica, tampouco tem a ver com a defesa messiânica da democracia, decantada pelos EUA de Bush. Em minha opinião, trata-se, por um lado, de uma luta pelo poder hegemônico mundial dos EUA e da manutenção 59 BELLUZZO, L.G.; ANDRADE, J.C.G.. Enriquecimento e Produção: Keynes e a Dupla Natureza do Capitalismo. In: LIMA, G. T. et al (org.). Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 255-256. 60 FARHI, M. O Futuro no presente: um estudo dos mercados de derivativos financeiros. Campinas, 1997. Tese (doutoramento). Instituto de Economia, Unicamp, p. 272. Disponível em: <http:// www.eco.unicamp.br:8888/seer/ojs/include/getdoc.php?id=213&article=163&mode=pdf>. Acesso em: 28 out 2008. 186 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 do espaço da antiga URSS como área regional de influência geopolítica da Rússia; e, por outro lado, dos esforços – especialmente europeus – de redução da dependência energética (petróleo e gás) da Rússia. Poder e petróleo são, a meu ver, as coordenadas da equação geopolítica internacional que envolve a Rússia e o Ocidente”61. Até o momento, o confronto não foi totalmente solucionado. As tropas russas iniciaram a desocupação das regiões invadidas, porém a tensão e instabilidade permanecem. Assim, as turbulências atualmente verificadas no mundo impedem que qualquer projeção seja feita em relação à economia russa e a seu papel político no futuro. Referências bibliograficas AHREND, R. How to Sustain Growth in a Resource Based Economy?: The Main Concepts and their Application to the Russian Case. OECD Economics Department Working Papers, No. 478, OECD Publishing. Disponível em: <http://www.unece.org/ead/sem/sem2005/ papers/Ahrend.pdf>. Acesso em: 14 abr 2008. BELLUZO, L.G.; ANDRADE, J.C.G. Enriquecimento e Produção: Keynes e a Dupla Natureza do Capitalismo. In: LIMA, G. T. et al (org.). Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea. Rio de Janeiro: Campus, 1999. CENTRAL BANK OF THE RUSSIAN FEDERATION (CBR). Credit Statistics, 2008. Disponível em: <http://www.cbr.ru/eng/statistics/credit_statistics/ print.asp?file=inter_res_98_e.htm>. Acesso em: 17 set 2008. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. DESAI, P. Russian retrospectives on reforms from Yeltsin to Putin. Journal of Economic Perspectives, Vol. 19, Nr. 1, 2005, p. 87-106. Disponível em: <http://www.atypon-link.com/ AEAP/doi/pdf/10.1257/0895330053147903?cookieSet=1>. Acesso em: 27 jul 2008. DORBEC, A. Overheating in Russia: towards a soft landing? Ago-set 2008. Disponível em: <http://economicresearch.bnpparibas.com/applis/www/RechEco.nsf/ Conjoncture%20By%20DateEN/E72265B29D18C47EC12574CE0028AD89/$File/ C0809_A1.pdf?OpenElement>. Acesso em: 28 out 2008. FARHI, M. O Futuro no presente: um estudo dos mercados de derivativos financeiros. Campinas, 1997. Tese (doutoramento). Instituto de Economia, Unicamp. Disponível em: <http:// w w w. e c o . u n i c a m p . b r : 8 8 8 8 / s e e r / o j s / i n c l u d e / getdoc.php?id=213&article=163&mode=pdf>. Acesso em: 28 out 2008. FEDERAL STATE STATISTICS SERVICE (FSSS). Main indicators of System of National Accounts. 2008. Disponível em: <http://www.gks.ru/bgd/free/b00_25/IssWWW.exe/ Stg/dvvp/i000331r.htm>. Acesso em: 18 ago 2008. 61 POMERANZ, L., 2008, p. 16. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 187 FERRARI-FILHO, F.; PAULA, L.F. Liberalização financeira e performance econômica: a experiência recente dos BRIC. 2006. Disponível em: <http://www.corecon-rj.org.br/pdf/ ced_bric_sep.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008. FISCHER, S. Russia and the Soviet Union Then and Now. NBER (National Bureau of Economic Research) Working Paper, Cambridge, MA, No. 4077, mai 1992. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w4077>. Acesso em: 20 fev 2008. FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL (FMI). International Financial Statistics. 2008. Disponível em: <http://www.imfstatistics.org/imf/>. Acesso em: 17 set 2008. ______. Rapidly Weakening Prospects Call for New Policy Stimulus. World Economic Outlook Update, 6 nov 2008. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2008/ update/03/pdf/1108.pdf>. Acesso em: 6 nov 2008. GREIDER, W. O mundo na corda bamba: como entender o crash global. São Paulo: Geração Editorial, 1998. GUSEV, D. Russian Presidential Elections – 96. 1996. Disponível em: <http:// www.acs.brockport.edu/~dgusev/Russian/bybio.html>. Acesso em: 13 ago 2008. HESLI, V. In: HESLI, V.; REISINGER, W. (orgs.). The 1999-2000 Elections in Russia: Their Impact and Legacy. Cambridge University Press, 2003. HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2 ed., 1995. MANDEL, E. A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista. Campinas: Ensaio/ Editora Universidade de Campinas, 1990. MENDONÇA, M.G. Impasses e desafios do processo contemporâneo de globalização. Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. Anpuh/SP – Unesp/Assis, 24-28 jul 2006. Disponível em: <http://www.anpuhsp.org.br/downloads/ C D % 2 0 X V I I I / p d f / O R D E M % 2 0 A L F A B % C 9 T I C A / Marina%20Gusm%E3o%20de%20Mendon%E7a.pdf>. Acesso em: 13 ago 2008. ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Russian Statistics. 2008. Disponível em: <http://stats.oecd.org/wbos/ viewhtml.aspx?queryname=492&querytype=view&lang=em>. Acesso em: 17 set 2008. PINTO, B. et al. A Crise Financeira Russa. 2005. Disponível em: <http://129.3.20.41/ eps/if/papers/0504/0504003.pdf>. Acesso em: 18 fev 2008. PIRES, H.F. “Ethos” e mitos do pensamento único globaltotalitário. Terra Livre, São Paulo, n. 16, p. 153-168, 1º semestre/2001. Disponível em: <http:// www.charlespennaforte.pro.br/Hindenburgo%20Pires.pdf>. Acesso em: 14 abr 2008. POMERANZ, L. A nova Rússia: resultados da transformação sistêmica. Seminário Nº 29/2004 – FEA/USP, nov 2004. Disponível em: <http://www.econ.fea.usp.br/ seminarios/artigos2/anovarussia.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008. 188 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 ______. Eleições na Rússia: O Fenômeno Putin. Sociedades em transformação, ano VI, nº 4, jun 2000. Disponível em: <http://ftp.unb.br/pub/download/ipr/rel/sociedades/2000/ 140revista.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008. ______. Questões para discussão sobre a guerra da Geórgia. Setembro de 2008. Disponível em: <http://www.fipe.org.br/publicacoes/downloads/bif/2008/9_16-18-pomer.pdf>. Acesso em: 28 out 2008. PORTER, M. A Vantagem Competitiva das Nações. Rio Janeiro: Campus, 1989. RICARDO, J. Crises Financeiras em Economias de Mercado Emergente: Origens, Ajustamento e Lições de Política. 19 dez 2003. Disponível em: <http://www.ordemeconomistas.pt/ files/Concursos/JVE/jve2004_economia.pdf>. Acesso em: 18 fev 2008. RIORDAN, J. Entrar no jogo: pela Rússia, pelo dinheiro e pelo poder. Análise Social, 2006, nº 179, p. 477-498. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/aso/ n179/n179a08.pdf >. Acesso em: 18 ago 2008. RODRIGUES, R.P. O colapso da URSS: um estudo das causas. Tese (Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo, 2006, p.228. Disponível em: <http:// www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-11072007-112541/>. Acesso em: 18 fev 2008. SEGRILLO, A. O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro: Record, 2000. ______. O Fim da URSS e a Nova Rússia: de Gorbachev ao pós-Yeltsin. Petrópolis: Vozes, 2000a. SHEVTSOVA, L. Putin’s Russia. Washington, DC: Carnegie Endowment, 2003. WALLERSTEIN, I. 2008: a globalização neoliberal passou à história. Disponível em: <http:/ /www.binghamton.edu/fbc/226pr.htm>. Acesso em: 13 ago 2008. Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189 189 Resenhas Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento econômico SACHS, I. A Terceira Margem. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ricardo Abramovay* Não é fácil explicar por que razão, num ambiente intelectual onde a recusa do dogmatismo stalinista tinha consequências que iam perigosamente além do debate de ideias, a Polônia foi tão pródiga em pensadores heterodoxos que marcaram as ciências sociais do século XX. Do historiador Witold Kula ao economista Michael Kalecki, passando por Oskar Lange, Adam Schaff e Jerzy Tepicht, os anos de ferro não abateram o vigor de um conjunto de pesquisadores que atuavam no interior mesmo dos organismos de pesquisa do Partido Comunista. Ignacy Sachs é um destes grandes nomes e sua projeção internacional tem início nos anos 70, quando ele participa da reunião de Estocolmo (a que precedeu a Conferência do Rio, sobre desenvolvimento sustentável) e, a partir daí, faz uma contribuição fundamental para o que se mostra cada vez mais como o grande tema de nossa época: qual a natureza da relação das sociedades humanas com os ecossistemas de que dependem, e como integrar ciências do homem e da sociedade, por um lado, e ciências da vida e da terra no esforço de compreender o que somos e o que fazemos. Quanto é o suficiente? É difícil imaginar questão mais importante para a civilização contemporânea do que a formulada por Gandhi em plena ocupação britânica. Não é sem razão que a Índia e Gandhi ocupam lugar central na trajetória de Ignacy Sachs, criador da expressão “ecodesenvolvimento” nos anos 70 e que acaba de publicar, ao completar 80 anos, sua autobiografia: A Terceira Margem, a ser lançada em outubro pela Companhia das Letras. Professor emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, autor de mais de 30 livros e com influência internacional marcante no estudo do desenvolvimento, Sachs tem uma história intelectual que abala o * Ricardo Abramovay é Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP e da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Pesquisador do CNPq. E-mail: <[email protected]>. 190 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 ceticismo daqueles que se habituaram a enxergar a Economia como a ciência cinzenta, segundo a qual os preços são capazes, em última análise, de sinalizar aos indivíduos as escolhas que devem fazer, daí resultando a melhor ordem social possível. No cerne da questão gandhiana está o desafio fundamental da construção do desenvolvimento sustentável: a mudança nos padrões de produção e consumo que caracterizam as sociedades contemporâneas. A decisão sobre o quanto é suficiente não decorre do puro e neutro exercício de uma racionalidade em que o indivíduo responde mecanicamente a estímulos, mas envolve, antes de tudo, questões de natureza ética. Tampouco a questão da justiça social pode ser concebida apenas a partir da ideia de que é necessário melhorar a distribuição do que existe: é fundamental alterar as próprias bases produtivas da vida social, cujas atuais repercussões sobre os recursos de que dependemos são catastróficas. Sachs foi dos primeiros a mostrar que o milagre do crescimento chinês apoiavase, na verdade, sobre fantástica concentração de renda e destruição dos recursos naturais. Dois traços fundamentais caracterizam a abordagem de Sachs e fazem dele um dos grandes pensadores de nosso tempo. Em primeiro lugar, da mesma forma que Gunnar Myrdal, Amartya Sen e Celso Furtado – com os quais conviveu e trabalhou diretamente –, Sachs não separa os fenômenos econômicos das demais esferas da vida social. Convidado recentemente a fazer uma conferência sobre ética e desenvolvimento, ele começa – grande contador de histórias que é – com a anedota do filho que pergunta ao pai: onde é o rabo da serpente? “Meu filho”, responde o pai, “a serpente nada mais é que um grande rabo”. O desenvolvimento, como bem mostra Amartya Sen, não pode ser definido senão enquanto liberdade e enquanto ética. Mas além desta atitude que recusa a separação disciplinar que marca tão fortemente a história das ciências sociais no século XX e que insere os temas éticos no âmago da vida científica, Sachs aborda o estudo das sociedades humanas sob um ângulo material e não apenas a partir da maneira como as relações entre os indivíduos se traduzem no sistema de preços. Esta materialidade da vida econômica não envolve só o reconhecimento dos interesses e dos grupos sociais: ela parte da premissa de que a economia deve ser compreendida com base no metabolismo que se estabelece entre sociedade e natureza. Daí o fato de, já no fim dos anos 1970, Sachs ter liderado um projeto para as Nações Unidas voltado ao estudo das relações entre alimentos e energia. Deste projeto resultou contribuição decisiva e original para a crescente polêmica internacional em torno dos biocombustíveis. Sachs recusa o que julga ser atitude irresponsável daqueles que consideram que os biocombustíveis representarão fatalmente a redução da produção alimentar mundial e a devastação ambiental em larga escala. É verdade, insiste ele, que a energia mais valiosa é aquela que se deixa de utilizar, que se consegue economizar. Portanto, a parcimônia no uso dos recursos (o “quanto é o suficiente?” de Gandhi) é decisiva. Reduzir o uso do automóvel individual e ampliar o alcance de modalidades alternativas de transporte é essencial. Mas isso não basta, uma vez que esta parcimônia deve ser compatibilizada com a necessidade de geração de renda para os mais pobres, por meio de atividades Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento econômico, Ricardo Abramovay, p. 190-192 191 socialmente úteis: a expansão dos biocombustíveis abre potencialmente caminho para a expansão das capacidades produtivas dos que hoje estão em situação de pobreza. Este potencial será de fato revertido em favor da emancipação das populações mais carentes ou será base para a concentração de renda? Será uma ocasião para o uso sustentável da biodiversidade ou dará lugar à destruição? As respostas a estas questões, diz Sachs, não estão dadas de antemão. A abordagem da questão gandhiana não passa, para Sachs, pela recusa do crescimento econômico, mas, antes de tudo, pelo planejamento. E neste sentido, tanto quanto a Índia, seu país natal (a Polônia) exerce sobre sua obra um papel de destaque. Sua família conseguiu fugir para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, ele terminou em São Paulo o Lycée Pasteur e, no Rio, formou-se em Economia pela Cândido Mendes enquanto trabalhava na embaixada da Polônia. Em 1954, em plena Guerra Fria, decide transferir-se com a mulher e os dois filhos para aquele país, onde aprofunda pesquisas sobre desenvolvimento, trabalha e publica com Michal Kalecki. O livro tem histórias extraordinárias tanto sobre a vida intelectual do Rio nos anos 40 como sobre o que era, na prática, o cotidiano dos responsáveis por pensar o planejamento em um país do bloco socialista. O leitor vai deliciar-se com as anedotas deste fantástico produto cultural do socialismo real que é o humor. Mas, sobretudo, o livro mostra (a partir do exemplo de uma sociedade regida supostamente por planejamento central) como a tradução da pergunta gandhiana à esfera prática é difícil. A eficiência dos organismos responsáveis pelo plano depende, é claro, de sua capacidade de acolher as aspirações populares e de contemplá-las nos limites dos recursos disponíveis. No entanto, sob um regime ditatorial, estas aspirações são expressas sempre de forma distorcida, a partir do filtro de uma representação política opaca e viciada. Os grandes objetivos éticos do planejamento pulverizam-se na maneira como se organiza o poder para levá-los supostamente adiante. Optar pela liberdade de mercado como solução a este drama – e por aí reduzir a dimensão ética da escolha social simplesmente àquilo que fazem os indivíduos – é consagrar a desigualdade e abrir espaço para a devastação. A terceira margem (La troisième rive) – alusão ao conto de Guimarães Rosa – exprime a convicção de que é possível uma solução para este dilema que não se reduza a um sincretismo insosso. Mas o subtítulo da autobiografia de Ignacy Sachs mostra que esta terceira margem ainda não está desenhada e que estamos todos “à procura do ecodesenvolvimento”. 192 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado gerido como bem familiar VÉLEZ RODRIGUEZ, R. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado gerido como bem familiar. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, Instituto Liberal, 2008, 263 p. Luiz Alberto Machado* “A liberdade não é um conceito nem uma crença. A liberdade não se define: se exerce. É uma aposta. A prova da liberdade não é filosófica, mas existencial: há liberdade toda vez que encontramos um homem livre, toda vez que o homem atreve-se a dizer não ao poder. Não nascemos livres: a liberdade é uma conquista e, ainda mais: uma invenção.” Octavio Paz Poucas pessoas dedicaram-se com tanto afinco à questão do patrimonialismo, entendido como um desvio comportamental caracterizado pela confusão entre o patrimônio público e o particular, como o professor Ricardo Vélez-Rodríguez. Atualmente radicado na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde é professor adjunto do Departamento de Filosofia e coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas Paulino Soares de Sousa, Ricardo Vélez revela em seus escritos uma riquíssima formação intelectual, na qual despontam, a meu juízo, três importantíssimas influências: Max Weber, Alexis de Tocqueville e Oliveira Vianna. * Luiz Alberto Machado é professor titular de História do Pensamento Econômico e vice-diretor da Faculdade de Economia da FAAP. E-mail: <[email protected]>. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197 193 O livro objeto desta resenha é, de certa forma, produto do trabalho que ele vem realizando no Centro de Pesquisas Estratégicas, dando continuidade à conferência Sociedade, Mercado e Desenvolvimento na América Latina, proferida num dos famosos “Encontros de Cascais”, na Universidade Católica Portuguesa, organizados pelo professor João Carlos Espada. Como o próprio Ricardo Vélez afirma na conclusão da introdução, Esta obra é fruto, principalmente, da reflexão que, da minha parte, acompanhou o desenrolar dos Seminários realizados no Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da UFJF. O meu trabalho beneficiou-se, portanto, do diálogo acadêmico com os meus alunos. Sem esse confronto de ideias, muito provavelmente este livro não teria sido possível. A eles, portanto, os meus agradecimentos. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana, que tem o sugestivo subtítulo O Estado gerido como bem familiar, porém, reúne um conteúdo que reflete um envolvimento muito mais antigo do autor com o tema, uma vez que essa relação teve origem em 1979, quando, logo após sua chegada ao Brasil, foi contratado como pesquisador de Centro de Estudos do Desenvolvimento, departamento do Convívio – Sociedade Brasileira de Cultura, que realizava cursos e seminários para alunos e professores em todo o território nacional. A análise iniciada no Convívio teve continuidade nos diferentes locais em que Ricardo Vélez, que se naturalizou brasileiro em 1997, atuou ao longo desse tempo, entre os quais a Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro; o Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, em Paris, onde realizou pesquisas de pós-doutorado de 1994 a 1996; e, mais recentemente, a UFJF. Com tal envolvimento com a questão do patrimonialismo, Ricardo Vélez conseguiu em A análise do patrimonialismo através da literatura latinoamericana transformar um tema árido num texto de leitura agradável, daqueles que não dá vontade de parar de ler. Para tanto, selecionou algumas obras que são verdadeiros clássicos da literatura latino-americana, região que tem sido historicamente pródiga em exemplos de governantes que administram a “coisa pública” como se ela fosse parte do patrimônio particular, numa evidente confusão entre o público e o privado. A seleção de craques convocada por Ricardo Vélez começa com seu conterrâneo Gabriel García Márquez, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Dele, Ricardo Vélez escolheu o livro O outono do patriarca, inspirado na ditadura do venezuelano Juan Vicente Gómez, que governou seu país com mão de ferro de 1908 a 1935. Desta primeira obra, vale reproduzir o trecho citado na quarta capa do livro: O general transformou-se, no seu longo ciclo à frente do poder, no maior latifundiário da Venezuela, abrigou a inúmeros familiares seus, pôs todo o seu empenho em destruir quaisquer concorrentes, utilizando os meios mais brutais, inviabilizou de modo sistemático o papel da imprensa livre e fez girar a próspera economia da exploração petrolífera ao redor de sua figura. 194 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Numa evidente prova da atualidade da atualidade deste livro escrito por Garcia Márquez em 1975, não há como deixar de associar o trecho à experiência do presidente Hugo Chávez (seguida de perto pelos presidentes Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador), sob a nebulosa bandeira da “república bolivariana”. O próximo craque escalado por Ricardo Vélez é o argentino Domingo Faustino Sarmiento, de quem foi escolhido o ensaio Facundo – Civilização e barbárie no pampa argentino. O trecho que se segue espelha bem o caráter patrimonialista de diversos caudilhos que exerceram o poder na Argentina: ... o avanço do caudilho sobre os bens dos cidadãos, até se converter em estancieiro de estancieiros, graças a um confisco com o nome de dízimo, imposto sobre o gado que era simplesmente marcado com seu nome. Do Brasil, Ricardo Vélez convocou dois craques, Amaro Juvenal e Érico Veríssimo. Do primeiro elegeu a obra intitulada Antônio Chimango – Poemeto campestre, escrita em forma de sátira campestre, a fim de mostrar como a ditadura castilhista, no início do século XX, era, no Rio Grande do Sul, uma modalidade de poder patrimonial. Amaro Juvenal é, na verdade, o pseudônimo sob o qual Ramiro Fortes de Barcelos escreveu esta deliciosa sátira sobre o autoritarismo sul-rio-grandense do começo do século XX. Ricardo Vélez destaca que “um dos valores fundamentais do poemeto campestre de Ramiro Barcelos, enquanto obra de arte literária, consiste em recriar belamente os traços marcantes da cultura patrimonialista na sociedade gaúcha”. Este mesmo aspecto, magistralmente descrito por Érico Veríssimo na tríade que é considerada sua obra magna, O tempo e o vento, é claramente ilustrada pelo seguinte trecho: O estado patrimonial prima pela sua incompetência, o que depende dele não funciona. Se os fenômenos naturais fossem da alçada da pachorrenta burocracia, haveria uma transformação no estado do tempo. O quinto e último craque escalado por Ricardo Vélez é o mexicano Octavio Paz, do qual foi escolhida a obra O ogro filantrópico. Logo de início, Ricardo Vélez descreve qual deve ser, na opinião do autor mexicano, o papel do escritor no mundo atual. A esse respeito, afirma: O trabalho do escritor era pensado por Octavio Paz na trilha da conquista da liberdade, que constitui, fundamentalmente, uma escolha que brota do fundo do espírito humano e que se torna realidade concreta no exercício da própria identidade, na prática da memória histórica. Lembrando Karl Jaspers (18831969), poderíamos afirmar: “se saíssemos da História, tombaríamos no nada”. Não ter consciência da própria história é não existir. Mas, para encontrar o caminho da própria história, a condição sine qua non é a opção pela liberdade. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197 195 Verdadeira profissão de fé liberal, que tornou Octavio Paz um escritor definitivamente incômodo para os dogmáticos de todos os matizes, notadamente para os marxistas. Na sequência, Ricardo Vélez destaca a crença do escritor mexicano de que o Estado, tanto no México quanto no resto da América Latina, tinha se consolidado como uma instituição de tipo patrimonialista. O trecho reproduzido na quarta capa ilustra bem essa crença: “Do ângulo de persistência do patrimonialismo, é fácil de entender este fenômeno (da corrupção). Em todas as cortes imperiais durante os séculos XVII e XVIII eram vendidos os empregos públicos e havia tráfico de influência e favores”. Para explicar esse caráter patrimonialista do Estado na América Latina, Ricardo Vélez enfatiza a diferença apontada por Octavio Paz entre duas tradições religiosas, a reformista e a contrarreformista. Nos países da América em que vingou a Reforma Protestante, consolidou-se o tipo de Estado contratualista, ao passo que nos países em que vingou a Contrarreforma prevaleceu o Estado patrimonial. A esse respeito, Paz escreve o seguinte: As comunidades religiosas de Nova Inglaterra firmaram ciosamente, desde o seu nascimento, a sua autonomia perante o Estado. Inspirados no exemplo das igrejas cristãs dos primeiros séculos, estes grupos foram sempre hostis à tradição autoritária e burocrática da Igreja Católica. Desde Constantino, o cristianismo tinha vivido em simbiose com o poder político; durante mais de mil anos, o modelo da Igreja tinha sido o Império cesáreo-burocrático de Roma e Bizâncio. A Reforma foi o rompimento desta tradição. Por sua vez, as comunidades religiosas da Nova Inglaterra levaram essa ruptura às suas últimas consequências, enfatizando os traços igualitários e a tendência ao autogoverno dos grupos protestantes dos Países Baixos. Em contraste, continua Octavio Paz, Na Nova Espanha, a Igreja foi, ante tudo, uma hierarquia e uma administração, ou seja, uma burocracia de clérigos que lembra, em alguns de seus aspectos, a instituição dos mandarins do antigo império chinês. Daí a admiração dos jesuítas, no século XVII, em face do regime K’ang-hsi, no qual viram realizada, por fim, a sua ideia do que poderia ser uma sociedade hierárquica e harmoniosa. Uma sociedade estável mas não estática, como um relógio que, embora sempre marche, dá sempre as mesmas horas. Nas colônias inglesas, a igreja não foi uma hierarquia de clérigos donos do saber, mas a livre comunidade dos fiéis. A igreja foi plural e esteve, desde o início, constituída por uma rede de associações de crentes, verdadeira prefiguração da sociedade política da democracia. Enfim, o que se depreende da leitura do livro A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana é que na história política do Brasil, da Argentina, do México e da Venezuela não existe muita diferença. Prevalece o 196 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 princípio básico da economia patrimonialista, segundo Ricardo Vélez: “privatização dos lucros, socialização dos prejuízos”. Em todos os casos – e em outros não citados por Ricardo Vélez – trata-se de Estados mais fortes do que a sociedade. Como observa Rodrigo Constantino, na ótima resenha elaborada para a revista Banco de Ideias (Ano XII, n. 45, dez/jan/fev 08/09, p. 26): O aparato burocrático passa a controlar o aparelho estatal, normalmente girando em torno de uma figura central. A privatização do Estado ocorre através das práticas de nepotismo e clientelismo, e as leis deixam de ser impessoais, passando a representar um braço dos privilégios da “grande família”. Como qualquer obra dessa natureza – uma espécie de antologia que faz uma seleção de determinadas coisas –, não é possível contemplar todos os livros que versam sobre o tema. Dessa forma, é natural que algumas pessoas reclamem do critério de seleção pela inclusão de alguma obra e/ou exclusão de outra. Se fosse eu o autor, por exemplo, jamais deixaria de fora o livro A festa do bode (São Paulo: Arx, 2001), excepcional romance de Mario Vargas Llosa sobre a ditadura de Trujillo na República Dominicana. Trata-se, no entanto, de uma opinião de cunho absolutamente pessoal, muito pouco para empanar o brilho de mais esta grande contribuição de Ricardo Vélez para a compreensão do caráter patrimonialista do Estado no Brasil e em boa parte da América Latina. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197 197 Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro PETERSON, R. Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro. Rio de Janeiro: Campus, 2008, 214 p. Manuel Nunes* A Teoria Econômica desenvolveu todo um arcabouço para explicar a atividade econômica em termos racionais. Tal conjectura pressupõe o Homo economicus, ou seja, o agente econômico dotado de comportamento racional com vistas à maximização da utilidade esperada, dispondo de completo conhecimento e domínio das informações disponíveis. A partir destas hipóteses elementares foram construídas a Teoria das Expectativas Racionais e a Hipótese dos Mercados Eficientes, em que os mercados são eficientes e os preços das ações refletem o valor intrínseco dos ativos. Tais premissas idealizam o melhor dos mundos em que a atividade econômica se autorregula, sem a ocorrência de bolhas financeiras e “estouros da manada” de investidores desnorteados pela volatilidade do mercado financeiro. Não obstante, de longa data, os fatos históricos desmentem categoricamente tais hipóteses. Bastaria citar para tanto a crise de 1929 e os percalços econômico-financeiros da atualidade. A partir das contradições constatadas, surgiram modelos mais condizentes com o comportamento humano e as decorrências de tal procedimento. Os novos modelos estão sendo desenvolvidos por ciências afins à Teoria Econômica, entre as quais a Psicologia Econômica, as Finanças Comportamentais e, especificamente, a Neuroeconomia e as Neurofinanças. Observe-se que tais incursões paralelas à ortodoxia econômica estão sendo ratificadas por estudos econômicos. É o caso, por exemplo, das pesquisas de Daniel Kahneman e de Vernon L. Smith, prêmios Nobel de Economia de 2002, que mostram que as pessoas não agem como preveem as teorias econômicas. Neste sentido, Georg Cooper (em The origin of financial crisis – central banks credit bubbles and the efficiente market falacy. Petersfield: Harriman, 2008, p. vii) assevera que “o * Manuel Nunes é economista com mestrado em Administração e professor de Finanças da FAAP. E-mail: <[email protected]>. 198 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 sistema financeiro não se comporta de acordo com as leis da Hipótese do Mercado Eficiente conforme estabelecido pelos preceitos em voga da teoria econômica prevalecente”. Desvendando a mente do investidor é uma obra inserida neste contexto, o de encontrar novas perspectivas e explanações para a atuação do investidor à luz da Neurociência. Para ilustrar a proposição, inicialmente, o autor serve-se de três histórias singulares, porém antológicas, da relevância da abordagem que propõe e que poderiam ser sintetizadas na seguinte questão: qual é a relação existente entre Sir Isaac Newton, Mark Twain, Myron S. Scholes e Robert C. Merton? À primeira vista nenhuma, dada a disparidade histórica e ocupacional de cada personagem. O primeiro deles, genial matemático e físico inglês do século XVIII; o segundo, reputado escritor americano do século XIX; e os dois últimos, notáveis economistas, especialistas em modelos matemáticos financeiros. Aliás, pelo desenvolvimento do modelo de precificação de opções, realizado em colaboração com Fischer Black, Scholes e Merton ganharam o Nobel de Economia em 1997. Portanto, de Newton a Merton, trata-se de intelectuais de primeira grandeza. Contudo, o traço de união entre eles, além do intelecto privilegiado, foi o insucesso financeiro decorrente de tomadas de decisões incorretas, originadas por vieses psicológicos. Depois de realizar lucro substancial, Newton perdeu praticamente toda a sua fortuna ao reinvestir maciçamente nas ações da South Seas Trading Company movido por medo de perder ganhos potenciais quando o mercado já despencava fragorosamente. Mark Twain, por sua vez, foi vítima da “febre da prata”, ao se aposentar nababescamente com base na exuberância da cotação das ações das minas de prata de Nevada. Subitamente, a prata perdeu o atrativo, dando-se a débâcle das ações. Mente criativa, o escritor não se deu conta, porém, do revés do mercado, agarrando-se às suas posições, e acabou por quebrar financeiramente. O caso envolvendo Scholes e Merton foi ainda mais peculiar. Economistas de escol, reverenciados pelo mundo acadêmico e financeiro, participaram ativamente da gestão do Long Term Capital Management (LTCM). O fundo nasceu exuberante, com reputação de inquebrável, fundamentada nos modelos matemáticos da determinação das decisões mais lucrativas, lastreadas nos valores corretos das ações. Os lucros iniciais foram portentosos, parecendo confirmar os modelos matemáticos. Porém, com o passar do tempo, os gestores do fundo, na ânsia de maiores ganhos, foram se tornando cada vez mais afoitos, assumindo riscos cada vez maiores. Em pouco tempo, verificou-se a insolvência do LTCM, tecnicamente motivada por alavancagem excessiva em posições sem liquidez. Não obstante, a despeito das implicações técnicas, por trás do colapso financeiro encontram-se também fatores comportamentais, caracterizados pela extrema arrogância e ganância dos gestores. Faz-se necessária, portanto, a inserção de variáveis comportamentais para a compreensão da atuação do investidor e, por decorrência, com os devidos parâmetros, do próprio funcionamento do mercado. Prosseguindo, o autor elabora sobre a Neurociência, a qual parte do princípio de que atributos comportamentais governam a razão dos investidores na aplicação Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro, Manuel Nunes, p. 198-201 199 de recursos financeiros sujeita a risco, sobrepondo-se frequentemente aos fatores econômico-financeiros. Tais atitudes tornam-se mais flagrantes na exuberância e no colapso das bolhas financeiras. Comumente, observa-se o desprezo do risco pelos investidores na expansão do mercado; enquanto na baixa, em contrapartida, agarram-se frequentemente a posições perdedoras, vindo a sofrer perdas irreparáveis pela inaplicabilidade da inteligência emocional. Tais pressupostos estão amplamente estabelecidos nas pesquisas realizadas nos laboratórios de Neurociência sobre o comportamento dos investidores. Ao novo ramo científico do estudo comportamental financeiro dá-se o nome de “Neurofinanças”, baseado nos estudos neurais sobre os processos de tomada de decisão financeira. Para tanto, são mesclados preceitos de Psicologia, Finanças, Economia e Neurociência. O cérebro humano é um órgão extremamente complexo e especializado. Grosso modo, está estruturado em três grandes centros anatômicos, cada um deles encarregado de importantes funções cognitivas. O primeiro é o córtex, o centro da lógica. Comanda as funções de execução e de controle mental. Cabe-lhe o processamento do pensamento abstrato, capacidade operacional e tomada de decisão; o segundo é o sistema límbico, centro das emoções; e o terceiro é o cérebro mediano, também conhecido por “cérebro reptiliano”. Funcionalmente, é responsável pelo processamento fisiológico. Da interação entre os inúmeros impulsos eletrobioquímicos destes centros advém a atividade mental. Porém, esta não se reduz ao hardware cerebral. Deve-se acrescentar o software. Para que a atividade mental possa ser interpretada apropriadamente, há a necessidade de inserir na equação, entre outras, a percepção, as crenças, as expectativas, a intuição e a personalidade de cada indivíduo. Consequentemente, a atividade mental é condicionada por inumeráveis fatores psicológicos, manifestos no comportamento individual e, particularmente, no processo decisório do investidor. Medo, euforia, ganância e outros estados mentais compõem os vieses subjetivos que predispõem a atuação do investidor na busca pela recompensa ou na aversão à perda. A assunção de riscos ou a inércia operacional na tomada de decisão estão intimamente associadas à inteligência emocional, que é condicionada pelo córtex pré-frontal em consonância com as conexões do sistema límbico. A atuação no mercado com vistas à melhoria da rentabilidade dos investimentos é condicionada, de um lado, pelo domínio das técnicas e dos preceitos financeiros; do outro, pela inteligência emocional do investidor. “Sun Tzu escreveu: se você se conhece e ao inimigo, não precisa temer o resultado de uma centena de combates” (CLAVEL, J. A arte da guerra – Sun Tzu. 6 ed. Rio de Janeiro, 1983, p. 9). No mercado financeiro a máxima também prevalece. O autoconhecimento, a autodisciplina e a administração das emoções são fatores imprescindíveis para a correta percepção do mercado e para a utilização condizente das técnicas financeiras com vistas à obtenção dos resultados almejados. Richard L. Peterson, o autor da obra, é formado em Engenharia Eletrônica, e obteve com honras o doutorado em Medicina. Completou sua residência em 200 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Psiquiatria em 2004, quando se envolveu em pesquisas de pós-doutorado na Stanford University. O autor tem vasta experiência profissional em Neurociências, tendo desenvolvido intensa atividade de pesquisa e de produção científica sobre Economia, Finanças, Psicologia e Neurociência. Seu interesse específico está centrado no papel da emoção na tomada de decisões de investimento, especificamente as anomalias de base neural nos mercados financeiros. A concepção do livro está voltada para assegurar as proposições desenvolvidas pelo autor. Para esse fim, serve-se de ampla pesquisa embasada em sólida metodologia científica. O texto foi centrado em vários aspectos temáticos, a partir do encadeamento de inúmeros capítulos. Nesta amplitude, inicialmente, desvenda o psiquismo e as bases neurofisiológicas e químicas cerebrais. Em seguida, trata da personalidade, do processo comportamental e das consequências sobre a atividade financeira, sem se esquecer dos vieses e das idiossincrasias pessoais. Finalmente, condizente com os preceitos da inteligência emocional, prescreve o comportamento que o investidor deve desenvolver para atuar adequadamente no mercado financeiro. Tudo isto vem recheado de inúmeras particularidades e aspectos relevantes. O texto, redigido numa linguagem clara e precisa, sem deixar de ser interessante, destina-se ao grande público. É, portanto, uma obra acessível a todos aqueles que se interessem pelo assunto. Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro, Manuel Nunes, p. 198-201 201 Redefinindo estratégia global GHEMAWAT, P. Redefinindo estratégia global: cruzando fronteiras em um mundo de diferenças que ainda importam. Porto Alegre: Bookman, 2008, 272 p. Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta* Controvérsias à parte, o processo de globalização se apresenta, indubitavelmente, como um dos objetos de estudo mais explorados da atualidade, tanto no que diz respeito à sua gênese e compreensão conceitual quanto a seus efeitos e consequências. Assim, na tentativa de minimizar os exageros mais comuns que abarcam a matéria, Pankaj Ghemawat – professor de Estratégia Global na Iese Business School e de Administração na Harvard Business School – procura traçar, em recente publicação, um paralelo relativo à competitividade internacional entre as transformações globais dos últimos anos e a realidade corporativa. Do ponto de vista metodológico, o autor classifica sua obra como acessível, relevante no processo de tomada de decisão e rigorosa, uma vez que abrange campos de conhecimento reconhecidos e fontes de pesquisa confiáveis. Ghemawat apresenta visões estratégicas para aqueles que procuram o sucesso frente à nova ordem global, entendida não como a utopia do “mundo sem fronteiras”, mas como um sistema complexo, em que é imprescindível reconhecer e lidar com o significado das peculiaridades. Deste modo, no primeiro momento de sua obra busca esclarecer, antes de tudo, sua leitura concernente às mudanças no cenário internacional. Para o autor está claro que não há como assumir o mundo globalizado como um sistema uniformemente padronizado, mas como um arranjo de particularidades, um sistema imperfeito e desigual, em que, apesar da homogeneidade aparente, as disparidades são cada vez mais significativas. Neste sentido, o trabalho de Ghemawat se opõe à visão daqueles que classifica como “apocalípticos” da globalização e – dialogando com a teoria de Frances Cairncross sobre a possível “morte da distância” e com os consagrados “Fim da História” (em referência à teoria de Francis Fukuyama) e “Choque das Civilizações” (de Samuel Huntington) – considera que, a despeito dos * Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos é Economista, Doutor em História Econômica e Professor nanda Magnotta é aluna do curso de Relações Titular Doutor da FAAP. E-mail: <[email protected]>. Fer Fernanda Internacionais e Monitora de Economia Brasileira II na Faculdade de Economia da FAAP. E-mail: <[email protected]>. 202 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 avanços tecnológicos e das transformações políticas, a integração ainda encontra consideráveis limitações, de modo que a preponderância do Estado-nação ainda se vê preservada. Devidamente instituídas estas orientações preliminares, o autor traça a relação entre as demandas deste novo e complexo cenário e a prática das organizações. Neste âmbito fica reiterada a necessidade de se rever as abordagens em termos de estratégias a ser adotadas no processo de internacionalização das empresas, criticando-se políticas ultrapassadas que fomentam a manutenção da ideia de estratégia global como elemento para um mundo integrado e baseado na padronização internacional. Em face desta constatação, portanto, Ghemawat propõe uma série de conceitos em prol de um novo formato de abordagem estratégica em nível global. Para ele, a primeira lição rumo à nova agenda de gestão empresarial reside em assimilar a relevância do quesito “diferenças” frente ao mundo globalizado para, em seguida, aplicar mais precisamente algumas técnicas e práticas como o Cage, o Adding e o AAA. “Cage” corresponde à sigla do modelo que considera fundamental levar em conta, no processo de tomada de decisões, aspectos culturais, administrativopolíticos, geográficos e econômicos dos mercados alvo. A estrutura possibilita, assim, a identificação de fraquezas, oportunidades, forças e eventuais ameaças por parte das organizações, em sua tentativa de atuar com sucesso em diversas partes do planeta. Através do relato de casos grandiosos, o autor indica que o sucesso da estrutura Cage reside de forma mais precisa em termos setoriais, em detrimento de quaisquer planos intersetoriais. Imerso nesta discussão, menciona ainda a teoria dos “modelos de gravidade”, que relaciona a interação entre os diferentes atores com o tamanho de suas economias e sua localização. A seguir, propõe uma “análise de países” que, trocando em miúdos, traz à tona os tipos de cuidados que as empresas devem considerar antes de decidir estabelecer-se em um novo país. Nesse sentido, o autor deixa claro que não se pode abordar os elementos constitutivos do sistema Cage de maneira autônoma, já que geralmente eles interagem e se mesclam entre si. Na mesma medida, porém, é importante deter a capacidade de diferenciar e entender que as bases de cada um podem apresentar adversidades e, como consequência, desafios e oportunidades distintas. Feitas estas primeiras considerações conceituais, o autor propõe a aplicação de uma segunda técnica que denomina “Adding”, abordagem que atrela o sucesso competitivo à aplicação da noção de valor agregado sustentável. Nesse sentido, Ghemawat revela a importância de refletir sobre a possível transformação do ambiente, tentar prever/antecipar o comportamento dos demais atores, ponderar sobre até que ponto pode haver “imitações” e, finalmente, conjeturar a respeito das consequências das diversas ações, num processo quase caracterizado pela percepção de ação-reação. Aprofundando e traduzindo em miúdos o conceito de Adding, alguns componentes podem ser destacados, como 1) agregação de volume ou crescimento: a globalização representaria a busca por novos mercados frente à escassez de espaço em seu país de origem; 2) diminuição de custos: elemento essencial no processo de internacionalização de qualquer Redefinindo estratégia global, Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta, p. 202-206 203 empresa; 3) diferenciação ou aumento para pagar: a análise desse componente de valor prevê a necessidade de estratégias específicas para cada realidade. Em outras palavras, não é possível assegurar que o planejamento desenvolvido para um país obterá o mesmo sucesso em outro lugar; 4) incremento da atratividade do setor: Ghemawat destaca a necessidade de observância às diferenças internacionais na lucratividade do setor, bem como entendimento da concentração, mudanças na estrutura, aumento ou redução do grau de rivalidade e efeitos das ações sobre os custos dos rivais, além de atentar para a questão das restrições legais ou não-relacionadas ao mercado e à ética, além da capacidade de mensurar e gerenciar riscos. Na sequência, uma terceira vertente conceitual se apresenta e traz à tona o conceito do tripé AAA, questão que se estende por diversos capítulos de sua obra. O primeiro A evoca a noção de “adaptação”, entendida neste contexto como a necessidade de adequação às diferenças por parte das empresas com base em uma estratégia que procure compreender as disparidades entre as nações não como simples obstáculos a serem sobrepujados, mas principalmente como importantes vetores de análise durante o processo decisório de internacionalização dos negócios nos termos já tratados anteriormente. O autor considera que a gestão mais adequada frente a um mundo de “transposição de fronteiras” se dá em torno da diversificação e ampliação do portfólio de produtos. Assim, à sua luz, os pensamentos já mencionados de que os consumidores no mundo detêm gostos e preferências traduzidos em hábitos de consumo semelhantes de modo que, em última instância, seja possível produzir um produto único que atendesse de maneira satisfatória as demandas provenientes das diferentes partes do globo, mostram-se completamente insustentáveis. O segundo A, por sua vez, aborda a “agregação” como estratégia para superar as diferenças e garantir o sucesso das empresas durante seu processo de internacionalização. Como agregação, o autor entende a aglomeração de instrumentos capazes de gerar economias de escala. Neste sentido, o termo implica em desenvolver formas de interação entre os países mais vantajosas, usufruindo de eventuais semelhanças, ainda que considere as peculiaridades devidas conforme já mencionado. Neste contexto Ghemawat reserva parte do debate à questão das estratégias regionais. Para finalizar a abordagem da estratégia AAA, Ghemawat versa sobre a questão da “arbitragem”, conceito que pode ser compreendido como maneira de usufruir de economias absolutas e de escala relacionadas a diferenças, tratandoas não como fatores limitantes, mas como oportunidades. Neste sentido é que são retomadas as estruturas do modelo Cage, dando-se margem para que a questão das diferenças intrínsecas aos países sirva como fundamento estratégico no tipo de arbitragem a se desenvolver, sendo possível optar-se, portanto, por arbitragem cultural, administrativa, geográfica ou, ainda, econômica. A arbitragem cultural é a busca por associação dos países que apresentem proximidade neste particular, o que implicaria numa maior homogeneidade do uso de instrumentos de propagação mercadológica na promoção de bens ou serviços. Com relação ao 204 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 segundo tipo de arbitragem, o argumento do autor reside em como as corporações podem se beneficiar de vantagens fiscais e institucionais dos demais países, tangenciando até mesmo o tema dos “paraísos fiscais”, além de destacar a questão do poder, uma vez que empresas podem usufruir das capacidades desenvolvidas por seus governos no âmbito internacional para pressionar terceiros, buscando tratamentos favoráveis para sua atuação em determinados mercados. Em seguida, a arbitragem geográfica é entendida a partir da aparente queda de custos no âmbito dos transportes e da telefonia, o que estaria atuando como força motriz na “dissolução de fronteiras”. Por último, o autor fala sobre o aspecto econômico, destacando os custos dos fatores produtivos, especialmente trabalho e capital, bem como outros insumos e produtos complementares. Dessa forma, afirma que o viés mais comum por que se revela esse tipo de arbitragem se dá através da exportação de mão-de-obra barata para produções que atuem pelo modelo trabalho-intensivo. Apresentado o mecanismo AAA completo, portanto, o autor esclarece que mais eficaz do que perseguir os três As de uma só vez é que a empresa tenha claro um foco, um dos três As que especificamente possa representar o que chama de sua “base de vantagem comparativa internacional”. De toda forma, é importante ressaltar que o tripé proposto por Ghemawat requer, a despeito de sua implementação, políticas detalhadas de coordenação e controle, de modo que, embora ainda não haja uma estratégia única e comprovadamente eficiente para atuar em tempos de globalização, este mecanismo pode levar ao sucesso quando aplicado com rigor. Apresentadas as linhas gerais de sua proposta teórica e pragmática para a gestão eficiente das organizações, o autor encerra sua argumentação. As considerações finais podem ser divididas em três principais pontos: as previsões relacionadas aos desafios a serem enfrentados pela globalização; a apresentação de sugestões para a melhora dos caminhos rumo ao futuro; e, por fim, a proposta de uma estrutura de cinco passos para, de acordo com suas palavras, “começar a fazer uma auditoria na estratégia global das próprias empresas”. Com relação ao primeiro ponto, fica ressaltada a dificuldade em se pensar que as diferenças serão desprezadas no futuro, além de o autor defender a noção de que a semiglobalização identificada por ele na atualidade deve estender-se por diversas décadas. Em seguida, o autor sugere que, para melhorar as tendências futuras, é importante que o administrador seja capaz de: 1) antecipar turbulências e desvios mesmo que ele realmente acredite que o mundo se tornará mais integrado; 2) prestar atenção a outras surpresas previsíveis; 3) aumentar a capacidade preditiva trazendo as coisas para o nível de setor da economia e para o nível da empresa; 4) reconhecer a importância da atividade empresarial na definição de cenários amplos, incluindo os relacionados ao futuro da globalização; e 5) não deixar que um foco no futuro bloqueie a reflexão do aqui agora. (p. 231-234) Redefinindo estratégia global, Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta, p. 202-206 205 Por fim, os cinco passos sugeridos por Ghemawat visam sintetizar o que foi apresentado no decorrer de toda a sua obra e, então, de forma didática, demonstrar como as concepções desenvolvidas neste livro podem, de fato, contribuir para elaborar estratégias globais mais eficientes. Deste modo, o passoa-passo sugerido por ele se segue: 1) valiação de desempenho da organização; 2) análise do setor e análise competitiva; 3) análise das diferenças através da estrutura de distâncias Cage; 4) desenvolvimento de opções estratégicas via estratégias AAA; e 5) avaliação: diagnostico Adding. Enfim, a obra de Pankaj Ghemawat proporciona uma visão pragmática da realidade, pouco imersa nos exageros mais comuns ou em abordagens muitas vezes ultrapassadas. Ao leitor atento, o obser var com responsabilidade e comprometimento das propostas do autor pode proporcionar o direcionamento dos processos de tomada de decisão e a mitigação de eventuais riscos que se apresentem, de modo que torna possível às empresas estarem aptas a atuar de forma mais competitiva e sustentável no cenário internacional complexo que se estabelece mais ferozmente dia após dia. 206 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009 Orientação para Colaboradores 1. Foco da Revista A Revista de Economia e Relações Internacionais publica artigos inéditos nessas duas áreas, em português, espanhol ou inglês, de autores brasileiros e do exterior. Excepcionalmente, publica também artigos não inéditos, mas ainda não divulgados em português ou espanhol, e que a Revista considere importantes para publicação nessas línguas, modificados ou não, conforme avaliação dos Editores ou de membros do Conselho Editorial. Os artigos devem vir de especialistas nessas duas áreas, mas escritos de forma acessível ao público em geral. 2. Formato dos Originais Os textos devem ser submetidos na forma de arquivo eletrônico, em CD-Rom ou por e-mail, no programa Word, em fonte Times New Roman, 12 pontos, e com as tabelas e gráficos no mesmo formato ou em Excel. Incluindo tabelas, gráficos e referências, cada artigo deve ter de 15 a 20 páginas tamanho carta, com espaço 1,5 entre linhas, entre 5 mil e 7 mil palavras ou 30 mil a 40 mil caracteres, inclusive espaços. Tabelas e gráficos não preparados originalmente pelo autor e retirados de outras fontes não poderão ser colados no artigo na forma de figuras. Precisarão ser refeitos no formato citado, e sempre escritos no mesmo idioma do texto em que estarão inseridos. As notas, na mesma fonte, em 10 pontos, devem ser colocadas nos rodapés, numeradas sequencialmente, exceto a primeira, que referenciada por um * deve corresponder ao(s) autore(s) indicando a titulação acadêmica, a ocupação atual e outras já exercidas, bem como um endereço eletrônico para contato. O texto dessa nota inicial deverá tomar de três a cinco linhas. As referências bibliográficas deverão ser listadas alfabeticamente no final do texto, seguindo a norma NBR-6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, tal como mostram os exemplos anexos: •Livro DAGHLIAN, J. Lógica e álgebra de Boole. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1995. 167p., Il., 21 cm. Bibliografia: p.166-167. ISBN 85-224-1256-1. • Parte de Coletânea ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.; SCHMIDT, J. (Org.). História dos jovens 2: a época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.7-16. • Artigo de Revista GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 3, nº 2, p. 15-21, set. 1997. 207 • Artigo de Jornal NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13. • Artigo Publicado em Meio Eletrônico KELLY, R. Electronic publishing at APS: its not just online journalism. APS News Online, Los Angeles, Nov. 1996. Disponível em: <http://www.aps.org/ apsnews/1196/11965.html> . Acesso em: 25 nov. 1998. • Trabalho de Congresso Publicado em Meio Eletrônico SILVA, R. N.; OLIVEIRA, R. Os limites pedagógicos do paradigma da qualidade total. Na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe, 1996. Disponível em: <http://www. propesq. ufpe.br/anais/anais/educ/ ce04..htm> . Acesso em: 21 jan. 1997. Cada artigo deverá estar acompanhados de um resumo de 100 a 150 palavras, não incluídas na contagem do tamanho do artigo, bem como a menção de três a cinco palavras-chave, no mesmo idioma do texto. A correspondência de remessa deve incluir o nome do autor e a instituição ou instituições a que está ligado. Pede-se também um endereço para contato, com menção do eletrônico e de um telefone. 3. Avaliação dos Originais Os artigos serão submetidos a pareceristas, cujos nomes não serão informados aos autores. 4. Resenhas A revista publica resenhas de livros, que deverão ser submetidas no mesmo formato dos artigos, mas com tamanho limitado a 1/4 dos parâmetros mencionados no item 2. 5. Remessa de Originais Os originais devem ser remetidos para: Revista de Economia e Relações Internacionais Fundação Armando Alvares Penteado-FAAP Faculdade de Economia Rua Alagoas, 903, 01242-902 São Paulo-SP e-mail: [email protected] 6. Assinaturas Informações poderão ser obtidas por meio do e-mail acima. 208 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009