volume 8 / número 15/ julho 2009
ISSN 1677-4973
FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO
Rua Alagoas, 903 - Higienópolis
São Paulo, SP - Brasil
Revista de Economia e Relações Internacionais / Faculdade de Economia
da Fundação Armando Alvares Penteado.
- Vol. 8, n. 15 (2009) - São Paulo: FEC-FAAP, 2007
Semestral
1. Economia / Relações Internacionais - Periódicos. I. Fundação
Armando Alvares Penteado. Faculdade de Economia.
ISSN 1677-4973
CDU - 33 + 327
volume 8 / número 15 / julho 2009
Sumário
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca
André Azevedo Alves e José Manuel Moreira
5
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil
Stela Luiza de Mattos Ansanelli
20
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise
interdisciplinar de decisões sobre risco
Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni
36
Brazil – India: A roadmap to follow
Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali
61
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio
mundial de petróleo, os desequilíbrios americanos e os efeitos
sobre os ciclos financeiros
Bouzid Izerrougene
75
Impacto de la crisis financiera global en América Latina
Luis Alberto Moreno
93
105
A contribuição da Psicologia Analítica para a compreensão do
comportamento econômico
Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação 118
do mercado brasileiro com o chinês (2003-2008)
Lucy Sousa
Resumos de Monografia
Atuação das corporações transnacionais nos países em
desenvolvimento
Rafaella Cordeiro Antoniazzi
136
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008)
Daniela Alvarenga Cunha
159
Resenhas
Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento
econômico
Ricardo Abramovay
190
A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: 193
o Estado gerido como bem familiar
Luiz Alberto Machado
Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre
o dinheiro
Manuel Nunes
198
Redefinindo estratégia global
Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta
202
Orientação para colaboradores
207
John Locke e os escolásticos
da Escola de Salamanca
André Azevedo Alves e José Manuel Moreira*
Resumo
Resumo: Depois de uma breve introdução à importância de Locke no
contexto da tradição liberal, o texto faz um enquadramento histórico e
teórico da Escola de Salamanca de modo a possibilitar uma
fundamentada aproximação de Locke ao rico e fecundo pensamento
da escolástica católica tardia. Tal aproximação visa mostrar como em
vários domínios – do econômico e político ao moral e religioso – as
teorias assumidas por Locke têm antecedentes entre os grandes autores
de uma escola que não só terá sido a primeira a defender, dois séculos
antes de Adam Smith, o liberalismo econômico, como terá constituído
crucial fonte nutrícia do liberalismo político, cem anos antes de Locke.
Palavras-chave: Locke, Escola de Salamanca, liberalismo, direito
natural, religião.
“[T]he greater part of the political ideas of Milton, Locke, and Rousseau,
may be found in the ponderous Latin of Jesuits who were subjects of the Spanish
Crown, of Lessius, Molina, Mariana, and Suarez”
Lord Acton, Selected Writings of Lord Acton, Vol. I: Essays in the History of
Liberty, p. 71.
1. Introdução: importância de Locke no contexto da tradição liberal
A importância de Locke no contexto da tradição liberal é sobejamente
conhecida e quase unanimemente reconhecida. Desde a admiração de Voltaire
por le Sage Locke até a profunda influência de Locke nos pensadores
contemporâneos, o seu papel central no pensamento liberal é indisputável. Hayek,
por exemplo, recorre frequentemente a Locke para abordar questões como a de
* André Azevedo Alves é Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto (2003).
Mestre em Ciência Política, variante de Teoria Política, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa (2005). Doutorando em Ciência Política na London School of Economics. Tem
colaborado com a Universidade de Aveiro, o Instituto Nacional de Administração, a Escola de Gestão do
Porto e o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. E-mail:
<[email protected]>. José Manuel Moreira é Licenciado e doutorado em Economia e em Filosofia, é
Professor Catedrático da Universidade de Aveiro (SACSJP). Contribuiu para a redescoberta e divulgação
em Portugal de quatro grandes temáticas: ética econômica e empresarial, tradição austríaca da economia,
análise econômica da política e governança e políticas públicas. Tem colaborado com entidades tais
como o Instituto de Estudos Políticos (da UCP), o Instituto Nacional de Administração, a Escola de
Gestão Empresarial e a Ordem dos Engenheiros. É também Membro da Direção da Associação Portuguesa
de Ciência Política. E-mail: <[email protected]>. Texto com base na comunicação apresentada ao Simpósio
comemorativo dos 300 anos da morte de John Locke (Lisboa, março de 2006). Uma primeira versão (mais
reduzida) foi publicada em MORUJÃO, C.; MOIA, L. (orgs.) John Locke nos 300 anos da sua morte.
Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2009, p. 165-179.
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
5
saber qual a função própria das assembleias legislativas ou qual a concepção de
justiça que deve ser aplicada na avaliação dos processos de competição. Nozick,
por sua vez, baseia parte importante da sua influente teoria da justiça num
refinamento da teoria da aquisição de Locke. Noutra linha, Strauss vê, pelo
menos até certo ponto, Locke como o autor que melhor conseguiu estabelecer
uma ligação entre as concepções tradicionais e as doutrinas modernas do direito
natural.
Os contributos de Locke continuam a ocupar uma posição de destaque na
generalidade das discussões sobre o liberalismo, constituindo, nalguns casos, o
ponto de partida para o desenvolvimento de novas perspectivas nessa área. Vejase, a título de exemplo, o caso de Huyler (1997), que encontrou em Locke a
chave para definir um enquadramento conceitual que permite combinar o
republicanismo com o liberalismo. Para este autor, a resolução das tensões entre
republicanismo e liberalismo passa por uma reavaliação da própria teoria liberal
clássica de Locke, em que a ênfase na participação cívica e na natureza social do
homem acompanha de perto a defesa da propriedade e dos direitos naturais.
Para a extraordinária riqueza e pluralidade das leituras e construções teóricas
baseadas na obra de Locke muito terão contribuído, para além de fatores
históricos1, a diversidade dos seus interesses. De fato, contrariamente ao elevado
grau de especialização que caracteriza uma boa parte da filosofia política
contemporânea2, Locke, como era característico dos mais destacados autores
do seu tempo, dedicou-se a campos tão aparentemente díspares como a teologia,
a filosofia, a economia, a medicina ou a educação. Por sua vez, mesmo no
âmbito da filosofia, é verdadeiramente notável a abrangência dos contributos
de Locke, que vão desde a metafísica e a lógica à epistemologia e à ética. A obra
de Locke é assim, compreensivelmente, um ponto de partida obrigatório e
repetidamente referenciado no tratamento dos mais diversos temas para uma
grande parte dos autores que dão continuidade à tradição liberal clássica.
Infelizmente, a (justificada) atenção dedicada a Locke raramente tem sido
acompanhada por uma reflexão sobre o pensamento da escolástica católica ibérica
que o precedeu e – em alguns importantes aspectos – antecipou3. Procuraremos
neste âmbito chamar a atenção para os pontos de ligação entre as teorias de
Locke e as contribuições dos autores da chamada Escola de Salamanca. Ainda
que correndo o risco de levantar interrogações mais do que dar respostas,
dedicaremos particular atenção a alguns aspectos em que as contribuições da
Escola de Salamanca assumem maior relevância para a compreensão e
1
Entre os quais se destaca a influência que os seus escritos viriam a ter no germinar da Revolução
Americana e da Revolução Francesa.
2
Uma especialização que, em cada vez mais circunstâncias, assume um caráter de tal forma excessivo que
o debate e a compreensão entre algumas das subdisciplinas da filosofia política contemporânea se tornam
praticamente impossíveis.
3
Uma omissão a que Lord Acton alude, porventura hiperbolicamente, nos termos da citação com que
abrimos este texto, chamando a atenção para o fato de muitas das mais importantes ideias políticas de
Milton, Rousseau e Locke terem sido antecipadas por autores jesuítas ligados à tradição escolástica
católica.
6
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
enquadramento do pensamento de Locke e de todos os autores que seguiram na
sua tradição. Procuramos dessa forma suscitar o interesse por várias possíveis
linhas de investigação futura relativamente a esta relação.
2. Escola de Salamanca: enquadramento histórico e teórico
O papel germinador do pensamento católico ibérico nos séculos XVI e
XVII – a que não é alheia a influência árabe e principalmente a reintrodução de
Aristóteles, a partir da conquista de Toledo em 1085 – foi muito significativo. A
Escola de Salamanca (que não se reduz a Salamanca, já que da mesma “Escola”
faziam parte Coimbra e Évora, por exemplo) não só foi a primeira a defender,
dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico – nomeadamente
através das importantes contribuições do “português” Luis de Molina – como
foi também a fonte que alimentou o liberalismo político, 80 anos antes de Locke.
Que, depois, as coisas tenham mudado só prova que a subsequente prostração e
atraso econômico da Península Ibérica acompanhou o esgotamento do
pensamento liberal. Mas a falta de continuidade ibérica que afetou o pensamento
dos escolásticos de Salamanca é um outro tema, que em nada afeta a sua relevância
no âmbito da história do pensamento político e econômico4.
Terá sido esta história de descontinuidade no seu local de origem que nos
impediu de reparar no potencial de valor da sementeira de uma Escola tão notável
que outros se encarregaram, felizmente, de disseminar e cuidar para que desse
fruto. Disseminação que não anula o nome de “Escola de Salamanca”5 como o
mais adequado para denominar um movimento que ultrapassou o mundo ibérico
e que Marjorie Grice-Hutchison consagrou e deu a conhecer a todo o mundo
científico (em especial ao europeu) com a sua obra The School of Salamanca
(1952)6.
De fato, a Universidade de Salamanca (de onde deriva o nome da Escola)
esteve na gênese de uma importante tradição intelectual, resultante do trabalho
de um conjunto de professores de moral e teologia, majoritariamente jesuítas e
dominicanos, que contribuíram para os mais variados domínios do saber humano.
O trabalho destes autores é particularmente interessante porque aplica uma
abordagem escolástica em larga medida tradicional e com firmes raízes católicas
4
Para uma mais completa abordagem desta problemática, cf. MOREIRA (1992) e ALVES (2005).
5
“Escola hispânica” espelharia melhor a ideia de que a escola não se limitou a Salamanca (não se pode
esquecer a Complutense, em Alcalá de Henares), mas ao mesmo tempo também dá a entender uma
excessiva identificação com a Espanha quando é sabida a importância de autores portugueses como
Rebelo e Manuel Rodrigues; isto para além de distintos espanhóis que lecionaram em Portugal (Coimbra)
como é o caso de Suárez e Martín de Azpilcueta, sem falar em Luis de Molina, que fez não só o noviciado
como quase toda a carreira acadêmica em Portugal. Neste sentido, Coimbra e Évora devem ser vistas
pelo menos a par de Alcalá de Henares. Para um breve apanhado da vida acadêmica (“estudos” e
“magistério”) de Molina, cf. CAMACHO (1990, p. XVII-XXXI). Sobre a notória e marcante influência
das obras de Molina, que não só chegaram às mais importantes universidades europeias (incluindo as da
Áustria e da Alemanha) como dividiram professores e estudantes em grupos a favor e contra as ideias de
Molina, ver ROMANO (1982, p. 261-287).
6
Mais tarde, a mesma autora publicou um outro artigo com a mesma denominação: “La escuela de
Salamanca”, na Revista del Instituto de Estudios Economicos, 2, 1980, p. 45-52.
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
7
a campos que adquiriram uma importância renovada no seu tempo, com a
descoberta do Novo Mundo7. Muitos dos problemas teóricos com que os doutores
de Salamanca se confrontaram encontram, até certo ponto, paralelo nas
preocupações de Locke e essa poderá ser (sem desprimor para a genealogia das
ideias) uma das razões pelas quais a obra deste último acaba em vários pontos
por ter importantes semelhanças com a escolástica ibérica tardia.
3. T
eologia, Estado e tolerância
Teologia,
Uma abordagem muito comum é a de identificar Locke com uma ruptura
no modo de reflexão filosófica e política prevalecente, afastando-o dos métodos
supostamente antiquados da filosofia tradicional e abrindo as portas da
modernidade. Insere-se nesta linha, por exemplo, a análise de Aarsleff quando
refere que o principal legado de Locke foi “libertar-nos do fardo da tradição e
da autoridade”, através do seu apelo ao empiricismo e da sua crença nas
faculdades inatas da razão humana8. Esta visão de Locke, hoje tão difundida,
não deixa de ser curiosa se tivermos em conta que toda a sua filosofia assenta, tal
como a dos escolásticos católicos que o antecederam, em fundamentos
profundamente religiosos9. Importa aqui recordar a forma como o próprio Locke
concebia a teologia, o papel da autoridade divina e o objetivo último do
conhecimento:
Existe uma ciência ... incomparavelmente superior a tudo o resto ... refirome à teologia, a qual, contendo o conhecimento de Deus e das suas criaturas, dos
nossos deveres para com Ele e para com as criaturas nossas semelhantes e uma visão
do nosso estado presente e futuro, consiste na compreensão de todo o restante
conhecimento dirigido ao seu verdadeiro fim, i.e., a honra e a veneração do Criador
e a felicidade da humanidade. Este é um estudo nobre que é dever de todos os
homens e que todo aquele que possa ser chamado uma criatura racional é capaz de
realizar.10
A este propósito vale a pena salientar as posições tanto da Escola de
Salamanca como de Locke a respeito da tolerância. É verdade que os autores da
7
Para além das múltiplas questões morais e jurídicas suscitadas pelo contato com o Novo Mundo (que
motivaram o aprofundamento da reflexão sobre muitos temas de direito natural), o grande incremento
do comércio e dos fluxos monetários impulsionou importantes inovações no âmbito da teoria econômica.
Para uma análise das contribuições dos escolásticos da Escola de Salamanca para a ciência econômica cf.,
GRICE-HUTCHISON (1952 e 1978), CHAFUEN (2003) e HUERTA DE SOTO (2005, p. 95-108).
8
Cf. AARSLEFF (1994, p. 252).
9
A generalidade dos estudos sobre Locke reconhece, como não poderia deixar de ser, as bases cristãs do
pensamento do autor. Mas o que se trata aqui, no que diz respeito ao papel desempenhado pela religião,
é de avaliar se Locke terá efetivamente entrado em ruptura com os métodos empregados na escolástica
tardia. Embora não seja possível responder cabalmente a essa questão, é nosso entendimento que a
proximidade da obra de Locke com as de escolásticos como Molina, Mariana e Suárez faz com que a tese
da “ruptura” seja de muito difícil sustentação.
10
The Works of John Locke (12 ed.), 9 vols. (1824), Vol. II, p. 360. Citado em ASCHCRAFT (1990).
Igualmente revelador é o fato de Locke possuir na sua biblioteca mais livros de teologia (870) do que de
qualquer outra matéria; cf. ASHCRAFT (1990, p. 227).
8
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
chamada escolástica tardia, fiéis à tradição católica, enfatizavam a importância
da unidade religiosa, salientando a relação entre a religião e as virtudes cívicas11.
Esta posição pode parecer estranha por padrões contemporâneos, mas convém
recordar que mesmo mais tarde, no fim do século XVII, o próprio Locke, na sua
Letter Concerning Toleration, negava explicitamente a extensão da tolerância
aos ateus e à Igreja Católica com os seguintes fundamentos:
Essa Igreja não pode ter direito a ser tolerada pelo governante, já que todos os
que nela ingressam se colocam, ipso facto, sob proteção e ao serviço de outro príncipe.
Se tal acontecesse, o governante estaria a possibilitar o estabelecimento de uma
jurisdição externa no seu próprio país e a permitir que os seus próprios súditos se
alistassem, por assim dizer, como soldados contra o seu próprio governo. Nem a
distinção frívola e falaciosa entre a corte e a Igreja remedeia esta inconveniência;
especialmente quando tanto uma como a outra estão igualmente sujeitas à
autoridade absoluta da mesma pessoa, que não só tem poder para persuadir os
membros da sua Igreja de tudo o que decida, seja em termos puramente religiosos
ou orientados pela religião, como pode também impor-se invocando a ameaça do
fogo eterno.
(…)
Por último, não poderão ser tolerados de forma alguma aqueles que negam a
existência de Deus. As promessas, pactos e juramentos, que são os laços que unem a
sociedade humana, não significam nada para um ateu. O afastamento de Deus,
ainda que apenas em pensamento, tudo dissolve. Além disso, aqueles que através
do seu ateísmo minam e destroem toda a religião não podem ter fundamentação
religiosa alguma para reclamar o privilégio da tolerância.12
Em suma, é certo que Locke revela confiança nas potencialidades da razão
humana como instrumento para a prossecução do fim último da existência
humana (um fim que é inquestionavelmente marcado pela autoridade divina).
Mas a valorização da reta razão está longe de ser uma inovação, tendo desde
sempre sido uma característica predominante da filosofia tomista, a ponto de
ter assumido um lugar de destaque no pensamento da Escola de Salamanca. A
ideia de Locke como “libertador” da filosofia das correntes da tradição e da
autoridade abrindo-a às Luzes da modernidade parece, por isso, de difícil
sustentação13. É possível que muito da análise contemporânea de Locke esteja a
imputar ao autor um secularismo que, na realidade, existe apenas na mente dos
historiadores contemporâneos.
11
Sobre este tema, veja-se ALVES e MOREIRA (2009, no prelo).
12
LOCKE (1990, p. 63-64). Sobre a tolerância religiosa em Locke, veja-se também HENRIQUES
(2009, p. 123-125).
13
Parece-nos a este respeito bem mais sustentável a posição de WALDRON (2002) com a sua preocupação
de articular as posições de Locke quanto aos direitos e dignidade dos indíviduos com as bases cristãs do
seu pensamento. Ainda que o igualitarismo atribuído por Waldron a Locke seja no mínimo contestável,
o método empregue na exposição desse argumento parece-nos mais correto do que o dos autores
contemporâneos que sucumbem à tentação de descobrir um Locke secularizado, por vezes quase pósmoderno, ignorando a forma como Locke efetivamente apresentou e fundamentou as suas posições.
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
9
4. Molina, Lugo e Grócio: para uma aproximação de Locke ao
pensamento da Escola de Salamanca
Sendo certo que não há uma presença direta e imediata da escolástica
católica tardia na obra de Locke, é ainda assim possível estabelecer uma ligação
indireta muito significativa. Se deixarmos de lado as origens gregas (Aristóteles)
e o seu renascimento escolástico (primeiro com Tomás de Aquino e depois com
o desenvolvimento da Escola de Salamanca), deparamo-nos com um conjunto
de formulações pré-racionalistas dos filósofos centro-europeus do direito natural,
em especial Grócio14.
Conviria aqui recordar a problemática religiosa e política que agitava a
Europa para compreender o porquê das omissões e ausência de referências
escolásticas nas fontes dos autores protestantes do século XVII. Neste âmbito, a
opinião hoje aceita é que Grócio não só desempenhou um papel de transmissão
indireta (pertencia à corrente reformadora do arminianismo15, que o tornava
aceitável para anglicanos, calvinistas e luteranos) como conhecia os textos da
maior parte dos teólogos escolásticos, ainda que, por compreensíveis razões de
oportunidade, os citasse pouco. Mesmo assim, na sua obra, aparecem nomes
como Vitoria, Covarrubias, Azpilcueta e outros membros da Escola de
Salamanca.
A este respeito, o que nos interessa mais é assinalar as influências de toda
esta doutrina jusnaturalista no posterior pensamento econômico e político de
Locke, e precisamente por meio dos escritos de Grócio e outros filósofos do
direito. Nesta linha, que interliga as ideias greco-romanas sobre a “ordem natural”
e o “Direito das Gentes” escolástico, Pribram (1983, p. 60) sustenta que se
chegou a um novo corpus de pensamento que cristaliza em Grócio:
Estas perspectivas foram elaboradas em 1625 pelo autor holandês Hugo Grócio
(1583-1645), que ensinou na sua obra De iure belli ac pacis que o sancionamento
divino das regras do direito natural foram dadas a conhecer à humanidade pelos
imperativos da reta razão [recta ratio]. A mente humana, tomando parte na
razão universal, foi considerada capaz de compreender as leis que a natureza
“ensinava”. Esta concepção da relação entre razão e direito natural gozou de
uma aceitação abrangente. Ela forneceu também a coluna dorsal para uma
amplamente lida obra sobre direito natural e direito internacional (1672) da
autoria do professor alemão Samuel von Pufendorf.
Trata-se assim de uma “versão secular” da “Lei Natural” que arranca com
Grócio16 e que define os “direitos naturais que a razão demonstra como
14
Grócio, que parece ter sido um autor particularmente relevante para Locke se atendermos não só ao
número de obras do primeiro de que Locke dispunha na sua biblioteca pessoal, mas também às abundantes
anotações e citações de Grócio presentes nos manuscritos não publicados de Locke. Cf. ASHCRAFT
(1990, p. 237)
15
Doutrina dos seguidores do teólogo holandês J. Harmensen (1560-1609), mais conhecido por Armínio,
que defendia a teoria da predestinação absoluta.
16
10
A este propósito veja-se também León GÓMEZ RIVAS (2005).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
pertencentes aos indivíduos em virtude da sua humanidade”, e que correspondem
à posterior formulação de Locke como o direito à vida, à liberdade e à
propriedade.
A este propósito, Hayek constituiu uma exceção entre os lockeanos, não
deixando de salientar as raízes gregas e romanas da tradição não-racionalista do
“direito natural”, mas insistindo em que se deve aos escolásticos ibéricos do
século XVI o impulso maior que conduziu à descoberta e explicação da ordem
autogerante nos assuntos sociais. Uma ordem baseada no reforço das normas
gerais de conduta justa que protegem um domínio privado reconhecível dos
indivíduos. Ora, foi a “descoberta” desta ordem espontânea de atividades
humanas de muito maior complexidade do que alguma vez podia ser produzida
por arranjo deliberado17 – devida aos últimos escolásticos, aos jesuítas espanhóis
e aos portugueses do século XVI – que acabou por conduzir a um debate que
levou a “um questionamento sistemático sobre a forma como se teriam ordenado
as coisas se não tivessem sido dispostas pelos esforços deliberados do governo;
desta forma eles produziram o que eu denominaria as primeiras teorias modernas
da sociedade se o seu ensinamento não tivesse sido submergido pela maré
racionalista do século posterior”18.
Em nota a esta passagem, Hayek considera Luis de Molina, deste ponto de
vista, como o mais importante dos jesuítas do século XVI19. Para Hayek, como
por certo para Molina, tanto a palavra “razão” como a expressão “lei natural”
não podem ser assimiladas à “lei da razão”20, e por isso critica todos aqueles
cujo racionalismo construtivista os levou “a pensar que não só todas as instituições
culturais eram produto de uma construção deliberada, mas também que tudo o
que fosse concebido a partir desta era necessariamente superior a toda a mera
evolução”21.
Só a partir desta posição de Hayek é possível perceber porque insiste ele,
por um lado, em que a “razão” inclui, como para Locke, a capacidade do espírito
para distinguir entre o bem e o mal, isto é, entre o que estava ou não estava de
acordo com as normas estabelecidas; e, por outro, nega à razão a capacidade de
construir tais normas por dedução de premissas explícitas.
De igual modo se justifica que, para Molina, a determinação do preço justo
suponha a livre atuação de múltiplos homens que atuam de acordo com regras
a que se submetem, independentemente dos seus objetivos e da influência de
inúmeras circunstâncias exteriores particulares que na sua totalidade ninguém
17
Cf. HAYEK (1967, p. 162).
18
HAYEK (1985, p. 255).
19
Ibidem. Recorde-se que a obra de Molina esteve na origem da corrente filosófica e teológica designada
por “molinismo”, a qual foi amplamente difundida e comentada nos séculos XVII e XVIII.
20
HAYEK (1998, Vol. I, p. 21).
21
No que diz respeito às consequências desta assimilação, Hayek acrescenta que: “Sob esta influência, a
concepção tradicional da lei natural transformou-se, a partir da ideia de que algo se tinha formado pela
adaptação gradual à ‘natureza das coisas’, em algo que a razão, com que no princípio o homem tinha sido
dotado, lhe permitiria projetar”. Cf. HAYEK (1985, p. 255-256).
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
11
pode conhecer22. O que levou mesmo Hayek, apoiando-se no cardeal Johannes
de Lugo, a salientar que o “preço matemático” exato a que uma mercadoria
podia ser justamente vendida só Deus o podia conhecer, dado que ele depende
de muitas mais circunstâncias do que qualquer homem podia conhecer, e, por
conseguinte, a determinação do “preço justo” deve ser deixada ao mercado23.
Isto conduzirá Hayek a, apoiando-se de novo em Molina e Höffner, entre
outros, defender que, depois de muitas disputas, os últimos escolásticos acabaram
por reconhecer que os preços se determinavam pela conduta justa dos participantes
no mercado, isto é, que o que a justiça requeria era que os preços competitivos
fossem alcançados sem fraude, monopólio e violência24. Foi desta tradição que,
segundo Hayek, John Locke e os seus contemporâneos fizeram derivar a
concepção liberal clássica que reconhece que, no que se refere à economia de
mercado, só se pode falar verdadeiramente de justiça quanto ao comportamento
dos participantes no jogo, não quanto ao seu resultado25.
A interpretação de Locke no que diz respeito a estas temáticas é matéria
controversa (e provavelmente sempre o será). No entanto, como explica
Rothbard (1995, p. 313-134), muitas das dicotomias habitualmente estabelecidas
podem ser vistas como artificiais:
A discussão historiográfica sobre o grande teórico político liberal John Locke
(1632-1704) que decorreu a seguir à Guerra Civil, e em especial durante a
década de 1680, tem estado imersa num turbilhão de interpretações em conflito.
Terá sido Locke um pensador político radicalmente individualista ou um escolástico
protestante conservador? Individualista ou defensor das maiorias? Filósofo puro
ou intriguista revolucionário? Arauto radical da modernidade ou alguém que
olhava para o passado, para a virtude medieval ou clássica?
Curiosamente, a maioria das interpretações não são realmente contraditórias.
Atualmente, temos obrigação de compreender que os escolásticos, além de terem
dominado as tradições medievais e pós-medievais, também foram pioneiros e
responsáveis pela elaboração do direito natural e dos direitos naturais. O choque
entre “tradição” e “modernidade” é uma antítese em boa medida artificial.
“Modernos”, como Locke, e talvez mesmo Hobbes podem ter sido individualistas e
“pensadores de direita”, mas também estavam imbuídos de escolasticismo e de
22
Cf. HAYEK (1985, p. 10). A ênfase na livre atuação dos sujeitos (que expressa o reconhecimento de
“uma limitação radical no conhecimento humano da lei natural e a sua aplicação à realidade” e também
a dimensão temporal e expectativas implicadas na livre decisão num dado “momento do tempo”) e no
peso das múltiplas circunstâncias concretas que definem a natureza dos casos (a “natura rei”) é também
notada por Camacho. Segundo Camacho, a recusa por parte de Molina de uma aplicação tanto mecanicista
como arbitrária da lei natural está na raiz filosófica do seu probabilismo e implica a valorização do juízo
prático da reta razão. Cf. CAMACHO (1989, em especial, p. XVII-XVIII).
23
LUGO, J. Disputatio de iustitia et iure tomus secundus (Lyon, 1642), disp. 26, sec. 4, nº 40:
“incertitudo ergo nostra circa pretium iustum Mathematicum ... provenit ex Deo, quod non sciamus
determinare”; ver HÖFFNER, J. Wirtshaftsethik und Monopole im fünfzehnten und sehzehnten Jahrhundert
(Jena, 1941), p. 114-115. Citado em HAYEK (1998, Vol. I, p. 21 e 151 [nota 24] ).
12
24
HAYEK (1998, Vol. 2, p. 73).
25
Ibid., p. 73-74.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
direito natural. Locke pode ter sido, e certamente foi, um empenhado protestante,
mas também foi um escolástico (protestante) fortemente influenciado pelo fundador
da escolástica protestante, o holandês Hugo Grócio.
Tendo em conta que estão presentes em Grócio fortes influências da
escolástica católica tardia, Rothbard argumenta que, embora Locke tenha
desenvolvido a teoria dos direitos naturais de forma mais completa do que os
seus predecessores, a sua abordagem se encontra, em larga medida, na
continuidade da tradição escolástica do direito natural26.
Ainda sobre este ponto, vale a pena ter em conta a chamada de atenção
feita por Zaratiegui, num texto “sobre a propriedade em alguns autores da Escola
de Salamanca”, sobre a assombrosa similitude entre Lugo e Locke. Uma
afirmação que se apoia na posição de Lugo em relação ao estado de natureza –
em que todas a coisas eram comuns –, mas com duas ressalvas importantes: a
população era reduzida e, sobretudo, havia uma grande abundância de bens à
disposição desses poucos. A ponto de que “cada um tinha tudo o que necessitava
para a vida sem necessidade de esforço”, mas entendendo a apropriação como
atividade natural do homem: a pacífica e necessária ocupação de algo que, de
outro modo, ficaria estéril e vazio.
Tal similitude é ainda mais clara se atendermos à relação que Lugo
estabelece entre propriedade e trabalho e que leva Zaratiegui a defender que
Locke, ainda que pertencendo a um mundo muito diferente, conheceria os
escritos de Lugo. Uma relação em que Lugo, ao contrário da maioria dos
escolásticos e corrigindo Vitoria, diz não ser preciso ninguém decretar por lei
quem é proprietário de algo, basta apropriar-se: ocorre que como as árvores
que, sendo comuns antes de cortadas, uma vez cortadas passam a ser próprias de
quem as corta, e já não do domínio da comunidade, dado que só eram comuns
até serem de alguém por meio do corte (Lugo). O que significa a admissão da
propriedade privada no estado de natureza original. Locke, como Lugo,
apontariam assim para um entendimento da riqueza como unida à ideia de
eficácia, no sentido de que, mais que uma questão moral, o problema da riqueza
seria, no limite, um problema técnico. Daí que, em vez de insistirem nas virtudes
da redistribuição, os dois autores tendam a realçar o trabalho (até como fonte
de melhoria pessoal): a abundância de bens materiais, própria do estado de
natureza, transforma-se assim numa situação – a da sociedade civil – em que
grande parte desses bens são escassos (econômicos) a ponto de ser necessário o
esforço diligente para que sejam suficientes em ordem a atender às necessidades
humanas27.
26
Cf. ROTHBARD (1995, p. 314). Uma posição que leva a que ROTHBARD (1995, p. 339) seja, como
seria de esperar, fortemente crítico da forma como STRAUSS (1953) concebe uma hipotética quebra de
Locke (até certo ponto seguindo Hobbes) com a tradição do direito natural.
27
O que significa inclusive dar entrada a conceitos básicos de economia como escassez e eficiência. A este
propósito Zaratiegui admite até que Locke possa ter tomado de Lugo a ideia de enriquecimento, a
produtividade ilimitada dos bens. Para um mais completo desenvolvimento sobre todos estes pontos,
veja-se, ZARATIEGUI, J.M. La propiedad en algunos autores de la Escuela de Salamanca. Cuadernos de
CC.EE y EE, 2000, p. 87-93.
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
13
5. Suárez, Mariana e os escolásticos de Salamanca como precursores de
Locke
Hayek, que se assumiu muitas vezes como um velho Whig, defende que,
apesar da clara contribuição de alguns pensadores da Antiguidade Clássica, a
primeira tentativa sistemática de explicitação dessa ordem espontânea foi levada
a cabo pelos escolásticos, a partir dos fundamentos derivados de Aristóteles por
Santo Tomás de Aquino28. Um esforço que os últimos escolásticos ibéricos
souberam aproveitar para criar os alicerces de um sistema de política liberal,
especialmente no campo econômico, em que anteciparam muito do que só foi
restaurado depois pelos filósofos escoceses do século XVIII e, em alguns aspectos,
por Locke29.
Assim, por exemplo, como demonstra Tully (1994, p. 168-172), a
abordagem de Locke ao estado de natureza e ao direito da guerra, apesar de
algumas diferenças relativamente aos seus antecessores, é essencialmente uma
reafirmação das teorias de Pufendorf, Grócio e Suárez, sendo que, por sua vez,
estes autores adaptaram os anteriores contributos de escolásticos como Francisco
de Vitoria (fundador da Escola de Salamanca), Alonso de la Vera Cruz e
Bartolomé de las Casas.
Entre os autores que rejeitam a ideia de “ruptura” e observam na obra de
Locke a continuidade da tradição escolástica do direito natural, inclui-se também
Simmons (1992, p. 96), que dificilmente poderia ser mais claro quando afirma:
Foi até recentemente quase obrigatório começar as discussões sobre a teoria
dos direitos naturais com a observação de que o conceito de direito natural é
essencialmente um conceito moderno. (...) Sabemos agora, claro, que as teorias dos
direitos naturais (pelo menos numa forma rudimentar) foram desenvolvidas
bastante mais cedo do que a sabedoria convencional sugeria. (...) Essas primeiras
teorias dos direitos foram largamente ignoradas durante a Renascença mas foram
reanimadas na década de 1580, desenvolvendo-se finalmente através das obras
de Molina, Suárez e Grócio até originarem a forma de teoria dos direitos naturais
que mais diretamente influenciou Locke.
Mas o caráter precursor da Escola de Salamanca ter-se-á estendido também
ao campo da ação política, com uma contribuição decisiva para a aventura do
maior empreendimento do novo mundo: os EUA. É aqui de grande ajuda o
professor Joris Steverlynck, da Universidade Católica de Buenos Aires, quando
sustenta a tese30 de que a primeira constituição do povo norte-americano, a
chamada Fundamental Orders do Estado de Connecticut, promulgada em 1639,
28
Daí que Maritain, subscrevendo a opinião de Lord Acton, diga: “Não foi o diabo, foi Santo Tomás de
Aquino o primeiro Whig”; cf. MARITAIN (1960, p. 55).
29
Cf. HAYEK (1985, p. 123). Para uma perspectiva divergente, que considera as divergências de Locke
relativamente a Hooker como um afastamento implícito da abordagem jusnaturalista tomista, cf.
SCHNEEWIND (1994, p. 208-212).
30
14
Cf. STEVERLYNCK (1986).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
não pode ser devida ao pensamento de John Locke (1632-1704), considerado
como o primeiro inspirador da democracia americana moderna, já que Locke,
que efetivamente teve grande relação na década de 1670 com os 13 Estados
Coloniais, só publicou as suas primeiras obras em 1687 e 1690. Muito
provavelmente foi o contrário que aconteceu. O pai da democracia política,
Locke, recebeu as suas ideias do pensamento liberal que imperava nas longínquas
colônias americanas. Mas de onde surgiu a genial inspiração que levou a uns
quantos colonos, afastados dos centros de pensamento da velha Europa, a
desenvolver uma teoria política tão em contraste com a que imperava na sua
época?
Steverlynck aponta uma hipótese segundo a qual a fonte seria a Escola de
Salamanca e que as coisas poderão ter acontecido da seguinte forma: Francisco
Suárez (1548-1617), eminente doutor da dita Escola, publicou em 1613 a sua
famosa Defensio fidei catholicae, que, pelas suas ideias políticas, não religiosas,
foi mandada queimar tanto pelo rei anglicano inglês (Jaime I) como pelo
cristianíssimo rei francês (Luís XIII), mas foi acolhida favoravelmente na
Península Ibérica, apesar da insistência do inglês sobre o monarca reinante Filipe
III, já que na altura o absolutismo não imperava plenamente na Espanha, ainda
que fosse a doutrina oficial na Inglaterra e na França.
Ora, a Defensio fidei terá sido conhecida por Thomas Hooker, clérigo
puritano que estudava em Cambridge desde 1611. Hooker, por oposição às
teorias absolutistas de Jaime I, teve de fugir para a Holanda e daí, em 1633,
emigrou para Massachusetts, donde atuou como um dos líderes dos dissidentes
que fundaram Connecticut em 1638, e cuja constituição verteu ideias de tal
natureza que a única fonte doutrinária de onde poderão ter sido extraídas foi de
Francisco Suárez31 (1548-1617), o destacado jesuíta espanhol, que ensinou
teologia na Espanha, em Roma e em Portugal (1597) – exímio professor da
Universidade de Coimbra –, onde permaneceu até a sua sepultura na igreja de
São Roque.
Por sua vez, Rothbard (1995, p. 117-118) realça a importância de Juan de
Mariana (1536-1624) como precursor de Locke, argumentando que a sua
importância deve ser considerada superior até à de Suárez:
[É] Mariana, e não Suárez, quem deve ser considerado o precursor da teoria,
exposta por Locke, do consentimento popular e da permanente superioridade do
povo sobe o governo. Mais ainda: Mariana também se antecipou a Locke ao
sustentar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos com o
fim de preservar os seus direitos de propriedade. Mariana foi também muito mais
além do que Suárez ao postular um estado de natureza, uma sociedade, prévia à
instituição do governo.
31
A importância de Suárez para a América Latina está aliás bem patente no livro (veja-se entre nós a
recensão de António PAIM, em Nova Cidadania, 7, 2001, p. 68-70) de Ricardo Vélez RODRIGUEZ,
Estado, Cultura y Sociedade en la América Latina (2000). Texto em que o autor, a partir da obra de
Silvestre Pinheiro e dos gaúchos Assis Brasil e Silveira Martins, chama a atenção para a influência da
tradição liberal peninsular e, em especial, de Francisco Suárez, afirmando que tendo presente “o contexto
da doutrina suareziana sobre o Estado, podemos entender que não era necessário pensar num influxo de
ideias revolucionárias francesas ou americanas sobre os neogranadinos para explicar as reivindicações
políticas durante a Colônia e na geração anterior à independência” (p. 189).
John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
15
(...)
Mariana também acrescentou – em frases que antecipam o direito à rebelião
formulado por Locke e contido na Declaração de Independência – que não temos
de nos preocupar excessivamente em termos de ordem pública pelo fato de poder
haver um número excessivo de pessoas dispostas a praticar o tiranicídio. Trata-se,
segundo Mariana, de uma iniciativa perigosa, que muito poucos estarão dispostos
a cometer com risco da própria vida. A experiência demonstra que são muitos os
tiranos que não conheceram a morte violenta, e também que os tiranicidas quase
sempre foram proclamados como heróis pela população. Em vez de colocar objeções
comuns ao tiranicídio seria saudável que os governantes temessem o povo e
compreendessem que cair na tirania poderia levar o povo a chamá-los a prestar
contas pelos seus crimes.
Cremos que a partir dos exemplos apresentados é possível ter uma ideia,
não só da riqueza e fecundidade das contribuições dos escolásticos de Salamanca,
como também da multiplicidade de questões que se colocam quanto à relação
da obra de Locke com as teorias e problemas já considerados pela escolástica
católica tardia.
6. Conclusão
Está ainda por fazer um inventário sobre os reais prejuízos materiais e
humanos que pagamos, ao longo da nossa história, por uma equívoca relação
entre “liberalismo” e “catolicismo”. Um equívoco que quase eliminou o papel
germinal do pensamento econômico ibérico dos séculos XVI e XVII, tanto ao
nível do liberalismo econômico como do liberalismo político. Não está em causa
o muito que devemos à tradição do pensamento econômico e político anglosaxônico, mas tal não se deve fazer com o esquecimento do que aconteceu antes
de autores tão notáveis como Adam Smith e John Locke.
A denúncia fundamentada da abusiva ligação feita por Weber entre
protestantismo e desenvolvimento (versus catolicismo e subdesenvolvimento)
passa também pela recuperação dos ensinamentos dos pensadores da Escola de
Salamanca. Uma recuperação pode ajudar-nos a compreender melhor as razões
por que fomos tão longe e por que tão cedo acabamos por perder a dianteira.
Ao procurar evidenciar pontes entre a obra de Locke e as contribuições dos
escolásticos da Escola de Salamanca, este texto pode ser visto como uma
oportunidade para resgatar um saber a que não soubemos dar continuidade.
Um saber que encerra em si as “contradições” que acompanharam a “aventura
das descobertas”, mas que, aprofundado, pode constituir-se como impulso para
uma nova visão das coisas humanas, ajudando assim a esboçar um novo caminho
do meio entre as “sociedades de pobreza” e as “sociedades de consumo”.
Acresce que a familiaridade com o papel seminal do pensamento católico
ibérico é hoje fulcral também para descobrir que a tradição liberal clássica possui
na realidade raízes cuja profundidade vai muito para além da filosofia política
moderna. Daí que o estudo das contribuições dos escolásticos de Salamanca e a
16
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
análise da sua relação com os filósofos liberais que se lhes seguiram possa ser
tanto um valioso exercício de história do pensamento político como também –
em tempos de crise – fonte para uma abordagem política mais integralmente
humana e, por isso, mais genuinamente personalista.
Na verdade, como se procurou evidenciar, a Escola de Salamanca não só
terá sido a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo
econômico, como terá constituído uma importante fonte nutrícia do liberalismo
político, cem anos antes do justamente celebrado Locke.
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John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19
19
Exigências ambientais
exter
nas como bar
externas
barrreiras
comerciais ao Brasil
Stela Luiza de Mattos Ansanelli*
Resumo: O objetivo deste artigo é verificar os casos nos quais o rigor
excessivo das exigências ambientais dos países desenvolvidos constituiu
barreiras técnicas e sanitárias às exportações brasileiras, bem como os
desafios impostos e as possibilidades de superação. É permitido o
protecionismo no âmbito dos acordos multilaterais de comércio para
a proteção da saúde animal, vegetal, humana e do meio ambiente.
Mas os mercados dos Estados Unidos, União Europeia e Japão impõem
algumas exigências excessivas sobre produtos agropecuários e,
recentemente, sobre certos manufaturados. Esse quadro representa
um desafio à competitividade do Brasil, visto que os produtos
tradicionalmente superavitários da pauta brasileira são os mais afetados
por essas medidas. A superação desses obstáculos passa pela montagem
de um sistema de informações, de capacitação institucional, técnica e
financeira e da articulação entre as principais organizações de comércio
dentro e fora do país.
Palavras-chave
Palavras-chave: barreiras comerciais, exigências ambientais
1. Introdução
A preocupação ambiental vem tomando espaço crescente na agenda política
dos governos nacionais desde os anos 60 e, a partir de então, os instrumentos de
política ambiental têm sido utilizados com maior frequência e de forma cada
vez mais variada. Inicialmente as medidas de política ambiental foram
estabelecidas pelos países avançados por meio da implementação de multas e
proibições da produção, seguida pela adoção progressiva de instrumentos
econômicos como taxas e de instrumentos de comunicação como selos
ambientais.
As questões ambientais têm uma interface com o comércio internacional
na medida em que o país que estabelece regras sobre a produção e a importação
de produtos de modo ambientalmente adequado pode afetar a produção e a
comercialização do país exportador. Essas relações, embora inseridas na ordem
dos acordos de comércio multilateral da Organização Mundial do Comércio
(OMC), tornam-se nebulosas diante da dificuldade de identificar a real intenção
*
Stela Luiza de Mattos Ansanelli é Doutora em Economia Aplicada pela Unicamp e professora da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: <[email protected]>.
20
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
do país importador na implementação de uma medida ambiental sobre certos
produtos. Em muitos casos as medidas restritivas estabelecidas pelo país
importador sobre determinados produtos visam garantir objetivos legítimos de
proteção ambiental, mas em outros, tais exigências podem ser medidas
protecionistas revestidas de pretextos ambientais.
Ainda há discussões quanto a essa questão, mas as evidências indicam que,
com a redução das barreiras tarifárias ao comércio resultante do avanço das
negociações multilaterais desde o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt1947), tem sido crescente a quantidade de barreiras não-tarifárias estabelecidas
pelos países, com destaque para as barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias.
Essas barreiras associam-se à segurança nacional, alimentar e à proteção ambiental
(FONTAGÉ, VON KIRCHBACH, MIMOUNI, 2001). Alguns estudos
concluíram que países em desenvolvimento enfrentam maiores dificuldades no
cumprimento das exigências ambientais externas, pois são exportadores de
produtos primários e possuem deficiências em termos de recursos técnicos,
financeiros e institucionais (HOFFMAN, ROTHERHAN, 2006;
VERBRUGGEN et al, 1998)
O objetivo deste artigo é verificar em quais casos a proteção ambiental
excessivamente rigorosa colocada por países desenvolvidos tem se tornado
obstáculo comercial para o Brasil, e avaliar as implicações decorrentes. Neste
trabalho será discutido o significado das exigências ambientais para a dinâmica
do comércio internacional. Serão apresentadas as principais barreiras comerciais
(técnicas, sanitárias e fitossanitárias) de caráter ambiental colocadas sobre as
exportações brasileiras pelos mercados desenvolvidos e a caracterização de seus
marcos regulatórios. Por fim, discutem-se os desafios colocados por essas barreiras,
bem como os possíveis caminhos de superação.
2. As exigências ambientais na dinâmica do comércio internacional
Ao longo do processo de liberalização comercial iniciado com o Gatt em
1947 e sucedido por uma série de rodadas de negociação, vem sendo buscada a
eliminação gradativa de barreiras tarifárias ao comércio internacional. A fim de
evitar que outras medidas não-tarifárias configurassem obstáculos ao comércio,
durante a Rodada Tóquio (1973-1979) foi negociado o Standard Code,
formalizado como o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) na
Rodada Uruguai (1986-1993), na qual também foi estabelecido o Acordo sobre
Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) no âmbito da OMC. Esses acordos
estabeleceram regras quanto às características dos produtos comercializados e
permitem a restrição de produtos que ameaçam a vida humana, vegetal, animal
e o meio ambiente. Mas em alguns casos essas medidas podem ter propósitos
estritamente protecionistas e se tornar barreiras comerciais.
As exigências técnicas estabelecidas pelos países se constituem de normas,
regulamentos e procedimentos de avaliação da conformidade. Tanto as normas
quanto os regulamentos referem-se às características do produto e podem incluir
prescrições, símbolos e embalagens, entre outros, mas normas são medidas
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
21
voluntárias e os regulamentos são mandatórios1. Um procedimento de avaliação
de conformidade é aquele utilizado para, direta ou indiretamente, determinar
que se cumpram as prescrições pertinentes dos regulamentos técnicos ou normas,
como avaliação, prova, inspeção e registro (INMETRO, 2004). As implicações
destas exigências ao comércio internacional são diversas: se um produto não
cumpre as especificações da regulamentação técnica, sua venda não será
permitida, enquanto o não-cumprimento de uma norma, embora não inviabilize
a venda, pode reduzir sua participação no mercado (INMETRO, 2004).
Barreiras técnicas ou sanitárias e fitossanitárias são caracterizadas quando
os regulamentos são usados de forma não transparente ou não são embasados
em normas internacionalmente aceitas; ou, ainda, decorrentes da adoção de
procedimentos de avaliação da conformidade não transparentes e/ou
demasiadamente dispendiosos, bem como de inspeções excessivamente rigorosas
(WTO, 1994).
Conforme algumas evidências, grande parcela do comércio internacional
consiste de produtos que podem ser afetados por barreiras comerciais associadas
ao meio ambiente. Em 1999, 88% das importações foram potencialmente
afetadas por exigências ambientais, US$ 679 bilhões do comércio mundial foram
diretamente afetados por essas medidas e 137 países estabeleceram exigências
ambientais sobre a maioria dos bens comercializados. Esses dados sugerem que,
na prática, essas barreiras restringem o comércio internacional de certos produtos,
sobretudo da cadeia agroalimentar (FONTAGÉ, VON KIRCHBACH,
MIMOUNI, 2001). Para o caso dos países em desenvolvimento, a situação é
mais complexa e exige maior atenção. Foi verificado que as barreiras técnicas
têm se tornado relativamente mais importantes para o acesso a outros mercados
por estes países. Um quinto das exportações de países em desenvolvimento esteve
sujeito a requisitos ambientais estabelecidos pela União Europeia em 1992
(VERBRUGGEN et al, 1998).
Assim, uma lista crescente de exigências ambientais ameaça restringir o
acesso e a entrada de produtos dos países em desenvolvimento no mercado dos
países avançados. Isso implica levantar quais têm sido os casos mais evidentes
para o Brasil e avaliar as dificuldades e os possíveis meios de superação indicados
pela bibliografia pertinente.
3. As barreiras comerciais de caráter ambiental aplicadas sobre as
exportações brasileiras
Os mercados dos Estados Unidos (EUA), União Europeia (UE) e Japão
são os mais exigentes em questões ambientais e de segurança alimentar, o que
nos permite listar as principais barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias dessa
natureza que afetaram (ou afetam) as exportações brasileiras.
3.1. Estados Unidos
1
No âmbito do TBT são considerados apenas os regulamentos técnicos. Há somente um guia de boa
conduta como orientação para adoção de normas.
22
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
O mercado norte-americano é importante para o Brasil, pois as vendas
brasileiras têm se direcionado crescentemente para esse país. Contudo, os
exportadores enfrentam muitos desafios compostos por barreiras comerciais2.
Os EUA contam com inúmeros regulamentos federais, estaduais e municipais
aplicáveis à qualidade, sanidade e inocuidade da produção nacional e das
importações. Tais regulamentos incluem padrões de rotulagem, de boa
fabricação, de embalagem, de práticas sanitárias e sobre aditivos, pesticidas,
corantes em alimentos, certificação de produtos farmacêuticos, de produtos
biológicos, níveis de acidez em enlatados, padrões industriais e sistemas de
inspeção sanitários (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS,
2003; BRASIL, 2001).
Em geral, o sistema normativo norte-americano é complexo e pode
representar barreiras às exportações de produtos brasileiros a partir de elevados
custos e demora nos procedimentos. Existe grande quantidade de normas e
regulamentos em diferentes níveis (federal, estadual e municipal), gerando
incompatibilidade e duplicidade na realização de testes e certificação. Por
exemplo, existem mais de 80 mil normas e regulamentos técnicos federais,
estaduais e municipais e as normas são feitas por mais de 600 instituições. Outros
problemas são a falta de transparência no estabelecimento de normas,
regulamentos e processos de avaliação de conformidade, a demora nos processos
de avaliação de conformidade e o uso limitado de normas e regulamentos
internacionais com equivalência técnica ao regulamento doméstico e a contínua
alteração dos regulamentos (FERRAZ FILHO, 1997; EMBAIXADA DO
BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001).
Um outro tema relevante recente refere-se à Lei de Bioterrorismo
estabelecida após o 11 de setembro de 2001. Foram estabelecidos novos requisitos
para a proteção da cadeia alimentar contra riscos terroristas, incluindo registros
de empresas da área alimentar junto à Food and Drug Administration (FDA),
exigências de notificação prévia à importação de alimentos no território dos
EUA e o estabelecimento de regras de rastreabilidade dos alimentos na cadeia
produtiva e de distribuição e novas disposições para detenção administrativa e/
ou destruição de produtos julgados como suspeitos (EMBAIXADA DO BRASIL
NOS ESTADOS UNIDOS, 2003).
Quanto aos requisitos estritamente ambientais, cabe inicialmente avaliar a
posição do governo dos EUA sobre a vinculação entre comércio internacional e
proteção ambiental no plano multilateral, regional e bilateral. No plano
multilateral, o discurso do governo Clinton era a defesa de medidas de proteção
ambiental e a participação de grupos ambientalistas na OMC; no plano de
integração hemisférica, o governo buscou avançar no suposto vínculo entre temas
ambientais e o comércio continental. No governo Bush houve uma mudança na
perspectiva de vários problemas relacionados ao meio ambiente. Na relação
2
Cerca de 60% dos produtos exportados pelo Brasil aos EUA são afetados por barreiras comerciais
(tarifárias e não-tarifárias), principalmente os produtos brasileiros de maior competitividade (EMBAIXADA
DO BRASIL NOS EUA, 2003; FUNCEX, 2007).
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
23
comércio-meio ambiente, essas questões não têm sido mais prioritárias nas
negociações da OMC e da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)
(EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL,
2001).
No entanto, os riscos protecionistas de medidas inspiradas por motivos
ambientais têm demandado atenção dos parceiros comerciais dos EUA. Por
exemplo, o país utiliza uma lista de espécies do Apêndice II da Convenção
sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em
Perigo de Extinção para proibir certas importações, como o mogno. Além disso,
a proliferação de rótulos ambientais pode constituir barreiras, o que conduz ao
debate interno sobre ecolabelling e sobre acordos ambientais multilaterais
(BRASIL, 2001).
Como requisitos e instituições relacionados de forma indireta com a
proteção ambiental pode-se destacar o Sistema de Análises de Risco e Pontos
Críticos de Controle (Hazard Analysis and Critical Control Point System –
HACCP), que é o principal instrumento de controle de sanidade dos produtos
consumidos nos EUA dos seguintes tipos: alimentos enlatados de baixa acidez,
produtos de pesca, sucos de frutas sob a égide do FDA e carnes e frango sob a
égide do Departamento da Agricultura. Os requisitos do HACCP são
operacionais em todas as fábricas brasileiras autorizadas a exportar carnes
processadas para os EUA; para a pesca, o importador é responsável pela verificação
de conformidade com o HACCP do produto originário do Brasil. Todos os
embarques precisam ser inspecionados e certificados pelas autoridades brasileiras.
O importador é obrigado a vistoriar as instalações do exportador e obter registros
da implementação de seu sistema HACCP (EMBAIXADA DO BRASIL NOS
ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001).
As regras de etiquetagem também estão indiretamente relacionadas às
restrições ambientais. Estas envolvem procedimentos que objetivam fornecer
ao consumidor informações, mas o excesso de exigências pode constituir entrave
às importações. Nos EUA há um baixo nível de uso, desconhecimento ou
contradição com os padrões internacionais. Existem 2,7 mil autoridades que
requerem certificados particulares de segurança para produtos vendidos ou
instalados em suas jurisdições. Nestas condições, adquirir informações necessárias
e satisfazer os procedimentos exigidos constitui um grande desafio aos
exportadores (BRASIL, 2001).
Dentre os casos específicos de barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias
registrados, há exigência de certificação anual dos países exportadores de camarão
desde os anos 90, que depende da existência, nas legislações nacionais, de
programas ambientais compatíveis com os programas em vigor nos EUA para a
proteção de tartarugas marinhas (Emenda de 1989 à Lei de Proteção a Espécies
em Perigo de Extinção – Endagered Species Act). Segundo tal condição, o
Departamento de Estado exigiu que redes de pesca de arrasto de camarão em
alto mar estejam equipadas com dispositivos de escape para tartarugas (Turtle
Excluder Devices – TEDs). Como resposta, a frota camaroneira da costa
nordestina brasileira se converteu ao uso do equipamento requisitado (a fim de
24
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
exportar com certificado) e o Brasil tornou claro seu compromisso com a
preservação da espécie por meio do projeto Tamar e da assinatura da Convenção
Interamericana para Proteção e Conservação das Tartarugas Marinhas
(EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL,
2001). A legislação dos EUA foi questionada e, em 1998, o Órgão de Apelação
da OMC determinou que a pesca com TEDs constituía discriminação arbitrária
e injustificada ao comércio internacional, devendo os EUA mudar sua legislação
até 1999. Os EUA propuseram uma regulamentação mais flexível e transparente
no exame dos programas de pesca de outros países, considerando diferentes
condições de pesca de camarões, e foi autorizada a importação de camarão de
países que, mesmo não certificados, comprovassem a pesca com TEDs. O Brasil,
apesar de exportar com certificado de uso do equipamento, continuou fora da
lista dos países certificados até 2002 (EMBAIXADA DO BRASIL NOS
ESTADOS UNIDOS, 2003; BRASIL, 2001).
Podemos ter uma idéia do impacto da exigência dos TEDs e da
“descertificação” sobre as exportações brasileiras de camarão para os EUA a
partir da tabela 1. Os dados indicam que, apesar das restrições, o Brasil tem
grandes vantagens comparativas neste produto.
Tabela 1. Brasil: Expor
tações de camarão aos Estados Unidos
Exportações
Fonte: EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003
Outro caso é o da gasolina
gasolina. O Regulation of Fuels and Fuel Additives –
Standards for Reformulated and Conventional Gasolines, instituído pela
Environmental Protection Agency (EPA) em 1993 para controlar a emissão de
poluentes, determinava o padrão de emissão de poluentes com base no nível de
emissão de gasolina produzida pelas refinarias domésticas em 1990. O caráter
discriminatório referia-se à diferença na base de cálculo de emissão para
estrangeiros, uma vez que as refinarias domésticas poderiam calcular sua própria
base de comparação, ou seja, o nível de emissão de seu produto em 1990,
enquanto as refinarias estrangeiras teriam de utilizar uma base de comparação
estabelecida pela EPA, ancorada na emissão média das diferentes gasolinas
vendidas nos EUA em 1990. Por este motivo o caso resultou na abertura de
painel na OMC em 1995 pela Venezuela e com posterior associação do Brasil
(BRASIL, 2001).
Para frutas e vegetais
vegetais, as exportações brasileiras têm sido prejudicadas
pela aplicação de regulamentos sanitários e fitossanitários. A certificação e a
autorização dessas importações também envolve um processo longo e custoso,
bem como procedimentos de inspeção nas duas pontas: nos portos exportadores
e nos portos de entrada (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS
UNIDOS, 2003; FUNCEX, 2007). O FDA elaborou em 1998 uma proposta
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
25
de padrões voluntários de segurança para minimizar os riscos microbianos à
segurança alimentar para frutas e vegetais (Guide to minimize microbial food
safety hazards for fresh fruits and vegetables). Com isso a exportação de produtos
brasileiros, sobretudo de pequenos produtores, tem sido prejudicada pelo grande
número de exigências e de entidades administradoras, pela falta de
compatibilidade dos padrões nacionais com os internacionais do Codex
Alimentarius e pela necessidade de recursos humanos e financeiros significativos
para cumprir os requisitos de exportação e os custos das modificações exigidas
nos processos de fabricação e embalagem. Outros obstáculos seriam a proibição
de importações por razão de fitossanidade de mamão e melão (exceto os
originários de áreas certificadas), cítricos, figos, abacate, caqui, maracujá e
carambola. Soma-se a isso a necessidade de licença prévia, que abrange 100%
dos produtos, e de tratamentos especiais, como para o ingresso de produtos por
portos específicos ou tratamentos químicos e térmicos para produtos com entrada
permitida (abacaxi, agrião, alho, maçã, inhame, uva e manga, entre outros). Há
ainda a burocracia do Departamento de Agricultura dos EUA no exame de
controle de pragas dos exportadores para este mercado, sendo que estes
procedimentos podem levar anos, como ocorreu com o mamão papaia, cuja
aprovação durou 5 anos (BRASIL, 1999; EMBAIXADA DO BRASIL NOS
ESTADOS UNIDOS, 2003, FUNCEX, 2007; BRASIL, 2001).
nes
Também por razões de fitossanidade, as exportações brasileiras de car
carnes
estão restritas ou proibidas. Quanto à carne bovina in natura, tem sido proibida
a importação de carne fresca e congelada em razão da ocorrência de febre aftosa
no rebanho, apesar dos progressos na prevenção e da erradicação da doença no
Brasil, que são suficientes para viabilizar o processo de certificação de carne in
natura procedente de certas regiões do país. Em relação à carne bovina
processada, os EUA têm um esquema rigoroso de fiscalização da qualidade
sanitária pelo Food Safety and Inspection Service (FSIS), por meio de inspeções
periódicas em frigoríficos e processadores brasileiros e de reinspeção aleatória
de produtos importados nos portos de entrada. Recentemente o FSIS orientou
para o estabelecimento da equivalência entre as práticas sanitárias dos países
exportadores em relação às aplicadas nos EUA com ênfase no HACCP
(FUNCEX, 2007). Foi proibida a importação de carne suína in natura e é
requisitada uma declaração de que o produto esteja livre de cólera suína, doença
vesicular suína e febre suína pelo Ministério de Agricultura para ingresso no
processo regulatório. No caso da carne de frango, o Brasil não comercializa este
produto nos EUA, embora seja o maior exportador do mundo; os obstáculos
enfrentados referem-se à necessidade de certificação do sistema de inspeção
sanitário brasileiro pelo FSIS como equivalente ao norte-americano e de
certificação, pelas autoridades brasileiras, de que o Brasil está livre da doença de
Newcastle3 (FUNCEX, 2007).
O Ministério da Agricultura passou a requerer a partir de outubro de 2002,
no âmbito do Programa Nacional Orgânico, a certificação da rotulagem de
3
26
O Brasil já tem declarações de estar livre desta doença em algumas regiões.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
produtos orgânicos nacionais e importados. Há três tipos de rótulos: “100%
organic”, devendo conter apenas ingredientes orgânicos (exceto sal e água);
“organic”, devendo conter 95% de ingredientes orgânicos; e “made with organic
ingredients”, devendo conter, no mínimo, 70% de ingredientes orgânicos. Os
exportadores podem obter certificação de rotulagem diretamente de agência
reconhecida pelo Ministério ou obter reconhecimento da avaliação da
conformidade, a partir da garantia por parte do governo do país fornecedor de
que uma agência certificadora naquele país pode cumprir os requisitos da
legislação norte-americana de rotulagem e de certificação de produtos orgânicos
(EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS, 2003; FUNCEX,
2007).
Além desses requisitos de certificação de rotulagem, há um novo requisito
estabelecido pela Lei Agrícola de 2002 de rotulagem por país de origem – Lei
de Rotulagem por País de Origem (Country of Origin Labelling – Cool). Este
se iniciou de modo voluntário e é aplicável à comercialização varejista de cortes
de carne bovina, suína e ovina, peixes, frutas, vegetais e amendoim. Tais
legislações, por resultarem em custos adicionais associados com a verificação de
origem do produto e despesas adicionais de rotulagem, podem desestimular as
exportações brasileiras (EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS UNIDOS,
2003; FUNCEX, 2007).
3.2. União Europeia
O sistema normativo da União Europeia tem se caracterizado por exigências
rigorosas (e algumas vezes divergentes das internacionais) em termos de
regulamentos técnicos e de certificação, bem como por demora nos processos
de certificação e de aprovação sobre as exportações de países fora da região, o
que aumenta os custos destes. De uma maneira geral, tais restrições se devem à
falta de uniformidade de normas e regulamentos técnicos entre países-membros,
o que dificulta a adequação a diferentes requisitos nacionais. Alguns regulamentos
referem-se também a processos produtivos que devem seguir o padrão de
produção da União Europeia. Outras exigências constituem-se de rótulos
específicos, cuja entrada de produtos no mercado deve ser aprovada somente
por laboratórios localizados na Europa e reconhecidos pela UE. Apesar de o
exportador de outros países para a região poder adotar os padrões da UE para
atender aos requisitos essenciais mediante soluções de equivalência, não há
registros destes casos (BRASIL, 2001; FERRAZ FILHO, 1997; FERRAZ et
al, 1997b).
No que se refere diretamente aos requisitos de regulamentação ambiental,
há uma vasta legislação com destaque para o Programa Comunitário de
Rotulagem Ambiental e os requisitos de etiquetagem de produtos e materiais
recicláveis. O primeiro baseia-se no uso do selo ecológico aprovado pelo Conselho
de Ministros da UE em 1992, que visa influenciar o comportamento do
consumidor quanto aos impactos ambientais do produto. Para obtenção do selo
é necessário comprovar que o processo e o ciclo de vida do produto atendem aos
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
27
critérios estabelecidos. Tais critérios existem para certos produtos, como
fertilizantes, máquinas de lavar e papel higiênico. O caráter restritivo do selo é
indireto por meio da influência sobre a decisão dos consumidores, o que tende a
elevar os custos para exportadores brasileiros realizarem testes de avaliação de
conformidade (BRASIL, 2001). Outro importante requisito parte da aplicação
de uma norma estabelecida em 1996, uma Diretiva da Comissão Europeia que
estabelece requerimentos de marcação para identificar a possibilidade de
reutilização e reciclagem das embalagens (BRASIL, 2001).
Em termos de regulamentos relacionados de forma indireta à questão
ambiental, encontram-se os regulamentos sanitários, fitossanitários e de saúde
animal que proíbem a importação de alguns animais e carnes sob a exigência de
serem originários de estabelecimentos aprovados pela Comissão Europeia. No
que se refere às barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias específicas por
produtos, as exigências colocadas sobre a importação de animais e carnes
resumem-se, principalmente, à sanidade animal e à inocuidade alimentar. Quanto
à sanidade, é necessária a habilitação pela Comissão Europeia dos
estabelecimentos exportadores de produtos de origem animal para a região
conforme Diretiva Comunitária 92/46. Este regulamento constitui uma barreira
técnica na medida em que o processo de habilitação é lento, realizado sem os
recursos necessários, há requisitos nacionais que não coincidem com os
comunitários e as restrições da UE são mais rigorosas do que as estabelecidas
pelo Codex Alimentarius4 (BRASIL, 2001). Em relação à inocuidade, as
exportações de origem animal estão condicionadas pela Diretiva Comunitária
96/23 à existência no país de origem de planos de controle de resíduos, que são
classificados na legislação comunitária como substâncias proibidas (hormônios
de crescimento), medicamentos veterinários (antibióticos e vermífugos) e
contaminantes (pesticidas e metais pesados, entre outros). Essa é uma barreira
técnica, pois a diretiva não foi notificada à OMC e incluiu exigências tanto de
controle de substâncias não permitidas nos terceiros países (como hormônios de
crescimento) como de controle mais rigorosas do que as recomendadas
internacionalmente. Os países podem perder a habilitação de exportação se
descumprirem os requisitos e é exigida uma etiquetagem de rastreabilidade de
toda a carne bovina comercializada na UE (BRASIL, 2001).
Também existem requisitos sanitários e fitossanitários relacionados ao
controle da higiene, de doenças e de resíduos para frutas e vegetais
vegetais. Os controles
da higiene são realizados no desembarque, quando é necessário o certificado
sanitário de exportação por controles de higiene e de sanidade vegetal. Destacamse os seguintes casos: mangas, goiabas e papaia, cujo acesso é afetado por controles
de higiene; cítricos, nos quais a adoção de medidas contra o cancro cítrico e a
4
Alguns exemplos: carne bovina, cuja importação é restrita pela ocorrência de febre aftosa e, para tanto,
a UE coloca condições específicas de criação, engorda e manuseio, além da adoção de medidas referentes
à crise da “vaca louca”, embora não haja registros da doença no Brasil; carne bovina com osso, bovinos
vivos e sêmen de bovinos, cuja importação é proibida devido à febre aftosa; carne suína fresca, cuja
importação é proibida devido à febre suína clássica; ovinos em pé que necessitam de certificação para
entrada.
28
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
mancha negra é desproporcional aos níveis de risco, além de serem modificadas
sem avaliação de análise de riscos (BRASIL, 1999; BRASIL, 2000). Os controles
de contaminantes alimentares são tidos como barreiras científicas e envolvem a
fixação de limites de tolerância para substâncias como aflatoxinas, ocratoxinas,
dioxina e resíduos de pesticidas. Como exemplos de obstáculos às exportações
brasileiras, tem-se o estabelecimento de níveis de aflatoxina acima dos sugeridos
pelo Codex para frutas secas e o estabelecimento de uma legislação mais rigorosa
para o limite aceitável de resíduos de pesticidas (ditiocarbamato) sobre o mamão
papaia, que se fixam na casca desta fruta, do que o limite para produtos ingeridos
diretamente, como alface e morango (BRASIL, 2001; BRASIL 2000).
Encontram-se exigências sobre a produção agrícola biológica e
requerimentos para a comercialização de produtos orgânicos no mercado
comunitário. Para tanto foram definidas normas para a produção, o sistema de
controle, as disposições administrativas e o estabelecimento das modalidades
para exportadores de terceiros países sob o Regulamento 2092/91 do Conselho
de 24 de junho de 2001. Dos exportadores desses produtos para a UE, apenas 6
países encontram-se certificados, sendo a Argentina o único país do Mercosul.
Também pode ser identificado como um obstáculo adicional à exigência da UE
o cumprimento de determinados requisitos para que entidades sejam reconhecidas
como certificadoras de produtos orgânicos ou biológicos (BRASIL, 2001).
Para a exportação de alimentos processados são exigidos, conforme a
regulamentação Novel Foods Regulation de 1997, selos identificando os
ingredientes e os produtos elaborados a partir da biotecnologia, como ocorre
nos casos do milho e da soja (BRASIL, 2001).
Para produtos químicos encontra-se em vigor desde junho de 2007 o
regulamento Reach (Registration, Evaluation and Authorization of Chemicals)
sobre o registro, a avaliação, a autorização e a restrição de substâncias químicas,
aplicável a todas as empresas que comercializam na região ou com países da
região. O Reach visa assegurar um elevado nível de proteção da vida humana e
do meio ambiente, exigindo o registro de cerca de 30 mil substâncias a ser
efetuado ao longo de 11 anos. A comercialização da produção com ou na UE
exigirá testes, análises químicas e toxicológicas e elaboração de estudos, entre
outros procedimentos para cada substância. Esse regulamento pode se tornar
uma barreira técnica para o Brasil na medida em que a empresa exportadora do
país precise incorrer em altos custos para regularizar as substâncias contidas em
seus produtos para venda ao mercado europeu (HENRIQUE; ANTUNES,
2007).
Outros produtos industrializados, como eletroeletrônicos
eletroeletrônicos, enfrentam novas
regulamentações para entrar no mercado europeu por causa da diretiva que
restringe o uso de substâncias perigosas, como chumbo, mercúrio, cádmio e
cromo, entre outros, em vigor desde 2006. Esse requisito, conhecido pela sigla
RoHS (Restriction of the certain Hazardous Substances), pode se tornar uma
barreira comercial por ser bastante rigorosa e complexa, pois envolve alterações
de produto e processo significativas e procedimentos específicos para a
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
29
demonstração da conformidade. De qualquer forma, a produção do setor no
Brasil já tem sido alterada, porque essa medida vem sendo transmitida
principalmente pelas empresas transnacionais e pelos clientes (ANSANELLI,
2008).
3.3. Japão
O sistema japonês de normas e regulamentos técnicos caracteriza-se, de
uma forma geral, por exigências muito rigorosas, diferentes das internacionais,
por lentidão nos processos de certificação e pela falta de transparência nos
procedimentos. Alguns desses padrões têm se tornado barreiras técnicas, pois
seu estabelecimento pelo governo e pela indústria não tem acompanhado a
evolução tecnológica e vem contribuindo para restringir as exportações de outros
países (BRASIL, 2001).
Em termos de requisitos ambientais, o Japão possui um oneroso esquema
de certificação de produtos orgânicos. No que toca aos regulamentos
indiretamente relacionados à questão ambiental, o país impõe uma severa
legislação sanitária e fitossanitária, sobretudo à importação de frutas. Esses
também são os produtos com reduzida participação no mercado japonês
(BRASIL, 2001).
O Japão vem aplicando severas restrições de ordem técnica e fitossanitária
que impedem o acesso de frutas e vegetais em seu mercado desde a Rodada
Uruguai. Foram identificadas barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias que
inviabilizaram as exportações brasileiras devido à exigência de certificado
fitossanitário emitido por uma autoridade competente no país exportador, à
inspeção japonesa no local do plantio (como a importação por portos específicos
de alguns grãos) e à não aceitação dos métodos brasileiros de controle de doenças
(BRASIL, 1999). A Lei Sanitária de Alimentos japonesa sofreu mudanças desde
1998 e compreende barreiras aos exportadores brasileiros por motivos
fitossanitários ou de quarentena. Conforme os regulamentos do país, foram
estabelecidas categorias de classificação dos vegetais e para a sua preparação,
que incluem: 1) itens de importação proibida, tais como vegetais provenientes
de regiões com incidência de pestes não existentes no Japão, pestes e patogênicos
vegetais, terras e vegetais plantados, que incluem manga, tomate, maçã e
jabuticaba, entre outros; e 2) itens sujeitos a quarentena, tais como vegetais cuja
importação não é proibida, mas que estão sujeitos à inspeção no local de cultivo
ou na entrada e incluem plantas vivas de tomate e batata, as raízes vivas de
abacate e cana de açúcar, chá, milho e amendoim5 (BRASIL, 2001). Outros
aspectos relacionados à importação de frutas e vegetais e que se tornaram barreiras
técnicas são: a falta de transparência nas exigências de fumigação, pois o
tratamento de fumigação para produtos hortifrutícolas frescos é necessário, caso
5
Um dos problemas da Lei de Quarentena, embora ela tenha sido revisada na Rodada Uruguai, é que não
distingue organismos nocivos de inofensivos.
30
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
haja insetos vivos no carregamento, o que aumenta o tempo de desembaraço
das importações e afeta sua qualidade6; e a demora na certificação, já que a
política de certificação de tratamento adequado contra pestes exige a avaliação
de conformidade individualizada para cada produto, implicando a realização de
testes adicionais para importação de cada nova espécie (BRASIL, 2001).
Na área da biotecnologia
biotecnologia, o governo japonês previa a implementação de
rotulagem obrigatória para 24 alimentos processados e semiprocessados feitos
de milho e soja em 2001. Quanto aos suplementos alimentares
alimentares, estes produtos
são considerados como drogas pelo Japão, o que tende a resultar em restrições
severas na fórmula, dosagem e formato para varejo e a criar custos excessivos
para os países que desejam exportar para esse país. Em relação aos alimentos
processados, alguns aditivos, mesmo admitidos internacionalmente como seguros
para a saúde humana, são proibidos no Japão (BRASIL, 2001).
Os produtos orgânicos
orgânicos, mesmo certificados pelos Estados Unidos, devem
também ser certificados pelas organizações acreditadas pelo Ministério Japonês
de Agricultura, Floresta e Pesca (Maff) e sediadas no Japão, sendo estes processos
onerosos e demorados (BRASIL, 2001).
A importação de carne bovina é proibida devido à febre aftosa em alguns
pontos no Brasil, mesmo da carne originária de áreas certificadas que não
apresentam a doença. A carne de frango possui importações restritas em
decorrência da alegada contaminação por resíduos de nicarbazina (BRASIL,
2001).
Uma síntese de todos esses casos encontra-se no quadro 1.
6
As exportações brasileiras de laranja foram inviabilizadas por este motivo.
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
31
Quadro 1. Barreiras técnicas ambientais, sanitárias e fitossanitárias que
afetaram as exportações brasileiras (por produto e mercado de destino)
32
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
4. Os desafios e as possibilidades de superação do Brasil
Das barreiras técnicas e sanitárias e fitossanitárias listadas por mercado de
destino, a maioria se concentra em produtos primários, como frutas e vegetais,
animais e carnes e alimentos. Todos os mercados analisados colocam barreiras
sobre esses produtos. Mas também se nota que alguns regulamentos recentes e
extremamente rigorosos, como as exigências sobre produtos químicos e
eletroeletrônicos, têm efeitos potenciais sobre as exportações de ramos mais
intensivos em tecnologia.
Na pauta exportadora brasileira, a categoria de produtos primários é
classificada como atividade superavitária. Apesar da oscilação do saldo comercial
brasileiro, desde 1993 esses produtos, constituídos por commodities em sua maioria
(como abate de animais e agropecuários), registraram elevados superávits
comerciais acima de US$ 1 bilhão ao ano. No outro extremo, os setores de
elementos químicos, farmacêutica e perfumaria, refino de petróleo e
petroquímicos, químicos diversos e equipamentos eletrônicos foram classificados
como os altamente deficitários, pois são importadores líquidos desde 1993
(RIBEIRO, 2007). Esses setores altamente deficitários coincidem com a segunda
categoria de produtos sobre os quais podem incidir barreiras técnicas ambientais.
Dessa forma, a contraposição da frequência e incidência de barreiras
ambientais com a caracterização da pauta exportadora brasileira pode sinalizar
as fragilidades e os desafios que o país venha a enfrentar. As barreiras não-tarifárias
(técnicas, sanitárias e fitossanitárias) de caráter ambiental tendem a evitar o
aumento da participação das exportações de produtos nos quais o Brasil possui
vantagens no comércio mundial, visto que são os altamente superavitários. Mas
as barreiras técnicas ambientais também têm um potencial negativo sobre
manufaturados, no sentido de inibir o crescimento da participação de exportações
de produtos de maior conteúdo tecnológico, produtos nos quais se poderia
agregar valor.
Quais são as sugestões, em termos de orientação política, diante desses
desafios? Há poucos estudos realizados no Brasil sobre barreiras técnicas colocadas
sobre as exportações brasileiras. Mas os trabalhos disponíveis nos permitem
identificar diagnósticos e recomendações gerais7. As causas das insuficiências
encontradas diante das exigências técnicas e sanitárias e fitossanitárias são de
natureza interna e externa. No Brasil os maiores obstáculos encontrados devemse à falta de:
• informação por parte das empresas sobre as barreiras técnicas e sobre as
legislações internacionais;
• capacitação, pelo baixo grau de desenvolvimento do sistema de
normalização, falta de homologação dos laboratórios brasileiros, precariedade
do sistema de avaliação interna de conformidade e reduzida interação com
organismos internacionais de normalização;
7
Os estudos utilizados, cujas orientações são semelhantes ou complementares, são: BRASIL (2003);
FERRAZ FILHO (1997); FERRAZ et al (1997 a e b); EMBAIXADA DO BRASIL NOS ESTADOS
UNIDOS (2003); BRASIL (2001); BRASIL (2000); BRASIL (1999) e ALMEIDA E PRESSER (2003).
Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35
33
• apoio técnico por parte das instituições governamentais e falta de
convergência entre as ações dos Pontos Focais do TBT e do SPS no Brasil,
respectivamente, Inmetro e Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
No exterior os obstáculos foram atribuídos aos altos custos dos
procedimentos de certificação e de testes estrangeiros, aos prazos e à submissão
a critérios seletivos nem sempre justificados cientificamente. Também merece
destaque a lenta adoção de normas internacionais pelos países importadores e a
incapacidade, no âmbito da OMC, de solucionar estes problemas.
As recomendações sugeridas referem-se ao esforço de criar, internamente,
um sistema de informações para identificar as barreiras de forma adequada;
buscar a harmonização das exigências em nível internacional; criar um sistema
de avaliação de conformidade com reconhecimento internacional; obter maior
conhecimento dos acordos TBT e SPS; agir com maior agressividade e interesse
por parte dos exportadores; fornecer assistência técnica e treinamento do pessoal
dos Pontos Focais; e realizar capacitação em áreas específicas de saúde, meio
ambiente e segurança.
Para alcançar tais metas, torna-se necessário o apoio do governo, bem como
a cooperação entre níveis de governos e, do ponto de vista externo, o fornecimento
de assistência técnica e financeira por parte dos países desenvolvidos, por meio
de programas de cooperação com organismos de normalização e avaliação de
conformidade, transferência tecnológica e o desenvolvimento de maior
cooperação regional no âmbito do Mercosul para harmonização dos
regulamentos técnicos e sanitários. É importante também que a estrutura
institucional para o estabelecimento de normas e regulamentos técnicos e a
promoção de políticas públicas, como os requerimentos ambientais e de
agricultura orgânica, não seja separada das instituições necessárias para a promoção
do comércio exterior.
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35
Quem avalia o risco? –
perspectiva histórica e
análise interdisciplinar de
decisões sobre risco
Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni*
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir o processo
de tomada de decisão no contexto de produção do índice EMBI+ do
JP Morgan e das notas referentes à avaliação de investimento,
fornecidas por agências especializadas como Standard & Poor’s,
Moody’s e Fitch, assim como a repercussão dessas variáveis no mercado
financeiro e na estabilidade de um país, utilizando a campanha
presidencial de 2002 e início do novo governo em 2003 como ilustração.
A hipótese deste trabalho aponta para a ocorrência de vieses tanto no
cálculo como na utilização destas variáveis por parte dos agentes
econômicos, mídia e autoridades, os quais estão sujeitos a inúmeras
limitações e distorções cognitivas e emocionais de diversas ordens,
conforme se pôde verificar também nos eventos associados à crise
financeira mundial nitidamente verificada em 2008.
Palavras-chave
Palavras-chave: concurso de beleza keynesiano, funcionamento mental,
índice EMBI+, Psicologia Econômica, risco-país, tomada de decisão.
Introdução
No momento em que muito se discute sobre risco e sua avaliação,
apontando-se graves falhas na atuação das agências especializadas, que deixaram
de apontar situações de insolvência em grandes bancos, seguradoras e outras
empresas na profunda crise econômica que o mundo enfrenta desde 2008, mostrase oportuno lançar outro tipo de luz sobre essa questão, a partir de um episódio
*
Vera Rita de Mello Fer
Ferrreira é psicanalista e doutora em Psicologia Social (PUC-SP), professora da
PUC-SP e representante no Brasil da International Association for Research in Economic Psychology
(Iarep). E-mail: <[email protected]>. Thiago Lisoni é economista formado pelas Faculdades de
Campinas (Facamp) e corretor financeiro no mercado imobiliário na província de Ontário (Canadá). Email: <[email protected]>. Elementos do presente artigo foram apresentados, em versões preliminares,
por FERREIRA, em Again, what is it that you believe? – a study of psychological factors at work over the
market throughout major political-economic events. Anais do XXVIII Iarep Annual Colloquium on
Research in Economic Psychology. Christchurch, Nova Zelândia, 2003; e Informações econômicas e ilusão
– uma contribuição psicanalítica ao estudo de fenômenos econômicos. Ágora – Revista de Teoria
Psicanalítica, 10 (1): n.º1, 2007; e por LISONI, em O risco país e os fundamentos macroeconômicos: a
utilização do índice EMBI+. Trabalho de Conclusão de Curso, Facamp, 2004 (não publicado).
36
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
recente na história brasileira. É possível que, em 2002, o Brasil possa ter sido
alvo de avaliações enviesadas, o que afetou de modo drástico o cenário econômico
da época.
Este artigo discute as limitações e vieses de diversas ordens (cognitiva,
emocional, temporal e política, para enumerar algumas delas) a que estariam
sujeitos, a exemplo de todas as demais pessoas, aqueles especialistas que são
responsáveis pelas classificações de risco de crédito (fornecidas por agências
especializadas, como Standard & Poor’s, Moody’s e Fitchy) e risco de mercado
(calculado pelo JP Morgan através do EMBI+). A discussão tem como foco o
processo de tomada de decisão envolvido na produção dessas variáveis e sua
repercussão no mercado financeiro e na estabilidade de um país, utilizando o
caso brasileiro, à época da penúltima campanha presidencial, em 2002, e início
do novo governo, em 2003, como ilustração.
A questão proposta para debate é: até que ponto as informações contidas
nestas referências gerais mencionadas são objetivas e indiscutivelmente confiáveis?
Embora ampla e quase unanimemente aceitas por analistas econômicos, governos
e mercados financeiros, levanta-se a hipótese de haver parcialidade de ordem
psíquica em sua elaboração.
Nossa argumentação apoia-se em três grandes linhas teóricas e, em alguns
casos, também empíricas, representadas por:
1. teorias desenvolvidas pelo economista John Maynard Keynes, que, ao
contrapor-se à teoria econômica clássica, oferece importante material para uma
discussão sobre tomada de decisões a partir de hipóteses como a do “concurso
de beleza”;
2. dados coletados em experimentos realizados por pesquisadores da
interface Psicologia-Economia a respeito das limitações, distorções e
vulnerabilidades apresentadas pelos agentes em processos decisórios, com
destaque para: a teoria da racionalidade limitada de Simon (1978); o programa
de pesquisa empreendido por Kahneman, Tversky e colaboradores, sobre
heurísticas, vieses e a teoria do prospecto (Tversky e Kahneman [1974],
Kahneman e Tversky [1979], Kahneman [2002]); regras de decisão, de Earl et
al. (2007); pressões a que estão submetidos gestores do mercado financeiro, de
Lundberg (2000); influência de fatores afetivos sobre a percepção na mídia, de
Roos (2006) e Rosa, Enrietto e Gioiosa (2005);
3. teorias psicanalíticas sobre o funcionamento psíquico e o pensar, com
ênfase sobre o papel das emoções sobre a razão (Freud, 1911-1976; Klein, 19631985; Bion, 1961-1967).
Para discutir o exemplo de impacto sobre a economia em geral promovido
pela interação entre a divulgação do risco-país (EMBI+) e outros fatores de
natureza político-econômica do Brasil entre 2002 e 2003, são analisadas
manchetes de jornal da época, cotejadas com índices relevantes de desempenho
econômico do país.
Uma breve retrospectiva, a respeito do estabelecimento dos índices de
avaliação de risco, referentes à capacidade de os países honrarem dívidas
contraídas com credores internacionais, refletidos diretamente no
comportamento de seus mercados financeiros, é apresentada a seguir.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
37
Risco-país – uma breve retrospectiva e debate
Políticas econômicas e decisões no âmbito financeiro costumam ser
balizadas por parâmetros usados como referências gerais. O risco-país, índice
elaborado pelo JP Morgan, e as notas referentes à classificação de risco de crédito,
fornecidas por agências especializadas, como Standard & Poor’s, Moody’s e
Fitch, são alguns deles. Economistas podem explicar, com relativa facilidade,
como estas referências gerais são obtidas, com base em fatores quantitativos e
qualitativos. Em 2007, no Brasil, questionou-se as classificações de risco em
função de sua lentidão para adequar-se aos novos índices resultantes da
modificação da metodologia adotada pelo IBGE para medir o PIB dos últimos
anos. Esta revisão metodológica representou uma melhoria deste indicador e de
outros que dele decorrem. Enquanto o JP Morgan absorveu com maior agilidade
esta modificação por ser sensível a eventos de curto prazo, as demais agências de
classificação de risco não o fizeram de modo concomitante, tornando-se alvo de
críticas por parte de alguns analistas de mercado1.
De acordo com Canuto e Santos (2003, p. 6), os riscos oriundos da assimetria
de informação podem ser eliminados ou minimizados, dependendo do
aperfeiçoamento de transações financeiras entre aplicadores e tomadores de
recursos de fatores que mitiguem a ocorrência dessas assimetrias2. Tais
mecanismos elevam a disposição a pagar por parte do devedor, mas operam
com custos e nem sempre com eficácia suficiente para contornar o problema.
As agências ou instituições – privadas e públicas – de classificação (rating)
de riscos de crédito inserem-se na coleta e processamento de informações antes
das operações, tornando-as viáveis a um custo menor. A rigor, a presença de
agências supridoras de ratings constitui elemento necessário para que a oferta
de recursos financeiros, em qualquer economia, não fique restrita a bancos
(Canuto e Santos, 2003, p. 6).
Portanto, em um primeiro momento, as agências de rating inseriram-se no
mercado para viabilizar as operações de potenciais compradores de bônus, notas
promissórias, commercial papers e ações, que não eram investidores sofisticados
como os bancos, tendo a seu dispor um departamento de análise de crédito
pronto para classificar qualquer empresa no quesito capacidade de pagamento.
Para atender a esses investidores, a principal missão dessas agências de rating
era calcular o risco corporativo, ou seja, avaliar de forma independente as empresas
e dar-lhes, dentro de uma escala adotada por todas, um conceito para sua
capacidade de cumprir obrigações (Franco, 2000).
Já num segundo momento, quando países emergentes, ou empresas neles
sediadas, desejam inserir-se nos mercados de capitais dos países centrais para
vender bônus de forma similar às empresas locais, os investidores sentem-se
1
Ver, a este respeito, por exemplo, matéria do jornal O Estado de S.Paulo, 15 abr 07, sob a manchete
“Agências de risco são ‘rebaixadas’”.
2
Os exemplos de Canuto e Santos (2003, p. 6) são: coleta e processamento de informações antes das
operações; firmação de contratos e monitoramento de sua execução de modo a controlar o uso dos
recursos após o repasse; estabelecimento de garantias com o fim de minimizar as perdas em caso de
inadimplência do devedor.
38
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
atraídos pelas elevadas taxas de remuneração, mas não têm instrumentos de
análise suficientes para avaliar os riscos envolvidos. Nesse momento, a indústria
de “classificação de risco”, que se dedicava predominantemente à análise de
risco corporativo, passou a lidar com um outro tipo de risco, o risco soberano
(Franco, op. cit.).
Risco soberano é o “(...) risco de crédito associado a operações de crédito
concedido a Estados soberanos” (Canuto e Santos, 2003, p. 13) e, embora
fortemente relacionado ao risco-país, é distinto deste. O segundo é mais
abrangente, pois engloba tanto o risco associado ao governo central como o
risco de inadimplência dos demais devedores residentes em um país. Já o primeiro
refere-se somente à capacidade e disposição de o governo central honrar
integralmente, nos prazos e condições acordados, suas dívidas com credores
privados. Os riscos de conversibilidade ou transferência de divisas, decorrentes
da possibilidade de controles de capitais serem subitamente estabelecidos pelo
Estado soberano, podem, porém, comprometer a realização de compromissos
externos de empresas privadas, mesmo que elas detenham capacidade e disposição
para realizá-los.
Segundo pesquisa do FMI (1999), as classificações não são resultado da
aplicação de um modelo estatístico específico que determine quantitativamente
a probabilidade de moratória. Canuto e Santos (2003, p. 19) acrescentam que o
processo de pontuação dos diversos critérios em uma escala ordenada que permite
chegar a uma classificação em um determinado ponto de escala de risco envolve
algum grau de subjetividade, tornando esses modelos pouco eficazes para a
avaliação de risco soberano.
A classificação é, portanto, a combinação de uma análise por meio de
métodos quantitativos com a sensibilidade dos analistas a parâmetros qualitativos.
Este processo é composto por três etapas: a) avaliação de conjuntura3; b)
quantificação dos fatores avaliados, mesmo que qualitativos, por meio de um
“modelo de pontuação”; e c) decisão da classificação por votação em um comitê,
com base na análise das informações levantadas em (a) e (b)4 (Canuto e Santos,
op. cit.).
Os modelos de pontuação das agências de rating são diferentes entre si,
mas podem ser representados em cinco categorias gerais: risco político, civil e
institucional; setor real; setor monetário e financeiro; setor externo; e setor fiscal.
A despeito das diferenças entre os modelos de pontuação das agências de rating,
os autores concluem que, empiricamente, as classificações de países quanto ao
risco soberano podem ser explicadas por um conjunto relativamente pequeno
de variáveis: nível de renda per capita em dólares; inflação (medida pelo índice
de preços ao consumidor); taxa de crescimento econômico; relação entre a dívida
3
Para a análise da conjuntura, dois ou mais analistas visitam o país em avaliação, onde realizam reuniões
com os principais funcionários do governo, analistas do setor privado, jornalistas, pesquisadores
universitários e membros da oposição política (Canuto e Santos, 2003).
4
Os fatores qualitativos – como, por exemplo, a probabilidade de um golpe de Estado – são avaliados
com base na experiência e entendimento subjetivos dos membros do comitê.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
39
externa total e as receitas em conta corrente; relação entre dívida bruta do governo
geral e receitas fiscais totais; episódios de moratória a partir de 1975; e,
finalmente, grau de abertura comercial, medida pela corrente de comércio (soma
de exportações e importações como percentual do PIB).
Enquanto os ratings são atribuídos com base em uma análise técnica e
comparativa entre países – ainda que condicionados a fatores subjetivos –, que
avalia indicadores econômicos, sociais e políticos padronizados, as oscilações
dos prêmios de risco de títulos soberanos referem-se a múltiplos fatores além
dos aspectos macroeconômicos (Dupita e Ferreira, 2004), tais como: alterações
de humor quanto à confiança dos aplicadores na qualidade de informações e
nos parâmetros mais gerais de cálculo, o estado de sua aversão a riscos, a liquidez
colocada pelas políticas monetárias de economias desenvolvidas e outros fatores
de curto prazo (Canuto e Santos, 2003, p. 16).
Classificação de risco feita pelas agências de rating de um determinado
crédito, referindo-se ao risco de crédito envolvido na aquisição de um determinado
título, não pode, portanto, ser confundida com o risco de mercado ligado à
variação de preços do título5, com os índices do JP Morgan como os principais
exemplos de acompanhamento de risco de mercado (Dupita e Ferreira, 2004).
Canuto e Santos (2003, p. 16) acrescentam ainda que os ratings possuem
uma perspectiva mais estável e de maior alcance temporal, enquanto os índices
de preços de mercado do JP Morgan são sensíveis a eventos conjunturais, de
curto prazo, o que os leva a flutuações gerais ou específicas a países. É frequente
e esperado que haja oscilações no prêmio de risco dos títulos, sem que haja
mudança na classificação de risco do emissor.
No caso dos países emergentes, o índice mais conhecido que mede o prêmio
de risco de títulos soberanos, o Emerging Markets Bond Index Plus (EMBI+),
divulgado pelo banco de investimento norte-americano JP Morgan6, é composto
por uma cesta de títulos, denominados em moeda estrangeira, emitidos pelos
governos centrais de diversos países emergentes e negociados em mercados
secundários, predominando os títulos da dívida externa (Bradies e Eurobônus),
mas incluindo também empréstimos negociados (traded loans) e títulos
domésticos denominados em moeda estrangeira. Os critérios para que um título
da dívida faça parte do EMBI+ são: um valor mínimo a vencer de US$ 500
milhões; classificação igual ou inferior a BBB+ (S&P) e Baa1 (Moody’s); mais
de um ano para o vencimento; e a possibilidade de ser compensado
internacionalmente, por meio de sistemas como o Euroclear7.
5
Embora existam diferenças, esses dois riscos possuem certa relação. Segundo Franco (2000), as agências
“(...) seguem o mercado muito mais do que o influenciam, ou seja, acompanham a horda apenas
alegando que sua lentidão em mudar de opinião é conservadorismo”.
6
O EMBI, EMBI (Global) e EMBI (Global constrained) são outros índices divulgados pelo JP Morgan.
Os índices diferem quanto à classe de ativos incluídos, o conjunto de emissões dos países e o peso
atribuído a eles (Cunningham, 1999). A existência dessas diferenças, aliada às características intrínsecas
a cada índice, faz do EMBI+ o índice mais utilizado para a mensuração do prêmio de risco dos países
emergentes.
7
40
Para maiores informações sobre as características dos títulos, ver JP Morgan (1995).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
O índice representa uma média ponderada, pelo volume negociado no
mercado secundário, dos preços dos papéis que compõem a cesta. Para se obter
a margem soberana8, é preciso calcular a diferença entre os rendimentos dos
títulos governamentais e os títulos considerados de risco zero, como é o caso dos
títulos do governo dos EUA (Aaa/AAA, na classificação das agências). O EMBI+
pode ser decomposto em subíndices, um para cada país (ex. EMBI+ Brasil), e
esta margem soberana é usualmente referida como risco-país9. A remuneração
adicional (spread) em relação aos títulos do governo dos EUA é dada para
compensar o maior risco dos títulos de países emergentes. Quanto maior a
margem, maior é a probabilidade de inadimplência inferida pelos investidores10.
Decisões, limitações e seu contexto
Considerando que a análise técnica e os cálculos matemáticos descritos
acima envolvem tomada de decisões, introduzimos a presença de fatores que
extrapolam o nível técnico e matemático dos cálculos envolvidos naquelas
avaliações, apresentando agora a perspectiva das distorções inerentes a este
processo.
O ângulo da racionalidade limitada, vieses e outros tipos de
comprometimento da percepção e avaliação das circunstâncias, que se refletirão
nas decisões efetivamente tomadas11, têm sido abordados frequentemente por
pesquisadores das áreas de Psicologia Econômica, Economia Comportamental,
Finanças Comportamentais e, mais recentemente, Neuroeconomia12. De acordo
com estes estudos, apesar de haver o propósito de agir racionalmente, todos os
envolvidos em sistemas e processos econômicos – agências, agentes, mercado,
autoridades econômicas e políticas, população em geral – estariam sujeitos a
limitações cognitivas e, como será enfatizado a seguir, também emocionais,
conforme tem sido demonstrado por experiências em laboratórios ou detectado
por meio de entrevistas, levantamentos ou observação.
Além das limitações expressas pelas pessoas em suas fragilidades individuais,
potencializadas por situações grupais, é importante assinalar que vivemos,
atualmente, em contextos caracterizados por fatores que contribuem, em grande
escala, para a exacerbação destas operações, como a incerteza recente na
economia global.
8
O JP Morgan divulga os níveis do índice e as margens soberanas (sovereign spreads).
9
Para Canuto e Santos (2003) há imprecisão na denominação “risco-país”, uma vez que no cálculo da
margem soberana são considerados apenas títulos emitidos pelos governos centrais, referindo-se, portanto,
a uma medida de risco soberano.
10
Para maiores informações sobre metodologia de cálculo, ver JP Morgan (1995).
11
Dois prêmios Nobel de Economia já contemplaram esta agenda de pesquisa: em 1978, a Herbert
Simon, pai da teoria da racionalidade limitada e, em 2002, a Daniel Kahneman, pelos estudos sobre
heurísticas e vieses, que resultaram na teoria do prospecto (realizados ao lado de Amos Tversky, falecido em
1996) e outros desdobramentos. Cabe observar que algumas destas ideias já haviam sido trazidas à luz
por Keynes, em sua obra seminal Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, em 1936-1986.
12
Camerer et. al. (2005) sugerem, por exemplo, que as descobertas proporcionadas pelos avanços da
neurociência, aplicados ao estudo do comportamento econômico, poderiam chegar a revolucionar, de
forma radical, a própria ciência econômica.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
41
No início dos anos 70, o sistema de Bretton Woods, que funcionou desde o
fim da Segunda Guerra Mundial e utilizava o regime de câmbio fixo como
principal instrumento de gerenciamento do sistema, entrou em colapso. Durante
os seus 25 anos de funcionamento, os agentes que realizavam transações
financeiras estavam sempre informados sobre a taxa de câmbio pela qual eles
poderiam trocar uma moeda pela outra. As taxas fixas eram protegidas pelo
poder de controle sobre os fluxos de capitais entre países. O fato de os governos
manterem uma taxa de câmbio fixa significava que o setor privado estava livre
dos riscos de câmbio. Contudo, o crescimento do capital especulativo durante a
década de 60 e sua consequente pressão sobre as paridades fixas, principalmente
a paridade entre dólar e ouro, teve grande impacto para a estabilidade do sistema
(Eatwell e Taylor, 1999).
Seguindo o raciocínio desses autores, após a ruptura do sistema as flutuações
nas taxas de câmbio se tornaram comuns, as oportunidades de ganho proliferaram
e o sistema regulatório que controlava o fluxo de capital foi considerado
ineficiente. O incentivo para a desregulamentação internacional dos fluxos de
capitais estava no fato de que o setor privado precisava se proteger dos custos
que as flutuações na taxa de câmbio geravam13. Para reduzir o risco, aqueles que
operavam nos mercados internacionais precisavam diversificar seu portfólio,
mudando o mix de moedas e de ativos financeiros conforme a percepção do
risco de câmbio. Na vigência do sistema de Bretton Woods, o risco do câmbio
era mantido pelo setor público. Com o fim desse sistema, esse risco foi
privatizado, dando origem ao moderno sistema financeiro, com grande liquidez
e complexos instrumentos de proteção, caracterizado pela especulação 14 e
arbitragem15 nos spreads16 do mercado.
Neste novo sistema, o investimento via aquisição direta da capacidade
produtiva leva grande desvantagem com relação ao investimento por meio de
ações na Bolsa. Isso ocorre devido ao mercado organizado e contínuo em que as
ações podem ser transacionadas, o que não se verifica para equipamentos de
capital de segunda mão. A falta de liquidez dos equipamentos torna a decisão
de investir praticamente irrevogável para a empresa, enquanto que os detentores
dos títulos representativos desses equipamentos se aproveitam da liquidez na
Bolsa para rever suas aplicações todos os dias (Macedo, 1999).
13
Além da importância dos agentes privados, também deve ser considerado o papel dos Estados nacionais,
principalmente daqueles com um processo de industrialização avançado. Segundo Helleiner (1994), três
considerações políticas explicam o movimento de liberalização nos anos 80: o específico interesse
“hegemônico” dos Estados Unidos, Inglaterra e Japão na adoção das novas medidas, e o crescimento do
poder financeiro; o fortalecimento do movimento neoliberal; e a predominância das estratégias de
desregulamentação competitiva. Para os Estados Unidos, a motivação para a liberalização financeira
estava na possibilidade de enxugar os mercados offshore (ex. Euromercado de dólares) e de utilizar o
mercado financeiro internacional para reter uma política autônoma em face de um grande déficit
doméstico e externo.
14
Na acepção de ato de prever a psicologia do mercado (Keynes, 1936-1986).
15
O conceito de arbitragem é usado para descrever operações que envolvam pouco risco como comprar
(barato) em um mercado e revender (mais caro, em outro mercado) ativos muitos semelhantes (Garcia
e Didier, 2001).
16
42
Diferença entre a taxa de captação e aplicação (Eatwell e Taylor, 1999).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Dentro das operações na Bolsa de Valores, existem dois comportamentos
distintos de aplicadores. Dados o prêmio de liquidez e a taxa de risco e incerteza
da ação, o preço que o aplicador estará disposto a pagar por ela dependerá de
dois fatores: o fluxo de dividendos e o produto esperado de uma eventual revenda
do título. Para o investidor que adquire uma ação apenas na expectativa de
obter ganhos com os fluxos futuros de dividendos, as variações na cotação dos
títulos serão secundárias. Todavia, para aquele que a adquire visando a desfazerse dela brevemente, o fluxo de rendimentos relevante é aquele oriundo da
revenda do título no momento adequado, necessitando, portanto, de um
horizonte de cálculo muito menor. Neste caso, o comportamento do aplicador
consiste em prever a psicologia do mercado e utilizar sua liquidez para obter
ganhos de curto prazo. Macedo (op. cit.) conclui que a liquidez dos títulos e a
dinâmica desse sistema financeiro propiciam um ambiente adequado à atividade
especulativa voltada à conquista de ganhos de capital mediante operações de
revenda. Conforme Keynes (1936-1986, p. 131), “(...) estas tendências são uma
consequência quase inevitável do êxito de se terem organizado os mercados de
investimentos líquidos”.
Keynes acrescenta ainda que, além da causa atribuída à especulação, a
instabilidade econômica encontra outra causa, inerente à natureza humana.
Segundo o autor, a maior parte de nossas decisões não deve ser considerada
como resultado de cálculos complexos, mas sim como manifestações do nosso
entusiasmo, como um instintivo espontâneo de agir17. Para Keynes (1936-1986),
o empreendedor procura convencer a si próprio de que a principal força motriz
da sua atividade reside nas afirmações de seu propósito.
Segundo este raciocínio, o comportamento dos agentes não seria totalmente
previsível, uma vez que a intuição18 tem grande relevância na tomada de decisão.
Diante das incertezas inerentes ao futuro, o cenário no longo prazo não pode ser
perfeitamente calculável. Isso faz com que as expectativas de longo prazo se
tornem prognósticos espúrios com relação ao futuro, já que dependem da
confiança dos agentes quanto a seus cenários. Mendonça (2005) acrescenta que
a incerteza existe porque os agentes não conhecem o futuro, mas, em especial,
porque não têm como adiantar os efeitos de suas ações e de outros agentes
relevantes sobre o mundo real. De acordo com esta perspectiva, em ambientes
sujeitos a transformações, as decisões econômicas são tomadas sem que seja
possível o uso de previsões de eventos futuros a partir de informações presentes19.
17
Este enfoque remete às heurísticas estudadas pelos autores de Psicologia Econômica e abordadas à
frente.
18
É importante assinalar que, para a Psicanálise, intuição pode ser vista como “uma forma da razão que
a razão não reconhece”, relacionada ao pressentimento, mas não ao desejo nem à memória, como
processo inconsciente que procura organizar impulsos emocionais despertados pela experiência do
momento (Longman, 1997, p.41); já o psicólogo econômico Kahneman associa intuição ao sistema de
funcionamento mental caracterizado pelo automatismo, julgamentos e decisões rápidas e o recurso às
regras-de-bolso que redundarão em vieses (2002, p.450).
19
Segundo Mendonça (2005), em processos nos quais as decisões a tomar são rotineiras e repetitivas,
com relativa imutabilidade no período considerado, em geral em prazos curtos, o cálculo probabilístico
pode ser viável. Observamos, por outro lado, que sob tais circunstâncias pesquisas levadas a cabo dentro
da Psicologia Econômica indicam maior suscetibilidade ao uso de heurísticas, ou regras-de-bolso, com
consequentes vieses na percepção e avaliação dos dados.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
43
Mendonça (2005, apud Aglietta, 1995) trabalha com a ideia de uma
racionalidade específica, a que chama de “racionalidade situada”, termo que
caracteriza o comportamento dos agentes em ambientes de incerteza, quando
não conseguem perceber os efeitos de suas ações, delineadas no nível individual
e de forma racional, sobre os outros e sobre o mercado como um todo. Estas
falhas de coordenação mostrariam que, mesmo que os agentes tomassem decisões
a partir de sua racionalidade micro, a posição macro resultante não seria a melhor
possível. Para o autor, a possibilidade de risco sistêmico não se baseia no
comportamento irracional dos agentes, mas na interdependência de sua atuação,
condicionada pelo ambiente de incerteza.
Simon (1978), por sua vez, afirma não ser possível adquirir a proporção
necessária de informações que seriam requeridas a fim de proceder a uma escolha
racional entre as alternativas apresentadas. Para ele, a impossibilidade poderia se
revelar tanto na complexidade da situação a ser analisada como na insuficiência
de nossas operações cognitivas, que não dariam conta de processar todos aqueles
dados de modo adequado e/ou em tempo hábil. Consequentemente, teria de
ocorrer uma simplificação numa ponta ou noutra – ou a complexidade do
contexto teria de ser reduzida, ou a administração das informações teria de
acontecer de modo simplificado – o que obedeceria, inclusive, a alguma
racionalidade, pois o custo para obtenção de dados mais completos, ou para seu
perfeito processamento, teria de ser avaliado em relação aos benefícios trazidos.
Ao contrário do que preconiza a Economia tradicional, ao invés de otimização,
Simon acredita que se buscaria as melhores soluções possíveis (satisficing é o
termo que ele usa) e, acrescentamos, este parâmetro pode afastar-se, por vezes
de maneira significativa, do que seria desejável, em especial quando o que está
em jogo é a economia de um país, como veremos depois. Como consequência,
as decisões tomadas poderiam apresentar parcialidades decorrentes de todas estas
limitações.
Para Keynes (1936-1986), o investimento baseado nas previsões autênticas
no longo prazo é tão difícil que mal pode ser posto em prática, uma vez que
existe uma precariedade da base do conhecimento sobre o qual temos que fazer
cálculos das rendas esperadas. Fontana (2000, p. 30) complementa que “(...)
não importa a sofisticação da capacidade dos agentes de processamento, uma
vez que todas as informações relevantes não existem”.
Economias capitalistas, portanto, tendem a ser marcadas pela incerteza,
nas quais cálculos probabilísticos de eventos futuros a partir de informações
passadas e presentes podem não se mostrar relevantes. Diante desse cenário,
conforme Keynes, os agentes econômicos adotam comportamento convencional
para fazer face à falta de informações e ausência de parâmetros que permeiam
as tomadas de decisões. Observando-se uns aos outros, os agentes estariam se
protegendo. Ao recorrerem às convenções, supõem que a situação atual dos
negócios continuará por tempo indeterminado, a não ser que existam motivos
concretos que levem a uma alteração deste panorama. Isso não significa que os
agentes acreditem que as mudanças não ocorrerão. Na verdade, eles estão
supondo, tendo em vista as informações disponíveis, que a avaliação do mercado
44
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
existente seja a melhor dentro das possibilidades. Nas palavras de Keynes: “A
sabedoria universal indica ser melhor para a reputação fracassar junto com o
mercado do que vencer contra ele” (1936-1986, p. 130).
Este tipo de comportamento pode gerar, por um lado, relativa estabilidade
ao sistema, pois a formação de convenções implica em socialização de
comportamento e tomada de decisão em bloco. Por outro lado, em situações
em que ocorram fraturas entre o comportamento coletivo adotado e o
movimento econômico, coloca-se a possibilidade de crises financeiras. Portanto,
a adoção desse tipo de comportamento pelos agentes tende a agravar ondas
tanto de otimismo como de pessimismo, que implicam entradas e saídas, em
bloco, de posições assumidas em determinados mercados financeiros (Mendonça,
2005).
O concurso de beleza keynesiano
Após analisar a especulação existente nos mercados financeiros e investigar
a natureza humana e suas implicações, Keynes conclui que a maioria dos agentes
financeiros “(...) dedica-se não a fazer previsões abalizadas em longo prazo sobre
a renda provável de um investimento por toda sua vida, mas em prever mudanças
de curto prazo com certa antecedência em relação ao público geral” (19361986, p. 128). O raciocínio acima nos permite entender que o agente que queira
auferir ganhos no mercado financeiro se vê induzido a “adivinhar as reações do
público melhor que o próprio público” (op. cit., p. 130). O autor resume com
essa frase a metáfora do “concurso de beleza”, remetendo a uma competição
muito popular à época, organizada pelo jornal British Sunday: os leitores eram
solicitados a selecionar fotos de jovens mulheres na ordem que acreditavam ser
a preferência dos outros entrevistados como um todo; para vencer, o jogador
não deveria expressar sua preferência, nem tentar estimar a verdadeira opinião
quanto às preferências; ao invés disso, o jogador de sucesso deveria antecipar a
seleção que correspondia mais aproximadamente à média prevista pelos
competidores em conjunto.
A partir desta observação, Keynes fez uma analogia com o raciocínio
empregado pelos agentes no mercado financeiro. Da mesma forma, a chave do
sucesso neste contexto não é o que um investidor individual considera ser verdade,
nem aquilo em que a massa de investidores acredita. O “investidor profissional”20
está preocupado em estabelecer o que todos acreditam que seja a opinião geral.
Assim, desde que o mercado seja guiado pelo que a opinião de todos espera
que seja a opinião geral, uma enorme recompensa é trocada por qualquer sinal
que prove a mudança na média prevista pelos agentes econômicos em conjunto.
Essas mudanças são impossíveis de ser previstas detalhadamente pela maioria
dos agentes. Dessa forma, o investidor profissional “(...) sente-se forçado a estar
20
Segundo Keynes (1936-1986), o “investidor profissional”, que possui as mesmas energias e habilidades
de um especulador, é aquele que não se preocupa com o que realmente significa um valor de investimento
para o indivíduo que o comprou com uma expectativa de longo prazo, mas com o valor que lhe atribuirá
o mercado dentro de três meses ou um ano, sob a influência da psicologia de massa.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
45
alerta para antecipar essas variações iminentes nas notícias ou na atmosfera que,
como demonstra a experiência, são as que exercem maior influência sobre a
psicologia coletiva do mercado” (op. cit., p. 129).
Com a alta velocidade e enorme volume de dados sobre economia e política
circulando no mundo de hoje, com impacto sobre decisões que podem dar
origem, como no caso de nosso exemplo, ao cálculo do risco-país, identifica-se
uma pressão externa, que leva o mercado a reagir a essas informações e a produzir
novos dados, sob a forma de avaliações ou previsões que, junto às pressões internas
que teriam origem na situação de incerteza do contexto, desembocariam na
utilização de operações mentais mais rápidas, porém menos precisas, muito
influenciadas por sentimentos primitivos de desamparo e medo, com uma
desproporcional aversão a perdas – e não a riscos – em determinadas
circunstâncias. Seria uma dinâmica de natureza quase emergencial, desencadeada
na urgência de responder de forma imediata aos acontecimentos ou às suas pistas,
mesmo quando são imprecisas ou rudimentares.
Submetidos a tais pressões, os agentes poderiam apresentar abdução do
raciocínio, quando o processo decisório é afetado pelo fato de acreditar-se, ao
olhar retrospectivamente, que se havia alcançado sentido e previsto com acerto
no passado (Lundberg, 2000). Frequentemente encontrado em profissionais do
mercado financeiro, o sentido lembrado diverge do que realmente ocorreu à
época, fato que escapa à consciência dos envolvidos e leva o autor a argumentar
que a tomada de decisão seria mais guiada por plausibilidade do que por precisão.
Dessa forma, ter uma explicação precisa pode ser menos importante do que ter
alguma informação que traga ordem e agilidade às ações, uma vez que, como
defende Bruner (1973, apud Lundberg, 2000), o custo que se tem para obter
uma informação precisa é geralmente muito alto sob condições de velocidade,
risco e capacidade limitada dos organismos, devido ao ambiente ou à sua
constituição. A agilidade em usar poucos sinais, rapidamente, para caracterizar
os eventos do ambiente é o que dá ao organismo a liderança em se ajustar a tais
eventos. Análises precisas que exigem certo tempo inevitavelmente atrapalham
a preciosa rapidez deste processo de ajustamento.
Outro ponto importante é apontado por Earl et al. (2007), a respeito da
degradação das regras de decisão. Entendendo regras de decisão como
replicadores de informação cultural que uma mente transmite a outra, os autores
acreditam que, após serem criadas por especialistas, elas sofram distorções, ao
estilo “telefone sem fio”, enquanto são disseminadas entre o público mais amplo,
perdendo seu valor original. Novamente dentro do mercado financeiro, esta
deterioração das regras de decisão pode ajudar a explicar tanto a formação de
bolhas como equívocos individuais.
Ao mesmo tempo, a sequência de notícias e seus possíveis reflexos sobre a
economia real, seja em sua face mais volátil ou na outra, tradicional, pode indicar
o íntimo entrelaçamento que une e, possivelmente, realimenta fontes, produção
de informações, opiniões de especialistas, reações do mercado e posição do país.
Embora avaliar de modo quantitativo o impacto de fatores desta natureza sobre
o âmbito macroeconômico represente um grande desafio, começamos a ter
46
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
estudos direcionados para este objetivo, como Roos (2006), que verificou a
influência de manchetes de jornal – em especial quando possuem tom
emocionalmente carregado, ou saliência emocional (p.17) – sobre a visão do
público a respeito da economia, de forma experimental. Sua hipótese: a maneira
como informações econômicas são apresentadas na mídia poderia influenciar a
previsão que os leitores fazem de eventos futuros, contribuindo, portanto, para
gerar flutuações na esfera macroeconômica. Concluiu que as reações variavam
conforme a nuance emocional utilizada na veiculação da informação e destacou
também que, apesar de seus sujeitos, quando estudantes de Economia,
manifestarem maior isenção em suas análises do que seus pares no experimento
(alunos de Administração de Empresas), aqueles não chegaram a escapar de
todo da influência dos vieses emocionais, mostrando-se em dúvida, como se
experimentassem um tipo de conflito interno. Embora pudessem empreender
análises cognitivas corretas, tendiam a suprimi-las, como se sucumbissem à
impressão afetiva que pode ser mais forte que a razão, conforme veremos.
Rosa, Enrietto e Gioiosa (2005) investigaram o papel das representações
sociais econômicas nas tendências da Bolsa de Valores por meio da análise de
relatórios de meios de comunicação e concluíram que eventos críticos,
caracterizados por destacada atenção da mídia e impacto emocional, possuem
significativa importância nas flutuações dos preços. Portanto, argumentam os
autores que as representações sociais desempenham um importante papel no
comportamento dos investidores e estes, uma vez influenciados por eventos
especialmente impactantes, acabam envolvidos na dinâmica que afeta a variação
dos índices. Neste sentido, meios de comunicação criam e expõem representações
sociais, que são, por sua vez, influenciadas pela mídia (Sommer, 2000 apud
Rosa, Enrietto e Gioiosa, 2005). Segundo Shiller (2000, p. 25 apud Rosa, Enrietto
e Gioiosa, 2005), as surpresas que os mercados nos revelam periodicamente
seriam resultado do impacto inesperado das reportagens dos meios de
comunicação sobre nossas motivações, e não sobre reações lógicas e racionais.
O processo decisório
O processo decisório pode ser decomposto em três etapas básicas: perceber,
avaliar e escolher (Ferreira, 2007a). A definição de Tversky e Kahneman (1974)
para tomada de decisão – muitas decisões seriam baseadas em crenças sobre a
probabilidade a respeito de eventos incertos – parece caber adequadamente no
cenário e índices aqui analisados tanto para quem os produz como para quem os
adota. Os autores concluíram que operações de edição, com o objetivo de
simplificar e abreviar as funções da percepção e avaliação, teriam lugar
rotineiramente no modo como se faz julgamentos – inclusive em quem é
especialista, conforme descobriram ao testar estatísticos, por exemplo, que não
respeitavam regras básicas de probabilidade, como considerar o tamanho de
amostras, dentre outras. Em todas estas etapas, o indivíduo sofreria as deformações
impostas pelo que chamaram de heurísticas ou regras-de-bolso, os atalhos mentais
que nos ajudam a formular apreciações rápidas das situações observadas, embora
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
47
possam, também, levar a incorrer em erros sistemáticos. Os três principais grupos
de heurísticas identificados por eles seriam: representatividade: como acreditar
que o acaso deva ser “justo”, crer em alternativas que pareçam encaixar-se melhor
com as próprias previsões, manter concepções errôneas sobre a tendência estatística
de regressão à média; disponibilidade: a facilidade com que determinadas ideias,
lembranças ou situações imaginadas vêm à mente como se fossem elementos
relevantes à análise da presente situação, sem que o sejam, efetivamente; e
ancoragem: estimativas feitas a partir de um valor inicial tomado como ponto
de partida, seja no que diz respeito à formulação do problema ou como resultado
de uma computação inicial, o que implicará a necessidade de ajustamentos em
função desta “âncora”, geralmente insuficientes para uma apreciação rigorosa
da situação e independentemente da pertinência daquele valor numérico ao
caso.
Como resultado de diferentes processos de decomposição das informações,
vértices de análise diversos podem ser gerados, o que indica, por um lado, a
possibilidade de duas pessoas enxergarem – e avaliarem – a situação de modo
divergente e, por outro lado, a dificuldade de programas computacionais, por
exemplo, reproduzirem as milhares de desmontagens e recombinações possíveis
a partir dos mesmos dados, condição que pode ser corriqueiramente encontrada
em grupos de seres humanos, cada um processando-os à sua maneira.
Para os autores, o ponto de referência adotado para deflagrar as estimativas
sobre probabilidade e a maneira como os problemas de escolha são codificados
e editados seriam os fatores críticos para a análise de decisões (Kahneman e
Tversky, 1979). Poderiam estar incluídos neste processo inúmeros fatores
irrelevantes que, de acordo com eles, podem até mesmo toldar a visão para o
que, de fato, interessaria (Tversky e Kahneman, 1974)21.
A concepção que Kahneman (2002) expõe sobre o funcionamento mental,
em seu discurso por ocasião do recebimento do Nobel de Economia, contém
todos os elementos encontrados nos estudos previamente realizados com Tversky
e outros colegas. Ele cita duas modalidades básicas: a que denomina intuitiva22,
que seria rápida e automática, fazendo uso de todas aquelas heurísticas e, em
decorrência disso, sujeita aos muitos vieses assim implicados; e a outra, que ele
chama de deliberada, mais lenta, decorrida em etapas, e capaz de corrigir erros
provocados pelo primeiro tipo. Neste caso, o centro da questão estaria localizado
na acessibilidade às informações, isto é, com quais dados o tomador de decisão
pode contar para fazer sua escolha.
21
Apontam para a influência de informações irrelevantes para a avaliação de probabilidades, como por
exemplo, ao pedir que se calculasse a probabilidade de alguém ter determinada profissão, depois de
receber uma breve descrição de sua personalidade – quanto menos sabiam, mais acertavam, ao usar leis
de probabilidade “puras”, isto é, não contaminadas por outros dados que poderiam impressionar,
embora não ajudassem, de fato, a chegar ao resultado correto. Podemos estender este ângulo de análise
para o cálculo de moratória feito pelas agências de rating. Neste caso, os fatores qualitativos envolvidos
– como, por exemplo, a probabilidade de um golpe de Estado – são avaliados com base na experiência e
entendimento subjetivos dos membros do comitê, estando sujeitos, portanto, a todos estes vieses.
22
48
Ver nota 19.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Adicionamos a esta discussão contribuições originadas na observação
psicanalítica dos fenômenos psíquicos, que poderão iluminar, a partir de outras
perspectivas, a questão da acessibilidade aos elementos mentais e sua influência
sobre as decisões econômicas. Cinco operadores são introduzidos para este exame:
a maior parte dos conteúdos mentais encontra-se no inconsciente (Freud, 19151976), noção que não estaria distante, do ponto de vista funcional, da
acessibilidade de Kahneman; haveria dois regimes básicos para nossos processos
mentais (Freud [1911-1976], Klein [1952-1981], [1963-1985], Bion [19611967], [1965], [1970-1973]), novamente em convergência com os dois sistemas
de Kahneman; nossos pensamentos estão intimamente vinculados às nossas
emoções, sendo indissociados delas (Klein [1957-1974], Bion [1962-1984],
[1963-1984], [1992]), o que revelaria alguma harmonia com teorias e
experimentos realizados pela neurociência (e.g. Damásio, 1994); haveria três
níveis de realidade – interna, externa e psíquica (Eva et al., 1995); grupos tendem
a comportar-se de modo diferente de indivíduos (Freud [1921-1976], Bion
[1970-1973]).
De acordo com estas teorias, os processos inconscientes, predominantes
em nossa vida mental, seguiriam leis próprias, que não poderiam ser consideradas
racionais no sentido da lógica formal. Seu determinante é o desejo, o impulso
em direção à satisfação e redução de tensão. Entre estes conteúdos e aqueles
que são conscientes encontra-se uma barreira dificilmente transposta, criada pelas
exigências da realidade – não podemos, de fato, comportarmo-nos como animais,
embora a vontade de que não houvesse qualquer limite à realização de nossos
desejos permaneça em todos ao longo da vida. Conteúdos conscientes e
inconscientes obedeceriam, portanto, a regras diferentes, implicando, da mesma
forma, resultados distintos de suas operações, embora ambos compartilhem o
mesmo objetivo, que é evitar desprazer e buscar prazer23. O lado inconsciente
seguiria o chamado princípio do prazer, que postula a impossibilidade de adiar a
satisfação, mesmo que isto traga consequências deletérias, empregando, para
tal fim, operações mentais primitivas e rudimentares, que abrem mão da precisão
em nome da rapidez, recorrendo, de modo especial, a ilusões, caso não sejam
encontradas, de imediato, soluções para os problemas. Já o lado consciente
percorrerá trajeto mais longo e complexo com o mesmo intuito – solucionar o
problema da insatisfação –, levando em conta, contudo, as condições da realidade
e, o que é mais importante, com a capacidade de tolerar a falta de gratificação
imediata enquanto põe em prática todos os recursos para encontrar uma saída
ou transformação consistente para a situação. Na verdade, apenas na falta de
satisfação é que a mente seria capaz de acionar a condição para pensar pensamentos
(Bion, 1961-1967), ou seja, para alcançar as ideias de forma tão precisa e isenta
23
Cabe ressaltar que, embora partam destes elementos – prazer e desprazer – para apresentar o panorama
psicológico, a Psicanálise difere dos economistas utilitaristas e marginalistas, como Bentham, Jevons,
Menger e outros que, apesar de utilizar pressupostos até certo ponto semelhantes – aqueles seriam os
polos básicos que norteariam a existência humana –, adotam métodos diametralmente opostos para
desenvolver suas ideias, tais como a tentativa de medir com exatidão as experiências de prazer e dor, a fim
de obter-se valores exatos dos cálculos realizados pelos indivíduos para chegar às suas decisões (cf.
Ferreira, 2007).
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
49
quanto possível, no que diz respeito à possibilidade de não se deixar guiar apenas
pelas qualidades de prazer ou desprazer contidas nas alternativas examinadas.
Ao invés disso, as situações são percebidas e avaliadas em suas características
reais, do modo mais imparcial possível.
É dentro desta perspectiva que se pode afirmar que os pensamentos teriam
raízes emocionais, pois a instalação do pensar dependerá, essencialmente, da
capacidade emocional de tolerar frustrações, condição que permitirá que surjam
pensamentos ou não. Quando isto não se mostra possível, no lugar de pensamentos
são encontradas ilusões ou as chamadas descargas (motoras ou psíquicas), que
servem somente para tentar aplacar o desconforto causado pela ausência de
gratificação.
Partindo do pressuposto de que a realidade pode se manifestar em três
dimensões – externa, ou sensorial, que é comum à maior parte das pessoas;
interna, composta pelos impulsos carregados de desejo, que não conhecem normas
sociais; psíquica, como resultante do interjogo entre as duas anteriores –, concluise que ela nunca seria apreendida inteiramente despida de transformações (Eva,
Vilardo e Kubo [1995], Bion [1965]). Em outras palavras, tudo que
identificamos, seja dentro ou fora de nós, traz reflexos de como foi percebido.
Assim, as distorções na percepção detectadas pelos pesquisadores da Psicologia
Econômica estariam sujeitas, antes de mais nada, às determinações emocionais
que imprimem sua marca, indelével, sobre a cognição.
Todas estas teorias auxiliam na compreensão das limitações a que estão
sujeitos indivíduos, autoridades políticas e econômicas e, talvez em ainda maior
grau, grandes grupos, o mercado de modo geral e a população como um todo.
Estes, agindo individualmente e/ou em grupo, sob tais limitações, provocam
variações nos índices de mercado, que não são relacionadas ao desempenho real
da economia. Neste contexto, os índices do JP Morgan e as avaliações de risco
das agências de rating sofrem grande influência desta dinâmica, na qual os
agentes econômicos estão inseridos.
A visão psicanalítica do funcionamento dos grupos revela seu modo
rudimentar de operar mentalmente. Grupos seriam alvo fácil de ilusões,
manifestadas como fenômenos popularmente obser vados, tais como
comportamento de manada, sugestionabilidade e contágio emocional que pode
levar a descontrole, com tendência à onipotência, impulsividade e paixões e
interesses intensos, embora efêmeros. Grandes grupos tampouco consideram o
aspecto temporal e apresentam volubilidade, irritabilidade e credulidade, com
suscetibilidade a estímulos repetidos ou excessivos, ainda que não sejam lógicos,
com pouca capacidade de crítica. Seus processos cognitivos são mais
condicionados por imagens e associações que dispensam verificação criteriosa,
ao lado de emoções simples, exageradas e extremadas, com ausência de dúvida
ou questionamento (Freud, 1921-1976).
Somando às limitações cognitivas que os pesquisadores mencionados (Simon
[1978], Kahneman e Tversky [1974], [1979], Kahneman [2002], Lundberg
[2000], Earl et al. [2007], Roos [2006] e Rosa et al. [2005]) apontaram estas
outras, de origem emocional e investigadas pela Psicanálise, temos tomadores
50
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
de decisão apresentando vulnerabilidades significativas, o que permitiria supor a
existência de uma grande precariedade no que diz respeito às operações psíquicas
responsáveis pelas etapas da decisão – percepção, avaliação e escolha –, todas
elas comprometidas pelo desejo de encontrar o que traria gratificação,
independentemente de ser real ou não.
Shafir e Thaler (2006) demonstram que o valor está longe de ser atribuído
em função de balizas objetivas e consistentes, estando antes vinculado a
deformações no tempo e na história, numa concepção de contabilidade mental
inteiramente refratária a ser representada por inteligência artificial, por mais
sofisticado que seja o software em questão. Gigerenzer afirma que computadores
não conseguem captar tudo aquilo que a inteligência humana consegue, uma
vez que os softwares para calcular e, em especial, interpretar, não são capazes de
traduzir e processar as operações necessárias a estas complexas tarefas (2005, p.
14-15).
Todos estes fatores indicam a prevalência das limitações sobre a
racionalidade nas decisões econômicas. Supondo que, como foi proposto nos
inúmeros exemplos acima, apresentemos todos a tendência a transformar os
dados da realidade de diferentes maneiras, haveria suficiente confiabilidade nas
informações contidas nos índices de avaliação que analisamos? Estariam eles, de
alguma forma, excluídos dos processos de edição e simplificação? Não
obedeceriam à lei do desejo? Contornariam o prazo de validade das regras de
decisão? Escapariam à contabilidade mental, tão distinta daquela fornecida pelo
onipresente computador?
Em suma, o que nos permite afirmar que aqueles índices seriam plenamente
confiáveis? E mais, qual seria a margem para sua correção? Porque uma vez
publicados, produzem efeitos instantâneos sobre todos os níveis da vida econômica
de um país. Se equivocados, o estrago já estará feito e quase nada poderá ser
acionado para reparar o dano. Além disso, não há registros de autocorreção
rápida por parte das próprias instituições emissoras das informações, nem da
mídia que as propaga. O processo se dá como se todos confiassem na memória
curta que, efetivamente, parece prevalecer em geral.
Em face deste panorama, pode-se esperar que surjam manifestações de
onipotência, arrogância e suscetibilidade ao contágio, sempre presididas pela
premência de recorrer a ilusões para dar conta de tantas exigências. Vejamos,
agora, alguns destes fatores atuando em nossa história recente.
A experiência brasileira – o caso 2002-2003
O Brasil viveu uma experiência desta natureza em sua história recente,
entre os anos 2002-03. Num primeiro momento, houve a campanha presidencial,
que teve como principais candidatos Luís Inácio Lula da Silva, José Serra,
Anthony Garotinho e Ciro Gomes. Com exceção de Serra, todos os demais
eram temidos pelo mercado financeiro, tanto doméstico como internacional.
Assim, apesar de Lula afirmar que não tomaria medidas heterodoxas, chegando
a lançar um documento neste sentido em junho de 2002, o que de fato ocorreu
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
51
foi difícil de ser explicado com a utilização de argumentos racionais. O processo
pareceu escapar à lógica e à compreensão, conforme se pode depreender ao
acompanhar algumas das manchetes de jornal da época24, que refletem intensa
turbulência prevalente na área política e econômica.
Se em abril de 2002 o dólar valia R$ 2,30; o risco-país (EMBI+ do JP
Morgan) estava em 700; a Selic, a 19%; o índice Bovespa, em 13.000; e a inflação,
abaixo de 1% ao mês, em outubro do mesmo ano, quando teve início o processo
eleitoral, o dólar bateu em R$ 3,90; o risco explodiu para quase 2.500; a Selic
chegou a 21%; a Bovespa despencou para 8.000; e a inflação subiu para 1,57%.
Sugerimos que alterações tão extremas teriam se devido a uma combinação de
fatores na qual destacamos a possibilidade de falhas no processo decisório.
Com o início da campanha eleitoral, os investidores sentiram-se inseguros
quanto aos fundamentos do país25, embora a situação conjuntural, até este ponto,
permanecesse sem grandes alterações (ex. PIB, estoque da dívida, superávit
primário, inflação, balança comercial, transações correntes etc.). Este ambiente
de insegurança implicou evasão de divisas e aumento do volume de vendas dos
papéis da dívida brasileira. Consequentemente, os preços desses papéis
despencaram, o risco-país disparou e a taxa de câmbio se desvalorizou
abruptamente.
A situação foi agravada pela existência de um estoque de dívida mobiliária
com perfil desfavorável, com cerca de 30% (janeiro/02) da dívida indexada ao
dólar. No momento de maior volatilidade, meados de 2002 a início de 2003, o
real se desvalorizou em cerca de 40% em relação ao dólar, o que contribuiu para
que a relação dívida/ PIB atingisse seu ponto máximo (de 61,7%) em setembro
de 2002.
No dia 20 de junho de 2002, a Fitch reduz a classificação (rating) de risco
em moeda estrangeira do Brasil de BB– para B+. Segundo esta agência, a redução
do rating ocorreu à medida que os investidores demonstravam preocupação
com a liderança de Lula nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da
República: “Dada a vulnerabilidade da dívida pública do Brasil e do balanço de
pagamentos ao humor do investidor e pouca probabilidade de que esse sentimento
melhore acentuadamente nos próximos meses, os fundamentos de crédito
soberano do Brasil mudaram para pior”, informou a Fitch em relatório divulgado
no dia do rebaixamento.
24
As manchetes foram coletadas no jornal O Estado de S.Paulo. Agradecemos a colaboração de Danilo
Fariello para reunir as edições anteriores ao início deste estudo, em 2003, bem como parte dos indicadores
econômicos. Outros foram pesquisados por Lisoni na Folha Online e Uol economia.
25
Podemos sintetizar o conceito de “fundamento” como a união de variáveis econômicas que podem
afetar a economia de um país como um todo, levando a bruscas variações nos mercados financeiros dessa
economia. Contudo, para Eatwell e Taylor (1999), o que é mais importante depreender desse conceito
é que os fundamentos analisados para a formação de expectativas de um agente variam de um país para
outro, conforme avaliação subjetiva dos investidores. Neste sentido, os autores argumentam que
“fundamento” é aquilo que a média das opiniões (opinião geral) acredita ser fundamental, como se fosse
uma verdade incontestável. Dessa forma, mudanças nas convenções do mercado muitas vezes são
provocadas independentemente do comportamento da economia como um todo. Como regra geral,
quando um país liberaliza o seu mercado de capitais, automaticamente a sua situação macroeconômica
será julgada por potenciais investidores, preocupados, basicamente, com a capacidade de o país honrar
os seus compromissos financeiros.
52
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Em 12 de agosto de 2002, a agência de rating Moody’s reduz de B1 para
B2 a classificação da dívida em divisas do Brasil, sob o argumento de que cresce
o risco de o Brasil entrar em moratória com a acelerada desvalorização do real
em relação ao dólar, o que encarece o pagamento da dívida. No mês seguinte (2
de setembro de 2002), a Standard and Poor’s também rebaixa a dívida de longo
prazo em divisas do Brasil de BB– para B+. A menos de uma semana do segundo
turno presidencial (21 de outubro de 2002), a Fitch volta a reduzir a nota dada
à dívida soberana brasileira de B+ para B alegando dúvidas em relação à política
econômica e à sustentabilidade do endividamento do país.
Elementos emocionais parecem povoar todo o cenário econômico, nos dois
tempos, pré e pós-eleição, conforme atestam as manchetes selecionadas: “tensão
no mercado testa o Banco Central novamente” (12 jun 02); “nervosismo no
mercado” (23 jul 02); “[receio de que o dólar pudesse romper a] barreira
psicológica” e “alterações de humor no mercado financeiro” (23 set 02);
“confiança reduz o risco-país” (02 abr 03); “euforia no mercado” (06 abr 03);
“crise de confiança em relação a um Lula imaginário” (28 abr 03). Torna-se
difícil excluir este componente do exame do que teria ocorrido no país naquele
período.
Estavam os agentes econômicos operando de acordo com o sistema intuitivo
(Kahneman, 2002) ou o princípio do prazer (Freud, 1911), quando reagiram
imediatamente – e, a nosso ver, subjetivamente – a indícios tão pouco objetivos
tais como rumores ou declarações destemperadas, por exemplo? Pode ter sido
este o caso com Paul O’Neill, então secretário do Tesouro dos EUA, cujas
declarações podem ter atuado como importante fonte das oscilações. Depois de
afirmar, em 21 de junho de 2002, que não lhe parecia “muito inteligente jogar
o dinheiro dos contribuintes de seu país na incerteza política brasileira”, sobre a
perspectiva de um novo empréstimo do FMI ao Brasil, a reação do mercado foi
tão forte que sua “gafe” precisou ser emendada pelo também quase instantâneo
anúncio de um empréstimo de US$ 10 bilhões. Um mês mais tarde, em 28 de
julho de 2002, ele afirma que Brasil, Argentina e Uruguai deveriam garantir
que ajudas daquele tipo não fossem parar em contas bancárias na Suíça, gerando
novas – e previsíveis – tempestades nas contas nacionais. Não contente, no dia
seguinte, desmentiu que o FMI fosse oferecer nova ajuda ao Brasil, o que provocou
novas quedas no mercado. Teria a ancoragem entrado em ação aqui? Embora
seus comentários não fossem determinantes para as ações subsequentes, o
mercado, além de ver neles poder de oráculo, passou a guiar seus movimentos
tomando-os como base.
Se os grupos não precisam de muito para reagir de forma extremada, todas
estas declarações explosivas podem ter funcionado como combustível altamente
inflamável no sentido de disparar o desmoronamento do que já não se mantém
solidamente em pé, como é o caso das economias emergentes, tal como a
brasileira, naquele período bastante dependente do fugidio capital especulativo.
Internamente, boatos e declarações inoportunas de candidatos, como Ciro
Gomes, em julho, prometendo “parar com a farra” das contas estrangeiras de
não-residentes, seguida pela fuga de aproximadamente US$ 1,5 bilhão naquele
mês, por meio dessas mesmas contas, por exemplo, são respondidos com
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
53
manifestações de pânico por parte do mercado (em 23 jul 02, a manchete: “a
bolsa cai 6,53% [o índice mais baixo desde agosto de 1999] e o dólar bate o
recorde de alta [já estava 25% mais caro no ano] para o Real”, apontando para
a instabilidade de mercados estrangeiros e a boatos sobre uma subida de Ciro
Gomes nas pesquisas, com declínio de Serra).
No que diz respeito a previsões, várias delas foram registradas, sem que
tenham ocorrido conforme previamente vaticinado, como por exemplo: em 5
de agosto de 2002, o The New York Times alegava que poderia haver uma evasão
de divisas em massa do país, independentemente de quem vencesse as eleições;
muitos bancos declaravam que o dólar chegaria a R$ 3,20 em 2003 (23 set 02);
o Financial Times, em seu editorial de 15 de outubro de 2002, afirmava que
ocorreria um aprofundamento da crise caso Lula vencesse as eleições, adiantando
que se seguiriam, então, moratória no pagamento da dívida externa, aumento
dos gastos públicos, alta acentuada na taxa de juros, grande desvalorização
cambial, perda da confiança internacional e insolvência geral. Dado o contexto
de grande volatilidade, peculiar ao nosso tempo, somado à insegurança e
desconfiança que costumam acompanhar os assuntos econômicos, não é difícil
supor a extensão do estrago provocado por este tipo de exercício de futurologia,
equivalente, portanto, em sua essência, ao conceito de concurso de beleza
keynesiano. Rumores de que um banco não vai bem podem, rapidamente, tornarse realidade, caso seus clientes, temerosos face à possibilidade de o boato
concretizar-se, corram para retirar da instituição seus recursos.
Por outro lado, deve-se contabilizar também o chamado princípio da
refletividade, segundo o qual a própria observação dos fenômenos já os modifica
– se um economista prevê que os juros cairão e faz suas aplicações levando em
conta esta variável, outros que o observem podem imitar seus movimentos e,
por esta razão, os juros podem deixar de cair, uma vez que o cenário já não será
o mesmo daquele observado originalmente, e sobre o qual a previsão inicial foi
feita (Lea, 2000). Igualmente, a profecia autorrealizadora, pela qual as
expectativas podem influenciar os resultados ou, no mínimo, fazer com que
estes sejam percebidos como se aquelas fossem confirmadas, novamente ao estilo
do concurso de beleza; e a ilusão de validade, manifestada como a confiança
inabalável produzida por um encaixe perfeito entre o resultado previsto e a
informação recebida (Tversky e Kahneman, 1974), desempenham papel
importante aqui.
A percepção do início do novo governo, após a vitória de Lula, no fim de
2002, apresentou dinâmica equivalente, porém em direção inversa. Desta vez, a
parcialidade, antes exageradamente pessimista, sem que houvesse evidências para
tal, oscilou na direção oposta, de grande euforia e, mais uma vez, sem que
houvesse nenhum indício mais claro para justificar, agora, tamanho otimismo.
Até antes do segundo turno, em 18 de outubro de 2002, mas com Lula já
considerado eleito, temos as seguintes notícias: Antonio Palocci anuncia que o
PT fará todos os esforços fiscais necessários para manter as contas públicas em
equilíbrio; Anoop Singh, diretor do FMI, afirma que os mercados estão reagindo
de forma exagerada ao Brasil e diz confiar no Banco Central do país, já que seus
54
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
fundamentos econômicos são sólidos, com o fortalecimento também das
instituições financeiras nos últimos anos; e, por fim, os papéis brasileiros no
mercado externo sobem.
É o começo da bonança. Em 1.º de março de 2003, analistas econômicos
fazem um mea culpa por terem reduzido a recomendação sobre os papéis
brasileiros e agora demonstram confiança na política econômica do país; em 2
de fevereiro de 2003, temos “o melhor resultado da balança comercial desde
1993”, “otimismo contamina o dólar” e “confiança derruba o risco para 989
pontos”, portanto, a “barreira psicológica dos 1000 pontos” teria sido quebrada
– Palocci atribui o fato à credibilidade de Lula, emprestando-lhe sentido
psicológico mais do que financeiro.
Em 6 de abril de 2003, alguém se lembra de visitar a realidade: “euforia no
mercado não chega a entusiasmar a economia real”, citando o fraco crescimento
do PIB, taxas de desemprego ainda altas e nenhum sinal de recuperação salarial.
Esta experiência de maior proximidade ao desempenho econômico real, contudo,
não dura muito, já que analistas comentam, também, que esta distância seria
ultrapassada em breve, o que não chegamos a verificar, com taxas de crescimento
nunca superiores a 5%26.
De todo modo, o tom de confiança prossegue: “otimismo com o Brasil
derruba o risco-país”, acompanhada dos elogios de diretores do FMI e do Banco
Mundial à política econômica do governo do PT (14 abr 03); ao mencionar a
turbulência do ano anterior, considerada “um teste” para o país, que dele se
saíra bem, fica “claro que o governo não vai declarar a moratória”, e Palocci,
satisfeito, apela aos investidores e analistas: “confiem no Brasil” (16 abr 03);
chega ao ápice em 18 de abril de 2003 – “o otimismo ‘cauteloso’ em relação ao
Brasil, que já prevalecia entre analistas estrangeiros desde as primeiras semanas
do ano, começa agora a dar lugar a apostas mais ambiciosas sobre as perspectivas
do país. Bancos e fundos de investimento estrangeiros, quase em consenso,
preveem que o risco-país continuará a cair nas próximas semanas” e “na base
deste sentimento favorável, nós temos confiança crescente que o governo de
Lula será capaz de realizar sua agenda de reformas”. Pouco depois, o dólar tem
sua maior queda nos últimos oito meses (24 abr 03) e, em 28 de abril de 2003,
“o risco de Lula cai e se aproxima do de FHC”, com o comentário de que o país
não teria passado impunemente pela crise de confiança em relação a um “Lula
imaginário”. Uma indagação pertinente seria: quem criou o “Lula imaginário”
e por que tantos formadores de opinião teriam comprado este peixe? E mais
importante: quem paga esta conta?
Em 30 de abril de 2003, Horst Köhler, diretor do FMI, elogia as
administrações FHC e Lula e o Brasil pelas “medidas corajosas” que havia
tomado em 2002, como por exemplo o empréstimo de US$ 30 bilhões em
agosto, já que, para ele, o país “merece a confiança” da sua instituição; no
mesmo dia, a Standard & Poor’s eleva a nota do Brasil.
26
A variação percentual real do PIB em 2004 (ano com maior crescimento entre 2003 e 2007) foi 4,9%.
Contudo, com a nova metodologia de cálculo do IBGE (que entrou em vigor em março deste ano), o
PIB de 2004 teve uma variação de 5,7%.
Quem avalia o risco? – perspectiva histórica e análise interdisciplinar..., Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni, p. 36-60
55
Duas manchetes, em 3 de maio de 2003, apontam para as agudas mudanças
de percepção do país por parte das autoridades econômicas – “Brasil é o mercado
favorito dos analistas” e “do inferno ao céu”, sobre a inversão das críticas
anteriores, agora transformadas em elogios. O risco cai para 776 pontos e, no
dia seguinte, Vinod Thomas, diretor do Banco Mundial, afirma que a instituição
está encantada com “a combinação de responsabilidade macroeconômica e
urgência social pregada pelo novo presidente do Brasil”.
Num interessante exemplo de abdução de raciocínio (Lundberg, 2000), o
Financial Times tece elogios rasgados, em 7 de maio de 2003, à mesma
administração para a qual fizera previsões catastróficas alguns meses antes,
acrescentando que nem o otimista mais ingênuo teria podido esperar um retorno
tão rápido e bem-sucedido do Brasil aos mercados internacionais. Em 03 de
junho de 2003 a Fitch eleva a perspectiva de rating do Brasil de estável (B) para
positiva (B+), citando sinais de que o governo Lula poderia garantir um caminho
de sustentabilidade para a economia do país e salientando o compromisso do
novo governo com as reformas estruturais.
Alguns analistas concederam recomendações, como a de que a política
brasileira não deveria se deixar cegar pela euforia do momento, pois há necessidade
de empreender reformas de longo prazo nos sistemas previdenciário e fiscal. De
fato, quando em 9 de maio de 2003 os papéis da dívida brasileira atingem uma
alta histórica, ao lado de nova queda do risco-país e do dólar, dias mais tarde (13
mai 03) fomos informados de que “a indústria tem o seu maior declínio em
vendas nos últimos oito anos”, com o salário líquido caindo mais de 7% no mês.
Em outras palavras, a economia não parecia ir tão bem, à época, quanto retratada
nas avaliações de especialistas, maciçamente divulgadas na mídia.
Conclusão
Os dados analisados – previsões e afirmações sobre o estado da economia
brasileira, por parte de autoridades no período 2002-03, ao lado de índices
econômicos – não oferecem resposta adequada à pergunta: qual foi o grau de
objetividade de ambos os tipos de afirmação, pessimista anteriormente, e otimista
mais tarde? Tampouco permitem afirmar que teria havido análise criteriosa
daquela conjuntura.
As avaliações de risco, tanto pelas agências de rating quanto pelos índices
do JP Morgan, desempenham papel de grande importância na tomada de decisão
dos agentes econômicos. Embora sejam, rotineiramente, consideradas
interpretações inquestionáveis das informações econômicas, demonstram poder
ser, também, reflexo de expectativas ilusórias que provêm das limitações
emocionais e cognitivas de indivíduos e grupos que as geram e adotam, em
processo de realimentação.
A necessidade de empreender-se estudos cuidadosos e interdisciplinares,
levados a cabo no longo prazo, sugerida neste artigo, pretende trazer ao debate
a maneira como estas avaliações vêm sendo feitas, sua fundamentação e
interpretação por parte de analistas, autoridades e mercado em geral. As sucessivas
56
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
experiências de euforia e pessimismo detectadas no Brasil com relação a estes
indicadores oferecem matéria-prima para pesquisas desta natureza, tal como
observa-se, por exemplo, em 2007, com a atual baixa no risco-país, acompanhado
por especulações sobre upgrade ao grau de investimento.
Recomenda-se que tomadores de decisão levem em conta o conhecimento
sobre estas limitações encontradas no mercado e em suas próprias operações de
percepção e avaliação de dados, e que cursos de Economia aprofundem os
conhecimentos sobre o tema, o que não acontece na atualidade, a fim de capacitar
futuros economistas a trabalhar com estes índices com maior precisão, sentido
mais apurado de seu alcance e vulnerabilidade a distorções.
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60
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Brazil – India: A roadmap
to follow
Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali*
Abstract: The general disappointment with the failure of the Doha
Round of the World Trade Organization (WTO) negotiations on July
2008 was mostly the result of a last minute change by India on its
positioning in the agricultural negotiations. Due to domestic elections
and the impact such negotiations would have on internal migration
and economics, the negotiations stumbled on the basic issue of
safeguards. India acted exactly as expected in accordance with its past
behavior in similar negotiations, although it now has become a very
important player in the international arena. The scope of this article is
to analyze briefly the Indian rationale during the negotiations and verify
some areas where Brazil and India, two newcomers to the club of
great powers, can work together in securing their voices are heard in
the new world order, with both becoming major powerhouses struggling
in a world where the shift in the balance of power becomes even more
tangible. A greater cooperation between both democracies will certainly
improve the economies, increase synergies, particularly in agriculture,
where Brazil, a major exporter, can become a reliable partner for
India.
Keywords: Brazil, India, Roadmap, WTO Doha Round, IBSA
“But talk we will; listen we have to; disagree from time to time we may;
but united we must always remain.”
(Queen Elizabeth II)
Many Brazilian internationalists felt disappointed with the end results of
the World Trade Organization (WTO) Doha Round1 on July 2008 in Geneva,
particularly accusing India for the final collapse of the negotiations. This is not
true. India did precisely what its circumstances demanded, due to its own internal
and external dynamics.
*
Marcus Vinícius Freitas
Freitas, International Partner of Cerqueira Leite Advogados Associados, is a Professor
of International Law and Relations at Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), and a holder of an
LL.B. degree from Universidade de São Paulo, an LL.M degree from Cornell University and an M.A.
from The Johns Hopkins University School of Advanced International Studies (Sais). E-mail:
<[email protected]>. Juliana Baeza Buralli is a student of International Relations at
Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) and former Academic Coordinator of the XIV Latin
American Meeting of International Relations Students and Professionals held in Ribeirão Preto, Brazil,
on May 2008. E-mail: <[email protected]>. A preliminary version of this article was presented at
the III National Foreign Policy and International Politics Conference “Brazil in the World to come”,
organized by Foundation Alexandre de Gusmão of the Brazilian Ministry of Foreign Affairs, and held in
Rio de Janeiro, on August 28, 2008.
1
Special thanks to Ambassador Rubens Ricupero, Dean of the School of Economics at FAAP for his
constant support and contribution to our understanding of the WTO and the international system.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
61
Our purpose in this article is to analyze a few aspects regarding India as a
negotiator and set up a possible roadmap for improvement in Indo-Brazilian
relations in the near future in order to set the ground for the new world order
and balance of power that is starting to be designed.
India is certainly one of the most interesting countries in the world. Diverse
and traditional, yet it has one of the most entrepreneurial societies, with great
potential for continued contribution to humankind, international trade and the
South-South dialogue. Modernization and tradition constitute the paradox that
accompanies this country in the international scenario throughout history.
India has completely changed over the last 20 years. In the eighties,
economists who used to work with India were divided into two groups: the
optimists and the pessimists. The joke they had then was that the pessimist would
say: “Oh, goodness. Things are so bad; one cannot imagine them getting any
worse.” To which the optimist would then reply: “But I can!” India has gone
through major changes. Its recent history, after independence in 1947 from two
centuries of British colonial rule, has been a continuous path of challenges and
victories. With 1.1 billion people, its economy has grown steadily, currently 12th
largest in the world, when measured in nominal US dollars, and 4th when
measured at purchasing power parity exchange rates. Its success derives from a
democratic regime, where the rule of law and democratic values are highly
respected.
The Indian economy has been booming for the last ten years. With an
average growth rate of 7-8% over the last few decades, India changed its inwardlooking and state-interventionist policies that deeply tormented its economy,
restricting trade and economic freedom. The decades of low growth, termed
the “Hindu rate of growth”, are now a part of its past. The future looks bright
and India is on the track to become the world’s second largest economy by
2050.
Table 1 presents some macroeconomic data covering India´s economy in
2007 and in the years 2003-2007.
62
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Table 1
Macroeconomic Data covering India´s Economy 2007 and 2003-2007
Such strong economic performance has allowed the government to achieve
major positive results when it comes to reducing the fiscal deficit from 6% of
GDP in 2000-01 to 2.8% of GDP in 2007/08. Such growth has raised concerns
about inflation, similarly to the challenge Brazil has faced since 2007.
Table 2 shows, among other indicators, India’s projected GDP and inflation
for the five year period starting in 2007, where it is clear that though inflation is
under control, it may become a threat to the successes achieved.
Table 2
Key Indicators for India’s Economy 2007-2012
Source: Economist Intelligence Unit
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
63
Historical background in international negotiations
With its independence in 1947, India began to engage actively in global
politics, becoming one of the leaders of developing countries, many of them
also former colonies that sought autonomy, particularly during the Cold War.
India adopted an anti-liberal stance, by investing and deeply implementing the
process of import substitution. The first Indian Prime Minister, Jawaharlal Nehru
(1947-1964), believed that liberalism would undermine the commercial
development of the country, thus increasing state intervention in the economic
realm was required in order to create an industry with a solid foundation. Similarly
to Brazil at the time, this approach enabled a domestic industry that flourished
initially, with the development of sectors such as steel, machinery, together with
large investments in agriculture. Such policies, however, were in place far too
long.
India participated actively in the creation of the G-77 in 1963 in order to
enhance the levels of engagement and international participation of developing
countries, particularly within the United Nations General Assembly framework.
In 1964, the United Nations Conference on Trade and Development (Unctad)
was created as a demand by developing countries to create a permanent forum
to address their international trade needs. In 1968, the G-77, then led by India,
was able to secure an important rule within the General Agreement on Tariffs
and Trade (Gatt) in which developing countries would be entitled to differential
treatment.
India in the 1970s continued to restrict foreign investments into its territory,
clearly opting to produce goods domestically, even if the relative cost was much
higher than foreign products. The domestic industr y, despite its little
competitiveness, strengthened its base slowly. The protectionist investment
measures produced steady and gradual growth and generated good results
temporarily, and not sudden economic booms like the Brazilian “Economic
Miracle”2.
The Indian success in the Gatt Tokyo Round negotiation was the result of
a close cooperation with Brazil at the time, when both countries led the
developing world by seeking to guarantee differential treatment in international
trade to developing countries. A similar partnership would be later repeated in
the Uruguay Round, although less successfully3. Through the 1980s, India
suffered the results derived from oil crises of the preceding decade forcing a
dramatic change in its economic strategy and requiring it to open its markets to
foreign investors.
Historically, however, we can argue that India is a defensive and autonomous
negotiator. Through protectionist tactics, India has sought to increase its domestic
2
The so-called “Brazilian Economic Miracle” covers the period between 1968 and 1973, during which
GDP growth averaged more than 11% annually. Between 1974 and 1980, the growth rate fell to an
average of 6%, as a result of the increased costs of imported oil.
3
During the Uruguay Round, the United States pushed the inclusion of service industries, for which the
General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt) had never established rules. Brazil and India opposed
such proposal by the US fearing multinationals with much more advanced technology would greatly
damage local industries and annihilate local undeveloped companies.
64
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
development and somehow advocate the rights of developing countries. India
was one of the founding members of the World Trade Organization (WTO)4 in
1995, and has actively participated in larger groups of trade negotiation such as
the G-205, G-336 and G-777. In all forums, India occupies a prominent position.
As a WTO member country, India has been a complainant seventeen times
against irregular measures opposing its products, particularly with the United
States and the European Union. The majority of such complaints have involved
protectionist measures on textiles, agricultural and mineral products. India has
responded to nineteen complaints, coming mostly from the United States and
the European Union, especially in the segments of pharmaceuticals, automobiles
and exports of certain commodities8
This demonstrates that India has been an even more active player in the
field of international trade since becoming a WTO member. However, the level
of openness to trade still remains very low, and the benefits of international
trade have not yet contributed to improvement of welfare and higher education,
as widely expected.
However, India’s faith in the multilateral trading system has not decreased.
India has sought to implement a multilateral trading system that somehow serves
the needs of the weakest sections of society worldwide. Table 3 lists the intensive
activity India has had both as a complainant and respondent at the WTO’s
panels.
4
India was also a Gatt founding member in 1948.
5
The G-20 was created in 2003 in the Cancun Conference. This group consists of emerging countries
with strong agriculture. G-20 member countries have 60% of the world’s population, 70% of rural
population and 26% of world agricultural exports.
6
The G-33 is a group of developing countries that has proposed differential rules on international trade
for its member countries.
7
The G-77, founded in 1964, is a group of developing countries, whose goal is to secure common
economic interests and increase bargaining power at the United Nations. Currently, G-77 has expanded
to approximately 130 member countries.
8
See <http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11, 2008.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
65
Table 3
Source: WTO database.
9
Poland import regime for automobiles (1995), United States – Measures affecting imports in wool coats
(1996), United States – Measures Affecting Imports of Woven Wool Shirts and Blouses from India (1997),
Turkey – Restrictions on Imports of Textile and Clothing Products (1999), United States – Import Prohibition
of Certain Shrimp and Shrimp Products (1998), European Communities – Restrictions on Certain Import
Duties on Rice (1998), European Communities – Anti-Dumping Investigations Regarding Unbleached
Cotton Fabrics from India (1998), European Communities – Anti-Dumping Duties on Imports of Cottontype Bed Linen from India (1999-2002), South Africa – Anti-Dumping Duties on Certain Pharmaceutical
Products from India (1999), United States – Continued Dumping and Subsidy Offset Act of 2000 (20002004), Brazil – Anti-Dumping Duties on Jute Bags from India (2001), Argentina – Measures Affecting the
Import of Pharmaceutical Products (2001), European Communities – Conditions for the Granting of Tariff
Preferences to Developing Countries (2002-2004), European Communities – Anti-Dumping Duties on
Certain Flat Rolled Iron or Non-Alloy Steel Products from India (2004), United States – Customs Bond
Directive for Merchandise Subject to Anti-Dumping/Countervailing Duties (2006-2008). See, <http://
www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11, 2008.
10
USA – Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural Chemical Products (1996-1997), European
Communities – Patent Protection for Pharmaceutical and Agricultural Chemical Products (1997-1998), USA
– Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1999), Australia
– Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1998), Canada
– Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products 1997-1998), New
Zealand – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (1997-1998),
Switzerland – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial Products (19971998), European Communities – Quantitative Restrictions on Imports of Agricultural, Textile and Industrial
Products (1997-1998), European Communities – Measures Affecting Export of Certain Commodities (1998),
European Communities – Measures Affecting the Automotive Sector (1998-2002), European Communities
– Import Restrictions (1998), European Communities – Measures Affecting Customs Duties (1998), USA –
Measures Affecting Trade and Investment in the Motor Vehicle Sector (1999-2002), European Communities
– Import Restrictions Maintained Under the Export and Import Policy (2002-2007), European Communities
– Anti-Dumping Measures on Imports of Certain Products from the European Communities (2003), India –
Anti-Dumping Measure on Batteries from Bangladesh (2004), India – Anti-Dumping Measures on Certain
Products from the Separate Customs Territory of Taiwan, Penghu, Kinmen and Matsu (2004), European
Communities – Measures Affecting the Importation and Sale of Wines and Spirits from the European
Communities (2006), India – Additional and Extra-Additional Duties on Imports from the United States
(2007-2008). See, <http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>, as of August 11,
2008.
66
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
India’s commercial strength also comes from its natural wealth. Because
of its geological formation, India is rich in natural resources like oil, bauxite,
manganese and iron. The abundance of such resources allows competitiveness
in exports. However, foreign trade still represents a small portion of GDP (around
10%), with major trading partnerships such as Australia, Belgium, China,
Germany, Singapore, United Arab Emirates, United Kingdom and United States,
ranging from textile products, gems and precious stones, chemicals,
manufactured leather, tea, jute, cotton and other agricultural products to
petroleum, machinery, precious stones, fertilizers, chemicals. Table 4 shows
India’s international trade, its partners, major items commercialized and the
corresponding GDP percentage for the years 2006-2007.
Table 4
Foreign trade data for India 2006-2007
Source: Economist Intelligence Unit
India’s current challenges
Brazil, Russia, India and China are expected to become major economic
powerhouses11 by 2050, with a new realignment of the world order. Out of
these four countries, India is most likely to grow beyond current expectations.
India has truly been the most effective and genuine democracy operating in the
world after the Second World War, with an efficient, yet too bureaucratic civil
service, which, similarly to Brazil’s, does have at times a very negative impact
on the entrepreneurial spirit of the country.
Though anxious to play a major role in the international scenario, India
still remains an impermeable society to foreign cultures. This is partly due to
11
Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Global Economics Paper No.: 99 (2003), Goldman Sachs
Global Economic Website.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
67
Hinduism, which, as a rule, does not accept converts as a sign of an inevitable
destiny to those who are born into it. This constitutes an important factor when
considering how India sees and positions itself internationally. By seeking to
preserve itself based upon its moral qualities, India has resisted the temptation
of engaging in problematic issues of the international agenda. We can observe
such behavior, for instance, as an advocate for the developing world, when India
led the Non-Aligned Movement12, proclaiming itself as the neutral moral arbiter
of world affairs13.
Such positioning from India comes from its own challenges, since India is
at the center stage of a ver y hostile scenario, both domestically and
internationally. Any movements carried out by India can lead to immediate
risks14. Such threats come from either problems with bordering nations or conflicts
with its several different ethnicities. Therefore, India’s policies tend to be best
defined by a non-confrontational approach, where issues with whatever type of
impact on internal policies or the regional balance of power are immediately
discarded.
That is why India will not play a balance of power role against China. It is
neither a real perspective nor an “Indian thing to do”. India may serve as a
mediator with Gulf countries but to expect it to lead in certain situations which
may adversely affect its own situation could not be farther from reality.
Nuclear policies established by India have taken this approach into
consideration, since its purpose was to project the image of a world power with
full capability to defend itself against the dangers and threats that may come
from abroad, besides its serious security concerns with China and Pakistan. Since
nuclear weapons afford some protection against external threats, then the greatest
concern shifts to domestic issues currently threatening peace and local security.
India’s internal diversity, though its greatest asset, is also its most relevant
challenge for security reasons. Such unsettling scenario has been the reason for a
perennial domestic turmoil involving several diverse groups. This is one of the
reasons why international criminal networks have found fertile soil in certain
regions of the country15, particularly resulting from drug trafficking networks
that have established South Asia as a transition area towards larger consumption
markets of Europe and North America.
Ethnic conflicts resulting from illegal immigration coming from Bangladesh,
together with religious conflicts and intolerance have contributed to several
conflicts, particularly in Northeast India. Sri Lanka has added to this instability,
together with Nepal. If the situation of neighboring countries worsens, immigrant
waves may generate even more problems for India. However, India remains a
relevant partner in the fight against international terrorism with the U.S. and
12
The Non-Aligned Movement (NAM), initially led by Egypt, India and Indonesia, had its origin in the
Asia-Africa Conference held in Bandung, Indonesia, in 1955 with 29 former colonies. The NAM purpose
was to maintain a neutral positioning in the Cold War. The main goals were to secure economic
development, fight poverty and national independence movements, in clear opposition to neo-colonialism.
13
See KISSINGER, H.A. Does America Need a Foreign Policy? Touchstone, 2001, p. 156.
14
Kissinger again emphasizes that India would not endanger its internal security for the sake of issues not
directly associated with its affairs. According to his perception, India would never risk positioning itself
against the USSR during the Cold War for the sake of freedom in Berlin, for instance. Nor would it risk
unsettling Muslims living within its territory on behalf of Israel.
15
Vohra Committee Report submitted to the Ministry of Home Affairs, Government of India, 9th July
1993, p. 4.
68
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Western countries, par ticularly when dealing with radical Islamic
fundamentalism. Several major attacks have attempted to increase violence
between Muslims and Hindus16.
Another challenge India currently faces is the spread of HIV/Aids
contamination. Approximately 1% of the Indian population17 is now infected
and in certain areas of the country, this may reach more than 5%. A severe
epidemic may lead to the death of approximately 100 million people by 2020.
Considering all these aspects, it is easier to understand why India opposed
so vigorously the concluding negotiations of the Doha Round. The eventual
limitation of India’s possibilities of subsidizing the agricultural sector would
adversely affect its growth strategy18. This was a particular concern because
Doha’s negotiations implied India would be forced to open its domestic markets
to heavily subsidized agriculture from the US and Europe. The only way to
avoid such would be the assurance of an effective safeguard mechanism that
could be used whenever imports exceeded 10% in certain agricultural products
and for a certain period of time. Since approximately 60% of the workforce is in
the agricultural sector (which generates 16% of GDP), migratory flows from
rural to urban areas constitute a major concern. The adoption of Doha as is
would certainly impact India’s path to its bright future.
That is why India insisted on safeguards19. Such measures protect temporarily
the domestic sector suffering loss or threat of loss due to an increase in the
quantity of imported goods, and are applied for a certain period of time in order
to ensure that the domestic producer can compete with imported goods.
This is because the pattern of agricultural production in India is a legacy of
the plantation model implanted in colonial times stimulating rural migration in
the country20. Indian agriculture tends to be much more inward-looking, since
most of the production supplies its own growing population and seeks to ensure
self-sufficiency in food production, with occasional surpluses. Production
bottlenecks, like Brazil, constitute major hurdles for increased output. Such
obstacles include diseconomies and logistics challenges that have not yet been
fully addressed by the government. This has caused major crucial problems for
the maximization of agricultural exports. This, together with the internal
instabilities currently affecting India, clarifies its rationale and positioning before
the final collapse of the Doha round.
Added to that, the internal political scene does not welcome major shifts
affecting domestic policies, particularly in a country where 300 million people
live on US$ 1 a day and almost 700 million live on US$ 2 a day. A general
election is due by May 2009, with regional parties playing an ever increasing
16
During the month of July 2008, several attacks took place. For instance, in Eastern Varanasi an
explosion interrupted Hindu devotees when lighting oil lamps to Hanuman, the monkey god. In
Hyderabad, a homemade bomb was placed in a mosque, killing many people. Blasts have also killed
commuters in trains in Mumbai. Such attacks clearly raised concerns about terrorist network activities
in India.
17
HAPPYNON, J. HIV/AIDS as a Security Threat to India. New Delhi: Marohar, 2005.
18
Although the agricultural safeguard clause would be entirely justified in case of subsidized products, in
the case of Mercosur it would be necessary to negotiate a more flexible mechanism. The reason for this
is, of course, the fact that Mercosur countries do not subsidize their agriculture.
19
Safeguards have been a constant feature of the multilateral trading system. Though limited in its use,
it has always served to address domestic concerns related to trade opening commitments as a “safety
net” to negotiating countries. It is quite ironic to see that the negotiations stumbled over such issue.
20
POMAR, W. Curso de formação em política internacional. p. 124.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
69
role, which may necessarily be important for the governmental coalitions that
will be established. Signs have already been given by the government that it will
keep increasing spending on health, education and rural welfare projects, with
the purpose to improve living standards outside major urban areas. Such
perspective evidences why India opted out of the Doha negotiations, since major
changes in the agricultural sector would adversely affect the country and impede
India from achieving the goal of becoming one of the world´s most important
countries in the near future. Therefore, India’s leadership role in the future
depends on an efficient and balanced management of its internal and external
threats.
A roadmap for Brazil and India
There is a clear shift taking place in the world today regarding the balance
of power. For the last three hundred years, Asia has not played such an important
role in the field of international relations. However, over the last two decades,
India and China have reasserted themselves as major international powerhouses
with a clear goal to become the largest economies in the world. Economic
power necessarily will lead to military strengthening. Many studies have shown
that Indian and Chinese economies will surpass the US economy much sooner
than current projections, unless bad policies are implemented or as a result of
just plain bad luck21.
Within this new framework of balance of power, it would seem appropriate for
Brazil to place itself as a strategic partner to India in the Western Hemisphere,
particularly in South America. Though very diverse societies, both share common
values when it comes to democracy, advocacy for developing countries and even
common values regarding the international system. Our purpose is to suggest a few
areas where interaction should take place in a way to strengthen the current and
future ties.
Cultural ties
There is a weak communication between Indian and Brazilian grassroots
movements and political groups. A stronger lead, not necessarily by government, is
required in order to increase the dialogue between the two countries.
Special emphasis should be given to a constant exchange of students at all
levels and professors. By encouraging joint degrees and programs, students and
professors would be more stimulated to visit and learn about each country. Brazilian
perspectives on India are outdated and do not reflect the changes of the last two
decades. Overall relations could greatly benefit when similarities between both sides
are emphasized.
Brazil also has a great tradition in soap operas. India, on the other hand, has
an exciting movie segment, represented by Bollywood. Both countries could find
ways to cooperate in this segment either by trading knowledge or having joint
productions, or with greater exchange of such art and by better introducing one
country to the other.
Militar
Militaryy cooperation
The recent discovery of major oil reserves alongside the coast have been a source
of great news to the Brazilian government. Such reserves, when explored, will make
21
See, Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Global Economics Paper No.: 99 (2003), Goldman
Sachs Global Economic Website.
70
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Brazil one of the world’s largest oil producers. This will change the dynamics of the
Brazilian economy. The protection of such resources and assets is essential for ensuring
national sovereignty and the fight against piracy.
In order to protect our shores, the Brazilian navy has already set up future
operations in the Brazilian continental shelf as training for the protection of oil
resources. Joint training operations between the Brazilian and Indian navy – the
third largest in the world – together with the Air Force, could be beneficial for both
sides.
Both countries use outdated military equipment and possible joint initiatives
could result in the development of more updated technology with the corresponding
technology sharing. Jointly, new technologies and weaponry could be designed for
both military and civilian use. This would be particularly interesting for the case of
Brazilian developments of satellite launching and military nuclear equipment.
Economic integration
India has increased the amount of exports to Brazil over the last years, as shown
in the chart below. Yet our commercial relations are not as strong as they could be.
This is depicted in Table 5, which shows the trade flows between Brazil and India
for the years 1988 through 2008.
Table 5
Trade flows between Brazil and India 1988-2008
Sour
ce: Oportunidades de Comércio e Investimentos entre Índia e Brasil,
Source:
by Consul Rajeev Kumar, Indian Consulate, July 10, 2008.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
71
This table reveals a steady increase of the commercial ties between both
countries; however, India only represents approximately 1% (one percent) of
Brazil’s foreign trade, ranking 16th in the list of Brazil’s major trading partners
in the year 200722. Indo-Brazilian trade continues to grow from year to year,
but a stronger commercial relationship is required, with lines of credit to exports
available on both countries.
With the collapse of the Doha round, it was clear that Brazil did not
understand India’s positioning and internal dynamics very well. This is why a
bilateral trade agreement between India and Brazil or India and Mercosur
becomes even more needed. A preferential tariff agreement was signed between
Mercosur and India in 2005, but a more concerted effort is now required to
ensure that commercial ties expand the cooperation, particularly in technology
and biofuel areas.
Strengthening private sector cooperation is essential to ensure an increase
in investments and international trade. The Forum of CEOs launched in India
in June 2007 upon President Luis Inácio Lula da Silva’s visit to India still has to
show greater strength by holding constant meetings with governmental
authorities and academia to develop joint projects for improvement of economic
conditions, thus generating new business opportunities and employment rates.
Brazil could greatly learn from India’s microcredit mechanisms to improve
the lives of poor populations throughout the country. India, on the other hand,
could greatly benefit from technology transfer of the Brazilian banking sector,
one of the most technologically advanced in the world. This is particularly
important as India integrates itself in a more globalized society and millions of
people currently out of the economic system enter its banking system. Another
venue for joint activity could be an exchange of outsourcing opportunities in
order to provide customers worldwide with the best possible quality of service.
India is a major sugar cane producer. Therefore, investments into ethanol
usage as a fuel should increase, as India’s concerns for climate change increase.
The enormous growth of India’s automobile sector in the last few years has
increased the number of vehicles in the market. This will greatly impact the
environment, particularly due to CO2 emissions. The recent requirement of an
addition of 5% of ethanol to all consumed gasoline in the country will certainly
create more trade between both countries23. Technology exchange between
Brazil and India should take place with crossed investments into development
of cleaner energy in India.
As a result of India’s GDP per capita increase in the coming years, millions
of people will enter the consumer market, particularly anxious to enjoy the
abundance of resources, especially food24. Since India is not self-sufficient in
agricultural terms to supply this new demand, a major partnership with India
could be set up in order to provide for such needs and demand. Brazil will need
22
See, <http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/september/tradoc_113359.pdf>, as of August
12, 2008.
23
Since 2007, the Brazilian government has been pushing India to use Brazilian ethanol production
technology, particularly increasing the addition level from 5 to 10% of ethanol into gasoline.
24
The stabilization of the Brazilian economy as a result of the Real Economic Plan in the 1990s brought
in millions of consumers left out of the economic system.
72
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
to reform and modernize its infrastructure and logistics in order to improve the
distribution networks and open the Asian markets to its products. Maritime routes
will need to be established with higher level frequency in order to secure ontime delivery.
Substantive investments in each other’s economies will certainly help smooth
any sorts of disagreements, misunderstandings or likely sensitivities that may
distort perceptions on both countries. India will need to improve its serious
structural barriers to foreign direct investment. If the rules are clear and the
basic investment infrastructure is set up, both countries will greatly benefit from
a constant thread of mutual investments. This requires India to implement and
expedite the pace of economic reforms, similarly to what Brazil did in the 1990s.
If India wants to play a major role in the international scene, many of its current
obstacles to foreign investment will need to be overcome.
By establishing common economic interests and ties, a joint action
internationally will help create an even more important well-being in economic
terms, which will strengthen both countries as they interact more intensively in
a globalized economic system.
Conclusion
The collapse of the Doha Round should serve as an eye opener of the new
world order, now starting to be designed. In this new world order, China and
India will become major powerhouses, definitely altering the balance of power
now existing in the world and shifting its center substantially to Asia.
Due to its commitment and historic respect for democracy and institutions,
India should be regarded as a prime strategic partner for Brazil. Both countries,
though different, can greatly benefit from a more intensive business, economic,
cultural and political relationship.
There will be divergences of opinions throughout this process. It is important
for Brazil to understand clearly India’s current challenges and perspectives, both
domestically and internationally. Doha clearly proved Brazil still does not
understand India. A greater cooperation between India and Brazil, two of the
world´s largest democracies, is in order and will certainly benefit both countries,
since their economies can share enormous synergies and supplement each other,
particularly in agriculture, where Brazil, a major exporter, can become a reliable
partner for India.
Great partnerships only happen after many successful negotiations take place.
It is time to negotiate and secure greater cooperation. The future looks bright
for Brazil and India.
Brazil – India: A roadmap to follow, Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali, p. 61-74
73
References
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diferenças que ainda importam. São Paulo: Artmed, 2008.
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Affairs. 9th July 1993.
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São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.
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<http://www2.goldmansachs.com/ideas/brics/book/99-dreaming.pdf.>. Access on:
August 13, 2008.
<http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/india_e.htm>. Access on August 11,
2008.
<http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/september/tradoc_113359.pdf>. Access
on: August 12, 2008.
74
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
A rrelação
elação dólar
-petróleo, a
dólar-petróleo,
nova configuração do
comércio mundial de
petróleo, os desequilíbrios
americanos e os efeitos
sobre os ciclos financeiros
Bouzid Izerrougene*
Resumo
Resumo: O artigo procura analisar a inversão da relação dólar-petróleo
que se verificou no período 2000-2008, num contexto marcado pelos
desequilíbrios da economia americana e pelo surgimento de novas
relações no comércio e nas finanças internacionais.
Palavras-chave
Palavras-chave: dólar, petróleo, juro, déficits americanos, China.
1. Introdução
Este trabalho procura interpretar os movimentos de alta sustentada do preço
do petróleo e de queda rápida da cotação do dólar entre 2002 e 2008, que
significaram uma inversão da relação positiva tradicional entre as duas variáveis.
O período referido é marcado pela crescente incerteza nos mercados monetários,
em razão dos colossais déficits externo e fiscal estadunidenses, que geram uma
dinâmica de desequilíbrio na economia mundial, modificam os ciclos financeiros
e acentuam os sobressaltos do mundo em transição.
A nova correlação, negativa, do preço do petróleo para o dólar pode estar
refletindo um novo regime que derivaria de quatro mudanças profundamente
estruturais e interligadas: o aprofundamento dos desequilíbrios externos da
economia americana, que tornou negativo o saldo líquido da sua conta
rendimentos de capitais; as novas práticas de comércio internacional, que levam
à redução do dólar como meio de pagamentos no mercado mundial; a
generalização do regime de câmbio flutuante, que tende a multiplicar e diversificar
os mercados cambiais; e a emergência da China como importante ator no
comércio e nas finanças mundiais. Sendo o yuan ancorado ao dólar, uma
*
Bouzid Izerrougene é Pós-doutor pela Universidade Paris-Dauphnine e professor de economia no
curso de Mestrado da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: <[email protected]>.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
75
desvalorização deste tende a aumentar o superávit comercial chinês e influenciar
os mecanismos de criação monetária internacional através de intervenções
cambiais.
2. A inversão da relação dólar/petróleo
Os preços internacionais das commodities estão ainda dominantemente
cotados em moeda americana. Mas somente os preços em moedas nacionais
podem avaliar as receitas e despesas reais associadas às transações comerciais
para todos os países onde as taxas cambiais não são fixas em relação ao dólar.
Fora os Estados Unidos, os países importadores de petróleo não podem ser
proporcionalmente beneficiados por uma queda no preço de petróleo quando
esta queda é acompanhada por uma valorização do dólar, como foi o caso na
primeira metade da década de 1980. Inversamente, o encarecimento do petróleo
pode ser atenuado por uma depreciação da moeda americana, como ocorreu no
período de 2002-2008. Portanto, a avaliação das contas de petróleo passa
necessariamente pela comparação do preço do barril com as taxas cambiais.
A verificação empírica mostra uma relação positiva entre o preço do óleo e
a cotação do dólar entre 1973 e 19901. A partir de 1971, os gastos crescentes em
petróleo implicavam numa liquidez também crescente em dólar, o que
pressionava a valorização deste. A quantidade de moeda americana encontrada
fora dos Estados Unidos aumentava na medida da ampliação do comércio
internacional, gerando uma dívida correspondente dos EUA junto ao resto do
mundo2. Contrariamente ao que ocorre em todos os países, os recorrentes déficits
comerciais americanos não geravam necessariamente pressões depreciativas sobre
o dólar. Isso porque a procura pela moeda americana era crescente, desde que
crescesse a economia mundial e, com ela, as transações internacionais. Quando
a Opep encarece seu produto, novos dólares são injetados nos mercados
internacionais. Se a economia mundial mantém crescimento, a liquidez adicional
pode ser emitida sem alteração cambial.
Os americanos gastam cerca de um quarto da produção mundial de
petróleo. Quando a cotação do dólar aumenta, ela atinge os três quartos restantes.
Para os EUA, o preço não muda. Este país produz atualmente um pouco menos
da metade do petróleo que consome, importando a outra metade, que representa
um oitavo do consumo mundial. Se todo o petróleo vendido no mercado
internacional fosse negociado em dólar, de todos os dólares adicionais e
necessários quando aumenta o preço do petróleo, 7/8 seriam destinados ao
resto do mundo. Em outros termos, a cada elevação do preço de petróleo, os
americanos podem financiar seu acréscimo de gasto energético via sua moeda
e, ainda, fornecer sete vezes esse acréscimo para os demais países. Quando a
trajetória do preço do petróleo se inverte, a procura pelo dólar cai e os americanos
1
Ver Throop (1993), Zhou (1995), Dibooglu (1996), Amano e van Norden (1998); Krugman (1980),
e Golub (1983).
2
Cada dólar detido por não-residente americano significa um reconhecimento de dívida dos Estados
Unidos; uma promessa de que este país entregará algo de volta ao possuidor estrangeiro do dólar.
76
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
podem, de um lado, comprar parte da sua própria moeda depreciada contra
títulos do Tesouro do país e outras dívidas e, por outro lado, reduzir o seu déficit
comercial, graças à subsequente elevação da sua competitividade-preço. Certo,
um dólar desvalorizado significa mais gastos americanos para as importações
irredutíveis, mas, ao mesmo tempo, a depreciação cambial provoca inflação
mundial, o que gera uma redução quase proporcional da dívida externa
estadunidense.
Frente a uma forte depreciação da moeda americana, os parceiros comerciais
dos EUA são levados a comprar maciçamente dólares para manter a estabilidade
de suas respectivas moedas e não comprometer suas balanças comerciais.
Ademais, as reservas acumuladas em dólar significam, no fim, maiores pressões
sobre a solvabilidade americana e, portanto, maiores pressões sobre a cotação
do dólar. Assim, os bancos centrais dos países superavitários ficam presos entre a
ameaça da depreciação de suas reservas cambiais e a necessidade de continuar a
comprar dólares para manter a paridade de suas moedas.
Teoricamente, a relação entre o preço do petróleo e a cotação do dólar foi
interpretada de duas formas. Na primeira, que considera o preço do óleo como
maior determinante dos termos cambiais, a associação das duas variáveis é
analisada através de um modelo simples a dois setores: um setor que produz
bens comercializáveis no mercado internacional (tradables) e outro, que produz
bens negociados exclusivamente no mercado doméstico (non-tradables). Ambos
os setores usam um bem tradable, que é o petróleo, e um non-tradable, que é a
mão-de-obra (Amano e van Norden, 1998).
Nesse modelo, a elevação do preço do petróleo provoca contração salarial,
devido à necessidade de manter a competitividade internacional do setor tradable.
Se o setor non-tradable é mais intensivo no uso da energia do que o tradable,
seus preços irão crescer e a inflação doméstica resultante causará uma elevação
semelhante na taxa de câmbio real. Essa interpretação ignora a possibilidade de
uma elevação de preços nos dois setores, como consequência do encarecimento
do petróleo no mercado mundial.
A segunda interpretação parte do balanço de pagamentos, levando em
consideração tanto o setor tradable quanto as escolhas de portfólio internacional
(Krugman, 1980; Golub, 1983). Aqui, a mudança de preço de petróleo
representa uma redistribuição de renda entre os países exportadores e os países
importadores de petróleo. Os movimentos cambiais dependem dessa distribuição
e da sua consequente variação nas preferências de importações e de investimento
internacional em portfólio. Quando, por exemplo, aumenta o preço de petróleo,
os países exportadores compram mais títulos nos mercados desenvolvidos de
capitais e importam mais bens industrializados. Portanto, as variações nas taxas
reais de câmbio dependem da distribuição geográfica das importações dos países
da Opep e de suas preferências de portfólio. No seu modelo, Krugman supõe
que as economias da Opep preferem amplamente os ativos denominados em
dólar e tendem a importar mais dos países europeus. Por isso, a elevação do
preço de petróleo provoca uma apreciação do dólar no curto prazo, que é
atenuada no longo prazo, devido a uma maior rapidez nos investimentos
financeiros em relação à compra de importados.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
77
O óleo negociado no mercado mundial chega a cerca de 50 milhões de
barris por dia. Um incremento no preço do barril de 20 dólares, por exemplo
(como foi o caso em 2004, quando o petróleo passou de US$ 40 para US$ 60),
provoca uma necessidade de liquidez adicional em dólar de 1 bilhão por dia3. É
um volume considerável de liquidez que se reflete no crescimento da dívida
externa americana. Uma dívida adicional contratada, essencialmente, junto aos
países superavitários: os asiáticos e os árabes que aplicam suas poupanças no
mercado financeiro americano, financiando os déficits gêmeos (externo e fiscal)
dos Estados Unidos4. A elevação do preço do petróleo que obriga todos os países
importadores a comprarem mais dólares para pagar o petróleo, o reembolso das
dívidas por parte dos países árabes e a reciclagem dos excedentes via
financiamentos dos déficits americanos formam um tripé que sustentava o dólar
valorizado.
Todavia, pode-se observar que, no período de 2000 a 2008, enquanto a
cotação do petróleo aumentava firmemente, o dólar sofria uma queda contínua,
apesar da elevação das taxas americanas de juro. Como explicação, evocam-se a
contração dos estoques americanos de petróleo, a demanda elevada, a falta de
investimentos no refino, a instabilidade geopolítica no Oriente Médio etc. Um
grande número de analistas mostra, ainda, que os déficits nas transações correntes
dos EUA são a verdadeira razão do encarecimento do petróleo.
De 1973 a 1979, período contido entre duas crises energéticas, o preço do
petróleo foi multiplicado por 2,1 vezes e o dólar havia se desvalorizado 18%5.
Opostamente, de 2002 a 2008, o preço do petróleo quase triplicou, ao tempo
em que o dólar sofreu uma desvalorização de cerca de 40%, passando de 1,32
(em janeiro do primeiro ano) para 0,74 euro (em dezembro do último)6. Essa
comparação mostra como se atenuou o papel do encarecimento do petróleo na
alimentação do valor do dólar.
É verdade que o dólar desvalorizado diminui o valor real do óleo em outras
moedas. No entanto, a valorização do petróleo foi bem maior do que a
depreciação do dólar, o que resultou em um considerável aumento da fatura
energética dos importadores líquidos de petróleo. Quando se compara a cotação
média anual do câmbio euro/dólar com o preço do barril de petróleo dos anos
de 2002 e de 2007, respectivamente um barril a US$ 25 por um euro a US$
0,94 e um barril a US$ 75 por um euro a US$ 1,36, pode-se constatar que em
2000 o barril custava 26,5 euros e, em 2007, estava em 55,5 euros: o dobro,
conforme mostra o Gráfico 1.
3
Esse capital adicional de giro pode dobrar quando são considerados os derivados de petróleo, que são
também faturados em dólar.
4
No caso dos países árabes, endividados, uma parte do excedente ser ve a quitar dívidas e,
consequentemente, não reintegra o circuito econômico mundial, isto é, a moeda adicional associada ao
petróleo é destruída.
5
Dados calculados em relação ao marco alemão. Fonte: World Perspective, Janeiro 2008: <http://
perspective.usherbrooke.ca/bilan/servlet/BilanEssai?codetheme>.
6
78
Dados do Fed (2009).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Gráfico 1
Cotação US$/euro e preço do barril de petróleo no mercado “Spot”
Fontes: Opep e BCE
A relação negativa entre o preço do petróleo e a cotação do dólar se deve,
na realidade, ao excesso dos déficits americanos e à reconfiguração das relações
comerciais e financeiras internacionais, na qual emerge a China como grande
player nos mercados mundiais, influenciando substantivamente tanto os preços
internacionais quanto as decisões de investimento nos mercados cambiais e de
capital.
3. Os desequilíbrios americanos — uma configuração inédita
O considerável e crescente déficit externo dos EUA e a acumulação
subsequente de excedentes na maior parte do resto do mundo constituem um
dos paradoxos mais flagrantes da economia mundial nessa era de globalização.
Os déficits das transações correntes americanas, que representam a conta
comércio exterior e a de transferências de renda, depois que passaram por dois
processos de saneamento em 1980 e 1991, persistem numa trajetória de alta
constante, gerando uma situação nova de endividamento internacional. A posição
externa dos EUA se deteriora nitidamente e o país mais potente do mundo está
sendo o maior devedor de todos. O aprofundamento da diferença entre o volume
dos haveres americanos e o seu engajamento bruto no mundo ajudou a inverter
a tradicional posição favorável à balança de pagamentos americana, quando, a
partir de 2006, o saldo líquido da conta rendimentos de capitais se tornou
negativo, com um déficit equivalente a 2% do PIB estadunidense. Simplesmente,
os EUA recebem mais investimentos do resto do mundo do que investem fora
do país e se tornam, pela primeira vez na história da hegemonia americana,
pagadores líquidos de renda de fatores. Isso significa que a dívida americana
tenderá a se aprofundar e o seu financiamento, necessariamente insustentável.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
79
Em 2001, a política econômica americana realizou uma reviravolta total,
aplicando uma política monetária e orçamentária expansionista. Através de um
processo de grandes dimensões, o banco central americano, conhecido como
“Fed”, reduziu sua taxa básica de juros de 6,5% para 1%, desencadeando a queda
do conjunto das taxas com impacto expansionista sobre a demanda global.
Quanto à política fiscal, o confortável excedente de US$ 224,8 bilhões que o
governo Bush herdou do governo Clinton se transformou logo em déficit. Após
o 11 de Setembro de 2001, para evitar a recessão que poderia vir da grave crise
de confiança pós-atentados, o governo Bush ampliou gastos e cortou impostos.
Isso elevou o crescimento econômico e, claro, gerou um enorme déficit que,
logo em 2002, alcançou o nível de US$ 254 bilhões, um déficit que irá se acentuar
para atingir os US$ 445 bilhões em 2008, equivalente a 3,2% do PIB7.
No setor externo, o déficit nas contas correntes americanas, que era de
US$ 413 bilhões em 2000, passou para US$ 474 bilhões em 2002 e continuou
na trajetória ascendente, atingindo o seu recorde em 2006, US$ 856,7 bilhões,
correspondente a 6,5% do PIB. Esse déficit caiu no fim de 2008, passando para
2,5% do PIB. Uma queda que se deveu à forte contração das importações (15%),
acoplada a uma retração das exportações (9%) 8.
Fundamentalmente atrelados à fraqueza da poupança doméstica e ao
aprofundamento do déficit público, os desequilíbrios correntes americanos se
sustentaram durante mais de 15 anos graças ao apetite dos investidores
internacionais pelos títulos americanos, em razão dos lucros auferidos e, também,
devido à situação privilegiada do dólar no comércio mundial. Porém, em razão
do desfalque dos capitais europeus nos últimos anos, o financiamento dos déficits
americanos passou a contar essencialmente com a intervenção maciça dos bancos
centrais asiáticos. Dentre estes, o da China está sendo o maior credor da economia
estadunidense, com um montante de cerca de US$ 696 bilhões e reservas que
beiram os US$ 2 trilhões, no fim de 2008. No início da década atual, a parte da
dívida pública americana financiada pela China representava apenas 1% do total.
No início de 2009, a relação passou para 7%, fazendo da China o maior detentor
não-residente dos títulos do tesouro americano, US$ 744 bilhões9.
Os déficits gêmeos tomaram dimensões astronômicas de mais de US$ 1
trilhão por ano. Para o seu financiamento, a economia americana absorve mais
de 70% das transferências mundiais de poupança10. Porém, esses fluxos de capital
não são suficientes para fechar as contas estadunidenses. A cobertura dos déficits
correntes americanos não passa de 80% e o hiato financeiro chega a um valor de
US$ 1,8 bilhão por dia. Pode-se pensar, nessas circunstâncias, que a queda do
dólar se constitui numa variável de ajustamento dos grandes desequilíbrios nas
contas externas do país. Os americanos monetizam uma parte dos seus déficits
7
Em 2006/2007 o déficit chegou ao ponto máximo de 4,9% do PIB, devido às catástrofes naturais
(Katrina e Rita) e à invasão do Iraque.
8
Dados do Departamento de Comércio Americano.
9
Dados do BCE, 2009.
10
80
Unctad, 2008.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
(aquela que não está coberta por capitais estrangeiros) emitindo dólares, o que
implica necessariamente depreciação da moeda americana nos mercados
monetários.
A posição do dólar como meio de pagamento e reserva de valor no mundo
se viu seriamente afetada após o lançamento do euro, em janeiro de 1999, quando
a moeda europeia começou a ser usada como uma das variáveis de ajustamento
dos desequilíbrios mundiais. Lançada a uma cotação de US$ 1,183, a moeda
europeia única se desvalorizou em seguida, atingindo seu nível mais baixo de
US$ 0,84 em 2000. No ano subsequente, o euro reagiu para alcançar a sua taxa
mais elevada em dólar, 1,195, com uma progressão de 40%. Em fevereiro de
2004, a sua cotação estava em US$ 1,30 e se manteve alta nos anos 2005 e
2006. No dia 8 de novembro de 2007, o euro bateu um novo recorde, chegando
a US$ 1,44. Diante daquele cenário de queda da moeda americana, a China e
outros países superavitários começaram a temer seriamente pelo desmoronamento
de suas reservas (US$ 1,44 trilhão nas reservas chinesas em 2007) e acelerar o
processo de diversificação de seus haveres cambiais11. Consequentemente, o dólar
se desvalorizou mais ainda frente ao euro, o qual atingiu, em julho de 2008, o
nível de US$ 1,58.
Essas mudanças cambiais monetárias, junto com a consequente evolução
dos preços mundiais, são variáveis importantes que definem os ciclos financeiros.
De 1999 até 2008, a economia mundial passou por dois ciclos financeiros, tendo
o ano de 2004 como data de início do segundo deles.
4. Os ciclos financeiros da década de 2000
É importante lembrar a situação econômica dos EUA antes que o Fed
procedesse ao aperto monetário de 1999 (início do primeiro ciclo). A década de
1990 foi tão proveitosa para a economia americana que alguns comentaristas
econômicos evocaram o new age americano. A performance estadunidense havia
superado significativamente a de outros países ocidentais e a do Japão e isso foi
explicado pelo sucesso da nova economia e do aumento da produtividade. Com
um crescimento econômico relativamente elevado e as contas públicas
superavitárias, os capitais asiáticos, árabes e europeus disputavam o ingresso no
mercado americano, valorizando o dólar.
Em 1998, a economia mundial entrou numa zona de alta instabilidade.
Naquele momento, a oposição conjuntural entre a recessão profunda na qual
mergulhavam o Japão e os países do Sudeste Asiático e o bom vigor aparente
das economias europeias e americana parecia incoerente com o processo de
globalização. A força desestabilizadora da recessão que se propagou ao longo
do ano de 1997, partindo do Sudeste Asiático para atingir a Rússia em 1998 e a
América Latina em 1999, foi o resultado, pela primeira vez, de um ataque
especulativo em escala global.
11
No fim de 2008, o euro representava cerca de 30% dos US$ 2 trilhões de reservas cambiais chinesas,
com equivalente contração de reservas em dólar.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
81
Em junho de 1999, o Fed procedeu a um aperto monetário para combater
a inflação e corrigir os inchaços nominais das bolsas de valores, que foram
motivados pelo excesso de capitais. Mas as consequências do aumento da taxa
de juro nos EUA foram as duas grandes quebras que sofreu Wall Street em abril
e setembro de 2000. A procissão de crises financeiras que eclodiram no mundo,
no fim da década de 1990, marcou o fim de um ciclo financeiro (1994-1998) e
abriu espaço para o novo ciclo de 1999-2004. O início deste novo ciclo coincidiu
com a criação do euro.
4.1. O primeiro ciclo – junho 1999 a junho 2004
O início do ciclo.. A introdução da nova moeda, com cotação acima de 1
dólar, levou alguns analistas a prever uma diversificação das carteiras de títulos
internacionais da Ásia, os quais concentram uma grande parte das reservas
internacionais. A análise que prevaleceu naquela época (e que ainda prevalece
hoje) é que se os países asiáticos superavitários determinassem substituir de forma
significativa parte de seus haveres em dólar por haveres em outras moedas –
para evitar a instabilidade da moeda americana e ampliar suas margens de
manobra frente às pressões econômicas e políticas dos EUA –, o financiamento
do crescente déficit da balança de pagamentos americana se complicaria e, a
termo, o estatuto de moeda internacional hegemônica do dólar estaria ameaçado.
O euro manteve sua paridade frente ao dólar e o Banco Central Europeu
(BCE) aproveitou essa vantagem cambial para rebaixar sua taxa básica de juros
de 3% para 2,5%, em abril de 1999. Mas, dois meses depois, em junho, o Fed
aplicou uma constrição monetária, aumentando sua taxa básica de 4,75% para
5%. Era o início do primeiro ciclo financeiro, a partir do qual os EUA, em seis
vezes consecutivas, haviam aumentado sua taxa de juros, que chegou ao nível
de 6,5% em maio de 200012.
Nesse tempo, o dólar começou a se valorizar, passando de 1,01 euro, em
julho de 1999, para 1,17 euro em outubro de 2000. Em 15 meses, o euro perdeu
em torno de 20% do seu valor frente ao dólar. A sua queda favoreceu as
exportações europeias, mas inibiu os investidores internacionais que irão preferir
os títulos americanos, acentuando assim a queda do euro. O BCE foi obrigado
a aumentar sua taxa básica para limitar a fuga de capitais. No dia 15 de novembro
a taxa europeia passou a 3%. O preço do barril de petróleo, que era de US$ 10
em janeiro de 1999, aumentou para US$ 14 em abril do mesmo ano, saltando
para os US$ 26 em janeiro de 2000. Com o encarecimento do petróleo e das
demais matérias-primas, a inflação importada ameaçava o mercado europeu.
No dia 4 de janeiro, o BCE antecipou uma mudança na sua taxa de juros, que
foi elevada a 3,25%, dando início a uma serie de altas que culminaram com um
12
Os dados sobre as taxas de juro americanas são do Fed (Statistical Release). Os dados sobre preço de
petróleo são da Opep (Monthly Oil Market Report). Os dados sobre as taxas de juro europeias são do
BCE . Os dados sobre as taxas cambiais são do Fed e do BCE.
82
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
nível de 4,75% no dia 6 de outubro de 2000. No dia 6 de setembro, a cotação do
petróleo atingiu os US$ 36 dólares/barril, enquanto o dólar se manteve entre
1,16 e 1,17 euro.
A estratégia americana de elevar a taxa de juros visava atender a dois
objetivos essenciais e associados: atrair os capitais estrangeiros, notadamente
europeus, para financiar as transações correntes e, ao mesmo tempo, suprir, com
esses capitais, a demanda adicional de liquidez em dólar, a qual se devia ao
encarecimento das commodities. A reciclagem desses capitais minimiza, em geral,
o recurso a uma emissão monetária maciça para assegurar as importações e,
ainda, permite manter a força do dólar acima do euro. No entanto, as elevadas
taxas americanas de juro, acopladas a um dólar em alta, prejudicaram não
somente os agregados internos (nível fraco de consumo, crédito muito caro
para as famílias e empresas), mas também a competitividade da indústria
americana. De fato, o dólar caro freou as exportações americanas e, junto com
o juro alto, contribuiu para as derrocadas da bolsa de Wall Street em abril e
setembro de 2000.
A guinada do ciclo. A elevação das taxas americanas de juro, embora
moderada, contraiu o consumo e o investimento domésticos. No primeiro
trimestre de 2001, o crescimento da economia americana, que foi de 1,9% no
último trimestre de 2000, passou para 1,3% e, em seguida, caiu para 0,7% no seu
ritmo anual, embora o Fed tivesse antecipado a recessão desde janeiro de 2001,
quando reduziu a taxa básica de 6,5% para 6%, marcando com isso a virada do
ciclo. Para reanimar as bolsas de valores, as autoridades monetárias dos EUA
procederam a seis reduções na taxa básica de juros durante o primeiro semestre,
fazendo com que a taxa interbancária (de curto prazo) passasse nesse pouco
tempo de 6,5% a 3,75%. Os juros de curto prazo ficaram mais elevados na Europa
em relação aos EUA pela primeira vez desde a criação do euro. Depois da tragédia
do 11 de Setembro de 2001, no mesmo ano em que houve o crash dos valores
tecnológicos, a taxa de juro americana de curto prazo sofreu mais cinco cortes
no último trimestre de 2001, passando para 1,75% no fim do ano. O processo de
contração prosseguiu e, em junho de 2003, a taxa em questão caiu para 1%, o
nível mais baixo desde 1951.
Do lado europeu, o BCE operou, em maio de 2001, isto é, quatro meses
depois da intervenção do Fed, um corte de 1/4 ponto percentual na sua taxa
básica, a qual havia se mantido estável desde novembro de 1999 (4,75%). Como
nos EUA, a taxa básica europeia continuou na trajetória de queda até 2003,
quando chegou a 2%. O contexto de taxas de juro em queda nos dois continentes
não foi suficiente, contudo, para evitar uma redução na taxa de crescimento da
economia mundial. Mas, com o subsistente diferencial de juros, o euro se
fortaleceu e atingiu, no dia 27 de maio de 2003, a barra de US$ 1,19, acima do
seu nível de introdução, em janeiro de 1999.
4.2. A ofensiva americana e o segundo ciclo financeiro dos anos 2000
Se a década de 1990 foi estável e confortável para os EUA, a década de
2000 está, em oposição, repleta de inconveniências que ameaçam a posição
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
83
americana no mercado mundial, o que explica, num primeiro momento, a
acentuação da belicosidade dos EUA na política internacional. Qual é o parafuso
roído que alui a máquina lubrificada do império americano? O grão de areia é
precisamente a redução da importância do dólar como moeda internacional:
são as crescentes transações internacionais que se efetuam sem o uso do dólar;
são os intercâmbios que se realizam entre as nações e as firmas transnacionais
por outros meios como o euro, as moedas regionais dentro de blocos econômicos
e até mesmo via escambo. Daí o interesse do governo americano em dominar as
reservas de petróleo no mundo e segurar a sua exploração pelas firmas americanas,
um meio de enfraquecer as moedas que tentam partilhar o privilégio do dólar.
Privilégio este que consiste essencialmente em transferir o ônus financeiro dos
déficits da economia hegemônica ao resto do mundo.
Os americanos invadiram o Iraque em 20 de março de 2003 e, em três
semanas, derrubaram a ditadura do temerário Saddam Hussein, dando um fim
a um regime que se atreveu, a partir de setembro de 2000, a faturar em euro
suas exportações de petróleo. No dia 2 de maio de 2003, o presidente Bush
anunciou precipitadamente o fim da resistência no Iraque e, num clima de
euforia, os neoconservadores americanos sugeriam a utilização da mesma força
contra a Síria, o Irã, o Sudão e até mesmo a Arábia Saudita (uma antiga aliada).
Na crise que surgiu do unilateralismo americano dentro das Nações Unidas estava
claro que a ofensiva contra o Iraque obedecia a uma estratégia diferente do
pretexto extravagante de que os americanos iriam civilizar os beduínos do Oriente
Médio13. Tratava-se mesmo de defender a hegemonia econômica e monetária
dos EUA no mundo. Aos países árabes, majoritários na Opep, a invasão do
Iraque serviria de aviso contra qualquer pretensão de mudança no plano monetário
do petróleo14.
No entanto, o que os estratégicos da Casa Branca não previram é que a
guerra no Iraque perdurasse e saísse muito mais cara para os cofres públicos
americanos, contribuindo assim para a depreciação do dólar. Nos meados de
novembro de 2003, a moeda americana registrou a sua mais baixa cotação
histórica frente ao euro (0,83 euro por 1 dólar). Consequentemente, um número
importante de investidores internacionais tendeu a aplicar partes crescentes de
suas poupanças na Europa, acentuando a desvalorização da moeda americana
que, em fevereiro de 2004, caiu para 0,77 euro. Diante disso, em junho, o Fed
aumentou de 1/4 ponto sua taxa básica, que passou de 1% para 1,25%. Uma
nova fase de ascensão do juro se iniciou então, como se pode observar no Gráfico
2, dando lugar ao segundo ciclo financeiro. A taxa americana de curto prazo
continuou em alta ao longo dos anos 2004 e 2005, alcançando em setembro de
2005 o nível de 3,75%15. Mas isso não foi suficiente para reverter a baixa do
dólar, que terminou o ano de 2004 cotado a 0,74 euro.
13
O pretexto das armas químicas também não vale, pois os americanos só invadiram o Iraque depois que
tiveram a certeza, através dos inspetores da ONU que fizeram este trabalho, de que não havia armas de
destruição maciça. Não teriam corrido tamanho risco.
14
Não foi por acaso que o governo dos EUA apresentou uma atitude moderada face ao regime de
Pyongyang na Coreia do Norte, o qual rompeu os acordos sobre a energia atômica em dezembro de
2002, enquanto que, face ao Iraque, o mesmo governo de Bush se mostrou altamente intransigente.
15
Esse crescimento dos juros coincide com a consolidação dos déficits gêmeos americanos. Em 2004, o
déficit público americano atingiu US$ 422 bilhões, e o comercial, cerca de US$ 640 bilhões.
84
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Gráfico 2
Taxa básica de jur
os nos EUA – 1999-2008
juros
Fonte: Federal Reserve System.
A política americana de contração monetária, iniciada em junho de 2004,
foi comparada à mesma política que o Fed adotou em junho de 1999, quando
reverteu o processo de queda na sua taxa básica de juros. Naquela época, a
contração monetária obedeceu essencialmente à necessidade de contrair a pressão
inflacionária que se deveu ao excesso de liquidez. Mas, em 2004, a conjuntura
econômica americana estava diferente, marcada pelo enfraquecimento do dólar,
pela redução dos ingressos de capital estrangeiro e pela expansão dos déficits
gêmeos. Em junho de 2004, as autoridades monetárias dos EUA, ao elevarem
de forma moderada a taxa de curto prazo, estavam conscientes de que a política
monetária, por si só, não era mais suficiente para tornar atraentes os investimentos
em dólar, ao mesmo tempo em que o controle da inflação não poderia ser
garantido sem a volta maciça dos capitais estrangeiros. A repatriação dos lucros
das firmas americanas, que foi estimulada pelos incentivos fiscais, se revelou
limitada, e sua realização, custosa, pesou sobremaneira sobre as contas públicas,
já bastante deficitárias.
Havia necessidade de encontrar recursos externos em volumes crescentes
para o financiamento das dívidas. Razão pela qual os americanos passaram a
usar a sua política monetária como instrumento de sucção de liquidez, de capitais
e de bens e serviços asiáticos. Propiciaram uma espetacular expansão do crédito
ao consumo e à “alavancagem” financeira, fonte da imensa “bolha” formada
nos mercados imobiliários e da crise financeira mundial que estourou no fim de
2008.
Essa política só foi viável porque correspondeu às estratégias dos países
asiáticos, concebidas para geração de superávits comerciais que implicam
necessariamente a demanda de ativos denominados em dólar. Estabeleceu-se,
assim, uma interdependência monetária e comercial EUA-Ásia que amplia os
déficits americanos e obriga os asiáticos a financiá-los, alimentando o poder de
senhoriagem do dólar (Belluzzo, 2005).
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
85
5. Enfraquecimento do dólar
etton W
oods II” e “equilíbrio do
dólar,, “Br
“Bretton
Woods
terror financeiro”
São principalmente os países asiáticos e, numa certa medida, os países árabes
exportadores de petróleo que financiam os déficits externos americanos. As
intervenções cambiais dos bancos centrais asiáticos para sustentar o dólar deram
maior impulso às importações americanas. Frequentemente, os asiáticos
condicionam suas concessões de empréstimos à conquista de mercados nos países
financiados, o que eleva suas exportações para os países que se endividam,
particularmente os EUA. Para os países árabes, embora as informações sobre
seus investimentos diretos não estejam claras, pode-se considerar que sua situação
seja semelhante à que associa a Ásia aos EUA. Quanto aos europeus, acanhados,
relutam em comprar ativos americanos. Ficaram duplamente incomodados pela
supervalorização do euro e pelo encarecimento desproporcional do petróleo. O
BCE não sabia como agir para corrigir o câmbio sem gerar mais inflação.
Permaneceu, então, inerte na expectativa de uma solução externa, confinado na
sua função de garantir a estabilidade dos preços e, com o encarecimento das
matérias-primas, sustentava o juro para contrariar a inflação importada, agindo
de forma pró-cíclica.
Uma interpretação do aparecimento desses desequilíbrios e de uma possível
mudança no sistema monetário internacional foi dada pelos economistas do
Deutsche Bank Mike Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Garber (2007).
Segundo essa equipe, o sistema mundial atual pode ser visto como um novo
Bretton Woods: um conjunto de países asiáticos aplica um regime cambial fixo
ou quase fixo em relação ao dólar, formando um sistema monetário padrãodólar informal. Como no regime original de Bretton Woods, os EUA representam
o “centro” que se beneficia do privilégio de emitir a principal moeda-reserva
internacional que os países da “periferia” desejam adquirir, a fim de acelerar o
seu desenvolvimento. Essa tese se inspira, é claro, da época do pós-guerra, quando
as economias da Europa e do Japão estavam em ruínas e se recuperavam
dolorosamente da Segunda Guerra Mundial; suas moedas estavam desvalorizadas
e inconversíveis. Algumas semelhanças podem ser observadas entre os dois
esquemas monetários, é verdade, mas as diferenças são grandes e suas
consequências, diferentes. Naquela época, o valor do dólar estava garantido pela
conversibilidade em ouro e por uma taxa fixa. No sistema original de Bretton
Woods, contrariamente ao sistema atual, a economia americana estava
amplamente superavitária. No pós-guerra eram os americanos que exportavam
capital e, hoje, são importadores líquidos.
Segundo Larry Summers, a Ásia e os EUA estão condenados a se
sustentarem mutuamente, qualificando essa situação de “equilíbrio do terror
financeiro”. Os asiáticos estariam pressionados a prosseguir na compra dos títulos
americanos, apesar do risco cambial crescente dos engajamentos em dólar. Uma
atitude contrária pode levar a um crash financeiro desastroso para o mundo e do
qual os países credores da Ásia sairiam como principais vítimas (Summers, 2007).
86
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Sob a pressão internacional, Pequim aceitou abandonar a sua política de
fazer sua moeda acompanhar as oscilações do dólar na mesma proporção, como
fez entre julho de 2005 e agosto de 2008, a fim de proceder a uma apreciação
progressiva, mas controlada, do yuan. Com isso, a moeda chinesa, que valia
US$ 0,12, passou a valer US$ 0,147, uma significativa valorização de 18,5%.
Desde então, a paridade dólar/yuan se manteve estável. Essa desvalorização do
dólar não reduziu o ritmo do crescimento do déficit comercial americano junto
à China, que logo depois da mudança na política cambial chinesa, em 2006,
registrou um recorde de US$ 232 bilhões (num total de US$ 856,7 bilhões).
Na realidade, não há provas suficientes de que a apreciação do yuan, de
modo a adaptar sua cotação aos fundamentos da economia chinesa, contenha
as exportações da China e reduza de forma satisfatória os desequilíbrios
internacionais. Primeiro, porque a vantagem da China no comércio mundial
deriva essencialmente do custo baixo da sua mão de obra, com um salário médio
por hora trabalhada de US$ 0,50, contra US$ 16 nos EUA. Segundo, porque os
desequilíbrios americanos têm como foco principal o excesso de gastos públicos16,
particularmente os gastos militares17. Terceiro, um outro fator de instabilidade
americana é a debilidade da poupança doméstica, como prova a crise imobiliária
e bancária atual. Portanto, um yuan desvalorizado é apenas um dos fatores que
alimentam a dinâmica dos desequilíbrios americanos e mundiais18.
O embaraço da hegemonia monetária americana está precisamente na
contração do papel do dólar nos mercados internacionais, principalmente
enquanto meio de pagamentos, comprometendo a relação positiva entre o preço
das commodities e o dólar. Dois fatores interligados explicam a tendência à redução
da importância do dólar: o primeiro é que, como já foi dito, muitos países optam
por efetuar suas transações comerciais internacionais com suas próprias moedas,
com o euro ou com a troca direta de mercadorias e serviços por outras
mercadorias e outros serviços. Consequentemente, afrouxa-se a necessidade de
mobilizar dólares para o faturamento internacional, contraindo assim os
investimentos em ativos americanos.
O segundo fator está no surgimento da China no mercado monetário
mundial, um país que se tornou, a partir de março de 2006, o maior detentor de
reservas internacionais. Praticando um regime cambial quase fixo em relação
ao dólar, a China está induzida a se opor à volatilidade da moeda americana.
Uma diversificação de suas reser vas cambiais que pudesse provocar a
desvalorização da moeda americana garantiria a sua competitividade no mercado
mundial. Outros países seguem o exemplo da China de se desengajar em dólar19.
Pode-se entender assim o fim da relação positiva entre os movimentos de preços
das commodities e o comportamento da moeda americana.
16
O déficit público americano ficou em torno de US$ 1,3 trilhão em 2008. A previsão para 2009 é de um
déficit de US$ 1,7 trilhão.
17
A manutenção de 737 bases militares pelo mundo exige orçamentos colossais, sem contar as guerras
realizadas a partir de 2001.
18
Ademais, o governo chinês aplica uma política cambial que lhe convém, da mesma forma que as
autoridades americanas sempre manipularam o dólar conforme seus interesses.
19
O banco central da Suécia (Riksbank) procede, desde abril de 2006, a uma diversificação de suas
reservas a favor do euro e contra o dólar, quando a proporção da moeda europeia aumentou de 37% para
50% e aquela da moeda americana caiu de 37% a 20%.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
87
6. A crescente importância da China no mercado mundial e as novas
práticas de comércio internacional
Por mais de 20 anos a economia chinesa cresceu a uma taxa média anual
de 9% a 10%, em contraste com o fraco desempenho da economia ocidental,
sobretudo a europeia20. O crescimento chinês, intensivo em energia, tornou a
China o segundo maior importador de petróleo (atrás dos EUA), elevando sua
participação a cerca de 9% da demanda mundial (211 milhões de toneladas em
2008)21.
A China, que já é a quarta potência mundial, na frente da França e da
Inglaterra, se aproxima da terceira colocação. A expansão da economia chinesa
ficaria sem explicação se a abertura de sua economia não contasse com uma
mão-de-obra qualificada e barata. Graças ao surto econômico, o “Império do
Meio” atrai a cada ano volumes consideráveis de investimento direto. A sua
moeda continuou de fato ancorada a uma cesta de moedas constituída
essencialmente pelo dólar americano, e a depreciação deste favorecia a
competitividade da China. Com seus excedentes comerciais extraordinários, o
país acumulou grandes reservas cambiais e, por pouco que as autoridades chinesas
busquem diversificar suas reservas cambiais, uma elevação do preço de petróleo
conduzirá à maior depreciação do dólar.
A oferta nacional de energia nesse país, realizada à base do carvão, cobre
apenas a metade da demanda e sua participação no mercado doméstico está em
queda, razão pela qual as importações de petróleo cresceram significativamente
e sustentaram os preços das commodities em geral, o petróleo em particular. No
longo prazo, a elevação desses preços acabou por gerar efeitos positivos sobre o
saldo exterior chinês, em razão da participação relativamente elevada e crescente
da China nas importações dos países exportadores de matérias-primas.
A China mostrou praticar uma estratégia de abastecimento energético
seguro e diversificado, junto a países diferentes como Arábia Saudita, Irã,
Indonésia, Rússia e países da África e da Ásia Central. A penetração chinesa na
África e no Golfo Pérsico fica cada vez mais precisa. O Sudão e, particularmente,
o Irã, dois países que os EUA ameaçavam invadir, se tornaram parceiros
privilegiados da China22. Em troca de petróleo com Irã, Nigéria, Angola e Sudão,
a China exporta bens e tecnologias23. As empresas petroleiras chinesas, todas
estatais, entram em concorrência direta com as majors americanas, atuando até
mesmo em áreas petroleiras de predomínio americano, como na Arábia Saudita,
onde negociam a formação de estoques de petróleo saudita na China.
Na África, a presença chinesa é mais sentida. As importações da China no
continente africano cresceram, em 2006, a uma taxa de 25%, contra 15% em
20
A economia americana, que cresceu no período 1988-2008 a uma taxa que flutuou entre 3% e 4%,
gastou muito mais do que produziu.
21
Segundo informações da Embaixada da França na China.
22
A China é o primeiro cliente do Sudão e do Irã. Os chineses se declararam contra o embargo americano
contra o Sudão, sustentando o regime de Cartum na questão do Darfur. São também contrários a
qualquer intervenção americana no Irã.
23
88
Particularmente armamentos no caso do Irã.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
1986. Os chineses estabelecem contratos de longo prazo, que consistem em
adquirir petróleo investindo nos setores energéticos e na infraestrutura dos países
fornecedores. Essa estratégia se traduz por uma atividade sustentada para as
empresas chinesas de construção e engenharia civil, as quais arrebatam as licitações
públicas, em virtude dos custos mais baixos que se devem basicamente à mãode-obra qualificada e barata deslocada da China. Frequentemente, os chineses
financiam as obras dos seus parceiros africanos sem cobrar juros24, tendo o
reembolso garantido através do fornecimento em commodities.
Outros acordos adaptados às economias exportadoras de matérias-primas
são realizados pelos chineses na América do Sul, como é o caso do Equador, país
membro da Opep que acaba de negociar um empréstimo de US$ 1 bilhão
junto ao Banco Popular da China, a ser amortizado por entregas de petróleo
(Leclerc, 2009).
No próprio continente asiático, as autoridades chinesas criaram um fundo
de investimento e de cooperação, dotado de US$ 10 bilhões e destinado a
desenvolver, nos países membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático
(Asean), programas de infraestrutura que favorecem o intercâmbio entre as partes
sem a necessidade de recorrer ao dólar. Os chineses alocaram um valor de US$
15 bilhões em empréstimos para seus vizinhos, oferecendo-lhes uma fonte de
financiamento que substitui o recurso ao FMI (Leclerc, 2009).
Quando são considerados os prejuízos causados por um dólar instável, a
negociação de matérias-primas em outras moedas ou em troca de bens
industrializados e de serviços se revela mais benéfica aos parceiros comerciais do
que quando se recorre à intermediação do dólar. É o que desvenda a política de
“parceria estratégica” pregada pela China. Outros países, em número crescente,
tendem também a praticar políticas comerciais que dispensam o dólar como
meio de pagamentos, substituindo a moeda americana por acordos bilaterais.
Países como Rússia, Venezuela, Irã, Bolívia e Sudão (hostis aos EUA) e
outros como a Noruega trocam parte de seus produtos energéticos ou por outra
moeda que não seja o dólar, ou por outras mercadorias ou serviços, mesmo que
as cotações e os valores continuem a se referir à moeda americana. Embora ela
continue a ocupar um papel central como padrão de valor, sua importância
como meio de pagamentos e reserva de valor tende a se contrair nessas novas
relações, as quais tendem a reduzir o volume dos excedentes em dólar que
regressam aos EUA e privar este país de uma parte do seu “direito de
senhoriagem” forjado sobre o mundo.
Considerações finais
Desde junho de 2008, diante da iminente recessão americana e da redução
do ritmo de crescimento na China, o preço do petróleo vem apresentando um
insistente e forte recuo, depois de seu recorde de US$ 146/barril. O estouro da
bolha do subprime, em setembro de 2008, determinou uma maior contração da
economia mundial e, sob a pressão da queda generalizada, os corretores
24
A China perdoou a dívida de 31 países africanos.
A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio..., Bouzid Izerrougene, p. 75-92
89
aceleraram a venda de contratos futuros e os fundos de hedge correram para se
desfazer de sua posições. Consequentemente, acentuou-se a queda dos preços
de commodities, particularmente o petróleo, o qual afundou para o nível mais
baixo dos últimos quatro anos, quando passou a US$ 42 em dezembro de 2008,
apesar da decisão da Opep em realizar um corte histórico de 2,2 milhões de
barris. No mesmo tempo, a busca de proteção em dólar e em títulos do Tesouro
americano determinou uma recuperação significativa da moeda estadunidense,
que passou de 0,63 euro para 0,74 euro, entre julho e dezembro de 2008.
O dólar sobe no momento em que a economia americana passa por uma
grande crise e os preços das commodities despencam25. Não seria isso um
paradoxo? O questionamento faz sentido, uma vez que, afinal, se a crise se
deflagrasse em outro país, a moeda deste país se depreciaria ao invés de se valorizar.
Ocorre que o dólar, apesar do seu flagrante arrefecimento dos últimos anos, é a
moeda mais utilizada no comércio internacional e ainda mantém a sua qualidade
de valor-refúgio no momento de perturbação global.
Com a crise bancária nos EUA, falta liquidez em dólar, ao mesmo tempo
em que os investidores fogem dos ativos comprometidos, como papéis
comerciais, derivativos, opções e ações, para se refugiar no dólar, fazendo com
que a cotação deste suba. Uma vez desencadeada a trajetória de valorização, os
agentes que atuam no comércio internacional passaram a demandar mais dólares
para efetuar suas transações presentes e proteger suas posições futuras contra um
risco de câmbio maior, pressionando o dólar nos mercados futuros. No entanto,
num cenário de recessão como o atual, os operadores do mercado terminarão
por devolver à circulação os dólares retidos, quando, no médio prazo, se derem
conta do excesso de liquidez. Portanto, a valorização atual do dólar, que não
corresponde a nenhum fortalecimento real, é apenas de ordem conjuntural, e a
reversão das expectativas provocará logo pressões baixistas sobre a moeda
americana.
Em função da crise, o superávit da China se retrai e o país não poderá mais
investir em moeda e ativos americanos na mesma dimensão dos últimos anos.
Acentuar-se-á, então, a falta de dinheiro para financiar o enorme déficit público
americano, cuja evolução será necessariamente explosiva, devido à elevação
incontida das despesas e à contração inevitável das receitas orçamentárias dos
EUA. A solvência da economia americana se torna uma questão crucial que
poderá determinar um novo cenário de economia internacional protecionista e
estagflacionária. Isso é praticamente inevitável, a menos que os países
superavitários se juntem para absorver parte dos déficits estadunidenses e,
associados aos europeus, aproveitem o enfraquecimento da hegemonia monetária
dos EUA para forçar este país a aceitar uma reforma do sistema monetário
internacional, criando uma moeda-padrão internacional que se refira a uma cesta
ampla de moedas nacionais.
25
Não só o preço de petróleo caiu. Despencaram os preços de todas as matérias-primas. Entre julho e
novembro, as quedas foram expressivas: petróleo (59%), cobre (55%), óleo de soja (45%), zinco (39%),
alumínio (37%), estanho (37%), suco de laranja (32%), café (19%), celulose (15%) e açúcar (9%).
90
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
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92
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Impacto de la crisis
financiera global en América
Latina
Luis Alberto Moreno*
Resumen
Resumen: El artículo estudia el origen de la crisis financiera global y
las consecuencias para América Latina. El origen se encuentra en el
exceso de construcción de viviendas en Estados Unidos, en los últimos
años, y en la estructura de financiamiento de las viviendas. La crisis
financiera global ha pasado por tres fases, con efectos muy diferenciados
para América Latina. Durante la primera fase las economías emergentes
de América Latina estuvieron bastante aisladas de las vicisitudes de los
mercados financieros en el mundo desarrollado. En la segunda fase
las economías emergentes se vieron súbitamente afectadas por la sequía
de recursos financieros, la caída del comercio mundial y el desplome
de los precios de los commodities. En la tercera fase las economías
emergentes seguramente seguirán acopladas al mundo desarrollado,
como ha sido lo usual, pero la efectividad de las políticas que se adopten
influirá mucho en sus posibilidades de recuperación y en su resistencia
a posibles shocks futuros. La conclusión es que la economía mundial
se encuentra en un momento crítico y, que de las acciones que se
tomen en los próximos meses, dependerá la severidad y la duración de
la crisis.
Palabras-clave
Palabras-clave: crisis financiera global, América Latina, economía
mundial, tasas de interés, FMI, BID.
Introducción
La crisis financiera global ha pasado por tres fases, con efectos muy
diferenciados para América Latina. En esta charla quiero explicar esas tres fases,
a partir del origen de la crisis, y explorar sus repercusiones en América Latina.
La conclusión principal de mi charla es que la economía mundial se encuentra
en un momento crítico y, que de las acciones que se tomen en los próximos
meses, dependerá la severidad y la duración de la crisis, así como sus repercusiones
en América Latina.
*
Luis Alberto Moreno es titulado en Administración de Empresas y Economía por la Florida Atlantic
University (EUA) y Master en Administración de Empresas (MBA) por la Thunderbird School of Global
Management, del mismo país. Fue Embajador de Colombia en Estados Unidos durante siete años y
desde octubre de 2005 preside el Banco Interamericano de Desarrollo (BID). Este artículo es un
resumen de la conferencia proferida por el autor en la Facultad de Economía de la FAAP el día 23 de abril
de 2009. E-mail: <[email protected]>.
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
93
El origen de la crisis
El origen de esta crisis se encuentra en el exceso de construcción de vivienda
en Estados Unidos en los últimos años y en la estructura de financiamiento que
se montó para financiarlo.
Las condiciones favorables de financiamiento para la vivienda llevaron a
aumentos de precios que hacían cada vez más atractiva la compra de vivienda y
su financiamiento, creando así un círculo aparentemente virtuoso de acumulación
de capital, mayor financiamiento y mejores estándares de vida para los
norteamericanos.
Sin embargo, este círculo aparentemente virtuoso dependía de las
expectativas continuas de valorización de las viviendas, especialmente las que se
financiaron en los últimos años a través de las llamadas hipotecas subprime.
En el momento en que estas expectativas de valorización no pudieron
realizarse, muchos de los deudores habrían de encontrarse con que sus deudas
valdrían más que sus viviendas, y con ello tendrían muy pocos incentivos para
continuar pagando las deudas.
El sector financiero, por mucho tiempo, no prestó atención a estos riesgos,
lo que lo llevó no solo a prestar en grandes cantidades, sino también a crear
instrumentos financieros que le permitían reempaquetar las hipotecas y generar
más oferta de activos financieros de creciente complejidad y muy poco
transparentes en sus niveles de riesgo.
Las tres fases en el mundo
Todo este castillo de naipes empezó a resquebrajarse a mediados del año
2007, cuando empezaron a surgir dudas sobre las hipotecas subprime y sobre
otros instrumentos financieros apalancados en ellas.
Durante la primera fase de la crisis, que se extendió hasta mediados del
2008, los problemas parecían contenidos a unas pocas entidades financieras y,
aunque la confianza del consumidor en Estados Unidos empezó a caer, y la
actividad del sector de la construcción a debilitarse, no parecía que la economía
fuera a entrar en recesión ni mucho menos que fuera a estallar una crisis financiera
sistémica.
Sin embargo, a mediados del 2008, empezó a hacerse evidente que muchas
entidades financieras estaban contaminadas con hipotecas subprime u otros
instrumentos derivados de ellas, y que había, además, otros instrumentos
financieros muy riesgosos, que hasta el momento habían escapado a la supervisión
oficial y a la vigilancia cuidadosa de los inversionistas, tales como los créditos
default swaps y diversas formas de derivados de cobertura de riesgo.
Esto dio inicio a la segunda fase
fase, en la que la crisis financiera adquirió
características sistémicas y, gradualmente, empezó a afectar el sector real de la
economía.
Esta fase se agudizó brutalmente a mediados de septiembre de 2008, con
la quiebra de Lehman Brothers, que creó una sensación de pánico entre los
94
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
inversionistas a cerca de los riesgos en todo el sistema financiero, y que puso de
presente que no había una estrategia consistente para responder a los casos de
entidades financieras en problemas.
Esta segunda fase se ha extendido hasta semanas recientes, pero es posible
que estemos entrando en una tercera fase en la que, si se hace efectivo un conjunto
de decisiones de política acordadas por Estados Unidos y los países europeos
principalmente, podría iniciarse prontamente una recuperación de los sistemas
financieros y del crecimiento económico de los países desarrollados.
Como señalaré más adelante, sin embargo, aun es muy pronto para declarar
victoria y hay muchas dudas que todavía deben despejarse.
Las tres fases para América Latina
Durante la primera fase de la crisis financiera, las economías emergentes de
América Latina, en particular, estuvieron bastante aisladas de las vicisitudes de
los mercados financieros en el mundo desarrollado.
Durante esta primera fase, se hablaba del “desacoplamiento” del mundo
en desarrollo, puesto que las condiciones financieras para los países en desarrollo
continuaron siendo muy favorables, continuó creciendo el comercio mundial, y
los precios de los productos básicos continuaron aumentando, como lo voy a
mostrar con gráficos en unos minutos.
Sin embargo, durante la segunda fase, el desacoplamiento llegó a su fin y
las economías emergentes se vieron súbitamente afectadas por la sequía de recursos
financieros, la caída del comercio mundial y el desplome de los precios de los
commodities.
En la tercera fase, que posiblemente se está iniciando ahora, las economías
emergentes seguramente seguirán acopladas al mundo desarrollado, como ha
sido lo usual, pero la efectividad de las políticas que se adopten influirá mucho
en sus posibilidades de recuperación y en su resistencia a posibles shocks futuros.
Evolución de algunas variables claves
Permítanme ahora que les muestre unas pocas gráficas que muestran la
evolución de algunas de las variables claves a las que me he referido.
Primero, quiero mostrarles la evolución de los márgenes de financiamiento
para los países latinoamericanos (gráfico 1).
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
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Gráfico 1 - Factores externos
Condiciones financieras internacionales: “EBMI spreads” por país
2007 – 2009 - Enero 2007 = 100
Fuente: Bloomberg.
Los márgenes de financiamiento son el costo adicional, con respecto al
gobierno de Estados Unidos, que tienen que pagar los gobiernos que quieren
endeudarse internacionalmente.
Durante la fase 1 de la crisis, estos márgenes se elevaron muy poco,
manteniéndose en niveles muy bajos, de entre 100 y 200 puntos básicos, para los
países con mejores calificaciones de riesgo, entre los cuales está Brasil.
96
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Sin embargo, durante la fase 2 y, especialmente, a partir de la quiebra de Lehman
Brothers, en septiembre de 2008, los márgenes dieron un brinco súbito, alcanzando
niveles entre tres y cuatro veces más altos.
Después del periodo más crítico, entre septiembre y noviembre, han tendido a
descender, aunque manteniéndose aun en niveles históricamente altos.
Es importante notar que, a pesar de las perturbaciones de los meses más críticos,
Brasil ha mantenido márgenes bastante moderados, gracias a la solidez de su situación
macroeconómica, sus altos niveles de reservas internacionales y la sana estructura de
su deuda pública.
Los cambios en las condiciones financieras también se han reflejado en los
flujos de capitales hacia los países emergentes. Durante la fase 1, los flujos se
mantuvieron altos, mientras que, en la fase 2, declinaron en forma muy brusca.
Según el Instituto de Finanzas Internacionales —una prestigiosa asociación
internacional de bancos privados— los flujos de capitales a América Latina que han
alcanzado un pico de US$184.000 millones se reducirán en el 2009 a US$43.000
millones.
Quiero ahora mostrarles los cambios en las perspectivas de crecimiento de las
principales economías, ya que esto refleja muy bien la agudización de la crisis (gráfico
2).
Gráfico 2
Factores Externos –Crecimiento del PIB real en 2008 e 2009 – En %
Previsiones en Mayo de 2008 e Febrero de 2009 – Países Seleccionados
Fuente: JP Morgan y Economist Intelligence Unit.
EU-15 incluye Austria, Bélgica, Chipre, Finlandia, Francia, Alemania, Grecia,
Irlanda, Italia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Portugal, Eslovenia y España.
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
97
Hacia mediados del 2008, o sea, a finales de la fase 1 de la crisis, se esperaba
que el crecimiento de Estados Unidos en 2009 fuera de más del 2%. Las
proyecciones más recientes hablan de una caída de más de dos puntos.
De igual forma, las perspectivas de crecimiento de los países de la Unión
Europea para 2009 y para Japón han pasado de ser de más de 1% a mostrar
caídas en 2 y 3%. También se espera que China e India tengan menores tasas de
crecimiento en el 2009, aunque posiblemente sigan siendo relativamente robustas.
Más adelante, mencionaré algunas proyecciones para América Latina.
El tercer gráfico que quiero mostrarles describe el comportamiento de los
precios de los principales commodities de exportación de América Latina.
Gráfico 3.1
Factores externos – Precios de commodities - Alimentos
2007 – 2009 - Enero 2007 = 100
Fuente: Bloomberg.
98
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Gráfico 3.2
Factores externos – Precios de commodities – Metales y otros
2007 – 2009 - Enero 2007 = 100
Fuente: Bloomberg.
Como ya mencioné, durante la primera fase de la crisis, los precios de los
commodities continuaron aumentando, alcanzando en la mayoría de los casos
máximos históricos que, corregidos por inflación, llegaron a ser comparables a
los máximos alcanzados a comienzos de los 70s.
Sin embargo, durante la fase 2, estos aumentos se revirtieron casi
completamente, al estallar la burbuja especulativa que había inflado los precios
de los commodities, y esto se ha agravado por la caída del comercio mundial.
Implicaciones para América Latina
Los efectos más inmediatos de la crisis financiera mundial se han sentido
en los tipos de cambio y en las bolsas de valores de América Latina. En la primera
fase, las monedas latinoamericanas siguieron apreciándose y las bolsas de valores
continuaron en auge.
Las tendencias se revirtieron abruptamente en la fase 2. Las monedas de
América Latina, en promedio, se han depreciado 24%, pero los países que tienen
sistemas monetarios atados a la inflación (inflation targeting) han visto
depreciaciones aun mayores.
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
99
En el gráfico 4, se muestra el comportamiento de las tasas de cambio para
las economías más grandes de América Latina.
Gráfico 4
Tasas de interés por país
Tasas nominales en moneda local por dólar - 2007 – 2009
Enero 2007 = 100
Fuente: Bloomberg.
Como ustedes ven, el real brasileño es la moneda que tuvo la apreciación
más pronunciada en la fase 1, la cual luego fue completamente revertida en la
fase dos.
Es importante señalar que la flexibilidad de la tasa de cambio, aunque puede
tener efectos disruptivos en el corto plazo, constituye un mecanismo de ajuste
de los precios relativos que ayuda mucho a asimilar los shocks externos.
Naturalmente, los efectos de la crisis mundial se han transmitido también a
los sectores reales de las economías. Las perspectivas de crecimiento para América
100
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Latina en el 2009, que eran de más de 5% antes de iniciarse la crisis, bajaron a
4.4% hacia el final de la fase 1 y, durante la fase 2, fueron ajustadas hacia abajo
varias veces.
Actualmente, se cree que la región en su conjunto tendrá una tasa de
crecimiento negativa de alrededor de 0.5% en el 2009. La mayoría de los
observadores cree que todas las economías grandes de la región, con la única
excepción de Perú, estarán estancadas o caerán en el presente año.
Con respecto a la inflación, no se esperan cambios muy pronunciados. Hay
que recordar que, en el 2008, la inflación en casi todos los países de la región
aumentó debido a los altos precios de los commodities y, por consiguiente, de
los alimentos de consumo básico.
En la medida en que los precios de los commodities se han reducido, esta
presión ha desaparecido, permitiendo que las devaluaciones no se traduzcan en
mayor inflación.
Es importante señalar que este es un fenómeno bastante nuevo en América
Latina donde, en el pasado, los periodos de crisis externa resultaban en importantes
aumentos de inflación.
El lado negativo de conseguir bajas tasas de inflación es que, en esta ocasión,
aumentará más el desempleo que en recesiones pasadas. La razón es que los
salarios reales caerán muy poco, y que el ajuste del mercado laboral ocurrirá
mucho más a través de pérdidas de empleos que en el pasado.
Ya se han observado importantes aumentos en las tasas de desempleo en la
mayoría de los países, especialmente en aquellos con regímenes laborales más
rígidos como es el caso de Colombia.
Por supuesto, el aumento del desempleo y la caída de los salarios tendrán
efectos sociales muy nocivos.
Es importante recordar que América Latina había logrado reducir
considerablemente sus tasas de pobreza. Entre 1990 y 2008, el porcentaje de
latinoamericanos pobres había descendido de 48.3% a 33.2% de la población.
Se teme que alguna parte de este progreso se pierda en los próximos años.
Si la crisis durara solo un año, las tasas de pobreza aumentarían no más de 2
puntos, y el número de pobres podría elevarse entre 3 y 6 millones de personas.
Sin embargo, una crisis prolongada por tres años llevaría a aumentos mucho
mayores y de efectos más persistentes.
La razón es que las familias agotarían sus escasos recursos para poder afrontar
la crisis y tendrían entonces que acudir a medidas extremas tales como recortar
sus gastos básicos de alimentos, sacar a los niños de la escuela, y vender activos
productivos.
Estos mecanismos de respuesta ante la crisis podrían llevar a pérdidas
permanentes en el capital humano y en la capacidad productiva de los pobres.
Respuestas de Políticas
Casi sin excepción, los gobiernos latinoamericanos han respondido
rápidamente a los retos que implican las tendencias económicas y sociales que
he descrito. La respuesta típica de política ha tenido cuatro componentes.
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
101
El primero, el componente monetario, ha consistido en reducir tasas de
interés y en proveer liquidez por diversos canales, con el objeto de mantener el
flujo de crédito, especialmente a los sectores exportadores y a las pequeñas y
medianas empresas, que suelen ser dos sectores muy vulnerables a la falta de
crédito.
El segundo componente es el fiscal, que ha consistido en recortar impuestos,
aumentar los subsidios fiscales a algunas actividades económicas, y acelerar los
programas de gasto público, especialmente en infraestructura.
El tercer componente han sido las políticas sectoriales dirigidas a estimular
sectores claves por su potencial de generación de empleo, tales como la
construcción de vivienda, la agricultura y las pequeñas y medianas empresas.
El cuarto componente han sido las políticas sociales cuyos principales
objetivos han sido estimular la generación de empleo y ofrecer protección social
mediante transferencias de ingresos a los sectores más vulnerables.
Brasil ha tomado acción en todos estos frentes, en algunos casos con
innovaciones de política muy acertadas.
Fue uno de los primeros países en responder a la crisis con políticas de
apoyo crediticio a los sectores exportadores y ha sido líder en movilizar recursos
financieros a través de una poderosa red de bancos de desarrollo, que son la
envidia de muchos otros países de América Latina.
Los riesgos de política
El paquete de políticas que he descrito es el paquete ideal que todo país
desearía implementar para restablecer la confianza, estimular la demanda interna
y minimizar los costos sociales de la crisis.
Por desgracia, no todos los países cuentan con las condiciones
macroeconómicas o con los programas e instituciones necesarios para ponerlo a
andar cabalmente.
El principal riesgo que enfrentan los países es que, por falta de espacio
fiscal, o por no contar con financiamiento de largo plazo en buenas condiciones,
su estabilidad macroeconómica futura se vea en peligro.
Este riesgo no existiría si durante los años de bonanza los gobiernos hubieran
seguido una política de ahorro que les hubiera permitido llegar al periodo de las
vacas flacas con recursos disponibles para aumentar el gasto público. Chile es el
único país que siguió esta política de ahorro en forma consistente.
En los demás casos, los márgenes de maniobra son limitados y, en algunos
países, francamente inexistentes. Puesto que la crisis genera automáticamente
un deterioro fiscal, debido a la caída de los ingresos tributarios, y al mayor costo
de financiamiento, en algunos países será inevitable, tarde o temprano, recortar
el gasto público.
Debo decir que este no es el caso de Brasil que, como ya lo he dicho, parte
de una situación fiscal y de deuda bastante sólida.
Una fuente fundamental de riesgo macroeconómico se origina en que los
países no puedan conseguir el financiamiento que necesitan, aún cuando su
situación fiscal sea, en principio, sostenible.
102
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
La razón es que, si los mercados financieros internacionales y domésticos
perciben que un gobierno no podrá encontrar suficiente financiamiento, se
volverán renuentes a comprar sus títulos de deuda, y exigirán mayores
rendimientos para hacerlo.
Puesto que esto eleva los costos de financiamiento, puede acelerar el
surgimiento de una crisis de financiamiento, que no tendría por qué haber ocurrido
de otra forma.
El riesgo de que ocurra una crisis de financiamiento es, por supuesto, mayor
en la medida que se prolongue o se agudice la recesión internacional o la caída
de los precios de los commodities, o en el caso de que llegaran a ocurrir aumentos
sustanciales en las tasas de interés en el mundo desarrollado.
La encrucijada actual
Por estas razones, es que son tan cruciales las políticas que se adopten en los
meses que vienen.
Del lado de los países desarrollados, es esencial que se recupere la confianza
de los consumidores y de los inversionistas sobre su propia situación económica,
la solidez del sector financiero, y la estabilidad del fisco.
Ninguna de estas cosas está garantizada todavía. Se requiere que los
programas de estímulo fiscal y una estrategia de fortalecimiento de los sectores
financieros, conjuntamente, sean efectivos para estimular la demanda privada
de consumo e inversión pero, a la vez, despejando las dudas sobre la calidad de
los activos y los niveles de riesgo del sector financiero, y sin comprometer en
exceso la capacidad fiscal futura.
Por el lado de los países en desarrollo, es necesaria no solamente la
recuperación del mundo desarrollado sino la certeza de que contarán ahora con
el financiamiento necesario para los años futuros, que los proteja del riesgo de la
crisis de financiamiento.
Nada de esto parece fácil, pero no hay ninguna duda de que, ahora más que
nunca, existe voluntad política y posibilidades de coordinación internacional.
Hace unas semanas, se reunieron en Londres los representantes de las veinte
economías más grandes del mundo, el llamado G-20, para coordinar esfuerzos y
prevenir acciones de política que serían contraproducentes para la recuperación
mundial, tales como el proteccionismo comercial o financiero.
Uno de los temas centrales de acuerdo fue el fortalecimiento de las entidades
multilaterales de crédito y, en especial, del Fondo Monetario Internacional. Los
gobiernos acordaron incrementar la capacidad de préstamo del FMI de
US$250.000 millones a US$750.000 millones.
Gracias a la expansión de su capacidad crediticia, el FMI está ahora en
capacidad de ofrecer recursos contingentes de liquidez a través de su nueva “línea
de crédito flexible”.
Impacto de la Crisis Financiera Global en América Latina, Luis Alberto Moreno, p. 93-104
103
El diseño de esta línea de crédito busca precisamente financiar, con recursos
de mediano plazo, a las economías que cuentan con buenos fundamentos
macroeconómicos, pero que podrían ser víctimas de una crisis de financiamiento
si no contaran con este tipo de recursos.
Hasta el momento, México, Polonia, Costa Rica y Colombia han solicitado
recursos de esta fuente.
Estos recursos se suman a los que ha ofrecido la Reserva Federal de los
Estados Unidos, a través de sus swap lines para México, Brasil y algunos países
de otras regiones del mundo.
Por su parte, el BID está ya movilizando toda su capacidad de crédito para
atender las necesidades de los países de la región. El BID fue la primera entidad
multilateral que creó una línea de crédito de rápido desembolso para responder
a la crisis, en cuantía de US$6.000 millones.
Aunque estos recursos representarán un aumento sustancial en el volumen
de operaciones del Banco en el 2009, son claramente insuficientes frente a las
necesidades de crédito de la región.
En adición, el BID está gestionando la ampliación de su base de capital
para poder responder mejor, en forma permanente, a las necesidades de
financiamiento de la región.
Los recursos del BID se han quedado atrás frente al tamaño de las economías,
las necesidades de inversión de los países, el avance que requieren sus programas
sociales, y la aparición de nuevos clientes que se beneficiarían del apoyo del
BID, tales como los gobiernos estatales y provinciales, y como algunos segmentos
del sector privado cuya participación es esencial para las nuevas inversiones que
requieren los países en áreas tales como la infraestructura de transporte y la
generación de nuevas fuentes de energía.
Es claro para mí que, aunque la región está abocada a un momento
especialmente crítico, contará con la respuesta de los países desarrollados, y con
los mecanismos de cooperación entre los países de la región para responder a los
retos de la crisis actual.
104
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
A contribuição da Psicologia
Analítica para a
compreensão do
compor
tamento econômico
comportamento
Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e
Sonia Marques*
Resumo: No cenário atual, em que várias tendências estão convergindo
para mudar, de forma profunda, o modo como vivemos, faz-se
necessário analisar e determinar os mecanismos adaptativos que possam
garantir a sobrevivência em tempos de crise. Entre esses mecanismos,
parece-nos fundamental considerar as maneiras pelas quais os seres
humanos chegam à tomada de decisões. Neste artigo vamos abordar
o papel da Psicologia Econômica ao desafiar o modelo do homo
economicus, o de um processo de tomada de decisão puramente racional.
Mas, por outro lado, recorrendo-se à Psicologia Analítica, focalizamos
na grande contribuição feita por Jung ao descrever um processo que
pode representar um modelo “ideal” de tomada de decisão, composto
por quatro passos, os quais em muito podem contribuir para a melhoria
do processo de tomada de decisão, particularmente nesta época de
grandes mudanças, como as que estamos vivendo.
Palavras-chave: processo de tomada de decisão, decisões econômicas,
psicologia econômica, tipos psicológicos, crise global.
1. Introdução
Vivemos, sem dúvida, nesta primeira década do século XXI, um momento
histórico no qual governos, instituições, organizações e indivíduos veem-se
confrontados com grandes mudanças e com a necessidade de adaptar-se a elas
para garantir sua sobrevivência.
Inúmeras tendências globais têm convergido, qualquer uma delas com
potencial de fazer ruir o presente modo de vida no planeta e provocar uma
grande inflexão histórica. Poderíamos citar algumas delas:
*
Anna Mathilde Pacheco e Chaves é Ph.D. em Psicologia Social pela London School of Economics,
professora aposentada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São
Paulo (USP) e Diretora do Espaço Sophia – Cursos e Eventos Culturais. E-mail: <[email protected]>. Rose
Mar
Maryy Almeida Lopes é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e docente
da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). E-mail: <[email protected]>. Sonia Marques é
Mestre em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e docente da Universidade
Metodista de São Paulo. E-mail: <[email protected]>.
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
105
1) Mudanças no sistema financeiro a nível planetário, que nos confrontam
com uma crise financeira global.
2) As ameaças de uma recessão global, frente às quais vários países do mundo
estão tomando medidas keynesianas clássicas, como a ampliação de gastos
governamentais, além da diminuição de taxas de juros, desvalorização de suas próprias
moedas, subsídios para seu mercado de trabalho e utilização de mecanismos de
proteção aos seus negócios e empresas. A retórica protecionista dos discursos políticos
somente provocará retaliações e colocará a economia global em uma espiral
descendente.
3) Os Estados Unidos da América, nos últimos anos, têm se tornado
dependentes do financiamento de seu débito, tanto por parte dos países exportadores
de petróleo quanto da China e do Japão. Entretanto, no ano de 2008, os exportadores
de petróleo viram os seus lucros cair em 70%, provocando desequilíbrio em suas
contas, criando suas próprias dificuldades. O Japão, que ainda tinha conseguido se
recuperar da crise que enfrenta desde a década de 90, ficou agora em situação muito
pior. Na China, com uma queda muito drástica em seu ritmo de crescimento e nas
exportações afetadas, assiste-se ao fechamento de fábricas. Todos estes países terão
de encontrar formas de estimular suas economias.
4) Já passamos o ponto do pico de exploração do petróleo, a partir do qual as
reservas mundiais de petróleo só irão diminuir. A produção mundial tem ficado no
mesmo nível nos últimos três anos. Os poços da Arábia Saudita estão se esgotando
rapidamente e, do mesmo modo, os do complexo de Cantarall, no México. Este
último fornece cerca de 12% de todo o petróleo importado pelos EUA e as previsões
são dramáticas: em cinco anos o México se tornará importador de petróleo. E isto
tudo agravará imensamente seus problemas sociais. Por outro lado, o preço atual de
US$ 50/barril torna não competitivas as fontes alternativas de energia, o que somente
aprofundará a crise. Por exemplo: projetos de exploração em águas profundas tornamse inviáveis ou cancelados e a escala de exploração de gás natural tem sido reduzida.
Este cenário, de reservas e suprimento do petróleo decrescentes, manutenção dos
níveis de demanda e as previsões sobre o preço do petróleo, sinaliza para a possibilidade
de preços cada vez maiores, o que viria a ameaçar todo um modo de vida dependente
desta fonte de energia.
5) O sistema climático está mudando em nível global. E as opiniões são
divergentes: alguns cientistas sinalizam a possibilidade de um aquecimento global,
enquanto outros afirmam que seguimos em direção a uma mini era glacial. Seja
como for, a crescente irregularidade climática tem um impacto direto na agricultura,
levando a uma possível escassez de alimentos, com aumento de preços. Esta tendência
para alta dos preços dos alimentos seria agravada pelo possível aumento do preço de
energia, que iria afetar os insumos e transporte dos produtos agrícolas.
6) Além disto, tem-se o aumento das erupções solares, que atingem e abrem
buracos na magnetosfera, podendo vir a atrapalhar as comunicações globais nos
próximos 3 a 4 anos, causando mau funcionamento ou mesmo danos aos satélites
de comunicação.
Acreditamos que esses problemas com os quais nos defrontamos são graves e
globais. Todo o sistema está desequilibrado. Diante desta grande crise econômica
106
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
mundial torna-se importante entender e avaliar o processo de globalização. É crucial
examinar como o Brasil está encarando atualmente a sua adaptação à globalização,
que faz com que fenômenos e acontecimentos que ocorrem muito longe daqui
possam vir a afetar profundamente as futuras condições de vida no nosso país. Não
nos parece realista afirmar, ante as tendências e problemas acima referidos, que outros
países terão de enfrentar uma tsunami, e nós, apenas uma “marolinha”.
A globalização atual não é o primeiro fenômeno desta natureza e os historiadores
já identificaram vários outros períodos onde tal fenômeno ocorreu, como por exemplo
as conquistas territoriais de Alexandre o Grande; o Império Romano; as navegações
e a construção de impérios coloniais no século XVI por Portugal, Espanha e, mais
tarde, a Inglaterra; e a expansão colonial dos Estados europeus durante o século
XIX. Uma análise, mesmo superficial, desses diferentes processos de globalização
mostra-nos que sempre houve quem pereceu e quem soube se adaptar, conseguindo,
em muitos casos, evoluir. Esta mesma análise também contribui para chamar nossa
atenção à importância capital da flexibilidade e da criatividade dos governos,
instituições, organizações e indivíduos, como um diferencial decisivo entre os que
não se aperfeiçoaram e foram destruídos pelo processo, e os que aproveitaram o
momento histórico para encontrar formas de adaptar-se e se posicionar diante das
novas realidades, de inovar e de melhorar a qualidade do sistema político-econômico
conseguindo, assim, melhorar a qualidade de vida das populações.
Diante deste cenário de crise, torna-se muito importante a pesquisa sobre os
mecanismos adaptativos de que os indivíduos, bem como os governos e as instituições,
podem utilizar-se ao enfrentar os desafios da crise atual. Dentre estes mecanismos
adaptativos, parece-nos fundamental considerar as maneiras pelas quais os seres
humanos chegam à tomada de decisões. Diversos fatores influenciam o processo de
tomada de decisão. Fatores externos a nós, como o contexto social, histórico,
econômico e político; ou fatores pessoais, como história de vida, experiência,
conhecimento e características psicológicas.
Dentre os fatores pessoais, neste artigo discutiremos sinteticamente a influência
das características de personalidade, pois consideramos imprescindível que as pessoas
estejam familiarizadas com os diferentes fatores que interferem nos processos de
tomada de decisão e cientes de que certas características pessoais, que as tornam
únicas e diferentes das demais, em muito influenciam a maneira pela qual irão
enfrentar os desafios do atual momento histórico.
2. Tipos psicológicos
Diferentes teóricos têm se preocupado em criar esquemas explicativos para as
diferenças e semelhanças aparentes da personalidade humana. Cada autor e
pesquisador tende a conceituar personalidade a partir de postulados teóricos
diferentes, a partir dos quais constroem instrumentos empíricos distintos para avaliar
a personalidade. No entanto, segundo a maior parte dos psicólogos, a
personalidade seria constituída por uma série de características internas
relativamente estáveis, responsáveis por fazer com que as pessoas se comportassem
de maneira semelhante e consistente frente a estímulos de seu meio ambiente.
Dentre os diferentes estudiosos da personalidade existe um, cuja obra Tipos
Psicológicos, publicada pela primeira vez em 1921, é ainda hoje considerada como
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
107
nuclear para a compreensão do conceito. Este autor é Carl Gustav Jung. Para
Jung (1991), existiriam certas diferenças individuais, que inclusive teriam uma
base genética, as quais influenciariam significativamente os indivíduos em termos
de suas motivações para comportar-se de uma ou outra maneira, seu modo de
pensar, seu padrão de tomada de decisões, a maneira como reagem a diversas
situações, bem como seus padrões emocionais. A esta gestalt, construída a partir
da combinação destas preferências nucleares por um ou outro tipo de orientação
básica diante do meio ambiente interno e externo, Jung denominou Tipo
Psicológico, que segundo ele seria um modelo, um exemplo característico, um
padrão habitual dos indivíduos (JUNG, 1991).
Jung começa por afirmar que uma das diferenças mais fundamentais entre
as pessoas está no fato de que algumas mostrariam uma preferência em concentrar
sua atenção e energia no mundo externo, naquilo que está acontecendo no meio
ambiente, e chamou esta preferência de extroversão. Por outro lado, outras pessoas
têm sua atenção dirigida para aquilo que acontece em seu mundo interior, suas
ideias, sentimentos, emoções, sensações; a estas pessoas Jung chamou de
introvertidos e, a esta tendência, de introversão. Jung também notou que os
extrovertidos tendem a ser sociáveis, a se orientar para a ação e estariam,
constantemente, buscando estimulação no mundo externo. Preferem estar com
pessoas: socializando, falando pessoalmente ou por telefone/internet, interagindo
e costumam pensar em voz alta enquanto buscam as soluções e saídas para as
situações e problemas. Assim, desenvolvem uma rede de amigos e de conhecidos,
gostam de estar em grupo, resolver as coisas juntamente com os outros,
apreciando reuniões, trabalhos e projetos em grupo. Para os que preferem a
extroversão, o mundo é um mundo objetivo, onde tudo já está colocado a priori.
Sua atenção se volta para as pessoas, coisas, animais, carros, máquinas,
equipamentos, processos, instalações, ou seja, tudo que lhes seja externo. Desta
forma, não apreciam se voltar para seu interior e ter um tempo para si mesmos.
Por outro lado, e em contraste com os extrovertidos, os introvertidos tendem
a preferir a contemplação à ação, mostrando-se geralmente tímidos, não
apreciando situações onde haja excesso de barulho e excesso de pessoas. Assim,
são geralmente classificados como solitários. Apreciam ficar sozinhos conversando
com seus botões, lendo, apreciando sua própria companhia, gostando de ficar
em um ambiente mais tranquilo. Precisam ficar quietos, consigo mesmos, para
abastecer sua energia e se restaurar. Preferem pensar as coisas antes de lidar com
elas no mundo externo. Vivem muito dentro de suas próprias cabeças e apreciam
uma perspectiva subjetiva do mundo. São seletivos quanto a amizades e
companhias. Em vez de falar, como os extrovertidos, preferem escutar e observar.
Se pudessem, evitariam estar em grupos, em reuniões e também envolvidos em
conversas demoradas.
Estas atitudes correspondem a um dos aspectos mais públicos e facilmente
identificáveis da personalidade e são dois modos de lidar com a energia
mutuamente exclusivos, ou seja, não acontecem ao mesmo tempo.
Comportamos-nos de forma extrovertida ou de forma introvertida e temos
preferência por uma ou outra destas atitudes, mesmo que possamos transitar de
um modo para outro.
108
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Além desta diferenciação básica – extroversão e introversão –, Jung identifica
diferenças na forma de as pessoas interagirem com seu meio ambiente interno e
externo. Define, então, quatro funções psíquicas, organizadas em dois grupos,
um dos quais teria a ver com o modo preferido de recebimento de informação,
e o outro, com o processo preferido para a tomada de decisões a partir dessas
informações. As funções de recebimento e metabolização das informações são
sensação e intuição, e as outras duas, referentes aos critérios para tomada de
decisão, denominam-se pensamento e sentimento.
Enfoquemos primeiramente as funções de recebimento das informações.
As pessoas desenvolvem, diferentemente, uma de duas formas contrastantes e
bem diversas de receber e perceber as informações. As pessoas com preferência
pela sensação se baseiam mais pelos dados recebidos diretamente por meio dos
seus cinco órgãos dos sentidos, ou seja, observam e admitem dados a partir de
sua própria experiência concreta. São pessoas mais interessadas na atualidade,
que se orientam para o presente e observadoras de seu entorno. Percebem,
registram, trabalham sobre o que pode ser visto, sentido, tocado, cheirado,
escutado ou degustado. Possuem um enfoque prático, tendo certa aversão às
abstrações. Segue-se daí que confiam mais em suas próprias experiências do que
em dados que recebam de forma indireta, como a palavra escrita ou falada
(MYERS E MYERS, 1995, p. 57). Precisam ter acesso aos dados e ter tempo
para assimilá-los, e apreciam se familiarizar com as coisas e tarefas. Então, são
pessoas muito dependentes do objeto e, consequentemente, têm dificuldade
para vislumbrar as implicações e derivações do curso dos eventos. Assim, não
conseguem antecipar e dificilmente vão alterar o rumo das coisas, o statu quo;
são, portanto, mais mantenedoras. São pouco inovadoras, mais presas às
circunstâncias – precisam saber onde estão “navegando” todo o tempo, então
teriam dificuldade para ver além, para lidar com uma crise ou com inovação.
Geralmente, as crianças com preferência pela sensação têm menos interesse
acadêmico do que os intuitivos que, na média, se saem melhor nos testes de
inteligência. Mas os testes não captam bem a linguagem que o tipo sensação
domina mais, a linguagem da realidade tal qual lhes é transmitida através dos
sentidos. Assim, não confiam em percepções que “surjam de repente, do nada”
e também não gostam quando sua imaginação é solicitada (MYERS E MYERS,
1995, p. 59).
Em contraste, as pessoas com predominância da função intuição percebem
as possibilidades e os significados e se orientam mais para o futuro: o que lhes
interessa mais não é o momento presente, mas o que pode ser. Através da intuição
a pessoa extrapola a limitação dos seus sentidos, captando o que poderia ser e o
que pode vir a ser feito (MYERS E MYERS, 1995, p. 23). Pessoas com esta
preferência percebem, captam o global, os padrões gerais, buscam os significados,
as relações, daí terem facilidade para lidar com símbolos e com analogias.
Percebem, registram tendências, os princípios subjacentes aos fatos, o padrão, a
“grande figura”, notam as relações entre os fenômenos, percebendo novas
possibilidades na situação presente ou em situações similares, não se atendo ou
limitando às circunstâncias concretas. Apresentam mais facilidade para interpretar
as informações que recebem, confiando em seu “sexto sentido”. São pessoas
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
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mais abertas à mudança, dúvidas e complexidade. Os intuitivos aprendem melhor
por insight e têm dificuldade para se ater e lembrar detalhes e trabalhar com fatos
concretos. Por se voltarem mais às possibilidades, abrem-se mais para o futuro,
percebendo as implicações, as consequências e alternativas para alterar o curso das
coisas, e alterarem o statu quo. Apresentam uma “ampla gama de ideias originais,
projetos, empreendimentos, inventos...” (MYERS E MYERS, 1995, p. 57). Portanto,
os pioneiros, os inovadores, as pessoas criativas provavelmente são intuitivas, porque
dão novas soluções para os problemas, buscam novas maneiras de resolver e fazer as
coisas, são imaginativas, inventivas e inspiradas (MYERS E MYERS, 1995). Estas
pessoas se entusiasmam com novos projetos, mas não apreciam se envolver em rotinas,
coisas repetidas, coisas práticas. Confiam em seu próprio senso, seu sentido de direção.
Dispensam mapas e manuais, mas podem se atrapalhar em situações práticas e banais.
A intuição parece ser um processamento muito rápido de informação: “é uma
percepção indireta pela via do inconsciente, incorporando ideias ou associações que
o inconsciente relaciona com as percepções que vêm de fora. Essas contribuições
inconscientes vão desde o mero ‘palpite’ masculino ou da ‘intuição feminina’ até os
exemplos culminantes da arte criativa ou da descoberta científica” (MYERS E MYERS,
1995, p. 2). A função psicológica intuição estaria associada à escolha de soluções
muitas vezes arriscadas, e a pessoa com esta preferência age de maneira inovadora,
preferindo campos desconhecidos e resolver os problemas complexos. Jung (1991,
p. 349-350) afirma que os intuitivos encontram possibilidades e “têm faro aguçado
para o embrionário e para o que promete futuro”. “É compreensível, sem mais, que
este tipo seja muito importante econômica e culturalmente. Se tiver boas intenções,
isto é, se não for muito egocêntrico, pode obter grandes méritos como iniciador
ou, ao menos, estimulador de grandes empreendimentos.” O que existe de comum
entre estas citações é que o intuitivo como que se descola do conhecido, do já
estabelecido e apresenta-se muito à frente. Consequentemente, estas pessoas têm
dificuldades em mostrar os passos intermediários do processo de metabolização das
informações. Não podem demonstrá-los porque foram processados no inconsciente,
com muita rapidez, e brotam em suas consciências com um sentimento de certeza,
ou como uma inspiração (MYERS E MYERS, 1995, 57).
Após o recebimento da informação, as pessoas necessitam organizá-las e julgálas segundo alguns critérios para chegar a conclusões. Segundo Jung, existiriam “...
duas formas distintas e agudamente contrastantes de chegar às conclusões” (MYERS
E MYERS, 1995, p. 3): 1) através do pensamento, que utiliza o processo lógico e
impessoal; 2) através de outro processo que envolve a apreciação, o valor atribuído
aos objetos, pessoas e situações, enfim, através do sentimento.
As pessoas com preferência pelo pensamento adotam critérios lógicos, da verdade
ou inverdade, julgando as informações de forma impessoal, distante. Deste modo, a
tomada de decisão acontece por um processo analítico, verificando quais são as
evidências e os seus pesos; e, se for preciso, tomando decisões duras, não prazerosas,
ou até impopulares. Podem ser tão analíticas ao ponto de parecerem frias e distantes.
Em contraste, as pessoas que preferem os critérios de tipo sentimento julgam segundo
critérios subjetivos. Assim, a tomada de decisão é baseada em valores pessoais, no
110
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
que é importante para si mesmo e para os outros. Uma pessoa deste tipo tende a ser
empática e ter compaixão. Entretanto, Jung enfatiza a diferença entre a função
sentimento e emoção:
... Sentimento não tem manifestações físicas ou fisiológicas tangíveis, enquanto a
emoção é caracterizada pela condição fisiológica alterada... Mas quando você tem um
Sentimento você tem controle. Você está a cavaleiro da situação e pode dizer, ‘Eu tenho
um sentimento muito bom ou muito mau sobre isto’. Tudo está quieto, e nada acontece
(JUNG, 1991, p. 26).
A pessoa que prefere o pensamento se torna mais equipada e madura para
organizar fatos e ideias, enquanto a que prefere o sentimento estará mais preparada
para lidar com relacionamentos humanos. Há que se enfatizar que o exercício das
preferências acarreta o desenvolvimento de traços mais superficiais e distintivos
relacionados a elas (MYERS e MYERS, 1995, p. 3). Assim, as características do tipo
sentimento são: maior envolvimento pessoal, mais interesse e inclinação pelo social,
maior proteção, tato, compaixão e menos análise lógica. O contrário é verdadeiro
para o tipo pensamento. No conflito entre pessoas opostas nestas funções, a pessoa
de tipo sentimento termina magoada e com raiva. E a de tipo pensamento fica confusa,
pois não sabe o que ocorreu. Esta preferência por pensamento ou sentimento é a
única que se mostra em proporções diferenciadas segundo os gêneros, pois os tipos
pensamento parecem ser muito mais frequentes em homens do que em mulheres
(MYERS E MYERS, 1995, p. 66). A preferência tanto por um dos modos de receber
informação ou de julgar e tomar decisões leva ao seu maior uso, controle e
confiabilidade. Consequentemente, a outra forma, negligenciada, “será uma espécie
de opinião de minoria, ouvida pela metade, e com frequência, totalmente
desconsiderada” (MYERS E MYERS, 1995, p. 3).
As pesquisadoras norte-americanas Isabel Briggs Myers e Katharine Briggs,
que desenvolveram um teste psicológico – o Myers-Briggs Type Inventory (MBTI)
–, aprofundaram as distinções de função propostas por Jung. Através de pesquisas,
demonstraram que as pessoas que utilizam em sua vida cotidiana principalmente as
funções sensação ou intuição – ou seja, têm preferência pela percepção – tendem a
preferir um estilo mais flexível, mantendo-se abertas para novas informações. E aquelas
que preferem utilizar sentimento e pensamento – preferência pelo julgamento –
encararam a vida como algo a ser decidido e direcionado segundo a vontade. Procuram
viver uma vida ordenada, estruturada, regulada, com as coisas em seus lugares,
arranjadas. Gostam de planos, de coisas que têm começo, meio e fim (MYERS E
MYERS, 1995).
O quadro 1 a seguir apresenta, resumidamente, as atitudes que correspondem
às maneiras como nos energizamos; às funções, que indicam como a nossa consciência
obtém as informações, as metabolizam e trabalham sobre elas; e aos estilos preferenciais
de lidar com o mundo. A combinação das preferências entre as duas atitudes, as
quatro funções e os dois estilos de vida produz tipos diferentes de personalidade,
com interesses, valores, necessidades e estilos específicos de comportamento,
incluindo a tomada de decisões.
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
111
Quadro 1 – Atitudes, funções e estilo de vida com respectivas
definições, preferências e palavras-chave
Fonte: adaptado a partir de BADER, 2007, p. 122
112
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
3. McCrae e Costa e os “cinco grandes”
A teoria junguiana da personalidade, com sua ênfase em duas atitudes e
quatro funções, recebeu, nas últimas décadas do século passado, uma confirmação
muito interessante. No começo dos anos 80, os psicólogos McCrae e Costa
iniciaram, no Centro de Pesquisas de Gerontologia do National Institute of
Health, em Baltimore, nos Estados Unidos, um grande programa de investigação.
Nesta pesquisa utilizaram diferentes técnicas de coleta de dados, tais como a
autoclassificação, testes objetivos, bem como relatórios de observação do
comportamento feitos por observadores treinados, obtendo uma lista de adjetivos
usados pelas pessoas quando se referiam às diferenças entre as pessoas.
Submetendo-os a uma técnica de análise e classificação de dados muito
sofisticada, a qual é chamada de análise fatorial, McCrae e Costa (1989, 1993)
identificaram cinco grandes fatores, que definem diferenças individuais:
• extroversão versus introversão
• afabilidade versus hostilidade
• responsabilidade versus irresponsabilidade
• instabilidade emocional versus estabilidade
• flexibilidade cognitiva versus inflexibilidade
É interessante notar que entre os “cinco grandes” estão as duas “atitudes”
de Jung, introversão e extroversão; a distinção proposta por Myers-Briggs também
aparece como responsabilidade versus irresponsabilidade; além disso, dois outros
fatores – afabilidade vs. hostilidade e flexibilidade vs. inflexibilidade cognitiva
também se referem respectivamente às funções sentimento vs. pensamento e
intuição vs. sensação do modelo de Jung. Portanto, torna-se evidente a importância
de se utilizar a proposta junguiana para a compreensão da forma como os
indivíduos percebem o mundo e os critérios que utilizam para tomar decisões a
partir dessa percepção, incluindo decisões de natureza econômica.
4. Contribuição da Psicologia para a Economia
A assim chamada “Psicologia Econômica” ganhou visibilidade a partir de
2002, quando o prêmio Nobel para a área de Ciências Econômicas foi para um
psicólogo da Universidade de Princeton – Daniel Kahneman. A Psicologia
Econômica vem contribuir para alargar a compreensão dos processos de tomada
de decisão a partir da contribuição interdisciplinar entre a Psicologia, a
Sociologia, a Economia, a Antropologia e, mais recentemente, as Neurociências.
Gostaríamos, neste ponto, de sugerir que os tipos psicológicos podem influenciar
este processo, já que as decisões, incluindo as econômicas, são tomadas por seres
humanos. Portanto, é possível que a proposta junguiana possa nos fornecer uma
estratégia simples, porém eficiente, para a compreensão do processo de tomada
de decisões econômicas. O modelo junguiano fornece pistas de como chegar a
decisões criativas. Vamos, então, seguindo o modelo junguiano, fornecer uma
estrutura de quatro passos, a qual descreveria uma maneira “ideal” de tomada
de uma decisão.
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
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Passo 1 – Sensação: acumular fatos básicos usando os sentidos.
Vivemos numa sociedade de coleta de informações; todos os dias somos
bombardeados por cartas, relatórios, e-mails, telefonemas, revistas, televisão,
informações fornecidas por líderes, especialistas e amadores. Informação que
nos chega por meio dos sentidos: visão, audição, tato, olfato e gosto. Esta
informação é de caráter prático: fatos, especificidades, pormenores, bem como
dados em estado bruto, que irão relacionar-se a informações comparáveis do
passado. O cérebro irá gravar estas impressões observando-as, colecionando-as e
armazenando-as.
Passo 2 – Intuição: especulação, busca de alternativas e interpretação
destes fatos básicos.
O que significa toda esta informação? Neste segundo passo, as pessoas,
consciente ou inconscientemente, têm de fazer escolhas entre os fatos, números
e dados que recebem. O cérebro irá alocar prioridades, dar significado e tentar
conexões entre informações isoladas, criando um todo maior. Quando faltam
fatos, ou os dados são incompletos, geralmente as pessoas usam sua imaginação
para fazer especulações, inventar e predizer resultados futuros.
Passo 3 – Pensamento: lógica, objetividade e análise racional.
Depois dos passos anteriores de coleta de fatos e intuição, o cérebro pode se
mover para a etapa seguinte, a tomada de decisão. Estas decisões, na esfera
microeconômica, podem dizer respeito a, por exemplo, decidir comprar ou não
um bem de consumo durável, um imóvel. Pode dizer respeito também a decisões
sobre consumir ou poupar. Podemos também pensar sobre a melhor estratégia
de investimentos levando em conta a relação entre a segurança do investimento
e seu possível retorno. Nesta etapa torna-se necessário estabelecer prioridades e,
para isto, é preciso recorrer a um processo racional e lógico, usando,
principalmente, critérios objetivos e impessoais.
Passo 4 – Sentimento: valores, subjetividade.
Como esta decisão irá afetar minha própria vida e aquela das pessoas que
são importantes para mim?
As decisões econômicas, de forma ideal, deveriam passar por critérios éticos;
levando em conta crenças básicas, valores e a ponderação sobre como a decisão
poderia afetar os familiares, os amigos, ou mesmo a sociedade. Ademais, neste
modelo ideal do processo de decisão fornecido por Jung deveria haver uma
sequência “ótima” apresentada acima, o que raramente acontece. Contudo,
lembremos que temos inclinações e preferências, enfatizando mais uma função
do que outra dentre a sensação ou intuição, ou pensamento e sentimento. E,
naturalmente tende-se a minimizar, não enfatizar, desprezar ou mesmo ignorar
as outras funções. E isto nos caracteriza como indivíduos: cada um de nós tem
seu modo característico, seu estilo, seu padrão de funcionamento no recebimento
114
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
e tomada de decisão. Além disso, funcionamos automaticamente, sem perceber
que informações levamos em conta, quais deixamos de lado, que critérios
consideramos e quais achamos não relevantes. Ou seja, nosso processo de tomada
de decisão é naturalmente desbalanceado.
5. Outras contribuições para a Psicologia Econômica
A Psicologia Econômica pode ser bastante desafiadora, pois coloca em xeque
o modelo de ser humano proposto pela Economia – o do homo economicus ou
do homem racional. Citando Thaler e Sunstein (2008, p. 5-6):
Se analisarmos os textos didáticos relativos à Economia, vamos aprender que
o homo economicus poderá pensar como Albert Einstein, armazenar a memória
de um computador de grande porte, e exercer a força de vontade do Mahatma
Gandhi. Mas as pessoas que nós conhecemos não são assim. No mundo real as
pessoas têm dificuldade em fazer uma divisão com muitos números se não tiverem
à sua disposição uma calculadora, às vezes esquecem o aniversário do seu cônjuge,
e sofrem de ressaca depois da festa de réveillon. Não são homo economicus, são
homo sapiens.
O comportamento irracional do homo sapiens pode, por exemplo, se
manifestar quando, em meio a um clima de grande euforia, investidores compram
ações quando estas estão no pico para mais tarde, quando o clima de euforia for
substituído por um clima de pessimismo, tomados pelo pânico, vender estas
mesmas ações a qualquer preço. Chama-se a isto “comportamento de manada”.
Portanto, a Psicologia Econômica vai desafiar o modelo do homo economicus
afirmando que, na maior parte do tempo, e das vezes, é como se os agentes
econômicos fossem controlados, de dentro de seus cérebros e psiques, por um
pequeno sabotador, que desarmaria suas funções racionais.
Outra área que veio se juntar a esta discussão mais recentemente é a da
Neuroeconomia – área na fronteira entre Economia e Neurociências –, que irá
nos mostrar ao vivo e em cores como o cérebro toma decisões. Sharon Begley
(2007), responsável pela área de Ciências do Wall Street Journal, descreve como
os pesquisadores, usando tecnologias de ponta, descobriram, por exemplo, que
os circuitos cerebrais ativados pela antecipação de lucros (de ações, por exemplo)
eram os mesmos que antecipavam as delícias de uma maravilhosa trufa de
chocolate, de uma relação sexual, ou, no caso de um consumidor de drogas, de
uma dose de cocaína. Podemos pensar que esta área de investigação poderá nos
ajudar no conhecimento dos circuitos cerebrais envolvidos no processo de decisão
ideal proposto por Jung, permitindo-nos entender melhor o quebra-cabeças da
personalidade.
A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
115
Conclusão
Qual poderia ser a contribuição da Psicologia Analítica no sentido de nos
fornecer pistas para nos ajudar a encarar as mudanças inevitáveis com que teremos
de nos defrontar em breve?
1) Planejar a transição: é preciso pensar agora como assegurar a própria
sobrevivência e a segurança, em um momento no qual muitas coisas poderão
não funcionar da mesma maneira que funcionaram no passado.
2) Conceito crucial: cooperação. É preciso que nos conscientizemos de
que a tarefa de superar a crise não é uma tarefa solitária.
3) Pensar sobre um novo mundo: acreditamos que este seja um momento
propício para começar a contemplar o planejamento deste novo mundo. Os
governos deveriam estar fazendo isto. As empresas deveriam estar fazendo isto.
As grandes organizações internacionais deveriam colocar isto nas suas agendas.
Para que possamos nos preparar para um novo mundo, torna-se necessário
que todos se esforcem em utilizar suas quatro funções. A sensação para obter o
maior número de dados concretos sobre a presente situação do planeta. A intuição
para projetar para o futuro. O pensamento para tomar decisões que poderão ser
duras, mas que provavelmente são necessárias, de maneira lógica e impessoal. E
o sentimento para que não se perca de vista que a Economia e a Política, como
já dizia Aristóteles, deviam existir para servir às pessoas, e não as pessoas à
Economia.
Referências bibliográficas
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Uma Abordagem da Psicologia Social. Tese (Doutorado em Psicologia Social), Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
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A contribuição da Psicologia Analítica..., Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques, p. 105-117
117
O mercado de capitais como
fonte do financiamento:
comparação do mercado
brasileiro com o chinês
(2003-2008)
Lucy Sousa*
Resumo
Resumo: A inserção dos países em desenvolvimento na globalização
financeira no período 1990-2007 deu-se de maneira diferenciada,
predominando em cada região um tipo de financiamento (empréstimos
bancários, investimentos em carteira e investimentos diretos), sendo
que na América Latina predominaram os investimentos em carteira,
enquanto na China predominou o investimento estrangeiro direto.
Contudo, em anos mais recentes (2003-07) observou-se o crescimento
do mercado de capitais chinês, com considerável número de
companhias abrindo o capital e levantando recursos nesse mercado.
O objetivo deste artigo é entender as razões para o recente
desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, particularmente
focando no seu papel como padrão de financiamento empresarial, e
fazer uma comparação com o desenvolvimento também verificado no
mercado chinês. Serão feitas comparações dos respectivos marcos
regulatórios, das dimensões quantitativas relativas ao tamanho das
economias, da profundidade de articulação dos mercados com a
globalização financeira e da capacidade de blindagem contra crises
internacionais, destacando-se o caso recente da “crise das hipotecas
(subprime)” do mercado norte-americano (2007-08).
Palavras-chave: Mercado de Capitais, Financiamento Empresarial,
Comparação Brasil-China.
1. Principais características do movimento recente de inserção na
globalização financeira
O mercado de capitais é o segmento do mercado financeiro onde se
verificam emissão e negociação de títulos e valores mobiliários, operações com
derivativos e a administração de recursos de terceiros. Embora a segmentação
do sistema financeiro seja utilizada pelos reguladores e autorreguladores, a
*
Lucy Sousa é Professora Titular da FAAP e Presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de
Investimento do Mercado de Capitais (Apimec, 2009-10). Texto concluído em novembro de 2008. Email: <[email protected]>.
118
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
introdução dos avanços tecnológicos e o desenvolvimento das inovações
financeiras tornaram os segmentos de crédito, seguros, cambial e de capitais
cada vez mais interconectados. De acordo com Freitas e Cintra (2008), os bancos
tornaram-se “originadores de ativos financeiros”, tais como créditos e hipotecas
que são vendidos no mercado de capitais, a fundos de previdência, seguradoras,
fundos de investimento, fundos soberanos e a investidores individuais.
Desde a década de 80, os países em desenvolvimento, sob orientação dos
organismos internacionais e pressão dos investidores globais, promoveram forte
abertura econômica, sendo que no Brasil, a exemplo de muitos países, a abertura
financeira foi mais rápida do que a abertura comercial (KLIASS e SALAMA,
2008).
Conforme Camara e Salama (2005), a inserção dos países em
desenvolvimento na mundialização1 financeira no período 1990-2000 deu-se
de maneira diferenciada por região e por tipo de financiamento (empréstimos
bancários, investimentos em carteira e investimentos diretos), sendo que na
América Latina predominaram os investimentos em carteira, ou seja, operações
do mercado de capitais. Em termos do montante dos fluxos de capital, o processo
foi restrito a poucos países, e mesmo aqueles que participaram defrontaram-se
com um fenômeno contraditório, pois a entrada desse tipo de recursos acaba
por trazer instabilidade e novas restrições para os países receptores, em especial
a necessidade de manter taxas de juros reais altas, caso do Brasil.
No fim dos anos 80, verificou-se a abertura financeira brasileira dentro das
orientações do Consenso de Washington. De início, foi uma liberação de mão
única, ou seja, para que os investidores estrangeiros pudessem comprar ativos
negociados no mercado doméstico. Na sequência, corretoras e bancos
estrangeiros se instalaram, para administrar as posições desses investidores. Ao
fim dos anos 90, os investidores e administradores estrangeiros se tornaram
dominantes, impondo radical transformação de procedimentos operacionais e
regulamentação do mercado brasileiro. Por outro lado, as crises dos mercados
externos e a consequente volatilidade dos fluxos de capitais passaram a impactar
imediatamente o mercado doméstico, resultando em fortes alterações nos preços
dos ativos e na taxa de câmbio e aprofundamento da vulnerabilidade externa.
A resposta do governo brasileiro à “crise dos mercados emergentes” dos
anos 1997-9, iniciada no Sudeste Asiático, foi a elevação da taxa de juros básica,
para tentar conter a fuga de capitais, e a reforma da regulamentação do investidor
estrangeiro em carteira, no sentido de ampliar sua mobilidade e simplificar
procedimentos administrativos. Passada a crise de desconfiança da passagem do
governo FHC para o governo Lula, o investidor estrangeiro voltou ao mercado
de capitais brasileiro, em busca de valorização que já não encontrava no mercado
norte-americano, após o estouro, em 2000, da bolha especulativa da “nova
economia”, que na visão de Brenner (2003) foi inflada pela política de juros
baixos do FED e pela desregulamentação das finanças e da indústria.
1
Neste artigo, confere-se o mesmo sentido aos termos “globalização” e “mundialização”.
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
119
No início do século XXI a referida abertura foi ampliada, introduzido-se
também a possibilidade de o investidor doméstico aplicar em ativos financeiros
emitidos e negociados em outros países, diretamente ou através de fundos de
investimento. O resultado foi o aprofundamento da inserção do mercado de
capitais brasileiro no processo de globalização, sendo o Balanço de Pagamentos
cada vez mais sensível aos movimentos da conta financeira, com implicações na
condução da política econômica. Nesse processo, a estrutura de propriedade das
companhias também foi alterada, em função da forte participação do investidor
estrangeiro no movimento de ofertas públicas globais (2004-07).
Esse capital, especulativo e volátil, cujos movimentos podem ser observados
no Gráfico 1, foi aplicado principalmente no mercado acionário, mas também
se aproveitou das altas taxas de juros reais do mercado doméstico, em ambos os
tipos recebendo tratamento tributário favorável2. No período 2006-07, o mercado
brasileiro ficou mais atraente, em função dos bons fundamentos
macroeconômicos e a expectativa de que o país fosse atingir o grau de
investimento, o que de fato aconteceu em 2008, quando tal classificação foi
concedida por duas agências estrangeiras. Em junho de 2008, a carteira
consolidada dos investidores não residentes atingiu US$ 250 bilhões (gráfico 2),
estando 75% aplicados em ações, 23% em renda fixa e 2% em derivativos e outros
ativos. Essa carteira correspondia a cerca de 10% da poupança financeira aplicada
no país, a valor de mercado. A partir dessa data, os investidores começaram a
sair, em função dos desdobramentos da “crise do subprime” originada no mercado
norte-americano.
No mercado acionário brasileiro, a movimentação dos recursos dos
investidores estrangeiros tornou-se relevante variável explicativa do
comportamento dos preços das ações, correspondendo na média a 30% do volume
negociado diariamente3. Portanto, o forte movimento de saída verificado no
2.º semestre de 2008 significou forte impacto negativo nas cotações.
2
Não há tributação no ganho de capital e na remessa de dividendos e o rendimento na forma de juros
é tributado com alíquota menor do que a devida pelo investidor doméstico. O investidor não
residente é tributado como o investidor doméstico apenas quando a origem declarada dos recursos é
um paraíso fiscal.
3
Dados disponíveis em <www.bovespa.com.br>.
120
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Gráfico 1
Fonte: www.cvm.gov.br
Gráfico 2
Fonte:www.cvm.gov.br
Outra articulação com a globalização financeira, e ao mesmo tempo “correia
de transmissão” da conjuntura do mercado internacional, foi constituída através
da negociação dos DRs, recibos representativos de ações de companhias brasileiras
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
121
negociadas nos Estados Unidos (ADRs), ou em outros mercados internacionais
(GDRs). O valor de mercado dos ADRs em negociação atingiu R$ 292 bilhões
em julho de 20084, sendo que as ações da Petrobrás e da Vale correspondiam a
R$ 104 bilhões e R$ 70 bilhões, respectivamente. Esse valor de mercado
correspondia a cerca de 14% do valor de mercado da bolsa brasileira e 29% do
valor de mercado das ações da Petrobrás e da Vale. Assim, se o mercado norteamericano entra em baixa, as ações dessas importantes companhias brasileiras
são afetadas e transmitem para o mercado doméstico a tendência baixista.
De acordo com Akyuz (1991), a abertura financeira se completa com a
permissão para os residentes adquirirem ativos financeiros no exterior e com o
livre acesso ao mercado doméstico por bancos estrangeiros. Embora a
regulamentação brasileira tenha sido flexibilizada no sentido de permitir que o
residente aplique no exterior, dado o elevado nível das taxas de juros básicas do
mercado brasileiro, a poupança financeira dos investidores residentes tem sido
aplicada predominantemente no Brasil, salvo em situações de stress, como os
anos de 1998 e 2002 ou em operações de “lavagem de dinheiro”. De acordo
com pesquisas da Revista Investidor Institucional (2008), a massa de recursos
administrados por terceiros, atividade típica do mercado de capitais, atingiu em
junho de 2008 a soma de R$ 1,4 trilhão, sendo que destes apenas 3,6% estão
aplicados em fundos off-shore.
Com relação ao intermediário financeiro estrangeiro, na administração de
recursos de terceiros, atividade típica do mercado de capitais, observa-se na Tabela
1 que os intermediários brasileiros, estatais ou privados, ainda mantêm a liderança,
por estarem voltados predominantemente para a administração de recursos do
varejo doméstico. Contudo, no segundo bloco, se aproximando do primeiro,
encontram-se as instituições estrangeiras, que administram recursos de grandes
empresas, famílias das classes altas e investidores estrangeiros. Por causa destes
clientes, os administradores estrangeiros apresentaram perdas de recursos a partir
do primeiro semestre de 2008, em função da “crise do subprime”.
4
122
Dados obtidos no site <www.cvm.gov.br>.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Tabela 1
Brasil: administradores de recursos de terceiros – Posição em junho de
2008
Fonte: www.investidorinstitucional.com.br *em processo de fusão
Nesse contexto de abertura financeira, presença de administradores
estrangeiros e concorrência entre praças financeiras globais, em 2007 as bolsas
brasileiras, Bovespa (ações) e BM&F (derivativos), passaram por processo de
desmutualização, ou seja, deixaram de ser entidades sem fins lucrativos cujos
títulos de propriedade pertenciam a corretoras e se tornaram companhias abertas
e listadas, seguindo tendência internacional, como pode ser visto na Tabela 2.
Finalmente, em 2008, para fortalecer a competitividade do mercado brasileiro,
as duas bolsas se fundiram formando a BM&FBovespa.
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
123
Tabela 2
Bolsas desmutualizadas e listadas em bolsa, até 2007
Fonte: AGGARWAL (2002) e <www.bolsamadrid.es> apud DEMARCO(2008)
*A Euronext é fruto da consolidação das bolsas de França, Holanda, Bélgica e
Portugal, sendo posteriormente comprada pela NYSE.
As transformações societárias das bolsas internacionais também implicaram
considerável entrelaçamento societário, verificando-se a participação de grupos
estrangeiros em bolsas locais e até a formação de grupos com amplitude
intercontinental, a exemplo do recente grupo NYSE Euronext. No caso brasileiro,
a nova bolsa herdou da BM&F participação societária e parceria operacional
com a Bolsa de Derivativos de Chicago. A crise subprime, que começou nos
124
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
EUA e se estendeu aos demais mercados financeiros mundiais, interrompeu o
processo de globalização e interpenetração societária das bolsas, mostrando as
falhas da autorregulação e obrigando os reguladores a mudarem de prioridade,
focando na busca de mecanismos de controle para as inovações financeiras,
negociadas em bolsas ou mercado de balcão (NASSAR, 2008).
Entre os objetivos imediatos da BM&FBovespa está sua expansão para os
mercados latino-americanos, através de aquisições ou parcerias e a atração de
companhias estrangeiras para a listagem no mercado brasileiro, através do
mecanismo de recibos de depósitos, no caso BDRs. O desafio é grande, pois
precisa enfrentar, com seu volume da ordem de US$ 3,5 bilhões/dia, a
agressividade das bolsas norte-americanas Nasdaq (US$ 60 bi/dia) e NYSE
(US$ 160 bi/dia) e europeias, especialmente a Bolsa de Londres (US$ 30 bi/
dia)5. Contudo, comparativamente aos demais mercados emergentes a bolsa
brasileira só perde para as bolsas chinesas em valor de mercado, ou seja, soma do
valor das companhias listadas, como pode ser visto no gráfico 3.
Gráfico 3
Fonte:WFE- www.world-exchanges.org (2008)
O mercado bursátil chinês é mais complexo e regrado do que o brasileiro.
De acordo com o estudo de PWC (2008), o mercado de bolsa chinês ampliado
é composto por quatro mercados: Hong Kong, Xangai, Shenzhen e Taiwan. O
primeiro mercado é o mais maduro, herança da dominação inglesa, permitindo
5
Dados disponíveis no Boletim Informativo n.129, set/2008, disponível em <www.bm&fbovespa.com.br>.
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
125
a listagem de companhias da China continental, que são chamadas H-shares
companies. Tanto a bolsa de Xangai como a de Shenzhen são compostas por
plataformas chamadas A-shares e B-shares, emitidas apenas por companhias
estabelecidas na China. A plataforma A só permite a negociação por parte de
investidores domésticos, enquanto a plataforma B só tem negócios com
investidores estrangeiros, que têm restrições severas. Finalmente, a bolsa de
Taiwan admite companhias locais e estrangeiras e não estabelece diferenças entre
investidores.
O mercado chinês nos últimos anos apresentou crescimento expressivo,
fruto da forte elevação dos preços das ações, do número das empresas listadas e
das perspectivas de crescimento da economia chinesa. Dentre os mercados, o de
Xangai se destacou, em função da listagem de grandes companhias e da euforia
dos investidores individuais.
É importante destacar que, apesar da segregação dos mercados, existe um
mecanismo de transmissão entre Hong Kong e os mercados continentais em
função da possibilidade de dupla listagem. Em 2007, existiam 146 companhias
da China continental listadas em Hong Kong, correspondendo a 12% do número
total de companhias e 24% do valor de mercado. Assim, os movimentos da bolsa
de Hong Kong, bastante globalizada, acabam influenciando os movimentos de
preços das bolsas continentais.
Comparativamente ao valor do PIB, o valor de mercado consolidado chinês
(Tabela 3) passou a apresentar indicadores de destaque: 196% do PIB de 2007,
enquanto os indicadores para os EUA eram de 144% (NYSE, Nasdaq e Amex),
para a Inglaterra 140%, e no Brasil 97%.
Tabela 3
Fonte: PWC(2008).
Contudo, a negociação de ações ou ADRs de companhias chinesas na bolsa
NYSE é relativamente menos importante do que as brasileiras, como pode ser
observado na tabela 4. O valor negociado de ações/ADRs da China ampliada
em 2006 foi da ordem de US$ 70 bilhões, enquanto que as negociações do
Brasil atingiam US$ 200 bilhões, estas só ficando atrás dos negócios com
126
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
emissores do Reino Unido e do Canadá. Isto quer dizer que este mecanismo de
transmissão da volatilidade no mercado norte-americano é menor no caso da
China do que no Brasil.
Tabela 4
NYSE: Distribuição geográfica de emissores não-EUA, 2006
Fonte: <www.nyse.com>, dados até 30 nov 2006
2. Movimento de abertura de capital e ofertas públicas
Pela legislação brasileira, as companhias abertas são as empresas que
distribuem publicamente valores mobiliários de sua emissão, destacando-se as
ações, as debêntures e as notas promissórias. Para tanto, as companhias devem
obter registro de companhia aberta na Comissão de Valores Mobiliários (CVM)
e, para que seus valores mobiliários sejam negociados em mercados secundários
organizados, precisam ainda registrar-se na bolsa de valores ou mercado de balcão
organizado. Quando a companhia faz sua primeira oferta pública é caracterizada
a abertura de capital, sendo essa operação chamada de Oferta Pública Inicial,
conhecida no mercado pela sigla em inglês IPO.
A partir de 2004, verificou-se um importante movimento de abertura de
capital e listagem na Bovespa, inclusive em setores diferenciados, como
agronegócio, cosméticos, educação, imobiliário, logística, saúde, seguros e
tecnologia da informação. Esse movimento de entrada de novas companhias no
mercado deve ser atribuído a vários fatores, tais como; a) forte demanda dos
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
127
investidores, domésticos ou internacionais, em função da alta liquidez
internacional, da redução da taxa de juros doméstica, dos bons fundamentos da
economia brasileira e da expectativa do grau de investimento (investment grade);
b) planos de investimento das companhias frente a uma conjuntura econômica
favorável; c ) desinvestimento de grupos controladores e investidores
especializados (private equity), aproveitando a alta do mercado acionário; d)
esforço da Bovespa em atrair novas companhias e novos investidores para seu
ambiente de negociação, destacando-se o lançamento do Novo Mercado; e)
reforço do marco regulatório e da autorregulação, convergindo para os padrões
internacionais, trazendo maior segurança aos investidores e melhorando a
formação de preço dos valores mobiliários distribuídos.
Foi dentro dessa referida conjuntura favorável e do marco regulatório
aperfeiçoado que se verificou a forte retomada das operações de ofertas públicas
de valores mobiliários, como pode ser observado na tabela 5.
Tabela 5
Ofertas públicas de valores mobiliários no Brasil (2000-08)
Mercado primário e secundário – R$ milhões
Fonte: <www.cvm.gov.br> (2008)
*fundos de participação(FIP),certificados de recebíveis e títulos de investimento
coletivo.
A análise das distribuições públicas de valores mobiliários do período 200408 aponta para a recuperação do mercado de capitais, estando em vigor e
assimiladas as novas regras de distribuição da CVM e incorporadas práticas
voluntárias de maior transparência e governança, por parte das principais
companhias emissoras e intermediários financeiros. No período 2004-07,
ocorreram 106 operações de abertura de capital, sendo que 70% foram dentro
128
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
do segmento de maior governaça corporativa, o Novo Mercado. Assim, pode-se
afirmar que o mercado de capitais foi, no período 2004-07, relevante opção de
financiamento das empresas brasileiras de grande porte, assim como instrumento
de reestruturação societária. O movimento chegou a atingir companhias de
médio porte, seja pelo lançamento de ações, como por operações de
securitização. Os principais tomadores das ofertas de ações foram os investidores
estrangeiros, estimulados pelos coordenadores das ofertas, na maioria das vezes
bancos estrangeiros, com destaque para o Credit Suisse e o UBS. Esses bancos
utilizaram o mecanismo de formação de preço chamado de bookbuilding num
contexto de mercado tomador e estipularam os preços das ações das novas
companhias em patamares elevados.
Não só as companhias e os bancos coordenadores se beneficiaram dessas
ofertas a preços elevados: os grupos controladores das novas companhias abertas
aproveitaram para vender parte de suas posições acionárias, descarregando, na
maioria das vezes, as corretagens de sua parte na oferta pública na conta da
companhia, ou seja, ganhos privados e custos socializados entre todos os
acionistas. Os investidores individuais, sem adequada informação sobre
fundamentos econômicos das companhias e sobre os detalhes das operações,
acabaram também atraídos para essa onda de IPOs e logo começaram a se
frustrar.
Cabe destacar que um dos setores produtivos que mais se beneficiaram no
curto prazo foi o da construção civil. Mais de 20 empresas tornaram-se
companhias abertas e fortaleceram sua estrutura de capital para enfrentar o ciclo
de expansão setorial, estimulado pelo crescimento macroeconômico, elevado
déficit habitacional, aumento do crédito e ajuste do marco regulatório. Contudo,
as expectativas de continuar se financiando através do mercado de capitais em
2008 não se realizaram em face da crise internacional, dando início ao processo
de fusões e aquisições do setor.
A partir de 2008 as empresas se defrontaram com um mercado avesso a
ofertas primárias de ações, havendo espaço apenas para lançamentos de renda
fixa (debêntures e fundos de securitização), a custos crescentes. As empresas
que ainda conseguiram se financiar no mercado acionário em 2008 pertenciam
aos setores de petróleo, mineração e siderurgia (commodities), aos grupos Eike,
Vale e Gerdau, ou ao setor financeiro (empresas de leasing).
O ciclo virtuoso das ofertas públicas financiando as empresas também
ocorreu em outros mercados chamados de emergentes, particularmente no
mercado chinês (tabela 6). E assim, na posição final de 2007 (gráfico 4) a Bolsa
de São Paulo e as bolsas de Hong Kong e Xangai destacavam-se como as
principais bolsas de listagem das ofertas públicas iniciais, ao lado de Londres e
da NYSE, esta já abalada pela “crise do subprime”.
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
129
Tabela 6
Mercado acionário chinês: ofertas públicas (IPOs e outras ofertas) US$
bilhões
Fonte: PWC (2008), Brasil: Tabela 2, valor das ações prim.+sec., convertido pela
taxa de câmbio.
Gráfico 4
Fonte: WFE – <www.world-exchanges.org> (2008)
130
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
É interessante destacar, no caso do mercado chinês, que em anos anteriores
os valores levantados eram por IPOs de companhias financeiras e de bens de
consumo e serviços, mas em 2007 predominaram os recursos captados pelas
companhias de energia e serviços de utilidade pública, como a Petrochina e a
China Energy.
3. Reflexos da crise do crédito subprime
Analisando as raízes da “crise do subprime”, Brener (2008) identifica a
bolha imobiliária mundial (2000-05) liderada pelos EUA; o endividamento
recorde das famílias norte-americanas, estimulado novamente pelos juros baixos
do FED; e as inovações financeiras que ligaram os “empréstimos sem escrúpulos”
aos mercados de títulos lastreados por hipotecas. Na mesma linha, Palley (2008)
considera que os excessos dessa “bolha financeira” foram causados pela
inadequada regulamentação dos empréstimos hipotecários, pelas falhas da política
monetária do FED e pelos negligentes empréstimos dos bancos e de Wall Street,
mercado de capitais dos EUA.
Com a eclosão da crise, em 2007, os principais bancos globais foram
obrigados a baixar para seus resultados pesadas perdas, sendo que importantes
bancos quebraram ou foram resgatados da falência, caso do Bear Stearns,
assumido pelo JP Morgan. A gestão da crise obrigou o FED, o BCE e outros
bancos centrais a injetarem liquidez no sistema bancário e a organizarem
operações de salvamento de instituições com risco de insolvência (FREITAS e
CINTRA, 2008).
No segundo semestre de 2008, a crise norte-americana aprofundou-se e
assumiu caráter de crise sistêmica internacional. Para evitar depressão da
economia doméstica, o governo norte-americano se viu obrigado a aprofundar
a operação de salvamento do sistema financeiro, de início com foco no mercado
hipotecário. Assim, anunciou em setembro de 2008 a assunção do controle e
ajuda da ordem de US$ 200 bilhões à Fannie Mae e à Freddie Mac, empresas
privadas de crédito hipotecário que têm o tesouro norte-americano como
garantidor de última instância6. Juntas, as duas possuíam quase a metade dos
US$ 12 trilhões em empréstimos para a habitação nos EUA. Segundo o Tesouro
norte-americano, elas emitiram US$ 5 trilhões em títulos apoiados por dívida e
hipoteca, estando US$ 2 trilhões destes títulos nas mãos de instituições
estrangeiras, incluindo bancos chineses, japoneses, europeus e bancos centrais.
Por ocasião da decisão, o secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson,
declarou que “Fannie Mae e Freddie Mac são tão grandes e tão importantes em
nosso sistema financeiro que a falência de qualquer uma delas provocaria uma
enorme turbulência no sistema financeiro de nosso país e no restante do globo”7.
6
A primeira delas, Fannie Mae, foi criada em 1938 como empresa estatal. Em 1968 foi privatizada, e em
1970 foi criada a Freddie Mac para concorrer com a primeira (Financial Times apud Jornal Valor, 9 set
2008)
7
Disponível em <www.uol.com.br>, acessado em 8 set 2008.
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
131
Já os bancos de investimentos – onde boa parte das operações de derivativos,
exóticas e desreguladas, era desenhada e distribuída – receberam apoio indireto,
através de financiamento de operações de fusões e aquisições, praticamente
acabando com os grandes de investimento puros. No processo ocorreu a quebra
do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Por fim, o governo norteamericano anunciou um programa de ajuda ao sistema financeiro da ordem de
US$ 700 bilhões8. Os mercados acionários reagiram fortemente ao cenário de
crise. O valor de mercado das bolsas mundiais caiu de US$ 62,1 trilhões em 31
de outubro de 2007 para US$ 44,4 trilhões em 26 de setembro de 20089, com
desempenho diferenciado entre as bolsas, como pode ser observado no gráfico
5.
Gráfico 5
Fonte: Bloomberg, apud Bradesco (2008).
Embora o sistema financeiro brasileiro não tivesse sido comprador de títulos
lastreados em subprime, os mecanismos de transmissão decorrentes da abertura
financeira começaram a afetar o mercado de capitais doméstico: retração do
investidor estrangeiro nas ofertas públicas; vendas maciças, por parte desses
mesmos investidores, das posições adquiridas na onda de ofertas públicas; vendas
132
8
O programa de ajuda foi ampliado posteriormente para US$ 850 bilhões.
9
Fonte: <www.bloomberg.com>.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
das ações mais líquidas (Petrobrás e Vale) na NYSE e na Bovespa; e remessas
dos recursos para o exterior, estimulando a desvalorização do real. O índice de
preços do mercado acionário brasileiro, no acumulado até agosto de 2008, perdeu
21% de seu valor, como pode ser observado no gráfico 6; queda não tão forte
como o mercado acionário chinês, que perdeu cerca de 60%10 no mesmo período.
Gráfico 6
Fonte:www.bovespa.com.br
No caso chinês, seu mercado acionário vinha apresentando aquecimento
excessivo desde 2006, já caracterizado como uma bolha, sendo que em 2007 o
governo havia prometido fiscalização mais rígida para impedir fraudes em novas
emissões e conter o uso de operações e crédito para financiar compra de ações
por parte dos investidores individuais, que poupam muito e não têm formas de
previdência pública ou complementar. Assim, a forte queda do mercado acionário
doméstico chinês decorreu da euforia pregressa, da reversão de expectativas sobre
o comércio mundial e do comportamento da bolsa internacional de Hong Kong.
10
De acordo com o correspondente em Xangai do The Wall Street Journal (publicado no jornal Valor
Econômico, 9 set 2008).
O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
133
Gráfico 7
Fonte: <www.bloomberg.com>.
Conclusões
No período 1990-2008, o mercado de capitais brasileiro foi aberto ao
investidor estrangeiro e se articulou à globalização financeira, tanto pela recepção
do investimento em carteira no mercado doméstico como pelo lançamento das
ações títulos das companhias no mercado internacional, contribuindo para o
movimento mais recente (2004-07) de valorização da moeda local. A abertura
para o investidor doméstico aplicar no exterior ocorreu posteriormente, mas
não houve saída relevante porque as altas taxas de juros reais e a rentabilidade
das companhias domésticas mantêm as aplicações no Brasil. Nesse processo,
aumentou a presença dos bancos estrangeiros, na administração de recursos e na
coordenação e ofertas públicas. As companhias brasileiras puderam se aproveitar
da liquidez internacional e dos fundamentos macroeconômicos domésticos até
2007, lançando ações e títulos e se capitalizando através do mercado de capitais.
Já no caso chinês, a abertura do mercado de capitais doméstico ao investidor
estrangeiro foi muito pequena, tendo o mercado acionário crescido basicamente
por conta do investidor doméstico, com alta propensão à poupança e sem sistema
de previdência. Nos últimos anos observou-se um expressivo movimento de
ofertas públicas por parte das companhias chinesas, fazendo com que o mercado
de capitais passasse a ter relevância como padrão de financiamento.
A crise norte-americana do subprime, iniciada em 2007 e transformada em
crise sistêmica em 2008, atingiu os mercados de capitais brasileiro e chinês, em
134
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
função dos diversos mecanismos de transmissão da globalização financeira.
Todavia, no caso chinês, como a abertura do mercado acionário doméstico é
pequena, foi pouco relevante a fuga de capitais dos investidores estrangeiros.
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O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação..., Lucy Sousa, p. 118-135
135
Resumos de Monografia
Atuação das corporações
transnacionais nos países em
desenvolvimento
Rafaella Cordeiro Antoniazzi*
Resumo: Diante de condições econômicas e sociais desprivilegiadas,
alguns países procuram atrair as corporações transnacionais como
forma de promover o desenvolvimento. No entanto, ao se instalarem
nas regiões subdesenvolvidas, as grandes corporações frequentemente
têm grandes dificuldades em realizar suas operações devido às diferenças
de interesses e valores éticos e culturais. Esse cenário pode resultar,
então, em um conflito entre os três atores envolvidos: o governo, a
comunidade local e a empresa. Sendo assim, esta dissertação procura
fazer um estudo sobre o relacionamento entre esses três atores.
P a l a v r a s - c h a v e : Desenvolvimento, pobreza, corporações
transnacionais, globalização, governança corporativa, ética empresarial.
Introdução
As diferenças econômicas e sociais entre países sempre foram evidentes. A
globalização – considerada um fenômeno do qual não se pode escapar – passou
a determinar o grau de desenvolvimento dos países, dividindo-os entre aqueles
que estavam mais integrados a esse processo e aqueles que ficaram isolados ou
que chegaram atrasados. De um lado, ficaram os países cuja participação nesse
processo lhes deu condições de competir por uma parcela do mercado
internacional. Do outro, estão aqueles cuja pobreza e os escassos recursos
econômicos são consequência do pequeno acesso ao mercado. Por essa razão,
esses países procuram formas variadas para se integrar no processo de globalização
a fim de promover seu desenvolvimento, encontrando nas corporações
transnacionais (CTNs) um dos meios para alcançá-lo.
Para tanto, a hipótese de investigação deste artigo é a de serem as corporações
transnacionais agentes promotores do desenvolvimento do local onde estão
instaladas. O objetivo é, então, o de analisar se, ao atuar em uma economia
*
Rafaella Cordeiro Antoniazzi é graduada em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares
Penteado (FAAP). Este artigo tem como base sua monografia de conclusão de curso, desenvolvida sob
orientação do professor Antônio Sérgio Bichir, e selecionada para publicação na forma de resumo. Email: <[email protected]>.
136
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
subdesenvolvida, as CTNs de fato transferem de seu país de origem para a região
onde estejam operando as condições para o crescimento econômico e redução
da pobreza.
A estrutura do presente artigo será composta por três partes: a primeira
parte aborda o avanço da globalização, tendo como ênfase a participação dos
países em desenvolvimento neste processo. Devem eles se proteger ou se integrar
ao processo? Há alternativas? É levantada, então, a seguinte questão: a
globalização é realmente o caminho para alcançar o desenvolvimento ou os
países em condições desfavoráveis deveriam procurar outros meios para esse
fim? Nesse cenário, ocorrem mudanças quanto ao poder dos governos de regular
o mercado globalizado. Além disso, é questionado o papel do Estado, levantandose a questão sobre sua parcela de responsabilidade na promoção do
desenvolvimento ou se lhe caberia ser apenas o agente que cria os mecanismos
para induzi-lo.
A partir disso, a segunda parte se concentra em abordar a presença das
corporações transnacionais (CTNs) nos países em desenvolvimento. Essas
empresas são atraídas para se instalarem nesses países, pois sua presença é
considerada indispensável ao aporte de recursos financeiros, entre outros benefícios
impulsionadores do desenvolvimento. Além de buscarem maior domínio sobre
o mercado mundial, o que leva as empresas a transpor fronteiras, a princípio são
as diferenças culturais, políticas e legais que lhes permitem operar com mais
liberdade e estar menos sujeitas a riscos devido à diversificação. Mas essas
diferenças também podem causar problemas. A ocorrência de interesses distintos
entre as CTNs e a comunidade local e/ou o governo causam conflitos que,
algumas vezes, podem ser prejudiciais para a região.
Isso remete, então, ao tema da terceira parte: a criação de normas e
formulação de códigos de conduta reguladores do comportamento das
corporações que operam em regiões diversas. O surgimento de regras por parte
de organizações intergovernamentais e instituições privadas tem o objetivo de
acabar com a ação predatória das empresas. Sendo assim, os conceitos de
accountability e responsabilidade social ganham importância nas discussões
nacionais e internacionais.
1. Os países em desenvolvimento no contexto da globalização
1.1. Globalização e periferização dos Estados
Consolidada através de diferentes meios, como a redução das barreiras
geográficas, a rapidez nas comunicações e a evolução tecnológica, a globalização
é um processo que resulta no aprofundamento da interdependência entre todas
as regiões do mundo. Buscando melhorias em suas condições desprivilegiadas,
muitos países se tornaram entusiastas da globalização, considerando ser esta a
solução para alguns de seus problemas econômicos. Nesses países, ocorreu, então,
a criação de estratégias políticas que implementaram a liberalização comercial
e a redução de barreiras ao investimento externo. De acordo com pesquisas
feitas pelo Banco Mundial, entre 1977 e 1997, os países subdesenvolvidos “mais
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
137
globalizados”, como China, México, Argentina e Filipinas, tiveram um aumento
significativo na relação entre comércio e PIB, enquanto países menos globalizados
como Paquistão, Quênia e Togo apresentaram um declínio nestes dados. Os
níveis de escolaridade e inflação também se mostraram melhores entre os países
mais globalizados neste período1.
Embora os dados apresentados pelo Banco Mundial nos levem a crer que a
globalização seja um elemento impulsionador do desenvolvimento, existem,
por outro lado, teorias que apontam esse processo como um fator decisivo para
o aumento da desigualdade social dentro dos países e entre países. De acordo
com o relatório do Committee for Development Policy (CDP), da Organização
das Nações Unidas (1999), a globalização tem o efeito de aumentar a
vulnerabilidade dos países. Partindo dessa premissa, pode-se considerar, portanto,
que os países subdesenvolvidos estão ainda mais vulneráveis do que os
desenvolvidos. Isso porque normalmente eles não dispõem de recursos para se
antecipar ou superar os choques que podem ocorrer no mercado internacional,
estando mais sujeitos a sofrer com crises financeiras ou declínio nos preços de
commodities.
Deste modo, em oposição ao Banco Mundial, o CDP indica que a
globalização pode prejudicar o desempenho econômico e desenvolvimento dos
países, inclusive aqueles que mais se integraram a esse processo. Ao contrário do
que se supôs, mesmo havendo maior integração entre as economias, em 1999
foi constatado que a distribuição dos ganhos advindos da globalização ficou
limitada a um grupo restrito de países. As regiões que concentram 70% da
população receberam somente 10% dos investimentos estrangeiros diretos (IEDs)
e os Least Developed Countries (LDCs)2, com 10% da população, participam
em menos de 2% do comércio mundial3.
Assim surgiram os movimentos antiglobalização, que, em sua maioria,
protestam contra a circulação sem controles de capital e a grande movimentação
das corporações, fatores considerados causadores do aumento do desemprego e
da pobreza. Muitos críticos da globalização acusam-na de ser um simples
instrumento para a livre movimentação das grandes corporações, cuja atuação
reforça o gap entre os países ricos e países pobres, enxergando na sua atuação
um dos tentáculos do sistema capitalista. As críticas também giram em torno
das grandes organizações e acordos internacionais como o Fundo Monetário
Internacional (FMI), o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta),
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial. Essas
instituições, além de exercerem pressão a favor da liberalização comercial,
baseiam-se também no princípio da condicionalidade, ou seja, na imposição de
condições para oferecer assistência financeira ou técnica.
Neste contexto, ao tratar a globalização sob a perspectiva da população
dos países pobres, deve-se perguntar se a integração a esse processo é realmente
1
Banco Mundial (2001).
2
O termo LDC se refere aos países com os indicadores de desenvolvimento socioeconômicos mais baixos
do mundo, como Etiópia e Ruanda.
3
138
Report of the Comittee for Development Policy on the first session (26-30 April 1999).
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
um mecanismo impulsionador do desenvolvimento. Assim, surgem as perguntas:
quais são os meios para a promoção do desenvolvimento? Será mesmo a
liberalização dos mercados um dos caminhos para atingir esse fim?
1.2. A busca pelo desenvolvimento e o papel do Estado para alcançar
este fim
Sen (2000) responde a essas perguntas baseando-se na lógica de que a
abertura de mercados é um dos meios que possibilitam expandir a liberdade de
que as pessoas desfrutam. Para ele, mesmo se a livre participação no mercado
não levar à industrialização ou ao progresso econômico, ela contribui
necessariamente para a promoção do desenvolvimento (SEN, 2000: 20-21),
porque o conceito de liberdade definido por ele envolve a ideia de liberdade de
participação política ou o direito das pessoas a receber educação, por exemplo.
Diante disso, os principais elementos que privam os indivíduos da liberdade são
a pobreza, a falta de oportunidades, a repressão e a deficiência do Estado.
Portanto, a livre participação no mercado é também um dos elementos que
contribuem para a expansão da liberdade. Sen defende que a liberdade é o veículo
para alcançar o desenvolvimento ao mesmo tempo em que o desenvolvimento
é o instrumento que viabiliza a liberdade, daí o conceito de “desenvolvimento
como liberdade”.
Nesta mesma linha, os economistas neoclássicos defendem que, para
favorecer o desenvolvimento, deve ser mínima a intervenção do Estado no
comércio e nas transações financeiras, justificando que um mercado insuficiente
é uma das causas principais da pobreza nos países subdesenvolvidos (BOYER,
1999: 1-2). Para eles, o comércio internacional, uma vez que incorpora os países
no processo produtivo mundial, tem a função de alocar ou tornar mais eficiente
a mão-de-obra e os demais fatores de produção ociosos (GONÇALVES, 1998:
68-69). Em contraposição, pode-se levantar argumentos opostos a essa visão.
Neste sentido, os estruturalistas defendem que o fator motivador do
subdesenvolvimento não é a deficiência, mas o excesso do mercado, que provoca
a acumulação irregular do capital (BOYER, 1999: 1-2).
Diante das teorias apresentadas, deve-se perguntar se apenas uma delas deve
ser considerada correta ou se há apenas um, e não vários caminhos que levam ao
desenvolvimento. Para tanto, retomando as duas questões levantadas
anteriormente, deve-se acrescentar o seguinte ponto: devem os países pobres
aceitar como parâmetro os caminhos já percorridos pelos países ricos, adotando
as mesmas políticas econômicas e sociais implementadas como padrões a fim
de alcançar estas condições privilegiadas? Arrighi (1997) discute essa questão.
Inicialmente, ele faz referência ao tema discorrendo sobre os conceitos de
desenvolvimento e industrialização. Segundo ele, para muitas escolas, esses dois
conceitos já são admitidos como equivalentes, ou seja, “desenvolver-se” significa
“industrializar-se”. Arrighi nota o paradoxo existente entre o processo de
desindustrialização ocorrido nos países ricos e os incentivos que os países pobres
criaram para fortalecer a indústria, como meio para alcançar o desenvolvimento.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
139
Em face aos argumentos levantados em torno das questões
desenvolvimentistas, pode-se aprofundar esta discussão ao tratar do papel do
governo na promoção do desenvolvimento. Para tal, deve-se estabelecer como
premissa que a atuação do Estado pode ser decisiva para o crescimento
econômico, e que o crescimento econômico é variável determinante para o
desenvolvimento.
Entre as inúmeras políticas que o Estado pode criar na busca da promoção
do desenvolvimento é importante frisar que, invariavelmente, ele necessita dispor
de recursos financeiros que possam ser aplicados nos mais variados setores, como
infraestrutura e programas sociais. Para isso, a primeira alternativa seria recorrer
à poupança nacional, tanto pública quanto privada. Isto, no entanto, é geralmente
uma possibilidade escassa entre os países pobres, uma vez que a capacidade de
investimentos com recursos públicos está normalmente liquidada e a poupança
privada é inibida devido às altas cargas tributárias. A segunda alternativa seria,
então, realizar empréstimos estrangeiros. Esta opção, todavia, se mostra muitas
vezes inadequada tendo em vista os juros muito elevados ou, quando não há
implicação de altos custos, são exigidas muitas condições para que o empréstimo
seja concedido. Assim, como terceira e última alternativa, só lhes resta recorrer
aos investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Partindo daí, deve-se analisar as
estratégias governamentais para – aproveitando a oportunidade de grande
movimentação financeira internacional – atrair capital externo e impedir a saída
daquele já instalado.
Para uma análise mais detalhada, convém estudar o momento em que se
intensificou a internacionalização do capital, chamando a atenção dos governos
para a criação de medidas capazes de reter o capital no mercado local,
aumentando, consequentemente, a competição entre países, que disputam ao
oferecer retornos mais vantajosos aos investimentos.
1.3. Perda de soberania dos Estados e as corporações transnacionais
De acordo com Ianni (2003), após a Segunda Guerra Mundial, e mais
intensivamente após o fim da Guerra Fria, o capital perdeu parcialmente suas
características nacionais, ultrapassando fronteiras e ampliando seu espaço de
atuação. A reprodução de capital em âmbito nacional sofreu modificações e se
submeteu à dinâmica da reprodução de capital em âmbito internacional. Segundo
Ianni, nos anos pós-Guerra Fria o capitalismo se desenvolveu de modo intensivo
e extensivo, já que o fim do bloco soviético passou a representar uma nova área
para os negócios. As empresas passaram a ser os agentes responsáveis pela
internacionalização do capital, tornando-se os principais atores da economia
nacional e mundial:
Tanto é assim que as empresas transnacionais redesenham o mapa do mundo,
em termos geoeconômicos e geopolíticos muitas vezes bem diferentes daqueles que
haviam sido desenhados pelos mais fortes Estados nacionais. (...) Ainda que com
frequência haja coincidências, convergências e conveniências recíprocas entre
governos nacionais e empresas, corporações e conglomerados, no que se refere a
140
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
assuntos nacionais, regionais e mundiais, é inegável que as transnacionais
libertaram-se progressivamente de algumas das injunções ou limitações inerentes
aos Estados nacionais (IANNI, 2003: 56).
Paralelamente, as limitações impostas pelos Estados nacionais foram
reduzidas, fazendo com que as visões da geoeconomia e geopolítica se
transformassem em função dos interesses e das ações empresariais, mesmo quando
são contrários à visão dos Estados nacionais.
Deste modo, as empresas passaram a determinar o cenário nacional,
podendo-se dizer que houve uma relativa perda de soberania do Estado – que,
por sua vez, se reorganizou de modo a atender as exigências do mercado, o que
reduziu sua capacidade de controle sobre os fluxos financeiros. Neste processo,
ganharam força no período pós-Guerra Fria as políticas para desestatização,
privatização e desregulamentação. Ao mesmo tempo, para atrair investimentos
estrangeiros, os governos adotam uma série de medidas que garantem a segurança
da movimentação de capital no mercado local ou leis mais flexíveis às transações
financeiras.
O aprofundamento do processo da globalização, além de ter elevado a
competitividade entre empresas no escopo do mercado, aumentou também a
competição entre países para atrair capital estrangeiro. Nesta disputa, os governos
elaboraram políticas de maneira a oferecer maiores retornos aos investidores.
Este é o caso da criação de leis de incentivos fiscais ou de programas de
qualificação de mão-de-obra especializados para setores demandados pelo
mercado. Com isso, proporcionalmente ao aumento da competição entre Estados
para atração de investimentos, cresceu o poder de barganha das empresas ao
escolher qual o ambiente mais favorável para se instalarem. As grandes
corporações se beneficiam das disputas entre Estados optando por aquele que
mais vantagens oferecer, minimizando, por conseguinte, seus custos de produção.
2. As corporações transnacionais nos países em desenvolvimento
É inquestionável o fato de que as CTNs são atores relevantes no cenário
internacional em termos de economia, poder político e influência na sociedade.
Seu largo alcance e domínio ocasionam reflexos diretos e indiretos para toda a
população mundial fazendo com que o contato e seus efeitos sejam quase
inevitáveis.
A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(Unctad) estima que atualmente existem aproximadamente 79 mil CTNs
produzindo bens e serviços ao redor do mundo e que seus investimentos
estrangeiros diretos excederam o valor de US$ 15 trilhões em 2007. O total de
vendas ficou acumulado em US$ 31 trilhões, 21% a mais do que em 2006. O
valor adicionado em filiais estrangeiras representou 11% do PIB mundial. O
número de empregados cresceu em torno de 82 milhões4.
4
World Investment Report 2008, Genebra: Unctad, 2008.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
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2.1. Multinacionais ou transnacionais?
Antes de iniciar a discussão sobre a atuação e o impacto das CTNs nos
países em desenvolvimento, convém definir, afinal, o que são as corporações
transnacionais. Além disso, deve ser esclarecida também qual a diferença entre
as CTNs e as corporações multinacionais (CMNs), a que muitos autores se
referem.
Ao analisar diferentes estudos, pode-se constatar que tanto as CTNs quanto
as CMNs são definidas como entidades “cuja propriedade, gerenciamento,
produção e vendas se estendem para diversas jurisdições nacionais” (GILPIN,
1987: 233). As CTNs, no entanto, recebem também a atribuição de serem elas
“capazes de exercer influência sobre a atividade de terceiros”5. Pode-se concluir,
então, que as CTNs e as CMNs têm papéis, políticas e objetivos equivalentes. A
diferença entre elas está somente no escopo social, ou seja, enquanto as
multinacionais são tidas como agentes exclusivamente econômicos, as
transnacionais são vistas como sendo, também, atores sociais. Deste modo, as
CTNs são uma evolução das CMNs. O histórico e demais aspectos dessas
companhias, que serão descritos a seguir, esclarecerão que essas companhias
deixaram de ter natureza somente econômica para assumirem um papel na
sociedade, com responsabilidades e direitos específicos.
Desta forma, corporação transnacional será o termo adotado neste artigo
por dois motivos: primeiro, porque é o termo mais recente; e, segundo, porque
é o que mais corresponde à atual realidade das empresas.
2.2. Perspectiva histórica
É incerto o momento em que surgiram as CTNs. Com base em alguns
estudos, Wilkins (2007) considera que as empresas precursoras dessas corporações
foram alguns bancos italianos, que atuavam em território inglês já na Idade
Média (WILKINS, 2007: 47). As empresas do setor de serviços podem ser
consideradas as pioneiras a transpor fronteiras. De acordo com Jones (2007),
durante o século XIX os serviços bancários, de comércio e de infraestrutura
eram relativamente comuns no plano internacional (JONES, 2007: 84).
Mas uma forma de estudar o surgimento das CTNs pode ser a partir da
transnacionalização das corporações dos Estados Unidos, uma vez que foram
estas as primeiras a operarem em escala global e que dominaram, durante muitos
anos, os investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Segundo Jones, entre 1945 e
a metade da década de 60 os Estados Unidos eram responsáveis por 85% dos
fluxos de IEDs (JONES, 2007: 88). Neste sentido, Gilpin (1987) descreve que
os movimentos para transnacionalização das empresas norte-americanas foram
motivados por dois fatores: o avanço dos sistemas de transporte e comunicação
e políticas de incentivo à internacionalização, criadas pelo governo dos Estados
Unidos. Gilpin explica que a expansão das corporações norte-americanas tinha
5
142
Fonte: <http://www.unctad.org>.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
a característica de ser “horizontalmente integrada”, ou seja, a instalação de
subsidiárias produzindo mercadorias iguais ou similares em vários países
(GILPIN, 1987: 239).
A partir da década de 70, no entanto, a parcela da participação das
corporações norte-americanas nos investimentos estrangeiros diretos declinou
com a entrada de novos players originários do Japão e da Europa. Nessa década,
o fim do colonialismo em regiões da África e Ásia levou ao surgimento de novos
Estados que, na sequência, centralizaram as atividades econômicas consideradas
cruciais para a promoção do desenvolvimento. Ocorreram, então, ondas de
nacionalização de serviços financeiros, indústrias de infraestrutura e de grandes
empresas de produtos manufaturados. Neste mesmo período, a Organização
dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) estabeleceu uma política de embargo
que resultou no choque do preço do petróleo em 1973, causando efeitos
econômicos negativos sobre o mercado mundial. Somados ao contexto da Guerra
Fria, esses acontecimentos acabaram, portanto, por inibir o fluxo de IEDs:
As corporações aprenderam que elas precisam estabelecer subsidiárias
estrangeiras em um número cada vez maior de países, ou participar de jointventures ou outros arranjos com firmas locais para alcançar mercados mais
protegidos (...). Neste novo ambiente de inseguranças políticas e econômicas, as
multinacionais japonesas começaram a se expandir rapidamente para o mercado
norte-americano e, em menor proporção, para os mercados europeus e demais.
Tradicionalmente, as corporações japonesas investiam em outros mercados,
principalmente, para adquirir matéria-prima ou componentes de baixo custo que
eram enviados para o país para processamento e incorporação nos produtos finais,
para, então, exportá-los para o mercado mundial (GILPIN, 1987: 240).
O momento de instabilidade estimulou as corporações a diversificarem os
locais de atuação de modo a se protegerem das crises econômicas do mercado
internacional. Sendo assim, as transnacionais, com mais frequência, passaram a
penetrar nos mercados nacionais por meio de aquisições, joint-ventures ou fusões6.
A participação de novas corporações nos negócios internacionais e o período
de instabilidade trouxe também um novo sistema de integração entre empresas.
Agora, além da integração horizontal, as CTNs passaram também a estabelecer
integrações verticais, o que significa que os vários estágios da produção ficam
distribuídos entre diferentes regiões. Gilpin apresenta três fatores que garantiram
o sucesso da “integração verticalizada”. O primeiro deles foi a redução dos
custos e maior controle da corporação sobre a produção; o segundo consiste na
maior permanência dos conhecimentos gerados na própria empresa; e o terceiro
foi representado pelos avanços no transporte e nos meios de comunicação. Esse
tipo de integração motivou o comércio “intrafirmas” e a exportação e importação
de produtos intermediários.
6
Beyond Conventional Wisdom in Development Policy: An Intellectual History of Unctad 1964-2004,
Genebra: Unctad, 2004.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
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Na década de 80, o cenário começou a mudar em direção contrária ao da
década anterior. Começaram a ser implementadas políticas de industrialização
orientadas para exportação (em países da Ásia – sendo que Malásia, Cingapura
e Tailândia se apoiaram, essencialmente, na atração de IEDs) e se observam
ondas de privatizações, principalmente na América Latina, indicando um novo
rumo para a expansão das transnacionais. Outro fator relevante foi que o aumento
da dívida externa em alguns países em desenvolvimento deslocou (forçosamente)
seus interesses para a atração de IEDs – como fonte de financiamento externo,
sem o risco de intensificar o endividamento. Apesar dos incentivos, a entrada de
IEDs nesses países diminuiu de 25% para 20% entre o começo e o final daquela
década. Em 1990, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Canadá ainda
eram os países que mais recebiam IEDs.
De fato, só a partir da década de 90 que o viés de distribuição geográfica
dos IEDs passou a mudar. A participação dos países em desenvolvimento como
receptores desses investimentos começou a crescer nesse período. Entre 1990 e
2002, o número de transnacionais nos países desenvolvidos cresceu 63%, enquanto
que nos países em desenvolvimento esse crescimento foi de 258%7. Além disso,
o surgimento de CTNs originárias de economias de transição, como a Companhia
Vale, empresa de mineração do Brasil; a Sappi Limited, fabricante de papel da
África do Sul; e a Oil and Natural Gas Corporation, da Índia, foi outro
acontecimento relevante da década de 90, pois ocasionou o aumento do fluxo
de investimentos Sul-Sul.
De acordo com a Unctad, entre 1985 e 2002 os IEDs aumentaram de US$
1 trilhão para US$ 7 trilhões8. Esse crescimento se deve ao reconhecimento da
importância dos IEDs para o desenvolvimento, o que fomentou a implementação
de políticas para liberalização e proteção dos investidores estrangeiros.
2.3. Características das corporações transnacionais
Para descrever as características das transnacionais, deve-se primeiramente
abordar o modo como se dá o processo de tomada de decisão das empresas. É
possível afirmar que unicamente os investidores detêm o poder de tomada de
decisão. Os verdadeiros proprietários das empresas são aqueles que nelas investem,
e por isso elas estão mais preocupadas com as margens de lucro e com o marketshare que detêm no mercado do que com o bem-estar da população. As empresas
não são instituições filantrópicas. Neste sentido, as corporações transnacionais,
em especial, apresentam ainda uma particularidade: as tomadas de decisão são
realizadas em sua sede original e não nas regiões onde atuam.
As CTNs contam ainda com a vantagem de dispor de uma liberdade
espacial. Isto significa que a população e os fornecedores estão presos ao que
7
World Investment Report 2002. Genebra: Unctad, 2002.
8
Beyond Conventional Wisdom in Development Policy: An Intellectual History of Unctad 1964-2004.
Genebra: Unctad, 2004.
144
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Bauman (1999) chama de “própria localidade”, não podendo estes seguir a
companhia quando ela se muda de um local para outro. Paralelamente, por não
haver a percepção das distâncias geográficas, os acionistas estão livres da
localidade, e como detentores do poder decisório cabe a eles determinar o local
onde é mais conveniente a instalação da empresa.
Para Chesnais (1996), a facilidade de mobilidade de capital é consequência
da liberalização e da desregulamentação que, por sua vez, constituem fatores
inerentes ao processo de globalização/mundialização. A maior movimentação
do capital e a modernização dos processos produtivos (evolução da informática,
robotização) significou a “terceirização internacional” da produção de bens e
serviços e o aumento da subcontratação, transformando o mundo em uma grande
“fábrica global”, segundo Ianni. Isso significa, então, que as obrigações dos
investidores em relação à comunidade são atenuadas dado o seu distanciamento;
ou seja, as corporações não estão condenadas ao comprometimento. “Quem
for livre para fugir da localidade é livre para escapar das consequências. Esses
são os espólios mais importantes da vitoriosa guerra espacial” (BAUMAN, 1999:
15). A liberdade de movimento se torna, portanto, um dos bens mais valiosos
entre as companhias. A falta de limites sobre o capital permite aos acionistas se
deslocarem facilmente entre localidades, evitando ambientes que lhes sejam
hostis. Surge, assim, o conceito de “fábrica fugitiva”, como definido por Ianni.
Segundo Bauman, existe uma diferença entre a nova liberdade do capital e a
antiga, a qual ele denomina de “liberdade dos ausentes proprietários”. A atuação
destes últimos era obrigatoriamente acompanhada de preocupações e
responsabilidades porque também estavam presos à localidade tanto quanto à
comunidade. Desta forma, a atuação dos ausentes proprietários era mais passível
de ser notada pela população do que o capital móvel, que passa despercebido.
Outra característica importante das CTNs é que estas, mais do que as outras
empresas, têm condições de adquirir os equipamentos mais modernos, sendo
capazes de substituir os recursos humanos por tecnologia, quando conveniente.
Deste modo, os recursos financeiros das transnacionais, somados à liberdade
espacial, lhes permitem desenvolver uma economia de escala com maior
facilidade9.
As CTNs também têm maiores condições de diversificar sua produção, até
mesmo em produtos que não estejam relacionados entre si. A Unilever, por
exemplo, empresa anglo-holandesa, fabrica desde alimentos (como maionese e
manteiga) até sabão em pó e sabonete, sendo ela proprietária das marcas Doriana,
Hellmann’s, Lipton, Omo, Rexona, CloseUp e Dove, entre muitas outras10.
Alguns estudiosos acreditam que as CTNs podem ser um veículo para exercer a
política externa de seu país de origem. Por meio de seus produtos e serviços,
essas corporações acabam “exportando” padrões de consumo, sendo um
instrumento de articulação do poder de seu país, ao que Nye denomina soft
power11.
9
Por definição, economia de escala é quando uma empresa consegue diminuir os custos da produção da
unidade ao produzir maior quantidade de mercadoria ou serviço.
10
Fonte: <http://www.unilever.com>.
11
Soft power é o termo criado por Joseph Nye para explicar o exercício do poder do Estado através de
veículos culturais e ideológicos. O soft power é o contraste do hard power, que se refere ao poder militar
dos países.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
145
Por último, deve ser registrado que, apesar de exportar tecnologia e knowhow, as CTNs geralmente concentram em sua matriz os fatores que compõem o
que pode ser considerado como sendo o real poder da corporação: as finanças,
P&D e o controle administrativo.
2.4. As grandes vilãs
Tendo em vista suas características e o fato de que os governos dos países
pobres muitas vezes optam por atraí-las como forma de promoção ao
desenvolvimento, as transnacionais se deslocam em direção àqueles que atendam
às suas necessidades e favoreçam suas operações, proporcionando ambientes mais
propícios aos investimentos. “É mais provável que as corporações invistam em
países onde o governo é aparentemente estável. Instabilidade é ruim para os
negócios” (MADELEY, 1999: 3). Do ponto de vista empresarial, isso muitas
vezes significou priorizar os países nos quais os governos apresentavam estruturas
de poder centralizadas, o que facilita o lobby.
A decisão de formular políticas para atrair e manter as CTNs no país se
explica pelo fato de elas poderem colaborar em seis aspectos essenciais para o
desenvolvimento: 1) geram um número significativo de empregos para a
população através dos IEDs; 2) agregam benefícios a toda a cadeia produtiva;
3) trazem know-how; 4) contribuem com alto valor de impostos; 5) investem
em infraestrutura; e 6) colaboram com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
local.
No tocante à infraestrutura, os governos procuram atrair as CTNs para, por
meio delas (direta ou indiretamente), solucionarem questões relativas às obras
de eletricidade, telecomunicações, saneamento básico, estradas, portos e
aeroportos. De forma indireta, as transnacionais aumentam os recursos
governamentais disponíveis à execução de obras infraestruturais. De forma direta,
há aquelas empresas, cuja atividade é a própria construção de infraestrutura,
com a função de preencher as lacunas em que o governo não é capaz de atuar.
Tanto é assim que, na década de 90, em razão das crises econômicas, aumentou
a quantidade de países que abriram para a iniciativa privada a participação em
obras de infraestrutura. Entre 1996 e 2006, os investimentos estrangeiros neste
setor totalizaram US$ 246 bilhões nos países do Sul. Na África, eles representaram
36% de todas as contribuições destinadas a este setor. Ainda na década de 90, foi
constatado pela Unctad que, juntamente com o crescimento dos investimentos
privados em infraestrutura, houve um declínio da participação pública nesta
atividade. Esse ingresso do setor privado na área de infraestrutura, todavia, não
supriu aquelas necessidades. Na África subsaariana, esta deficiência alcançou
um índice de mais de 50%, onde seriam necessários US$ 23,5 bilhões de
investimentos adicionais por ano em novas obras para que as Metas do Milênio
pudessem ser atingidas até 2015.
Apesar da tendência em se supor que essas CTNs ampliam o acesso aos
serviços de infraestrutura, o resultado é, no entanto, muito variado. Por um
lado, a introdução de novas tecnologias pelas transnacionais, além de melhorar
146
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
a prestação de serviços, tendem a aumentar a produtividade, causando impactos
na competitividade do setor. No caso das telecomunicações, em geral, a qualidade
dos serviços se aprimorou e se tornou mais acessível e eficiente. Muitos países
presenciaram a “revolução da telefonia móvel”. Em Uganda, a intensa
competição entre a Uganda Telecom (empresa estatal com parte de seu capital
privado), a Celtel (empresa holandesa) e a MTN (empresa sul-africana) levou
ao aumento da eficiência e à redução de tarifas. Com isso, o número de pessoas
que tinham aparelhos celulares em Uganda passou de 2 a cada 1.000 habitantes,
em 1998, para 31 a cada 1.000 em 2003.
Por outro lado, o impacto da entrada de transnacionais afeta de modo
diferente as diversas camadas sociais, dependendo de seu poder aquisitivo e da
região onde vivem. Ou seja, o aumento de oferta e qualidade não significa
necessariamente maior acesso a esses serviços por toda a população. Em alguns
casos, a participação da iniciativa privada tornou inacessíveis alguns serviços de
infraestrutura entre a população pobre devido ao aumento das tarifas. Esse quadro
ocorreu especialmente entre os serviços de fornecimento de água, saneamento
e eletricidade12.
Na verdade, nem sempre é nítida a separação entre os interesses dos governos
e os das CTNs. O que ocorre frequentemente é que os objetivos acabam
convergindo de tal maneira que as ações públicas passam a ter como uma de
suas prioridades os interesses empresariais, podendo causar grande insatisfação
entre a população. O caso da Shell na Nigéria é um exemplo disso. A Nigéria
sempre foi um país extremamente dependente da renda advinda do petróleo e,
desde 1937, a Royal Dutch Shell atua no país arrecadando lucros extraordinários.
Em um dos locais onde opera, a empresa enfrenta constantes conflitos com o
povo Ogoni – minoria étnica que habita a região e que vive em sérias condições
de pobreza. Após diversas pressões da Shell, que declarava sofrer frequentes
depredações contra suas instalações, o governo nigeriano chegou a enviar militares
para apaziguar a região, os quais, no entanto, acabaram por entrar em confronto
com a população local, matando um e ferindo outros ativistas (HILL, 2005:
136-138). Este caso, portanto, ilustra como os interesses do governo e da empresa
podem convergir de tal maneira que podem se voltar contra os interesses da
própria população.
Se para alguns governos as CTNs são instrumentos de promoção ao
desenvolvimento, para outros elas são as grandes vilãs responsáveis pelo
subdesenvolvimento. Entre as décadas de 60 e 70, ocorreram grandes
movimentações para a nacionalização das empresas, buscando apropriar-se dos
lucros obtidos por elas. Entre 1970 e 1976, segundo Jones, ao menos 18 países
nacionalizaram as instalações para extração de petróleo (JONES, 2007: 89).
Em pouco tempo, contudo, foi observado que a lucratividade das empresas
expropriadas geralmente se reduzia à medida que se tornavam objeto da
administração pública. Essas experiências, portanto, indicam que o governo não
é capaz de dirigir uma empresa com a mesma eficiência dos investidores da
12
World Investment Report 2008. Genebra: Unctad, 2008.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
147
iniciativa privada. Apesar disso, notam-se novas mobilizações pela nacionalização,
particularmente na América Latina. A ascensão de governos com uma retórica
esquerdista, como o de Hugo Chávez, eleito presidente em 1998 na Venezuela,
despertou novamente as ideias da expropriação como resposta aos problemas do
subdesenvolvimentismo e da dependência, sendo que a maioria das restrições
implementadas por esses governos ficou concentrada nas indústrias extrativas.
Na Venezuela, entre janeiro de 2007 e julho de 2008, ocorreram oito processos
de nacionalização13.
Como já discutido anteriormente, o poder das transnacionais aumentou ao
longo dos anos, comprometendo a soberania dos Estados. Todavia, casos como
os de expropriação de empresas colocam em questão essa afirmação,
demonstrando, portanto, que o poder de controle dos Estados sobre o mercado
e a economia mundial não deve ser menosprezado. O embargo de petróleo
realizado pelos países membros da Opep é mais um exemplo disso.
2.5. As relações trabalhistas
De acordo com Wallerstein (2005), a luta entre classes é um elemento que
determina os custos de produção. Por um lado, os trabalhadores têm o poder de
pressionar os empregadores através de mobilizações na produção. Os
empregadores, por outro lado, procuram colocar os trabalhadores uns contra os
outros de forma a controlar o valor da remuneração. A globalização, todavia,
provocou mudanças nesta estrutura. Antes, os empregadores muitas vezes
atendiam às demandas dos trabalhadores, uma vez que interromper a produção
significava, normalmente, um custo maior do que conceder aumento nos salários.
Agora, a ampliação da competição no mercado forçou os empregadores a
buscarem custos de mão-de-obra mais baixos. Entram no cenário, então,
trabalhadores de outros países, que exercem o mesmo trabalho por um salário
mais baixo.
O Wal-Mart, rede de varejo, é a transnacional que mais tem empregados
no mundo, e é um exemplo que elucida essa discussão. Diante da competição
do mercado e buscando oferecer preços mais baixos do que os da concorrência,
a empresa optou por internacionalizar a produção de suas mercadorias escolhendo
regiões onde o custo da mão-de-obra é mais baixo, como China, Bangladesh,
Indonésia e Suazilândia. Nos Estados Unidos, a empresa recebe graves acusações
de exercer políticas antissindicais, oferecer baixos salários e ter horas-extras nãoremuneradas. Essas acusações são ainda mais graves nos países em
desenvolvimento, onde estão instaladas suas fábricas. Conclui-se, então, que o
Wal-Mart passou por um processo de “externalização” dos custos, sendo que,
para manter a cultura de oferecer preços mais baixos do que seus concorrentes,
a empresa se apoia sobretudo na baixa remuneração de sua mão-de-obra.
Além da procura por mercados nos quais a remuneração da mão-de-obra
seja mais barata, muitas empresas adotam um tipo diferente de estratégia.
Goodwin descreve que é comum as CTNs oferecerem salários mais baixos do
13
148
The Economist, 7 ago 2008.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
que nos países desenvolvidos, mas suficientemente mais altos do que a média
nos países em desenvolvimento, de modo a garantir a oferta de mão-de-obra e a
fidelidade de seus funcionários. Os salários ainda podem ser altos o bastante
para fazer dos trabalhadores também consumidores (GOODWIN, 2005: 139).
Chesnais (1996) também discute as relações capital-trabalho, tendo em
vista sobretudo as mudanças que os avanços tecnológicos trouxeram para esta
dinâmica. As novas tecnologias fizeram com que os trabalhadores ficassem mais
suscetíveis aos interesses contratuais das empresas. No setor industrial,
principalmente, houve a necessidade de uma flexibilização dos contratos de
trabalho de modo a compensar com recursos humanos mais baratos os benefícios
que a tecnologia avançada trouxe para as empresas. De acordo com estudos da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), é provável que essa evolução
tecnológica, acompanhada do processo de globalização e reforma da legislação
trabalhista, seja a grande responsável pelo aumento gradativo da desigualdade
entre os grupos de alta renda e os grupos de média e baixa renda.
O número de empregados das CTNs vem crescendo significativamente ao
longo dos anos, quase triplicando no período entre 1990 e 200714. Em 2006, só
as 20 maiores transnacionais do mundo somavam mais de 5,3 milhões de
funcionários; e destes, mais de 2,4 milhões estavam em países que não os de
origem da empresa. Entretanto, ao contrário do que seria previsível, este aumento
não acompanhou o crescimento de vendas, rendas e lucros das CTNs, que se
expandem em ritmo ainda mais acelerado. A distribuição de parte dos novos
ganhos foi direcionada a um grupo limitado de executivos, acentuando as
diferenças entre as faixas salariais. Os CEOs (chief executive officers) mais bem
pagos do mundo estão nos Estados Unidos, com uma média que excede o valor
de US$ 10 milhões ao ano, o que representa 183 vezes mais que o salário de um
trabalhador comum no país. Em Hong Kong, na China, e na África do Sul, essa
diferença fica em 160 e 104 vezes respectivamente15.
São variadas as formas como se dão as relações entre as transnacionais e a
população operária dos países em desenvolvimento. Goodwin explica que o
modelo de atuação empresarial para com seus funcionários está dividido em
dois caminhos: a high road e a low road. O primeiro é o modelo de gerenciamento
cooperativo, baseado na participação dos lucros e na interação entre todos os
trabalhadores da empresa. Os funcionários devem se sentir parte da corporação
cujo sucesso depende integralmente de seu trabalho. Já a low road é o modelo
competitivo no qual as ameaças de demissão e redução de salários são os fatores
motivadores mais importantes. Este modelo somente é viável onde há excesso
de oferta de recursos humanos ou onde o poder político e legal dos trabalhadores
é relativamente baixo; caso contrário, ele é insustentável (GOODWIN, 2005:
147-148).
14
World Investment Report 2007. Genebra: Unctad, 2007
15
World of Work Report 2008. Genebra: OIT, 2008.
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
149
2.6. Economias duais
Até aqui, tratou-se exclusivamente do impacto das transnacionais entre
aqueles que estão envolvidos diretamente em suas atividades. Agora, será
discutido o efeito indireto da ação das transnacionais sobre a população excluída
do processo.
Wallerstein (1996) descreve a atual “economia-mundo” estruturada sobre
uma divisão do trabalho, tendo como principal finalidade a acumulação
desenfreada de capital. Os lugares onde se obtêm os mais altos níveis de
lucratividade são denominados por ele como zonas centrais. As zonas periféricas,
então, são assim definidas por se tratarem de áreas cujas atividades econômicas
são menos lucrativas (WALLERSTEIN, 1996: 88). O centro e a periferia não
estão necessariamente separados geograficamente; ao contrário, podem coexistir.
A existência de um centro econômico moderno e desenvolvido num país pobre
não significa que seus resultados estejam vinculados ao resto da economia ou
que seus ganhos possam ser usufruídos pelas demais regiões.
Um exemplo de economia dual são as Zonas de Processamento de
Exportação (ZPEs), que se constituem em áreas de livre comércio com o objetivo
de criar postos de trabalho e trazer investimentos estrangeiros diretos. As indústrias
nelas instaladas destinam a maior parte de sua produção ao mercado externo,
contando com benefícios fiscais e liberdade cambial, entre outras vantagens,
tratando-se, então, de ambientes muito atrativos para a instalação de CTNs:
Em teoria, os benefícios do setor moderno podem se transferir para o setor
tradicional, ou até mesmo diminuir a pobreza. Mas isso geralmente não tem
acontecido. Na verdade, o que acontece é que o dualismo cria desigualdade nos
países com duas economias existindo lado a lado, a mais forte alimentando a mais
fraca, não trazendo nenhum benefício para a vasta maioria das pessoas
(MADELEY, 1999: 11).
Complementando esse pensamento, Sklair (1989) descreve que “o que as
ZPEs falharam em fazer, com algumas exceções, foi transformar o crescimento
econômico em desenvolvimento.” O Programa das Maquiladoras é um exemplo
disso. Criado em 1965, o programa tinha, num primeiro momento, o objetivo
de encorajar a instalação de empresas estrangeiras em regiões próximas da
fronteira entre os Estados Unidos e o México. Ao desenvolver o programa, o
governo mexicano esperava que, além da criação de empregos, as “maquilas”
alocassem matéria-prima local na produção. As estatísticas indicavam, porém,
que apesar da implementação do programa os habitantes da região ainda viviam
em graves condições de pobreza. A grande incidência de investimentos no local
e o surgimento das maquilas não beneficiou a maioria da população e trouxe
ganhos a um grupo limitado de pessoas.
150
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
3. Governança e ética empresarial
Os escândalos envolvendo as transnacionais trouxeram um novo tema para
debate na pauta dos governos nacionais e entidades internacionais. A preocupação
com a violação dos direitos humanos, a falta de ética e o pequeno
comprometimento das empresas com a sociedade fizeram com que iniciativas
para a regulação dos negócios internacionais fossem criadas.
3.1. Governança corporativa e responsabilidade social
Para Oman (2001), o termo “governança corporativa” se refere às leis e
práticas que governam o relacionamento entre todos os investidores da
corporação. De acordo com o autor, os investidores são aqueles que oferecem
recursos que possibilitam o crescimento da corporação, sejam eles financeiros
(shareholders), humanos (trabalhadores) ou empréstimos (credores) (OMAN,
2001:13). Desta forma, governança corporativa é o mecanismo que viabiliza o
relacionamento entre esses atores e os indivíduos que administram a empresa,
sendo ela, portanto, o fator que permite alinhar o comportamento de todos
esses agentes, protegendo os interesses e satisfazendo as expectativas de cada
um deles. Existem diversas correntes de pensamento em torno do tema da
governança corporativa. Mas, de um modo geral, essas correntes podem ser
agrupadas em duas categorias: a primeira, fundamentada nos shareholders
(acionistas); e a segunda, nos stakeholders (empregados, fornecedores, clientes,
comunidade que, entre outros, afetam ou são afetados pela atuação das
empresas).
Da perspectiva dos shareholders, o princípio é o de que as empresas são
instrumentos de seus proprietários com a finalidade exclusiva de atender seus
interesses, ou seja, de maximizar os lucros. Letza (2004) considera os pensamentos
baseados nessa perspectiva como ortodoxos, explicando que sua origem ideológica
está apoiada na propriedade privada e nos princípios do capitalismo. Nessa ordem
de ideias, as funções das empresas não podem ser confundidas com as funções
dos governos ou de instituições filantrópicas, que se preocupam com o bemestar da sociedade. “A única responsabilidade social dos negócios é a de aumentar
seus lucros” (LETZA et al, 2004: 247).
Da perspectiva dos stakeholders, a visão sobre governança corporativa é bem
distinta. As teorias baseadas nestes princípios definem as corporações como sendo
também instituições sociais, uma vez que sua atuação tem impacto sobre a
população e pode ser um dos fatores que determina seu bem-estar. É importante
sublinhar que tanto as teorias com base nos shareholders quanto aquelas com
base nos stakeholders têm como único fim fazer da governança corporativa um
instrumento para aumentar a eficiência da empresa. O debate gira em torno,
então, de quais são os meios para que isso seja possível, e de como essa governança
deve ser exercida.
Historicamente, a mudança de perspectiva dos shareholders para a dos
stakeholders ocorreu no século XX, na depressão dos anos 30, quando a General
Electric acentuou o envolvimento dos stakeholders nas decisões, pois, assim como
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
151
a empresa, eles também buscavam sobreviver à crise econômica. Mais adiante,
essa perspectiva foi fortalecida com o crescimento das discussões acadêmicas e
políticas sobre responsabilidade social. O crescimento do mercado financeiro
consolidou a lógica dos stakeholders entre as teorias de governança corporativa.
A bolsa de valores quebrou o paradigma da empresa como sendo uma extensão
legal de seus acionistas. “Através da bolsa de valores a propriedade ficou
fragmentada e dispersa, tornando os shareholders mais investidores do que
realmente proprietários” (LETZA et al, 2004: 247). Houve, portanto, o divórcio
entre a propriedade e a gestão da empresa. Os proprietários já não são mais
aqueles que administram as empresas, o que faz com que os interesses dos
stakeholders devam ser incorporados às decisões da corporação. As empresas
passaram a ser consideradas entidades independentes de seus proprietários, com
direitos e obrigações próprias. Nessa ordem de ideias, a respeito de suas obrigações,
pode-se supor, inicialmente, que as empresas tendem a aceitar um número
mínimo de normas que regulem suas operações, de modo a terem maior liberdade
de ação no mercado. De acordo com Mügge (2006), a única circunstância capaz
de fazer com que as empresas recorram a algum tipo de regulamentação é quando
a competição está, de alguma forma, prejudicando-as.
Mas as pressões que recaem sob a atuação das grandes empresas aumentam
a cada dia, partindo de sindicatos, consumidores, ONGs e stakeholders, que se
manifestam através de protestos e boicotes. Os conflitos surgidos a partir das
difíceis relações entre empresa e comunidade motivaram os movimentos para
exigir das empresas transparência e prestação de contas (accountability). Segundo
essa ótica, a responsabilidade social passou a ser um tema relevante nas discussões
sobre as atividades das empresas. Um comportamento socialmente responsável
é aquele em que a empresa atua buscando proteger ou alcançar os interesses da
sociedade. Isso inclui adição ou modificação na produção ou a promoção de
projetos nas áreas de educação, saúde e inclusão social.
As ações ligadas à responsabilidade social também podem, às vezes, se
mostrar lucrativas. A imagem de uma empresa no contexto social tem a
capacidade de diferenciá-la de seus concorrentes, agregando maior valor aos
seus produtos e atraindo mais consumidores ou trabalhadores mais qualificados.
Deste modo, as empresas têm, muitas vezes, grande preocupação em preservar
sua boa reputação. A Nike, corporação que produz artigos esportivos, é um
exemplo que se encaixa perfeitamente neste contexto. Originária dos Estados
Unidos, a Nike sempre prezou pela imagem da empresa, investindo grandes
quantias em campanhas publicitárias. As duras acusações contra a Nike em
relação às más condições em que mantinha seus trabalhadores em sua fábrica na
Indonésia resultou em fortes danos à reputação da companhia. Isso levou seus
executivos a criarem códigos que regulassem o comportamento da companhia
nos locais onde suas fábricas estavam instaladas. A preocupação com a reputação
cresce cada vez mais entre as empresas. Ao pesquisar informações sobre o
comportamento das grandes corporações pela internet, observa-se que “os
152
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
websites de quase todas as grandes corporações incluem uma seção detalhando
seus esforços na promoção de causas como as do meio ambiente, educação ou
de socorro nos casos de catástrofes naturais” (ROACH, 2007: 36).
É fato que os sistemas políticos, as leis e a cultura variam de região para
região. Essas diferenças também recaem sobre as regras de governança (pois
elas expressam as normas e os costumes locais) e sobre as demandas por
responsabilidade social, que mudam de acordo com as necessidades e pressões
dos governos, comunidades e ONGs. Por esse motivo, ao se lançarem nos
negócios internacionais, as empresas frequentemente experimentam um dilema
moral: o do choque entre os valores de seu país de origem e os valores do país no
qual estão se instalando.
3.2. Alguns aspectos éticos nos negócios internacionais
Por causa da diversidade entre países, as corporações, ao se
internacionalizarem, necessitam de estratégias para lidar com o choque cultural,
diferenças políticas e legais. Neste contexto, a ética constitui uma das questões
mais delicadas que surgem nos negócios internacionais, especialmente quando
a empresa parte para uma região onde o desenvolvimento econômico é inferior,
a instabilidade política é presente e o sistema legislativo é deficiente.
DeGeorge (2000) reflete sobre os princípios éticos que devem orientar a
conduta das empresas: “(...) quando você está em Roma, não deveria você fazer
como os romanos fazem?” (DEGEORGE, 2000: 50). Diante desse impasse,
tanto os governos quanto as próprias empresas se esforçam em criar diretrizes e
estabelecer códigos de conduta que conduzam as ações corporativas ao redor do
mundo.
3.3. Tipos de governança e diretrizes internacionais
A preocupação dos governos quanto ao impacto social das operações das
transnacionais vem aumentando gradativamente tanto entre aqueles que recebem
essas empresas quanto naqueles de sua origem. Dentro da esfera nacional, os
governos controlam o comportamento dos agentes privados através dos impostos
ou leis internas. Mas, passando para a esfera internacional, os governos já não
têm a capacidade de controlar sua atuação. Sendo assim, faz-se necessária a
coordenação entre os países para evitar que as CTNs usufruam de sua liberdade
espacial para fugir das regras nacionais. Para tanto, as organizações
intergovernamentais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a
Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) são fóruns internacionais de debate com o propósito de alinhar
suas políticas e representar sua vontade na formulação de regulamentações
internacionais.
Na tentativa de criar um comprometimento das ações empresariais, o
United Nations Global Compact foi criado com o objetivo de alinhar as operações
e estratégias das corporações com base em dez princípios universalmente aceitos,
ligados às áreas de direitos humanos, meio ambiente, trabalho e de luta contra a
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
153
corrupção. Essa pode ser considerada uma das maiores iniciativas para estabelecer
consciência cidadã entre as empresas de modo a criar legitimidade nos negócios
internacionais16.
Além da governança intergovernamental, há também outro conjunto de
normas elaborado por atores não-estatais, denominado governança transnacional
privada (GTP), que surgiu como alternativa às políticas implementadas pelas
iniciativas dos governos. A GTP é realizada através de diversas instituições nãogovernamentais, que também têm o objetivo de estabelecer políticas reguladoras
do comportamento dos agentes econômicos no mercado internacional. Essas
instituições atuam em diversas áreas, como a International Accounting Standards
Board (IASB), que atua na área de finanças criando normas para regular o
mercado, e a Fair Labor Association (FLA), que estabelece regras em torno das
condições de trabalho ao redor do mundo.
É comum essas instituições criarem programas para padronizar o
comportamento dos agentes, criando índices ou selos para diferenciar aqueles
que estão de acordo com as normas internacionais daqueles que violam esses
padrões. Um exemplo disso é o “child-labor free label”, criado pela Rugmark
Foundation para indicar as indústrias do Sul da Ásia que estão livres da utilização
de mão-de-obra infantil na produção de tapetes17. Muitas vezes, os governos
restringem a entrada de produtos que não obedecem às normas determinadas
pela GTP.
Um exemplo de iniciativa da GTP é a Global Reporting Initiative (GRI),
criada em 1997 com o objetivo de padronizar os relatórios que declaram a
performance das corporações na área social, econômica e de meio ambiente. A
existência de diferentes métodos de publicação desses relatórios impedia que o
desempenho das empresas pudesse ser comparado e avaliado pelos governos,
pela população e por elas próprias. Esses relatórios padronizados (framework
reporting) estabelecem princípios e índices que permitem mensurar a
performance das organizações, próximo ao que fazem a Standard & Poor’s e a
JP Morgan18. Atualmente, mais de 1,5 mil empresas já aderiram voluntariamente
às diretrizes da GRI19.
Todavia, Dingwerth (2008) descreve que muitos países do Sul se colocam
contra os termos determinados pela governança internacional privada, assim
como os da GRI, argumentando que esse sistema os afeta em maior grau do
que aos países do Norte. É verdade que as empresas originárias do Sul geralmente
não dispõem de estrutura ou recursos financeiros para cumprir os padrões
determinados pela GTP. Por essa razão, os países do Sul argumentam que a
GTP é uma tentativa de dificultar a entrada de seus produtos nos mercados do
Norte e, por isso, se opõem à adesão desses termos no regulamento do comércio
internacional.
154
16
<http://www.globalcompact.org>.
17
Fundação Rugmark: <http://www.rugmark.org>.
18
Instituições que calculam o credit rating (avaliações de risco de crédito) e o risco-país, respectivamente.
19
<http://www.globalreporting.org>.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Apesar das discussões, através da análise dos códigos criados pela governança
intergovernamental e pela governança transnacional privada, pode ser constatado
que, apesar de partirem de fontes distintas, as normas compartilham os mesmos
objetivos básicos. DeGeorge (2000) faz um resumo bastante claro desses
objetivos. Ele indica que, em primeiro lugar, os códigos defendem o princípio
de não causar malefícios intencionalmente e, principalmente, o de levar mais
benefícios do que malefícios ao país de destino. As empresas transnacionais devem
proporcionar benefícios em suas operações, caso contrário são tidas
legitimamente como exploradoras. A relação entre o país em questão e a empresa
transnacional deve ser mutuamente benéfica, sendo que esses benefícios devem
chegar à população de um modo geral, e não somente à elite ou ao governo.
Em segundo lugar, o princípio de estender os valores éticos e respeitar a cultura
local, que não é estática, sofrendo constantes modificações, muitas das quais
resultantes da atuação das transnacionais. Assim, as empresas devem considerar
seu impacto no local e trabalhar com a cultura e não contra ela. Em terceiro
lugar, respeito aos direitos dos trabalhadores e de todos aqueles que são afetados
por ações ou políticas das empresas. E, por último, o princípio de que as
transnacionais devem pagar impostos e cooperar com o governo local, em vez
de evitar ou manipular suas obrigações na região (DEGEORGE, 2000: 51).
Conclusões
O estudo sobre a atuação das corporações transnacionais nos países em
desenvolvimento mostrou, inicialmente, que a maioria dos países pobres optou
por se integrar ao processo de globalização na busca do desenvolvimento. Nessa
perspectiva foram viabilizadas e/ou implementadas políticas de viés liberal para
que o ambiente se tornasse mais atrativo aos investimentos estrangeiros. A partir
disso, foi visto que o poder das corporações transnacionais aumentou no decorrer
do tempo, uma vez que os países passaram a disputar a atração dos IEDs,
considerando ser sua presença capaz de impulsionar o desenvolvimento. As CTNs
ganharam a capacidade de barganhar entre os países, forçando-os a oferecer
situações cada vez mais vantajosas às suas operações. Ao mesmo tempo, o poder
do Estado ficou comprometido, já que as políticas públicas passaram a ter de se
adequar às demandas do mercado.
Ao analisar o movimento de expansão das CTNs, vimos que as corporações
procuram se dirigir para os ambientes considerados mais estáveis. As empresas
são avessas ao risco, e só operam em economias instáveis quando são oferecidas
grandes vantagens nos custos de mão-de-obra ou nos recursos para a produção.
Outro ponto importante é o de que as CTNs apresentam características que as
diferenciam das empresas comuns. A facilidade em se deslocar permite que elas
evitem os ambientes mais hostis, pois, não estando “presas à localidade”, não
criam, consequentemente, vínculos locais.
Apesar de trazerem recursos financeiros, as empresas não são necessariamente
fatores impulsionadores do desenvolvimento. Há uma diferença entre crescimento
Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento, Rafaella Cordeiro Antoniazzi, p. 136-158
155
econômico e desenvolvimento. É preciso haver crescimento econômico para
que ocorra o desenvolvimento, mas esse último não é proporcionado
necessariamente em função do primeiro.
Os casos descritos neste artigo, como o da Royal Dutch Shell, sugerem que
interesses divergentes são capazes de gerar conflitos entre as CTNs e a
comunidade. Frente a isso, a atuação dos governos é determinante, agindo como
árbitro na solução dos problemas ou simplesmente tomando partido do lado
mais forte. Algumas vezes, os interesses da corporação são protegidos pelo poder
público, desequilibrando o balanço de forças em benefício da empresa. No
sentido oposto, há casos em que o governo responsabilizou as transnacionais por
provocar o subdesenvolvimento através de ações predatórias.
Os escândalos envolvendo as CTNs levaram os organismos internacionais e
governos nacionais a se manifestarem contra as violações à Declaração Universal
de Direitos Humanos e aos princípios éticos elementares. Surgiram, então, regras
e códigos para guiar o comportamento das empresas em outros países e assim
reduzir a incidência de casos como os exemplificados neste trabalho. Mas a
determinação dessas regras não é em si mesma uma solução. Os códigos de
conduta seguem valores éticos e culturais daqueles que os criaram; assim, há
relevante diferença entre as regras de governança estabelecidas por organizações
intergovernamentais em comparação com aquelas criadas pelas instituições
privadas. No primeiro caso, órgãos como a ONU, onde os países têm igual
representatividade independentemente de sua condição econômica e social,
guiam a atuação dos agentes econômicos na direção dos objetivos dos governos,
sem priorizar interesses particulares. Enquanto isso, as instituições da iniciativa
privada formulam normas baseadas nos princípios daqueles que estão ali
representados, obedecendo tão somente a seus interesses específicos.
Com relação a este assunto, é necessário salientar que a adesão aos códigos
que conduzem o desempenho e a responsabilidade social das empresas ainda é
voluntária. Diante do aumento da pressão dos governos, comunidades,
consumidores e organizações internacionais no sentido de exigir accountability
e um comportamento socialmente responsável, as empresas acabam se adequando
àquelas normas de conduta, buscando preservar sua reputação. Com isso, muitas
das grandes corporações decidem criar suas próprias regras de governança,
procurando minimizar eventuais problemas que prejudiquem suas operações. A
adesão aos códigos de conduta depende, então, exclusivamente da preocupação
das empresas em manter sua imagem e/ou seu comportamento altruísta.
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158
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Uma análise da economia
r ussa na era Putin
(1999-2008)
Daniela Alvarenga Cunha*
Resumo: Este artigo analisa a trajetória da economia russa, desde o
fim da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. Destaque é dado
ao desenvolvimento do capitalismo na era Putin, tendo em vista a
nova fase da globalização. No caso da Rússia, pode-se dizer que a
transição para uma economia de mercado não resultou das contradições
do modo de produção soviético, mas significou uma transformação
no modo de apropriação dos excedentes, antes pelo Estado e, a partir
de então, principalmente pelos chamados “oligarcas”.
Palavras-chave: Economia russa, governo Putin, globalização, declínio
da União Soviética, Guerra Fria.
A decadência da URSS
O intuito deste artigo é analisar como a Rússia se desenvolveu durante o
governo Putin, e de que modo o país se insere no sistema capitalista no início do
século XXI. Para tanto, é necessário retornar à segunda metade do século XX,
quando o mundo se dividiu em duas zonas de influência.
Após a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, os líderes dos países
vencedores se encontraram em uma série de conferências, a fim de redefinir o
mundo pós-guerra. O encontro mais relevante foi o de Potsdam, em julho de
1945, no qual os Aliados dividiram a Alemanha em quatro zonas, que seriam
controladas por França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética. É
preciso assinalar, contudo, que do conflito emergiram, de fato, duas
superpotências: de um lado os EUA e, de outro, a URSS. O papel do primeiro
seria o de representante do capitalismo e dos valores ocidentais. Já à URSS
caberia defender o ideal socialista. A emergência de um mundo bipolar deu
início a uma nova configuração geopolítica mundial, antes pautada pelo jogo
multipolar e pela grande força britânica. Desse modo, o período que se estende
de 1945 até aproximadamente 1990 é chamado “Guerra Fria”.
Com a definição de zonas de influência na Europa, Moscou rapidamente
estabeleceu sua primazia sobre os Estados do leste do continente, com o objetivo
de evitar a recorrência de invasões territoriais similares às efetuadas pela Alemanha
*
Daniela Alvarenga Cunha é economista, formada pela Faculdade de Economia da Fundação Armando
Álvares Penteado (FAAP) em 2008. Este artigo tem como base sua monografia de conclusão de curso,
desenvolvida sob a orientação da Prof. Dra. Marina Gusmão de Mendonça, e selecionada para publicação
na forma de resumo. E-mail: <[email protected]>.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
159
durante a guerra. Quanto à divisão das zonas de influência no restante do mundo,
reinava o caos, excetuando-se o Japão. Em grande medida, isto se deveu ao
início da desagregação dos impérios coloniais europeus, cuja área de maior disputa
era a Ásia. De qualquer modo, a grande maioria dos países periféricos alinhou-se
aos EUA1.
Do lado econômico, julho de 1947 testemunhou o lançamento do Plano
Marshall, capitaneado pelos EUA, com o intuito de recuperar os países afetados
pela guerra, inclusive a União Soviética. Porém, os soviéticos recusaram o auxílio,
pois consideravam ser esta uma maneira de os EUA exercerem domínio político
e econômico sobre o país. Neste mesmo ano, os EUA lançaram também a
Doutrina Truman, destinada a prover assistência às populações que se sentissem
vítimas das tentativas de subjugação por parte de minorias armadas ou por pressões
externas2.
Em 1948, EUA, França e Grã-Bretanha decidiram unir suas três zonas de
ocupação na Alemanha. Em oposição, Stalin estabeleceu o Bloqueio de Berlim,
cortando todo acesso por trem e por rodovia desde o oeste. Truman ordenou
então que uma operação aérea enviasse mantimentos e outros produtos a Berlim.
Essa operação durou até maio de 1949, quando a URSS levantou o bloqueio.
As forças ocidentais imediatamente deixaram a região e aprovaram a criação da
República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental). A resposta da URSS
foi a criação da República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental).
Os temores de uma guerra suscitados pelo bloqueio de Berlim motivaram
dez países da Europa Ocidental, além dos EUA e do Canadá, a estabelecer uma
aliança militar para a segurança. Assim, em abril de 1949 foi criada a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (Otan), com a declaração de que um ataque a
qualquer membro da aliança seria visto como um ataque contra todos. Em 1955,
veio a contrapartida soviética à Otan, o Pacto de Varsóvia.
No início da década de 1960, a Guerra Fria, abalada, de um lado, pela
Guerra da Coreia (1950-53) e, de outro, pela morte de Stalin (1953), deu sinais
de arrefecimento. O primeiro afrouxamento ocorreu com a chegada ao poder
de Nikita Kruschev (1958-64), o que deu início a uma fase caracterizada por
meras ameaças e provocações mútuas, resultando em relativa estabilidade do
sistema internacional, cuja última fronteira foi definida em 1961, com a
construção do Muro de Berlim, que separava a cidade em duas partes. O muro
foi originalmente construído com o intuito de evitar a evasão de cérebros do
Leste para o Oeste, mas acabou por simbolizar a divisão do mundo em duas
esferas de influência muito bem delimitadas.
Em 1973, o mundo entrou numa grande crise econômica, provocada pelo
aumento dos preços do petróleo, cujo clímax ocorreria no início da década de
1980. Durante essa fase, conhecida como “Segunda Guerra Fria” (1979-1985),
1
HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 2 ed., 1995, p. 230; SEGRILLO, A. O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 135.
2
160
HOBSBAWM, 1995, op.cit., p. 239.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
as relações EUA-URSS sofreram leve deterioração. Na verdade, o equilíbrio
das duas superpotências foi alterado por alguns acontecimentos importantes,
como o fracasso americano na Guerra do Vietnã (1965-1975) e o consequente
isolamento em relação à Europa, e que seria reforçado na Guerra do Yom Kippur
(1973), entre Israel (tendo os americanos a seu lado) e Egito e Síria (com
armamentos fornecidos pelos soviéticos).
A URSS e seus aliados foram afetados negativamente pela crise do
capitalismo na década de 1970. Inicialmente, a crise do petróleo de 1973 trouxe
consequências positivas para a URSS – um dos principais produtores mundiais –
quando o preço do produto aumentou de US$ 2,53 o barril, em 1973, para
cerca de US$ 40, no começo da década de 1980. Os EUA, por sua vez, sofreram
com o embargo imposto pelos países árabes à venda do petróleo, que durou de
outubro de 1973 até março de 1974, devastando a economia americana. As
divisas obtidas com a venda do petróleo e de outras matérias-primas permitiram
à URSS importar cereais e bens de consumo3.
A Segunda Guerra Fria, contudo, seria agravada pela chamada terceira onda
da revolução mundial (com regimes na Ásia, na África e nas Américas atraídos
para o lado soviético), e que provocou sérias derrotas para os americanos. A
competição entre as duas superpotências foi então transferida para o Terceiro
Mundo4. Um dos conflitos mais importantes desse período foi a Guerra do
Afeganistão (1979-1986), entre guerrilhas afegãs muçulmanas anti-URSS
(mujahidin) e as forças governamentais, apoiadas pelos soviéticos. A guerra
teve origem no golpe de 1978, que depôs o presidente afegão, Sardar Khan, o
qual, por sua vez, havia chegado ao poder após ter derrubado o rei em 1973. O
presidente foi assassinado e um governo pró-comunista, sob o comando de Noor
Mohammed Taraki, foi estabelecido. Em 1979, outro golpe levou Hafizullah
Amin ao poder, provocando a invasão soviética em dezembro, e a posse de
Babrak Karmal como presidente. Os mujahidin, por sua vez, tinham o apoio
dos EUA, da China e da Arábia Saudita, por intermédio do Paquistão e do Irã.
Apesar de a URSS possuir armamentos superiores, além de domínio aéreo, os
rebeldes conseguiam enfrentá-los. Zonas de influência foram estabelecidas, com
as forças soviéticas e governamentais controlando as áreas urbanas, enquanto a
guerrilha tinha o poder nas zonas rurais e nas montanhas. Conforme a guerra se
prolongava, os rebeldes refinaram sua organização e suas táticas e, com a ajuda
de armamentos fornecidos pelos EUA, iniciaram a neutralização das vantagens
soviéticas. Em 1986, Kamal renunciou, e Mohammad Najibullah tornou-se chefe
da liderança coletiva que se estabeleceu. Em fevereiro de 1988, o presidente
Mikhail Gorbachev anunciou a retirada das tropas soviéticas, concluída um ano
depois.
Outro conflito importante iniciou-se em 1982, na Nicarágua, onde grupos
paramilitares apoiados pelos EUA (os “contras”) começaram uma guerra civil
para lutar contra o regime sandinista que, em 1979, havia derrubado a ditadura
3
REIS FILHO apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 156.
4
HOBSBAWM, 1995, op. cit., p. 243.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
161
Somoza e estabelecido um governo anti-imperialista, com ligações militares
com a URSS e Cuba. O conflito armado durou até 1988 e, apesar dos altos
investimentos feitos pelos EUA para derrubar o regime sandinista, este se estendeu
até 1990, quando foi derrotado em eleições.
É preciso assinalar que, apesar do grande poderio militar e da elevada escala
em que produzia armamentos, a URSS era infinitamente inferior ao Ocidente
em termos econômicos e tecnológicos5. Na verdade, as duas superpotências
distorceram enormemente suas economias durante a corrida armamentista,
endividando-se. Porém, enquanto a dívida americana era absorvida pelo restante
do mundo capitalista, não havia ninguém para absorver a dívida soviética. Assim,
foi a combinação dos problemas econômicos internos da URSS com o avanço
da economia capitalista que solaparam o socialismo naquele país. A base para
essa destruição começou na década de 1960, com a interação da economia
soviética com o resto do mundo, tornando-a vulnerável e fazendo com que seus
governantes postergassem indefinidamente a tão necessária reforma do sistema
econômico6.
Outro aspecto extremamente relevante para se compreender o processo de
decadência da URSS diz respeito ao atraso tecnológico. A esse propósito é preciso
considerar que o fordismo foi o modelo de produção que vigorou na maior
parte dos países centrais até o pós-guerra. É uma concepção da produção
desenvolvida na época da Segunda Revolução Industrial, entre a segunda metade
do século XIX e o início do século XX, e suas principais características são a
especialização, a rigidez da produção, economias de escala e fluxos verticais de
informação.
Porém, nos anos 50, outro sistema começou a ser construído: o toyotismo,
que se caracteriza por flexibilidade na produção, grande variedade de artigos
produzidos em pequenas séries, desespecialização, tempos partilhados, controle
de qualidade simultâneo à produção e fluxos horizontais de informação e de
interação. As três principais características desse modelo às quais a URSS teve
de se adaptar foram flexibilidade, informação e qualidade7. De fato, quando da
Revolução de 1917, a URSS estava em um patamar de desenvolvimento inferior
ao dos países capitalistas. Desse modo, ela teria de primeiro alcançá-los para,
depois, superá-los. Assim, foram levados à URSS trabalhadores ocidentais já
acostumados com o trabalho nos moldes tayloristas: com uma maior
especialização, eliminação de movimentos supérfluos e elevado controle8.
A tentativa de copiar o modelo fordista veio quando da implementação
dos planos quinquenais, a partir de 1928. Além desses planos, outra característica
básica do modelo soviético era a utilização completa dos recursos humanos e
naturais disponíveis. Assinale-se que, naquele momento, as tecnologias ocidentais
eram diretamente absorvidas por meio de contratos de assistência técnica, pelos
162
5
Idem, p. 244.
6
Idem, ibidem.
7
SEGRILLO, 2000, op. cit., p. 91-99.
8
Idem, p. 87.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
quais trabalhadores soviéticos eram treinados pelo fornecedor da tecnologia para
poderem exercer determinada função exatamente como se ela estivesse sendo
exercida na matriz9.
Quantitativamente, os soviéticos obtiveram bons resultados, com altas taxas
de crescimento nas décadas de 1930, 1940 e 1950, o que se pode verificar na
tabela a seguir:
Tabela 1
Fonte: SEGRILLO (2000, p. 247)
Nota-se que as taxas de crescimento do Produto Material Líquido (medida
soviética similar à do Produto Nacional Bruto, da ONU, mas que exclui os
serviços) foram atípicas durante a Segunda Guerra Mundial, alternando valores
positivos e negativos. Essas taxas eram altas devido à constante incorporação de
novos contingentes de trabalhadores e aos recursos investidos em novos meios
de produção e insumos. Como se vê, a inovação técnica não era essencial para o
modelo10.
Nos anos 60, porém, o crescimento arrefeceu, com a maior expansão da
Revolução Científico-Técnica (RCT) e a incapacidade do fordismo de se adequar
às novas exigências que ela trazia consigo. Assim, um novo paradigma se impôs,
ao qual a URSS não se adaptou e que está no cerne da necessidade da perestroika
nos anos 80. Com efeito, a defasagem econômica e tecnológica da URSS só
ficou evidente a partir do período Brejnev (1965-1982), que ficou conhecido
como “era da estagnação” (zastoi). A característica mais marcante do período
foi a falta de um programa de ação por parte do governo central para tentar
reverter o desaquecimento econômico, apesar de todas as taxas médias de
crescimento estarem diminuindo.
Além do atraso tecnológico, outro fator acentuaria a decadência da URSS:
a crise do sistema capitalista, que enfrentou um grave problema de superprodução
entre 1974 e 1975, resultante dos aumentos de produtividade proporcionados
pela RCT e pela queda das taxas médias de lucro. Segundo Mandel, “a recessão
generalizada expressa, portanto, de modo sintético, o esgotamento da ‘onda
longa expansiva’ (que começou nos Estados Unidos em 1940, na Europa
Ocidental e no Japão em 1948, e durou até o final dos anos 60)”11. A crise do
9
Idem, p. 88.
RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 165.
11
MANDEL, E. A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista. Campinas: Ensaio/Editora
Universidade de Campinas, 1990, p. 13.
10
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
163
capitalismo foi ainda afetada pelo segundo choque do petróleo, em 1979, que
contribuiu para acentuar as pressões inflacionárias. Inicialmente, o problema
não atingiu a URSS, mas esta acabou por sofrer seus efeitos no médio prazo.
De fato, a URSS era grande exportadora de petróleo, produto cuja cotação
elevou-se muito em 1973. Assim, o país foi inundado por divisas provenientes
das exportações petrolíferas, e o fluxo comercial com o Ocidente cresceu, como
demonstrado na Tabela 2.
Tabela 2
Fonte: MANDEL (1990, p. 122)
164
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
É interessante notar o aumento percentual da participação dos Estados
Unidos no comércio com a URSS, passando de uma diminuição de 17%, em
1974/75, para crescimento de 48%, em 1975/76. Se, por um lado, as exportações
de commodities eram fonte de receita, por outro o aumento da integração
econômica acabou por deixar a URSS mais vulnerável a acontecimentos externos
e a mercadorias mais baratas vindas de fora.
Ressalte-se que, desde a década de 70, o modelo soviético de produção
encontrava dificuldades em manter o ritmo de utilização de mão-de-obra e de
recursos naturais das décadas anteriores, contribuindo para a desaceleração
econômica12. Os motivos para a diminuição do número de trabalhadores estão
ligados à redução da taxa de crescimento populacional decorrente da urbanização,
dos avanços no saneamento básico e da educação, e ao fato de que os filhos dos
nascidos durante a guerra estavam atingindo idade para trabalhar. Como a
natalidade havia diminuído durante a guerra, existia um contingente menor de
pessoas para trabalhar. Também na década de 80, o número de pessoas em idade
de se aposentar aumentou13.
Apesar de produzir volumes imensos, a partir da década de 70 a URSS
passaria a acumular “um sério atraso tecnológico nos setores de ponta da
economia mundial, como a microeletrônica, a robótica, a informática, as
telecomunicações e inclusive em tecnologias com aplicações militares”14. O
país havia se tornado altamente dependente de tecnologia importada, pondo
também em xeque seus esforços no campo de P&D. A Tabela 3 mostra a evolução
do crescimento soviético dos anos de 1960 até 1985, com detalhamento das
alocações de recursos. Saliente-se que os dados foram obtidos por pesquisadores
ocidentais e pelo russo Girsh Khanin.
12
RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 167-168.
13
AGANBEGUIAN apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 168-169.
14
CASTELLS apud RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 171.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
165
Tabela 3
Fonte: Fischer (1992, Tabela 5, p. 13)
* Inclui consumo coletivo, primeiramente saúde e educação.
Produção Total do Fator – é calculada assumindo-se uma função de produção de
Cobb-Douglas com peso de 0,62 para horas trabalhadas, 0,33 para capital e 0,05
para terras aráveis.
Verifica-se que as taxas de crescimento do PNB começaram a recuar nos
anos de 1970, coincidindo com a crise do capitalismo. Se os dados de Khanin
estiverem corretos, a situação mostra-se ainda pior, com taxas negativas de
crescimento já na década de 1960. Fica evidente também o declínio de todos os
indicadores durante o período. A população cresceu menos de 1%, limitando o
número de pessoas que entravam no mercado de trabalho. Em relação à
composição do PNB, a preços correntes, temos leve queda ou estabilização em
todos os itens, excetuando-se os gastos com defesa, que passaram de 12% do
PNB, no período 1960-1970, para 16%, entre 1975-1980.
166
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Outra explicação para o recuo no crescimento soviético a partir dos anos
70 é que seu modelo produtivo simplesmente havia se esgotado. Enquanto as
economias capitalistas centrais tentavam encontrar maneiras de produzir de uma
forma mais enxuta, a URSS encontrava-se atravancada por uma máquina
burocrática que nada fazia para se adequar às exigências internas ou externas. O
trabalho e o capital tinham baixos rendimentos, não havia inovação e o
desperdício era altíssimo, assim como os níveis de estoque. A combinação desses
fatores fez com que os produtos industrializados soviéticos não mais apresentassem
competitividade no mercado externo. Assim, não podendo exportar artigos
industriais, a URSS viu-se obrigada a importar equipamentos e bens de consumo.
E, na tentativa de reverter o jogo, começou a exportar cada vez mais “commodities,
como petróleo, gás natural, metais e outras matérias-primas, que, na década de
80, chegavam a representar 90% das exportações soviéticas para as nações
capitalistas”15.
Por fim, para se compreender a questão da decadência da URSS, é preciso
considerar o problema da globalização, cuja imprecisão do termo comporta
muitas definições. Alguns a veem como um processo eminentemente liderado
pelas grandes corporações – caso de Michael Porter16 –, enquanto outros a
conceituam como um processo financeiro, caso de François Chesnais17. Outros
ainda enxergam-na como resultado de um processo histórico que se iniciou com
as Grandes Navegações no século XV, ou seja, concomitantemente ao início do
desenvolvimento do capitalismo comercial.
Um dos fatores que fizeram com que tal mudança ocorresse foi a eleição
do republicano Ronald Reagan à presidência dos EUA, e da conservadora
Margaret Thatcher para o cargo de primeira-ministra britânica. Com a ascensão
de ambos, o que se viu foi a emergência do neoliberalismo em substituição ao
keynesianismo então em voga. Sendo assim, a quebra de barreiras virtuais e
físicas foi estimulada para que o capital pudesse fluir livremente entre os países18.
Porém, a propagada queda de barreiras e a liberalização dos mercados não
significou o fim do Estado-nação nem a eliminação da identidade nacional,
como muitos anunciavam. Na verdade, chegou até mesmo a fortalecê-los; o
que mudou foi o grau de integração entre as nações e a maneira como interagiam.
A mudança do padrão de acumulação, passando do capital produtivo e das
empresas transnacionais para o capital financeiro portador de juros, acabou por
modificar profundamente as relações trabalhistas. Iniciou-se, então, a fase das
terceirizações, do corte de postos para diminuição de custos, de consultorias e
da supressão de benefícios. O Estado passou a ser o defensor do livre mercado,
15
RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 173.
16
PORTER, M. A Vantagem Competitiva das Nações. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
17
CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
18
WALLERSTEIN, I. 2008: a globalização neoliberal passou à história. Disponível em: <http://
www.binghamton.edu/fbc/226pr.htm>. Acesso em: 13 ago 2008.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
167
incentivando as privatizações, as fusões e as aquisições, não cedendo às
reivindicações das centrais de trabalhadores, que se viam cada vez mais
desamparados19. Além disso, nessa época, outra grande integração começaria a
ocorrer: a da informação. O mundo iniciou então uma revolução tecnológica
que levou, de uma maneira ou de outra, à sua interconexão20. A URSS se
encontrava em situação oposta, tendo o Estado como centralizador político e
econômico, enquanto a nova fase do capitalismo preconizava sua queda. Além
do mais, o controle estatal sobre a informação e a tecnologia impedia que o país
e seus habitantes se inserissem nessa nova configuração mundial21. Apesar do
arrefecimento da repressão após a morte de Stálin, em 1953, o regime manteve
sua natureza autoritária até o início da década de 80, dificultando a inserção da
população num mundo cada vez mais conectado. A URSS encontrava-se
irremediavelmente atrasada em relação às economias capitalistas centrais, no
que tange à produção de microprocessadores e chips, apesar da alta qualificação
dos cientistas soviéticos22.
A era Gorbachev (1985-1991) e as reformas na URSS
Com a morte de Konstantin Chernenko, então Secretário-Geral do PCUS,
em 1985, abriu-se caminho para a eleição de Mikhail Gorbachev ao posto, em
11 de março daquele ano. O país herdado por Gorbachev se encontrava em
condições extremamente difíceis. A comunidade internacional, por sua vez, só
se deu conta da gravidade da situação quando, em outubro de 1985, foram
lançados dois programas de reformas: 1) a perestroika, que contemplaria a
economia; e 2) a glasnost, que se ocuparia da modernização política. Esses
programas eram a materialização do que já havia sido constatado pela alta cúpula
soviética: mudanças urgentes eram necessárias. Gorbachev foi o escolhido para
torná-las realidade, claramente apoiado por setores da burocracia e pela maioria
dos dirigentes do PCUS.
Perestroika significa reconstrução, reestruturação, e é a isso que se propunha
o programa de reformas econômicas. Porém, ele carecia de consistência. Não se
sabia exatamente a intenção do governo ao lançá-lo, apenas que se pretendia
ultrapassar um modelo extensivo de produção, adotando-se outro, intensivo,
com a introdução de técnicas mais modernas. O que também não estava claro
era o destino final que teriam essas reformas nos últimos anos da década de 80.
Uma volta à economia de mercado não era aventada inicialmente. Porém, ao
analisar as medidas que foram adotadas, vê-se que a tentativa de dinamizar a
19
MENDONÇA, M.G. Impasses e desafios do processo contemporâneo de globalização. Anais do
XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. Anpuh/SP – Unesp/ Assis, 24-28 de
julho de 2006, p. 14. Disponível em:
<http://www.anpuhsp.org.br/downloads/CD%20XVIII/pdf/ORDEM%20ALFAB%C9TICA/
Marina%20Gusm%E3o%20de%20Mendon%E7a.pdf >. Acesso em: 13 ago 2008.
20
GREIDER, W. O mundo na corda bamba: como entender o crash global. São Paulo: Geração Editorial,
1998, p. 16; PIRES, H. F. “Ethos” e mitos do pensamento único globaltotalitário. Terra Livre. São
Paulo, n. 16, p. 153-168, 1º semestre/2001. Disponível em: <http://www.charlespennaforte.pro.br/
Hindenburgo%20Pires.pdf>. Acesso em: 14 abr 2008, p. 160.
168
21
GIDDENS apud PIRES, 2001, op. cit., p. 165.
22
RODRIGUES, 2006, op. cit., p.181.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
economia seria feita com “o recuo na planificação centralizada, o afrouxamento
nos controles sobre as empresas e a reintrodução gradual de mecanismos de
mercado na economia soviética”23.
Na primeira fase, entre 1985 e 1986, foi feita uma reforma burocrática,
principalmente nos sistemas de gestão e controle, com o intuito de melhorar os
problemas mais aparentes, como a baixa produtividade, o alcoolismo e a
indisciplina. Porém, essa tentativa logo se revelou inócua para fazer funcionar as
estruturas da nomenklatura24, que resistia fortemente. Algo mais brusco deveria
ser feito. Assim, a partir da segunda metade de 1986, as reformas econômicas
seriam acompanhadas por um conjunto de mudanças políticas, denominadas
glasnost, pré-condição para a efetivação completa da perestroika.
Quanto à glasnost, pode ser traduzida como transparência, visibilidade. Dessa
maneira, o programa de mudanças políticas – apoiado pela ala reformista do
governo – reconhecia a necessidade de transparência, ao mesmo tempo em que
se propunha alterar o sistema como um todo, democratizando-o. Em linhas
gerais, a glasnost deveria ser uma abertura política controlada, que atuaria
“estimulando” os setores mais importantes da sociedade, buscando, assim,
aumentar a produtividade dos fatores de produção e a inovação. A necessidade
de manter o controle, porém, acabou rechaçada pela população, que percebeu
que seria possível transgredir os limites dados pelo governo25. Outro fator limitador
do alcance das reformas era a manutenção do PCUS como partido único, fato
que ia de encontro à tentativa de democratização.
As reformas pouco avançaram entre 1985 e 1986, explicitando as desavenças
entre os reformadores radicais e os conservadores. Todavia, a explosão do reator
da usina nuclear de Chernobyl, em abril de 1986, serviu para mostrar ao mundo
o grau de atraso tecnológico e de descaso em que vivia a URSS. A partir daí as
reformas econômicas foram aceleradas. Em 1.º de maio de 1987, entrou em
vigor a resolução que regulamentava o trabalho individual privado nas áreas de
serviço e agricultura, legalizando a situação de milhares de pessoas, entre artesãos,
pedreiros, médicos privados e outros, acabando, também, por dinamizar a
economia. Obviamente, o mercado negro permaneceu intacto. Devido à grande
disparidade entre a indústria pesada, de um lado, e a de bens de consumo, agrícolas
e de serviços, de outro, surgiram verdadeiras máfias para preencher essas lacunas.
Enquanto a glasnost foi muito bem aceita e acatada, a perestroika não
conseguiu produzir os resultados econômicos desejados, visto que sua execução
provou-se extremamente difícil. “A renda nacional cresceu levemente entre 1986
e 1988, entre 2% e 3%, o que era insuficiente para ser notada pela população.
Isso, combinado com a queda do preço do petróleo e com uma safra ruim de
cereais, piorou ainda mais a percepção pública”26. Os dados da tabela a seguir
corroboram a tese de que a perestroika fracassou, no que tange ao desempenho
econômico soviético, apesar de ter contribuído para a abertura do sistema. Pela
23
RODRIGUES, 2006, op. cit., p.219.
24
VOSLENSKII apud SEGRILLO, 2000, op. cit., p. 185.
25
RODRIGUES, 2006, op. cit., p.221.
26
Idem, p.227.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
169
análise dos dados, vemos que os indicadores macroeconômicos deterioraram-se
gradualmente, conforme as reformas iam se aprofundando. O crescimento do
PNB, por exemplo, atingiu seu auge em 1986, com uma alta de 4,1%, caindo
lentamente, até tornar-se negativo em 13%, em 1991. Também vemos sinais de
que a economia soviética entrou em uma espiral de preços-salários, uma vez
que os sucessivos aumentos dos salários nominais não foram capazes de elevar o
poder de compra da população, pois os ganhos reais eram corroídos pela inflação.
Tabela 4
Fonte: Fischer (1992, Tabela 7, p. 19)
Assim, em 1989 estava claro que o aparelho produtivo havia se desagregado.
Nem mesmo os reformistas radicais sabiam como se daria a transição de uma
economia centralizada para um modelo com mecanismos de mercado ampliados.
A oposição dos conservadores e de setores ligados a eles aumentava27. Por outro
lado, a popularidade de Gorbachev caiu drasticamente e a população passou a
manifestar cada vez mais sua insatisfação. Os trabalhadores faziam paralisações,
que afetavam seriamente a produção e a produtividade. Já em maio de 1990 era
irreversível o colapso econômico, que acabou por preparar a última crise política
do sistema soviético.
A liberalização veio como uma tentativa de derrotar os conservadores. A
censura diminuiu e os meios de comunicação de massa foram liberados, assim
como os dissidentes. Denúncias sobre os excessos do regime começaram a surgir,
e a repulsa à corrupção generalizada na nomenklatura foi um de seus maiores
alvos. Assim, um esqueleto do sistema constitucional, criado durante a glasnost,
27
170
Idem, p. 229.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
chegou a ser instalado. E, durante as eleições de 1988-89 para o Congresso de
Deputados do Povo, Gorbachev conseguiu acumular poderes para governar por
decreto. Todavia, a insatisfação era geral e “a velha URSS se precipitava no
abismo”28.
Em 1990, deu-se o fim do unipartidarismo e a criação, pelo Soviete
Supremo, do cargo de presidente da URSS, cujo primeiro ocupante foi
Gorbachev (os subsequentes seriam eleitos). Boris Yeltsin, por sua vez, foi eleito
presidente do Soviete Supremo em maio do mesmo ano, dando início à oposição
entre a República Russa e o governo central da URSS. Com o caos em que a
URSS se encontrava na primeira metade de 1990, os reformistas radicais – ou
restauracionistas –, que exigiam uma volta ao capitalismo, se tornaram mais
ofensivos politicamente. Isso significava uma mudança em seu discurso inicial
por ocasião da instauração da perestroika, quando preconizavam ser ela uma
reforma do socialismo. Nem mesmo uma economia mista já lhes servia, dado o
estado das coisas29.
Em julho de 1990, realizou-se o XXVIII Congresso do Partido Comunista,
no qual, além dos apoiadores de Gorbachev, apareceram também outras linhas
políticas: a Unidade, que pregava uma volta à luta de classes; a Plataforma
Marxista, que preconizava a manutenção da burocracia e do elitismo no PCUS;
e a Plataforma Democrática, que queria que o PCUS se transformasse em um
partido social-democrata, em moldes ocidentais, e defendia uma volta ao
capitalismo30. A relevância do XXVIII Congresso se deve ao fato de ele marcar
o fortalecimento do poder pessoal de Gorbachev em detrimento da influência
do PCUS. Foi também nesse Congresso que Yeltsin anunciou que se retiraria do
partido.
Em outubro de 1990, a República Russa aprovou o Plano Shatalin, que
propunha uma transição para a economia de mercado em um prazo de 500
dias. Sua principal característica era a privatização em larga escala. Isso aumentou
ainda mais o atrito entre a Rússia e o governo central, que não aprovara o plano,
desejando uma mudança mais gradual. Não havia consenso na cúpula soviética
sobre como fazer as reformas, especialmente em relação à reconversão à
propriedade privada, à liberação dos preços e ao medo da volta do desemprego
em massa31.
Enquanto Gorbachev vivia seu “inferno astral”, o presidente eleito da
República Russa, em junho de 1991, Boris Yeltsin, não poderia estar passando
por um momento melhor. Seus discursos radicais contra o velho sistema e o
Partido Comunista, ao contrário dos de Gorbachev, entusiasmavam a população.
Esse desgaste entre as duas figuras veio a calhar para os reformistas, que puderam
acelerar o ritmo das mudanças. Outra agravante eram as variadas disputas travadas
28
Idem, p. 237.
29
Idem, p. 239.
30
SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 45.
31
RODRIGUES, 2006, op. cit., p. 245-46.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
171
entre as quinze repúblicas soviéticas, que “(...) se recusavam a colaborar como
antes. O sistema econômico integrado se desarticulava à medida que as diversas
regiões passavam a agir independentemente na cadeia produtiva (...)”32. O
governo central decidiu, então, negociar, propondo um novo Tratado da União,
dando amplos poderes às repúblicas, com apenas algumas funções essenciais
mantidas no centro. Porém, antes que o acordo pudesse ser assinado, Gorbachev
sofreria uma tentativa de golpe.
Com efeito, em 19 de agosto de 1991, enquanto Gorbachev estava de
férias na Crimeia, os meios de comunicação anunciaram que o vice-presidente
da URSS, Gennady Yanayev, assumiria o governo, uma vez que o presidente
estaria acometido por “problemas de saúde”. Entre os apoiadores do golpe
encontravam-se pessoas muito próximas a Gorbachev, como o primeiro-ministro,
Valentin Pavlov, e o chefe da KGB, Vladimir Kryuchkov. Os golpistas afirmavam
não ser contra as reformas econômicas básicas, mas contra a assinatura do Tratado
da União, que consideravam precipitada. Foram anunciadas algumas medidas
populares, como o combate ao crime, instituindo-se, por outro lado, a censura
aos meios de comunicação. Em Moscou, Yeltsin se postou no Parlamento russo,
juntamente com seus partidários, posicionando-se contra o golpe. A condenação
internacional não demorou a vir. Assim, em função da represália interna e externa,
do repúdio popular e da falta de objetivos claros, o golpe terminou em seu
terceiro dia.
Apesar de não ter se consumado, a tentativa de golpe serviu para enfraquecer
ainda mais Gorbachev, ao mesmo tempo em que fortaleceu Yeltsin. Gorbachev
se viu forçado a renunciar à sua posição de secretário-geral do PCUS e a assinar
decretos limitando o campo de ação do partido no governo. Várias das repúblicas
soviéticas declarar-se-iam independentes nos dias seguintes, tornando a situação
do presidente insustentável. Em 21 de dezembro, todas as repúblicas da URSS
(exlcuindo-se as bálticas e a Geórgia) criaram a Comunidade de Estados
Independentes – CEI (Sodruzhestvo Nezavisimikh Gosudarstv). Finalmente, em
25 de dezembro de 1991, Gorbachev renunciou, passando o cargo de presidente
da URSS a Boris Yeltsin. No dia 26, o fim da URSS foi oficialmente declarado,
com votação no Parlamento soviético.
A era Y
eltsin (1991-1999)
Yeltsin
No início de seu governo, Yeltsin representava mudança, contando com
apoio popular maciço. Ao deixar o cargo, a situação era inversa, uma vez que a
Rússia se afundava em corrupção, problemas sociais e colapso econômico. Ele
não teve alternativa senão renunciar em 1999.
De fato, com o fim da URSS, os gargalos econômicos, que antes eram
cobertos pela integração, apareceram. Houve inclusive interrupções na produção
de muitos artigos. Apesar de haver herdado uma situação difícil, Yeltsin seguiu
com sua ideia de inserção rápida do país na economia de mercado. Nesse
contexto, vale destacar o papel do ministro das finanças, Yegor Gaidar, principal
32
172
SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 53.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
mentor do programa econômico. Ferrenho defensor da “terapia de choque”,
acreditava ser essa a única saída para a Rússia. Assim, em janeiro de 1992 foram
liberados os preços, o comércio exterior e a flutuação do rublo. Ao mesmo tempo,
foi implementado um regime de austeridade, a fim de controlar a inflação: a
taxa de juro foi elevada a níveis altíssimos, com o objetivo de restringir o crédito
e a circulação monetária. Do lado fiscal, novos impostos foram criados, enquanto
subsídios e gastos com a seguridade social foram cortados. “O resultado é que
os russos viram um show de remarcação nas vitrines (...). Os preços subiram, em
média, de 3 a 5 vezes (alguns até 30 vezes). Para piorar, não houve uma melhora
imediata na oferta de produtos, como seria de se esperar numa situação de preços
de equilíbrio”33.
Obviamente, houve grande descontentamento, tanto do governo quanto
da população com a nova política. A alta dos preços dos bens essenciais acabou
por esvaziar as poupanças acumuladas durante a era soviética. Seu descontrole
também afetou as empresas, que não mais pagavam os impostos nem os
empregados. As empresas seguiam acostumadas aos subsídios automáticos
oferecidos na época soviética, o que contribuía para postergar sua adaptação à
economia de mercado. No início das reformas do governo Yeltsin, esses subsídios
permaneceram, fruto das relações entre membros do governo e diretores das
empresas. Além do mais, a falta de um sistema tributário claro e compreensível
tornava a fiscalização praticamente impossível. Isso só ajudava a aumentar o
déficit orçamentário. O Banco Central tampouco ajudava: indo de encontro ao
que pregava a terapia de choque, a instituição aumentou a oferta de moeda para
atender à demanda dos gerentes das empresas, apesar de a inflação estar na casa
dos três dígitos.
No que tange ao programa de privatização (Privatizatsiya), este era
organizado pelo Comitê Russo Estatal para a Administração da Propriedade
Estatal (GKI), e executado pelo Fundo de Propriedade Russo. O programa foi
composto por duas fases: (1) distribuição aos cidadãos de cupons no valor de 10
mil rublos (US$ 40, na época), que poderiam ser trocados por ações de empresas
estatais. Esta fase iniciou-se em agosto de 1992 e durou até julho de 1994; (2)
as ações ainda nas mãos do governo foram negociadas com um pequeno número
de oligarcas, em troca de empréstimos para cobrir o orçamento estatal.
Até junho de 1993, 60 mil das 200 mil empresas estatais russas tinham sido
vendidas, principalmente as pequenas, como restaurantes, lojas etc. Em 1993
acelerou-se o processo de venda das grandes empresas através da troca por ações
dos 144 milhões de cupons distribuídos à população. (...) Quando a etapa da
“privatização por cupons” foi encerrada em julho de 1994, 70% de todas as
empresas industriais da Rússia tinham sido privatizadas e mais de 40 milhões de
russos possuíam ações34.
O processo de privatização não ocorreu sem sobressaltos: a inflação corroía
o valor dos cupons, que eram revendidos pela população por valores irrisórios.
33
Idem, p. 74.
34
Idem, p. 77.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
173
Isso permitiu que fundos de investimento adquirissem participações majoritárias
nas empresas por custo baixíssimo. Adicionalmente, o poder outorgado à
administração das empresas no processo de privatização por cupons permitiu
que ocorressem “arranjos”, que terminavam por deixar as empresas nas mãos de
seus gerentes35. Muitas vezes, os coletivos de trabalhadores não conseguiam fazer
valer seus direitos nas desestatizações. Além disso, o país se tornou uma “terra
de ninguém”, com empresários sendo assassinados por conta de disputas
comerciais e tendo de pagar por proteção, que chegava até mesmo a ser
contabilizada nos balanços36. No que se refere à liberação dos preços, esta teve
efeitos nefastos na economia russa, em 1992. Como bem analisa Segrillo, “A
política de abertura do comércio avassalava o mercado interno com mercadorias
importadas, frequentemente de qualidade superior às russas, mas, em
compensação, as indústrias do país sofreriam uma queda brutal devido à
concorrência estrangeira, à queda do poder aquisitivo da população, etc. (...),
em 1992 o Produto Interno Bruto da Rússia decresceu em 19% (uma taxa
semelhante às destruições de grandes guerras!)”37.
Grande parte do Parlamento se voltou contra Yeltsin, tendo em vista a
maneira como foi conduzido o processo de liberalização de preços e as
privatizações. Em 1993, Yeltsin sobreviveu a uma tentativa de impeachment e a
um referendo sobre a confiança do povo em seu governo. O estopim da tentativa
de derrubá-lo foi sua aparição em rede nacional para informar à nação que
assumiria poderes especiais, de modo a permitir que as reformas fossem
implementadas38. Yeltsin declarou então que governaria por decreto, até que
um novo Parlamento fosse eleito e que um referendo sobre a nova Constituição
ocorresse. A Carta causou outra revolta da oposição, uma vez que propunha um
Poder Executivo bastante forte e um Parlamento fraco, apesar da relativa
independência mantida na Câmara Baixa, a Duma, eleita por voto popular direto.
E, com a renúncia de Gaidar ao cargo de vice-primeiro-ministro, Chernomyrdin
se fortaleceu ainda mais39.
Em dezembro de 1994, o prestígio de Yeltsin foi colocado à prova com a
invasão militar da Chechênia. A Rússia queria manter sua influência na república
separatista, situada no sul do país, em uma região rica em petróleo e ponto de
ligação entre os mares Cáspio e Negro. Finalmente, após quase dois anos de
ocupação, as tropas russas se retiraram da região, que obteve autonomia, mas
não independência.
Em meados de 1993, a fim de receber apoio do Fundo Monetário
Internacional (FMI) para conseguir financiar seu déficit fiscal, a Rússia começou
35
Idem, p. 78.
36
DESAI, P. Russian retrospectives on reforms from Yeltsin to Putin. Journal of Economic Perspectives,
Vol.19, Nr. 1, 2005, p. 87-106 (tradução nossa) Disponível em: <http://www.atypon-link.com/AEAP/
doi/pdf/10.1257/0895330053147903?cookieSet=1>. Acesso em: 27 jul 2008.
37
SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 81.
38
GUSEV, D. Russian Presidential Elections – 96. 1996. Disponível em: <http://www.acs.brockport.edu/
~dgusev/Russian/bybio.html>. Acesso em: 13 ago 2008.
39
174
DESAI, 2005, op. cit., p. 81.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
a utilizar a âncora cambial. Para isso, o Banco Central Russo (CBR, em inglês)
apertou a política monetária, e um orçamento “não inflacionário” foi estruturado.
Seguindo o receituário do organismo internacional, o país não se preocupou em
reformar as instituições, tal como o regime tributário e/ou o modus operandi do
Banco Central, mas em controlar rapidamente a inflação e em permitir que os
capitais se movimentassem livremente40. Os resultados dessa política não
decepcionaram. A inflação caiu com o tempo e uma relativa estabilidade de
preços foi alcançada, mas não sem custos41. Ressalte-se que, com a baixa
arrecadação, o governo russo não tinha como remunerar os títulos de curto prazo
(GKO), o que obrigava o CBR a emitir mais títulos. Para tornar os papéis mais
atrativos e manter o rublo valorizado, a taxa de juros foi elevada, provocando,
em contrapartida, aumento do déficit orçamentário e uma invasão de capital
especulativo de curto prazo.
No campo econômico, os fatos cruciais que levaram à deterioração da
situação russa ocorreram em 1997. O primeiro foi a queda generalizada dos
preços das commodities. Como a economia do país era baseada, em grande parte,
na exportação desses produtos, em especial do petróleo e do gás, nem mesmo
um aumento nos volumes exportados foi capaz de compensar a queda dos preços
mundiais. O segundo foi a eclosão da crise econômica da Ásia, que atingiria a
Rússia posteriormente. A crise da Ásia de 1997, assim como a da Rússia no ano
seguinte, teve no setor financeiro a maior fonte de pressão, propagando-se
posteriormente por outros setores da economia. É preciso lembrar que, nos anos
90, as economias emergentes asiáticas se encontravam em crescimento, grande
parte dele patrocinado por investidores estrangeiros. O enorme influxo de capital
na região acabou por provocar “bolhas” nos preços de certos ativos. Isto,
combinado com a valorização das moedas asiáticas frente ao dólar, pouco a
pouco fez com que os agentes – grandes investidores institucionais, bancos,
Estados – passassem a duvidar de que seria possível permanecer nesse patamar.
Assim, iniciou-se uma crise especulativa, que atingiu as economias asiáticas,
notadamente a Tailândia. Houve fuga de capitais, iniciando-se uma crise
sistêmica. Os governos foram obrigados a elevar as taxas de juros e a intervir no
mercado cambial. Quando isso se mostrou insuficiente, a ligação com o dólar
foi abandonada, o que fez com que as taxas de câmbio se desvalorizassem. Em
1998, a crise contaminaria a Rússia. Grandes bancos tinham dificuldades para
honrar seus compromissos, e a taxa de câmbio em relação ao dólar, no mercado
paralelo, se encontrava extremamente valorizada. Enquanto o dólar ficava mais
escasso, com maior demanda dos russos pela moeda, o capital estrangeiro deixava
o país. O governo tentou, em vão, conter a depreciação do rublo. A taxa de juro
chegou a ser elevada ao patamar de 139,7% em setembro daquele ano42.
40
DESAI apud DESAI, 2005, op. cit., p. 100.
41
SEGRILLO, 2000a, op. cit., p. 81.
42
RICARDO, J. Crises Financeiras em Economias de Mercado Emergente: Origens, Ajustamento e Lições
de Política. 19 dez.2003. Disponível em:
<http://www.ordemeconomistas.pt/files/Concursos/JVE/jve2004_economia.pdf>. Acesso em: 18
fev 2008; PINTO, B. et al. A Crise Financeira Russa. 2005, p. 6. Disponível em: <http://129.3.20.41/
eps/if/papers/0504/0504003.pdf>. Acesso em: 18 fev 2008; MONTES e POPOV apud PINTO et al,
2005, op. cit., p. 12.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
175
A crise constituiu o estopim para o colapso do governo Yeltsin. A precária
situação em que se encontravam a economia e a população tornou a situação do
presidente insustentável. Em maio de 1999, ele ainda sobreviveria a mais uma
tentativa de impeachment, dessa vez levada a cabo pela oposição na Duma.
Ainda em agosto do mesmo ano, Yeltsin demitiu seu primeiro-ministro, Sergei
Stepashin, além de todo o gabinete, nomeando o então desconhecido Vladimir
Putin para o posto. Finalmente, em dezembro de 1999, Yeltsin anunciou sua
renúncia e a ascensão de Vladimir Putin como presidente interino. As eleições
foram marcadas para março do ano seguinte. Porém, ainda em 1999 a economia
russa começaria a mostrar sinais de recuperação, apoiada nas exportações de
petróleo e no rublo desvalorizado, abrindo espaço para mudanças no próximo
governo.
O primeiro governo Putin (2000-2004)
O cenário político russo, ao fim de 1999, se apresentava, segundo Lenina
Pomeranz, marcado por “
“uma mudança importante na postura da população
em relação ao governo; pesquisas de opinião, realizadas por diferentes institutos
especializados, indicam descontentamento com a deterioração das condições
de vida, desencanto com o resultado das reformas empreendidas e com base nas
quais se prometia uma melhoria de vida, vergonha e revolta diante da onda de
escândalos que envolveram de muito perto o presidente Yeltsin e seus auxiliares
e assessores, inclusive membros da oligarquia financeira – a chamada ‘família’ –
e que, de certa forma, deterioraram a imagem do país no exterior. Como
corolário, o sentimento era de cansaço e apatia à política por um lado, e o
desejo de uma mão forte para ‘pôr ordem’ no país e restabelecer o orgulho
nacional, por outro lado; daí a difusão do nacionalismo, que na campanha eleitoral
para o Parlamento deixa de ser bandeira exclusiva da facção nacional-patriótica
para impregnar os demais partidos concorrentes”43.
Além desse desencanto e da falta de perspectivas, verificava-se o acirramento
das tensões com os rebeldes islâmicos chechenos. Assim, em setembro de 1999
a Rússia foi vítima de atentados a bomba, que deixaram cerca de 300 mortos.
Tal fato desencadeou uma dura reação por parte do governo russo, que consistiu
primeiramente na destruição aérea da infraestrutura chechena, seguindo-se a
invasão por terra. A reação militar russa foi bem sucedida e a popularidade do
então desconhecido Putin foi às alturas.
No início de dezembro de 1999 foram realizadas eleições para a Câmara
Baixa, a Duma. Os candidatos estavam divididos nos seguintes partidos ou blocos:
o Comunista; a Unidade, baseado em lideranças regionais e formado para apoiar
o governo no parlamento; o Pátria – Toda a Rússia, encabeçado por Yevgeny
Primakov e Yuri Luzhkov, e maior opositor do governo; a União das Forças de
Direita, constituído por democratas radicais e liderado pelos ex-primeirosministros Yegor Gaidar e Sergei Kirienko; e os liberais-esquerdistas da Yabloko.
43
176
POMERANZ, L., 2000, p. 2.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Como se pode ver na tabela abaixo, o Partido Comunista obteve a maioria dos
assentos na Duma. Porém, foi seguido de perto pela Unidade que, com a União
das Forças de Direita, tinha cadeiras suficientes para fazer frente aos comunistas.
Tabela 5
Fonte: POMERANZ (2000, p. 3)
Também se destaca a derrota da Pátria – Toda a Rússia, o que acabou por
inviabilizar a candidatura do ex-primeiro-ministro Primakov à presidência. Assim,
fica claro que Putin havia começado a construir sua rede de apoio já nas eleições
parlamentares, saindo do pleito como grande vencedor, o que assegurou a Yeltsin
a possibilidade de renúncia sem que fosse criado um vácuo de poder. Putin
demonstrou habilidade política ao articular acordos entre a Unidade e os
comunistas para a indicação do presidente e do vice-presidente da Duma, bem
como para a distribuição das comissões. Assim, os comunistas ficaram com a
presidência, uma vice-presidência e com o maior número de cadeiras. A Unidade
ficou com outra vice-presidência e seis comissões.
A saída antecipada de Yeltsin, em 31 de dezembro de 1999, em meio a
fortes acusações de corrupção contra ele e sua família, fez com que as eleições,
antes programadas para maio do ano seguinte, fossem antecipadas para 26 de
março de 2000. Isso permitiu que Putin tirasse proveito da enorme popularidade
de que gozava naquele momento. Quando da saída de Yeltsin, o primeiro decreto
assinado por Putin garantia imunidade ao antigo presidente da Rússia e a
membros de sua família contra quaisquer acusações de corrupção. Em 2001, a
lei foi revista para abranger todos os outros ex-presidentes44.
44
HESLI, V. In HESLI, V.; REISINGER, W. (org.). The 1999-2000 Elections in Russia: Their Impact
and Legacy. Cambridge University Press, 2003, p. 5.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
177
O maior opositor de Putin era Gennady Zyuganov, do Partido Comunista.
Também se opunham a ele Grigory Yavlinsky (Yabloko), Amangeldy Tuleyev,
Vladimir Jirinowsky (PLDR) e Konstantin Titov. De acordo com Lenina
Pomeranz, “Sem dúvida, o fator de destaque nas eleições realizadas na Rússia é
a formidável ascensão e vitória de Vladimir Putin, já no primeiro turno. Os
parcos 2% de eleitores dispostos a sufragar o seu nome para a presidência do país
em agosto de 1999 elevaram-se a 58% em janeiro de 2000, dando-lhe finalmente
52,64% dos votos nas urnas, segundo as apurações realizadas em 95,5% delas”45.
Putin assumiu o governo em 7 de maio de 2000. Mikhail Kasyanov, aliado
de Yeltsin, foi nomeado primeiro-ministro, apesar das denúncias de seu
envolvimento com corrupção. Logo após a vitória, o novo presidente mostrou
sua intenção de verticalizar o poder no país, que contemplaria, entre outros: a
diminuição do número de partidos de tamanho relevante, para cerca de dois ou
três; e a redução do poder regional, com centralização no governo federal46. De
outra parte, Putin procurou neutralizar o poder político dos oligarcas e restringir
os meios de comunicação independentes, muito críticos em relação à sua maneira
de governar o país, em especial quanto à condução do conflito na Chechênia47.
Entre seus primeiros alvos estavam alguns dos homens mais ricos do país,
tais como: Boris Berezosvky (dono da empresa de aviões Aeroflot), Vladimir
Gusinsky (barão da mídia) e Mikhail Khodorkovsky (controlador da petrolífera
Yukos). Dessa forma, o governo passou a acusá-los dos mais diversos crimes, a
grande maioria financeiros, o que culminou na prisão de alguns e no exílio de
outros48. Conforme ressaltou Lenina Pomeranz, “a técnica para fazer isso foi a
utilização de elementos de natureza econômica, como a fraudação do fisco ou
a existência de dívida insolvável (caso da tomada do Most Bank e do canal de
TV pertencentes a Gusinsky, neste último caso utilizando a garantia de
empréstimos a ele feitos pela Gazprom, e não honrados)”49.
Cabe lembrar que, naquela época, não era incomum os oligarcas terem
dívidas com o Estado (e pouca ou nenhuma disposição de pagá-las). Na verdade,
negócios privados e públicos se misturavam. O sistema funcionava daquela
maneira desde sua concepção. Para Lilia Shevtsova, a mudança de posição do
Kremlin se deu pelo que Putin percebia como “traição” e como possível fonte
de problemas futuros50. Do ponto de vista econômico, Putin mostrou conhecer
as deficiências e os problemas da Rússia, especialmente a grande dependência
45
POMERANZ, 2000, op. cit., p. 2.
HESLI, 2003, op. cit., p. 6-7.
47
POMERANZ, L. A nova Rússia: resultados da transformação sistêmica. Seminário Nº 29/2004 –
FEA/USP, novembro de 2004, p. 9. Disponível em: <http://www.econ.fea.usp.br/seminarios/artigos2/
anovarussia.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008; RIORDAN, J. Entrar no jogo: pela Rússia, pelo dinheiro e
pelo poder. Análise Social, 2006, nº 179, p. 477-498. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/
pdf/aso/n179/n179a08.pdf>. Acesso em: 18 ago 2008.
48
POMERANZ, 2004, op. cit..
49
Idem, p. 36.
50
SHEVTSOVA, L. Putin’s Russia. Washington, DC: Carnegie Endowment, 2003, p. 104-106 (tradução
nossa).
46
178
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
das exportações de petróleo e gás e os gargalos no setor industrial, que impediam
que o país passasse de exportador de matérias-primas a exportador de tecnologia
e produtos de alto valor agregado.
Assinale-se que, já no fim de 1999, a economia russa mostrava sinais de
recuperação, o que pode ser atribuído a dois fatores principais: cotações elevadas
do petróleo e do gás natural no mercado internacional e uma taxa de câmbio
depreciada. Os altos preços dessas commodities fizeram com que as exportações
russas desses produtos aumentassem significativamente, e os impostos arrecadados
aliviaram problemas fiscais. Também o enfraquecimento do rublo ante o dólar
aumentou a competitividade dos produtos russos em relação a similares
estrangeiros51. Assim, entre 1999-2003, o PIB russo cresceu em média 6,5% ao
ano, com taxas variando entre 4,7% e 10% (ver tabela 6). Não obstante a
importância das exportações para o crescimento, cabe notar que, assim que os
efeitos da crise se dissiparam, em meados de 1999, a demanda interna
rapidamente substituiu a externa como principal força de expansão, como
mostram os gráficos a seguir.
Como se pode ver na tabela a seguir, o país mostrou considerável acúmulo
de reservas em moeda estrangeira (ouro e papel-moeda), que passaram de US$
12,2 bilhões de dólares em 1998 para US$ 97 bilhões em 2003. Até 1999, as
reservas eram suficientes para cobrir cerca de 25% do total de importações. Em
2003, elas já ultrapassavam o valor das importações em 1,15 vezes. A melhora
apresentada pela conta corrente é um dos fatores que possibilitaram à Rússia
acumular reservas brutas em moeda estrangeira.
51
FERRARI-FILHO, F.; PAULA, L.F. Liberalização financeira e performance econômica: a experiência recente
dos BRIC, 2006, p. 11. Disponível em: <http://www.corecon-rj.org.br/pdf/ced_bric_sep.pdf >. Acesso em:
18 ago 2008.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
179
Tabela 6
Fontes: CBR (2008), FMI (2008), FSSS (2008) e OECD (2008)
Por outro lado, o drástico aumento das importações fez com que a
contribuição das exportações líquidas para o crescimento fosse negativa ou
irrelevante desde metade de 2000, como pode ser visto no Gráfico 1.
Gráfico 1
Fonte: OECD (2008)
180
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Todavia, isso não quer dizer que o papel dos setores voltados para a
exportação diminuiu. Pelo contrário: esses setores continuaram a ser os que mais
contribuíram para o crescimento da produção industrial. O papel da produção
doméstica no mercado interno vem caindo desde 1999, sendo que desde 2002 o
aumento dessa demanda interna foi satisfeito por mais importações. Assim,
enquanto a rápida elevação das importações fez com que a contribuição das
exportações líquidas para o crescimento se tornasse negativa, o crescimento
econômico provavelmente teria sido fraco, não fosse pela força das exportações.
Do lado da demanda, é importante notar que o crescimento foi
impulsionado pela elevação do consumo privado, que aumentou, em média,
mais de 8% ao ano desde 2000. Esse consumo, por sua vez, foi apoiado pela
ampliação do poder real de compra das famílias, resultante de maior renda
disponível e da apreciação da taxa de câmbio. Os salários reais aumentaram
82% entre 1999 e 2003 e, neste último ano, estavam em um nível 28% mais alto
do que aquele verificado antes da crise no início de 2004. Até o fim de 2003, a
melhoria na produtividade era suficiente para contrabalançar os efeitos negativos
das altas salariais e da taxa de câmbio na competitividade do país52. A queda nas
taxas de juros também contribuiu para o crescimento do PIB, uma vez que o
crédito ficou mais barato, fomentando a demanda interna.
A política fiscal mais prudente foi um dos fatores que mais contribuíram
para a sustentação do crescimento russo no período analisado. Os gastos do
governo foram reduzidos em cerca de 10% após a crise, enquanto a relação
receita/PIB permaneceu nos mesmos níveis pré-crise. A partir de 2000, os
orçamentos federais foram feitos com estimativas conservadoras para os preços
de petróleo. Isso fez com que os orçamentos apresentassem superávits
consideráveis. Assim, caso os preços do petróleo caíssem, poderiam compensar
os déficits. As receitas aumentaram em função das boas condições do comércio
e do crescimento. O governo utilizou esse excedente para quitar parte da dívida,
além de acumular reservas, que foram colocadas em um fundo de estabilização.
Os esforços fiscais acabaram por reavivar também os investimentos privados, já
que aumentaram a confiança do empresariado. A reforma fiscal permitiu
simplificar a cobrança de impostos, ao mesmo tempo em que diminuiu as
distorções. Certos tributos foram reduzidos, enquanto algumas bases de
contribuição foram aumentadas. O sistema também procurou obter maior
contribuição dos lucros dos setores de recursos naturais, especialmente de petróleo
e gás.
A política monetária durante o primeiro governo Putin não foi muito rígida.
O intuito era a redução gradual da inflação enquanto se tentava evitar a rápida
apreciação real do rublo, a fim de não limitar a competitividade do país. Assim,
o CBR começou a realizar intervenções no mercado cambial. Porém, a falta de
uma política concreta levou ao acúmulo de reservas e à expansão monetária. A
inflação mostrou arrefecimento, tendo sido beneficiada pela apreciação real da
taxa de câmbio, apesar de ainda ter permanecido em patamar elevado. O regime
52
OECD, 2007, op. cit.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
181
cambial russo foi relativamente flexível no período, com a taxa nominal sofrendo
forte desvalorização, ao mesmo tempo em que a taxa real se apreciava, em
função da queda da inflação. O país fazia uso do câmbio flutuante administrado,
com conversibilidade parcial da conta de capital53.
Assim, a economia russa, ao fim do primeiro governo de Vladimir Putin, já
se mostrava totalmente recuperada da crise de 1998. Apesar de grande parte da
melhora se dever a fatores externos, como o crescimento mundial generalizado
e os altos preços das commodities, é inquestionável que o país foi beneficiado.
De qualquer forma, no início do segundo governo de Putin, um dos maiores
desafios era a redução dos riscos associados a uma economia baseada na produção
e na exportação de recursos naturais, combinando-a com uma reforma estrutural
das instituições.
O segundo governo Putin (2004-2008)
Em 14 de março de 2004 foram realizadas eleições presidenciais na Rússia,
pela terceira vez desde a queda da URSS, em 1991. Assim como em 2000, a
escolha do presidente ocorreu logo após a eleição da Duma, em dezembro de
2003. A configuração da Câmara Baixa sofreu grande mudança, pois a Unidade
assegurou 2/3 dos assentos, impulsionada pela aliança com o presidente. A
oposição, por sua vez, viu sua força drasticamente diminuída. Dessa forma, os
candidatos à eleição presidencial acabaram por personificar essa fraqueza, já
que eram, em sua grande maioria, desconhecidos nacionalmente e com baixo
apoio da opinião pública.
Em 24 de fevereiro de 2004, em mais um movimento para consolidação
de seu poder em detrimento da oligarquia, Putin demitiu todo o gabinete de
governo. A medida visava atingir o então primeiro-ministro, Mikhail Kasyanov,
remanescente dos tempos de Yeltsin e forte aliado dos oligarcas. A Constituição
não permitia a demissão do primeiro-ministro sem que todo o gabinete fosse
removido. A ação acabou por incrementar a visão da população de que Putin
estava totalmente comprometido com o corte de laços com a administração
anterior. A grande aprovação popular se refletiu nas urnas: Putin reelegeu-se
com vitória maciça e elevado índice de comparecimento às urnas.
No campo econômico, o governo optou por manter as mesmas diretrizes
do mandato anterior, o que implicava a manutenção de grande dependência
das exportações de recursos naturais e, consequentemente, das cotações
internacionais. Um cenário externo favorável combinado à continuidade do
aumento da demanda interna permitiu que a economia russa seguisse
apresentando taxas robustas de crescimento, como evidenciado na tabela 7.
53
182
FERRARI-FILHO e PAULA, 2006, op. cit., p. 13.
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Tabela 7
Fontes: CBR (2008), FMI (2008), FSSS (2008) e OECD (2008)
A maior demanda interna se apoiou na elevação dos salários, que
aumentaram 32% ao ano (14% de crescimento real) entre 2000 e 2007, e na
expansão do crédito (média de crescimento anual de 47% desde 1999), que, em
2007, correspondia a cerca de 40% do PIB54.
Desse modo, a questão que se levanta refere-se ao plano de ação a ser adotado
para que taxas altas de crescimento possam ser obtidas no médio e no longo
prazo. No caso russo, as importações consistem, em grande parte, de bens de
consumo que não têm similar nacional ou não são competitivos. Como as
importações tendem a crescer de acordo com a renda disponível, seria necessário
que as exportações crescessem, no mínimo, na mesma velocidade55. A título de
exemplo, explicita-se, na tabela a seguir, a dependência russa das exportações de
petróleo, além do aumento das cotações do produto durante os dois governos
54
DORBEC, A. Overheating in Russia: towards a soft landing? Ago-set 2008, p. 3-4. Disponível
em:<http://economicresearch.bnpparibas.com/applis/www/RechEco.nsf/
Conjoncture%20By%20DateEN/E72265B29D18C47EC12574CE0028AD89/$File/
C0809_A1.pdf?OpenElement>. Acesso em: 28 out 2008.
55
AHREND, R. How to Sustain Growth in a Resource Based Economy?: The Main Concepts and their
Application to the Russian Case, 2006, OECD Economics Department Working Papers, No. 478, OECD
Publishing. p. 20-21. Disponível em: <http://www.unece.org/ead/sem/sem2005/papers/Ahrend.pdf>.
Acesso em: 14 abr 2008.
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
183
de Putin. Em 2002, por exemplo, as exportações de petróleo (valor em US$ do
petróleo tipo Ural) respondiam por 24% do total de exportações do país. Em
2005, já haviam elevado sua participação para 31% do total.
Tabela 8
Fonte: CBR (2008)
De outra parte, os fluxos de capital na Rússia aumentaram consideravelmente
desde o primeiro governo de Putin, como mostra a tabela a seguir. O crescimento
das entradas pode ser atribuído à liquidez global e às taxas de juros mais elevadas
do que a média mundial no período. Porém, desde o início da crise no mercado
hipotecário americano, na segunda metade de 2007, as entradas de capital
mostraram forte desaceleração, sendo suplantadas pelas saídas em US$ 9,4 bilhões
no terceiro trimestre.
Tabela 9
184
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Nota: As saídas e entradas de capital foram calculadas excluindo-se o movimento
de capital ilegal. O saldo considerou o movimento líquido de capital ilegal. Assim, os
valores das saídas e entradas não coincidem com o do saldo líquido.
Fonte: CBR (2008).
Esse movimento precipitou uma elevação nas taxas de juros para pessoas
jurídicas, prejudicando sobremaneira as empresas, acostumadas a se recapitalizar
por meio de empréstimos a custo quase nulo. Dados do CBR mostram uma
situação preocupante em relação à dívida externa privada, que vem crescendo
desde 2002. No primeiro semestre de 2007, ela aumentou 31,4%, atingindo
US$ 343 bilhões. Mais alarmante ainda é a participação da dívida privada na
dívida externa russa, que passou de 20,9% do total em 2002 para impressionantes
89,1% em 200756.
Por outro lado, assim como no primeiro mandato de Putin, a presença do
Estado continuou crescendo. O aparato federal aumentou de 377 mil
funcionários para 593 mil no período compreendido entre 2001 e 2005, e mais
8% em 200657. Porém, em vez de aumentar a regulação e a supervisão econômica,
o crescimento do funcionalismo público parece ter servido somente para estimular
ainda mais a burocracia e a corrupção. Ações arbitrárias do governo, em especial
no que tange aos tributos, fizeram com que o ambiente de negócios sofresse
sérios reveses. “Desde meados de 2003, a companhia de petróleo Yukos, que foi
privatizada, se tornou centro de uma campanha política e legal liderada pelo
Estado contra seus acionistas. (...) Investidas similares foram feitas contra outras
empresas, nos planos regional e federal. Os resultados da deterioração do ambiente
de negócios foram logo sentidos. Enquanto o crescimento do PIB foi de 7,1%
em 2004, reduziu-se ao longo do ano, à medida que os investimentos e a extração
de petróleo se desaceleraram e a fuga de capitais aumentou fortemente. Tudo
isso apesar de um estímulo fiscal significativo e de melhor resultado da balança
comercial”58.
A presença estatal é fundamental para o crescimento econômico de um
país, mas quando esta se torna muito forte, com elevado grau de burocracia,
acaba por reprimir a inovação e os investimentos privados, também cruciais
para o crescimento. No caso russo, a questão é ainda mais relevante em função
do histórico de autoritarismo no país. É impossível que a Rússia avance sem que
haja diminuição nos níveis de corrupção e maior transparência no ambiente de
negócios. Outro ponto central para a economia ao fim do segundo governo de
Putin diz respeito à capacidade (e interesse) do governo em articular um modelo
de desenvolvimento sustentável e que seja capaz de suplantar os ciclos políticos,
e não apenas se adequar a eles.
56
CBR, 2008, op. cit..
57
FMI, 2008, op. cit..
58
AHREND, 2006, op. cit., p. 222-23 (tradução nossa).
Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
185
Balanço e perspectivas
Em março de 2008, foram realizadas eleições presidenciais. O pleito foi
facilmente vencido por Dmitri Medvedev, candidato do Kremlin, que obteve
cerca de 70% dos votos. Porém, mais importante do que a eleição em si foi a
nomeação de Vladmir Putin para o cargo de primeiro-ministro. Com os
desenvolvimentos vistos até agora, o que se percebe é que Putin continua, de
fato, a governar a Rússia. Dessa forma, o país tem mantido as mesmas diretrizes
que deram o tom durante seus dois mandatos como presidente, especialmente
no que tange à força de sua figura. Entre os fatos mais marcantes da presidência
de Medvedev destacam-se a entrada do país em novo conflito militar, desta vez
contra a vizinha Geórgia, e a atual crise, ao mesmo tempo sistêmica e cíclica do
capitalismo, que assola o mundo.
O estopim da crise ocorreu em agosto de 2007, quando o banco francês
BNP Paribas congelou o saque de alguns de seus fundos que aplicavam no
segmento subprime, alegando ser impossível contabilizar as perdas reais desses
fundos. No início de 2008, o governo americano interveio para impedir a quebra
de bancos e agências hipotecárias com problemas de liquidez, adiando uma
crise que é sistêmica. Porém, em setembro, nada foi feito para impedir a quebra
do banco Lehman Brothers, que acabou por levar à deflagração da crise, com a
quebra de confiança no sistema59. Desde então, houve uma forte redução da
liquidez nos mercados internacionais, com aversão ao risco, e instalou-se a crise
de confiança, além de haver aumento das taxas interbancárias e dos spreads.
Apesar de esforços conjuntos dos dirigentes das principais economias mundiais
para a estabilização do sistema, este ainda se mostra bastante volátil 60.
Obviamente, a Rússia não foi poupada dos efeitos da crise. De janeiro até outubro
de 2008, os índices de suas duas bolsas, a Micex (denominada em rublo) e a
RTS (denominada em dólar), acumularam perdas de 61,49% e 66,88%,
respectivamente, tendo de ser fechadas diversas vezes devido às fortes oscilações.
Os fluxos de capitais registraram saídas de US$ 18 bilhões apenas nas duas
primeiras semanas de outubro.
No caso da Rússia, além das incertezas no campo econômico, o conflito
com a Geórgia fragilizou o país politicamente. Os russos invadiram a Geórgia
após esta ter atacado a região separatista da Ossétia do Sul (oficialmente território
georgiano), cuja população é, majoritariamente, de origem russa. Segundo
Pomeranz, a guerra opôs, de um lado, os interesses russos e, do outro, os interesses
americanos, dos quais a Geórgia é aliada. “A questão de fundo no confronto de
interesses não é ideológica, tampouco tem a ver com a defesa messiânica da
democracia, decantada pelos EUA de Bush. Em minha opinião, trata-se, por
um lado, de uma luta pelo poder hegemônico mundial dos EUA e da manutenção
59
BELLUZZO, L.G.; ANDRADE, J.C.G.. Enriquecimento e Produção: Keynes e a Dupla Natureza do
Capitalismo. In: LIMA, G. T. et al (org.). Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea.
Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 255-256.
60
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Tese (doutoramento). Instituto de Economia, Unicamp, p. 272. Disponível em: <http://
www.eco.unicamp.br:8888/seer/ojs/include/getdoc.php?id=213&article=163&mode=pdf>. Acesso em:
28 out 2008.
186
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
do espaço da antiga URSS como área regional de influência geopolítica da
Rússia; e, por outro lado, dos esforços – especialmente europeus – de redução
da dependência energética (petróleo e gás) da Rússia. Poder e petróleo são, a
meu ver, as coordenadas da equação geopolítica internacional que envolve a
Rússia e o Ocidente”61.
Até o momento, o confronto não foi totalmente solucionado. As tropas
russas iniciaram a desocupação das regiões invadidas, porém a tensão e
instabilidade permanecem. Assim, as turbulências atualmente verificadas no
mundo impedem que qualquer projeção seja feita em relação à economia russa
e a seu papel político no futuro.
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Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008), Daniela Alvarenga Cunha, p. 159-189
189
Resenhas
Ignacy Sachs: natureza e
sociedade como eixos do
pensamento econômico
SACHS, I. A Terceira Margem. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
Ricardo Abramovay*
Não é fácil explicar por que razão, num ambiente intelectual onde a recusa
do dogmatismo stalinista tinha consequências que iam perigosamente além do
debate de ideias, a Polônia foi tão pródiga em pensadores heterodoxos que
marcaram as ciências sociais do século XX. Do historiador Witold Kula ao
economista Michael Kalecki, passando por Oskar Lange, Adam Schaff e Jerzy
Tepicht, os anos de ferro não abateram o vigor de um conjunto de pesquisadores
que atuavam no interior mesmo dos organismos de pesquisa do Partido
Comunista. Ignacy Sachs é um destes grandes nomes e sua projeção internacional
tem início nos anos 70, quando ele participa da reunião de Estocolmo (a que
precedeu a Conferência do Rio, sobre desenvolvimento sustentável) e, a partir
daí, faz uma contribuição fundamental para o que se mostra cada vez mais
como o grande tema de nossa época: qual a natureza da relação das sociedades
humanas com os ecossistemas de que dependem, e como integrar ciências do
homem e da sociedade, por um lado, e ciências da vida e da terra no esforço de
compreender o que somos e o que fazemos.
Quanto é o suficiente? É difícil imaginar questão mais importante para a
civilização contemporânea do que a formulada por Gandhi em plena ocupação
britânica. Não é sem razão que a Índia e Gandhi ocupam lugar central na
trajetória de Ignacy Sachs, criador da expressão “ecodesenvolvimento” nos anos
70 e que acaba de publicar, ao completar 80 anos, sua autobiografia: A Terceira
Margem, a ser lançada em outubro pela Companhia das Letras.
Professor emérito da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de
Paris, autor de mais de 30 livros e com influência internacional marcante no
estudo do desenvolvimento, Sachs tem uma história intelectual que abala o
*
Ricardo Abramovay é Professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP e da Cátedra
Sérgio Buarque de Holanda da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Pesquisador do
CNPq. E-mail: <[email protected]>.
190
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
ceticismo daqueles que se habituaram a enxergar a Economia como a ciência
cinzenta, segundo a qual os preços são capazes, em última análise, de sinalizar
aos indivíduos as escolhas que devem fazer, daí resultando a melhor ordem social
possível. No cerne da questão gandhiana está o desafio fundamental da construção
do desenvolvimento sustentável: a mudança nos padrões de produção e consumo
que caracterizam as sociedades contemporâneas. A decisão sobre o quanto é
suficiente não decorre do puro e neutro exercício de uma racionalidade em que
o indivíduo responde mecanicamente a estímulos, mas envolve, antes de tudo,
questões de natureza ética. Tampouco a questão da justiça social pode ser
concebida apenas a partir da ideia de que é necessário melhorar a distribuição
do que existe: é fundamental alterar as próprias bases produtivas da vida social,
cujas atuais repercussões sobre os recursos de que dependemos são catastróficas.
Sachs foi dos primeiros a mostrar que o milagre do crescimento chinês apoiavase, na verdade, sobre fantástica concentração de renda e destruição dos recursos
naturais.
Dois traços fundamentais caracterizam a abordagem de Sachs e fazem dele
um dos grandes pensadores de nosso tempo. Em primeiro lugar, da mesma forma
que Gunnar Myrdal, Amartya Sen e Celso Furtado – com os quais conviveu e
trabalhou diretamente –, Sachs não separa os fenômenos econômicos das demais
esferas da vida social. Convidado recentemente a fazer uma conferência sobre
ética e desenvolvimento, ele começa – grande contador de histórias que é –
com a anedota do filho que pergunta ao pai: onde é o rabo da serpente? “Meu
filho”, responde o pai, “a serpente nada mais é que um grande rabo”. O
desenvolvimento, como bem mostra Amartya Sen, não pode ser definido senão
enquanto liberdade e enquanto ética.
Mas além desta atitude que recusa a separação disciplinar que marca tão
fortemente a história das ciências sociais no século XX e que insere os temas
éticos no âmago da vida científica, Sachs aborda o estudo das sociedades humanas
sob um ângulo material e não apenas a partir da maneira como as relações entre
os indivíduos se traduzem no sistema de preços. Esta materialidade da vida
econômica não envolve só o reconhecimento dos interesses e dos grupos sociais:
ela parte da premissa de que a economia deve ser compreendida com base no
metabolismo que se estabelece entre sociedade e natureza. Daí o fato de, já no
fim dos anos 1970, Sachs ter liderado um projeto para as Nações Unidas voltado
ao estudo das relações entre alimentos e energia. Deste projeto resultou
contribuição decisiva e original para a crescente polêmica internacional em torno
dos biocombustíveis. Sachs recusa o que julga ser atitude irresponsável daqueles
que consideram que os biocombustíveis representarão fatalmente a redução da
produção alimentar mundial e a devastação ambiental em larga escala. É verdade,
insiste ele, que a energia mais valiosa é aquela que se deixa de utilizar, que se
consegue economizar. Portanto, a parcimônia no uso dos recursos (o “quanto é
o suficiente?” de Gandhi) é decisiva. Reduzir o uso do automóvel individual e
ampliar o alcance de modalidades alternativas de transporte é essencial. Mas
isso não basta, uma vez que esta parcimônia deve ser compatibilizada com a
necessidade de geração de renda para os mais pobres, por meio de atividades
Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento econômico, Ricardo Abramovay, p. 190-192
191
socialmente úteis: a expansão dos biocombustíveis abre potencialmente caminho
para a expansão das capacidades produtivas dos que hoje estão em situação de
pobreza. Este potencial será de fato revertido em favor da emancipação das
populações mais carentes ou será base para a concentração de renda? Será uma
ocasião para o uso sustentável da biodiversidade ou dará lugar à destruição? As
respostas a estas questões, diz Sachs, não estão dadas de antemão.
A abordagem da questão gandhiana não passa, para Sachs, pela recusa do
crescimento econômico, mas, antes de tudo, pelo planejamento. E neste sentido,
tanto quanto a Índia, seu país natal (a Polônia) exerce sobre sua obra um papel
de destaque. Sua família conseguiu fugir para o Brasil durante a Segunda Guerra
Mundial, ele terminou em São Paulo o Lycée Pasteur e, no Rio, formou-se em
Economia pela Cândido Mendes enquanto trabalhava na embaixada da Polônia.
Em 1954, em plena Guerra Fria, decide transferir-se com a mulher e os dois
filhos para aquele país, onde aprofunda pesquisas sobre desenvolvimento, trabalha
e publica com Michal Kalecki.
O livro tem histórias extraordinárias tanto sobre a vida intelectual do Rio
nos anos 40 como sobre o que era, na prática, o cotidiano dos responsáveis por
pensar o planejamento em um país do bloco socialista. O leitor vai deliciar-se
com as anedotas deste fantástico produto cultural do socialismo real que é o
humor. Mas, sobretudo, o livro mostra (a partir do exemplo de uma sociedade
regida supostamente por planejamento central) como a tradução da pergunta
gandhiana à esfera prática é difícil. A eficiência dos organismos responsáveis
pelo plano depende, é claro, de sua capacidade de acolher as aspirações populares
e de contemplá-las nos limites dos recursos disponíveis. No entanto, sob um
regime ditatorial, estas aspirações são expressas sempre de forma distorcida, a
partir do filtro de uma representação política opaca e viciada. Os grandes objetivos
éticos do planejamento pulverizam-se na maneira como se organiza o poder
para levá-los supostamente adiante. Optar pela liberdade de mercado como
solução a este drama – e por aí reduzir a dimensão ética da escolha social
simplesmente àquilo que fazem os indivíduos – é consagrar a desigualdade e
abrir espaço para a devastação.
A terceira margem (La troisième rive) – alusão ao conto de Guimarães
Rosa – exprime a convicção de que é possível uma solução para este dilema que
não se reduza a um sincretismo insosso. Mas o subtítulo da autobiografia de
Ignacy Sachs mostra que esta terceira margem ainda não está desenhada e que
estamos todos “à procura do ecodesenvolvimento”.
192
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
A análise do
patrimonialismo através da
literatura latino-americana:
o Estado gerido como bem
familiar
VÉLEZ RODRIGUEZ, R. A análise do patrimonialismo
através da literatura latino-americana: o Estado gerido como
bem familiar. Rio de Janeiro: Documenta Histórica,
Instituto Liberal, 2008, 263 p.
Luiz Alberto Machado*
“A liberdade não é um conceito nem uma crença.
A liberdade não se define: se exerce. É uma aposta.
A prova da liberdade não é filosófica, mas existencial:
há liberdade toda vez que encontramos um homem
livre, toda vez que o homem atreve-se a dizer não
ao poder. Não nascemos livres: a liberdade é
uma conquista e, ainda mais: uma invenção.”
Octavio Paz
Poucas pessoas dedicaram-se com tanto afinco à questão do
patrimonialismo, entendido como um desvio comportamental caracterizado pela
confusão entre o patrimônio público e o particular, como o professor Ricardo
Vélez-Rodríguez. Atualmente radicado na Universidade Federal de Juiz de Fora,
onde é professor adjunto do Departamento de Filosofia e coordenador do Centro
de Pesquisas Estratégicas Paulino Soares de Sousa, Ricardo Vélez revela em
seus escritos uma riquíssima formação intelectual, na qual despontam, a meu
juízo, três importantíssimas influências: Max Weber, Alexis de Tocqueville e
Oliveira Vianna.
*
Luiz Alberto Machado é professor titular de História do Pensamento Econômico e vice-diretor da
Faculdade de Economia da FAAP. E-mail: <[email protected]>.
A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197
193
O livro objeto desta resenha é, de certa forma, produto do trabalho que ele
vem realizando no Centro de Pesquisas Estratégicas, dando continuidade à
conferência Sociedade, Mercado e Desenvolvimento na América Latina, proferida
num dos famosos “Encontros de Cascais”, na Universidade Católica Portuguesa,
organizados pelo professor João Carlos Espada. Como o próprio Ricardo Vélez
afirma na conclusão da introdução,
Esta obra é fruto, principalmente, da reflexão que, da minha parte,
acompanhou o desenrolar dos Seminários realizados no Núcleo de Estudos Ibéricos
e Ibero-Americanos da UFJF. O meu trabalho beneficiou-se, portanto, do diálogo
acadêmico com os meus alunos. Sem esse confronto de ideias, muito provavelmente
este livro não teria sido possível. A eles, portanto, os meus agradecimentos.
A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana, que
tem o sugestivo subtítulo O Estado gerido como bem familiar, porém, reúne um
conteúdo que reflete um envolvimento muito mais antigo do autor com o tema,
uma vez que essa relação teve origem em 1979, quando, logo após sua chegada
ao Brasil, foi contratado como pesquisador de Centro de Estudos do
Desenvolvimento, departamento do Convívio – Sociedade Brasileira de Cultura,
que realizava cursos e seminários para alunos e professores em todo o território
nacional. A análise iniciada no Convívio teve continuidade nos diferentes locais
em que Ricardo Vélez, que se naturalizou brasileiro em 1997, atuou ao longo
desse tempo, entre os quais a Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro; o
Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, em Paris, onde realizou
pesquisas de pós-doutorado de 1994 a 1996; e, mais recentemente, a UFJF.
Com tal envolvimento com a questão do patrimonialismo, Ricardo Vélez
conseguiu em A análise do patrimonialismo através da literatura latinoamericana transformar um tema árido num texto de leitura agradável, daqueles
que não dá vontade de parar de ler. Para tanto, selecionou algumas obras que
são verdadeiros clássicos da literatura latino-americana, região que tem sido
historicamente pródiga em exemplos de governantes que administram a “coisa
pública” como se ela fosse parte do patrimônio particular, numa evidente
confusão entre o público e o privado.
A seleção de craques convocada por Ricardo Vélez começa com seu
conterrâneo Gabriel García Márquez, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura
em 1982. Dele, Ricardo Vélez escolheu o livro O outono do patriarca, inspirado
na ditadura do venezuelano Juan Vicente Gómez, que governou seu país com
mão de ferro de 1908 a 1935. Desta primeira obra, vale reproduzir o trecho
citado na quarta capa do livro:
O general transformou-se, no seu longo ciclo à frente do poder, no maior
latifundiário da Venezuela, abrigou a inúmeros familiares seus, pôs todo o seu
empenho em destruir quaisquer concorrentes, utilizando os meios mais brutais,
inviabilizou de modo sistemático o papel da imprensa livre e fez girar a próspera
economia da exploração petrolífera ao redor de sua figura.
194
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Numa evidente prova da atualidade da atualidade deste livro escrito por
Garcia Márquez em 1975, não há como deixar de associar o trecho à experiência
do presidente Hugo Chávez (seguida de perto pelos presidentes Evo Morales,
da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador), sob a nebulosa bandeira da “república
bolivariana”.
O próximo craque escalado por Ricardo Vélez é o argentino Domingo
Faustino Sarmiento, de quem foi escolhido o ensaio Facundo – Civilização e
barbárie no pampa argentino. O trecho que se segue espelha bem o caráter
patrimonialista de diversos caudilhos que exerceram o poder na Argentina:
... o avanço do caudilho sobre os bens dos cidadãos, até se converter em
estancieiro de estancieiros, graças a um confisco com o nome de dízimo, imposto
sobre o gado que era simplesmente marcado com seu nome.
Do Brasil, Ricardo Vélez convocou dois craques, Amaro Juvenal e Érico
Veríssimo. Do primeiro elegeu a obra intitulada Antônio Chimango – Poemeto
campestre, escrita em forma de sátira campestre, a fim de mostrar como a ditadura
castilhista, no início do século XX, era, no Rio Grande do Sul, uma modalidade
de poder patrimonial. Amaro Juvenal é, na verdade, o pseudônimo sob o qual
Ramiro Fortes de Barcelos escreveu esta deliciosa sátira sobre o autoritarismo
sul-rio-grandense do começo do século XX. Ricardo Vélez destaca que “um dos
valores fundamentais do poemeto campestre de Ramiro Barcelos, enquanto obra
de arte literária, consiste em recriar belamente os traços marcantes da cultura
patrimonialista na sociedade gaúcha”. Este mesmo aspecto, magistralmente
descrito por Érico Veríssimo na tríade que é considerada sua obra magna, O
tempo e o vento, é claramente ilustrada pelo seguinte trecho:
O estado patrimonial prima pela sua incompetência, o que depende dele não
funciona. Se os fenômenos naturais fossem da alçada da pachorrenta burocracia,
haveria uma transformação no estado do tempo.
O quinto e último craque escalado por Ricardo Vélez é o mexicano Octavio
Paz, do qual foi escolhida a obra O ogro filantrópico. Logo de início, Ricardo
Vélez descreve qual deve ser, na opinião do autor mexicano, o papel do escritor
no mundo atual. A esse respeito, afirma:
O trabalho do escritor era pensado por Octavio Paz na trilha da conquista da
liberdade, que constitui, fundamentalmente, uma escolha que brota do fundo do
espírito humano e que se torna realidade concreta no exercício da própria
identidade, na prática da memória histórica. Lembrando Karl Jaspers (18831969), poderíamos afirmar: “se saíssemos da História, tombaríamos no nada”.
Não ter consciência da própria história é não existir. Mas, para encontrar o
caminho da própria história, a condição sine qua non é a opção pela liberdade.
A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197
195
Verdadeira profissão de fé liberal, que tornou Octavio Paz um escritor
definitivamente incômodo para os dogmáticos de todos os matizes, notadamente
para os marxistas.
Na sequência, Ricardo Vélez destaca a crença do escritor mexicano de que
o Estado, tanto no México quanto no resto da América Latina, tinha se
consolidado como uma instituição de tipo patrimonialista. O trecho reproduzido
na quarta capa ilustra bem essa crença: “Do ângulo de persistência do
patrimonialismo, é fácil de entender este fenômeno (da corrupção). Em todas
as cortes imperiais durante os séculos XVII e XVIII eram vendidos os empregos
públicos e havia tráfico de influência e favores”.
Para explicar esse caráter patrimonialista do Estado na América Latina,
Ricardo Vélez enfatiza a diferença apontada por Octavio Paz entre duas tradições
religiosas, a reformista e a contrarreformista. Nos países da América em que
vingou a Reforma Protestante, consolidou-se o tipo de Estado contratualista, ao
passo que nos países em que vingou a Contrarreforma prevaleceu o Estado
patrimonial. A esse respeito, Paz escreve o seguinte:
As comunidades religiosas de Nova Inglaterra firmaram ciosamente, desde
o seu nascimento, a sua autonomia perante o Estado. Inspirados no exemplo das
igrejas cristãs dos primeiros séculos, estes grupos foram sempre hostis à tradição
autoritária e burocrática da Igreja Católica. Desde Constantino, o cristianismo
tinha vivido em simbiose com o poder político; durante mais de mil anos, o modelo
da Igreja tinha sido o Império cesáreo-burocrático de Roma e Bizâncio. A Reforma
foi o rompimento desta tradição. Por sua vez, as comunidades religiosas da Nova
Inglaterra levaram essa ruptura às suas últimas consequências, enfatizando os
traços igualitários e a tendência ao autogoverno dos grupos protestantes dos Países
Baixos.
Em contraste, continua Octavio Paz,
Na Nova Espanha, a Igreja foi, ante tudo, uma hierarquia e uma
administração, ou seja, uma burocracia de clérigos que lembra, em alguns de seus
aspectos, a instituição dos mandarins do antigo império chinês. Daí a admiração
dos jesuítas, no século XVII, em face do regime K’ang-hsi, no qual viram realizada,
por fim, a sua ideia do que poderia ser uma sociedade hierárquica e harmoniosa.
Uma sociedade estável mas não estática, como um relógio que, embora sempre
marche, dá sempre as mesmas horas. Nas colônias inglesas, a igreja não foi uma
hierarquia de clérigos donos do saber, mas a livre comunidade dos fiéis. A igreja
foi plural e esteve, desde o início, constituída por uma rede de associações de crentes,
verdadeira prefiguração da sociedade política da democracia.
Enfim, o que se depreende da leitura do livro A análise do patrimonialismo
através da literatura latino-americana é que na história política do Brasil, da
Argentina, do México e da Venezuela não existe muita diferença. Prevalece o
196
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
princípio básico da economia patrimonialista, segundo Ricardo Vélez:
“privatização dos lucros, socialização dos prejuízos”. Em todos os casos – e em
outros não citados por Ricardo Vélez – trata-se de Estados mais fortes do que a
sociedade. Como observa Rodrigo Constantino, na ótima resenha elaborada
para a revista Banco de Ideias (Ano XII, n. 45, dez/jan/fev 08/09, p. 26):
O aparato burocrático passa a controlar o aparelho estatal, normalmente
girando em torno de uma figura central. A privatização do Estado ocorre através
das práticas de nepotismo e clientelismo, e as leis deixam de ser impessoais, passando
a representar um braço dos privilégios da “grande família”.
Como qualquer obra dessa natureza – uma espécie de antologia que faz
uma seleção de determinadas coisas –, não é possível contemplar todos os livros
que versam sobre o tema. Dessa forma, é natural que algumas pessoas reclamem
do critério de seleção pela inclusão de alguma obra e/ou exclusão de outra. Se
fosse eu o autor, por exemplo, jamais deixaria de fora o livro A festa do bode (São
Paulo: Arx, 2001), excepcional romance de Mario Vargas Llosa sobre a ditadura
de Trujillo na República Dominicana. Trata-se, no entanto, de uma opinião de
cunho absolutamente pessoal, muito pouco para empanar o brilho de mais esta
grande contribuição de Ricardo Vélez para a compreensão do caráter
patrimonialista do Estado no Brasil e em boa parte da América Latina.
A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado..., Luiz Alberto Machado, p. 193-197
197
Desvendando a mente do
investidor –
o domínio da mente sobre o
dinheiro
PETERSON, R. Desvendando a mente do investidor – o
domínio da mente sobre o dinheiro. Rio de Janeiro:
Campus, 2008, 214 p.
Manuel Nunes*
A Teoria Econômica desenvolveu todo um arcabouço para explicar a
atividade econômica em termos racionais. Tal conjectura pressupõe o Homo
economicus, ou seja, o agente econômico dotado de comportamento racional
com vistas à maximização da utilidade esperada, dispondo de completo
conhecimento e domínio das informações disponíveis. A partir destas hipóteses
elementares foram construídas a Teoria das Expectativas Racionais e a Hipótese
dos Mercados Eficientes, em que os mercados são eficientes e os preços das
ações refletem o valor intrínseco dos ativos. Tais premissas idealizam o melhor
dos mundos em que a atividade econômica se autorregula, sem a ocorrência de
bolhas financeiras e “estouros da manada” de investidores desnorteados pela
volatilidade do mercado financeiro. Não obstante, de longa data, os fatos
históricos desmentem categoricamente tais hipóteses. Bastaria citar para tanto a
crise de 1929 e os percalços econômico-financeiros da atualidade.
A partir das contradições constatadas, surgiram modelos mais condizentes
com o comportamento humano e as decorrências de tal procedimento. Os novos
modelos estão sendo desenvolvidos por ciências afins à Teoria Econômica, entre
as quais a Psicologia Econômica, as Finanças Comportamentais e,
especificamente, a Neuroeconomia e as Neurofinanças. Observe-se que tais
incursões paralelas à ortodoxia econômica estão sendo ratificadas por estudos
econômicos. É o caso, por exemplo, das pesquisas de Daniel Kahneman e de
Vernon L. Smith, prêmios Nobel de Economia de 2002, que mostram que as
pessoas não agem como preveem as teorias econômicas. Neste sentido, Georg
Cooper (em The origin of financial crisis – central banks credit bubbles and the
efficiente market falacy. Petersfield: Harriman, 2008, p. vii) assevera que “o
*
Manuel Nunes é economista com mestrado em Administração e professor de Finanças da FAAP. E-mail:
<[email protected]>.
198
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
sistema financeiro não se comporta de acordo com as leis da Hipótese do Mercado
Eficiente conforme estabelecido pelos preceitos em voga da teoria econômica
prevalecente”.
Desvendando a mente do investidor é uma obra inserida neste contexto, o
de encontrar novas perspectivas e explanações para a atuação do investidor à luz
da Neurociência. Para ilustrar a proposição, inicialmente, o autor serve-se de
três histórias singulares, porém antológicas, da relevância da abordagem que
propõe e que poderiam ser sintetizadas na seguinte questão: qual é a relação
existente entre Sir Isaac Newton, Mark Twain, Myron S. Scholes e Robert C.
Merton? À primeira vista nenhuma, dada a disparidade histórica e ocupacional
de cada personagem. O primeiro deles, genial matemático e físico inglês do
século XVIII; o segundo, reputado escritor americano do século XIX; e os dois
últimos, notáveis economistas, especialistas em modelos matemáticos financeiros.
Aliás, pelo desenvolvimento do modelo de precificação de opções, realizado em
colaboração com Fischer Black, Scholes e Merton ganharam o Nobel de
Economia em 1997. Portanto, de Newton a Merton, trata-se de intelectuais de
primeira grandeza. Contudo, o traço de união entre eles, além do intelecto
privilegiado, foi o insucesso financeiro decorrente de tomadas de decisões
incorretas, originadas por vieses psicológicos.
Depois de realizar lucro substancial, Newton perdeu praticamente toda a
sua fortuna ao reinvestir maciçamente nas ações da South Seas Trading Company
movido por medo de perder ganhos potenciais quando o mercado já despencava
fragorosamente. Mark Twain, por sua vez, foi vítima da “febre da prata”, ao se
aposentar nababescamente com base na exuberância da cotação das ações das
minas de prata de Nevada. Subitamente, a prata perdeu o atrativo, dando-se a
débâcle das ações. Mente criativa, o escritor não se deu conta, porém, do revés
do mercado, agarrando-se às suas posições, e acabou por quebrar
financeiramente.
O caso envolvendo Scholes e Merton foi ainda mais peculiar. Economistas
de escol, reverenciados pelo mundo acadêmico e financeiro, participaram
ativamente da gestão do Long Term Capital Management (LTCM). O fundo
nasceu exuberante, com reputação de inquebrável, fundamentada nos modelos
matemáticos da determinação das decisões mais lucrativas, lastreadas nos valores
corretos das ações. Os lucros iniciais foram portentosos, parecendo confirmar os
modelos matemáticos. Porém, com o passar do tempo, os gestores do fundo, na
ânsia de maiores ganhos, foram se tornando cada vez mais afoitos, assumindo
riscos cada vez maiores. Em pouco tempo, verificou-se a insolvência do LTCM,
tecnicamente motivada por alavancagem excessiva em posições sem liquidez.
Não obstante, a despeito das implicações técnicas, por trás do colapso financeiro
encontram-se também fatores comportamentais, caracterizados pela extrema
arrogância e ganância dos gestores. Faz-se necessária, portanto, a inserção de
variáveis comportamentais para a compreensão da atuação do investidor e, por
decorrência, com os devidos parâmetros, do próprio funcionamento do mercado.
Prosseguindo, o autor elabora sobre a Neurociência, a qual parte do princípio
de que atributos comportamentais governam a razão dos investidores na aplicação
Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro, Manuel Nunes, p. 198-201
199
de recursos financeiros sujeita a risco, sobrepondo-se frequentemente aos fatores
econômico-financeiros. Tais atitudes tornam-se mais flagrantes na exuberância
e no colapso das bolhas financeiras. Comumente, observa-se o desprezo do risco
pelos investidores na expansão do mercado; enquanto na baixa, em contrapartida,
agarram-se frequentemente a posições perdedoras, vindo a sofrer perdas
irreparáveis pela inaplicabilidade da inteligência emocional. Tais pressupostos
estão amplamente estabelecidos nas pesquisas realizadas nos laboratórios de
Neurociência sobre o comportamento dos investidores.
Ao novo ramo científico do estudo comportamental financeiro dá-se o nome
de “Neurofinanças”, baseado nos estudos neurais sobre os processos de tomada
de decisão financeira. Para tanto, são mesclados preceitos de Psicologia, Finanças,
Economia e Neurociência. O cérebro humano é um órgão extremamente
complexo e especializado. Grosso modo, está estruturado em três grandes centros
anatômicos, cada um deles encarregado de importantes funções cognitivas. O
primeiro é o córtex, o centro da lógica. Comanda as funções de execução e de
controle mental. Cabe-lhe o processamento do pensamento abstrato, capacidade
operacional e tomada de decisão; o segundo é o sistema límbico, centro das
emoções; e o terceiro é o cérebro mediano, também conhecido por “cérebro
reptiliano”. Funcionalmente, é responsável pelo processamento fisiológico. Da
interação entre os inúmeros impulsos eletrobioquímicos destes centros advém a
atividade mental.
Porém, esta não se reduz ao hardware cerebral. Deve-se acrescentar o
software. Para que a atividade mental possa ser interpretada apropriadamente,
há a necessidade de inserir na equação, entre outras, a percepção, as crenças, as
expectativas, a intuição e a personalidade de cada indivíduo. Consequentemente,
a atividade mental é condicionada por inumeráveis fatores psicológicos,
manifestos no comportamento individual e, particularmente, no processo
decisório do investidor. Medo, euforia, ganância e outros estados mentais
compõem os vieses subjetivos que predispõem a atuação do investidor na busca
pela recompensa ou na aversão à perda. A assunção de riscos ou a inércia
operacional na tomada de decisão estão intimamente associadas à inteligência
emocional, que é condicionada pelo córtex pré-frontal em consonância com as
conexões do sistema límbico.
A atuação no mercado com vistas à melhoria da rentabilidade dos
investimentos é condicionada, de um lado, pelo domínio das técnicas e dos
preceitos financeiros; do outro, pela inteligência emocional do investidor. “Sun
Tzu escreveu: se você se conhece e ao inimigo, não precisa temer o resultado de
uma centena de combates” (CLAVEL, J. A arte da guerra – Sun Tzu. 6 ed.
Rio de Janeiro, 1983, p. 9). No mercado financeiro a máxima também prevalece.
O autoconhecimento, a autodisciplina e a administração das emoções são fatores
imprescindíveis para a correta percepção do mercado e para a utilização
condizente das técnicas financeiras com vistas à obtenção dos resultados
almejados.
Richard L. Peterson, o autor da obra, é formado em Engenharia Eletrônica,
e obteve com honras o doutorado em Medicina. Completou sua residência em
200
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Psiquiatria em 2004, quando se envolveu em pesquisas de pós-doutorado na
Stanford University. O autor tem vasta experiência profissional em Neurociências,
tendo desenvolvido intensa atividade de pesquisa e de produção científica sobre
Economia, Finanças, Psicologia e Neurociência. Seu interesse específico está
centrado no papel da emoção na tomada de decisões de investimento,
especificamente as anomalias de base neural nos mercados financeiros.
A concepção do livro está voltada para assegurar as proposições desenvolvidas
pelo autor. Para esse fim, serve-se de ampla pesquisa embasada em sólida
metodologia científica. O texto foi centrado em vários aspectos temáticos, a
partir do encadeamento de inúmeros capítulos. Nesta amplitude, inicialmente,
desvenda o psiquismo e as bases neurofisiológicas e químicas cerebrais. Em
seguida, trata da personalidade, do processo comportamental e das consequências
sobre a atividade financeira, sem se esquecer dos vieses e das idiossincrasias
pessoais. Finalmente, condizente com os preceitos da inteligência emocional,
prescreve o comportamento que o investidor deve desenvolver para atuar
adequadamente no mercado financeiro. Tudo isto vem recheado de inúmeras
particularidades e aspectos relevantes. O texto, redigido numa linguagem clara
e precisa, sem deixar de ser interessante, destina-se ao grande público. É, portanto,
uma obra acessível a todos aqueles que se interessem pelo assunto.
Desvendando a mente do investidor – o domínio da mente sobre o dinheiro, Manuel Nunes, p. 198-201
201
Redefinindo estratégia
global
GHEMAWAT, P. Redefinindo estratégia global: cruzando
fronteiras em um mundo de diferenças que ainda importam.
Porto Alegre: Bookman, 2008, 272 p.
Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta*
Controvérsias à parte, o processo de globalização se apresenta,
indubitavelmente, como um dos objetos de estudo mais explorados da atualidade,
tanto no que diz respeito à sua gênese e compreensão conceitual quanto a seus
efeitos e consequências. Assim, na tentativa de minimizar os exageros mais
comuns que abarcam a matéria, Pankaj Ghemawat – professor de Estratégia
Global na Iese Business School e de Administração na Harvard Business School
– procura traçar, em recente publicação, um paralelo relativo à competitividade
internacional entre as transformações globais dos últimos anos e a realidade
corporativa.
Do ponto de vista metodológico, o autor classifica sua obra como acessível,
relevante no processo de tomada de decisão e rigorosa, uma vez que abrange
campos de conhecimento reconhecidos e fontes de pesquisa confiáveis.
Ghemawat apresenta visões estratégicas para aqueles que procuram o sucesso
frente à nova ordem global, entendida não como a utopia do “mundo sem
fronteiras”, mas como um sistema complexo, em que é imprescindível
reconhecer e lidar com o significado das peculiaridades. Deste modo, no primeiro
momento de sua obra busca esclarecer, antes de tudo, sua leitura concernente às
mudanças no cenário internacional. Para o autor está claro que não há como
assumir o mundo globalizado como um sistema uniformemente padronizado,
mas como um arranjo de particularidades, um sistema imperfeito e desigual,
em que, apesar da homogeneidade aparente, as disparidades são cada vez mais
significativas.
Neste sentido, o trabalho de Ghemawat se opõe à visão daqueles que
classifica como “apocalípticos” da globalização e – dialogando com a teoria de
Frances Cairncross sobre a possível “morte da distância” e com os consagrados
“Fim da História” (em referência à teoria de Francis Fukuyama) e “Choque
das Civilizações” (de Samuel Huntington) – considera que, a despeito dos
*
Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos é Economista, Doutor em História Econômica e Professor
nanda Magnotta é aluna do curso de Relações
Titular Doutor da FAAP. E-mail: <[email protected]>. Fer
Fernanda
Internacionais e Monitora de Economia Brasileira II na Faculdade de Economia da FAAP. E-mail:
<[email protected]>.
202
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
avanços tecnológicos e das transformações políticas, a integração ainda encontra
consideráveis limitações, de modo que a preponderância do Estado-nação ainda
se vê preservada.
Devidamente instituídas estas orientações preliminares, o autor traça a
relação entre as demandas deste novo e complexo cenário e a prática das
organizações. Neste âmbito fica reiterada a necessidade de se rever as abordagens
em termos de estratégias a ser adotadas no processo de internacionalização das
empresas, criticando-se políticas ultrapassadas que fomentam a manutenção da
ideia de estratégia global como elemento para um mundo integrado e baseado
na padronização internacional. Em face desta constatação, portanto, Ghemawat
propõe uma série de conceitos em prol de um novo formato de abordagem
estratégica em nível global. Para ele, a primeira lição rumo à nova agenda de
gestão empresarial reside em assimilar a relevância do quesito “diferenças” frente
ao mundo globalizado para, em seguida, aplicar mais precisamente algumas
técnicas e práticas como o Cage, o Adding e o AAA.
“Cage” corresponde à sigla do modelo que considera fundamental levar
em conta, no processo de tomada de decisões, aspectos culturais, administrativopolíticos, geográficos e econômicos dos mercados alvo. A estrutura possibilita,
assim, a identificação de fraquezas, oportunidades, forças e eventuais ameaças
por parte das organizações, em sua tentativa de atuar com sucesso em diversas
partes do planeta. Através do relato de casos grandiosos, o autor indica que o
sucesso da estrutura Cage reside de forma mais precisa em termos setoriais, em
detrimento de quaisquer planos intersetoriais. Imerso nesta discussão, menciona
ainda a teoria dos “modelos de gravidade”, que relaciona a interação entre os
diferentes atores com o tamanho de suas economias e sua localização. A seguir,
propõe uma “análise de países” que, trocando em miúdos, traz à tona os tipos
de cuidados que as empresas devem considerar antes de decidir estabelecer-se
em um novo país. Nesse sentido, o autor deixa claro que não se pode abordar os
elementos constitutivos do sistema Cage de maneira autônoma, já que geralmente
eles interagem e se mesclam entre si. Na mesma medida, porém, é importante
deter a capacidade de diferenciar e entender que as bases de cada um podem
apresentar adversidades e, como consequência, desafios e oportunidades distintas.
Feitas estas primeiras considerações conceituais, o autor propõe a aplicação
de uma segunda técnica que denomina “Adding”, abordagem que atrela o
sucesso competitivo à aplicação da noção de valor agregado sustentável. Nesse
sentido, Ghemawat revela a importância de refletir sobre a possível transformação
do ambiente, tentar prever/antecipar o comportamento dos demais atores,
ponderar sobre até que ponto pode haver “imitações” e, finalmente, conjeturar
a respeito das consequências das diversas ações, num processo quase caracterizado
pela percepção de ação-reação. Aprofundando e traduzindo em miúdos o
conceito de Adding, alguns componentes podem ser destacados, como 1)
agregação de volume ou crescimento: a globalização representaria a busca por
novos mercados frente à escassez de espaço em seu país de origem; 2) diminuição
de custos: elemento essencial no processo de internacionalização de qualquer
Redefinindo estratégia global, Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta, p. 202-206
203
empresa; 3) diferenciação ou aumento para pagar: a análise desse componente
de valor prevê a necessidade de estratégias específicas para cada realidade. Em
outras palavras, não é possível assegurar que o planejamento desenvolvido para
um país obterá o mesmo sucesso em outro lugar; 4) incremento da atratividade
do setor: Ghemawat destaca a necessidade de observância às diferenças
internacionais na lucratividade do setor, bem como entendimento da
concentração, mudanças na estrutura, aumento ou redução do grau de rivalidade
e efeitos das ações sobre os custos dos rivais, além de atentar para a questão das
restrições legais ou não-relacionadas ao mercado e à ética, além da capacidade
de mensurar e gerenciar riscos.
Na sequência, uma terceira vertente conceitual se apresenta e traz à tona o
conceito do tripé AAA, questão que se estende por diversos capítulos de sua
obra. O primeiro A evoca a noção de “adaptação”, entendida neste contexto
como a necessidade de adequação às diferenças por parte das empresas com
base em uma estratégia que procure compreender as disparidades entre as nações
não como simples obstáculos a serem sobrepujados, mas principalmente como
importantes vetores de análise durante o processo decisório de internacionalização
dos negócios nos termos já tratados anteriormente. O autor considera que a
gestão mais adequada frente a um mundo de “transposição de fronteiras” se dá
em torno da diversificação e ampliação do portfólio de produtos. Assim, à sua
luz, os pensamentos já mencionados de que os consumidores no mundo detêm
gostos e preferências traduzidos em hábitos de consumo semelhantes de modo
que, em última instância, seja possível produzir um produto único que atendesse
de maneira satisfatória as demandas provenientes das diferentes partes do globo,
mostram-se completamente insustentáveis.
O segundo A, por sua vez, aborda a “agregação” como estratégia para
superar as diferenças e garantir o sucesso das empresas durante seu processo de
internacionalização. Como agregação, o autor entende a aglomeração de
instrumentos capazes de gerar economias de escala. Neste sentido, o termo
implica em desenvolver formas de interação entre os países mais vantajosas,
usufruindo de eventuais semelhanças, ainda que considere as peculiaridades
devidas conforme já mencionado. Neste contexto Ghemawat reserva parte do
debate à questão das estratégias regionais.
Para finalizar a abordagem da estratégia AAA, Ghemawat versa sobre a
questão da “arbitragem”, conceito que pode ser compreendido como maneira
de usufruir de economias absolutas e de escala relacionadas a diferenças, tratandoas não como fatores limitantes, mas como oportunidades. Neste sentido é que
são retomadas as estruturas do modelo Cage, dando-se margem para que a questão
das diferenças intrínsecas aos países sirva como fundamento estratégico no tipo
de arbitragem a se desenvolver, sendo possível optar-se, portanto, por arbitragem
cultural, administrativa, geográfica ou, ainda, econômica. A arbitragem cultural
é a busca por associação dos países que apresentem proximidade neste particular,
o que implicaria numa maior homogeneidade do uso de instrumentos de
propagação mercadológica na promoção de bens ou serviços. Com relação ao
204
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
segundo tipo de arbitragem, o argumento do autor reside em como as corporações
podem se beneficiar de vantagens fiscais e institucionais dos demais países,
tangenciando até mesmo o tema dos “paraísos fiscais”, além de destacar a questão
do poder, uma vez que empresas podem usufruir das capacidades desenvolvidas
por seus governos no âmbito internacional para pressionar terceiros, buscando
tratamentos favoráveis para sua atuação em determinados mercados. Em seguida,
a arbitragem geográfica é entendida a partir da aparente queda de custos no
âmbito dos transportes e da telefonia, o que estaria atuando como força motriz
na “dissolução de fronteiras”. Por último, o autor fala sobre o aspecto econômico,
destacando os custos dos fatores produtivos, especialmente trabalho e capital,
bem como outros insumos e produtos complementares. Dessa forma, afirma
que o viés mais comum por que se revela esse tipo de arbitragem se dá através da
exportação de mão-de-obra barata para produções que atuem pelo modelo
trabalho-intensivo. Apresentado o mecanismo AAA completo, portanto, o autor
esclarece que mais eficaz do que perseguir os três As de uma só vez é que a
empresa tenha claro um foco, um dos três As que especificamente possa
representar o que chama de sua “base de vantagem comparativa internacional”.
De toda forma, é importante ressaltar que o tripé proposto por Ghemawat
requer, a despeito de sua implementação, políticas detalhadas de coordenação e
controle, de modo que, embora ainda não haja uma estratégia única e
comprovadamente eficiente para atuar em tempos de globalização, este
mecanismo pode levar ao sucesso quando aplicado com rigor.
Apresentadas as linhas gerais de sua proposta teórica e pragmática para a
gestão eficiente das organizações, o autor encerra sua argumentação. As
considerações finais podem ser divididas em três principais pontos: as previsões
relacionadas aos desafios a serem enfrentados pela globalização; a apresentação
de sugestões para a melhora dos caminhos rumo ao futuro; e, por fim, a proposta
de uma estrutura de cinco passos para, de acordo com suas palavras, “começar a
fazer uma auditoria na estratégia global das próprias empresas”.
Com relação ao primeiro ponto, fica ressaltada a dificuldade em se pensar
que as diferenças serão desprezadas no futuro, além de o autor defender a noção
de que a semiglobalização identificada por ele na atualidade deve estender-se
por diversas décadas. Em seguida, o autor sugere que, para melhorar as tendências
futuras, é importante que o administrador seja capaz de:
1) antecipar turbulências e desvios mesmo que ele realmente acredite que o
mundo se tornará mais integrado;
2) prestar atenção a outras surpresas previsíveis;
3) aumentar a capacidade preditiva trazendo as coisas para o nível de setor
da economia e para o nível da empresa;
4) reconhecer a importância da atividade empresarial na definição de
cenários amplos, incluindo os relacionados ao futuro da globalização; e
5) não deixar que um foco no futuro bloqueie a reflexão do aqui agora. (p.
231-234)
Redefinindo estratégia global, Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta, p. 202-206
205
Por fim, os cinco passos sugeridos por Ghemawat visam sintetizar o que foi
apresentado no decorrer de toda a sua obra e, então, de forma didática,
demonstrar como as concepções desenvolvidas neste livro podem, de fato,
contribuir para elaborar estratégias globais mais eficientes. Deste modo, o passoa-passo sugerido por ele se segue: 1) valiação de desempenho da organização;
2) análise do setor e análise competitiva; 3) análise das diferenças através da
estrutura de distâncias Cage; 4) desenvolvimento de opções estratégicas via
estratégias AAA; e 5) avaliação: diagnostico Adding.
Enfim, a obra de Pankaj Ghemawat proporciona uma visão pragmática da
realidade, pouco imersa nos exageros mais comuns ou em abordagens muitas
vezes ultrapassadas. Ao leitor atento, o obser var com responsabilidade e
comprometimento das propostas do autor pode proporcionar o direcionamento
dos processos de tomada de decisão e a mitigação de eventuais riscos que se
apresentem, de modo que torna possível às empresas estarem aptas a atuar de
forma mais competitiva e sustentável no cenário internacional complexo que se
estabelece mais ferozmente dia após dia.
206
Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
Orientação para Colaboradores
1. Foco da Revista
A Revista de Economia e Relações Internacionais publica artigos inéditos
nessas duas áreas, em português, espanhol ou inglês, de autores brasileiros e do
exterior. Excepcionalmente, publica também artigos não inéditos, mas ainda não
divulgados em português ou espanhol, e que a Revista considere importantes para
publicação nessas línguas, modificados ou não, conforme avaliação dos Editores
ou de membros do Conselho Editorial. Os artigos devem vir de especialistas nessas
duas áreas, mas escritos de forma acessível ao público em geral.
2. Formato dos Originais
Os textos devem ser submetidos na forma de arquivo eletrônico, em CD-Rom
ou por e-mail, no programa Word, em fonte Times New Roman, 12 pontos, e com
as tabelas e gráficos no mesmo formato ou em Excel. Incluindo tabelas, gráficos e
referências, cada artigo deve ter de 15 a 20 páginas tamanho carta, com espaço 1,5
entre linhas, entre 5 mil e 7 mil palavras ou 30 mil a 40 mil caracteres, inclusive
espaços.
Tabelas e gráficos não preparados originalmente pelo autor e retirados de
outras fontes não poderão ser colados no artigo na forma de figuras. Precisarão
ser refeitos no formato citado, e sempre escritos no mesmo idioma do texto em
que estarão inseridos.
As notas, na mesma fonte, em 10 pontos, devem ser colocadas nos rodapés,
numeradas sequencialmente, exceto a primeira, que referenciada por um * deve
corresponder ao(s) autore(s) indicando a titulação acadêmica, a ocupação atual
e outras já exercidas, bem como um endereço eletrônico para contato. O texto
dessa nota inicial deverá tomar de três a cinco linhas.
As referências bibliográficas deverão ser listadas alfabeticamente no final
do texto, seguindo a norma NBR-6023 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas-ABNT, tal como mostram os exemplos anexos:
•Livro
DAGHLIAN, J. Lógica e álgebra de Boole. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1995.
167p., Il., 21 cm. Bibliografia: p.166-167. ISBN 85-224-1256-1.
• Parte de Coletânea
ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.;
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• Artigo de Revista
GURGEL, C. Reforma do Estado e segurança pública. Política e Administração,
Rio de Janeiro, v. 3, nº 2, p. 15-21, set. 1997.
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• Artigo de Jornal
NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28
jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p. 13.
• Artigo Publicado em Meio Eletrônico
KELLY, R. Electronic publishing at APS: its not just online journalism. APS
News Online, Los Angeles, Nov. 1996. Disponível em: <http://www.aps.org/
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• Trabalho de Congresso Publicado em Meio Eletrônico
SILVA, R. N.; OLIVEIRA, R. Os limites pedagógicos do paradigma da
qualidade total. Na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPe,
1996. Disponível em: <http://www. propesq. ufpe.br/anais/anais/educ/
ce04..htm> . Acesso em: 21 jan. 1997.
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Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009
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Número 15 - Julho 2009