Exposição Duplo Oxy na Galeria Carlos Carvalho, Portugal, 2008 H o m e nage m O som da partida Ivan Ju nqu ei r a Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras. Litania Breve À memória de Luiz Paulo Horta E assim nos deixaste, sem queixa ou aviso, como quem deixa pé ante pé, a cena breve em que o tempo, fugaz, escreve a sua história sem sentido ou som capaz de ser ouvido na mais alta crista do mundo ou em abismo o mais profundo. 15 Ivan Junqueira O som que ouvias, sempre o soube, o órfico som que te coube escutar decerto não era daqui, mas antes o da esfera onde viviam Bach, Beethoven, Mozart e os poucos mais que se ouvem ainda numa estranha escala de que nem mesmo Deus nos fala. E não ouvias só as notas. Ouvias mais: todas as gotas do coração que as escrevia com sangue, paixão, agonia. Saíste antes da hora, esquivo, quando te víamos mais vivo que o de costume, no exercício de teu loquaz mas grave ofício: refletir sobre a vida, a morte, a loucura da Cruz, a sorte do homem nos périplos terrestres, a fluida música dos mestres. Lembro-te ao piano: o toque suave, assim como a asa de uma ave, 16 O som da partida que ia do álacre ao sombrio, do adágio ao allegro con brio, das partituras seminais à polca e à valsa mais banais. Lembro-te, enfim, como quem eras na arena, entre cristãos e feras, e fui dar-te adeus antes dessa viagem da qual ninguém regressa. Então da vida foste embora? Não: ela em ti começa agora. 17 Red house, Casa pintada (da série Open House), 2005 Óleo e MDF Dimensões variáveis em torno de 42 x 50 x 50 cm Registro fotográfico: Vicente de Mello H o m e nage m Música e espiritualidade Tarcís i o Pa d i l ha Ocupante da Cadeira 2 na Academia Brasileira de Letras. D esde tenra idade, Luiz Paulo ouvia o rádio sem cessar, até que sua mãe a tal o obrigava. E aos cinco anos ganhou um acordeão que, mesmo sem professor, aprendeu a tocar. Na porta de sua casa, em Laranjeiras, dedilhava seu novo brinquedo no porão de sua casa, visando a angariar fundos para a construção da Igreja do Cristo Redentor. Viu-se numa quermesse, o que lhe permitiu o comentário revelador de sua verve sensível: “Sempre penso em invocar esta cena, quando chegar ao juízo final: ‘ajudei’ a construir uma igreja.” Aos 8 anos, ganhou um piano, presente de seu avô paterno, que o encorajou a estudar com Magda Tagliaferro. Conquanto não fosse estimulado a seguir a carreira musical, seu ímpeto natural o fez frequentar a Pro Arte, ignorando os conselhos em sentido contrário. E vemo-lo dedilhar com maestria obras de Chopin, de Beethoven e os concertos de Bach. A música haveria de impregnar-lhe a alma e mesmo em propiciar uma harmonia interior que lhe marcou o espírito, ditando-lhe o 19 Tarcísio Padilha comportamento e mesmo firmando um comprometimento definitivo com a beleza e, através dela, com a verdade em sentido amplo. Aí avultou um ser de eleição, modelo para seus coetâneos e cuja ausência hoje pesa em demasia em nossos ombros frágeis. A intersubjetividade irá, daí por diante, cinzelar o perfil existencial de um ser humano nascido para amar, para acolher, para ajudar o próximo a carregar, se necessário, pesadas cruzes em seu caminhar. Santa Teresa repetia constantemente que um santo triste é um triste santo. O finado acadêmico, cuja memória procuramos honrar nesta sessão de saudades, confirma a assertiva de que vivem à nossa volta santos que não se identificam para que neles lobriguemos a força incoercível de sua condição excepcional. Até porque eles vivem à nossa volta, enriquecem nossos dias e nos apontam caminhos inovadores para o nosso caminhar. E eles veem no que vemos aquilo que não vemos. E enquanto nós vivemos em meio a problemas que, por vezes, nos angustiam, os santos respiram a atmosfera diáfana das soluções. Eles cruzam o nosso existir e forcejam para que não os reconheçamos como seres de exceção, dada a simplicidade e leveza de sua passagem por este mundo. Assim viveu o saudoso acadêmico cuja partida nos deixou perdidos na dor de captar, agora, com plena clareza, o seu peso existencial e a sinalização constante de seu viver a nos apontar para o alto e não para a periferia das coisas, para um existir marcado por uma finitude sem apelo ao Transcendente. Para configurar um ser de exceção, Luiz Paulo nos acolhia com alegria, marca indelével dos espíritos superiores. Sua alegria lhe dominava o viver como um dado a ele conatural e espargia a sua riqueza interior e a segurança de quem já havia, em vida, captado a dimensão maior da genuína imortalidade. Assim é que a música e a espiritualidade vieram associar-se o jornalismo, plataforma de lançamento de tantas vocações literárias. Nele, o jornalismo serviu para edificar os leitores, sempre partindo de premissas sólidas, por força de sua vocação inequívoca de pensador. Assim identificamos o filósofo aberto ao 20 Música e espiritualidade diálogo, mas que jamais cedeu aos rogos de um racionalismo estéril, pois Luiz Paulo invariavelmente revelava seu agudo sentido do mistério, que suplanta teorias e especulações superficiais. O nosso pranteado homenageado de hoje nutria a firme convicção de que a vida humana pende de um forte e constante apelo ao mais-ser, mercê da energia provinda do amor. Amor barateado em nossos dias, mas que Luiz Paulo nele vislumbrava cumes onde, segundo Goethe, reside a paz. É uma espécie de fé filosófica, para nos referirmos a uma expressão clara e frequente em Karl Jaspers. Toda a riqueza interior de Luiz Paulo se ancorava em uma fé religiosa consistente. Daí sua leitura e coleitura da Bíblia, quando reunia em sua casa pessoas sequiosas de alimentos do espírito, bem longe dos apelos frenéticos do consumismo empobrecedor. Música, Jornalismo e Religião formam o tripé em que se lastreou o desempenho existencial de Luiz Paulo Horta. Esta harmonia interior resultante do conúbio entre as três dimensões produziu um ser de exceção, hoje entregue à Transcendência a cuja inspiração o escritor carioca deve o brilho de sua contribuição cultural e pessoal de elevado corte. 21 Abstrata (da série Temporária), 2004 Fotografia, 127 x 190 cm Registro fotográfico: Silvio Pozzato H o m e nage m O bom, o justo, o belo Af fonso Ari nos de Mel lo Fr a nc o Ocupante da Cadeira 17 na Academia Brasileira de Letras. P ara Pier Paolo Pasolini, a vida é um filme que só se monta quando a gente morre. O filme da vida de Luiz Paulo Horta chamou-se amor. “L’amor che move il sole e l’altre stelle”, definido pelo poeta maior, Dante Alighieri. Luiz Paulo buscava em tudo o bom, o justo, o belo. Amou o outro, ao contrário de Jean-Paul Sartre, para quem o outro era o inferno. Amou o encontro. Amou ao próximo como a si mesmo, conforme lhe fora recomendado. Contou-me uma parenta, enferma de moléstia progressiva e incurável, sentir grande consolo ao frequentar o círculo bíblico criado e organizado por Luiz Paulo na sua residência, reuniões que resultariam em livro fecundo, A Bíblia: um diário de leitura. Amou a família, marido, pai e avô exemplar que sempre foi. Amou a música. Sua competência ao coordenar programas musicais na Academia representou colaboração das melhores e mais agradáveis já prestadas a esta Casa. Outro amigo, também muito 23 Af fonso Arinos de Mello Franco religioso, disse-me, certa vez, que, se não existisse música no céu, devia haver algo parecido. Luiz Paulo decerto concordaria, pois considerava a música “idioma universal”, que “nos abre as portas da transcendência”. Escrever era, para ele, “um ato de amor”. Amou sua profissão de jornalista, ora exercida como responsável pela organização da página de editoriais ou pela integração de estagiários, ora como excelente editorialista, ensaísta, cronista, crítico generoso e construtivo de música clássica. Luiz Paulo analisou e comentou, em admiráveis artigos diários, a recente estada no Brasil do Papa Francisco, que o encantou pela “avassaladora humanidade”. Outro dia, telefonou convidando para comemorarmos seu septuagésimo aniversário. Quem o atendeu observou-lhe a voz muito cansada. Ficara exausto ao acompanhar a Jornada Mundial da Juventude, interpretando solidário, com amor, penetração e conhecimento de causa, as expressões de fé e esperança proferidas pelo pontífice, a postura tão simples e corajosa do papa, que arrebatou milhões de pessoas. Mas foi a última vez em que pudemos conversar. Como ouvi do santo Papa João Paulo II, Deus é amor. Ele e Luiz Paulo sabiam disso. 24 H o m e nage m Inolvidável companheiro Cí cero Sa nd ro ni Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras. L uiz Paulo Horta foi eleito para a cadeira número 23, fundada por Machado de Assis e cujo patrono é José de Alencar. Machado ocupou sua cadeira e a Presidência da Academia por onze anos, desde a fundação até 1908. Seu sucessor, Lafayette Rodrigues Pereira, permaneceu aqui 8 anos, Alfredo Pujol, 13, Octavio Mangabeira 30, Jorge Amado 40, Zélia Gattai 6 e Luiz Paulo Horta não chegou a 4 anos entre nós, o que ocorreria no próximo dia 23 de agosto, uma semana depois de completar dos 70 anos, do qual por uma fatalidade do destino ou de um chamado do Divino, conseguiu escapar. Creio que Alguém lá no Alto ficou tão entusiasmado com o que ele escreveu sobre a visita ao Brasil do seu representante na Terra, que resolveu chamá-lo para perto Dele. Aqui, na nossa ilusória imortalidade, o querido Luiz Paulo tornou-se assim o mais breve ocupante de tão ilustre cadeira. Embora poucos de nós tivéssemos o privilégio de conviver nesta Casa com Zélia ou com Jorge, figuras inesquecíveis, ele acadêmico longevo, ela 25 Cícero Sandroni nem tanto, a breve presença de Luiz Paulo nos últimos quatro anos iluminou este plenário. Luz vinda da fé, da inteligência e cultura e do talento para envolver a Academia com a música de todos os séculos, ao dirigir a série dos nossos concertos, iniciativa do confrade Tarcísio Padilha quando presidente. Escusado é dizer que Luiz Paulo tinha as qualidades de um homem bom em todas as latitudes e longitudes, mas cultivava um vício: o da amizade. Seus amigos contam-se pelas centenas. E o extenso campo dos seus saberes, a memória privilegiada e o raciocínio rápido e sintético não permaneciam num limbo fechado ou para seu uso exclusivo. Ele o dividia com todos, em círculos de estudos, nas conferências, aqui neste plenário, na apresentação dos concertos, nas conversas com três ou quatro amigos, mesmo na mesa de um bar às quais não faltavam, com sua prosa doce e alegre a narração de algumas anedotas. Sua fé religiosa e seu saber teológico estavam à disposição de quem quisesse ouvi-lo, sempre alegre e sorridente, como mostraram as fotos publicadas pelos jornais ao noticiar o seu falecimento. São imagens que permanecerão na nossa lembrança, mas estiveram sempre presentes para mim, quando nos conhecemos na redação do Correio da Manhã e mais tarde no Jornal do Brasil. Não o acompanhei na redação de O Globo, mas sei que lá também, mansamente, sem querer convencer ninguém, ele dava, pelo exemplo, o testemunho da sua fé, talvez um dos poucos jornalistas, desse meio profissional tão cético e desiludido, capaz de manter acesa a chama da esperança numa espécie de pastoral da imprensa. Todos nós, sua família, seus amigos, confrades, colegas de jornalismo, alunos e leitores, choramos a sua perda, mas nos conforta o legado do seu exemplo e o privilégio de viver, por pouco tempo, é certo, mas o suficiente para deixar em todos a saudade de um inolvidável companheiro. 26 H o m e nage m No botequim, de fardão Merva l Perei r a L Ocupante da Cadeira 31 na Academia Brasileira de Letras. uiz Paulo Horta tinha a elegância e a sofisticação dos realmente cultos. Elegância nos gestos, na delicadeza com que tratava a todos, do contínuo da redação ao poderoso do momento. Sofisticação na inteligência. Estava bem em todo lugar. Um exemplo: perto do Globo, na Rua de Santana, no botequim da dona Ana, herdeira legítima da receita original do Angu do Gomes há uma foto na parede do nosso Luiz Paulo de fardão. Não é preciso dizer que ele era freguês da rabada e também do angu. “Ele foi um prêmio para mim”, me disse no velório sua mulher Ana Cristina Reis. Pelos depoimentos e relatos dos amigos e conhecidos, foi um prêmio para todos que convivemos com ele. Lamentamos a morte de Luiz Paulo quase como um exercício de egoísmo, choramos a falta que ele nos fará, as conversas que não mais teremos, os textos que não mais leremos, as piadas que não mais ouviremos, os comentários sarcásticos que não mais compartilharemos. 27 Merval Pereira Leitor voraz, tinha em Machado de Assis (cuja cadeira ocupava na Academia Brasileira de Letras), Lima Barreto e Carlos Heitor Cony os preferidos, não por acaso escritores ligados ao Rio de Janeiro, cidade que amava. Na música, que abraçou desde criança, ia do clássico ao popular com a mesma desenvoltura, e nada melhor para definir como se sentia à vontade nesse ambiente do que a charge do Chico Caruso publicada na primeira página do Globo, com Dominguinhos ao acordeão (que aliás Luiz Paulo tocava) e ele ao piano, sorridente. No Céu. Lembro-me de uma noite admirável, quando tive uma experiência ímpar: ao lado de Luiz Paulo, assisti ao recital de Nelson Freire no Teatro Municipal de São João del Rey, comemorativo dos 60 anos de sua estreia em um concerto público, aos 6 anos, naquele mesmo teatro. Uma noite inesquecível com Beethoven, Chopin, Villa-Lôbos, que ele classificou de “perfeita”. Luiz Paulo teve a alegria de terminar seus dias escrevendo uma coluna diária no Globo sobre a participação do Papa na Jornada Mundial da Juventude no Rio, coroando um trabalho de 23 anos de Globo, dos mais de 50 anos de jornalismo, onde fazia a crítica musical e escrevia editoriais. Estava feliz com a atuação do Papa Francisco, e a revigorada que estava dando à Igreja, e teve participação direta na visita, desde a ajuda nos trabalhos de organização à hospedagem de peregrinos em sua casa de Botafogo. Luiz Paulo era um católico estudioso da religião. Sabia a importância histórica do Vaticano, e em um de seus últimos artigos definiu: “Há mistérios no Vaticano, muito além do alcance de um Dan Brown.” Na visão histórica sobre a Igreja de Roma, ele sabia que “houve de tudo”. “Há uma tradição forte dizendo que naquela colina foi martirizado o primeiro Papa, e que uma primeira igreja teria sido construída, ali, sobre a própria sepultura de São Pedro.” Ao lado do que chamou de “os grandes Papas da Roma antiga” como São Leão, São Gregório, citou “os Papas posteriores a Carlos Magno, cujas histórias nos cobrem de vergonha (aquilo ainda era a Igreja de Cristo?)”. Para concluir: “É como se, pelas mãos do Papa, corressem os fios inumeráveis dessas histórias.” Os círculos bíblicos que realizou por mais de dez anos em sua casa ficaram famosos, e as análises saídas desse trabalho tornaram-se um livro sobre a 28 No botequim, de fardão Bíblia que virou best-seller. Certa vez, em momento de dificuldade, definiu assim seu sofrimento: “Eu entendo a vida como um dom e tudo isto que venho sofrendo faz parte deste dom maravilhoso.” Havia atingido um grau de transcendência que fica bem definido nessa sua narrativa do que o amigo Tarcísio Padilha, quando o recebeu aqui na ABL, chamou de “milagre de uma descoberta”: “Passeando uma tarde pelo terraço de nossa casa, notei que o brilho do Sol poente e a luz pálida do crepúsculo se combinavam, imprimindo à aproximação da noite uma beleza fora do comum e um encanto desconhecido. As próprias paredes da casa vizinha pareceram transfiguradas. Erguendo o véu da vulgaridade que envolve o mundo cotidiano, seria acaso o poente o mago autor desse milagre? Não. Eu bem discernia a causa de tudo na impressão produzida em minh’alma por esse espetáculo: aquela visão de beleza eclipsara a minha consciência de mim mesmo. Até então, ao ritmo diário da vida, o Eu me atravancava a consciência, alterando e encobrindo toda a perspectiva. Naquele instante, ao contrário, esse Eu passara para o segundo plano, e pude então distinguir o mundo sob seu verdadeiro aspecto. Tudo nele cintilava de beleza e de alegria. Morrera a vulgaridade.” Tinha a capacidade de utilizar seu conhecimento religioso, musical, literário, no cotidiano, como se entendesse que estava nesse mundo para compartilhar, num sentido muito mais amplo do que o que hoje está em voga, banalizado pelo Facebook. Usava o conhecimento da História para analisar a atividade política, mesmo a mais rasteira. Utilizava-se da Filosofia para interpretar os sinais que o novo mundo, multipolar e dominado pelas novas tecnologias, enviava, em mensagens cifradas, muitas vezes dolorosas, como o culto ao individualismo exacerbado, ao consumismo vazio. Foi esse o Luiz Paulo que conheci. Um humanista. 29 Sobre amarelos, 2013 Madeira, tinta acrílica, vidros planos e cabos de aço Dimensões variáveis Registro fotográfico: Romulo Fialdini H o m e nage m Luiz Paulo Horta Rosi ska Darc y d e O l ivei r a Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras. Q uando se perde um amigo como eu perdi Luiz Paulo Horta, inevitavelmente, quase como um consolo, se procura entre as muitas lembranças aquela que mais nos marca, que nos fica, indelével. Conhecemo-nos muito jovens, Luiz Paulo era colega do Colégio Santo Inácio de Miguel, meu marido. Reencontramo-nos quando, anos depois, ele me telefonou me convidando para colaborar com o Globo. Fiquei surpresa porque tínhamos trajetórias diferentes: ele era muito religioso e eu não. Mas logo descobri que o que nos separava era exatamente o que nos aproximava. Graças à sua generosidade, seu espírito tolerante, sua personalidade carinhosa aberta ao outro, mantivemos um diálogo vivo e terno entre as suas certezas e as minhas dúvidas, um diálogo que durava há muitos anos. Em Luiz Paulo coexistiam a inteligência e o rigor de uma lógica inaciana e a ternura e a caridade de um coração franciscano. 31 Rosis ka Darc y de Oliveira Às vezes me parecia que uma música interior o habitava, uma música que não acabasse nunca e, pela força da graça, vivesse uma outra vida em um mundo em que a comunicação se fizesse em sonoridades, logo ele que tão bem dominava as palavras. Em meu discurso de posse, em certo momento mencionei minhas repetidas visitas a Vézelay e confessei encontrar-me lá, sempre de joelhos, mesmo sem saber por quê. Na saída, Luiz Paulo segurou minhas mãos e perguntou “por que, Rosiska, por que, um dia, talvez em Vézelay, você vai saber por quê. Essas palavras de Luiz Paulo e o olhar que ele posou em mim foram as emoções que mais me perturbaram naquela noite. Todas as vezes que nos encontramos depois, aqui na Academia, ele me perguntou: Por que, Rosiska, já descobriu por quê? Ainda na última quinta-feira, repetiu, baixinho, a pergunta. Luiz Paulo me legou a questão essencial que me perseguirá pelo resto da vida. Sou-lhe grata por isso Continuarei, assim, dialogando com ele. E, se um dia eu responder a essa pergunta, terá sido graças ao tom meigo com que ele a formulou. E vou acreditar que foi ele que, de algum lugar, me soprou a resposta. Essa resposta que tão naturalmente atravessava todo o ser e toda a obra desse homem único. “Estou muito feliz” foram as últimas palavras que ouvi dele. E isso me consola. 32 H o m e nage m Luiz Paulo Horta ou a paixão pela beleza Ma ria Clara Lucchetti Bi ngemer O lugar é Jerusalém, Igreja da Transfiguração. O tempo é janeiro de 2013. Ao grupo que com ele viajava, Luiz Paulo Horta começou a falar sobre o texto bíblico da Transfiguração. E a emoção embargou sua voz e banhou seus olhos. Só conseguia balbuciar, em meio às lágrimas: “A beleza... a beleza...” Este episódio diz muito sobre a identidade deste jornalista, acadêmico e crítico musical que partiu tão abruptamente no início do mês de agosto, deixando em volta de si perplexidade e saudade. Trata-se de um homem apaixonado pela beleza, que fez dela o norte de sua vida. Não havia manifestação ou forma da beleza que não tomasse sua pessoa por inteiro e não o inspirasse profundamente. Em busca da beleza viveu, graças à beleza construiu sua obra. E beleza transmitiu a todos aqueles com quem se encontrava. Na música, a beleza se lhe revelou desde pequeno. Recebeu do pai um acordeão aos seis anos de idade. E a partir daí não mais deixou Jornalista pela PUC-Rio e doutora em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. É professora associada da PUC-Rio, Pesquisadora e Escritora. Tem escrito recentemente sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil e sobre a interface entre a Teologia Sistemática e a Literatura Brasileira, sobretudo nas obras de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Adélia Prado. Entre suas obras mais recentes encontram-se Crônicas de cá e de lá, JF, Subiaco, 2012 e O Mistério e o mundo, RJ, Rocco, 2013. 33 Maria Clara Lucchetti Bingemer de ouvir, escutar e respirar música. No fim da década de 80, fundou e dirigiu a seção de música do museu de Arte Moderna do Rio e tornou-se membro titular da Academia Brasileira de Música em 1994. O piano e o teclado eram por ele tocados em reuniões de amigos, com leveza e extremo bom gosto na escolha das peças. Sua preocupação maior consistia em atrair as pessoas para a música clássica, mostrar que a beleza aí contida não era monopólio de alguns eruditos, mas dom para toda a Humanidade. Nesse intuito, publicou a edição brasileira condensada do dicionário musical Grove, em 1994, e o guia Música clássica em CD, de 1997, no qual indicava as melhores gravações de obras dos grandes compositores. Houve outro tipo de linguagem além da musical cuja beleza também fascinou Luiz Paulo Horta: a palavra. Ela foi, aliás, seu instrumento de trabalho. Jornalista, escrevia diariamente não apenas críticas musicais, mas artigos, editoriais, textos vários. Publicou livros, não apenas sobre música, mas também sobre religião e outros temas. Participou de obras coletivas com textos belos e profundos, além de exatos e cheios de preciosa informação. Além de escritor, ou mesmo porque o era, tratava-se de voraz e incansável leitor. Seu conhecimento literário vastíssimo o fazia dissertar e conversar por horas sobre as obras da literatura universal com tanta tranquilidade e despretensão como o fazia sobre todos os assuntos, desde a política até a arte. Conhecia a fundo literatura francesa, espanhola, alemã, inglesa. E citava de memória trechos de obras e interpretava a outros, encantando seus interlocutores com sua sabedoria cheia de encanto e afabilidade. Detinha-se às vezes diante de algum belo texto e, além de citá-lo, se extasiava com a maestria do escritor e a musicalidade da língua. Comentava o teatro clássico francês, – especialmente Corneille e Racine – e desses monumentos de beleza literária dizia, unindo as duas artes que formavam sua paixão: “É música... é música...” Ao mesmo tempo, sabia construir um texto jornalístico com verdade e objetividade. Seus textos ficarão para sempre na história do jornalismo brasileiro por serem capazes de comunicar conteúdo e informação sem prejuízo da compreensão. Ali também sabia produzir beleza e, sobretudo, comunicá-la e posicioná-la ao alcance de todos. Essa sua intimidade com a 34 Luiz Paulo Horta ou a paixão pela bele za Palavra, feita escrita ou música, o levou merecidamente à Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira do fundador Machado de Assis. Sua paixão maior, no entanto, foi, sobretudo nos últimos anos, pela Bíblia, Palavra de Deus. Luiz Paulo era homem de fé profunda. Católico praticante, mas extremamente aberto a todas as tradições e imensamente respeitoso de qualquer opção religiosa, dedicava muito de seu tempo à leitura das Escrituras e à comunicação da mesma a outros. Em sua casa, funcionavam semanalmente grupos de pessoas que liam a Bíblia sob sua orientação. Tantos foram os que ali acorreram para conhecer melhor das Escrituras em sua companhia, que ele abriu outro grupo no Centro Loyola de fé e cultura da PUC-Rio. Sua última obra foi sobre a Bíblia e chamava-se justamente: A Bíblia: um diário de leitura, sucesso editorial e inspirado testamento. De suas páginas, emerge o hermeneuta que não constrói sua interpretação do texto sagrado apenas por técnicas linguísticas, mas movido pela paixão da beleza que inspira toda a sua vida. O rastro de beleza por ele deixado continua contagiando e dando sentido à vida de muitos. Totalmente banhado agora pelo belo Absoluto que tanto buscou e amou, o saudoso Luiz Paulo Horta será sempre uma fonte de inspiração para os que ainda caminhamos no lusco-fusco da fé em direção à Luz plena e radiante da visão que não tem fim. 35