Exposição Duplo Oxy na
Galeria Carlos Carvalho,
Portugal, 2008
H o m e nage m
O som da partida
Ivan Ju nqu ei r a
Ocupante da
Cadeira 37
na Academia
Brasileira de
Letras.
Litania Breve
À memória de Luiz Paulo Horta
E assim nos deixaste, sem queixa
ou aviso, como quem deixa
pé ante pé, a cena breve
em que o tempo, fugaz, escreve
a sua história sem sentido
ou som capaz de ser ouvido
na mais alta crista do mundo
ou em abismo o mais profundo.
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Ivan Junqueira
O som que ouvias, sempre o soube,
o órfico som que te coube
escutar decerto não era
daqui, mas antes o da esfera
onde viviam Bach, Beethoven,
Mozart e os poucos mais que se ouvem
ainda numa estranha escala
de que nem mesmo Deus nos fala.
E não ouvias só as notas.
Ouvias mais: todas as gotas
do coração que as escrevia
com sangue, paixão, agonia.
Saíste antes da hora, esquivo,
quando te víamos mais vivo
que o de costume, no exercício
de teu loquaz mas grave ofício:
refletir sobre a vida, a morte,
a loucura da Cruz, a sorte
do homem nos périplos terrestres,
a fluida música dos mestres.
Lembro-te ao piano: o toque suave,
assim como a asa de uma ave,
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O som da partida que ia do álacre ao sombrio,
do adágio ao allegro con brio,
das partituras seminais
à polca e à valsa mais banais.
Lembro-te, enfim, como quem eras
na arena, entre cristãos e feras,
e fui dar-te adeus antes dessa
viagem da qual ninguém regressa.
Então da vida foste embora?
Não: ela em ti começa agora.
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Red house, Casa pintada (da série Open House), 2005
Óleo e MDF
Dimensões variáveis em torno de 42 x 50 x 50 cm
Registro fotográfico: Vicente de Mello
H o m e nage m
Música e espiritualidade
Tarcís i o Pa d i l ha
Ocupante
da Cadeira 2
na Academia
Brasileira de
Letras.
D
esde tenra idade, Luiz Paulo ouvia o rádio sem cessar, até que
sua mãe a tal o obrigava. E aos cinco anos ganhou um acordeão que, mesmo sem professor, aprendeu a tocar. Na porta de sua
casa, em Laranjeiras, dedilhava seu novo brinquedo no porão de sua
casa, visando a angariar fundos para a construção da Igreja do Cristo
Redentor. Viu-se numa quermesse, o que lhe permitiu o comentário
revelador de sua verve sensível: “Sempre penso em invocar esta cena,
quando chegar ao juízo final: ‘ajudei’ a construir uma igreja.”
Aos 8 anos, ganhou um piano, presente de seu avô paterno, que
o encorajou a estudar com Magda Tagliaferro. Conquanto não fosse
estimulado a seguir a carreira musical, seu ímpeto natural o fez frequentar a Pro Arte, ignorando os conselhos em sentido contrário.
E vemo-lo dedilhar com maestria obras de Chopin, de Beethoven e
os concertos de Bach.
A música haveria de impregnar-lhe a alma e mesmo em propiciar
uma harmonia interior que lhe marcou o espírito, ditando-lhe o
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Tarcísio Padilha
comportamento e mesmo firmando um comprometimento definitivo com a
beleza e, através dela, com a verdade em sentido amplo.
Aí avultou um ser de eleição, modelo para seus coetâneos e cuja ausência
hoje pesa em demasia em nossos ombros frágeis.
A intersubjetividade irá, daí por diante, cinzelar o perfil existencial de um
ser humano nascido para amar, para acolher, para ajudar o próximo a carregar,
se necessário, pesadas cruzes em seu caminhar.
Santa Teresa repetia constantemente que um santo triste é um triste santo. O finado acadêmico, cuja memória procuramos honrar nesta sessão de
saudades, confirma a assertiva de que vivem à nossa volta santos que não se
identificam para que neles lobriguemos a força incoercível de sua condição
excepcional. Até porque eles vivem à nossa volta, enriquecem nossos dias e
nos apontam caminhos inovadores para o nosso caminhar. E eles veem no que
vemos aquilo que não vemos. E enquanto nós vivemos em meio a problemas
que, por vezes, nos angustiam, os santos respiram a atmosfera diáfana das
soluções.
Eles cruzam o nosso existir e forcejam para que não os reconheçamos
como seres de exceção, dada a simplicidade e leveza de sua passagem por este
mundo.
Assim viveu o saudoso acadêmico cuja partida nos deixou perdidos na dor
de captar, agora, com plena clareza, o seu peso existencial e a sinalização constante de seu viver a nos apontar para o alto e não para a periferia das coisas,
para um existir marcado por uma finitude sem apelo ao Transcendente.
Para configurar um ser de exceção, Luiz Paulo nos acolhia com alegria,
marca indelével dos espíritos superiores.
Sua alegria lhe dominava o viver como um dado a ele conatural e espargia
a sua riqueza interior e a segurança de quem já havia, em vida, captado a dimensão maior da genuína imortalidade.
Assim é que a música e a espiritualidade vieram associar-se o jornalismo, plataforma de lançamento de tantas vocações literárias. Nele, o jornalismo serviu
para edificar os leitores, sempre partindo de premissas sólidas, por força de
sua vocação inequívoca de pensador. Assim identificamos o filósofo aberto ao
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Música e espiritualidade diálogo, mas que jamais cedeu aos rogos de um racionalismo estéril, pois Luiz
Paulo invariavelmente revelava seu agudo sentido do mistério, que suplanta
teorias e especulações superficiais.
O nosso pranteado homenageado de hoje nutria a firme convicção de que a
vida humana pende de um forte e constante apelo ao mais-ser, mercê da energia
provinda do amor. Amor barateado em nossos dias, mas que Luiz Paulo nele
vislumbrava cumes onde, segundo Goethe, reside a paz. É uma espécie de fé filosófica, para nos referirmos a uma expressão clara e frequente em Karl Jaspers.
Toda a riqueza interior de Luiz Paulo se ancorava em uma fé religiosa
consistente. Daí sua leitura e coleitura da Bíblia, quando reunia em sua casa
pessoas sequiosas de alimentos do espírito, bem longe dos apelos frenéticos
do consumismo empobrecedor.
Música, Jornalismo e Religião formam o tripé em que se lastreou o desempenho existencial de Luiz Paulo Horta. Esta harmonia interior resultante do
conúbio entre as três dimensões produziu um ser de exceção, hoje entregue à
Transcendência a cuja inspiração o escritor carioca deve o brilho de sua contribuição cultural e pessoal de elevado corte.
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Abstrata (da série Temporária), 2004
Fotografia, 127 x 190 cm
Registro fotográfico: Silvio Pozzato
H o m e nage m
O bom, o justo, o belo
Af fonso Ari nos de Mel lo Fr a nc o
Ocupante da
Cadeira 17
na Academia
Brasileira de
Letras.
P
ara Pier Paolo Pasolini, a vida é um filme que só se monta
quando a gente morre. O filme da vida de Luiz Paulo Horta
chamou-se amor. “L’amor che move il sole e l’altre stelle”, definido
pelo poeta maior, Dante Alighieri. Luiz Paulo buscava em tudo o
bom, o justo, o belo.
Amou o outro, ao contrário de Jean-Paul Sartre, para quem o
outro era o inferno. Amou o encontro. Amou ao próximo como a si
mesmo, conforme lhe fora recomendado. Contou-me uma parenta,
enferma de moléstia progressiva e incurável, sentir grande consolo
ao frequentar o círculo bíblico criado e organizado por Luiz Paulo
na sua residência, reuniões que resultariam em livro fecundo, A Bíblia: um diário de leitura.
Amou a família, marido, pai e avô exemplar que sempre foi.
Amou a música. Sua competência ao coordenar programas musicais na Academia representou colaboração das melhores e mais
agradáveis já prestadas a esta Casa. Outro amigo, também muito
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Af fonso Arinos de Mello Franco
religioso, disse-me, certa vez, que, se não existisse música no céu, devia haver algo parecido. Luiz Paulo decerto concordaria, pois considerava a música
“idioma universal”, que “nos abre as portas da transcendência”.
Escrever era, para ele, “um ato de amor”. Amou sua profissão de jornalista,
ora exercida como responsável pela organização da página de editoriais ou
pela integração de estagiários, ora como excelente editorialista, ensaísta, cronista, crítico generoso e construtivo de música clássica. Luiz Paulo analisou e
comentou, em admiráveis artigos diários, a recente estada no Brasil do Papa
Francisco, que o encantou pela “avassaladora humanidade”.
Outro dia, telefonou convidando para comemorarmos seu septuagésimo
aniversário. Quem o atendeu observou-lhe a voz muito cansada. Ficara exausto ao acompanhar a Jornada Mundial da Juventude, interpretando solidário,
com amor, penetração e conhecimento de causa, as expressões de fé e esperança proferidas pelo pontífice, a postura tão simples e corajosa do papa,
que arrebatou milhões de pessoas. Mas foi a última vez em que pudemos
conversar.
Como ouvi do santo Papa João Paulo II, Deus é amor. Ele e Luiz Paulo
sabiam disso.
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H o m e nage m
Inolvidável companheiro
Cí cero Sa nd ro ni
Ocupante
da Cadeira 6
na Academia
Brasileira de
Letras.
L
uiz Paulo Horta foi eleito para a cadeira número 23, fundada por Machado de Assis e cujo patrono é José de Alencar.
Machado ocupou sua cadeira e a Presidência da Academia por onze
anos, desde a fundação até 1908. Seu sucessor, Lafayette Rodrigues
Pereira, permaneceu aqui 8 anos, Alfredo Pujol, 13, Octavio Mangabeira 30, Jorge Amado 40, Zélia Gattai 6 e Luiz Paulo Horta não
chegou a 4 anos entre nós, o que ocorreria no próximo dia 23 de
agosto, uma semana depois de completar dos 70 anos, do qual por
uma fatalidade do destino ou de um chamado do Divino, conseguiu
escapar. Creio que Alguém lá no Alto ficou tão entusiasmado com
o que ele escreveu sobre a visita ao Brasil do seu representante na
Terra, que resolveu chamá-lo para perto Dele.
Aqui, na nossa ilusória imortalidade, o querido Luiz Paulo tornou-se assim o mais breve ocupante de tão ilustre cadeira. Embora
poucos de nós tivéssemos o privilégio de conviver nesta Casa com
Zélia ou com Jorge, figuras inesquecíveis, ele acadêmico longevo, ela
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Cícero Sandroni
nem tanto, a breve presença de Luiz Paulo nos últimos quatro anos iluminou
este plenário. Luz vinda da fé, da inteligência e cultura e do talento para
envolver a Academia com a música de todos os séculos, ao dirigir a série dos
nossos concertos, iniciativa do confrade Tarcísio Padilha quando presidente.
Escusado é dizer que Luiz Paulo tinha as qualidades de um homem bom
em todas as latitudes e longitudes, mas cultivava um vício: o da amizade.
Seus amigos contam-se pelas centenas. E o extenso campo dos seus saberes,
a memória privilegiada e o raciocínio rápido e sintético não permaneciam
num limbo fechado ou para seu uso exclusivo. Ele o dividia com todos, em
círculos de estudos, nas conferências, aqui neste plenário, na apresentação dos
concertos, nas conversas com três ou quatro amigos, mesmo na mesa de um
bar às quais não faltavam, com sua prosa doce e alegre a narração de algumas
anedotas.
Sua fé religiosa e seu saber teológico estavam à disposição de quem quisesse ouvi-lo, sempre alegre e sorridente, como mostraram as fotos publicadas
pelos jornais ao noticiar o seu falecimento. São imagens que permanecerão
na nossa lembrança, mas estiveram sempre presentes para mim, quando nos
conhecemos na redação do Correio da Manhã e mais tarde no Jornal do Brasil. Não
o acompanhei na redação de O Globo, mas sei que lá também, mansamente,
sem querer convencer ninguém, ele dava, pelo exemplo, o testemunho da sua
fé, talvez um dos poucos jornalistas, desse meio profissional tão cético e desiludido, capaz de manter acesa a chama da esperança numa espécie de pastoral
da imprensa.
Todos nós, sua família, seus amigos, confrades, colegas de jornalismo, alunos e leitores, choramos a sua perda, mas nos conforta o legado do seu exemplo e o privilégio de viver, por pouco tempo, é certo, mas o suficiente para
deixar em todos a saudade de um inolvidável companheiro.
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H o m e nage m
No botequim, de fardão
Merva l Perei r a
L
Ocupante da
Cadeira 31
na Academia
Brasileira de
Letras.
uiz Paulo Horta tinha a elegância e a sofisticação dos realmente cultos. Elegância nos gestos, na delicadeza com que
tratava a todos, do contínuo da redação ao poderoso do momento.
Sofisticação na inteligência. Estava bem em todo lugar.
Um exemplo: perto do Globo, na Rua de Santana, no botequim da
dona Ana, herdeira legítima da receita original do Angu do Gomes
há uma foto na parede do nosso Luiz Paulo de fardão. Não é preciso dizer que ele era freguês da rabada e também do angu.
“Ele foi um prêmio para mim”, me disse no velório sua mulher
Ana Cristina Reis. Pelos depoimentos e relatos dos amigos e conhecidos, foi um prêmio para todos que convivemos com ele.
Lamentamos a morte de Luiz Paulo quase como um exercício
de egoísmo, choramos a falta que ele nos fará, as conversas que não
mais teremos, os textos que não mais leremos, as piadas que não
mais ouviremos, os comentários sarcásticos que não mais compartilharemos.
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Merval Pereira
Leitor voraz, tinha em Machado de Assis (cuja cadeira ocupava na Academia Brasileira de Letras), Lima Barreto e Carlos Heitor Cony os preferidos,
não por acaso escritores ligados ao Rio de Janeiro, cidade que amava.
Na música, que abraçou desde criança, ia do clássico ao popular com a
mesma desenvoltura, e nada melhor para definir como se sentia à vontade nesse ambiente do que a charge do Chico Caruso publicada na primeira página
do Globo, com Dominguinhos ao acordeão (que aliás Luiz Paulo tocava) e ele
ao piano, sorridente. No Céu.
Lembro-me de uma noite admirável, quando tive uma experiência ímpar:
ao lado de Luiz Paulo, assisti ao recital de Nelson Freire no Teatro Municipal
de São João del Rey, comemorativo dos 60 anos de sua estreia em um concerto público, aos 6 anos, naquele mesmo teatro. Uma noite inesquecível com
Beethoven, Chopin, Villa-Lôbos, que ele classificou de “perfeita”.
Luiz Paulo teve a alegria de terminar seus dias escrevendo uma coluna diária no Globo sobre a participação do Papa na Jornada Mundial da Juventude
no Rio, coroando um trabalho de 23 anos de Globo, dos mais de 50 anos de
jornalismo, onde fazia a crítica musical e escrevia editoriais.
Estava feliz com a atuação do Papa Francisco, e a revigorada que estava
dando à Igreja, e teve participação direta na visita, desde a ajuda nos trabalhos
de organização à hospedagem de peregrinos em sua casa de Botafogo.
Luiz Paulo era um católico estudioso da religião. Sabia a importância histórica do Vaticano, e em um de seus últimos artigos definiu: “Há mistérios no
Vaticano, muito além do alcance de um Dan Brown.” Na visão histórica sobre a
Igreja de Roma, ele sabia que “houve de tudo”. “Há uma tradição forte dizendo
que naquela colina foi martirizado o primeiro Papa, e que uma primeira igreja
teria sido construída, ali, sobre a própria sepultura de São Pedro.”
Ao lado do que chamou de “os grandes Papas da Roma antiga” como São
Leão, São Gregório, citou “os Papas posteriores a Carlos Magno, cujas histórias
nos cobrem de vergonha (aquilo ainda era a Igreja de Cristo?)”. Para concluir: “É
como se, pelas mãos do Papa, corressem os fios inumeráveis dessas histórias.”
Os círculos bíblicos que realizou por mais de dez anos em sua casa ficaram famosos, e as análises saídas desse trabalho tornaram-se um livro sobre a
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No botequim, de fardão Bíblia que virou best-seller. Certa vez, em momento de dificuldade, definiu assim seu sofrimento: “Eu entendo a vida como um dom e tudo isto que venho
sofrendo faz parte deste dom maravilhoso.”
Havia atingido um grau de transcendência que fica bem definido nessa sua
narrativa do que o amigo Tarcísio Padilha, quando o recebeu aqui na ABL,
chamou de “milagre de uma descoberta”:
“Passeando uma tarde pelo terraço de nossa casa, notei que o brilho
do Sol poente e a luz pálida do crepúsculo se combinavam, imprimindo
à aproximação da noite uma beleza fora do comum e um encanto desconhecido. As próprias paredes da casa vizinha pareceram transfiguradas.
Erguendo o véu da vulgaridade que envolve o mundo cotidiano, seria acaso
o poente o mago autor desse milagre?
Não. Eu bem discernia a causa de tudo na impressão produzida em
minh’alma por esse espetáculo: aquela visão de beleza eclipsara a minha
consciência de mim mesmo. Até então, ao ritmo diário da vida, o Eu me
atravancava a consciência, alterando e encobrindo toda a perspectiva. Naquele instante, ao contrário, esse Eu passara para o segundo plano, e pude
então distinguir o mundo sob seu verdadeiro aspecto. Tudo nele cintilava
de beleza e de alegria. Morrera a vulgaridade.”
Tinha a capacidade de utilizar seu conhecimento religioso, musical, literário, no cotidiano, como se entendesse que estava nesse mundo para compartilhar, num sentido muito mais amplo do que o que hoje está em voga,
banalizado pelo Facebook.
Usava o conhecimento da História para analisar a atividade política, mesmo a mais rasteira. Utilizava-se da Filosofia para interpretar os sinais que o
novo mundo, multipolar e dominado pelas novas tecnologias, enviava, em
mensagens cifradas, muitas vezes dolorosas, como o culto ao individualismo
exacerbado, ao consumismo vazio.
Foi esse o Luiz Paulo que conheci. Um humanista.
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Sobre amarelos, 2013
Madeira, tinta acrílica,
vidros planos e cabos de aço
Dimensões variáveis
Registro fotográfico:
Romulo Fialdini
H o m e nage m
Luiz Paulo Horta
Rosi ska Darc y d e O l ivei r a
Ocupante da
Cadeira 10
na Academia
Brasileira de
Letras.
Q
uando se perde um amigo como eu perdi Luiz Paulo Horta,
inevitavelmente, quase como um consolo, se procura entre
as muitas lembranças aquela que mais nos marca, que nos fica, indelével.
Conhecemo-nos muito jovens, Luiz Paulo era colega do Colégio
Santo Inácio de Miguel, meu marido.
Reencontramo-nos quando, anos depois, ele me telefonou me convidando para colaborar com o Globo. Fiquei surpresa porque tínhamos
trajetórias diferentes: ele era muito religioso e eu não. Mas logo descobri
que o que nos separava era exatamente o que nos aproximava.
Graças à sua generosidade, seu espírito tolerante, sua personalidade carinhosa aberta ao outro, mantivemos um diálogo vivo e
terno entre as suas certezas e as minhas dúvidas, um diálogo que
durava há muitos anos.
Em Luiz Paulo coexistiam a inteligência e o rigor de uma lógica
inaciana e a ternura e a caridade de um coração franciscano.
31
Rosis ka Darc y de Oliveira
Às vezes me parecia que uma música interior o habitava, uma música que
não acabasse nunca e, pela força da graça, vivesse uma outra vida em um mundo em que a comunicação se fizesse em sonoridades, logo ele que tão bem
dominava as palavras.
Em meu discurso de posse, em certo momento mencionei minhas repetidas visitas a Vézelay e confessei encontrar-me lá, sempre de joelhos, mesmo
sem saber por quê.
Na saída, Luiz Paulo segurou minhas mãos e perguntou “por que, Rosiska,
por que, um dia, talvez em Vézelay, você vai saber por quê.
Essas palavras de Luiz Paulo e o olhar que ele posou em mim foram as
emoções que mais me perturbaram naquela noite.
Todas as vezes que nos encontramos depois, aqui na Academia, ele me perguntou: Por que, Rosiska, já descobriu por quê? Ainda na última quinta-feira,
repetiu, baixinho, a pergunta.
Luiz Paulo me legou a questão essencial que me perseguirá pelo resto da
vida. Sou-lhe grata por isso
Continuarei, assim, dialogando com ele. E, se um dia eu responder a essa
pergunta, terá sido graças ao tom meigo com que ele a formulou. E vou acreditar que foi ele que, de algum lugar, me soprou a resposta.
Essa resposta que tão naturalmente atravessava todo o ser e toda a obra
desse homem único. “Estou muito feliz” foram as últimas palavras que ouvi
dele. E isso me consola.
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H o m e nage m
Luiz Paulo Horta ou
a paixão pela beleza
Ma ria Clara Lucchetti Bi ngemer
O
lugar é Jerusalém, Igreja da Transfiguração. O tempo é janeiro de 2013. Ao grupo que com ele viajava, Luiz Paulo
Horta começou a falar sobre o texto bíblico da Transfiguração. E a
emoção embargou sua voz e banhou seus olhos. Só conseguia balbuciar, em meio às lágrimas: “A beleza... a beleza...”
Este episódio diz muito sobre a identidade deste jornalista,
acadêmico e crítico musical que partiu tão abruptamente no início do mês de agosto, deixando em volta de si perplexidade e
saudade. Trata-se de um homem apaixonado pela beleza, que fez
dela o norte de sua vida. Não havia manifestação ou forma da
beleza que não tomasse sua pessoa por inteiro e não o inspirasse
profundamente. Em busca da beleza viveu, graças à beleza construiu sua obra. E beleza transmitiu a todos aqueles com quem se
encontrava.
Na música, a beleza se lhe revelou desde pequeno. Recebeu do pai
um acordeão aos seis anos de idade. E a partir daí não mais deixou
Jornalista pela
PUC-Rio e doutora
em teologia pela
Universidade
Gregoriana de
Roma. É professora
associada da
PUC-Rio,
Pesquisadora e
Escritora. Tem escrito
recentemente sobre
o pensamento da
filósofa francesa
Simone Weil e sobre
a interface entre a
Teologia Sistemática e
a Literatura Brasileira,
sobretudo nas obras
de Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e
Adélia Prado. Entre
suas obras mais
recentes encontram-se
Crônicas de cá e de lá,
JF, Subiaco, 2012 e
O Mistério e o mundo,
RJ, Rocco, 2013.
33
Maria Clara Lucchetti Bingemer
de ouvir, escutar e respirar música. No fim da década de 80, fundou e dirigiu
a seção de música do museu de Arte Moderna do Rio e tornou-se membro
titular da Academia Brasileira de Música em 1994. O piano e o teclado eram
por ele tocados em reuniões de amigos, com leveza e extremo bom gosto na
escolha das peças. Sua preocupação maior consistia em atrair as pessoas para a
música clássica, mostrar que a beleza aí contida não era monopólio de alguns
eruditos, mas dom para toda a Humanidade. Nesse intuito, publicou a edição
brasileira condensada do dicionário musical Grove, em 1994, e o guia Música
clássica em CD, de 1997, no qual indicava as melhores gravações de obras dos
grandes compositores.
Houve outro tipo de linguagem além da musical cuja beleza também fascinou Luiz Paulo Horta: a palavra. Ela foi, aliás, seu instrumento de trabalho.
Jornalista, escrevia diariamente não apenas críticas musicais, mas artigos, editoriais, textos vários. Publicou livros, não apenas sobre música, mas também
sobre religião e outros temas. Participou de obras coletivas com textos belos e
profundos, além de exatos e cheios de preciosa informação. Além de escritor,
ou mesmo porque o era, tratava-se de voraz e incansável leitor. Seu conhecimento literário vastíssimo o fazia dissertar e conversar por horas sobre as
obras da literatura universal com tanta tranquilidade e despretensão como o
fazia sobre todos os assuntos, desde a política até a arte. Conhecia a fundo
literatura francesa, espanhola, alemã, inglesa. E citava de memória trechos de
obras e interpretava a outros, encantando seus interlocutores com sua sabedoria cheia de encanto e afabilidade.
Detinha-se às vezes diante de algum belo texto e, além de citá-lo, se extasiava com a maestria do escritor e a musicalidade da língua. Comentava o teatro
clássico francês, – especialmente Corneille e Racine – e desses monumentos
de beleza literária dizia, unindo as duas artes que formavam sua paixão: “É
música... é música...” Ao mesmo tempo, sabia construir um texto jornalístico
com verdade e objetividade. Seus textos ficarão para sempre na história do
jornalismo brasileiro por serem capazes de comunicar conteúdo e informação
sem prejuízo da compreensão. Ali também sabia produzir beleza e, sobretudo,
comunicá-la e posicioná-la ao alcance de todos. Essa sua intimidade com a
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Luiz Paulo Horta ou a paixão pela bele za Palavra, feita escrita ou música, o levou merecidamente à Academia Brasileira
de Letras, onde ocupou a cadeira do fundador Machado de Assis.
Sua paixão maior, no entanto, foi, sobretudo nos últimos anos, pela Bíblia,
Palavra de Deus. Luiz Paulo era homem de fé profunda. Católico praticante,
mas extremamente aberto a todas as tradições e imensamente respeitoso de
qualquer opção religiosa, dedicava muito de seu tempo à leitura das Escrituras
e à comunicação da mesma a outros. Em sua casa, funcionavam semanalmente
grupos de pessoas que liam a Bíblia sob sua orientação. Tantos foram os que
ali acorreram para conhecer melhor das Escrituras em sua companhia, que ele
abriu outro grupo no Centro Loyola de fé e cultura da PUC-Rio.
Sua última obra foi sobre a Bíblia e chamava-se justamente: A Bíblia: um diário de leitura, sucesso editorial e inspirado testamento. De suas páginas, emerge
o hermeneuta que não constrói sua interpretação do texto sagrado apenas
por técnicas linguísticas, mas movido pela paixão da beleza que inspira toda
a sua vida.
O rastro de beleza por ele deixado continua contagiando e dando sentido à
vida de muitos. Totalmente banhado agora pelo belo Absoluto que tanto buscou e amou, o saudoso Luiz Paulo Horta será sempre uma fonte de inspiração
para os que ainda caminhamos no lusco-fusco da fé em direção à Luz plena e
radiante da visão que não tem fim.
35
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Homenagem - Academia Brasileira de Letras