Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. POR UMA ANÁLISE HISTÓRICO- RELIGIOSA DA PRIMEIRA TRADUÇÃO DO NOVO TESTAMENTO EM LÍNGUA PORTUGUESA (AMSTERDAM, 1681) Luis Henrique Menezes FERNANDES 1 RESUMO: Intentaremos apresentar suscintamente os meandros relativos à tradução e publicação da primeira versão do Novo Testamento em língua portuguesa, impressa em Amsterdam no ano de 1681. Deixando em segundo plano os seus aspectos literários, focalizamos em nossa pesquisa os conflitos religiosos subjacentes ao seu processo de tradução, ocorrido nas Índias Orientais holandesas, ao longo da segunda metade do século XVII. Talvez não haja, em termos históricos, melhor forma de identificar o significado de determinados acontecimentos do que aprofundar-se no universo conflitivo relacionado ao seu processo de produção. O objetivo central de nossa proposta é, portanto, identificar as particularidades históricas desse conflito doutrinário, visando compreender o significado histórico-religioso da primeira versão completa dos escritos bíblicos neotestamentários em língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: tradução da Bíblia; conflitos religiosos; João Ferreira de Almeida. Não há pensamento religioso (nem pensamento simplesmente), por mais puro e desinteressado que seja, que não seja colorido em sua massa pela atmosfera de uma época. (FEBVRE, 2009, p. 32). Na segunda metade do século XVII, foram publicadas, nos domínios holandeses orientais, algumas edições de um panfleto intitulado Differença d’a Christandade . Esse “livrinho”, carregado de ataques ao papado romano, materializava-se como representação literária exemplar dos constantes embates doutrinários travados entre católicos e protestantes, desde o alvorecer da Idade Moderna, na Europa Ocidental e, posteriormente, nos seus domínios ultramarinos. Esse escrito polemista, publicado numa conjuntura de expansão do Império Holandês no Oriente – graças às repetidas investidas perpetradas desde princípios do século XVII contra as possessões portuguesas –, consistia num eloquente discurso apologético da Reforma protestante, elaborado em direta oposição à ortodoxia doutrinária católica, firmada e reafirmada no Concílio de Trento (1545-1563). O fato, à primeira vista curioso, de haver sido publicado em língua portuguesa, apesar de impresso em território holandês no Oriente, se justifica, em primeiro lugar, pela importância global adquirida por esse idioma nas chamadas “Índias Orientais”, mesmo em um período em que Portugal perdia a primazia diante da abrupta ascensão dos holandeses (os quais, por vezes, obstinadamente, tentaram, sempre em vão, extinguir a língua portuguesa de seus domínios 1 Doutorando em História Social pela FFLCH-USP, pesquisador financiado pela FAPESP, e-mail: [email protected]. Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 1 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. coloniais). Além disso, o panfleto apologético da Reforma fora traduzido, anotado e impresso sob os auspícios de um até então desconhecido calvinista português – João Ferreira A. d'Almeida (1628-1691) –, ministro pregador da Igreja Reformada Holandesa da comunidade de língua portuguesa em Batávia, na ilha de Java. O seu nome, porém, permaneceria inexoravelmente associado ao pioneiro trabalho de tradução das Escrituras Sagradas do cristianismo para a língua portuguesa. João Ferreira de Almeida nasceu provavelmente no ano de 1628, em Torre de Tavares, pequeno vilarejo do Conselho de Mangualde, norte de Portugal. Não se sabe por qual motivo, emigrou para a Holanda entre 1641 e 1642, então com quatorze anos de idade, passando posteriormente aos domínios holandeses orientais. Converteu-se à religião cristã reformada neste período, quando em viagem de Batávia para Malaca (empório comercial estratégico no Oriente, conquistado pelos holandeses aos portugueses e m 1641). Aí permaneceu até 1651, havendo desde então iniciado seus esforços para traduzir as Escrituras para a língua portuguesa. Durante os cinco anos posteriores, residiu em Batávia, trabalhando junto ao presbitério da Igreja Reformada Holandesa. Após desenvolver trabalhos de missionação no Ceilão e na Índia entre 1656 e 1663, retornou para Batávia, onde permaneceu até a sua morte, provavelmente no ano de 1691. Em 1681, viu o primeiro fruto do seu trabalho como tradutor das Escrituras sair à luz, com a publicação, em Amsterdam, do primeiro Novo Testamento completo em língua portuguesa, com o seguinte título: O Novo Testamento, isto he, todos os sacro sanctos livros e escritos evangelicos e apostolicos do novo concerto de nosso fiel Senhor Salvador e Redemptor Iesu Christo, agora traduzido em portugues pelo Padre Joaõ Ferreira A d'Almeida. Quanto à sua tradução do Antigo Testamento, deixou o trabalho inacabado até os versículos finais das profecias de Ezequiel. A tradução dos demais livros do Velho Testamento foi finalizada em 1694 por outro ministro da Igreja Reformada Holandesa, companheiro de Almeida na comunidade de língua portuguesa de Batávia: o holandês Jacob op den Akker. Entretanto, a tradução completa do Velho Testamento foi publicada pela primeira vez somente em 1748 e 1753, em dois tomos, na imprensa tipográfica de Batávia, embora grande parte dessa tradução já tivesse sido impressa pela Missão Luterana Dinamarquesa de Tranquebar, na Índia. Diante dessas especificidades, focalizaremos neste texto apenas a questão da publicação do Novo Testamento, embora os conflitos religiosos subjacentes às traduções sejam os mesmos. Além disso, analisaremos neste artigo, por uma questão de espaço, apenas dois escritos polemistas referentes a esse contexto de tradução. A bibliografia existente sobre o surgimento da primeira tradução do Novo Testamento em língua portuguesa privilegia, de modo geral, a singular trajetória individual de seu principal Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 2 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. tradutor – João Ferreira de Almeida –, com ênfase nas dificuldades circunstanciais por ele encontradas na consumação desse trabalho. Os estudos existentes sobre o assunto podem ser, assim, organizados a partir de duas vertentes principais. Primeiramente, encontra -se a literatura de tendência confessional, que visa enaltecer o calvinista português por seu pioneirismo no trabalho de tradução e divulgação do texto bíblico em língua portuguesa. Dentre estes, destacam-se Guilherme Ferreira, Eduardo Moreira, Ian Swellengrebel e António Barata. Além destes, há também as pesquisas que procuram elencar sistematicamente as inúmeras edições da tradução bíblica de João Ferreira de Almeida, publicadas ao longo dos últimos quatro séculos. Neste caso, os principais autores são António Ribeiro dos Santos, Inocêncio Francisco da Silva, Cunha Rivara, Pedro de Azevedo e, mais recentemente, Herculano Alves. É possível perceber, todavia, que a bibliografia produzida especificamente sobre o conflituoso contexto de tradução do Novo Testamento em língua portuguesa carece de uma maior profundidade analítica e de uma mais densa problematização histórica. Essa “defasagem” historiográfica – diante das ricas fontes primárias disponíveis – decorre, primeiramente, do fato de não haver sido dada a devida ênfase à relação intrínseca existente entre o processo histórico de elaboração da primeira tradução da Bíblia em português e os conflitos doutrinários católico calvinistas a ele subjacentes, manifestos abundantemente nos diversos escritos polemistas vinculados diretamente ao ambiente da tradução. Além desse as pecto evidente – ou melhor, como decorrência dele –, a historiografia acabou não analisando com a atenção necessária as diversas fontes relacionadas ao tema, todas indispensáveis ao seu satisfatório entendimento histórico. Supomos, em vista disso, que a formação da primeira tradução do Novo Testamento em língua portuguesa, em sua singularidade e importância histórica, não poderá ser satisfatoriamente compreendida se não forem analisados rigorosamente os diversos escritos apologéticos, catequéticos e polemistas relacionados diretamente ao contexto de sua elaboração (os quais, como vimos, permanecem apenas superficialmente explorados pela bibliografia especializada). Neste sentido, visando uma compreensão histórica aprofundada da tradução bíblica de João Ferreira de Almeida no Oriente seiscentista, torna-se indispensável proceder-se a uma análise minuciosa dos conflitos católico-calvinistas subjacentes ao processo de sua elaboração. A hipótese central de nossa investigação é a ideia de que o contexto espacial e m que esses conflitos tomaram corpo (as então chamadas “Índias Orientais”) incidiu sobre eles de forma expressiva, tornando-os singulares em termos doutrinários, literários e missiológicos. Em outras palavras, a proximidade geográfica desse choque doutrinal em relação à alteridade cultural do Oriente luso-holandês e suas circunvizinhanças (especialmente em relação aos Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 3 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. povos nativos da ilha de Java, de Ceilão, da Índia, da China e do Japão) parece ter levado os contendores religiosos europeus a compreendê-la – após absorverem sub specie religionis as culturas locais, ou seja, interpretá-las de acordo com seu particular código ocidental de “religião” – pelo prisma privilegiado do embate doutrinário no qual estavam de todo inseridos. Nessa conjuntura delicada, teriam sido produzidos não somente os escritos catequéticoapologéticos já delineados, mas também a própria tradução pioneira do Novo Testamento em língua portuguesa. Assim, não nos interessa exatamente analisar e descrever a alteridade cultural das Índias Orientais seiscentistas em si, conforme as indicações que, porventura, apareçam na documentação analisada. Estamos buscando, fundamentalmente, analisar de que forma essa alteridade cultural foi absorvida e instrumentalizada por católicos e calvinistas em suas disputas teológicas, para podermos identificar as singularidades dos produtos religiosos resultantes desse processo. Portanto, não nos interessa, neste caso, analisar o que aquelas culturas “realmente eram” – para depois lamentarmos como teriam sido distorcidas pelas interpretações ocidentais –, mas queremos, justamente, enfatizar no que elas se transformaram no interior do debate teológico católico-calvinista, tornando possível, assim, a identificação das particularidades desse conflito religioso específico das Índias luso-holandesas orientais. Além disso, devemos destacar que a questão das particularidades relativas ao embate religioso analisado é fruto espontâneo do caráter histórico que fundamenta nossa pesquisa. Em outras palavras, o domínio histórico é, em si mesmo, ciência das particularidades – não por ser um apanhado de curiosidades sobre o passado, mas por focalizar inexoravelmente as transformações no tempo, decorrentes de certos contextos específicos –, de tal sorte que o imutável, o uno, o eterno, etc., como apontamos acima, são objeto de reflexão, não do historiador enquanto tal, mas do filósofo, do teólogo ou do místico. Assim, uma análise, de fato, histórica desses conflitos religiosos só será tal na medida em que for, sobretudo, estudo de suas particularidades, e não apenas de sua homogeneidade em relação a outros contextos similares. A documentação relativa ao contexto de elaboração da primeira edição do Novo Testamento em língua portuguesa demonstra que este trabalho de tradução não se r esume a um esforço apenas literário de divulgação das Escrituras judaico-cristãs em língua vulgar, mas é parte integrante de toda uma postura religiosa, espiritual e missiológica, diante do mundo de sua época, destinada especialmente (mas não exclusivamente) à sociedade portuguesa católica do século XVII. Isso podemos apreender pela leitura do prefácio escrito pelo próprio João Ferreira de Almeida, em 1668, ao tratado Differença da Christandade, traduzido por ele em português a partir de uma versão original castelhana. Nesse prólogo, intitulado “Ao discreto Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 4 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. leitor”, Almeida dirige-se explicitamente “a todos os senhores católicos romanos da nação portuguesa, de qualquer estado, qualidade e condição que sejam, com todos os demais que da língua portuguesa usam, e juntamente deveras desejam e procuram sua salvação ”. (ALMEIDA, 1684, p. 19). Nesse mesmo prefácio, podemos encontrar grande parte das informações sobre a passagem de João Ferreira de Almeida à Igreja Reformada Holandesa, em 1642, justamente a partir da leitura desse folheto em língua castelhana, cuja autoria tem gerado dúvidas e hipóteses entre os especialistas. O propósito de tradução desse “livrinho” em língua portuguesa seria possibilitar, segundo João Ferreira de Almeida, a “ conversão e salvação dos que outra nenhuma língua sabem, senão a portuguesa” , enquanto não houvesse tradução das próprias Escrituras Sagradas nesse idioma. (p. 10). Assim, portanto, os esforços de Almeida na divulgação da doutrina da Igreja Reformada em língua portuguesa – esforço este que engloba todo o seu trabalho de tradução das Escrituras – se destina, não somente ao Reino de Portugal, mas também às populações de língua portuguesa que habitavam as Índias Orientais naquele período, especialmente os fiéis católicos romanos. Neste mesmo prefácio, o tradutor português apresenta sua indignação diante da situação de Portugal em relação a essa matéria: Que seja possível que não haja já hoje, em toda a nossa Europa, a mínima nação, que em sua própria língua tenha já impressa toda a Escritura Sagrada, e que só a portuguesa não tenha ainda, na sua, impresso nem um só evangelho? E só ela, entre tantas, careça de um tamanho, inefável, incompreensível e salutário bem! Que seja esta nação, em tudo o demais, uma das primeiras e principais, e no que, sobretudo, mais lhe importa, chegue a tanta miséria, que ela só venha a ser a última e ínfima! Que todas as outras deem entrada e abram os olhos a esta divina luz, e que só esta, tão pertinazmente, lhe resista e se lhe oponha! (ALMEIDA, 1684, p. 25 -26). Em seguida, vemos João Ferreira de Almeida tratando do seu propósito pessoal de tradução da Bíblia em português – trabalho por ele iniciado já em 1642, ano de sua conversão ao cristianismo reformado, contando com apenas quatorze anos de idade –, dando-lhe todo o significado espiritual e sagrado, que desejamos enfatizar nesse momento: [Por enquanto], vos podeis servir e ajudar da versão castelhana [da Bíblia], uma das melhores que, até o presente, tenha saído à luz, [...] até que, mediante o divino favor, acabe de alimpar, e bem conferir com o texto original, uma tradução do Novo Testamento que, já vai por alguns anos, tenho preparada. E, o mais presto que puder, pretendo fazer sair à luz. Como também (dando-me Deus, nosso Senhor, vida, tempo e saúde), com todas minhas forças, ainda que bem poucas (que, enfim, quando os homens calam, faz Deus que as pedras falem), espero, em poucos anos, fazer o mesmo com o Velho, e dar-vos, assim, em breve, toda a Escritura Sagrada em vossa própria língua. Que é a maior dádiva, e o mais precioso tesouro, que nunca ninguém, que eu saiba, até o presente, vos tenha dado. (p. 26 -27). Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 5 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. É possível, desde já, perceber que tentar reduzir a compreensão histórica do processo de formação dessa primeira tradução completa do Novo Testamento em língua portuguesa aos seus aspectos sociais, literários ou políticos, por exemplo, constituiria indevida simplificação da matéria, desviando o objeto analisado de seu aspecto central: os conflitos religiosos a ele subjacentes e, portanto, circunscritos ao domínio autônomo da perspectiva histórico-religiosa. Os fatos religiosos devem ser estudados historicamente com ênfase naquilo que trazem de peculiar às sociedades em que se constroem e nas quais se manifestam: sua sacralidade, construída, porém, historicamente. Em relação ao conteúdo da Differença d’a Christandade , focalizamos nossa análise sobre as muitas notas que compõem o texto, por serem escritas pelo próprio João Ferreira de Almeida, sendo portadoras, portanto, de algumas particularidades provenientes de seu contexto específico de produção. O tom é, como em todos os seus escritos, de franco ataque às doutrinas católicas, reafirmadas veementemente, no século anterior, pelo Concílio Tridentino. Em relação às acusações de que os reformados seriam hereges, Almeida responde dizendo que “por heresia, não entendem outra coisa, senão a verdadeira, divina e antiga doutrina católica e apostólica cristã de nossas igrejas reformadas”, as quais, segundo ele, “pela graça e misericórdia de Deus, nosso Senhor, já do papismo e do anticristianismo estão purgadas e purificadas”. (p. 46). No entanto, o aspecto mais interessante dessas notas explicativas – acrescentadas por João Ferreira de Almeida ao texto original castelhano, visando adaptar, ao que parece, s uas informações ao contexto específico português – corresponde, para nossa proposta, às comparações estabelecidas entre a missa romana e as cerimônias gentílicas das Índias Orientais, especialmente chinesas e japonesas. Em dado momento de seu texto, o trad utor calvinista defende que “quem for à China e ao Japão, pode bem coligir quão grande conveniência tenha a missa com as cerimônias e superstições ridículas e idolátricas daquelas partes, e de toda a demais gentilidade” . (p. 111). Segundo sua visão, as cerimônias católicas devem ser consideradas não mais que “ uma pura gentilidade, e uma mera, abominável e gentílica idolatria ”. (Idem). Intentando comprovar tal afirmativa, refere-se ao relato de um fato histórico: Bem claro se viu naquele tão notório e abominável exemplo de Dom Vasco da Gama e seus companheiros, quando foram a descobrir a Índia. Pois, entrando em Calicute num pagode dos gentios, se ajoelharam e adoraram aos ídolos que nele estavam, cuidando que eram imagens a seu modo, ou, para melhor dizer, ídolos à romanesca. Tanta é a semelhança que entre uns e outros há, e tanta a conformidade entre as cerimônias e superstições gentílicas e as romanas. (p. 130). Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 6 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. Concluindo seu raciocínio, afirma que “a mesma semelhança se acha também entre a uma e a outra idolatria, assim dos infiéis gentios, como dos cegos e pertinazes papistas; entre os ídolos dos uns e dos outros, e o modo e maneira de os adorar”. Por fim, faz referência específica aos casos chinês e japonês, onde, segundo ele, “ a semelhança é tanta, que a muitos faz ficar atônitos”. (p. 131). Parece elemento distintivo de seu discurso, também, a comparação estabelecida por João Ferreira de Almeida entre a missa católica e expressões como “feitiçarias”, “encantamento” e “agouro”. Em sua estrutura discursiva, as cerimônias católicas encontram-se, portanto, num degrau abaixo da “religião”, sendo identificadas às magias do paganismo. Em seus próprios termos, o clero católico romano acabou, ao longo dos séculos, por “ corromper e falsificar a sacrossanta e salutífera doutrina do Santo Evangelho, convertendo-a e mudando-a, assim, em puros e meros agouros, superstições, feitiçarias e encantamentos” . (p. 144-145) A aparência exterior da missa lhe parece elaborada para “ entreter o povo em ignorância, superstição e idolatria, trazendo-o assim embebido, enguiçado e como que encantado e enfeitiçado com aquelas mostras de pompa exterior ”. (Idem). Há ainda, no fim da obra, um anexo bastante curioso, intitulado “ Corolário”, onde se estabelece uma equiparação, em forma de verso, entre o Papa e Maomé (a quem chama Mafoma, conforme a grafia da época). (p. 199). De fato, os elementos do Islã são instrumentalizados diversas vezes nesse embate, por ambos os lados, para defenderem suas posições doutrinárias e atacarem seus opositores. Neste caso, não há referências ao autor do poema, que não podemos deixar de supor que seja o próprio João Ferreira, pelo seu conteúdo polemista. O trecho reza assim: Pergunta. Digam-me, pois, que diferença Há entre o Papa e Mafoma? Se, em Roma, em tanta eminência, Se entroniza assim Sodoma! Resposta. Não há nenhuma, e há muita. Mas parece contradiz? Não: espremei esta fruta; Sereis então bom juiz. Conclusão Provante. Nenhuma, pois alto prega Roma inteira tudo isto. Muita, pois Mafoma nega, E o Papa simula a Cristo. Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 7 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. Outro documento, relativo a esse contexto de embates doutrinários, fundamental para a compreensão histórico-religiosa do processo de surgimento da Bíblia em português, intitula-se Carta Apologetica em defenção da Religião Catholica Romana contra João Ferreira de Almeida, predicante da secta calvinista. Foi escrito por volta de 1670 pelo frade agostiniano Jerônimo de Siqueira, cujo nome verdadeiro era Antônio Dias. Trata-se do único texto apologético católico escrito explicitamente contra João Ferreira de Almeida. O único exemplar dessa Carta Apologética é um manuscrito e encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Foi através dessa fonte que se descobriu o local de nascimento de Almeida – Torre de Tavares, no Concelho de Mangualde, norte de Portugal –, até então desconhecido e geralmente citado como tendo nascido em Lisboa. Interessante notar, a partir da análise deste escrito, primeiramente, o fato de o seu autor parecer desconhecer a relação entre João Ferreira de Almeida e o seu propósito de tradução da Bíblia em língua portuguesa (até este momento, não havia sido publicado ainda a primeira edição do Novo Testamento, de 1681, e as versões portuguesas neotestamentárias de Almeida circulavam apenas em versões manuscritas, especialmente em Malaca, Ceilão e Batávia). O frade agostiniano se levanta, por um lado, contra o panfleto sobre a Differença d’a Christandade e, por outro, mais especialmente, contra uma carta de João Ferreira de Almeida – enviada a João Correia de Mesquita, fidalgo da Ordem de Cristo – sobre um encontro conflitivo entre ambos, que teria ocorrido em Batávia, em meados da década de 1660. Nesse encontro, marcado por intensos debates teológicos, conforme podemos coligir desse e de outros documentos analisados, o centro da controvérsia entre ambos foi a seguinte questão: é possível ou não aos homens guardar perfeitamente os preceitos de Deus? A partir daí, a tônica do texto é uma tentativa de degradação, não apenas doutrinária, mas especialmente moral, do calvinista português e de seus correligionários. Segundo Siqueira, João Ferreira de Almeida “traz em sua carta a fábula tão mal composta, autorizada com vinho, como se os portugueses se criassem em tavernas, como hereges fazem, sendo estas suas escolas”. (SIQUEIRA, 1670, p. 42). Têm especial relevância, porém, para nossa análise, as comparações estabelecidas pelo agostiniano entre João Ferreira de Almeida e Maomé. No final de seu texto, Jerônimo de Siqueira estabelece um paralelo entre a biografia do profeta do Islã e a trajetória de Almeida, desde seu nascimento até a renegação da fé católica, em 1642 (daí ser o documento rico em informações biográficas sobre o tradutor português). Conforme os termos de Siqueira, convém essa comparação: Porque o vejo na vida mui semelhante a Mafoma. Porque, se Mafoma foi precursor do anticristo, João Ferreira foi o que seus passos seguiu muito ao claro. [...] Aquele, amigo leitor, foi Mafoma; este é João Ferreira. Aquele, Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 8 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. legislador da mais infame seita, e este, predicante da ne fanda religião calvinística. (p. 148-149). Essa equiparação entre Islã e Reforma é bastante recorrente na documentação católica contra as doutrinas do cristianismo reformado. Do mesmo modo, como já demonstramos, João Ferreira de Almeida também instrumentalizou componentes da religião islâmica em seu discurso, utilizando-os, por sua vez, contra o catolicismo romano. Por outro lado, Jerônimo de Siqueira estabelece também algumas relações entre as doutrinas reformadas e a chamada “obstinação judaica”. Já no início de sua carta, pondera que “ de hebreus a hereges, vai pouca diferença”. (p. 5). Citando uma profecia do Antigo Testamento, escrita expressamente contra a Casa de Israel, Siqueira expressa que: não só dos hebreus entendo eu essa profecia, mas também o desatino da calvinística seita o profeta com ela chora, porque igreja mais dissoluta, a que Vossas Mercês chamam reformada, não mostra só [em] enganar a fé de Cristo sua malícia, mas também em blasfemarem dela mostram sua pouca vergonha. (Idem). Assim, segundo seus argumentos, o que se diz dos hebreus no Velho Testamento, no tocante a sua desobediência aos preceitos divinos, exatamente o mesmo “ se pode dizer dos da família calvinística, pois chamando a sua igreja ‘reformada’, são os mais ímpios na vida; na doutrina, os mais blasfemos; no político, os mais tiranos; e contra a divina lei, os mais cegos” . (p. 6). Finalmente, Jerônimo de Siqueira acusa João Ferreira de Almeida, juntamente com toda a Igreja Reformada, de ateísmo, devido, primeiramente, ao apego dos calvinistas aos seus escritos catequéticos – citando explicitamente o Catecismo de Heidelberg –, bem como pelo não reconhecimento dos escritos deuterocanônicos do Velho Testamento. Assim, pudemos demonstrar, de maneira bastante breve, alguns meandros históricoreligiosos desse conflito doutrinário, subjacente à primeira tradução do Novo Testamento em língua portuguesa, identificando também, ainda que preliminarmente, não apenas o seu valor de homogeneidade/recorrência no âmbito da história das religiões, mas também, e acima de tudo, sua particularidade enquanto processo religioso singular, resultante de sua ocorrência em um contexto histórico e cultural particularizado. Amparados por parte da documentação selecionada, pudemos demonstrar, por um lado, o caráter religioso desse trabalho de tradução, a partir da análise dos conflitos relativos ao seu ambiente de produção, e por outro, algumas das suas particularidades, relativas ao seu contexto específico de produção. Evidentemente, há inúmeras outras particularidades que não foram tratadas neste artigo, por conta de sua brevidade, mas em outra oportunidade poderemos destacar a maneira como este conflito doutrinário, a princípio intra-europeu, se manifestou de forma sui generis em um novo contexto Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 9 Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações ” Acta, Assis, v. 2, 2013. espacial e cultural, trazendo consigo não apenas singulares produtos doutrinais, mas também missiológicos e literários. Referências Bibliográficas ALVES, Herculano. A Bíblia de João Ferreira Annes d'Almeida . Lisboa: Sociedade Bíblica, 2007. AZEVEDO, Pedro de. O calvinista português, Ferreira de Almeida. Boletim de Segunda Classe da Academia de Ciências de Lisboa, vol. XII. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1919. BARATA, António da Costa. João Ferreira de Almeida: o homem e a sua obra. Imago Dei. n. 7, 1.º semestre, 2003/04. FEBVRE, Lucien. 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O NOVO TESTAMENTO, isto he, Todos os Sacro Santos Livros e Escritos Evangelicos e Apostolicos do Novo Concerto de nosso Fiel Senhor Salvador e Redemptor IESU CHRISTO. Agora traduzido en Portugues Pelo Padre João Ferreira A d’Almeida, Ministro Pregador do Sancto Evangelho. Em Amsterdam: Por viuva de J. V. Someren. Anno 1681. Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109 11