Mudança climática, riscos e vulnerabilidade: um estudo dos eventos ocorridos em 1967 e 1996 na planície litorânea de Caraguatatuba – SP Luciana Marcondes Frade Braga de Castro Carina Oliveira de Souza Lucas Gonçalves Penna O presente trabalho apresenta uma revisão de estudos existentes, sobre os eventos extremos ocorridos na Serra do Mar, na área do município de Caraguatatuba – SP, nas décadas de 1960 e 1990 e suas implicações para a população local. Estudos indicam que características biofísicas e climatológicas, somadas às ações antrópicas, contribuem para uma maior fragilidade ambiental, principalmente nas áreas de encosta, acentuando sua vulnerabilidade à ocorrência de eventos extremos. Pesquisas demonstram que, além destas características, alterações no padrão do clima global, podem contribuir para intensificação de tais eventos. Este trabalho propõe-se a fazer uma compilação de dados e estudos sobre a Fazenda Serramar, também conhecida como Fazenda São Sebastião e Fazenda dos Ingleses, localizada em uma grande área de planície litorânea. Esta foi importante pólo de atividades sócio-econômicas do município de Caraguatatuba até a década de 1970, e, atualmente, recebe as instalações da Unidade de Tratamento de Gás Monteiro Lobato – UTGCA da Petrobras, parte do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC) e do Plano de Antecipação da Produção de Gás (Plangas). Estudos recentes, relacionados à vulnerabilidade das populações, propõem um novo enfoque, mais amplo, para além da dinâmica biofísica do evento, e, que considera as relações entre os processos sociais, políticos e econômicos envolvidos no desastre. Sob este prisma, buscamos identificar as novas perspectivas, riscos, vulnerabilidades das populações locais e mudança climática local e regional (Vale do Paraíba) a partir do novo uso e exploração da área da planície litorânea de Caraguatatuba – SP conhecida como Fazenda Serramar. Palavras-chave: Eventos extremos; Mudanças climáticas; Riscos; Vulnerabilidade. Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em CaxambúMG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010. Este estudo foi desenvolvido no âmbito do projeto temático Urban growth, vulnerability and adaptation: social and ecological dimensions of climate change on the coast of São Paulo, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. Graduanda em Geografia, bolsista PIBIC do Laboratório de Desenvolvimento Urbano e Mudança Climática da Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP, São José dos Campos – SP. [email protected] Graduanda em Engenharia Ambiental, aluna de Iniciação Científica do Laboratório de Desenvolvimento Urbano e Mudança Climática da Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP, São José dos Campos – SP. [email protected] Graduando em Engenharia Ambiental, aluno de Iniciação Científica do Laboratório de Desenvolvimento Urbano e Mudança Climática da Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP, São José dos Campos – SP. [email protected] Mudança climática, riscos e vulnerabilidade: um estudo dos eventos ocorridos em 1967 e 1996 na planície litorânea de Caraguatatuba – SP. Luciana M. F. Braga de Castro Carina Oliveira de Souza Lucas Gonçalves Penna O presente trabalho é o primeiro de uma série de estudos. A intenção é aprofundar as pesquisas sobre o processo de formação do município de Caraguatatuba, as relações entre ciclos econômicos e o uso e ocupação do solo e as diferentes matrizes socioculturais envolvidas, mas, principalmente a relação destes processos com as mudanças climáticas, em escala local, regional e global. Introdução Os colonizadores europeus que aqui desembarcaram, encontraram um território de possibilidades para manutenção dos ciclos da economia mercantil da época e, principalmente, índios. Milhares de índios de diversas etnias e que ocupavam, principalmente, áreas do litoral e do planalto. Frei Gaspar da Madre de Deus denominava uma das maiores barreiras entre o planalto e o litoral como ‖muralha da Serra do Mar ―. Sua ―conquista‖ se deu graças aos caminhos e trilhas indígenas de ―pés que amassam‖, os peabirus. André Fida e Mário Ricci (2008) afirmam que entre 1500 – 1900, o Litoral Norte Paulista conheceu o ciclo da cana-de-açúcar, que atraiu muitos aventureiros e agricultores para a região. Em seguida, o Litoral Norte teve função relevante para a exportação do ouro explorado em Minas Gerais, através do porto de Ubatuba, e por fim o ciclo mais próspero que a região vivenciou, caracterizado pelas fazendas de cultivo de café, que, através do porto de São Sebastião, escoava toda produção para a Europa. (FIDA e RICCI, 2008, p.3) Entretanto, mesmo com o obstáculo físico vencido, a ligação entre planalto e litoral oscilou ao longo dos ciclos econômicos, principalmente com a implantação das ferrovias conectando São Paulo a Santos e posteriormente São Paulo ao Rio de Janeiro Hoje, um novo ciclo econômico se apresenta à região, relacionado principalmente com a exploração das reservas de petróleo conhecidas como Pré–Sal. Muito diferentes dos peabirus, os caminhos atuais até o Litoral Norte são a Rodovia dos Tamoios e a Rodovia Oswaldo Cruz, transpondo os ―mares de morro― e cortando o que Olga Cruz denomina de ―escarpa tropical em plena evolução‖ ou, simplesmente, de Serra do Mar (Cruz, 1974, p.9). Paisagem hoje ocupada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – por aproximadamente 96.000 habitantes .(IBGE, 2009). Com relação aos processos biofísicos existentes na área, Bertrand os denomina como evolução da paisagem, os declives acentuados, a umidade e calor elevados e constantes, a permanência do escoamento superficial e subsuperficial, a rocha alterada, as formações superficiais espessas, a mamelonização1 das formas, a floresta compacta, a exuberância bacteriana e, conseqüentemente, a maior velocidade das reações químicas e evolução rápida da matéria orgânica‖. (BERTRAND, 1968 apud Cruz, 1974, p. 10 e 11). Esta descrição enfatiza a existência de uma dinâmica natural própria e bastante característica da área de estudo. Ao longo de sua história, o munícipio de Caraguatatuba recebeu , recebe e ainda irá receber outras variavéis, além da dinâmica natural, condicionada às ações antrópicas de uso e ocupação e pelas alterações climáticas originárias do próprio local e de além dele. Sob este prisma, buscamos identificar as novas perspectivas, riscos e vulnerabilidades das populações locais assim como as possíveis contribuições que as mudanças de uso e cobertura do solo possam trazer para a mudança climática local e regional de um recorte desta vasta planície – a Fazenda Serramar. Fazenda Serramar – Breve Histórico A Fazenda São Sebastião, também conhecida como Fazenda dos Ingleses, situava-se na vasta bacia do rio Juqueriquerê, banhada pelos rios Claro, Pirassununga, Camburu e outros de menor porte, tendo como limitadores principais, a serra e o mar. A exploração desta planície iniciou-se com as atividades da empresa estatal italiana Madeiras J. Charvolin e, em seguida, entre 1914 e 1916 pela Société Française pour I'Exploitation et le Commerce des Bois Exotiques empresa particular francesa. A atividade de ambas resumia-se na extração e posterior exportação de madeiras nobres para o mercado europeu. Entretanto, nenhuma das duas empreitadas apresentou o retorno esperado por seus investidores e, em meados da década de 1920, segundo Marino Garrido as terras foram vendidas para a empresa inglesa The Lancashire General Investment Company, com sede em Londres (GARRIDO, 1988, p.). A partir de 1927, a propriedade passa a ser chamada de Fazenda dos Ingleses, especializando-se na produção de banana e frutas cítricas exportadas para o mercado inglês. A instalação deste pólo agroindustrial contribuiu significativamente para alterar as características do munícipio de Caraguatatuba. Um dos indícios, dentre outros relacionados à instalação de infraestrutura de serviços e transportes, foi a própria produção, principalmente da banana. Em estudo sobre a produção deste gênero no Litoral Norte na década de 60, Coelho e Audi que afirmam que ― [...] a maior 1 Segundo Aziz Nacib Ab'Sáber: conjunto de processos fisiográficos, suficientemente capaz de arredondar as vertentes de rochas cristalinas decompostas, até o nível de uma feição geométrica poli-convexa, fato que se processa pari passu com o aprofundamento do intemperismo químico, a pedogênese tropical realizada ao impacto da expansão das florestas pluviais. Fonte: http://www4.fct.unesp.br/tadeu/TEXTOS/paisagens_subtropicais.pdf , acesso em 20/03/2010. área de cultivo pertence à fazenda São Sebastião (fazenda dos Ingleses), com 837,0 ha. e 1.195.000 pés, 50% do total estimado no litoral Norte‖, algo em torno de 60% da área total cultivada no Litoral Norte e 70% do número de pés (COELHO e AUDI, 1966, p.92). Visando a organização da produção na área da fazenda foi organizada por seções, conforme o gênero de cultivo (bananicultura ou citricultura). Marino Garrido afirma que eram dedicadas à bananicultura as áreas conhecidas como Anhembu, Cachetel Camburu, Bela Cachoeira, Ribeirão, Sítio Velho, Bananal, Gentia e Pirassununga. A produção de frutas cítricas localizava–se nas áreas da Lagoa, Indaiaraquara, Anhembu, Ribeirão e Camburu. Entretanto, além de produzir, era necessário escoar a produção até o porto de São Sebastião e, para tanto, foi construído um porto às margens do rio Juqueriquerê, além da realização de outros investimentos em transportes como ―uma rede ferroviária interna, que chegou a ter 120 quilômetros de extensão e tronco e 40 ramais [...] quando a produção estava em seu melhor período — 10 ou 12 máquinas [...] e 200 vagões‖ além de sete lanchas e rebocadores utilizados para conduzir 20 chatões, com capacidade de 55 toneladas até os navios ingleses no porto de São Sebastião (GARRIDO, 1988, p.82 e 83). FOTO 1 Lanchas e chatões no porta da fazenda – Rio Juqueriquerê Grunewald, G., sem data definida, 1 fotografia. Depois da década de 1940, ocorreram novos investimentos em telefonia2 e na instalação de uma estação de radioamador usada, principalmente, para a comunicação entre Caraguatatuba e o escritório da empresa, localizado em Santos, além da conexão com os rebocadores e lanchas em viagem. 2 Marino Garrido afirma que todas as seções da Fazenda estavam ligadas à Administração Geral por uma rede telefónica, através de uma central alimentada por pilhas. Ao todo eram 40 telefones instalados, além de uma extensão ligando a residência do representante da Fazenda na vila à Delegacia de Polícia do município (GARRIDO, 1998, ???). Outro aspecto relevante era a infraestrutura de moradia e serviços para os funcionários e respectivas famílias, que contava com oito grupos escolares, seis ou sete capelas católicas, assistência médica, odontológica e farmacêutica além de atividades de lazer como cinema e campo de futebol. A Fazenda funcionou como um pólo produtivo, atraindo trabalhadores da região, vindos de Caraguatatuba, São Sebastião, Ubatuba, Ilhabela e Parati, e, também, de cidades do Vale do Paraíba como Natividade da Serra, Redenção da Serra, Paraibuna, São Luiz do Paraitinga, Eugênio de Melo e Jambeiro. Há registros de trabalhadores vindos até mesmo de cidades nordestinas como Feira de Santana e Juazeiro. Tal fato pode ser identificado no crescimento da população residente entre 1920 e 1940 apresentado no Gráfico 1. GRÁFICO 1 População residente no município de Caraguatatuba -SP Habitantes 5730 2917 1920 1940 Fonte: Enciclopédia dos Municípios, Volume VI, p. 355 e 356 apud GARRIDO, 1988, p.140 e 141. De maneira geral, a presença da fazenda contribuiu para a expansão das atividades econômicas representadas principalmente pela agricultura, comércio e artesanato, tanto no Litoral Norte como em outras regiões do estado. A infraestrutura de transportes também foi melhorada por influência da fazenda. Em 1932, foi construída a estrada Alto da Serra-Caraguatatuba e, posteriormente, os trechos Caraguatatuba-São Sebastião e Caraguatatuba-Ubatuba3. Outras consequências citadas por Marino Garrido foram o aumento significativo da população do município, o aumento da especialização da mão-de-obra na agricultura, a expansão dos meios de comunicação e o aumento da Receita Pública Municipal, Estadual e Federal. A fazenda foi desativada em 1967. Todavia, o processo de declínio iniciou-se durante a Segunda Guerra Mundial com alterações nas culturas, ocorrendo a introdução de plantações de arroz, juta e menta, cravo da índia, goiaba, abacaxi, abacate e seringueira, para adaptar-se. FOTO 2 3 Este foi um dos fatores que possibilitou, posteriormente, o fluxo de turismo no Litoral Norte de SP. Plantação de bananas – Fazendas dos Ingleses Grunewald, G, sem data definida., 1 fotografia Eventos Extremos em Caraguatatuba Caraguatatuba é um município do Estado de São Paulo situado entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar. Como municípios limítrofes possui: Natividade da Serra ao norte, Ubatuba a nordeste, Oceano Atlântico a sudeste, São Sebastião ao sul, Salesópolis a oeste e Paraibuna a noroeste. De acordo com o IBGE, o município possui 484 km² de extensão e, segundo, o Instituto Florestal do Estado de São Paulo com relevo predominante de escarpas festonadas4. As encostas escarpadas da Serra do Mar possuem como característica natural a instabilidade, estando sujeitas à ocorrência de fenômenos de movimentação de massa devido à declividade superior a 40%. Somando sua instabilidade natural à ocorrência de freqüentes chuvas orográficas, que podem ou não ser potencializadas por fenômenos meteorológicos como frentes frias e El Niño, a vulnerabilidade da região à ocorrência de fenômenos de deslizamentos aumenta significativamente – especialmente quando a quantidade de chuva excede a capacidade de infiltração do solo – provocando os já conhecidos impactos ambientais, sociais e econômicos. Evento de 1967 4 Dentre as Unidades de Relevo da Serra do Mar são encontradas as Escarpas Festonadas (IPT, 1981): desfeitas em anfiteatros separados por espigões, topos angulosos, vertentes com perfis retilíneos. Drenagem de alta densidade, padrão sub-paralelo e dendrítico, vales fechados. O QUE É CITAÇÂO AQUI??? O evento climático ocorrido em 18 de março de 1967 no município de Caraguatatuba ficou conhecido como ―A Catástrofe‖, quando uma seqüência de deslizamentos da Serra do Mar decorrente de uma anomalia positiva de precipitação nessa região no mês do evento provocou, segundo registros de jornais da época, a morte de 400 pessoas, além de severos danos à infraestrutura e à economia locais. As Figuras 1 e 2 representam, respectivamente, as chuvas acumuladas no mês de março de 1967 e a anomalia da precipitação para o mesmo período. Na Figura 1 as áreas verdes representam um maior número de dias com precipitação no mês e na Figura 2 as áreas em azul representam as anomalias positivas de precipitação, chuvas acima da média. Quanto mais escura for a cor, maior será a quantidade de chuva, evidenciando o evento atípico. FIGURA 1 Precipitação acumulada FIGURA 2 Anomalia de Precipitação Fonte: Site do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) Dentre as características que influenciaram o evento de 1967, a que mais se destaca foi a grande quantidade de precipitação, fato esse evidenciado por Cruz (1974). Segundo a autora, o evento foi decorrente de um conjunto de perturbações atmosféricas em diversos níveis e relacionadas a sistemas frontais que, somados às condensações orográficas características do relevo da região, geraram elevados índices pluviométricos provocando o completo encharcamento do solo e, consequentemente, o deslizamento das encostas. Eventos como esse podem ser classificados como catastróficos quando atingem localidades ou cidades instaladas próximas as encostas. Como afirma Nunes (2009), ―[...] uma ocorrência só é catastrófica quando afeta os grupos humanos, causando desabrigados, feridos, mortos e prejuízo econômicos; assim enchentes não causariam desastres se a ocupação de planícies inundáveis fosse evitada, e processos de movimentos de massa não seriam trágicos, se a população não ocupasse as encostas‖. (NUNES, 2009, p.55) Durante o evento, em parte da área que hoje abriga o Parque Estadual da Serra do Mar com predomínio da Mata Atlântica, sucederam-se inúmeros desabamentos que deram origem ao lençol de lama que, segundo relatos, em dez minutos cobriu Caraguatatuba e fez com que a cidade praticamente desaparecesse (QUAL A FONTE DESSA INFORMAÇÂO?). As consequências do desabamento afetaram Caraguatatuba em larga escala como, por exemplo, fazer o Rio Santo Antônio alargar-se de 10m-20m para 60m a 80m. Dezenas de milhares de troncos de árvores vieram abaixo destruindo toda infra-estrutura urbana da cidade e, conforme ilustrado na Foto 3, arrasando boa parte da estrada São José dos CamposParaibuna-Caraguatatuba, conhecida hoje como Rodovia dos Tamoios, ―formando precipícios de mais de uma centena de metros de profundidade‖ (OLGA, 1974, p. 14). Foto 3 Rodovia dos Tamoios – SP-099– após evento de 1967. Foto cedida pelo Arquivo Municipal de Caraguatatuba, sem data definida. Evento de 1996 O verão de 1996 foi marcado por intensas chuvas no Estado de São Paulo, conforme evidenciado em alguns trechos do Jornal o Estado de São Paulo, referente a esse período: Os paulistanos não vão sentir saudades do verão deste ano. Inundações, desabamentos, mortes e congestionamentos atormentaram a vida da população quase todos os dias... Na Capital, cinco pessoas morreram em razão dos temporais registrados de janeiro até ontem. No mesmo período, as chuvas deixaram desabrigadas 381 famílias, num total de 1646 pessoas, que foram alojadas em 10 abrigos da Prefeitura. No Estado, o número de mortes chegou a 42, de acordo com a Defesa Civil Estadual (O Estado de São Paulo, 18 de março de 1996). Ao contrário do que previa o Departamento de Estradas e Rodagem (DER), o tráfego no km 82 da Rodovia dos Tamoios, na estrada de Caraguatatuba, continuou interrompido durante todo o dia de ontem. Pedras de 15 a 20 toneladas ainda impediam o uso do acostamento e de parte da pista, devido à queda de um talude de cerca de 100 metros de comprimento por 2 de altura (O Estado de São Paulo, 26 de março de 1996). O índice pluviométrico de 20 milímetros cúbicos, registrado durante a chuva de anteontem, não preocupa os técnicos da prefeitura. ‗Não é um índice alto, mas devemos ficar atentos para o acumulado desde o início do mês, de 85 milímetros cúbicos, um indicador de que estamos nos aproximando de um nível perigoso de encharcamento do solo‘, explicou Rosa [Aldo Rosa, diretor da Divisão de Obras da Fundação Geo-Rio] (O Estado de São Paulo, 05 de janeiro de 1996). Através das manchetes do jornal podemos observar que as chuvas foram freqüentes nesse período e que causaram prejuízos para a população com a ocorrência de inundações, deslizamentos e mortes. No segundo trecho observamos que, mais uma vez, a Rodovia dos Tamoios também foi prejudicada com a ocorrência de deslizamentos ficando interditada até a remoção do material da pista e que a área fosse novamente considerada segura para a fluidez do trânsito. O terceiro trecho mostra que a preocupação com os deslizamentos não eram conseqüentes de chuvas pontuais, mas sim do acumulado de chuva que havia caído e que continuava a incidir na região, saturando o solo e deixando-o ―pesado‖. Conforme as Figuras 3 e 4, pode-se observar, respectivamente, as chuvas acumuladas no mês de março de 1996 e a anomalia da precipitação para o mesmo período, onde as áreas verdes (Figura 3) representam um maior número de dias com precipitação, e as áreas em azul (Figura 4) representam as anomalias positivas de precipitação. Quanto mais escura for a cor, maior será a quantidade de chuva. FIGURA 3 Precipitação acumulada FIGURA 4 Anomalia de Precipitação Fonte: Site do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) Estudos realizados através de sensoriamento remoto (Caracterização de Cicatrizes de Deslizamentos por Processamento de Dados TM Landsat em Caraguatatuba – SP, SESTINI e FLORENZANO, 2004) evidenciam que o ano de 1996 apresentou elevados valores de pluviosidade e relacionou a expansão de áreas antropizadas com o aumento dos impactos gerados: [...] verificou-se, ainda, através dos boletins do IPT e IG, que o ano de 1996 apresentou elevados valores de pluviosidade acumulada. Com relação à pluviosidade acumulada, deve-se salientar que a expansão de áreas antropizadas tem aumentado à ocorrência e o impacto de deslizamentos e reduzido o valor de pluviosidade acumulada, anteriormente estabelecido como sendo deflagrador de deslizamentos (120 mm em três dias). (NUNES E MODESTO , 1992 e 1996) A Figura 5 mostra uma cicatriz provavelmente relacionada ao deslizamento conseqüente do elevado índice de pluviosidade em 1996, apresentando solo exposto e forma elíptica. Ela inicia-se próxima à cabeceira da linha de drenagem e se estende ao longo da mesma, características descritas na literatura para este tipo de feição (Soares e Fiori, 1976; Zaruba e Mencl, 1982; Patton, 1988; IPT, 1989). FIGURA 5 Composição colorida TM, 473 RGB, ano de 1996 e fotografia aérea vertical pancromática, obtida em 1994, do mesmo local. Fonte: Estudo de Caracterização de Cicatrizes de Deslizamentos por Processamento de Dados TM Landsat em Caraguatatuba – SP (SESTINI e FLORENZANO, 2004) Discussão O evento extremo que atingiu Caraguatatuba em 1967 ocasionou perdas físicas, ambientais e humanas. Neste período, segundo dados da Fundação SEADE, a população local era de aproximadamente 9.000 habitantes. Olga Cruz (1974) relata que na Fazenda dos Ingleses, as áreas do Cachetal e Lagoa ficaram barrentas, as fontes e as linhas de vagões destruídas, a terra frouxa e os pés de morro entulhados por troncos e lama. Possuindo a fazenda cerca de 3.000 alqueires, 275 deles, ocupados por bananas, foram arrasados [...] os rios Anhembu, Ribeirão e Pau d‘alho perderam seu curso vagueando numa planície de lama, com todos os canais e valas obstruídos por lama e troncos [...] a maior parte do Camburu e sítio Velho foi recoberto por [...] uma camada lamacenta. (CRUZ, 1974, p.15) A economia da cidade, apoiada principalmente nas atividades da Fazenda, entra em colapso conforme indicam trechos da carta apresentada na Figura 5, enviada pelo prefeito de Caraguatatuba ao então Presidente Marechal Artur Costa e Silva. Figura 5 Carta dirigida ao Presidente - 1967 Imagem cedida pelo Arquivo Municipal de Caraguatatuba – SP Além dos 400 trabalhadores desabrigados, contabilizavam-se, ainda, os familiares, totalizando quase 3.000 pessoas sem moradia. Aproximadamente 60 mil cruzeiros deixaram de circular pelo município na época. O Mapa 1 mostra a área na qual instalava-se a propriedade. A situação de caos econômico foi amenizada, em partes, graças ao ínicio do processo de ocupação turística, iniciado na década de 1940, com a abertura da estrada de terra que atravessa a Serra do Mar entre São José dos Campos e Caraguatatuba. Este processo é intensificado a partir de 1960, quando as estradas são asfaltadas. Tal fato pode ser comprovado através do Gráfico 2. Entretanto, o modelo de ocupação, intensificado a partir da abertura da Rodovia Rio-Santos em 1970, pauta-se pelo enfoque econômico, desconsiderando as questões sociais e ambientais, principalmente das populações locais. Segundo o Instituto Florestal de São Paulo, tal empreendimento, também serviria de apoio ao investimento de capitais privados em estruturas voltadas para o lazer, como campings, hotéis, marinas e outros serviços, sugeridos pela Embratur no projeto Turis, das quais foram predominantes os condomínios e loteamentos, voltados para o turismo de segunda residência que predomina na região [...] a ausência de planejamento governamental para o desenvolvimento sustentável durante o regime militar, coincidiu com os interesses das empreiteiras, empreendedores e a classe média emergente, beneficiados pelo chamado ―Milagre Econômico‖, sem controle nem planejamento à altura dos impactos ambientais e sócio-culturais provocados por esta nova realidade, que propiciou um crescimento urbano desordenado da faixa litorânea e a degradação ambiental da região (IFSP, 2006, p.127) Mapa 1 Área da Fazenda dos Ingleses em 1966 Fonte: COELHO E AUDI, 1966, p.89. Gráfico 2 População total residente em Caraguatatuba -SP 78544 Habitantes 50569 33563 14862 9697 1960 1970 1980 1990 2000 Fonte: SEADE. O novo uso do solo na área da Fazenda dos Ingleses, atualmente utilizada para criação de gado e produção de leite e derivados, relaciona-se com a exploração das reservas do PréSal, com a instalação da Unidade de Tratamento de Gás Monteiro Lobato – UTGCA Monteiro Lobato da Petrobras. Em visita ao local, em outubro de 2009, foi possível acompanhar a obra que, na época, contava com aproximadamente 2.400 trabalhadores, tanto do Litoral como de outras regiões do estado e do País. Além dos vários impactos relacionados oriundos do rápido crescimento urbano, como a especulação imobiliária, o aumento da ocupação em áreas irregulares e a falta de infraestrutura básica, , ainda teremos, muito brevemente, problemas relacionados com produtos resultantes do tratamento de gás da UTGCA. Os óxidos de enxofre (SOx) e de nitrogênio (NOx) que, em contato com a alta umidade atmosférica típica da região litorânea, poderão formar nuvens orográficas que, muito provavelmente, poderão provocar chuva ácida nas mesmas encostas que desabaram há 43 anos atrás, conforme ilustrado na Figura 8. Figura 8 Imagem de Caraguatatuba –SPOT 1999 Área da Fazenda Serramar FONTE: SILVA, MEDEIROS, MONTEIRO e CREPANI.,2002,p.3. Implicações para população – Riscos e Vulnerabilidades Marandola e Hogan afirmam que ―risco é um conceito importante porque nos permite pensar em termos de probabilidade tanto no que se refere à freqüência quanto aos lugares de ocorrência. Permite, portanto, promover um planejamento a partir de um olhar prospectivo‖. (MARANDOLA JR.;HOGAN, 2004a apud MARANDOLA JR.,2009, p.36). Marandola ainda afirma que ―riscos e perigos são partes distintas de um mesmo processo‖ (MARANDOLA JR., 2008 apud MARANDOLA JR., 2009, p.37). Vulnerabilidade inclui fatores de escalas diferentes, que Moser aborda como ―uma situação em que estão presentes três elementos: [...] exposição ao risco; incapacidade de reação; e dificuldade de adaptação diante da materialização do risco‖ (MOSER, 1998 apud ALVES, 2009, p.77). Segundo Nunes (2009, p.55), a calamidade após um evento acontece quando a capacidade individual ou do grupo social em absorver ou minimizar os efeitos negativos de uma catástrofe é superada. Este fato relaciona-se diretamente com as condições socioeconômicas dos envolvidos, pois em suma, a vulnerabilidade é entendida como o desajuste entre ativos e a estrutura de oportunidades, proveniente da capacidade dos atores sociais de aproveitar oportunidades em outros âmbitos socioeconômicos e melhorar sua situação, impedindo a deterioração em três principais campos: os recursos pessoais, os recursos de direitos e os recursos em relações sociais (KAZTMAN, 1999 apud HOGAN & MARANDOLA, 2006, p.28, tradução nossa). Considerando os eventos analisados neste trabalho e a fragilidade da cidade de Caraguatatuba, observamos que esses eventos apresentam uma tendência histórica de ocorrência dentro do recorte da Fazenda Serramar indicando que, muito provavelmente, eventos semelhantes poderão ocorrer novamente. Entretanto, hoje, diferente do número aproximado de 10.000 habitantes da época do evento, Caraguatatuba possui quase 100.000 habitantes permanentes5 dentro de um modelo de crescimento desordenado, com diversas problemáticas como ocupação em áreas de riscos, falta de infraestrutura básica, entre outros. Além disso, outros fatores potencializadores vêm sendo incorporados ao meio com a instalação da UTGA como, por exemplo, o potencial aumento da população residente, as alterações físicas na área de instalação e a geração de emissões atmosféricas que poderão atingir diretamente a encosta da Serra do Mar, podendo alterar as características da cobertura vegetal, deixando-a mais favorável a deslizamentos, e expondo a população do entorno a novos riscos. Schubert et al., (2007) afirmam que as mudanças climáticas comprometeriam as atuais capacidades adaptativas da sociedade, o que resultaria em desestabilizações políticas e violência em novos níveis a partir de conflitos advindos da divisão de recursos naturais (especialmente água e terras produtivas) e padrões de imigração. Hoje as zonas litorâneas já se constituem áreas potenciais de risco, graças a mudança climática global, que segundo organizações internacionais, já está em curso. As possíveis conseqüências, segundo Carmo e Silva são: ―a elevação do nível do mar e as mudanças nos 5 Esse número pode, facilmente, chegar a um milhão no auge do verão. padrões de precipitação, que acarretam em variações na ocorrência dos eventos extremos‖. (CARMO e SILVA, 2009, p.138, grifo nosso). Schubert et al., (2007) afirmam que as mudanças climáticas comprometeriam as atuais capacidades adaptativas da sociedade, o que resultaria em desestabilizações políticas e violência em novos níveis a partir de conflitos advindos da divisão de recursos naturais (especialmente água e terras produtivas) e padrões de imigração. Neste contexto, a instalação da UTGCA contribui para um possível aumento da população, atraída pela oferta de emprego. Muitos destes migrantes acabam fixando residência no município, agravando as problemáticas de infraestrutura urbana citadas anteriormente, quadro semelhante ao de Cubatão e cidades próximas, como Guarujá, durante o processo de industrialização. Outro aspecto relevante, é salientado por Ab‘ Sáber, uma população que vive o seu dia a dia sem saber dos perigos inimagináveis que podem ocorrer em períodos climáticos anômalos, porém periódicos, necessita de informações coletivas quase obrigatórias. Do que decorre a necessidade de levar sempre ao conhecimento da população os possíveis e previsíveis retornos de grandes chuvadas. Uma tarefa que envolve autoridades, educadores, universidades e pessoas sensíveis‖. (AB‘ SABER, 2009, p.301) Dentro deste enfoque, uma possibilidade para novos estudos, é tentar identificar como estão se estruturando os diversos atores, nas diferentes escalas de poder, na implantação de políticas públicas que atendam as questões de vulnerabilidade e riscos, inclusive, a partir da instalação da UTGCA e das questões relacionadas a soberania energética brasileira.. Outra questão pertinente, relaciona-se com a possibilidade de eventos extremos de chuvaradas serem cíclicos6 e característicos de biomas como o de Caraguatatuba, um aspecto relevante para estudos mais aprofundados, relacionados à mudança climática local e regional. Agradecimentos Agradecemos a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, ao Arquivo Municipal de Caraguatatuba pelos dados e informações, ao fotógrafo Gustavo Grunewald, à Milene Barbosa, ao Jansen Araújo pela busca do trabalho de Olga Cruz nas bibliotecas da USP e ao Professor Dr. Leonardo Freire de Mello pelas orientações. Bibliografia AB‘SÁBER, Aziz Nacib. A gestão do espaço natural: relembrando Caraguatatuba (1967) para compreender Cubatão (1985). Arquitetura e Urbanismo (AU), São Paulo, ano 1, n.3, p.90-3, nov. 1985. 6 ―[...] todo o Brasil tropical atlântico necessita de atenção permanente, tendo em vista a periodicidade da crise climática‖.(AB´SABER, 2009, p.304) AB'SÁBER, Aziz Nacib. A propósito da periodicidade climato-hidrológica que vem provocando grandes crises em Santa Catarina. - Estudos avançados [online]. 2009, vol.23, n.67, pp. 299-306. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n67, acesso em 29 de Fevereiro de 2010. ARAKI, Ricardo - Vulnerabilidade Associada a Precipitações e Fatores Antropogênicos no Município de Guarujá (SP) - Período de 1965 a 2001. Disertação (Mestrado). Programa de PósGraduação em Geografia, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, 2007. Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, CPTEC / Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE. Previsão Climática: Monitoramento Brasil. Disponível em <http://clima1.cptec.inpe.br/~rclima1/monitoramento_brasil.shtml>. Acessado em: 20 mar 2010 CRUZ, Ol. A Serra do Mar e o litoral na região de Caraguatatuba. Tese (doutorado). Instituto de Geografia, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, 1974. GARRIDO, M.. A Fazenda dos Ingleses . Editora Danúbio – 1988, São Paulo. 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