ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 RISO RITUALÍSTICO EM METAMORFOSES, DE LÚCIO APULEIO Luciane Munhoz de Omena1 Ridendo dicere severum. Friedrich Nietzsche INTRODUÇÃO Nessa comunicação analisamos o riso em uma comemoração festiva dedicada ao deus do Riso em Metamorfoses, de Lúcio Apuleio. Pensamos as relações sociais, as quais são marcadas pelo riso ritualístico, que atua como ato performático e simbólico inserido no contexto desta festa; o riso marca o estágio de degradação e ascensão social nas estruturas de poder, que definem a sociedade romana provincial do século II d.C. É um riso sagrado, que por estar vinculado a uma divindade, permite a cidade de Larissa, província de Tessália, beneficiar-se com o ordenamento social e, como não poderíamos deixar de mencionar, a conquista de equilíbrio individual. Dito de outra forma, a salvação dos homens e a conquista de benesses dar-se-iam pelas intervenções divinas, o que caracteriza o eixo central da narrativa apuleiana. Ao parafrasearmos Giuseppina Grammatico, a partir de uma leitura na qual a festa é concebida como o tempo dos deuses, implica em uma repetição periódica da realidade, em que se abandona “nuestro corazón de hierro y a tomar uno nuevo, de carne y espíritu; a reír y llorar, a cantar y bailar sin miramientos ni tabúes (GRAMMATICO, 1998: 35). 1 Docente Adjunta de História Antiga na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo/USP. Atualmente desenvolve um projeto de pesquisa na graduação e pós-graduação da Faculdade de História que é intitulado – “Relações de Poder e Imaginários Sociais nas obras de Lúcio Apuleio”. E-mail: [email protected] 156 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Nesse sentido, nossa comunicação vem reforçar o festejo do deus do Riso a partir de um ciclo temporal, que inaugura outro momento em que se empreende uma “regeneração total do tempo” (ELIADE, 2008: 322). A partir deste ciclo, tem-se uma ruptura com o cotidiano, mais precisamente, uma nova percepção do real (GRAMMATICO, 1998: 39), um novo começo, pois, como acentua Joaquín Barceló, a recriação de um mundo supõe-se a destruição de um velho e corrompido. “El orden caduco tiene que desaparecer; las normas que han regido la vida y la conducta humana tienen que ser derogadas para dar lugar a la “vida nueva” (BARCELÓ, 1998: 81). Essa recriação do mundo, através do ato festivo, consiste em celebrar as origens, as instituições ou, em nosso caso, o riso inaugura “la destrucción de la antigua legalidad ya deteriorada y corrompida, para dar lugar a un renacer más propicio con la divindad” (BARCELÓ, 1998, p. 82). O riso e a ridicularização desencadeiam não um divertimento, mas uma atividade “sumamente seria en que los hombres tienen la oportunidad de ponerse en contacto con lo sobrenatural y de vincularse con las fuerzas divinas y demoníacas que rigen el mundo” (BARCELÓ, 1998: 82). O RISÍVEL E SUAS CORRELAÇÕES COM A INICIAÇÃO A partir de nossa epígrafe – ridendo dicere severum (NIETZSCHE Apud DRIESSEN, 2000: 251) –, podemos indicar a posição de um riso com características associadas à diversão e à seriedade, as quais elencam elementos sociais e, por isso, refletem percepções culturais e oferecem compreensões em relação aos modos de pensar e sentir (DRIESSEN, 2000: 251). Ao utilizarmos Jean Bremmer e Herman Roodenburg (2000: 13), compreendemos o humor por mensagens – “expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso” 2. Embora o humor cause o riso, 2 Deve-se pontuar que o humor no “sentido estrito” é recente. “Em seu significado moderno, foi pela primeira vez registrada na Inglaterra em 1682, já que, antes disso, significava disposição mental ou temperamento. O 157 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 nem todo riso é fruto do humor. O riso pode ser ameaçador e, realmente, os etnologistas afirmam que o riso começava com a exibição agressiva dos dentes. Por outro lado, o humor e o riso correspondente também podem ser muito libertadores (BREMMER; ROUDENBURG, 2000: 15). Queremos afirmar acerca das práticas do riso, de sua diversidade e, mais do que isto, posicionar tanto o humor quanto o riso, por práticas culturais, ou seja, são construções históricas datáveis de acordo com a sociedade e com a época (LE GOFF, 2000). O motivo pelo qual a derrisão é provocada possui dimensões e motivos diferenciados, pois, levamos em consideração o espaço-temporal e o corpus documental. Mesmo em se tratando de fontes romanas a exemplo de Plauto, Horácio, Petrônio, Sêneca ou Apuleio deve-se salientar como o riso foi transmitido, por quem, para quem, onde e quando (BREMMER; ROUDENBURG, 2000: 14). Como aponta Peter Burke, as brincadeiras mudam com o passar do tempo porque os objetos de ansiedade também mudam com o passar do tempo. Por exemplo, as piadas sobre maridos enganados hoje fracassam, não despertam mais interesse, como demonstram as remontagens da comédia elisabetana ou da Restauração, embora pareçam ter feito os contemporâneos de Shakespeare (BURKE, 2000: 94). Ou mesmo, as traições apresentadas em textos como os de Horácio e Juvenal. São essas infidelidades, as quais aparecem na narrativa apuleiana a exemplo da performance da esposa do jornaleiro3. Segundo as palavras de Lúcio-Asno: famoso Sensus communis: an essay on the freedom of wit and humour (…) de Lorde Shaftsbury, foi um dos primeiros escritos a empregar o termo com a acepção familiar aos modernos, conforme definida pelo Concise Oxford Dictionary, que define humor como “facecia, comicidade” e o considera “menos intelectual e mais agradável que o chiste” (BREMMER; ROUDENBURG, 2000:. 13). 3 O ato performático pode ser considerado uma forma de teatro por ser uma expressão cênica e dramática, por ser plástico ou não intencional “que seja o modo pelo qual a performance é constituída, sempre algo estará sendo apresentado, ao vivo, para um determinado público, com alguma “coisa” significando (no sentido de signos); mesmo que essa “coisa” seja um objeto ou um animal. Como o coiote de Beuys. Essa “coisa” 158 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Brincava o adúltero, no entanto, e, enquanto a mulher do tarefeiro se inclinava para frente sobre o dolium, ele a apertava de perto e trabalhava à vontade. Ela, mergulhando a cabeça no dolium, auxiliava o marido com a astúcia de uma cortesã: “aqui, ali, e lá ainda, e mais ali de novo”. Ela mostrava com o dedo os lugares para limpar, até o momento em que, acabada a dupla necessidade, e pagos os sete denários, o calamitoso obreiro foi obrigado a carregar o dolium nas costas até o domicilio do adúltero (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro IX, VII). Essa situação apresentada por Lúcio-Asno, é degradante e risível por inserir-se em um universo em que se destaca a submissão masculina frente à autonomia das personagens femininas, as quais atuam sempre por interesses próprios (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro I, II, III, VI, IX entre outras passagens). Como temos afirmado, e por não fazer parte do foco desta comunicação, não nos debruçamos nesse riso cotidiano, grotesco, mas sim na compreensão do riso ritualístico ocorrido em um momento específico da narrativa apuleiana que é o festejo do deus do Riso. Para tanto, optamos interpretar a festa a partir de dois enquadramentos: I. Circunstância da festa: lugares e atores; II. O programa da festa: a estrutura ritual e detalhes da celebração 4. LUGAR E ATORES significando e alterando dinamicamente seus significados comporia o texto, que juntamente com o atuante (“a coisa”) e o público, constituiria a relação triádica formulada como definidora do teatro (COHEN, 2009: 56). 4 Utilizamos a estrutura de análise do texto de Jaime Moreno com o título – “La fiesta de Año Nuevo en la Antigua Babilonia”. Sua construção pareceu-nos profícua para se pensar o festejo do deus do Riso nas Metamorfoses, de Lúcio Apuleio. 159 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 O festejo dedicado ao deus do Riso aparece nas Metamorfoses quando Lúcio Apuleio traz em cena a cidade de Hípata em que se celebra a tristeza, provocada pelo choro e pela alegria. O riso e o escárnio são os protagonistas do festejo, além de outros personagens como a população de Hípata, o prefeito, as mulheres, os magistrados, Birrena que se mobiliza em sua casa por meio de um banquete, com intuito, de entorpecer Lúcio com bebidas e narrativas fantásticas essenciais para a realização desta dramaticidade (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro II). O PROGRAMA DA FESTA: A ESTRUTURA RITUAL E DETALHES DA CELEBRAÇÃO O inicio da cerimônia dá-se por uma acusação: Lúcio é incriminado por eliminar a vida de três jovens. Em desespero, tenta argumentar contra a acusação e a multidão às gargalhadas se descontrola e, ao mesmo tempo, em uníssono solicita às autoridades que o processo ocorra no teatro, dado à comoção pública. Sem saber passa por todos os temores de um julgamento e ao final, Lúcio descobre ser apenas parte de um ritual religioso (Livro III, XI). Nesse processo de ridicularização destacamos alguns elementos essenciais ao processo de iniciação: começa a perceber a potestas divina, a ritualidade do culto, a participação social da cidade de Hípata, entretanto, ainda dominado por sua curiositas pela magia, após o festejo, metamorfoseia-se em asno. O que se destaca, em especial, nesta marcha, é a ridicularização do personagem e a relevância do riso em duas instâncias: em forma de asno, personifica os “maus instintos e as forças maléficas” (MINOIS, 2003: 95), enquanto, no festejo o protagonista torna-se ridículo. Todavia, é um riso performático e ritualizado. Nesta comemoração destacamos dois pontos essenciais: a linguagem teatral e sua dramaticidade. O festejo não se enquadra ou talvez não se estruture em ações direta do cotidiano, cria-se um tempo não linear, constitui-se um tempo em que se vela, desvela, 160 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 cria-se nesse mundo pulsante, o oposto à linearidade da razão (COPELIOVITCH, 2007: 04), por isso, Antonin Artaud, enquadra o teatro como sendo um delírio, um ato comunicativo e, acima de tudo, ação (ARTAUD, 2006: 23). Assim, interpretamos o festejo por uma forte linguagem teatral, cria-se um cenário em que se dramatiza o sofrimento de uma punição e o espectador não é reduzido a um voyeur, a um mero observador da vida alheia. Os espectadores, personificados pela multitudo de Hípata, conduzem o espetáculo por meio do riso desenfreado. Impera no festejo o ridículo, vivenciado por Lúcio, e o excesso de gargalhada do povo. Quanto mais dramática as acusações contra o pseudoassassino, mais o povo se descontrola. O momento final em que se revela a morte apenas de três odres, o riso, que alguns tinham tido a malícia de reprimir por um momento, explodiu livremente e se propagou através da multidão. Uns, no excesso da alegria, cacarejavam, outros seguravam a barriga com as duas mãos para que fizesse menos mal e foi com uma transbordante satisfação que todos deixaram o teatro, voltando-se para olhar-me (Lúcio Apuleio. Metamorfoses, Livro III, X) Ao pensarmos o teatro por uma “linguagem de signos e de mímica, essa pantomima silenciosa, essas atitudes, esses gestos no ar, essas entoações objetivas, em suma, tudo o que considero como especificamente teatral no texto” (ARTAUD, 2006: 40), pode-se comparar ao festejo do Riso. A entoação de gestos e sentimentos faz com que o riso se torne teatral e, mais do que isso, o riso é o elemento central, pois, no festejo, Lúcio é a causa do riso. Essa ação coletiva em torno da catarse do riso produziu-se em uma linguagem teatral e, para tanto, faz-se necessário arguir acerca do palco, o espaço da ação dos atores (NERO, 2009: 87). Assim como a ação das personagens, o cenário é móvel. Lúcio é apanhado na casa de seu hospedeiro, por ordem dos magistrados e arrastado até o Fórum. Sem compreender o que acontecia, não impõe nenhuma resistência (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro III, II). Quando percebe, vê uma multidão que o seguia, formando um 161 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 cortejo e escuta, em uníssono, o povo exigir que o julgamento acontecesse no teatro. De acordo com suas palavras terrificantes: Amontoaram-se nos corredores de acesso e até nos vigamentos do teto. Muitos se atracaram às colunas, abraçando-as. Outros se suspenderam às estátuas. Encheram as fendas das janelas e as aberturas todas – todos ávidos de ver, tanto que se esqueceram do perigo a que se expunham. Então, os funcionários da cidade me avançaram, como uma vítima, atravessando a cena, e me colocaram no meio da orquestra (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro III, II). A partir destes espaços podemos abordar duas questões. Vejamos: 1. A primeira relaciona-se a relação entre ilusão e espaço. Um e outro são dependentes, o espaço não se sustenta sem a ilusão, e esta, por sua vez, depende da dramaticidade criada pela ilusão. Nesta narrativa criam-se algumas ilusões: a ilusão do próprio Lúcio em degladiar-se com bandidos, os quais assaltariam a casa de seu hospedeiro (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro II, XXXII); a ilusão de um processo, com a inclusão de possíveis torturas e uma multitudo ululante ao exigir a condenação dele. 2. A segunda questão relaciona-se à relevância do espaço com a atuação do público, assim como no teatro de Antonin Artaud, que se mantém por meio das dimensões mágicas, com as quais o público se interage, a dramaticidade do Riso, se dá com a interação entre atores e espectadores. Monta-se uma audiência no teatro em que Lúcio é acusado pelo prefeito da cidade de Hípata – o que proporciona veracidade à narrativa – por ter matado cruelmente três jovens. Argumenta da seguinte maneira aos quirites: o presente caso, honrados quirites, não é destituído de importância. Trata-se da paz da cidade inteira, e é necessário que se dê um severo e salutar exemplo. Convém, pois, que tanto individualmente como todos juntos, como ordena a dignidade pública, tenhais o cuidado de não deixar o infame assassino escapar ao castigo dessa orgia sangrenta a que se entregou. Não me julgueis animado por um ressentimento privado, nem que ceda à violência de um ódio 162 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 pessoal. Como prefeito, responsável pela custódia noturna da cidade, ninguém, até hoje, encontro falha em meu zelo vigilante (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro III, III). Como em um tribunal, é dada a palavra a Lúcio e, sem convencer o público, e nem mesmo às autoridades, entram duas mulheres e pedem que o acusado sofresse as devidas penalidades. Segundo a aclamação delas, a misericórdia pública deveria socorrer a criança órfã. De acordo com suas palavras, pela misericórdia pública”, diziam, “e pelo direito comum de humanidade”, tende compaixão destes moços, indignamente chacinados, e, vingando-os, consolai nosso abandono e nossa solidão. Socorrei ao menos o infortúnio desta criancinha, deixada sem proteção nos seus verdes anos, e oferecei o sangue desse bandido, como expiação, às vossas leis e à ordem pública (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro III, VIII). Diante da aclamação das duas mulheres, o magistrado mais velho – duvidoso da acusação – e não encontrando o escravo que o acompanha, ordena a tortura de Lúcio. Este, desesperado, sem a presença de seu escravo e tendo somente suas palavras contra as acusações, vê os instrumentos de tortura: o fogo, a roda e os látegos (Lúcio Apuleio, Metamorfoses, Livro III, IX). Nesse momento tenso, em que participam desta dramatização a população de Hípata e sua estrutura administrativa, o magistrado convida Lúcio, para que ele mesmo observe os cadáveres e eis que descobre os três odres estufados com rasgões (Lúcio Apuleio. Metamorfoses, Livro III, IX) e, em recompensa a seu sofrimento, recebe honras extraordinárias e erguem-lhe uma estátua de bronze. Ao se revelar os três odres estufados, e o turbilhão de gargalhadas, vem à tona a ridicularização, sente-se estupefato ao descobrir que tudo não passara de uma brincadeira (Lúcio Apuleio. Metamorfoses, Livro III, IX). Este escarnecimento, advindo da diversão e da alegria da multituto, torna claro o grotesco, a contravenção e o deboche a Lúcio, atuam como inversões sociais, para ao final do ato festivo, manter-se a ordem social, pois, como na festa dionisíaca, o riso ritualizado exorciza a desordem, os desvios e a bestialidade original (MINOIS, 2003: 33; BALANDIER, 1997: 121). 163 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 Nesse sentido, consideramos o riso apuleiano, sobretudo, por um caráter regenerador que se mantém por um tempo cíclico: após as aflições de Lúcio, conquista os favores do deus. Parece-nos evidente, nesse festejo, que sua ordenação compõe-se por três partes, nas quais predominam o entorpecimento, a acusação e o riso catártico. Lúcio, após o banquete na domus de Birrena, envolto ao cansaço e a bebida, imagina ter matado três bandidos. Na manhã seguinte, é acusado pelo assassinato não de bandidos, mas de três jovens cidadãos, o que o conduz à expiação, ao triunfo das forças do caos, e por último, a catarse: o riso desenfreado da multitudo. Este caráter cíclico e iniciático do personagem é, em pleno sentido, a ação ritualizada do festejo, que propicia a cidade de Hípata à renovação em prol da destruição da antiga legalidade deteriorada e corrompida, tem-se um renascimento institucional (BARCELÓ, 1998: 82). Esse renascimento produzido, através do riso, gera o descarrego de tensões reprimidas e o êxtase, promovem, parafraseando Machado, “a desintegração do eu, uma abolição da subjetividade até o total esquecimento de si: um desprendimento de si próprio, a dissolução do eu no mundo, um abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da possessão” (MACHADO, 2006: 214). Uma renúncia de si com o objetivo de alcançar não apenas o êxtase divino, mas também, por meio destas comemorações, instauram-se a possibilidade de se colocar em um ato coletivo, em um ato social, não mais como indivíduos, mas como cidadãos que se unificam em torno de um objetivo comum: a crença na potestas desses deuses. Termino minha fala, com as palavras de Mircea Eliade: “nenhum homem possui esta força por si mesmo: tudo quanto faz, fá-lo à custa de seres pessoais, espíritos da natureza ou dos antepassados” (ELIADE, 2008: 27). 164 ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL APULEIO, L. Les métamorphoses. Trad. P. Vallette. Paris: les Belles Lettres, 2002. HORÁCIO. Sátiras. Trad. e notas de Antônio Luís Seabra. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1995. JUVENAL. SÁTIRAS. Trad. Francisco A. Martins Bastos. Rio de Janeiro: EDIOURO, 19? PLAUTO. Comédias. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2006. Petrônio. Satíricon. Tradução de Cláudio Aquati. São Paulo: Cosac Naify, 2008. SÊNECA, L. A.. L’Apocoloquintose du divin Claude. Trad. par René Waltz. Paris: Les Belles Lettres, 1966. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTAUD, Antonin. 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