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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ARTEMISA ODILA CANDÉ MONTEIRO
GUINÉ-BISSAU:
DA LUTA ARMADA À CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL CONEXÕES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E
DIVERSIDADE ÉTNICA (1959-1994)
Salvador
2013
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ARTEMISA ODILA CANDÉ MONTEIRO
GUINÉ-BISSAU:
DA LUTA ARMADA À CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL CONEXÕES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E
DIVERSIDADE ÉTNICA (1959-1994)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Victória Espiñeira
Salvador
2013
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Candé Monteiro, Artemisa Odila
C216
Guiné-Bissau: da luta armada à construção do estado nacional: conexões
entre o discurso de unidade nacional e diversidade étnica (1959-1994) /
Artemisa Odila Candé Monteiro. – Salvador, 2013.
318f.: il.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Victória Espiñeira
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, 2013.
1. Guiné-Bissau - Independência. 2. Identidade nacional. 3. Pluralismo cultural.
4. Colonialismo. 5. Cabo-Verde - Independência. I. Espiñeira, Maria Victória.
II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
III. Título.
CDD – 966.5703
_____________________________________________________________________________
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AGRADECIMENTOS
Já não me lembro quantas vezes fui interpelada em Bissau pelo meus familiares e
amigos, que me perguntavam o que tanto estudava e que estudo era esse que nunca mais
terminava? Meus colegas todos já estudaram, se formaram e casaram, e, eu ainda estudando
no Brasil. Diziam-me que eu não tinha marido nem filhos. Perguntavam quando é que iria me
casar e ter filhos? Para que tanto estudo? “Mulher que estuda demais assusta homem!”,
diziam.
Não adiantava explicar que eu estava cursando doutorado, já que muitos dos meus
colegas que retornaram ao país eram denominados de doutores. Para que adiantava os meus
anos de demora de estudo? Entendo que eu não teria como convencer muitos nesse debate.
Então, só me restava acreditar que eu estava no caminho certo, e que eu era uma das
pessoas privilegiadas no universo feminino na Guiné-Bissau, por ter conseguido seguir e
cumprir as etapas acadêmicas e chegar ao nível do doutorado, num país em que a educação
superior ainda constitui o privilégio de poucos, e nesse universo de privilégios, as mulheres
ainda constituem a minoria.
Por isso, ser doutora significa mais que uma vitória para mim, é uma conspiração
POSITIVA dos deuses, e ainda mais, ser a primeira doutora da família é pra mim uma honra
que compartilho com uma das mulheres mais sábias de Bolama, nha Senabú.
Apesar dessa mulher não ter sido alfabetizada e não ter passado pela escola oficial,
apostou, quando não nos próprios filhos, nos sobrinhos de criação e até nos netos e netas.
Aproveito para agradecer nha Senabú pela perseverança e sabedoria na minha socialização
primária e na condução da minha educação, me ensinando os mais caros valores sociais e
culturais de uma sociedade onde o sucesso passa prioritariamente pela educação escolar.
Registro aqui os meus mais sinceros agradecimentos à essa mulher guerreira, que nos
momentos mais difíceis soube, com amor, carinho, compreensão, ser a referência da família e
reerguer todos com muita determinação.
Assim começo agradecendo aos meus comuns: minha tia Fátima Candé e meu tio
Bubacar Candé, que têm sido como pais para mim, que mesmo distantes com toda a
dificuldade do país, acompanharam o meu percurso acadêmico no Brasil, incentivando e
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auxiliando dentro das suas possibilidades. Por falar em família, devo adiantar de logo os
agradecimentos à tia Rita Monteiro Vieira, à tia Tchumtcha (que subitamente nos deixou no
decorrer desse trabalho), a tio Carlos Bamba,a meus irmãos, Mauro Monteiro, Baciro Baldé,
Nordine Monteiro, Samory Monteiro, às minhas manas Fanta, Odete, Zita, Nequinha Vieira,
que a todo momento me incentivaram para que eu chegasse a este fim.
Devo gratidão também à minha tia Odete Semedo, que desde os momentos iniciais
da construção desse trabalho esteve presente e me incentivou, quando não contribuiu
diretamente para que este sonho se concretizasse.
Aos meus primos e primas, Gorky de Medina, Angêlo Adelino dos Reis Ié, Idrissa,
Aminata, Djenabú, Demba Baldé, Tânia, Mazarine e Harrison Candé Lopes; Alfa Candé,
Wiliam Mendes, Solange e Juscelino Vieira, Cintya Semedo e Isis Semedo, os meus sinceros
agradecimentos pelo apoio e amizade.
Agradeço ainda Mãe Lúcia (Mameto Kamuricy) e ao Terreiro São Jorge Filho da
Gómeia, a quem devo muito pelo acolhimento e estadia em Salvador, pela amizade de
sempre, carinho e cuidado. Dona Gildete Santana, Antonio das Neves e Raimundo Neves
(Kasutemy), que subitamente nos deixaram e não presenciaram o final desse trabalho – apesar
de ausência física sei que vocês estão presentes, sou grata por tudo o que fizeram por mim!
Por falar em amigos de sempre, não deixaria de agradecer ao Arnaldo Sucuma,
Domingos Semedo, Jaime Sodré, Carla Georgia,Cadidjatú Candé(tia Guerra), Claudia Santos,
Fernando Pedro, Juliana Bruno, Laís Santos, Adinelson Filho, Jusciele Oliveira, Iara
Nascimento, Edmundo Júnior, Adriana Cerqueira, Dona Lourdes, Juvenal Carvalho, Fabio
Baqueiro, Dionaldo Almeida, Miguel de Barros, Djimmy Fonseca,Suazilene Fernandes,
Ricardo Ossagô, César Ferrage, Tony Ferrage, Fumy Ferrage, Ramalho Namaba, Ordela
Carvalho,Olívio Albino, Carolina Zulmira, Ivaldira Biaguê, Tcherno Ndjai, Detoubab Ndiaye,
Vagner Bijagó, Patricia Gomes,Orlando Santos, Simão Jaime, Inussa Gomes, Tamine Lima,
Adulai Baldé, Goia Biaguê,Umaro Embaló, Eduardo Mendes, Corca Djaló. Agradeço a todos
pela fé depositada em mim.
Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da
Bahia, ao Professor Clóvis Zimmermann, aos funcionários da secretaria (Dôra e Alberto), e
aos professores Miriam Rabelo, Muniz Ferreira e Carlos Líbano.
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Estendo esse agradecimento aos meus colegas de turma de doutorado (Rubenilda
Sodré, Ana Angélica, Núbia Ramos e Antonio Mateus), e aos meus colegas africanos. À todos
que de forma direta ou indireta contribuíram para que este trabalho se tornasse realidade, devo
gratidão.
Agradeço a leitura atenta do professor Claudio Furtado que de forma incansável,
cautelosa, compreensível, disponibilizou-se dos seus inúmeros compromissos, e soube dar
acertos precisos que foram imprescindíveis no desenvolvimento deste trabalho. Muito me
ensinou. Os dividendos são preciosos: amizade, gratidão e admiração. Valeu!
A gratuita disponibilidade e inegável colaboração do professor Muniz Ferreira, que
desde a banca de qualificação apontou os caminhos à serem explorados e disponibilizou a
bibliografia que contribuiu para o andamento deste trabalho.Nunca será suficientemente
compensado pela minha imensa gratidão.
Ao meu sempre amigo Adinelson Filho, pela leitura e correção desta tese. Mais uma
vez, valeu amigo!
À minha orientadora, Victória Espiñeira, pelo carinho, amizade e disponibilidade de
me orientar, meu muito obrigada!
Importantíssima para este trabalho foi a impagável contribuição no auxilio à pesquisa
de campo de Tio Issa Baldé, Inerida Mendonça e Indira Fernandes, que me acolheram em
Lisboa e tornaram menos difícil o meu caminho. Carlos Lopes, Carlos Cardoso,Tcherno
Ndjai,Policiano Gomes, Rui Jorge Semedo, Osíris Ferreira, e Adex da Silva na viabilização
dos materiais de pesquisa. Como não podia esquecer de Midana na Fantchama (secretário do
PAIGC), Odete Semedo e Flora Gomes, que prontamente me auxiliaram na organização das
entrevistas com os combatentes da liberdade da pátria, em Bissau.
E com amor à Lote, meu esteio, pelo apoio nos momentos cruciais na elaboração
desta tese e no auxilio da transcrição das entrevistas. Minha eterna gratidão!
Aos Combatentes da Liberdade da Pátria e aos membros do PAIGC, que passo a
descrever: Carmem Pereira, Francisca Pereira, Satú Camará Pinto, Ana Maria Soares, José
Lopes, Manuel Saturnino Costa, Elisée Turpin, Lúcio Soares, Augusto Olivaz, Adriano
Ferreira, Carlos Correia, Teodora Inácia Gomes, Manecas dos Santos, que aceitaram partilhar
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suas memórias de luta, nostalgias, mágoas e frustrações do que não se concretizou. Meu
obrigado!
Por fim, registro a minha eterna gratidão à Capes pela concessão da bolsa, sem a qual
seria mais difícil prosseguir.
HOMENAGEM À SENABÚ BALDÉ (DJENABÚ)
Um dia você se foi, deixando para trás um imenso vazio onde antes contávamos com
uma presença marcante, firme e segura. As saudades ainda são grandes, marcam a falta física
de um sorriso, um afago, uma palavra. Foi, contudo, no meio dessa ausência que
compreendemos a dimensão do ser eterno, da porção que fica e que, apesar de invisível, é
sensível e vive dentro de nós. Por isso, mesmo que hoje algumas lágrimas se vertam ante a
falta de seu abraço, essas não serão suficientes para apagar a certeza de estarmos juntos e
dividir toda a emoção deste momento. Hoje, neste dia tão importante, sinto-a presente, dentro
de mim, feliz por nossa vitória. Sempre vou te amar...
Nesses anos todos, sob suas asas
Eu enriqueci
E tive a luz da vida
E os passos pra seguir
E como o vento, o tempo passa tão depressa
Eu cresci também
Eu não sou mais de vocês, agora é a minha vez
De ser alguém
Vou viajar sem bagagem
Deixo o amor, mas levo a coragem
Eu vou seguir, de mãos vazias
No peito trago a lição
Sei que um dia com meus filhos
Eu vou abrir meu coração
E falar dos meus pais
Quando a noite era um mar de pesadelos
Vinham me abraçar
E num sorriso aberto,
Com prazer de amar
Fui mimado, amado, nunca vi motivos
Pra me preocupar
Mas meu dia chegou, eu tenho a chance de tentar
De ser alguém!
Roupa Nova
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“Não fazemos a guerra para conquistar Portugal. Fizemo-la porque somos
obrigados a isso para conquistar os nossos direitos humanos, os nossos
direitos de Nação, de povo africano que quer a sua independência, isto é, a
libertação total do nosso povo da Guiné e de Cabo Verde, a conquista da
nossa independência nacional e da nossa soberania.”
Amilcar Cabral (1974, p.61).
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RESUMO
Este estudo busca analisar o processo de construção da identidade nacional na Guiné-Bissau,
observando a mediação das diversidades étnicas existentes no país, tendo como referência o
período de 1959 a 1994. Constatamos que a construção da nação ou identidade nacional em
vários países africanos, teve seu início com a ocupação europeia. A resposta dada a essa
invasão em diversos países africanos foi o desencadeamento da resistência cultural e política
contra essa ocupação. No caso particular da Guiné dita Portuguesa, a intensa organização para
a descolonização teve seu marco a partir do Massacre de Pindjiguiti, em 1959, que
impulsionou a via armada contra o regime colonial, tendo como dois grandes protagonistas
Rafael Barbosa e Amílcar Cabral. O projeto de Cabral para a viabilização da independência
nacional seria a unidade entre as, então, colônias portuguesas (Guiné-Bissau e Cabo Verde), o
elo principal desta mediação é Rafael Barbosa, considerado nesse trabalho como um dos
protagonistas do itinerário nacionalista bissau-guineense. Amílcar Cabral defendeu o seu
projeto de unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde com base na ligação histórica entre os
povos. Mas, apesar de tais laços históricos, esses dois povos não se reconheciam mutuamente
como um só povo. A concepção de nação de Cabral também postulava a unificação de todas
as etnias de Guiné-Bissau, sem distinção cultural, num programa de consciência nacional para
a liquidação do colonialismo, criando assim uma contra sociedade em oposição a sociedade
colonial. Esta seria a concepção dada à nação num país cuja diversidade cultural teria
identidade unificada sob interesses políticos nacionais. O objetivo desta tese é analisar o
processo de construção da identidade nacional na Guiné-Bissau, observando como aparece o
discurso de Amílcar Cabral de unidade nacional no contexto do discurso da identidade étnica,
no período de luta de libertação nacional. Pudemos verificar que a concepção de nação de
Amilcar está alicerçada na tradição ocidental, entretanto gravitando entre os conceitos de
unidade e cultura, como alicerces principais da nação concebido como estratégia do
enfrentamento. Finalmente, faz se um experimento de leitura crítica do projeto de unidade
Guiné-Bissau e Cabo Verde, que tinha pouca viabilidade política de se concretizar, e
constatamos que foram as contradições desenvolvidas durante a luta de libertação nacional no
tocante à unidade binacional que permearam os bastidores da morte de Amilcar Cabral. Ainda
observamos que tais contradições assombraram sobremaneira o período pós-independência
que vai culminar com o golpe de Estado de novembro de 1980, que marca a ruptura da
unidade binacional. Os contornos de abertura política multipartidária em 1994 também
mereceram análise e seu desdobramento desenhou uma nova configuração política na nação
bissau-guineense de Amilcar Cabral, quando as narrativas étnicas ganham nova roupagem
diante das narrativas dos discursos nacionalistas no cenário político, originando a perda de
prestígio da referida unidade nacional na política contemporânea bissau-guineense.
Palavras-chave: Guiné-Bissau. Bissau-guineense. Identidade nacional. Identidade étnica. Luta
de libertação nacional. Colonialismo. Unidade étnica. Unidade Guiné-Bissau/Cabo Verde.
Independência.
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RESUMÉ
Cette étude vise à analyser le processus de construction de l'identité nationale en Guinée Bissau, au regard de la diversité ethnique existante dans le pays, et en prenant comme
référence la période allant de 1959 à 1994. Nous constatons que la construction de la Nation
ou de l'identité nationale dans beaucoup de pays africains a commencé avec l'occupation
européenne. La réponse à cette invasion dans plusieurs pays africains a été le développement
de la résistance culturelle et politique. Dans le cas particulier de la Guinée dite portugaise,
l'organisation intense pour la décolonisation a commencé avec le massacre de Pindjiguiti en
1959, événement qui a déclenché la lutte armée contre la domination coloniale, avec Rafael
Barbosa et Amilcar Cabral comme deux principaux protagonistes. Le projet de Cabral qui
était de conquérir l'indépendance nationale aurait comme condition l'unité entre les deux
colonies portugaises (Guinée-Bissau et Cabo Verde). Le principal lien de cette médiation est
Rafael Barbosa, considéré dans ce travail comme l'un des protagonistes de la revendication
nationaliste bissau-guinéenne. Amilcar Cabral a défendu son projet d'unité entre la GuinéeBissau et le Cabo Verde sur la base du lien historique entre les peuples. Mais en dépit de ces
faits historiques, ces deux peuples ne se voyaient pas comme un seul peuple. La conception
de la Nation chez Cabral avait aussi postulé l'unification de tous les groupes ethniques de la
Guinée- Bissau, sans aucune distinction culturelle, dans un programme qui va au delà d’une
prise de conscience nationale et visait la liquidation du colonialisme. Ce qui crée ainsi une
contre-société par opposition à la société coloniale. Telle est la signification donnée à la
Nation dans un pays dont la diversité culturelle cache une identité unifiée sur la base
d’intérêts politiques nationaux. L'objectif de cette thèse est d'analyser le processus de
construction de l'identité nationale en Guinée-Bissau, en observant comment le discours
d’Amilcar Cabral de l'unité nationale apparaît dans le contexte du discours de l'identité
ethnique pendant la lutte de libération nationale. Nous avons vu que la conception de la
Nation chez Amilcar est basée sur la tradition occidentale, mais tourne autour des concepts de
l'unité et de la culture en tant que fondements essentiels de la nation conçue comme une
stratégie d’adaptation. Enfin, nous essayons de faire une lecture critique du projet de l'unité
entre la Guinée-Bissau et le Cabo Verde qui avait peu de viabilité politique. Nous nous
sommes rendu compte que ce sont de telles contradictions développées au cours de la lutte de
libération nationale, en ce qui concerne l'unité binationale, qui imprégnait les coulisses de la
mort d'Amilcar Cabral. Nous avons également observé que ces contradictions qui ont
grandement hanté la période post-indépendance et qui ont débouché sur le coup d'État de
Novembre 1980, marquent la rupture de l'unité binationale. Les contours de l'ouverture
politique multipartite en 1994 ont aussi mérité un examen et son déroulement a dessiné une
nouvelle configuration politique de la Nation bissau-guinéenne d’Amilcar Cabral, au moment
où les récits ethniques gagnent de nouveaux vêtements avec les récits des discours
nationalistes dans le paysage politique, entraînant la perte de prestige de ladite unité nationale
dans la politique contemporaine Guinée-Bissau.
Mots-clés: Guinée-Bissau, Guinée-Bissau, Identité nationale, Identité ethnique, lutte de
libération nationale, colonialisme, unité ethnique, unité de Guinée-Bissau et Cabo Verde,
Indépendance.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Mapa demonstrativo de países da UEMOA.......................................... 61
Figura 2
Mapa ilustrativo da África antes da divisão da Conferência de
Berlim.....................................................................................................93
Figura 3
Mapa ilustrativo da divisão da África – Conferência de Berlim (18841885)...................................................................................................... 96
Figura 4
Mapa Guiné-Bissau - esboço de regiões administrativa.........................97
Figura 5
Mapa da localização espacial das principais etnias da Guiné Bissau.....98
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANP
Assembleia Nacional Popular
AP
Armazéns do Povo
BCGP
Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
BM
Banco Mundial
BP
Bureau Político
CEA
Centro de Estudos Africanos
CC
Comitê Central
CCE
Conselho dos Comissários de Estado
CE
Conselho de Estado
CEI
Casa dos Estudantes de Império
CEL
Conselho Executivo de Luta
CIDAC
Centro de Informação e Documentação Amilcar Cabral em Lisboa
CONCP
Conferência das Organizações Nacionais das Colônias Portuguesas
CR
Conselho da Revolução
CSL
Conselho Superior de Luta
CNCV
Conselho Nacional de Cabo Verde
FARP
Forças Armadas Revolucionárias do Povo
FD
Frente Democrática
FNLA
Frente Nacional de Libertação de Angola
FLGC
Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde
FLING
Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné
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FRAIN
Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colônias
Portuguesas
FLING
Frente de Libertação Nacional da Guiné
FMI
Fundo Monetário Internacional
FRELIMO
Frente de Libertação de Moçambique
FUL
Frente Unida da Libertação da Guiné e Cabo Verde
GUN
Governo de Unidade Nacional
INEP
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
ISA
Instituto Superior de Agronomia
ISCTE
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e Emprego
LIGA
Liga Bissau-guineense
MAC
Movimento Anticolonial
MING
Movimento para a Independência da Guiné
MLG
Movimento da Libertação da Guiné
MLGCV
Movimento da Libertação da Guiné e Cabo Verde
MLICV
Movimento de Libertação das Ilhas de Cabo Verde
MLSTP
Movimento de Libertação São Tomé e Príncipe
MPLA
Movimento popular de Libertação de Angola
MPD
Movimento para Democracia
MR
Movimento Reajustador
MUDE
Movimento de Unidade para Democracia
OUA
Organização Unidade Africana
ONU
Organização das Nações Unidas
PAI
Partido Africano para a Independência
PAICV
Partido Africano para a Independência de Cabo Verde
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PAIGC
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
PDA
Partido Democrático de Angola
PDP
Partido Democrático para o Progresso
PCD
Partido de Convergência Democrática
PIDE/DGS
Policia Internacional de Defesa de Estado/Direção Geral de Segurança
PRD
Partido de Renovação e Desenvolvimento
PRS
Partido de Renovação Social
PUSD
Partido Unido Social Democrata
SOCOMI
Sociedade Comercial Mista
UA
União Africana
UDEMU
União Democrática das Mulheres
UNITA
União Nacional da Independência Total de Angola
UNTG
União Nacional da Independência da Guiné
UPA
União dos Povos de Angola
UPANG
União Patriótica Anticolonialista da Guiné-Bissau
UPG
União Patriótica da Guiné
UPICV
União do povo das Ilhas de Cabo Verde
UNGP
Guiné União dos Naturais da Guiné Portuguesa
UPLG
União da População Libertada da Guiné
RDAG
Reunião Democrática Africana da Guiné
RDN
Rádio Difusão Nacional
RENAMO
Resistência Nacional de Moçambique
RGB/MB
Resistência da Guiné-Bissau/Movimento Ba-fatâ
17
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 16
1
CAPÍTULO I – O PROCESSO FUNDANTE DO ESTADO NAÇÃO:.......................
28
NACIONALISMO COMO INSTRUMENTO DE LIBERTAÇÃO
1.1 BREVE HISTÓRICO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO........... 28
1.2 A GÊNESE DO NACIONALISMO AFRICANO..............................................................
38
1.3 UNIDADE AFRICANA COMO FATOR DE LIBERTAÇÃO..........................................
45
1.4 A IMPORTÂNCIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
NAÇÃO EM ÁFRICA......................................................................................................... 58
2
CAPÍTULO II - DA GUINÉ PORTUGUESA À GUINÉ-BISSAU: DA CHEGADA.
DOS
PORTUGUESES
À
COSTA
AFRICANA
AOS
PROCESSOS
DE
RESISTÊNCIAS ANTICOLONIAIS..............................................................................
75
2.1 O CONTEXTO DA CHEGADA DOS PORTUGUESES NA COSTA OCIDENTAL
AFRICANA E A CONJUNTURA DA ESCRAVIDÃO ATLÂNTICA............................. 75
2.2 A COLONIZAÇÃO DA GUINÉ COMO DESDOBRAMENTO DA FORMAÇÃO DO
IMPÉRIO PORTUGUÊS....................................................................................................
90
2.3 IDENTIDADES E RESISTÊNCIAS À ESCRAVIDÃO NA GUINÉ: A LUTA PELA
SOBERANIA NACIONAL................................................................................................. 100
2.4 A CRIAÇÃO DOS PRIMEIROS PARTIDOS POLÍTICOS E MOVIMENTOS
CONTESTATÓRIOS..........................................................................................................
3
113
CAPÍTULO III -AMÍLCAR CABRAL E O CONTEXTO DO PÓS-GUERRA: OS
ACONTECIMENTOS QUE IMPULSIONARAM A VIA ARMADA NA GUINÉBISSAU...............................................................................................................................
123
17
3.1 O RESSURGIMENTO DE AMILCAR CABRAL NA GUINÉ-BISSAU NO
CONTEXTO DO MASSACRE DE PINDJIGUITI............................................................ 136
3.2 UMA LUTA, DOIS PAÍSES: A CRIAÇÃO DE UMA ÚNICA FRENTE PARA
LIBERTAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU E CABO VERDE E A INSERÇÃO DOS
148
CAMPONESES NAS FILEIRAS DE LUTA.....................................................................
4
CAPÍTULO IV - A LUTA ARMADA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL E A
CONSCIÊNCIA
NACIONAL:
UMA
ANÁLISE
DA
CONJUNTURA
157
INTERNACIONAL...........................................................................................................
4.1 A LUTA ARMADA DE LIBERTAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU E CABO-VERDE: O
CONGRESSO DE CASSACÁ E A CRIAÇÃO DO PARTIDO ESTADO........................ 168
4.2 OS REFLEXOS DA EVOLUÇÃO DA LUTA NO CONTEXTO
INTERNACIONAL..............................................................................................................
180
4.3 O ASSASSINATO DE UM LÍDER AFRICANO E OS DESDOBRAMENTOS
DO II CONGRESSO DE BOÉ............................................................................................
190
4.4 AS MULHERES NO CENÁRIO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.........
201
4.3 4.3
D
5 CAPÍTULO V - A GUINÉ-BISSAU NO CONTEXTO DAS INDEPENDÊNCIAS
AFRICANAS E O NASCIMENTO DE UM ESTADO AFRICANO: LIMITES E
POSSIBILIDADES............................................................................................................ 208
5.1 NACIONALISMO BISSAU-GUINEENSE E CONEXÕES COM A CULTURA:
UNIDADE ÉTNICA E UNIDADE GUINÉ-BISSAU/CABO–VERDE............................
208
5.2 O “MOVIMENTO REAJUSTADOR 14 DE NOVEMBRO” E A RUPTURA DO
LEGADO DE AMÍLCAR CABRAL..................................................................................
225
5.3 A ABERTURA MULTIPARTIDÁRIA DE 1993 E A EMERGÊNCIA DA
POLÍTICA ÉTNICA NO ESTADO BISSAU-GUINEENSE.............................................
242
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................252
REFERÊNCIAS............................................................................................................260
ANEXOS........................................................................................................................270
2
7
1
17
ANEXO I – Os simbolos da nação bissau-guineense
ANEXO II – Mapa da República de Guiné-Bissau e alguns dados relevantes do país
ANEXO III – Informações sobre o processo de Luta de Libertação Nacional
ANEXO IV – Período de transição de governo português para governo do PAIGC
ANEXO V – Correspondência entre Nino Vieira e Aristides Pereira sobre o Movimento
Reajustador 14 de Novembro
ANEXO VI – Quadro Analítico de Guiné-Bissau 1886 a 2012
16
INTRODUÇÃO
Este trabalho, intitulado Guiné-Bissau: da luta armada à construção do Estado
Nacional: conexões entre o discurso de unidade nacional e da diversidade étnica, tem
como proposta analisar a construção do Estado Nacional na Guiné-Bissau durante o contexto
de luta de libertação nacional de 1959 a 1994, visando refletir sobre as narrativas a respeito da
identidade nacional em articulação com os conceitos de cultura, unidade nacional e
diversidade étnica, alegorias referenciais no discurso fundacional do líder revolucionário
Amílcar Cabral1.
Este estudo se inscreve numa tradição de abordagem teórica que procura
compreender as matrizes discursivas da identidade nacional, que vão desde 1959 - massacre
de Pindjiguiti - até 1994 - período do chamado pluralismo político na Guiné-Bissau. A baliza
cronológica de 1959 a 1994 justifica-se por ser o ano de 1959 um marco nos movimentos de
reivindicações que visavam à luta pela independência, tendo como base o massacre de
Pindjiguiti que impulsionou novos contornos nos movimentos nacionalistas bissau-guineense,
forjando uma Frente Única de Libertação com o intuito de unir dois países para uma luta de
libertação nacional, representado através do Partido Africano da Independência da GuinéBissau e Cabo Verde (PAIGC) com caráter binacional.
O ano de 1959 marca ainda o ressurgimento2 de Amílcar Cabral na vida política da
Guiné-Bissau, o que mais tarde lhe conferiu o cargo de representante político dos interesses
dos “filhos” da Guiné-Bissau e de Cabo Verde com vistas à descolonização. Por sua vez, o
ano de 1994 se constitui num marco com o término do regime do partido único,
caracterizando o novo período no Estado bissau-guineense, inclusive no âmbito das mudanças
discursivas no tocante as novas alegorias fundantes do Estado nacional bissau-guineense. Ou
seja, é o ano marco do renascimento da nação bissau-guineense, com adesão à democracia
1
Um dos fundadores de PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné- Bissau e Cabo Verde) e líder de
luta de libertação nacional, Cabral nasceu na Guiné-Bissau-Bissau na cidade de Bafatá a 12 de Setembro de
1924. Muda-se para Cabo Verde com seus pais em 1936, onde fez seus estudos secundários. Em 1945, Amílcar
Cabral obtém a bolsa de estudo e começa seus estudos universitários em Lisboa. Em 1952 formou-se no Instituto
Superior de Economia da Universidade Técnica de Lisboa e, como agrônomo, trabalhou em Portugal, GuinéBissau e na Angola, onde, em 1953, procedeu ao primeiro recenseamento agrícola do país. Morreu a 20 de
Janeiro de 1973, assassinado na Guiné-Bissau Conakry (LOPES, 1998).
2
É oportuno esclarecer que em 1952 Amílcar Cabral é nomeado pela administração colonial portuguesa como
engenheiro agrônomo na Granja de Pessubé na Guiné. E no ano seguinte em 1953 realiza o primeiro
recenseamento agrícola da Guiné-Bissau. Na tentativa de criação de uma Associação Desportiva de recreação
com cunho nacionalista em Bissau, Cabral é obrigado a abandonar o país em 1954 e regressa após o massacre de
Pindjiguiti em 1959.
17
liberal, revestida de novos discursos que se direcionam para uma política étnica no Estado
bissau-guineense.
Igualmente, 1994 é o ano marcado pela revisão constitucional que levou ao que ficou
conhecido como a queda do artigo 4º da Constituição da República que preconizava o PAIGC
“como partido único e legítimo dirigente e representante político da sociedade bissauguineense3”. Este artigo da Constituição atribuiu ao PAIGC o poder absoluto e legítimo desde
a independência em 1973 até 1993, completando 20 anos de exercício do poder.
Priorizei, para análise nesta pesquisa, os grandes eventos desencadeados durante o
processo colonial na Guiné-Bissau, desde os primórdios da colonização e o período da
independência, que compreende a I República (Proclamação de Independência, 1973) que se
estende até a abertura política partidária de 1994, considerada nesta pesquisa como o
nascimento do novo Estado bissau-guineense.
Justifica-se esta escolha pelo fato de que o território conhecido hoje como GuinéBissau provém de fortes vínculos históricos e culturais entre os povos da Guiné, da região de
Cassamance, no Senegal, e da Gâmbia atual, conhecido como Senegâmbia naquele período, e
que veio a se desintegrar, devido à pressão externa de potências coloniais europeias (LOPES,
2012). Portanto, os primeiros ideais da nação na Guiné-Bissau não fugiram à regra da unidade
histórica e cultural entre povos, baseada em um vínculo de pertencimento nacional dos povos.
Nesse ensejo, constrói-se uma identidade unida pelos laços históricos, impulsionando
a criação do partido Estado conduzido pelo PAIGC (Partido Africano para Independência de
Guiné-Bissau e Cabo Verde) sob a liderança de Amílcar Cabral.
Diante do objetivo da pesquisa, que é analisar o processo de construção da identidade
nacional na Guiné-Bissau, observando os registros de discursos de Amílcar Cabral de unidade
nacional no contexto da construção da nação, iremos considerar as configurações étnicas
dessa nação e suas diferenças culturais.
Neste processo, interessa-me também, enquanto objeto de pesquisa, entender como
se concebeu inicialmente o sentido da nação na gênese do Estado colonial. E como os bissauguineenses transitam e se percebem como pertencentes a duas identidades, nacional e étnica,4
e qual a relevância destas identidades no cotidiano do país.
3
Disponível na Primeira Constituição da República de Guiné-Bissau-Bissau de 1974.
Importante ressaltar que, entre os bissau-guineenses, existem duas formas de identificação social, uma que se
refere à identidade coletiva (nacional) e outra representação especifica, isto é, aquela que remete o individuo à
sua tradição cultural, neste caso a origem étnica de cada sujeito. Mas há que se levar em conta uma terceira via
de afirmação identitária no que se refere aos assimilados, isto é, os cristons de praça que também são resultantes
de cruzamento de origens étnicas diversas mas que no contexto urbano se identificam como crioulos, e usufruem
da dimensão étnica como estratégia para a sua manutenção no poder político.
4
18
Interessa ainda compreender como o discurso de unidade nacional proposto por
Amílcar Cabral, validado num determinado contexto histórico de luta de libertação, ganhou,
no cenário bissau-guineense, uma destacada importância na autoafirmação de guinendade.5
Diante dessa perspectiva, construí algumas questões que visam mapear a gênese do
Estado nacional bissau-guineense e seu colapso na contemporaneidade, analisando a
fragilidade do discurso fundacional da nação bissau-guineense, observado principalmente no
campo político. A fim de alcançar esse objetivo, estruturei este estudo em torno das seguintes
questões:
1) Quais os mecanismos discursivos utilizados para unificar a diversidade étnica em meio
aos interesses da política nacional? Ainda perduram as narrativas discursivas do
Estado nacional usadas por Cabral para unificar as diversidades contra a colonização
portuguesa entre as lideranças políticas bissau-guineenses na contemporaneidade?
2) Em que medida os signos identitários e étnicos, na contemporaneidade na GuinéBissau, são relevantes e se afirmam em detrimento dos signos que professam
elementos nacionais, tais como: unidade nacional e unidade entre Guiné-Bissau e
Cabo Verde?
3) Qual é a intensidade da questão étnica no ideário de unidade nacional e como a ela se
recorre no campo político e social do país?
Em resposta a estas questões, analisamos que a construção do Estado nacional
bissau-guineense se deu no bojo de uma emergência nacional de luta contra a ocupação
europeia, e como a articulação do discurso nacionalista de Amílcar Cabral serviu de modelo
para a unificação das identidades em meio às diferenças étnico-culturais.
A noção de nacionalismo bissau-guineense está intrinsecamente ligada à noção de
identidades étnicas neste trabalho. O discurso fundacional da nação bissau-guineense de
Amílcar Cabral justapôs as duas formas de pertencimento em meio aos símbolos
decodificadores da nação bissau-guineense. Realmente, não só como um dado empírico, a
etnicidade é um elemento sancionador para adesão ao discurso de Cabral, como também ele é
mediador das relações sociais bissau-guineenses.
5
Incorporo o uso dessa expressão, nesta pesquisa, para designar as diversas formas de ser bissau-guineense em
meio às diversidades étnicas existentes no país.
19
Diante do exposto, a nossa hipótese aponta para uma nova configuração sociocultural
na Guiné-Bissau, isto é, de que a identidade étnica ganhou um contorno expressivo na
afirmação e na autoafirmação da pertença em meio à identidade nacional.
Esse fato tornou-se evidente a partir da abertura política no país em 1994, no tocante
às manifestações de interesses partidários e que prevalece até a atualidade. Desta forma,
apresenta-se também uma mudança nos propósitos iniciais da unidade nacional concebida por
Amílcar Cabral, na medida em que as questões étnicas ganham peso no delineamento das
relações sociais e políticas num país em que a unidade nacional, historicamente, teve um
significado simbólico e expressivo no processo que conduziu à independência nacional.
Esta pesquisa foi impulsionada pelo interesse em analisar as mediações identitárias
na Guiné-Bissau, resultantes de um nacionalismo com acentuado caráter cultural, tendo como
um dos protagonistas Amílcar Cabral. A proposta de pesquisar a construção da identidade
nacional na Guiné-Bissau e seus reflexos na contemporaneidade faz parte de um sonho
almejado para melhor compreender as especificidades do projeto de Cabral em termos de
unidade étnica e seu desdobramento.
Cabral nasceu em Bafatá, então Guiné Portuguesa, em 24 de setembro de 1924. Filho
de emigrantes caboverdianos, viveu na Guiné-Bissau até aos oito anos de idade com os pais.
Deixou Bissau em 1936 e foi para Cabo Verde com seus pais; passou a viver na Ilha de São
Vicente, onde completou seus estudos primários e secundários. O ano de 1945 marca o inicio
da sua carreira política na Casa de Estudantes de Império (CEI), sob forte influência das
teorias marxista e pan-africanista. Essa experiência política foi adquirida na CEI quando era
estudante no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa.
A discriminação racial com que eram interpelados por serem considerados
assimilados os faz serem vistos como portugueses de segunda classe, obrigando-lhes a criar
um mecanismo de defesa através do sentimento nacionalista, pautado na reconversão
identitária, tendo como influência a corrente ideológica pan-africanista, que reivindicava a
África para os africanos. Essa articulação política contou com a influência dos panafricanistas William Du Bois e Marcus Garvey, que lutavam para a reintegração maior dos
africanos fora do continente.6
6
O pan-africanismo é uma ideologia política criada fora do continente africano pelos grandes pensadores da
diáspora, dentre os quais William Du Bois, Marcus Garvey, Aimé Césaire, Frantz Fanon, e predicava que a
diáspora e a África tinham um destino comum, que é a emancipação dos afroamericanos, que não podia ser
desvinculada da emancipação dos povos do continente ancestral, e vice-versa (MOORE, 2008, p.34).
20
Estes grupos de estudantes africanos em Lisboa, que mais tarde seriam denominados
de “Geração Cabral”, desempenharam o papel imprescindível na formatação do nacionalismo
africano fora do continente e que, mais tarde, seriam referências estratégicas no desenrolar
dos movimentos de reivindicações nas colônias africanas ainda sob o domínio colonial.
É nesta senda que se insere Amílcar Cabral como líder dos movimentos nacionalistas
dos países africanos sob a dominação portuguesa. Cabral foi portavoz dos anseios não apenas
dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde como também da África de um modo geral. Nos
fóruns de debates, preconizava a libertação dos africanos contra a subjugação colonial em prol
da independência nacional.
Nesta pesquisa não pretendo realizar um estudo biográfico de Amílcar Cabral, por se
tratar de uma temática exaustiva no âmbito da literatura bissau-guineense. Outrossim, não é
minha intenção me debruçar sobre a dinâmica da luta em Cabo Verde.
No entanto, ao analisar a questão da construção do Estado nacional na Guiné-Bissau,
engendrada através da luta de libertação nacional, é inevitável trazer para o centro deste
debate alguns excertos sobre os nacionalistas caboverdianos e os bastidores que nortearam o
projeto comum de libertação nacional destes dois países.
Desta forma, usei os testemunhos de Luís Cabral (1984), Aristides Pereira (2003) e
por fim o trabalho de José Vicente Lopes (1996), sobre os bastidores da independência que
compõem parte de uma reflexão dos caboverdianos sobre o processo de luta de libertação na
Guiné-Bissau.
Neste âmbito, busco centrar a minha preocupação na análise das ideias de Cabral ao
nível de construção do Estado nacional, entrelaçando-as com as questões culturais, da unidade
nacional e unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde, tendo como leitmotiv a libertação
nacional nos dois países.
O desenvolvimento desta tese está centrado em duas perspectivas, que se entrelaçam
e se completam: a sociopolítica e a histórica. A primeira delas identifica a formação das
correntes nacionalistas no âmbito da luta de libertação em África, particularmente na GuinéBissau, o pensamento de Amílcar Cabral e de outros nacionalistas africanos na concepção da
nação como comunidade de destino, e também como estratégia do enfrentamento. O papel
dos partidos políticos na formação política dos Estados nação e o arranjo do projeto de
unidade africana completam a abordagem dessa perspectiva.
Atrelada à primeira, a segunda perspectiva busca a compreensão da estrutura
organizativa do sistema colonial, baseada em formas de trabalho forçado, na subjugação de
povos e suas culturas e em estratégias de monetarização da economia africana. Sob essa
21
perspectiva, tracei as balizas para analisar, através da ordem cronológica, desde a chegada dos
europeus na costa africana e posteriormente na Guiné-Bissau, as resistências à ocupação
colonial, as relações de submissão e dominação estabelecidas pela sociedade colonial e o
desdobramento da formação do império português que impulsionou a criação dos movimentos
urbanos de descolonização.
Recorri aos períodos anteriores (a exemplo de ano de 1445) a fim de melhor
compreender como se deu em África a primeira concretização da implementação do
entreposto comercial em Arguim (a sul do Cabo Branco), e as demais feitorias que permitiram
a legalização de trocas comerciais com o interior do continente africano, o que mais tarde
expandiu o comércio transatlântico de escravos.
Ademais, o ano de 1945 também mereceu destaque por ser decisivo na formatação
dos movimentos de autodeterminação e na concessão das independências africanas. Foi o
contexto após a Segunda Guerra Mundial que deu alento aos países que estavam sob o
domínio colonial, legitimando as suas lutas pela independência com vistas à construção dos
Estados nação.
A década de 1950 marca o epicentro de “reafricanização dos espíritos”, ou seja, do
renascimento dos “novos africanos” que sentiram a necessidade de se libertar da alienação
colonial, isto é, da assimilação imposta pelo ensino colonial, centrada na manifestação da
consciência nacionalista.
Assim, os cinco capítulos da tese foram estruturados de modo a abordar no primeiro
capítulo, “O processo fundante do Estado nação e nacionalismo: instrumento de libertação”.
Realizo nessa parte do texto uma breve reflexão acerca das principais contribuições teóricas
sobre a concepção da nação e do processo da identidade nacional, representadas nos
diferentes contextos sociais.
Este capítulo está divido em quatro itens. O item 1 aborda o processo de construção
da nação e tem como fio condutor as premissas dos nacionalistas africanos e suas relações
com as tradições ocidentais de conceber a nação como comunidade de destino partilhada
através da unidade política. No item 2, procurei destacar a origem do nacionalismo africano,
analisar as primeiras manifestações de cunho nacionalista dos estudantes africanos em Lisboa,
dando ênfase à Casa de Estudantes do Império (CEI), na formação das consciências
nacionalistas dos jovens estudantes africanos.
Também é minha intenção conhecer quais eram as fontes referenciais destes
estudantes africanos – Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos
Santos, Agostinho Neto – e quem eram seus interlocutores, qual era o impacto dessas
22
manifestações estudantis em Portugal e nas diásporas africanas. No item 3, sobre a unidade
africana como fator de libertação, me debrucei acerca da viabilidade da ideia de unidade
africana no contexto colonial como forma de solidariedade no enfrentamento do sistema
colonial, tendo como protagonista o ganês Kwame Nkrumah, culminando com a criação da
Organização da Unidade Africana (OUA) em 1963.
Por fim, no item 4, abordo a importância dos partidos políticos na construção do
Estado nação na África, procurando analisar o surgimento dos partidos políticos e
movimentos de libertação nacional e sua importância na representação de interesses comuns
na edificação da nação.
O segundo capítulo - “Da Guiné portuguesa a Guiné-Bissau: da chegada dos
portugueses à costa africana aos processos de resistências anticoloniais” - centra-se na
montagem da administração colonial, bem como nos vários processos de resistências
desencadeados pelos povos nativos. À luz da cronologia histórica, descreve-se a emergência
anticolonial mais contemporânea, mais precisamente nos meados do século XX, focalizando a
criação do Movimento de Libertação da Guiné-Bissau (MLG), liderado por Rafael Barbosa e,
em 1959, a criação do Partido Africano para a Independência (PAI), liderado por Amílcar
Cabral, cuja tese central passava por um projeto de unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo
Verde, tendo como pressuposto primordial a unidade interétnica entre os bissau-guineenses.
Este capítulo também está dividido em quatro itens que se recortam cronologicamente.
Por sua vez, o terceiro capítulo - intitulado “Amílcar Cabral e o contexto do pósguerra: os acontecimentos que impulsionaram a via armada na Guiné-Bissau” - é composto de
três itens. Na parte introdutória procuro destacar os principais fóruns de debates registrados
através de vozes coletivas que condenaram o sistema colonial na África. Enfatizo o contexto
do pós-guerra que legitimou, sobremaneira, os movimentos de autodeterminação dos povos
africanos. No item 1, analiso a saída de Amílcar Cabral de Lisboa e a sua entrada na vida
política de Guiné-Bissau no contexto da sua nomeação pelo serviço colonial como o primeiro
engenheiro agrônomo negro na granja de Pessubé.
É nesse âmbito que Amílcar Cabral se inseriu como nacionalista com olhar atento às
estratificações sociais determinadas pela administração colonial na Guiné-Bissau. Neste item,
destaque é dado para o ressurgimento de Amílcar Cabral no cenário do massacre de
Pindjiguiti. No item 2 - que tem o título “Uma luta, dois países: a criação de uma única frente
para libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde” - analiso a constituição de uma frente
nacionalista para a luta de libertação nacional, tendo como protagonistas dois dos principais
movimentos de libertação: PAI e MLG.
23
A proposta surge de Amílcar Cabral, que enxergava na unidade entre a Guiné-Bissau
e Cabo Verde a única via possível para a liquidação do colonialismo português, objetivando a
independência. O elo principal desta unidade era Rafael Barbosa, bissau-guineense de etnia
manjaca, e que serviria de símbolo de mobilização dos bissau-guineenses para a unidade com
os caboverdianos. Vale registrar que o contexto do massacre de Pindjiguiti de 1959 trouxe
uma reviravolta na verdadeira data da fundação do PAI em Bissau. Mais especificamente, o
contexto do massacre de Pindjiguiti forja a remodelação na estrutura organizativa de
mobilização de luta, seguindo assim para a segunda fase mais expansiva, que marca a
inserção dos camponeses no cenário de luta de libertação nacional.
Os contornos da concretização da Frente de Libertação, da criação do partido Estado,
da viabilização da luta armada, foram tratados no quarto capítulo, intitulado “A luta armada
de libertação nacional e a consciência nacional: uma análise da conjuntura internacional”.
Nele procuro destacar os principais desdobramentos que culminaram na via armada para a
independência da Guiné-Bissau.
A internacionalização7 da luta de libertação, as denúncias de ações colonialistas
feitas através de Amílcar Cabral, sob o pseudônimo de Abel Djassi, que advoga os interesses
dos dois países, e sua atuação nas conferências internacionais merecem destaque neste
capítulo.
Sem dúvida, a criação da Frente Revolucionária Africana para a Independência
Nacional (FRAIN) e da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias
Portuguesas (CONCP), que objetivavam coordenar as lutas de libertação das colônias, as
participações nas conferências afroasiáticas de Belgrado e na Tricontinental de Havana,
deram à Cabral uma dimensão internacional.
Assim, ganharam destaque neste capítulo os contornos do Congresso de Cassacá, de
1964, a Batalha de Como, a divisão territorial do país em frentes de luta e o processo político
e militar que foi engendrando a consciência da nação e reformatando a ideia do Estado nos
limites territoriais da Província colonial. Também, o reconhecimento em nível internacional
da luta do PAIGC foi decisivo para os anos que se seguiram à independência da GuinéBissau. Os bastidores do assassinato de Amílcar Cabral, e o papel das mulheres na luta de
libertação nacional, fecham a análise desse capítulo.
7
A partir da Conferência de Bandung, na Ásia, em 1955, a luta de libertação na África em geral passou a ser
inscrita como luta contra o imperialismo, tendo apoio dos países asiáticos e alguns países europeus em torno de
uma solidariedade contra o colonialismo.
24
O quinto e último capítulo - intitulado “A Guiné-Bissau no contexto das
independências africanas e o nascimento de um Estado africano: desafios e possibilidades” - é
composto de três itens. Nele me dedico a discorrer sobre a falência do legado de Cabral na
política contemporânea bissau-guineense. Me debrucei sobre os desafios da construção do
Estado nacional pós-independência e os dilemas que nortearam o nacionalismo bissauguineense.
Vale salientar que o projeto de Cabral de unidade é resultante de três eixos: a
etnicidade como forma de se engendrar a consciência nacional entre os combatentes da
liberdade da pátria na Guiné-Bissau; a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, inspirada nos
laços históricos que ligam estes dois países; e por fim a unidade entre os movimentos pela
independência nas colônias portuguesas do Movimento Anticolonialista (MAC), FRAIN e
CONCP, com vistas à concretização da ideologia nacionalista proposta pela unidade africana.
Os eixos cultura e unidade articulam-se fortemente com a questão do nacionalismo
no projeto de Cabral. É através da cultura que o movimento de libertação vai procurar o seu
fundamento para a modelação da identidade nacional. Cabral atribuiu uma nova dimensão à
cultura no processo de luta de libertação nacional de modo a revolucionar as relações sociais
pautando-se na insubmissão aos preceitos coloniais.
Merecem destaque neste capítulo o período pós-independência, marcado pela
ausência de sinais de desenvolvimento e as contradições ideológicas do PAIGC que
culminarão com o Movimento Reajustador de 1980, liderado por João Bernardo Vieira (Nino)
e as sucessivas tensões de cunho étnico no interior do PAIGC, seguidas dos tensionamentos
da primeira abertura multipartidária de 1994, geradora da II República bissau-guineense; o
referencial da mudança democrática de 1994 como um marco na (re)construção e afirmação
da pertença étnica identitária e, provavelmente, no nascimento do novo Estado; a
reformatação da unidade étnica como o novo ideário da soberania nacional.
Esta pesquisa foi desenvolvida em duas fases interdependentes. Na primeira fase foi
realizado um trabalho de pesquisa documental e bibliográfica em Portugal, com o intuito de
compreender a gênese do Estado nacional na Guiné-Bissau e sua conexão com diversidades
étnicas, além de se analisar o discurso cabralista acerca da unidade Guiné-Bissau e Cabo
Verde. A escolha por Portugal como área de pesquisa resulta fundamentalmente da
constatação de uma quantidade expressiva de produções sobre o período colonial na GuinéBissau, além de ser, nos últimos tempos, um espaço de várias publicações acerca da política
contemporânea dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOPs).
25
O contato com a Fundação Mário Soares e o acesso aos arquivos sobre a luta de
libertação na Guiné-Bissau me possibilitaram um leque de conhecimentos sobre as questões
que nortearam os bastidores do movimento de libertação. Tive acesso às trocas de
correspondências entre Amílcar Cabral e seus interlocutores nacionalistas africanos, em
particular o seu homólogo angolano Mário Pinto de Andrade, com quem ele dividia aflições e
as estratégias para a organização da luta e do combate ao colonialismo, sobretudo na criação
das frentes unidas de libertação nacional.
Os materiais sobre o processo de organização e desenvolvimento da luta de
libertação, a questão da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, o assassinato de Amílcar
Cabral, a independência, assim como a ruptura da unidade binacional, em 1980, com o golpe
de Estado, denominado Movimento Reajustador de 14 de Novembro, trouxeram
particularidades a essa pesquisa e deixaram evidentes as possíveis dúvidas de escassez de
materiais, que até então constituía a grande dificuldade para viabilização desta tese.
Ainda em Lisboa tive contatos com o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE), onde encontrei uma enorme biblioteca de estudos africanos, e o apoio
Adex da Silva que ajudou sobremaneira no prosseguimento dessa pesquisa. No Centro de
Estudos Sociais (CES) em Coimbra, encontrei colegas que facilitaram o meu acesso à
biblioteca central, aos quais expresso o meu reconhecimento.
As atividades de pesquisa na primeira fase permitiram catalogar as fontes
bibliográficas acerca do tema, bem como avaliar como o projeto de unidade étnica defendida
e propostada por Cabral foi consolidado num determinado contexto histórico e os motivos que
estão atrás do atual colapso do Estado nacional na contemporaneidade na Guiné-Bissau.
Uma vez que são escassas as fontes históricas e memorialistas referentes ao período
colonial, escritas pelos intervenientes no processo, grande parte do trabalho para a
compreensão deste passado passa pelas entrevistas. Entretanto, as entrevistas não são neutras,
e é natural que a história se transforme no domínio de recriação e de manipulação. A memória
torna-se, deste modo, um instrumento para se reivindicar a participação no movimento de
independência e, assim, apelar ao reconhecimento público e a todas as regalias que daí
possam advir (TOMÁS, 2010).
Desta forma, a segunda parte da pesquisa foi desenvolvida em Bissau, como centro
de referência da temática, e não só como espaço ideal para interlocução com os protagonistas
da luta de libertação nacional, a fim de partilhar as suas memórias sobre os tempos da guerra
colonial e da construção do Estado nacional. Concretamente, centrei as minhas entrevistas nos
membros do PAIGC, partido que liderou a luta pela independência e que, na época, se
26
encontrava no exercício do poder no país. Também coletei algumas informações no Jornal Nô
Pintcha8, de 1980, sobretudo no que refere à ruptura entre Guiné-Bissau e Cabo Verde.
É importante ressaltar que desenvolver a pesquisa sobre Guiné-Bissau em todos os
seus aspectos constitui uma dificuldade para qualquer pesquisador(a), visto que na GuinéBissau existe uma única instituição que gerencia arquivos e mesmo assim em condições
limitadas. Quando se trata do período da luta de libertação nacional, e anos posteriores a esse
período, fica evidente a ausência de catalogação dos arquivos. As referências existentes
acerca da questão podem ser encontradas de forma dispersa e isolada, na sua maioria nas
minibibliotecas e arquivos pessoais dos militantes do PAIGC e dos ex-combatentes da
liberdade da pátria.
Outro aspecto que merece ser destacado nesse cenário tenebroso da vida do(a)
pesquisador(a) bissau-guineense diz respeito ao clima de medo em testemunhar sobre o
processo que engendrou a nação forjada na luta, como também os bastidores que permearam o
golpe de Estado de 1980 e a abertura política de 1994. Essa obstrução dos fatos históricos em
parte se deve às incontáveis instabilidades políticas geradas por golpes de Estado que
assombram o país. O silêncio constitui um dos grandes empecilhos na compreensão dos fatos
históricos e de algumas transformações políticas e sociais na contemporaneidade. Devido a
estes fatores, optei pela não identificação de alguns entrevistados no tocante à abordagem de
assuntos mais delicados, visto que a situação política do país ainda continua imprópria.
Para realização das entrevistas tive que contar com uma articulação imprescindível
que estabelecia pontes com os meus entrevistados, o que foi indispensável para o andamento
das pesquisas. Nesse momento, não posso esquecer de registrar a grande contribuição de
Odete Semedo, participante ativa do PAIGC, ex-Ministra da Educação e atual Reitora da
Universidade Amílcar Cabral que, em alguns momentos, me acompanhou para o encontro
com os entrevistados, tornando a minha caminhada menos difícil.
Por se tratar de uma história oral e tendo em conta os sujeitos que priorizei como
referências na pesquisa, os antigos combatentes da liberdade da pátria, na maioria analfabetos,
não pude seguir o roteiro da entrevista como esperado. Desta forma, os depoimentos eram
inicialmente histórias de vida destes sujeitos vinculados à luta de libertação nacional, já que a
maioria passou sua juventude na luta.
8
Chamado No Pintcha, em português “Avante”, era um chamada para a guerra, para a marcha, para a comida,
talvez, até, para o amor. Mais tarde foi atribuído como nome de um importante jornal criado pelo PAIGC para
publicar os assuntos relacionados com o partido e o país (CABRAL, 1984).
27
A dinâmica do campo me obrigou a alterar algumas prioridades no tocante aos
sujeitos primários e secundários. Alguns entrevistados que eram considerados inicialmente
como sujeitos primários passaram a ser considerados secundários pelos conteúdos dos seus
depoimentos que, por alguma razão, obstruíam informações principais e não colaboravam
com a pesquisa. Contudo, os depoimentos não mudaram a minha hipótese inicial sobre a
configuração étnica no Estado bissau-guineense delineado no campo político, como fator
preponderante.
É oportuno frisar que abordar esta temática é extremamente difícil, visto que existem
poucas obras acadêmicas que referenciam os fatos políticos de forma objetiva, citando fatos
acontecidos. Este déficit de informações acadêmicas referentes às questões políticas se deve à
onda de intimidação e tortura que acontece no país, protagonizada pelos políticos, com o
apoio dos militares e polícias.
Por fim, ressalto que esta pesquisa pode contribuir para a compreensão política da
África contemporânea e para debates que assumem um lugar relevante nas Ciências Sociais
na atualidade, que é o papel das identidades étnicas e das soberanias nacionais na
conformação da democracia.
28
Capítulo I - O processo fundante do Estado nação: nacionalismo como
instrumento de libertação
A luta da libertação é, sobretudo tanto uma luta
para a conservação e a sobrevivência dos
valores dos povos como para a harmonização
e o desenvolvimento destes valores
no contexto nacional.
(CABRAL, 1974, p. 61).
1.1
Breve histórico sobre o processo de construção da nação
Este capítulo objetiva realizar uma breve análise acerca das principais contribuições
teóricas sobre a concepção da nação e do processo da identidade nacional representados nos
diferentes contextos sociais. Ao longo do texto, procurarei expor algumas premissas que
possibilitam pensar o processo fundante da nação como comunidade de destino, tendo como
referência os movimentos de libertação em diversos países africanos, que engendraram a
construção de Estados nação.
O pensamento de Amílcar Cabral e de outros nacionalistas africanos, inspirados nas
reflexões das tradições ocidentais que concebem a nação como comunidade de destino
partilhada através da unidade política, será o fio condutor da análise neste capítulo.
Nas últimas décadas, a análise de nação enquanto construção teórica vem ganhando
uma maior visibilidade no campo das Ciências Sociais. As principais razões que contribuíram
para esse desenvolvimento são tanto de ordem política, quanto sócio-histórica. Entretanto, a
sua concepção difere nas várias correntes de pensamentos defendidas por seus estudiosos.
Do ponto de vista político, destacam-se as mudanças ocorridas na Europa dita
“Iluminista” nos finais do século XVIII e durante o século XIX, que conduziram à formação
de Estados nacionais. O conceito de nação - expressando um cenário em que certo sentido de
comunidade (de língua e cultura, por exemplo) identificável que contribuiu para a formação
de identidade nacional - se alastrou rapidamente entre os quatros cantos do mundo, gravitando
em torno de uma verdade “atemporal e inquestionada”, analisada em contextos diferentes
(RENAN, 1997).
É no século XVIII que à nação foi conferida, respectivamente, uma
29
dimensão de homogeneidade histórica e cultural herdada (concentrada na ideia alemã de
Volksgeist) e uma dimensão de laço político livremente consentido (expressa pelo termo
francês volonté générale) (FIGUEIREDO, 2012, p. 39).
Importante salientar que, no que tange ao conceito de nação, suas formas de
construção são sui generis, dependendo da inserção social e cultural dos indivíduos numa
determinada realidade culturalmente construída. Por outro lado, o ponto de vista político
desse período do século XVIII apresenta um liame com as transformações ocorridas no
cenário social e político mundial pautado numa condição de vida na qual a nação era tida
como algo necessário para potencializar a soberania.
Esse período do século XVIII nos traz desafios para a compreensão do que veio a ser
nação na contemporaneidade, no tocante às novas reflexões sobre o papel do Estado
redesenhado no processo de colonização e produzidas no período pós-independência em
vários países africanos, que reconfiguraram a concepção da nação, propondo novos ditames
na sua configuração.
A partir do século XIX, vai surgir uma reformulação conceitual centrada na
compreensão do nacionalismo e das pretensões nacionalistas. O nacionalismo que emergiu no
século XIX na Europa estava descrito em quatro eixos chave: povo-estado-nação-governo.
Estes eixos eram claramente moldados pelos fins políticos. Segundo Hobsbawm (2002 p.
113),
Os movimentos nacionalistas neste período tornaram-se movimentos de
massa (…). Entretanto, como já vimos, uma grande parte do povo comum,
como os camponeses, ainda não havia sido atingida pelo nacionalismo,
mesmo em países onde sua participação em política era levada a sério,
enquanto outras, principalmente as novas classes trabalhadoras, eram
praticamente requisitadas para seguir movimentos que, pelo menos em
teoria, punha um interesse de classe internacional acima de filiações
nacionais.
Do ponto de vista sócio-histórico, concretamente na primeira metade do século XX,
a abordagem do nacionalismo estava atrelada a uma comunhão de destino, a um território e
cultura comum, a uma unidade com forte ênfase nos conceitos de liberdade, integridade,
cidadania. É também nesse período que vários países africanos se organizaram para a
emancipação política.
É a partir deste período que o conceito do nacionalismo foi associado à noção da
cultura, “estabelecendo laços entre aqueles considerados como tendo, em comum, uma
30
etnicidade, uma linguagem, uma cultura e passado histórico” (Hobsbawm, 1990, p. 204),
constituindo assim o fator principal para engendrar a nação em alguns países africanos.
Como indaga Ernest Renan (1990): “mas o que é uma nação?”. Para introduzir tal
discussão, os autores que fundamentam esse trabalho traçam uma reflexão a partir de
perspectivas diversas, estabelecendo assim os mecanismos que desenham antigas e novas
configurações do que conhecemos como nação.
Definir precisamente o conceito de nação parece-nos tarefa difícil frente ao
emaranhado de definições peculiares que povoam a literatura sobre o tema, levando em conta
as agitações e inconstâncias que as nações vêm enfrentando na atualidade, “comparadas com
a força e a estabilidade dos sentimentos de identidade nacional reivindicados anteriormente
pelos nacionalistas” (HOBSBAWM, 1990, p. 211). Ainda assim, é possível delinear alguns
aspectos que ajudam a compreender tanto a nação quanto os elementos que a compõem na
contemporaneidade.
Alguns autores definem a nação com foco no pertencimento, outros enfatizam uma
relação com a gênese do Estado colonial. Por esta via, a ideia de nação traz no seu bojo, de
um lado, o caráter de um construto baseado no reconhecimento, constituído pelas narrativas
de lealdade, e, de outro lado, o aspecto histórico, uma ligação através de eventos simbolizados
na conquista dos ideais comuns, como a independência no caso das metrópoles.
Por fim, discute-se como este campo do conhecimento pode ser um instrumento
valioso para problematizar a complexidade da relação entre Estado e nação, observando a
questão de que o conceito de nação é uma construção específica e que sua formatação
depende dos contextos históricos, culturais, sociais e econômicos de cada sociedade,
impactados diretamente na experiência política. Cabe assinalar que em muitas experiências
históricas deparamo-nos com a existência do Estado sem nação, ou vice-versa.
Tal contexto nos impele a questionar, como propõe Bauer (2000): será a consciência
de uma inserção comum num grupo que compõe a nação? A partir desta questão
descreveremos de uma forma reflexiva as diversas concepções de nação presentes nos
trabalhos de alguns estudiosos.
Por outro lado, também nos interessa analisar nesse âmbito o que viria a ser nação e
identidade nacional na concepção dos seguintes autores: Otto Bauer (2000), Ernest Renan
(1997), Homi Bhabha (1998), Benetict Anderson (1989), Partha Catterjee (2000), Stuart Hall
(2003), Anthony Smith (2000), Katherine Verdey (2000), Eric J. Hobsbawm (1990), Frantz
Fanon (2005), Amílcar Cabral (1982) e outros nacionalistas africanos.
31
Dos estudos em questão, depreende-se que a concepção de nação oscila entre duas
grandes vertentes. A primeira definição fornece uma narrativa da nação como comunidade
imaginada, defendida por autores como Benedict Anderson (1989), Anthony Shmith (2000),
Stuart Hall (2005), Katherine Verdey (2000), Max Weber (1999), entre outros. Smith (2000),
Weber (1999) e Anderson (1989) compartilham da concepção da nação como uma categoria
imaginada e equiparada ao sentimento nacional, em que a nação é a comunidade que tende a
produzir seu próprio Estado. Para Benedict Anderson, a nacionalidade ou nacionalismo são
artefatos culturais de um tipo peculiar.
Portanto, para compreender tal conceito - nação - é necessário observar como se
tornaram entidades históricas, e de que modo seus significados se alteraram com o decorrer
do tempo e porque hoje inspiram uma legitimidade emocional tão profunda, que também é,
como quer Schwarcz (2008, p. 2), “pautada pela ideia de que é preciso fazer do novo, antigo,
bem como encontrar naturalidade num passado que, na maioria das vezes, além de recente
não passa de uma seleção com frequência consciente”.
Para Anderson (1989), a nação é uma comunidade política imaginada implicitamente
limitada e soberana. Ela é imaginada porque nenhum dos seus membros conhecerão a maioria
dos seus compatriotas, embora esteja viva a imagem de comunhão. Apesar das desigualdades
e exploração, a relação entre as pessoas na nação é concebida como um companheirismo
profundo. Limitada, porque possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, e nenhuma nação é
coextensiva com a humanidade.
Anderson traz uma concepção de nação pautada por uma linha de continuidade
histórica, mediada entre a lembrança e o esquecimento. Lembrança das contribuições
históricas, e esquecimento de diferenças identitárias anteriores dos povos em conflito.
Para este autor, a nação é um conceito transitório em constante transformação, isto é,
transformação dos interesses ancestrais substituídos pelos interesses comuns da nova nação.
Mais que “inventadas, as nações são imaginadas, no sentido de que fazem sentido para a alma
e constituem objetos de desejos e projeções.” (ANDERSON, 1989, p. 20).
Para Anthony Shmith (2000, p. 199), por exemplo, “as nações são criadas na
imaginação histórica e sociológica, através da identificação com os heróis comunitários”, pois
uma nação seria a mediação entre o passado histórico e um presente ancorado no anseio das
conquistas de soberania estabelecido pela rede de solidariedade criada pelo sentimento dos
resultados dos sacrifícios dessa conquista.
Segundo este autor, a nação é também um instrumento de legitimação e mobilização
através do qual os líderes despertam o apoio das massas para a sua luta competitiva pelo
32
poder. Já para Weber (1999), a nação tende a incluir a ideia da origem comum e de uma
semelhança no modo de ser. Para ele, a nação é um sentimento da comunidade étnica
alimentado por fontes diversas.
Tanto Smith quanto Anderson propõem que a nação é um construto da imaginação,
uma comunidade que se imagina soberana e delimitada. Por outro lado, a nação seria também,
na concepção de Katherine Verdey (2000), uma comunidade simbólica política e ideológica,
circunscrita numa interação social dos seus membros. Entretanto, a nação na concepção da
autora é um construto ideológico que une seus membros distinguindo-os dos de outras nações,
pelo sentimento de pertencer à mesma história, ou seja, pela questão de compartilhar os
mesmos símbolos nacionais.
Katharine Verdey (2000) ainda assinala que a nação tornou-se um símbolo potente
de classificação internacional de Estados nacionais. Pois, além de ser um construto ideológico
preponderante para conferir ordens nos espaços geopolíticos, a nação é uma alegoria que
traduz a legitimidade a inúmeras representações políticas no campo de contestação de poder.
Vale ressaltar que a questão simbólica de uma nação está intimamente ligada aos
aspectos de uma herança histórica comum, baseada na luta e conquista de signos que
expressam o mérito de um Estado soberano e independente. Portanto, estes signos estão
imbricados na “consciência nacional” destes membros da nação, e legitimados como
identidade social que une os componentes desta nação através do pertencimento a uma
comunidade com sentimento de partilha.
Esta reflexão nos remete às formulações de Stuart Hall, que define a nação não
apenas como uma entidade política, mas como algo que produz sentido, isto é, um sistema de
representações culturais reconhecidas pelos seus membros. Ao fazerem parte deste sistema de
representação cultural, os membros da nação compartilham, através da cultura, uma cultura
nacional que “explica o poder da nação e gera um sentimento de identidade e lealdade”
(HALL, 2005, p. 49).
Para Hall (2005, p. 50), uma cultura nacional é um discurso, ou seja, um modo de
construir sentidos que influencia e organiza nossas ações e as concepções que temos de nós
mesmos, para que possamos nos identificar e construir identidades. Ainda sobre os discursos
fundacionais, Stuart Hall argumenta que muitas nações fornecem narrativas baseadas no mito
ou “estória” que localiza a origem da nação, do povo e do caráter nacional num passado
distante, não de tempo real, mas de um tempo mítico (HALL, 2005, p. 55).
A segunda vertente, defendida por autores como Otto Bauer (2000), Amílcar Cabral
(1982), Frantz Fanon (2005), Homi Bhabha (1998), Ernest Renan (1997), Eric J. Hobsbawm
33
(1990), dentre outros, é de uma nação concebida como comunidade de destino baseada na
experiência comum dos seus membros e de uma constante interação mútua, renovada através
dos valores culturais das gerações anteriores.
Segundo Otto Bauer (2000), a nação seria comunhão de destino, que implicaria uma
experiência comum de mesmo destino em uma interação mútua entre os membros. Para o
autor, a questão principal que caracteriza a nação como comunidade de destino é a herança
natural, ou seja, a descendência e a transmissão dos valores culturais através da língua vista
como um instrumento da comunidade humana. Para este autor:
O fato de a nação não ser produto de mera semelhança de destino, mas brotar
da comunhão de destino e consistir nela, na constante interação dos que
partilham esse destino, é o que a distingue de todas as outras comunhões de
caráter. Assim a nação pode ser definida como uma comunhão de caráter que
brota de uma comunhão de destino, e não de uma mera semelhança de
destino (p. 57-58).
Nesta mesma linha, Amílcar Cabral chama a atenção para a concepção da nação
como resultado da reação de um grupo de homens e mulheres face ao meio social e aos
problemas existentes, e da sua ação conjunta para enfrentar esses problemas, na medida em
que tenham uma aspiração comum, nesse caso a conquista da independência e a soberania
nacional.
O conceito de nação idealizada por Amílcar Cabral foi determinante na engenharia
social do povo bissau-guineense, ao pretender uniformizar os interesses étnicos em interesses
coletivos, gravitando numa nova identidade unificada, que transmite aos sujeitos o significado
homogêneo de representação de seus interesses através de discurso de construção da nação.
Outrossim, a concepção da nação em Amílcar Cabral estava associada à questão da
libertação, do nascimento do “homem novo”, de uma nova cultura nacional, uma consciência
de pertencer a uma comunidade ligada a um território, para a sua afirmação na luta de
libertação. Nesse sentido, afirma Cabral (1974, p. 114) que:
É através da luta que estamos forjando a nossa Nação Africana, que como
sabem não estava bem definida, com todos os problemas de grupos étnicos,
com todas as divisões criadas pelo próprio colonialista, por exemplo,
indígenas e assimilados, gente dos campos, etc., etc. Estamos forjando a
nossa Nação Africana que é cada dia mais consciente de si mesma.
34
O que é enfatizado na concepção de Amílcar Cabral é a nação como herança do
passado (continuidade histórica), baseada na narrativa de uma forte e unificada identidade
continental. Não obstante, não existe continuidade sem ajustes de valores culturais, de normas
políticas, etc. Desta forma, toda a continuidade requer um processo de ajustes do novo
contexto e das novas normas específicas de cada sociedade.
Em linhas gerais, a nação não seria uma concepção simbólica, baseada no discurso
da fundação eminentemente com retorno ao passado, mas sim de um passado conjugado com
o presente recheado de diferenças étnico-culturais dos seus membros.
Seguindo a mesma abordagem teórica da nação como estratégia do enfrentamento,
destacamos o nacionalista martiniquense Frantz Fanon, para quem a nação nasce da ação
organizada do povo, que encarna as aspirações reais do povo, e essa nação influi
fundamentalmente na cultura. Ainda para Frantz Fanon (2005, p. 279), a cultura é primeira
expressão de uma nação, de suas preferências, de seus interditos, de seus modelos. Ele
adverte:
A nação não é apenas condição da cultura, da sua efervescência, da sua
renovação contínua, do seu aprofundamento. Ela é também uma exigência. É
primeiro o combate pela existência nacional que desbloqueia a cultura, abrelhe as portas da criação (FANON, 2005, p. 280).
A centralização da concepção da nação pelos nacionalistas africanos através da via
da cultura deve-se ao fato da administração colonial centrada na política de assimilação
cultural europeia tentar eliminar todas as possibilidades que vislumbre uma demonstração
cultural autônoma dos colonizados. A alienação colonial propunha a recusa das tradições
culturais e das subjetividades identitárias.
Nesse sentido, a proposta da construção de uma unidade nacional preconizada tanto
por Cabral quanto por Fanon e outros nacionalistas é a de que os africanos teriam que passar
necessariamente pelo processo de desalienação a que foram submetidos, com vistas à
valorização cultural, como condição fundamental para a consciência política e reabilitação das
suas identidades.
A consciência nacional constituía - no entendimento de Cabral, de Fanon, bem como
de outros nacionalistas africanos - fator determinante para a luta de libertação nacional, que
vai engendrar a construção da nação africana livre de dominação e submissão cultural; é
através da cultura que o colonizado conquistará a sua liberdade.
35
Assim, tanto Cabral quanto Fanon viam na construção da nação o fator
revolucionário de mudança cultural, da desalienação dos povos africanos na tomada de
consciência, que visava à libertação do continente, forjando um sujeito humano novo livre do
fardo da raça. Pois, para Fanon (2005, p. 283), é a libertação nacional que torna a nação
presente no palco da história.
Por sua vez, Homi Bhabha percebe que a nação não é mais o signo de modernidade
sob o qual diferenças culturais são homogeneizadas, pois a “nação revela em sua
representação ambivalente uma etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da
contemporaneidade social” (BHABHA, 1998, p.212). A conjuntura “liminar de uma
modernidade cultural colocou a nação como explicação central para a composição de uma
série cultural que se queria mimese da sociedade.” (BHABHA, 2005, p. 200). Bhabha ainda
chama a atenção para o sentido ambíguo da nação, por um lado o conforto de se pertencer a
uma sociedade, os costumes, o gosto, e por outro as injustiças ocultas da classe e o senso
comum da injustiça. (p. 52).
O contexto etnográfico proposto por Bhabha - no tocante à ambiguidade em perceber
a nação enquanto construto - facilita compreender a configuração das nações africanas, que
tonifica a unidade sobre as diversidades étnicas num determinado contexto histórico, mantida
sob o discurso de lealdade e solidariedade, que posteriormente veio a projetar-se na
exasperação do poder e no depauperamento dos membros fundadores desta narrativa
discursiva, compartilhada pelos símbolos de conquistas das independências.
Nestas condições, o discurso nacional tende a se esgotar mediante as práticas de
poder que lhe são agregadas — práticas estas “conflitantes entre si e que disputam a
apropriação do símbolo da nação, o que torna a nação senão a encruzilhada ou o conjunto
movediço dos discursos concernentes à identidade nacional” (MICHEL & DEBRUN, 1990).
Para Ernest Renan (apud FOREST, 1970), a nação é um princípio espiritual, que
resulta das profundas complicações da história, constituída por um legado comum de
lembranças, da vontade de fazer valer esta lembrança, isto é, na vontade de permanecer
juntos. Portanto, para ele:
O que distingue as nações não é nem raça, nem a língua. Os homens sentem
no coração que são um mesmo povo quando têm uma comunhão de ideias,
de interesses, afetos, lembranças e esperanças. Eis do que é feita da pátria.
Eis por que os homens querem caminhar juntos, trabalhar juntos, combater
juntos, viver e morrer uns para os outros. A pátria é o que amamos. (RENAN
apud FOREST, 1970).
36
Neste contexto, o sofrimento é destacado pelo autor como marca preponderante nas
recordações nacionais, pois uma nação é o espírito de solidariedade baseado nas lembranças
do passado sofrido, que estimula o desejo de estar juntos. Assim, para Renan, “O sofrimento
em comum une mais que a alegria, isto é, os lutos valem mais do que os triunfos.” (p. 40). Ele
afirma:
Uma nação é uma grande solidariedade, criada pelo sentimento dos
sacrifícios que foram feitos e daqueles que se está disposto a fazer no futuro.
Ela pressupõe um passado, mas resume-se no presente num fato tangível, no
consentimento, no desejo claramente expresso de continuar a viver em
comum. A existência de uma nação é um plebiscito realizado em cada dia,
assim como a existência do individuo é uma perpetua afirmação da vida.
(2000, p. 188).
Articulando o esforço teórico de Anthony Smith (2000) à assertiva de Ernest Renan
(apud SMITH, 2000), é possível verificar um investimento político num discurso baseado no
passado histórico comum que nos remete à compreensão da configuração das nações
modernas. A nação é uma grande solidariedade ligada pelos sentimentos de sacrifícios. Isto é,
pressupõe um passado baseado na vontade expressiva de viver em comunidade que promove
a partilha de signos e de símbolos identitários que dá sentido à existência da nação.
Por sua vez, Eric J. Hobsbawm (1990, p. 28) define a nação como a comunidade de
cidadãos de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo e tendo uma comunhão de
interesses, a coletividade de habitantes de um território com tradições, aspirações e interesses
comuns subordinados a um poder central que se encarregue de manter a unidade do grupo.
De modo geral, as concepções de nação residem nas formas como são pensadas ou
imaginadas, pois muitas nações africanas, por exemplo, foram pensadas de forma diferente de
algumas nações ocidentais, devido ao contexto histórico em que surgiram. 9 Por exemplo, na
Guiné-Bissau, como em outras colônias portuguesas, a nação foi forjada na luta de libertação.
Neste sentido, o Estado nação na concepção ocidental tem “uma função homogeneizadora e
unificadora, porém este modelo de Estado opõe-se à organização, às normas, às instituições e
aos valores das sociedades africanas pré-coloniais que são majoritariamente plurinacionais”
(VAN DÚNEM, 1997, p. 32).
Deste modo, no continente africano, a concepção é baseada numa nação englobando
várias comunidades étnicas diferentes, o que deve relativizar a concepção recorrente da nação
como a comunidade homogênea, ou seja, unificada. Em outras palavras, o processo de
9
Faz-se necessário esclarecer que a emergência do Estado nação em alguns países da Europa, como França,
Itália, Alemanha etc., se dá num quadro de multiplicidade étnica, que em alguns casos culminou com a
integração na etnia dominante.
37
formação da identidade nacional em África é caracterizada pela permanência da etnicidade.
Como reforça Hobsbawm (1990, p. 191),
[...] enquanto esses movimentos de libertação nacional no terceiro mundo
foram teoricamente modelados no nacionalismo do ocidente, na prática, os
estados que geralmente intentaram construir foram o oposto das entidades
linguísticas e etnicamente homogêneas que vieram a ser encaradas como
forma padrão do estado-nação no ocidente.
Outro aspecto relevante a ser considerado na análise da nação e na construção da
identidade nacional é que a percepção simbólica na construção da identidade nacional não é
universal; ela muda de acordo com as especificidades de cada sociedade. Assim sendo, ao
mesmo tempo em que a nação se configura no discurso homogeneizador, é também
diferenciador representado através de ideologias nacionais. A nação produz e reproduz ideias,
construtos e lutas políticas.
Cabe assinalar que a relação entre poder político e democracia na Guiné-Bissau
trouxe consigo uma série de desafios para o Estado nação, no tocante às formas de conciliar
interesses coletivos (nação) e grupais (partidos políticos), pois os interesses individuais têm
moldado a configuração da nação bissau-guineense através da disputa pelo poder político.
Analisar a dinâmica de formação do Estado nação na Guiné-Bissau requer a
compreensão do processo complexo de transformação política, social, cultural e econômica
que impactou durante décadas o país, tendo por marco os anos de 1959 a 1994. Entretanto,
para melhor entender essa complexa trajetória, seria interessante atentar para as características
históricas que impulsionaram o processo desta formação. Estas abordagens serão analisadas
com mais pertinência nos próximos capítulos.
A centralização da minha análise na concepção de nação em África incidir sobre
Amílcar Cabral e não em outros nacionalistas africanos deve-se ao fato de se tratar de um
líder nacionalista bissau-guineense e um dos principais protagonistas na idealização da nação
bissau-guineense.
Um segundo fator a ser considerado é a proximidade ideológica e da organização
estrutural do movimento de libertação na Guiné-Bissau e das outras organizações das colônias
portuguesas. Além de constituírem uma única frente para contestar a presença colonial em
África, estes nacionalistas comungavam dos mesmos ideais. Assim, Cabral passou a ser uma
espécie de portavoz e representante principal dos anseios das colônias portuguesas em África.
É nesse ensejo que se justifica a sua escolha em meio aos teóricos das tradições ocidentais.
38
Em linhas gerais, as duas abordagens acerca da concepção de nação - tanto
comunidade imaginada quanto comunidade de destino - são imprescindíveis para a
compreensão das transformações as quais as nações vêm enfrentando. Todavia para os
propósitos desta pesquisa a nossa análise recai sobre a segunda vertente de nação - o da
comunidade de destino - sendo o conceito que mais se aproxima do discurso dos nacionalistas
africanos, da nação como construção coletiva de destino, que visa à elevação da consciência
nacional com fins à unidade política.
1.2
A gênese do nacionalismo africano
A afirmação de Anthony D. Smith – de que a base legal do nacionalismo para a Ásia,
a África e América Latina é uma autorreprodução do modelo ocidental de nação, adaptado
pelas elites e, sobretudo, intelectuais destes espaços geopolíticos – é um ponto de partida para
a análise de concepção de nação nos países africanos de língua oficial portuguesa, que teve
sua inspiração nesse modelo ocidental, e, contudo, atentou para suas especificidades que
gravitam entre a concepção de nação e de cultura.
Por isso Mário de Andrade (1997, p. 13) confirma essa característica do
nacionalismo, defendido por Smith, não obstante assinalar a “singularidade africana no
entendimento desta análise e da particularidade do momento africano da ideologia
nacionalista”.10 Essa assertiva de Mário de Andrade aponta para uma breve análise histórica
da origem do nacionalismo africano encabeçada pelos estudantes africanos de diferentes
países, residentes em Lisboa, os quais, ao tomarem consciência de suas identidades por
questões raciais a que eram submetidos, encontraram na Casa de Estudantes de Angola - que
viria a ser mais tarde Casa de Estudantes do Império (CEI) - a forma associativa para criar
10
Doravante aqui referido Mário de Andrade, ensaísta e ativista político, Mário Coelho Pinto de Andrade,
nascido a 21 de agosto de 1928, em Angola. Juntamente com outros estudantes e intelectuais de países
africanos lusófonos vivendo em Lisboa - como Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Francisco José Tenreiro criou o Centro de Estudos Africanos, em 1951, com o objetivo de refletir sobre problemáticas importantes da
África. Foi chefe de redação (entre 1955 e 1958) da conceituada revista Présence Africaine, em Paris, e, em
1956, foi um dos organizadores no I Congresso de Escritores e Artistas Negros, naquela cidade, tendo, três
anos mais tarde, tomado parte no II Congresso, em Roma. Dedicou-se também aos estudos de sociologia e a
diversas publicações antológicas e de obras literárias, como Antologia da poesia negra de expressão
portuguesa (1958); Amílcar Cabral: éssai de biographie politique (1980); e As origens do nacionalismo
africano (1997, póstumo), entre muitos outros. Considerado um dos mais importantes ensaístas angolanos do
século XX e o primeiro africano de língua portuguesa a elaborar textos críticos e estético-doutrinários sobre a
poesia africana lusófona. Faleceu em Londres, em 1990. A título de diferenciação, homônimo seu e também
ilustre, Mário Raul de Morais Andrade, ou Mário de Andrade, é o romancista, poeta, ensaísta e músico
brasileiro.
39
uma frente unida que congregava todos os africanos com espírito patriótico, a fim de
discutirem a realidade de suas colônias. Entretanto, a “comunidade africana residente,
sobretudo em Lisboa, alarga-se e engloba, em diversas proporções, personalidades eminentes
do conjunto imperial” (ANDRADE, 1997, p. 183).
Destaca-se que a Casa de Estudantes de Angola foi fundada em 1944, como forma de
recepcionar os estudantes angolanos para que pudessem prosseguir os seus estudos sem
grandes sobressaltos e proporcionar-lhes conforto em Lisboa. Não obstante, essa casa passou
a agregar os estudantes de todos os países africanos que chegavam a Lisboa, formando assim
grupos de socialização cultural dos distintos países africanos, com o intuito de criar redes de
solidariedade. Com o passar do tempo, a casa organizava eventos culturais, onde os
representantes de cada país eram convidados a declamar poesias, cantar, tocar e descrever a
realidade do sistema colonial que o país vivia, conforme descreve Andrade (973, p. 6):
A nossa primeira tentação, digamos o nosso primeiro instinto, foi o de nos
encontrar entre estudantes africanos. Era natural que nos reuníssemos para
medir a nossa força e, sobretudo, para pensar em conjunto os problemas
próprios dos africanos. […] nós começamos a criar a consciência de
representarmos as aspirações dos nossos povos oprimidos e de sermos, por
assim dizer, a esperança da nossa sociedade.
Tais encontros culturais geraram desconfianças do Governo de Portugal em relação a
uma possível articulação destes estudantes contra o regime do Império. Em vista disso, o
Ministério da Colônia incentivou os estudantes de Casa de Angola a se unirem numa única
agremiação e, desta forma, a Casa de Angola foi a base da Casa de Estudantes do Império
(CEI) criada pelo Ministério das Colônias, com a finalidade de reunir estudantes de todas as
colônias portuguesas, numa única representação estudantil em Lisboa. Para Mário de
Andrade, a CEI “não era um tipo de organização política. Era associação de defesa dos
interesses materiais e para o bem estar social dos estudantes” (p. 13).
Entretanto, deve-se considerar que a unificação da Casa de Angola com a CEI não
renderia bons frutos. Os africanos começaram a sentir-se retraídos em relação aos demais da
casa, isto porque a CEI era constituída majoritariamente por estudantes brancos, que não
tinham as mesmas aspirações que os estudantes africanos, isto é, os objetivos eram opostos e
nesse sentido os interesses dos estudantes africanos não eram representados na pauta da CEI.
É oportuno salientar que a maior parte dos estudantes e dos recursos da CEI vinham
de Angola. Tanto CEA quanto CEI estavam ligados às elites coloniais — ou seja, quase todos
brancos ou de famílias mestiças importantes. Em seguida, em termos numéricos, vinham os
40
caboverdianos, quase todos mestiços. Cabral chega à CEI via Cabo Verde. Não havia bissauguineenses e os moçambicanos eram pouquíssimos, e quase todos brancos.
De modo geral, os negros em Lisboa vinham com bolsas de missões protestantes e
em princípio não circulavam na CEI. O próprio Agostinho Neto veio com bolsa metodista, e
depois manteve-se por conta própria quando começou a se envolver com política. Só no final
da década de 1950 começam a aparecer mais mestiços e negros na CEI, porque ao longo da
década tinha havido uma enorme expansão no ensino básico nas colônias, mas especialmente
em Angola. Mário de Andrade traduz bem essa visão na sua formulação sobre a geração de
Cabral:
Éramos poucos estudantes em Lisboa, contavam-se ainda pelos dedos os
estudantes das Universidades. Poucos africanos podiam prosseguir os
estudos universitários, porque para se entrar na Universidade era preciso
terminar o curso secundário com altas classificações, e nos liceus das
capitais de Angola, de Moçambique, de Guiné e de Cabo Verde reinava,
duma maneira clara, a discriminação racial. Essa discriminação racial,
praticada pelos professores “tugas” (portugueses), refletia a discriminação
econômica e social inerente ao colonialismo […] as famílias da nossa
sociedade colonizada, não tinham possibilidades materiais de enviar todos os
seus filhos às escolas, e pouco numerosos eram aqueles que podiam terminar
o sétimo ano dos liceus. Assim se explica o numero tão reduzido de
estudantes de Angola, de S. Tomé, de Cabo Verde e da Guiné prosseguindo
nessa altura os seus estudos nas Universidades “tugas” — portugueses
(ANDRADE, 2005, p. 5).
Ressalte-se que estes estudantes africanos em Lisboa - isto é, aqueles filhos dos
assimilados a quem foram concedidas bolsas de estudo para Portugal - tiveram a iniciativa de
se organizar em movimentos nacionalistas nos meandros da residência estudantil como forma
de reivindicarem não só sua condição de negros africanos com estatuto de portugueses, mas
também de questionar o sistema colonial nos seus respectivos países.
O que está subjacente a essa reivindicação dos estudantes africanos em Lisboa é o
fato de que, apesar de serem considerados por questões legais assimilados, pela adesão ao
catolicismo e ao modelo português de serem “cultos”, eles não eram automaticamente
considerados portugueses de direito, mas sim portugueses de “segunda”.11
As manifestações de cunho racista por parte da sociedade portuguesa, de uma forma
geral, fizeram com que os africanos desenvolvessem um mecanismo de defesa, ou seja, um
movimento de emergência de sentimento nacional, direcionado para um projeto de uma
11
O termo “português de segunda” era proveniente do processo de assimilação imposta pelo sistema colonial
português resultante da reconversão identitária. No entanto, a identificação era baseada prioritariamente na cor
da pele e nos traços fenótipos. Os estudantes africanos não “pretos”, ou seja, aqueles de pele clara, os
denominados mestiços, não se incluíam nessa classificação, apenas os que tinham a pele negra.
41
identidade coletiva (africanos), que lhes restituía uma identidade de origem, mais confortada,
que lhes permitia traçar estratégias para o enfrentamento tanto do racismo português, quanto
das ações coloniais em África. Seguindo essa percepção, António Tomás (2008, p. 25) afirma:
Por serem africanos assimilados, logo, portugueses e por não terem lugar na
sociedade multirracial que se apregoava […] poucas saídas restavam senão
lutar pela destruição do sistema (sic). Ao criarem, anos mais tarde, os
movimentos de libertação que contribuíram para o fim do colonialismo,
Amílcar Cabral e os seus companheiros fundaram novas nacionalidades.
Essa articulação política dos estudantes africanos contou com apoio das correntes
pan-africanistas, de modo particular William Du Bois, que lutavam para a reintegração maior
dos africanos fora do continente. Portanto, o movimento abarcava todos os africanos, tanto os
da colonização portuguesa, quanto francesa, inglesa, etc., todos sintonizados pelo mesmo
sentimento de promoção de liberdade e direitos humanos a todos no continente africano. Uma
das vozes marcantes da diáspora no discurso pan-africanista era sem dúvida Du Bois, que
reconhecia na África o símbolo maternal da humanidade, capaz de unir os pensamentos dos
negros do mundo, advogando por isso a missão de desenvolver o nacionalismo negro.
Ao equacionar as questões relativas à vida dos negros, Du Bois impeliu aos
afroamericanos a furtarem-se da integração cultural e espiritual na “civilização” dominante, e
ao mesmo tempo conquistarem a igualdade civil e política. Du Bois convocava a todos sem
distinção para a missão de libertar seus povos e preservar suas identidades culturais,
reivindicando suas autonomias. Portanto, “protestar solenemente contra o injusto desprezo e o
odioso tratamento a que está ainda sujeita em toda a parte, criar, enfim, uma direção, por uma
ação contínua aos interesses econômicos, bem como aos direitos políticos e sociais dos seus”
(DU BOIS apud ANDRADE, 1997, p. 171).
Sem dúvida, o discurso político de Du Bois “ganhou legitimidade no quadro das
aspirações das independências nos países do terceiro mundo” (ANDRADE, 1997, p.177).
Segundo Mário de Andrade (1997, p. 14), o nacionalismo africano pode ser definido como a
“vontade de uma coletividade de criar e de desenvolver o seu próprio Estado soberano, ao ter
tomado consciência da sua individualidade histórica, na sequência das circunstancias
diversas”.
O antigo comandante nas fileiras do batalhão dos atiradores senegaleses, Lamine
Senghor (apud ANDRADE, 1997, p. 148), vem nos reforçar a ideia de nação de Renan,
compartilhada através da comunidade de solidariedade.
O nosso partido é a raça negra e nós devemos e queremos defendê-la.
Prossegue: “estamos agrupados contra todas estas iniquidades... sem
42
distinção étnica nem de nacionalidade dos nossos mestres, para combater o
ódio de raça, demonstrar que somos dignos de ser, acelerando, os nossos
passos em direção da nossa evolução social e atingir o nosso direito de
igualdade com todas as raças humanas”.
Este enunciado ratifica o argumento de que o discurso contra o sistema de exploração
europeia na África apresentava pontos comuns com a diáspora, pulsavam os espíritos da
comunidade negra, tanto no continente africano, como fora. Nesse contexto, o projeto dos
nacionalistas africanos visava a uma integração de todos os africanos no continente, sob a
chancela de uma identidade africana, cuja base foi gestada nos ideais pan-africanistas de
agremiação de todos os negros no mundo.
Segundo José Welton Ferreira Júnior (2011, p. 10), a emergência de um quadro
político como o do pan-africanismo, em franco diálogo com a diáspora, alimentou, na
dimensão cultural dos países africanos, um ímpeto em construir um corpus cultural
legitimador, primeiramente, de uma identidade africana e, posteriormente, empenhada em
construir a narrativa da nação.
Entre os estudantes de países africanos de língua portuguesa residentes no CEI em
Lisboa, destacamos Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos,
Agostinho Neto, Vasco Cabral, entre outros, que sem dúvida foram influenciados pela
ideologia pan-africanista e que, através desta premissa, construíram bases teóricas para a
reformulação do nacionalismo em seus países.
Nesse sentido, a inspiração nos ideais pan-africanistas proporcionou-lhes uma maior
conscientização da sua pertença identitária, ao tempo que deixou claro que o fato de gozarem
do estatuto de assimilados não subtraia-lhes a condição de pertencimento étnico-racial de
negros africanos. Nas palavras de Andrade:
[...] começamos a definir a nossa identidade de estudantes africanos, filhos
da nossa terra, filhos do povo, que tinham tido a oportunidade, a “chance” de
se infiltrar naqueles lugares vazios que deixava a administração colonial
portuguesa para prosseguirmos os nossos estudos, para sermos os melhores
alunos do Liceu, e poder triunfar sobre o racismo. Portanto, sendo a nossa
origem social uma origem popular, tivemos a preocupação de pensar em
conjunto a situação concreta nas nossas terras (ANDRADE, 1997, p. 8).
É bom lembrar que, durante os séculos da colonização, a questão da assimilação aos
preceitos portugueses constituía-se num ponto importante na elevação da vida social dos
africanos. Parecer português - e aproximar-se dos padrões estéticos portugueses - era a priori a
condição de inserção na dispendiosa sociedade portuguesa. Portanto, só tinham acesso à
43
escola os africanos que aceitaram a condição de “civilizar-se”, isto é, converter-se ao
catolicismo, ter domínio da língua portuguesa, entre outros pré-requisitos.
Este grupo de estudantes africanos em Lisboa, que mais tarde viria a intitular-se
Geração Cabral, foi imprescindível na conquista da autodeterminação política nos seus países,
impelida pelas matrizes que remontam ao pan-africanismo.12
Com intuito de criar uma organização que objetivava discutir só as questões
africanas, já que a estrutura oferecida pela CEI não permitia realizar trabalhos que envolviam
questões políticas dos estudantes africanos, a Geração Cabral traçou um plano de palestras no
sentido de analisar de forma mais aprofundada as questões inerentes ao continente africano e
à colonização europeia. Na senda desta discussão, surgiu o Centro de Estudos Africanos
(CEA), criado em 1951, tendo como protagonistas Amílcar Cabral, Mário de Andrade e
Francisco José Tenreiro, entre outros.
O CEA servia de referência para a promoção das reuniões políticas que mais tarde se
transformaria em organização política da Geração Cabral. “Todas as conversas do Centro de
Estudos, como atualmente todas as reuniões do partido, eram seguidas de debate, pois elas
não só tinham por objetivo de nos instruirmos a nós próprios, mas tomarmos, sobretudo,
consciência das nossas realidades, das realidades coloniais” (ANDRADE, 1973, p. 18).
A Geração Cabral era, sobretudo, caracterizada como comunidade de interesses;
portanto, todos comungavam das mesmas aspirações e dividiam os mesmos problemas: o
racismo português e as arbitrariedades do sistema colonial em África. Tratava-se de um grupo
de estudantes que se reconheciam pelos mesmos problemas e criaram laços de solidariedade
baseados na sua origem africana. Cabe dizer que não eram apenas meros estudantes, mas sim
“intelectuais insurgentes” no sentido gramsciano, motivados a delinear mudanças da realidade
dos seus países. Formavam um grupo de nacionalistas que “estavam atentos à evolução do
mundo, particularmente da evolução da África”, diz Andrade (1973, p.20). E rememora:
[…] nossa consciência nacionalista era alargada a tudo o que se passava em
qualquer colônia portuguesa, portanto nós estávamos com o povo de S.
Tomé quando houve o massacre em S. Tomé, com o povo da Guiné quando
houve o massacre de Pindjiguiti, como depois estaríamos com o povo de
Angola quando se desencadeou a luta armada em 4 de fevereiro de 1961.
Criamos esta consciência de pensar e vibrar ao ritmo de todas as lutas nas
colônias portuguesas. (ANDRADE, 1973, p. 20).
12
Vale esclarecer que a denominação Geração Cabral é de autoria de Mário Pinto de Andrade. Trata-se, na
verdade de uma heterodenominação e que veio a surgir depois da morte de Cabral, no período pósindependências. Neste sentido, antes desse período, estes estudantes não se identificavam enquanto pertencentes
a essa geração.
44
Convém assinalar que foi a partir da década de 1940 que a Geração Cabral se inseriu
no quadro da política portuguesa. Ao fazer parte das organizações democráticas portuguesas,
alguns membros da Geração Cabral desempenharam cargos de dirigentes, a exemplo de
Vasco Cabral e Agostinho Neto, onde aprenderam com os colegas estudantes portugueses as
técnicas de clandestinidade, entre outras formas de organização política.
Uma grande parte de literatura permite afirmar que Portugal foi o lugar ideal para se
traçar as primeiras formas dos movimentos nacionalistas africanos, que posteriormente se
juntariam a outras organizações políticas em África para libertação dos povos da opressão
colonial. Acredita-se que foi através do encontro dos estudantes africanos em Lisboa que
surgiram as primeiras manifestações do sentimento nacionalista, em particular dos países da
colônia portuguesa, que articulou mais tarde a conquista da autodeterminação política em
paralelo com algumas organizações clandestinas no continente africano, com o intuito de
contestar o sistema colonial e reivindicar os direitos dos povos colonizados.
Para Mário Pinto de Andrade, pelo objetivo do colonialismo português e pela
circunstância que Portugal atravessava, não era possível a concessão da liberdade política por
meios pacíficos, sendo que a luta armada era uma condição inevitável; o desafio seria a
organização das “massas populares” e o consenso dos distintos grupos étnicos para a inserção
na fileira da luta.
A Geração Cabral desempenhou um papel extremamente importante na formação da
consciência comum dos nacionalistas de colônias portuguesas em África. Estavam
sintonizados com todos os movimentos tanto na Europa e América, quanto no continente
africano. O esforço em se fazer presente em eventos que se organizavam na Europa e na
África era intrínseco às construções de estratégias para o desenvolvimento da luta.
O encontro do martiniquense Frantz Fanon na Conferência dos Escritores e Artistas
Negros, em 1959, em Roma, com alguns membros da Geração Cabral foi crucial na
articulação de desenvolvimento das estratégias da luta armada que já era uma realidade para
alguns países africanos.
Vale ressaltar que o movimento pan-africano também era tido como uma escola
política para os nacionalistas africanos, no sentido de promover uma consciência política
destes nas diásporas para a viabilização da libertação dos seus países.
Em 1957, foi criado o Movimento Anticolonialista (MAC) em Lisboa pelos
indivíduos que viriam a ser membros do MPLA, do PAIGC, de nacionalistas de Moçambique
e de São Tomé e Príncipe, objetivando uma única e expressiva representação política das
então colônias portuguesas para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português.
45
Para Amílcar Cabral, esta organização foi um produto de uma época de transição, em que o
nacionalismo africano supera a fase “adormecida” e procura uma via de contestação e de
libertação.
Três anos mais tarde, em 1960, por ocasião da II Conferência dos Povos Africanos,
realizada na Tunísia, a Geração Cabral sentiu a necessidade de constituir uma representação
em nível internacional; desta forma, o MAC se transformou na Frente Revolucionária
Africana para a Independência Nacional das Colônias Portuguesas (FRAIN), sendo
eminentemente caracterizada como uma frente internacional, que conjugaria os interesses de
todas as colônias portuguesas em todas as conferências internacionais. Neste sentido, a sede
da FRAIN fixou-se em Conacri, país vizinho da Guiné-Bissau. Este assunto será abordado
com mais pertinência no quarto capitulo, que articula a via armada e a conjuntura política
internacional.
Salienta-se a influência da literatura brasileira, em particular do escritor Jorge
Amado, e outros, como Jose Lins do Rego, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e Gilberto
Freyre, no “imaginário nacional em gestação” (SANTOS JÚNIOR, 2011) como fonte de
informação sobre a história colonial (FIGUEIREDO, 2012, p. 182; HAMILTON, 1984, p.
45).
As poesias, os cantos, etc. contribuíram para a formação dos discursos nacionalistas e
na reafirmação das identidades negro africanas dos estudantes africanos em Lisboa. Todos
esses atributos estão na gênese do nacionalismo africano e, em particular, das colônias
portuguesas de África. Nesse ensejo, a mobilização das “massas populares” para criar um
consenso nestas colônias seria, a priori, assumir a unidade entre os povos (unidade étnica),
objetivando a conscientização, formando, inicialmente, o partido para a luta de libertação que
engendraria a construção do Estado nação, exercendo os direitos à cidadania e à soberania
nacional.
1.3
Unidade africana como fator de libertação
O projeto de unidade africana visionado pelo ganês Kwame N´Krumah - um dos
nacionalistas imprescindíveis na luta pela emancipação política dos africanos - teve como
objetivo fundamental arrancar toda a África do colonialismo sob todas as formas. Nkrumah
46
via na unidade política do continente a única forma de libertação definitiva da África da
opressão colonial.
O processo escravocrata gestou estruturas racistas no continente africano, criou
divisões de classes baseadas na superioridade de um grupo étnico em relação ao outro,
desprezou e subestimou civilizações já existentes, impôs a sua religião e seus deuses,
obrigando os africanos à conversão ao catolicismo, vilipendiando suas culturas,
menosprezando assim suas tradições culturais, traçando novas fronteiras políticas sem sequer
respeitar a existência de fronteiras anteriores, separando povos.
O colonialismo13 implantou o comércio de escravos em todas as faixas etárias,
transformando seres humanos em meros objetos comerciais. Contudo, os europeus puderam
contar inicialmente com alianças com as autoridades políticas e religiosas africanas para o
estabelecimento de entrepostos comerciais; o comércio de escravos constituiu sem dúvida o
fator preponderante para o retrocesso do continente africano. Esta temática será abordada com
mais profundidade no segundo capítulo.
Diante deste contexto, para enfrentar o colonialismo e sua natureza racista e
exploradora, Nkrumah advogava que a África precisava unir-se e criar uma frente unificada,
objetivando a liquidação do sistema colonial em todo o continente. Nesse ensejo, poucos
líderes nacionalistas alinharam-se com o projeto da unidade africana difundido por Nkrumah.
Esse arranjo propunha que os países fossem Estados províncias em lugar de Estados nações.
A proposta de Nkrumah justificava-se na divisão arbitrária da conferência de Berlim (188485), que de forma despropositada separou povos sem, contudo, respeitar os direitos dos
autóctones e suas fronteiras étnicas e culturais.
Não podemos perder de vista que o projeto de um Estado federado africano teve
influência da corrente pan-africanista, que defendia os interesses de uma comunidade negro
africana. Carlos Moore assinala bem essa crítica nas suas formulações, onde constata a
divisão dos países africanos em dois blocos: o denominado grupo de Monróvia, 14 que
advogava a manutenção do pacto colonial, ou seja, um Estado moldado sob interesses da
dominação colonial e norteamericana, e o segundo grupo, minoritário, mas politicamente
dominante, que advogava a ruptura do pacto colonial e combate de forma severa ao antiimperialismo. Este grupo é composto por “Gana, Guiné, Mali, Egito, Marrocos, denominado
13
Entendemos por colonialismo toda a relação de dependência política, econômica e cultural de um povo para
com outro.
14
Trata-se de Capital da Libéria, a sede da primeira reunião de dirigentes ultraconservadores e próneocolonialistas (MOORE, 2006, p. 43).
47
de grupo de Casablanca”15 (MOORE, 2008, p. 44). Importante lembrar que essa divergência
de interesses alastrou-se até o período pós-independência, e teve consequências fatídicas na
construção dos novos Estados nação.
A leitura de Nkrumah sobre “a unidade política dos Estados africanos - como melhor
meio de salvaguardar a nossa liberdade tão duramente conquistada e o fundamento ideal do
progresso econômico, social, cultural, tanto dos indivíduos como da sociedade”
(NKRUMAH, 1977, p. 7) - convoca à reflexão sobre o advento do neocolonialismo no atual
continente africano, que está revestido de “tratados diplomáticos”, que encurralam a maioria
dos países, transformando-os, por sua vez, nos chamados “Estados clientes”: apesar de
independentes, acoplados à dominação das antigas potências coloniais que supostamente lhes
concederam a independência, desenvolvendo uma espécie de dependência financeira e
diplomática (NKRUMAH, 1977). Assim sendo, uma grande parte dos países africanos estão
atrelados a essa relação de dependência política e econômica, sob denominação de Estados
emergentes protegidos pelos acordos internacionais.
À parte a virulência com que Nkrumah desconstrói o colonialismo na África,
sinalizando para a emancipação política dos países com vistas à restituição dos direitos
humanos, conclama uma África para africanos, rumo à conquista das independências. Ao
analisarmos com cuidado as reflexões de Nkrumah de que a “África deve se unir”, remetemonos à questão de uma identidade e da fragmentação da África, reforçada no enunciado de
Joseph Ki-Zerbo (2006) de que “a África deve constituir-se através da integração, fato
inexistente hoje no continente, e que ainda é possível enveredar pela linha de autoafirmação e
do pertencimento identitário e da disposição cultural”. O autor sinaliza que “sem identidade,
os africanos serão sempre instrumentos utilizados pelos outros, um utensílio, porque os
africanos não podem contentar-se com elementos culturais que recebem do exterior” (KIZERBO, 2006, p. 12).
É a partir desta constatação que as inquietações do nacionalista ganês ganham
oportunidade diante da problemática da fragilidade da representação política que o continente
africano vem enfrentando. De fato, para Nkrumah, “a salvação da África” está na sua unidade
e ali é que reside a sua força; paradoxalmente, ele sinaliza os fracassos que a desintegração
individual de cada país poderia causar frente aos interesses comuns, o que não deixa de ser
verdade:
15
É o maior porto e o maior centro industrial e comercial de Marrocos. Foi a sede da primeira reunião dos
dirigentes africanos progressistas e pan-africanistas (MOORE, 2006).
48
À medida que a luta nacionalista se intensifica nos países colonizados e a
independência surge no horizonte, as potências imperialistas, pescando nas
águas turvas do tribalismo e dos interesses particulares, tentam criar cisões
na frente nacionalista para conseguir a sua fragmentação. (1977, p. 197)
Certamente a afirmação de Nkrumah - quer seja pela sua magnitude, quer pela sua
retórica enfática - mobiliza, no mínimo, uma reflexão dos outros nacionalistas africanos, a
exemplo do Houphouët-Boigny da Costa do Marfim, que havia recusado inicialmente a
integração africana e que com o passar do tempo sentiu a necessidade de criar um conselho
que agrupasse os Estados da África Ocidental francófona (KI-ZERBO, 2006).16
Em linhas gerais, o projeto da unidade africana visava não apenas à obtenção das
independências, como também permitiria uma viabilização econômica através de uma
integração regional e continental, construindo assim uma economia homogênea e viável. Com
isso, a África teria condições favoráveis de avançar com posições fortes em termos de
decisões no nível da política interna e externa, mais confiante, ciente das armadilhas do
neocolonialismo, e em defesa da sua identidade cultural, sem, contudo, desperdiçar suas
forças políticas, intelectuais, econômicas e financeiras.
Vale lembrar a proposta do presidente líbio Muammar Kadhafi à União Africana, de
criar uma rede de troca de produtos entre os países africanos
[…] na qual países que possuem água em abundância poderiam canalizá-la
aos Estados do Sahel que a carecem (sic), recebendo em troca produtos que
não produzem, nessa mesma linha seguiria os países que são produtores de
petróleo de trocarem-no com outros produtos produzidos por outros países
de África. (M´BAH, 2012).
Ou seja, cada país apresentaria sua mercadoria forte de produção como troca com o
que ele não produz, estabelecendo assim uma rede de solidariedade para compensar as
fraquezas de maioria dos países africanos que ainda vivem sob condição de pobreza extrema.
As concepções de Cheikh Anta Diop (apud KEITA, 2008, p. 74) vieram completar a
ideia de Unidade Africana, de Nkrumah, ou seja, de propor um destino para a África “unitário
e
coletivo:
todas
as
questões
geopolíticas,
as
evoluções
continentais
contemporâneas, em suma, toda uma paisagem política, econômica e financeira, cultural,
científica, tecnológica deste fim do século XX” teria uma representação do Estado federado
africano.
16
Foi o primeiro Presidente da Costa do Marfim, de1960 até sua morte em 1993.
49
Em outras palavras, o continente africano teria um equilíbrio no que se refere a uma rede de
solidariedade dos países menos desenvolvidos, sendo auxiliados pelos países mais ricos. Isto
é, seria uma única África projetada e estruturada através de um Estado Federado. Neste
sentido, Cheikh Anta Diop (apud KEITA, 2008, p. 75) afirma que
A ideia de federação deve refletir, entre nós e todos os responsáveis políticos
em particular, uma preocupação de sobrevivência […] em vez de ser apenas
uma expressão demagógica dilatória repetida sem convicção e na ponta da
língua.
Devo ressaltar que Diop propugnava a existência de uma unidade cultural entre os
africanos antes mesmo da chegada europeia ao continente; seu maior desejo era de construir
uma nação africana.
Nessa perspectiva, a articulação teórica de Cheikh A. Diop e Léopold Sedar Senghor
(apud KEITA, 2008) aponta uma saída para o continente africano: a revalorização dos
aspectos tradicionais e culturais, como parte preponderante da civilização africana, na
restituição dos direitos humanos, e pela conquista da dignidade do povo negro na África e na
diáspora.
Cheikh A. Diop (1982, p. 68) não poupou esforços em denunciar as pesquisas
existentes sobre o continente africano, principalmente as que negavam a historicidade do
continente e as funcionalidades das culturas. Para este autor, estes enunciados servem única e
exclusivamente para a manutenção da ideologia colonial e o reforço da alienação cultural.
Ainda no que se refere à unidade africana, vale destacar o enunciado de Amílcar
Cabral (1965, p. 2), no Manifesto do Movimento Anticolonialista, no qual reafirma que “a
união sólida de todos os patriotas africanos e de todas as organizações e forças patrióticas é a
condição indispensável e básica para a vitória da nossa luta”. Lembre-se que Amílcar Cabral é
um dos nacionalistas africanos que compartilhava o projeto de unidade africana como
condição sine qua non da conquista das independências africanas.
Afora o contexto da efervescência de unidade africana nas décadas de 1950 e 1960,
respaldado pelo movimento pan-africanista, que visava a desencadear a luta de libertação
rumo à independência, Cabral, um dos seguidores deste projeto, desenvolveu na Guiné dita
portuguesa um modelo semelhante, cujo projeto gravitava entre a unidade nacional na GuinéBissau, convocando todas as etnias para uma consciência nacional, e a unidade Guiné-Bissau
e Cabo Verde a fim de criar uma única frente de libertação para os dois países, concretizando,
assim, “uma luta, dois países e uma independência” para povos bissau-guineenses e
caboverdianos.
50
Assim, a independência de alguns países africanos nas décadas de 1950 e 1960, em
particular a de Guiné Conacri em 1958 e Gana em 1957, influenciaram sobremaneira o
desenvolvimento dos movimentos nacionalistas africanos, em particular o PAIGC bissauguineense e a evolução política das independências africanas. Para alguns países foi o motor
impulsionador do surgimento dos movimentos de libertação para a independência contra a
opressão colonial, tendo como referência a unidade da África.
Por seu turno, Nkrumah não poupou os esforços em participar dos fóruns de debates
defendendo os ideais pan-africanistas, a exemplo dos congressos de Manchester e West
África, que objetivavam a autodeterminação dos povos africanos, e preconizavam as
independências imediatas e incondicionais de todos os países africanos sob colonização,
rubricadas através da unidade africana.
O seu empenho político em defesa da liberdade dos africanos na condução dos seus
destinos, pautada no discurso da unidade africana, fez com que muitos líderes, a exemplo de
Amílcar Cabral, assentassem seus projetos de libertação nas narrativas discursivas de uma
África unida contra o colonialismo. Nas suas formulações, Kwame Nkrumah (1997) defende
que:
O século XX tornou-se, portanto, o da emancipação colonial, da revolução
contínua que deverá conduzir a libertação total da África do colonialismo
imperialista. A independência do Gana em 1957 abriu de par em par as
portas abertas à liberdade africana. No espaço de quatros anos, mais de
dezoito países africanos se tornaram independentes […] esta multiplicidade
das nações africanas livres é o coroamento da luta consciente e determinada
dos povos da África para sacudir o jugo imperialista, todo o continente se
transforma. […] e nós, que nos batemos até a independência, não teremos
descanso enquanto a última cidadela do colonialismo não tiver sido abatida
em África (NKUMAH, 1997, p. 6-7).
Outra contribuição inegável na evolução dos movimentos nacionalistas bissauguineense é o da vizinha Guiné Conacri, que concedeu ao PAIGC de Amílcar Cabral o
suporte para instalar as bases militares do partido para o desenvolvimento da luta de
libertação, como veremos mais adiante.
O projeto de unidade para a independência das então colônias de África é prenúncio
de um pensamento maior - a União dos Estados africanos, com intuito de criar um núcleo dos
Estados Unidos da África. O debate em torno dessa união fez emergir em 1963 a Organização
da Unidade Africana (OUA), como instrumento político que daria voz às aspirações
compartilhadas pelos nacionalistas africanos.
51
A reunião em Adis Abeba, capital etíope, no dia 25 de maio de 1963, contou com
trinta e dois chefes de Estados africanos que, juntos, em uma única voz, gritavam aos
colonizadores as palavras de ordem “Liberdade, Igualdade, Justiça e Dignidade” para com os
povos africanos; assim nasceu a OUA, hoje denominada União Africana (UA), sendo este o
principal bloco político a reivindicar a África para os africanos. A constituição da OUA
demonstra de forma clara o comprometimento político destes líderes africanos, dos países
independentes, de por fim à colonização no continente.
Nove anos depois, em 1972, a data de fundação da OUA foi reconhecida pela ONU,
ficando 25 de maio institucionalizado como o Dia da África. Assim sendo, foi considerado
pelos nacionalistas africanos como o ponto de partida rumo a uma África forte e unida,
objetivando construir uma união que permita enfrentar coletivamente os problemas e
dificuldades dos africanos, promovendo o desenvolvimento.
Com passos sólidos rumo a uma África mais justa, a OUA tinha objetivos bem
definidos: eliminação total do colonialismo e soberania dos Estados africanos; integração
econômica e a cooperação política e cultural no continente; coordenação e intensificação dos
esforços de cooperação para oferecer aos povos africanos melhores condições de vida;
erradicação de todas as formas de colonialismo; e promoção da cooperação internacional,
respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração dos Direitos Humanos.
Diante desses objetivos traçados tendo em conta o contexto em que surgiram e as
demandas que o continente africano possuía, por ter a maior parte dos seus territórios ainda
sob a ocupação colonial, a OUA encontrou grandes dificuldades desde o seu surgimento. Sem
dúvida um dos principais desafios da OUA seria administrar a regionalização e a questão
étnica de cada Estado africano (VAN-DÚNEM, 1997).
Evidencia-se que os propósitos de OUA recaem respectivamente na cooperação entre
os Estados e a harmonização política dos membros que a integram.17 Segundo Belarmino
Van-Dúnem (2007, p. 123), apesar de a OUA pautar-se pela promoção da unidade e
solidariedade entre os estados africanos, os Estados continuavam divididos em vários grupos
regionais, que atendiam às suas afinidades históricas, étnicas, políticas, econômicas e
culturais. Ou seja, a falta de convergência política no seio da OUA dominou o relacionamento
dos Estados na organização.
17
É oportuno ressaltar que a OUA não se constituía como uma organização para resolução de conflitos; no
entanto, foi criada uma comissão de mediação, conciliação e arbitragem e uma comissão de defesa vocacionadas
para a resolução dos conflitos. O princípio de não ingerência nos assuntos internos dos Estados membros era um
dos obstáculos que impedia o pronunciamento ou a tomada da decisão por parte da OUA perante vários conflitos
intraestatais, cada vez mais frequentes nos Estados africanos (Van-Dúnem, 1997, p. 124).
52
Outra questão não menos importante que esteve na base da dificuldade da OUA é a
interferência das potencias ocidentais nos assuntos internos da organização. Os países
africanos estavam divididos conforme as suas relações de afinidades com o bloco ocidental
capitalista e o bloco leste socialista.
Segundo Gonidec (apud Van-Dúnem 2007, p. 125), a interferência da URSS e dos
EUA teve uma influência negativa na capacidade de ação da OUA em dois aspectos
principais. O primeiro, por introduzir diretamente ou indiretamente uma divisão no seio da
OUA, quando o objetivo da sua carta vai no sentido da unidade dos Estados africanos. Por
outro lado, a vontade das superpotências em intervir nos assuntos africanos desapropriou a
OUA das suas prerrogativas, reduzindo a sua capacidade de ação. Acentua-se que essas
divisões foram visíveis durante as guerras civis no continente, a exemplo de Angola, quando o
MPLA foi apoiado pela URSS e a UNITA pelos EUA. Por sua vez, a OUA carecia da força
para manutenção da paz, ficando os Estados africanos à mercê dos interesses das potências
ocidentais.
Cientes das lacunas existentes na Carta Constitutiva da OUA, e as recorrentes
demandas que o continente vem enfrentando depois das independências, os líderes africanos
sentiram a necessidade de adaptar a organização à nova conjuntura sociopolítica e econômica,
tanto a nível do continente assim como a nível global.
Nesse ensejo, os chefes de Estados e de governo dos países africanos deram início à
discussão que visava à estruturação da OUA na quarta sessão extraordinária da conferência,
na cidade de Sirte, na Líbia, em 9/9/1999, pelo qual foi decidida a criação da União Africana
conforme os objetivos fundamentais da Carta da Organização da Unidade Africana.
A conferência extraordinária de Sirte, culminou com a elaboração de um importante
documento denominado “Declaração de Sirte”, cuja finalidade foi acelerar a integração do
continente africano a nível global e resolver os problemas comuns das nações africanas a
nível político, social e econômico.
Seguindo essa linha de discussão, no dia 11 de julho de 2000, em Lomé, capital de
Togo, na trigésima sexta sessão ordinária da conferência dos chefes de Estado e de governo,
foi oficialmente adotado o Ato constitutivo da União Africana (UA), que imediatamente
passou a substituir a Organização de Unidade Africana (OUA). A União Africana (UA) foi
formalmente instituída em julho de 2001 em Lusaka (Zâmbia), assim como a proposta para a
realização da primeira cúpula da UA em 2002.
53
Segundo Ferreira (2012), a União Africana(UA) surge num contexto diferente da
OUA, pois
Trata-se de uma fase caracterizada pela eliminação das últimas
sobrevivências coloniais no seio do continente - o regime racista da África
do Sul, desmantelado em 1994; da pacificação de sociedades dilaceradas por
décadas em destrutivas guerras civis, como Angola e Moçambique; dos
avanços democráticos materializados na remoção de velhos ditadores do
poder como Mobuto e da emersão de novas lideranças regionais, como os
dirigentes sul-africanos. Nesta atmosfera estão dadas condições
substancialmente favoráveis para a construção de novos consensos políticos
continentais, para uma maior convergência diplomática e cooperação
econômica (p.09).
Sem dúvida, a UA surge com uma expectativa de superação política e
socioeconômica no continente no tocante à integração econômica e ao desenvolvimento a
nível global, sendo considerado bloco expressivo que representaria os interesses das nações
africanas diante das transformações impostas pela globalização.
No que se refere aos princípios fundamentais que regem o Artigo 4 do Ato
Constituinte, sobre
a não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, uma das
principais dificuldades da OUA, foi ultrapassada. A UA vai propor com autonomia a
resolução pacífica dos conflitos entre Estados membros da União através dos meios
apropriados que sejam decididos pela Conferência da União. Isto é, o “direito da União
intervir num Estado membro em conformidade com uma decisão da conferência em situações
graves, nomeadamente crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade”. No seu
Ato Constitutivo, a UA postula que todo e qualquer modelo de desenvolvimento só será
possível a sua concretização num ambiente de paz e estabilidade política (Artigo 4 do Ato
Constitutivo).
Ressalta-se que a mudança do nome também trouxe alteração estrutural na
organização, contudo reforçou os objetivos preconizados pela OUA no que tange à questão do
desenvolvimento econômico dos países africanos, à integração econômica dos Estados
africanos como forma de acelerar o desenvolvimento econômico e social do continente.
Com objetivo de superar o saldo negativo da administração da OUA de não
ingerência nos assuntos internos das nações, no tocante aos problemas de resolução dos
conflitos e manutenção da paz, foi criado o Conselho de Paz e Segurança (CPS), para
promover a paz e estabilidade na África, bem como antecipar e prevenir os conflitos. Vale
lembrar que o Conselho de Paz e Segurança terá a responsabilidade de decidir as ações de
pacificação e construção da paz para a resolução do conflito. Estas decisões visam a superar a
54
fragilidade manifestada pela OUA, que desde a sua criação não apresentou resultados
tangíveis a nível social, político, econômico e da prevenção da paz no continente africano.
Assim, Frantz Fanon (2005, p. 194) reforça que a unidade africana só pode fazer-se
sob o impulso e sob direção dos povos, isto é, desprezando os interesses da burguesia. A
posição crítica de Fanon problematiza os desajustes da unidade africana e seus propósitos
pós-independência. Nesse sentido, o autor adverte que:
O colonialismo, que tremera em suas bases diante do nascimento da unidade
africana, retoma as suas dimensões e tenta agora quebrar essa vontade,
usando todas as fraquezas do movimento. O colonialismo vai mobilizar os
povos africanos, revelando-lhes a existência de rivalidades entre povos
(FANON, 2005, p. 189).
As inquietações de Fanon apontam para a problematização da política de
balcanização, em que a elite nacional depende fortemente das contribuições estrangeiras para
a manutenção da sua máquina governamental, criando representações de interesses imediatos
de uma burguesia nacional, incapaz de edificar a nação em bases sólidas e fecundas.
Também Nkrumah olhava com desconfiança para a condução das questões políticas
pós-independência no continente africano, questionando a relação da burguesia nacional com
as antigas potências colonizadoras, assegurando a dependência por via diplomática. Nas
formulações do nacionalista ganês
[…] as potências pretendem utilizar os novos Estados africanos, assim
condicionados, como fantoches através dos quais poderão estender a sua
influência a Estados que preservam a sua independência e a sua soberania. A
criação de vários Estados fracos e instáveis deste tipo em África, assegurará,
segundo esperam, a continuação da dependência desses territórios face às
antigas potências colonizadoras em matéria de ajuda econômica, e impedirá
a realização da unidade africana. Esta política de balcanização é o novo
imperialismo, o novo perigo que ameaça a África (NKUMAH, 1977, p.
203).
Sendo assim, como ainda sugere Arnaldo Sucuma (2011), “os colonos conseguiram
criar situações de dependência, tanto no aspecto político formal como na concepção do
homem africano idealizar o europeu como um sujeito superior (sob o ponto de vista
intelectual e econômico)”, ou seja, os efeitos da colonização afetaram a estrutura mental do
africano, tornando-o reprodutor de saberes coloniais. Esta formulação nos remete aos
enunciados de Fanon, de que a burguesia nacional desempenha a função de intermediária
entre povo e ex-colono. Fanon ainda adverte:
A burguesia nacional descobre que tem missão histórica de servir de
intermédio […] não se trata de uma vocação para transformar a Nação, mas,
prosaicamente, de servir a cadeia de transmissão para capitalismo obrigado à
55
camuflagem e que se cobre hoje com a mascara neocolonialista […] essa
função de ganha–pouco, essa estreiteza de perspectivas, essa ausência de
ambição simbolizam a incapacidade da burguesia nacional para cumprir o
seu papel histórico de burguesia. (FANON, 2005, p, 181-182).
No que se refere à integração monetária na África Ocidental, ou seja, à integração
econômica, a tese de doutorado do bissau-guineense Lito Nunes Fernandes (2011) teoriza
bem as razões que estiveram na base da formação de um bloco econômico. Segundo o autor, o
pioneirismo da África Ocidental na questão de integração se deve ao fato de que “foi nesta
região que os ideais pan-africanistas foram abraçados com mais ímpeto, na figura do líder
ganês N´Krumah, plasmada na sua importante obra A África deve unir-se” (p. 87).
Neste sentido, a integração na África Ocidental, tanto política quanto monetária, tem
um vínculo com os ideais pan-africanistas que foram absorvidos pelos líderes africanos no
período colonial, e que aos poucos foram sendo colocados na prática na pós-independência.
Desta forma, a criação da OUA deu azo no período pós-independências a outras perspectivas
integracionistas no continente, principalmente em nível econômico, com a criação da
Comunidade Econômica África (CEA), da Comunidade dos Estados da África Ocidental
(CEDEAO) e da União Econômica e Monetária Oeste Africana (UEMOA), entre outros.
Já a UEMOA - criada em Dakar em 1994, constituída majoritariamente pelos países
da antiga África Ocidental Francesa (AOF) - objetiva compartilhar a união monetária como
forma de enfrentar as crises financeiras e a desvalorização da moeda. A UEMOA “é
representada por um simbolismo de crescimento, união, solidariedade e complementaridade
entre os membros”. A moeda única que caracteriza essa união é o Franco CFA usada pela
maioria das antigas colônias francesas e sob controle da França, como forma de exercer
controle sobre estes países.18 Ou seja, as relações comerciais estabelecidas entre os países da
zona CFA têm que passar necessariamente pela França. Ainda Segundo Fernandes (2011),
[…] a convertibilidade do FCFA é feita através de uma conta, denominada
conta operação, aberta nos escritórios de Tesouro Público Francês em nome
do Banco Central dos Estados da África Ocidental (BCEAO). Em outras
palavras, “a conta operação funciona de seguinte maneira, todos os países da
UEMOA depositam suas receitas em divisas no BCEAO, que por sua vez,
deve depositar na sua conta operação abertas junto ao Tesouro Público
Francês, no mínimo 65% das divisas”. Só assim será possível a França
garantir a convertibilidade do Franco CFA e permitir o BCEAO a emissão
18
No inicio, CFA significava Colônias Francesas da África, e o Franco CFA significava Franco das Colônias
Francesas da África. Em 1958, o CFA mudou de nome e passou a ser chamado de Comunidade Francesa da
África. Na atualidade, uma vez livre do domínio colonial francês, o CFA significa Comunidade Financeira
Africana para os países da UEMOA e Cooperação Financeira Africana para os países da Comunidade
Econômica Monetária da África Central (CEMAC), integrado por Camarões, Chade, Congo, Gabão, Guiné
Equatorial e República Centro Africana (FERNANDES, 2011, p.158).
56
da moeda, ou seja, graças a este tipo de operação é permitida a participação
das autoridades francesas na definição da política monetária da UEMOA (p.
159).
São oito Estados membros da UEMOA: Benin, Burquina Faso, Costa do Marfim,
Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo. Vale salientar que a Guiné-Bissau constitui a
exceção: um país que aderiu à moeda da época da colonização francesa sem, contudo, ter feito
parte da AOF, portanto é a única ex-colônia portuguesa que entrou na zona CFA, através de
acordos sub-regionais. A UEMOA tem como objetivos:
Reforçar a competitividade das atividades econômicas e financeiras dos
países membros, em um mercado aberto e competitivo, dentro de um
ambiente jurídico racionalizado e harmonizado; Assegurar a convergência
dos desempenhos e das políticas econômicas dos países membros pela
instituição de um processo de vigilância multilateral; Criar entre os países
membros um mercado comum baseado na livre circulação de pessoas, de
bens, de serviços e de capitais e o direito de estabelecimento das pessoas que
desenvolvem atividades independentes ou salariais; Estabelecer uma tarifa
exterior comum e uma política comercial unificada; Instituir uma
coordenação das políticas setoriais nacionais através da aplicação de ações e
políticas comuns nos âmbito dos recursos humanos, planejamento territorial,
agricultura, energia, indústria, minas, transporte, infra-estruturas e
telecomunicação; Harmonizar, se necessário, pelo bom funcionamento do
mercado comum, as legislações dos países membros e particularmente o
regime da fiscalização; Com finalidade de realização de um mercado
comum, foi estabelecida uma União (CELINE, 2010, p.31).
A entrada da Guiné-Bissau na Zona CFA foi justificada por alguns entrevistados
como forma de dinamizar a economia bissau-guineense através da moeda única, já que o país
se encontrava isolado em termos econômicos e financeiros, isto é, delimitado entre os dois
países francófonos (Senegal e Guiné Conacri). Segundo o comandante e ex-ministro de
Economia e Finanças, Manuel dos Santos,
A entrada da Guiné-Bissau na UEMOA é muito positiva. Tem apenas um
lado negativo, penso que FCFA está indexado ao Euro, uma moeda estável,
mas os países da UEMOA perderam a capacidade de utilizar o instrumento
monetário para o seu desenvolvimento. Há alguns anos atrás o FCFA foi
desvalorizado, nesta altura estava vinculada ao Franco Frances. Porque a
demasiada estabilidade monetária é redutora do crescimento, sobretudo em
países cuja economia depende muito da exportação. A estabilidade
monetária protege as importações e prejudica a exportação. Então em
determinada altura a UEMOA estava com crescimento zero. Quando fazem a
desvalorização do FCFA e as taxas de crescimento saltam para o nível de 10,
8, 7 por cento e depois com a continuação da estabilidade monetária as taxas
de crescimento vão baixando. Portanto, o fato dos países não poderem
utilizar um instrumento monetário na sua economia é um handicap, mas o
fato de dispor de uma moeda convertível é uma vantagem. Portanto a
57
UEMOA devia refletir a sua taxa de cambio. A Guiné precisa de uma moeda
para transações, neste sentido CFA representa uma vantagem. Portugal não é
um padrinho que a Guiné precisa e nunca foi.19
É importante ressaltar que coincidentemente existe um histórico comum entre os
países que constituem a UEMOA no tocante às questões de instabilidades políticas e
econômicas em África. Para Fernandes,
A história dos países da UEMOA foi marcada por golpes de Estados,
contragolpes, guerras civis, etc. e são países que apresentam uma grande
diversidade cultural e linguística das suas populações e estão divididas em
diferentes grupos étnicos, características que tem sido apontadas como uma
das causas dos diversos distúrbios sociais (p. 91).
Outro fator que marca a semelhança entre os países membros da UEMOA é a
economia predominante de subsistência baseada no cultivo de arroz, amendoim, milho, feijão,
mandioca, batata doce, algodão, etc. Trata-se de uma economia marcada pela dependência das
empresas estrangeiras responsáveis pela exportação da produção local.
Figura 1- Mapa demonstrativo de países da UEMOA20
Apontam-se dois fatores que estão na base das sucessivas instabilidades políticas no
continente: de ordem interna, a disputa acirrada pelo poder sem respeitar as regras
democráticas21; o segundo fator é velho conhecido por todos nós, que são os interesses
19
Entrevista concedida em Março de 2011, em Bissau.
Disponível em: http://guine-bissau.fi/economia/3.1.html.
21
A transição do modelo do partido único para a democratização pluripartidária na África inspirado no modelo
da democracia ocidental requer uma reflexão mais aprofundada sobre o seu desenvolvimento. Vários países
20
58
externos dos ex-colonos na espoliação das riquezas do continente. Este último aspecto é
responsável pela queda da quase maioria dos chefes de Estado africanos que se opuseram à
política europeia no continente. Vale ressaltar que o primeiro fator precisa ser repensado à luz
das realidades africanas.
Destacamos alguns exemplos da queda dos líderes africanos que se opuseram à
política neocolonial no continente africano, muito bem pontuado pelo historiador angolano
Jean Martial Arséne Mbah na entrevista concedida ao Portal da Angop, em Luanda:
A França que não apoiou o processo de democratização no continente, foi
obrigada a acompanhar a criação do sistema multipartidário impulsionado
pelos Estados Unidos, com base nos seus interesses, e conseguiu que fossem
derrubados os líderes que se opunham à sua política no continente. É assim
que perderam o poder Moussa Traoré, do Mali, Didier Rastiraka, no
Madagáscar, Denis Sassou Nguesso, no Congo, Mathieu Kerekou, no Benin,
entre outros. […]. A influência francesa foi mais notória no caso do Congo
que depois da eleição de Pascal Lissouba, este foi derrubado quando tentou
modificar os interesses petrolíferos da França. […]. Situação similar,
também ocorreu recentemente na Côte d'Ivoire, com o presidente Laurent
Gbagbo, que foi apeado no poder por tentar alterar as relações do
neocolonialismo naquele país da África do oeste (MBAH, 2012).
1.4
A importância dos partidos políticos na construção do Estado nação na África
Discutirei o papel dos partidos políticos nas organizações das lutas de libertação,
apenas em linhas gerais. Não pretendo retomar a vasta literatura sobre os partidos políticos e a
democracia e os meios pelos quais eles podem obter influência política. Também não é de
meu interesse detalhar a natureza política de todos os partidos africanos e suas
funcionalidades. Portanto, dedicarei mais atenção sobre o papel dos partidos políticos na
formação política do Estado nação nos países africanos da colônia portuguesa, em particular
na Guiné-Bissau.
Apenas sinalizo como estes partidos - com a estrutura organizativa precária devido
ao contexto de clandestinidade em que surgiram, sem margens de manobras para uma
organização e mobilização enérgica - conseguiram enfrentar o sistema colonial, servindo de
veículos representativos de interesses coletivos, definindo os meios para alcançar os fins, que
são a independência e a soberania. Não obstante, estes partidos, ao alcançarem os fins
africanos aderiram a esse modelo sem, contudo, se sentirem preparados para a transição democrática. Trata-se,
contudo, de confrontá-los com as nossas realidades a fim de desenvolver um novo método mais apropriado para
as realidades africanas.
59
almejados no período pós-independência, caíram na contradição de suas ideologias, quando
os interesses da pequena burguesia conflitaram com as promessas feitas às massas populares,
a exemplo do PAIGC que será analisado mais adiante nesse trabalho.
A assertiva de Dimitri Lavroff (1970, p.01), de que “os partidos políticos na África
Negra foram, na sua generalidade e antes de tudo, movimentos emancipalistas que lutaram
pela libertação dos seus países”, é um ponto de partida para a análise do papel dos partidos
políticos que surgiram durante o processo de ocupação colonial na África de língua oficial
portuguesa.
Os primeiros partidos políticos nas colônias portuguesas nascem reivindicando a
independência e a soberania total dos povos africanos, levando em consideração alguns
elementos fundamentais de direitos humanos, a liberdade e a igualdade, fatos ignorados pela
administração colonial. É bem verdade que os partidos políticos da época desempenharam um
papel imprescindível na formação do Estado nação na maioria dos países africanos, sem
dúvida foram grandes protagonistas das independências, ao lutarem para a concretização da
liberdade e da soberania como nos lembra Senghor:
[…] não pode haver o desenvolvimento da personalidade de um povo sem a
liberdade, para desenvolver-se, e não pode haver liberdade sem liberdades
especificas. Não pode existir liberdade na alienação total, resultante do
colonialismo, não pode haver liberdade com sufocamento do seu ser
original. E não pode haver a independência na dependência. Isto é que
justificou a luta contra o colonialismo (SENGHOR, 1974, p.79).
Em vista desse cenário, a leitura de Elikia M´Bokolo (2011) descreve com
pertinência como os partidos africanos instrumentalizaram a expansão do nacionalismo em
África apesar de possuírem uma fraca estrutura organizativa. Cabe ressaltar que a maior parte
dos partidos políticos são oriundos de movimentos pré-existentes, tais como movimentos
sindicais, associações e clubes esportivos, dentre outros movimentos que podem se assimilar
aos partidos políticos.
Dos estudos sobre movimentos de libertação nacional se depreende que os primeiros
partidos políticos dos países africanos de colônia portuguesa tiveram origem a partir dos
movimentos de libertação nacional que não intencionavam inicialmente o direito ao voto, mas
sim a libertação para as independências e soberania. Desta forma, todos os “partidos africanos
eram nacionalistas, no sentido em que queriam ver afirmar a personalidade dos territórios
africanos, e esperavam obter a independência” (LAVROFF, 1970, p.20).
A leitura de Onésimo Silveira (2004, p.29), sobre os partidos políticos no contexto
colonial, nos convoca para a reflexão de como o Estado colonial contribui para gênese dos
60
partidos políticos africanos e na definição do seu perfil. Segundo o autor, foi o Estado
colonial que introduziu a ideia de nacionalismo em África, ao forçar os africanos a criar os
movimentos, convertidos em partidos políticos para a contestação das independências com
cunho nacionalista, que visava à construção de uma nação africana.
Por esta via, eram partidos políticos que visavam à unificação de todos sem distinção
de raça, cor e religião, ao tentarem o reagrupamento de diferentes classes sociais, objetivando
uma unidade de força para enfrentamento do sistema colonial. O anseio pelos interesses
comuns impulsionou as “massas camponesas” a ingressarem nas fileiras de luta de libertação
para a viabilização da independência, no caso da Guiné-Bissau.
Para Amílcar Cabral (1974), para enfrentar o colonialismo português com vistas a
criar um Estado novo, diferente, que promova a igualdade de oportunidade para todos sem
distinção, o partido definiu quais eram seus princípios no que se refere à conscientização
política dos seus membros, no destino da nação:
[...] Unir, criar a pouco e pouco a consciência nacional, porque nós partimos
dum ponto em que não tínhamos uma consciência nacional, em que, tanto
pela nossa História como pelo trabalho dos tugas, estávamos divididos em
grupos. Civilizados e indígenas, gentes de mato, balantas, papéis, manjacos e
mandingas, etc. etc. O nosso primeiro trabalho é criar certo número da nossa
gente, a consciência nacional, a ideia de unidade nacional, tanto na Guiné
como em Cabo Verde (p.141).
No seu ensaio intitulado “O caminho africano do socialismo”, Leopold Sedar
Senghor (1977, p.106), ressalta o papel preponderante que os partidos políticos assumiram em
África na condução das independências e na dinamização da “quase nação”. Nesta mesma
direção, Senghor chama a atenção para o período pós-Segunda Guerra mundial, como marco
do surgimento dos partidos políticos em África e também marco da reconversão sindical na
África negra, ou seja, foi nesse período que os movimentos sindicais que se manifestavam em
forma de partido assumiram suas características naturais, isto é, sua identidade ideológica – a
defesa dos interesses profissionais, deixando para os partidos políticos a responsabilidade de
assumir a totalidade das questões nacionais. Segundo o autor, é a função do partido político
representar o conjunto de interesses da nação e exercer o papel mais importante na sua direção
e controle.
Estes partidos políticos africanos tinham como metas a libertação e a independência
dos povos colonizados contra todo tipo de colonização cultural econômica e política, segundo
a construção de um Estado verdadeiramente nacional que visa à integração nacional de todos
os grupos étnicos sem distinção cultural. Em outras palavras, o partido político tornou-se um
61
instrumento integrador de poder político na edificação da nação. Por conseguinte, “esses
partidos políticos são partidos (movimentos) nacionalistas anticoloniais em busca do poder,
na primeira fase, que posteriormente, na segunda fase, serão partidos no governo que
procuram construir uma ideologia para legitimar o poder do novo Estado” (SILVEIRA, 2004,
p.22).
Nesta senda, os partidos políticos constituem a expressão de representação política
de uma nação. Segundo Young (2006), a representação é a rede da vida social que vincula a
ação de pessoas e instituições num processo de interesses para alcançar um fim. A autora
argumenta que “a representação consiste num relacionamento mediado entre os membros e o
representante num organismo de tomada de decisões”, e essa representação oscila entre
momentos de autorização, isto é, no zelo dos interesses delegados pelos membros, e a
prestação de contas, que se traduz na avaliação dos resultados dos interesses representados
(YOUNG, 2006, p.151).
Assim sendo, os partidos políticos foram autorizados, confiados como representantes
legítimos dos interesses comuns das massas populares, para a condução do processo da
obtenção das independências. Esta representação política mediada pelos aspectos da unidade
étnica - sem, contudo, criar diferenças de representação - objetivou defender os interesses
comuns de todos os membros da sociedade, concedendo a legitimidade ao partido para
dinamização do Estado nação. Nesse ensejo, tanto partidos políticos como Estados nação
eram considerados veículos de representação do interesse geral, cujo comprometimento é de
unidade sem distinção de crenças e valores.
Articulando o esforço teórico de Urbinati (2006) às assertivas de Young (2006) e
Cerroni (1982), é possível analisar a função do partido político como mediador dos interesses
dos seus representados na configuração das nações africanas. No seu ensaio teórico sobre a
representação política, Urbinati sinaliza a função do partido gravitando entre a “integração da
multidão e a unificação das ideias e interesses da população” (p.221). Fortalecendo esse
sentido, Young (2006) aponta como os interesses estão imbricados na representação política,
norteados pelos princípios compartilhados, pautados no reconhecimento dos mesmos
objetivos comuns. Para a autora, os interesses definem os meios para alcançar esses fins
(p.159).
Destarte, a criação dos primeiros partidos políticos nas colônias portuguesas na
década de 1950 a 1960, se vincula eminentemente à reinvindicação de autonomia dos povos
africanos e, consequentemente, à independência. Estes partidos nasceram no bojo da opressão
colonial, como forma de instrumentalizar os anseios das massas populares para a
62
concretização da independência. É o partido do povo, para o povo e pelo povo que vislumbra
suas representações a partir dos interesses do povo, ou seja, da vontade popular; na feliz
observação de Amílcar Cabral (1974, p.233) é o partido que enraizou no meio do povo e
apoiado pelo povo.
No entanto, o contexto político em que surgiram os partidos políticos africanos22 tem
uma particularidade em relação à gênese dos partidos políticos na Europa ocidental,
[…] que apresentam contornos definidos, ideologias especificas, rubricadas
sob interesses de classe ou frações de uma classe. Que na maioria dos casos
estão enraizados no corpo político da nação, refletem realidades políticas e
sociais especificas (SILVEIRA, 2004, p.30).
Portanto, os partidos políticos que se formaram na África, em particular nas colônias
portuguesas (Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique),
passaram a ter características revolucionárias, por terem desencadeado a guerra de guerrilha,
por conta da dificuldade de estabelecer negociações com Portugal com vistas à
independência; possívelmente a única alternativa que lhes restava para a conquista da
soberania era a luta armada23. Nestas condições, testemunha Amílcar Cabral:
O objetivo fundamental da nossa resistência armada é realizar aquilo que não
conseguimos só com a política – a independência, a paz, a justiça e o
progresso [...]. No quadro do destino do nosso povo, que nós próprios
estamos a criar, o nosso partido é que tem a missão de através da resistência
política, econômica, cultural abrir o caminho para o nosso povo, garantir a
segurança necessária e a certeza de que amanhã há de viver no progresso
(CABRAL, 1974, pp.241/242).
Por esta via, observamos que os partidos políticos nestas colônias formaram-se
através dos grupos de clandestinidade que organizaram a mobilização das “massas populares”
para a luta de libertação.
O início da década de 1950 registra as primeiras movimentações de cunho
independentista na Guiné-Bissau. O ano de 1952 marca o início da mobilização para criação
de movimentos nacionalistas nas regiões urbanas de Bissau, liderados pelos chamados grupos
de cristons de praça, mais concretamente os assimilados. Inicialmente, as primeiras
22
Por outro lado, as realidades políticas e sociais especificas da África condicionam a ideia do partido político
enquanto tal, como também lhe dão uma identidade africana definida. Esta identidade resulta das realidades
africanas particulares e inclui os ritos e regras secretas que governam os grupos étnicos, o caráter místicoreligioso dessas formações que abrangem territórios vastos, a existência de um proletariado industrial, falta de
classe média substancial (quadros) e uma mal definida demarcação entre classes sociais (SILVEIRA, 2004,
p.30).
23
Esclarece-se que dentre os colonialistas europeus apenas Portugal recusou conceder a independência pacífica
às suas colônias. Fato diferente em relação às colônias africanas francesas e inglesas, que eram controladas pelos
colonos, tendo assim a independência pacífica, sem, contudo, precisar apelar à força das armas, isto é, uma
independência concedida na base da negociação com os antigos colonos.
63
mobilizações consistiam nas reuniões de definição de estratégias para enfrentamento da
colonização.
Assim, tomando a ordem cronológica como referência, podemos destacar os
primeiros movimentos urbanos: o Movimento para a Independência da Guiné (MIG); o
Movimento para Libertação da Guiné (MLG) composto por maioria de etnia manjaca; a
União das Populações da Guiné (UPG), que apesar da sua denominação reunia apenas alguns
bissau-guineenses residentes em Kolda; a União da População para Libertação da Guiné
(UPLG), que agrupava a minoria da etnia fula do Senegal; Reunião Democrática Africana da
Guiné (RDAG), majoritariamente formado por mandingas do Senegal; o Partido Africano
para Independência (PAI), que mais tarde daria origem ao PAIGC24; e a Frente de Libertação
Nacional da Guiné (FLING), resultante da união de vários grupos políticos (UPG, o RDAG e
a UPLG)25.
É oportuno salientar que a maioria desses movimentos foram fundados em Dakar,
devido à repressão colonial na Guiné-Bissau. Apenas dois dentre os movimentos (MLG e
PAI) resistiram à clandestinidade em Bissau. A abordagem dos principais movimentos acima
mencionados merecerá uma análise mais alargada no segundo capítulo.
Todas essas organizações tinham como fundadores tanto bissau-guineenses radicados
no Senegal, bissau-guineenses funcionários da administração colonial, quanto caboverdianos
nascidos26 na Guiné-Bissau e caboverdianos funcionários da administração colonial em
Bissau. Havia movimentos que congregavam membros de vários grupos étnicos, outros por
sua vez eram caracterizados por congregar quase que exclusivamente indivíduos de um
determinado segmento étnico, a exemplo do MLG, orientado por Rafael Barbosa,
especialmente formado por indivíduos de etnia manjaca (UPLG), uma minoria de etnia fula
do Senegal (RDAG) composta por mandingas do Senegal, etc. (GARCIA, 2000).
24
Importante frisar que Amílcar Cabral foi o grande mentor da criação do PAI (GC), com formato de partido
político para conquistar a independência. Depois da formatura em Portugal em 1952, Cabral voltou à GuinéBissau contratado pela administração portuguesa para serviços de recenseamento agrícola. É neste contexto que
Cabral reconfigurou seus laços históricos com o país que lhe viu nascer. Permaneceu na Guiné-Bissau de 1952 a
1954. Nesse ensejo, em 1954, tentou a criação da Associação de Desportos e Recreação, de cunho nacionalista, a
qual é proibida e Cabral é obrigado a abandonar a Guiné-Bissau e seguir para Portugal e, mais tarde, para Angola
(CABRAL, Iva/ Fundação Mário Soares, pp.3/4).
25
In: Francisco Proença Garcia. Guiné 1963-1974: Os movimentos independentistas, o islão e o poder português,
2000. Ed. Artes Gráficas, Ltda.
26
Apesar do conceito de nacionalidade englobar todos os conceitos associados aos fatores espacial, sociais e
políticos, na Guiné dita portuguesa, a questão da nacionalidade era prioritariamente vinculada aos atributos
étnicos. Portanto, um caboverdiano nascido na Guiné-Bissau não era a priori considerado bissau-guineense, mas
sim um caboverdiano. Tudo isso se deve às configurações sociais implementadas pelos colonialistas portugueses
baseada no estatuto do indigenato, que ao dividir os bissau-guineensess e os caboverdianos, automaticamente
atribui hierarquias aos caboverdianos, reforçando as discórdias e o divisionismo entre estes.
64
Neste contexto de prioridades étnicas, o PAI (GC) seria o único partido que visava à
congregação de todos os bissau-guineenses sem a distinção étnica, e ainda estendia à unidade
com Cabo Verde como forma de unir os dois países na obtenção da independência, por se
tratar do único partido que abrigava membros caboverdianos na sua organização. Vale
ressaltar que a maioria dos componentes dos movimentos acima citados opuseram-se à
unidade Guiné e Cabo Verde (GARCIA, 2000). Elisée Turpin, combatente da Liberdade da
Pátria, ressalta os motivos que estão na base da existência de vários movimentos na Guiné,
segundo ele,
O motivo de existir vários movimentos é que as pessoas não concordavam
com orientação que o PAI (GC) dava – unidade com Cabo Verde. Ainda por
ser fundado por Cabo-verdianos27. Por ter um líder esclarecido que sabia
orientar as pessoas ganhamos grandes quantidades de adeptos. E em seguida
Rafael Barbosa encabeçou as mobilizações. A escolha de Amílcar para ser
dirigente era “consensual” no PAI por ter condições de mobilizar qualquer
segmento social e além de ter uma larga experiência em relação aos demais.
Para Elisée Turpin, Amílcar quase não se aparentava que não era da Guiné,
pelo seu senso de humanismo que lhe tornava perfeito […].28
Outro aspecto não menos importante, que esta na base da proliferação de
movimentos políticos na Guiné-Bissau, tinha também a ver com a questão de quem assumiria
o protagonismo destes movimentos, e, nessa disputa pela legitimidade política, a arma usada
para atingir Cabral era justamente a sua condição de “forasteiro” em termos étnicos.
Assim sendo, por um lado, houve resistências por parte dos componentes das
diferentes organizações no sentido de se unirem ao PAI (GC) para formação de um único
partido/movimento no tocante a viabilização das mobilizações e da luta de libertação. Por
outro lado, muitos se opuseram ao projeto de unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, porque
não reconheciam Amílcar Cabral como bissau-guineense nato (PEREIRA, 2012), pois, apesar
de ter nascido em Bafatá (Guiné-Bissau), seus pais eram caboverdianos.
Na configuração social bissau-guineense, Cabral carecia dos atributos étnicos que lhe
identificavam como bissau-guineense; some-se a isso a relação entre os bissau-guineenses e
os caboverdianos que eram minadas de desconfianças “devido às vantagens que os
caboverdianos usufruíam em relação aos bissau-guineenses no tocante à progressão na
carreira administrativa e outros aspetos já sublinhados. Além disso, Cabral não era visto como
bissau-guineense, mas sim como burmedju, chamavam-lhe de burmedju, isto é mestiço”
(PEREIRA, 2012, p.191).
27
28
Fundação de Partido: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Abílio Duarte, etc. (Elisée Turpin).
Entrevista concedida em fevereiro de 2011, Bissau.
65
A rejeição de Cabral talvez seja por este não pertencer a nenhum grupo étnico do
país. Sendo que, pertencer a um determinado grupo étnico na Guiné-Bissau representa em si
um elo simbólico de parentesco e de reivindicação identitária a partir de um processo
histórico de pertencimento a uma determinada linhagem.
Para todos os efeitos, não apenas os bissau-guineenses viam Cabral enquanto
caboverdiano, os próprios caboverdianos que estavam inseridos na luta de libertação não
consideravam Cabral bissau-guineense, nas observações de Aristides Pereira (2012) ele era:
“um caboverdiano nascido na Guiné. Mas estes caboverdianos viam-no principalmente como
caboverdiano, não há duvidas” (PEREIRA, p.191). E Cabral, por sua vez, considerava-se um
homem africano, adotando uma identidade pan-africanista que lhe isentava de qualquer
contradição identitária. Assim afirmava: “Eu sou simplesmente um africano cumprindo o meu
dever no meu País, no contexto do nosso tempo” (CABRAL apud ORAMAS, 1998, p.162).
Vale ressaltar que não se tratava na época de Amílcar Cabral ter nascido na GuinéBissau, mas, sim, se ele era aceito no meio social bissau-guineense enquanto tal. Aqui não se
trata de jus solo, mas de jus sangue, na feliz expressão de Filinto de Barros (2011). A questão
do pertencimento do indivíduo a uma determinada sociedade ou grupo se constrói com base
na alteridade não no isolamento, isto é, em contato com outros referenciais, pois pressupõe a
interação. Ou seja, a ideia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada
pelo reconhecimento obtido dos outros, em decorrência de sua ação, isto é da autopercepção,
como eu me vejo, e também da heteropercepção, como os outros me veem (SOUSA et al,
2005, p.32).
A aceitação de Amílcar Cabral como bissau-guineense se insere nessa intermediação
dialógica, estabelecida no processo do reconhecimento pela sociedade bissau-guineense, isto
é, de uma identidade negociada. Tal processo independe da vontade de Amílcar Cabral se
autodefinir enquanto bissau-guineense, mas sim da sua aceitação enquanto tal pela sociedade
bissau-guineense. Todavia, é no excerto de Aristides Pereira que se evidencia como Cabral
tentou construir os laços desse pertencimento:
Cabral adquire a consciência de que era bissau-guineense, de fato, depois
que regressa a Guiné. Já formado, anticolonialista, a pensar sempre na
independência da Guiné. Na verdade ele pensou na luta a nível de Cabo
verde apenas tanto assim que veio de férias em 1949 e fez tais programas na
Rádio Clube da Praia, era tudo em relação a Cabo verde, mas sem por de
parte, evidentemente a Guiné, que era uma colônia também onde ele nasceu.
Talvez porque a situação da Guiné fosse muito mais gritante, o que lhe fazia
pensar que tinha responsabilidades também em relação à Guiné, daí ter
66
adquirido essa posição firme de lutar pela Guiné e Cabo Verde, dois
territórios a que se sentia ligado (PEREIRA, apud, LOPES, 2012, p.189).
A marcação simbólica da identidade bissau-guineense é que atribui a diferença entre
nós e eles, ou seja, entre os bissau-guineenses e os caboverdianos através dos atributos
étnicos, isto é, da nossa guinendade – dos aspectos étnicos culturais que atribuem às
classificações simbólicas daquilo que somos, baseadas na configuração cultural do país.
A ênfase dada aqui é na cultura e na produção dos significados culturais que
permeiam as relações sociais dos bissau-guineenses e que demarcam as fronteiras étnicas
através da memória, hábitos, costumes, dos ritos da iniciação representados através da
tradição comum (cantigas, fanados, cerimônias tradicionais, ritos de toca tchur, etc).
A guinendade possui uma função unificadora e o seu significado nutre o simbolismo
de pertença coletiva reforçada através de laços harmônicos, o que torna quase que inexistente
os conflitos étnicos. Assim sendo, “a cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência”
e ao tornar possível uma demarcação clara de quem é o “Outro” (WOODWARD, 200, p.18).
E a guinendade é a referência clara dessa demarcação simbólica do Ser bissau-guineense
através das tradições culturais.
No que se refere aos movimentos formados na época é notório que eram adversários
do PAI (GC), não só pela questão ideológica e étnica que se prezava, mas também por
reivindicarem uma Guiné-Bissau exclusiva dos bissau-guineenses, e abdicarem da unidade
com os caboverdianos, contrariamente à proposta de Cabral.
Para Aristides Pereira (2012), as razões que estiveram na base da antipatia com os
caboverdianos se resumiam na questão hierárquica, visto que “o que era considerado elite na
Guiné-Bissau era o quadro administrativo. Administradores, chefes de posto, entre outras
funções, eram quase todos ocupados por cabo-verdianos”. Em outras palavras, não havia
convivência, sobretudo com os bissau-guineenses assimilados, pelo fato dos caboverdianos
nutrirem o sentimento de superioridade para com os bissau-guineenses. Todos estes fatores
reforçaram a rejeição inicial de Cabral no meio social bissau-guineense na época como
caboverdiano (p.58).
Somado a isso, outro aspecto não menos importante é a suposta cumplicidade da
denominada elite caboverdiana com o sistema colonial no tocante às arbitrariedades
cometidas contra os bissau-guineenses.
No que refere à relevância da unidade na concepção de Cabral, é de se lembrar que o
PAIGC promoveu várias tentativas, sem sucesso, de reunificação de outros movimentos para
lutar contra a administração colonial. Visto que na impossibilidade da unidade nacional, e da
67
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, não seria possível enfrentar os colonialistas portugueses
(CABRAL, 1974).
Havia, por outro lado, uma pressão externa dos países vizinhos para a viabilização da
unidade dos movimentos nacionais da Guiné-Bissau, que estavam dispersos nas regiões de
Senegal e Guiné-Conacri. Segundo Aristides Pereira (2012, p.105), “Senghor dizia, estou
pronto a dar apoios, mas essa gente tem que se unir. Muitos movimentos espalhados não dá.
Por seu turno, Sekou Touré reforça a mesma coisa: chegamos à independência porque nós
unimos, formamos o RDA (União Democrática Africana) (sic)”. Foi nesse ensejo que o PAI
sentiu-se pressionado e convocou a conferência em Dakar para tentativa de unificação dos
movimentos, que veio a dar origem à Frente Unida de Libertação da Guiné (FUL) resultante
da união do PAIGC, do MLGC de Conacri e do MLG de Dakar.
Segundo Amílcar Cabral (1974), no que se refere à questão da problemática da
unidade Guiné- Bissau e Cabo Verde, a contradição da unidade residia na pequena burguesia
tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde, denominado por ele de oportunistas que
gozavam de privilégios na administração colonial e têm combatido o PAIGC. Por sua vez,
Cabral minimiza o seu interesse em unir os dois países pelo fato de ser filho de caboverdianos
e ter nascido na Guiné-Bissau. Segundo Cabral,
[...] vi gente morrer de fome em Cabo verde e vi gente morrer de açoites na
Guiné (bofetadas, pontapés, trabalho forçado), essa é a questão da minha
revolta. Mas a questão fundamental da luta pela unidade da Guiné e Cabo
verde é a própria natureza da Guiné que nos leva a isso. São próprios
interesses da Guiné e Cabo verde que nos leva a isso (p.91).
Ora, sem perder de vista a relevância histórica que o discurso da unidade africana
desempenhava num determinado contexto político da época para a viabilização da
independência em África, gostaria de sublinhar a existência de uma vasta literatura que
reforça que em Cabo Verde não havia condições propícias para o desenvolvimento da luta
armada pelas questões geográficas, apenas a luta política. Não creio reduzir apenas aos
interesses da Guiné-Bissau - que a esta altura contava com proliferações de vários
movimentos nacionalistas - a questão da unidade, mas sim ao interesse particular de Amílcar
Cabral pela sua dupla pertença identitária e, por isso, propôs a libertação dos povos de GuinéBissau e Cabo Verde por um único processo.
Considerando as reflexões aqui apresentadas, convém indagar: a que se deve a
designação de Amílcar Cabral no PAIGC como “pai da nacionalidade bissau-guineense e
caboverdiana”? A priori, algumas hipóteses merecem ser destacadas: uma primeira,
68
ideológica de base socialista, que projeta o líder do partido como guia de um movimento
político.
Uma segunda hipótese, de ordem socioantropológica, que podemos traduzir a partir
das tradições africanas que consideram um líder como chefe de família, e que desempenha a
função de pai, isto é, “nas tabancas bissau-guineenses, Amílcar Cabral é classificado pelos
populares como Homem Grande (é esta designação que se dá aos que, na cultura tradicional,
eles chamam sábios às pessoas que alcançaram a plena maturidade” (ORAMAS, 1998,
p.136).
A última hipótese, de cunho histórico, nos remete à construção do mito fundador.
Importante frisar que qualquer país, além dos signos que compõem suas referências nacionais,
tem seus mitos fundadores.
Na acepção de Marilena Chauí, um mito fundador é aquele que não cessa de
encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal
modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo (CHAUÍ,
2000, p.10). Aqui fica evidente essa função de conservação do status quo que tem o mito.
Com efeito, a figura de Cabral, pelo seu percurso político e protagonismo em grandes
transformações na Guiné-Bissau se insere neste propósito.
Assim recorremos à terceira hipótese explicativa do mito fundador para justificar a
designação de Amílcar Cabral como “pai da nacionalidade bissau-guineense e cabo-verdiana”
como arbitrária, no sentido de ser uma expressão atribuída pelo próprio PAIGC depois da sua
morte29; como afirma Aristides Pereira (2012, p.175), “para todos os efeitos goste-se ou não,
Amílcar Cabral foi morto como um cabo-verdiano”.
No entanto, no tocante à sua função, é uma forma de enquadramento da memória
coletiva da própria organização para assegurar a manutenção da unidade, de continuidade,
portanto, da identidade coletiva do grupo ou do partido. Foi nesse período póstumo que a
figura de Cabral ou a sua imagem foi mitificada nas ideologias fundantes da nação bissauguineense.
Diferentemente de líderes como Stalin, Mao Tse-tung ou Zedong, uma das grandes
figuras do século XX, responsável pela condução do Partido Comunista ao poder, através da
guerrilha, Amílcar Cabral nunca cultivou a personalidade da sua memória em vida, por isso
que não podemos entender essa designação do PAIGC como culto à memória de um líder.
29
É importante assinalar que o assassinato de Amílcar Cabral por seus pares representa o momento de
conjunturas difíceis para o Partido que perdeu seu líder aglutinador, que se vê forçosamente obrigado a proceder
um trabalho de rearrumação da memória coletiva para a manutenção da unidade, coerência e continuidade dos
ideais históricos de luta de libertação
69
Como citado anteriormente, a unificação dos movimentos nacionais na Guiné-Bissau
atribui ao PAIGC a condução da luta para a independência, como partido único sob liderança
de Amílcar Cabral e Rafael Barbosa, tendo como base de sustentação, por um lado, os
cristons de praça, isto é, os “assimilados”, e, por outro, alguns caboverdianos e uma grande
parte das massas camponesas. António Tomás demonstra nas suas formulações como o
partido de Cabral estava estruturado:
A espinha dorsal do PAIGC foi, grosso modo, formada por três grupos
sociais. Na cúpula dirigente estavam os cabo-verdianos, entre os
funcionários coloniais recrutados por Amílcar Cabral e os jovens quadros
vindos de Lisboa e de outros pontos da Europa, na base encontravam-se
bissau-guineenses, camponeses e analfabetos, agarrados as tradições e
crenças populares, e que haveriam de formar as unidades militares do
movimento, como estrato intermédio havia os jovens de Bissau, com pouca
escolaridade, mas que aprenderiam a manejar a máquina militar do PAIGC,
vindo a tornar-se os verdadeiros senhores da guerra. Deles também
dependeria a ligação entre o topo e a base (TOMÁS, 2008, p. 145).
$$$$$$
É oportuno salientar que a maioria dos membros do partido eram nativos bissauguineenses, isto é, indivíduos atrelados às suas crenças tradicionais e, entretanto, não faziam
parte dos cargos dirigentes na estrutura hierárquica do partido. Entretanto, a “sua espinha
dorsal assentava-se numa certa burguesia, majoritariamente caboverdiana”, ou seja, aqueles
que serviam aos interesses colonialistas e exerciam funções de auxiliares do colonialismo
português.
Foram estes caboverdianos - funcionários administrativos coloniais e dos grandes
centros comerciais (Casa Gouveia e Banco Nacional Ultramarino) da Guiné-Bissau - que
Amílcar Cabral incorporou para a estrutura do partido, desempenhando funções de destaque
não só pelo conhecimento e domínio do sistema colonial, mas também porque constituíam um
elo de informação das ações do colonialismo para o Partido.
Durante o processo da mobilização para a luta, o PAIGC pode contar não só com os
cabo-verdianos, que eram na sua maioria funcionários da administração colonial em Bissau,
mas também com estudantes residentes na Europa, em particular os de Portugal, “Julio de
Carvalho, Manuel Santos Manecas, Olívio Pires, Pedro e Osvaldo Lopes da Silva, Augusto
Boal, Lilica Boal etc.”.30
Entretanto, o PAIGC teve grande dificuldade em mobilizar os mestiços caboverdianos, tanto os da colônia, ou seja, a elite da Ilha, quanto os residentes em Dakar e
Conacri. Segundo Aristides Pereira (2012), esses caboverdianos não tinham disposição de
30
PEREIRA, 2012, p.129.
70
absorver a ideia da independência. Pelo contrario eram ferozmente contra. Sem procurar
saber, iam logo dizendo “Qual historia?” [...] Se bem que essa luta armada só poderia ter lugar
se houvesse, de fato, acolhimento aqui em Cabo Verde (p.128).
Para Aristides Pereira (2012), a década de 1970 marca a chegada de uma grande leva
dos caboverdianos vindos de Lisboa para a luta em Conacri: “uma parte desses quadros caboverdianos foi canalizada para a artilharia, à outra parte desses cabo-verdianos procurávamos
dar-lhe o melhor destino possível, mas sempre no quadro da luta” (p.153). Já António Tomás
(2008, p.167) afirma que
[…] eram, afinal de contas os herdeiros do regime colonial e, por terem
adquirido conhecimentos e práticas graças à posição ocupada na sociedade
colonial, eram igualmente, como resumiria Cabral, as únicas pessoas capazes
de manejar certo tipo de instrumentos, como os administrativos.
Durante o processo de organização da luta pela independência, o PAIGC tinha uma
missão de unidade e coesão, ou seja, o partido deveria ser um fator agregador dos seus
distintos membros, forçando a conscientização das massas populares, politizando-as nas
reivindicações dos seus direitos, atraindo para si o significado de nação compartilhada através
dos símbolos nacionais. Essa articulação política, contudo, é o que conduziu o
desenvolvimento da luta, estabelecendo pilares consistentes da mobilização política.
No período colonial, os problemas eram os mesmos e o inimigo era comum e, neste
sentido, o partido se tornou um meio de representação dos interesses comuns, sendo portavoz
dos anseios anônimos na conquista da independência. Parafraseando Fanon (2005, p.213), era
o partido que se afirmava como servidor do povo, que pretendia trabalhar para o
florescimento do povo.
Para Onésimo Silveira (2004, p.62), o partido único é o instrumento de integração,
não só porque o é, por definição, mas também por ter como objetivo ser o partido de todo o
povo [...], a existência de um inimigo comum fez emergir uma frente comum.
Assim, a criação do partido único foi o caminho pelo qual os nacionalistas africanos
viram a única forma de representação dos anseios nacionais, dando lugar às experiências
nacionais dos povos incisivamente marcados pela opressão do sistema colonial. Sem duvida, é
o partido que advogava pelo povo, criando alicerces de unidade nacional rumo à edificação do
Estado nação, em defesa dos interesses comuns.
A Guiné-Bissau não se constitui a exceção entre os movimentos pela independência
durante o período colonial no tocante à criação de partido único - vários países africanos
71
foram comandados sob este regime do partido único. Vale dizer que o sistema do partido
único na condução das independências em África era comum devido ao contexto político da
época, que prezava unidade nacional, rubricadas sob programas comuns numa única direção.
Isto posto, algumas colônias francesas estiveram sob liderança do partido único, a
exemplo de Guiné-Conacri, com o Partido Democrático da Guiné (PDG), Costa do Marfim,
com o Partido Democrático da Costa do Marfim (PDCM), e a antiga Costa do Ouro, Gana,
com o Partido da Convenção do Povo (PCP). Sobre a natureza dos partidos políticos nas
colônias francesas, Onésimo Silveira (2004) ressalta:
A vida política nos territórios dominados pela França, no que respeita a
partidos políticos, não existia antes de 1945. Associações com base regional
ou étnica, pela sua fraqueza política, eram toleradas, até então pela
administração colonial. Mas eram incapazes de atingir qualquer dos seus
modestos objetivos, mesmo dentro do âmbito limitado que tinham [...] a
maioria destes partidos foi fundado após a promulgação da Constituição
francesa de 27 de Outubro de 1946. A constituição combatida por políticos
africanos por não ter concedido direitos iguais aos africanos e deu-lhes o
direito de enviarem representantes eleitos ao Parlamento francês
(SILVEIRA, 2004, p.37).
Ainda, segundo o autor, os primeiros partidos políticos nas colônias francesas eram
partidos de elite, tanto do ponto de vista da estrutura quanto da ideologia. Por sua vez, a sua
evolução e a sua origem tinham sido determinadas pela política francesa (SILVEIRA, 2004).
A problemática da unificação dos partidos sob uma única direção e um programa
comum constituiu um parto difícil para os nacionalistas africanos. Só a partir das décadas de
1950 a 1960 que começou a sinalizar-se uma verdadeira unificação dos partidos na vida
política do continente, com vistas a formação do Estado nação. Seguindo os objetivos da
unidade africana de Kwame Nkrumah, a “fórmula do partido único foi justificada como o
meio de estabelecer a unidade nacional, visto que o partido unificado permitiria assegurar a
coabitação (sic) e a cooperação de grupos diferentes, nos planos étnico, religioso e político”
(LAVROFF, 1970, p.43).
A influência étnica na formação dos partidos africanos é inquestionável, a
procedência regional dos membros dos partidos induz obrigatoriamente a composição étnica
do partido. Em Angola não foi diferente, surgiram várias organizações com características
partidárias para a contestação da independência. Por ordem da cronologia, citamos três
partidos que surgiram no período colonial: Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA),
criada em 1962; União dos Povos de Angola (UPA); e Partido Democrático de Angola
(PDA).
72
Estes dois últimos partidos se unificaram e formaram a Frente Nacional de
Libertação de Angola (FNLA) e, por último, viria a aparecer o Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA), criado em Dezembro de 1956. Angola constitui um caso
particular no contexto dos movimentos nacionalistas das colônias portuguesas. A questão do
regionalismo étnico teve peso importante na desunificação do partido angolano; isso
acarretou, mais tarde, conflitos políticos na obtenção da independência.
Desta maneira, depois da proclamação da independência em 1975, os partidos
enfrentaram disputas desembocando em conflitos de largas proporções, o que levou o país a
mergulhar numa guerra civil de cunho étnico, que terminou em 2002, com o assassinato do
líder da UNITA,31 Jonas Savimbi. Estas formulações nos lembram os enunciados de
Ermelinda Chivinda (2008) que faz descrição da vida política em Angola no período pósindependência:
[...] nos pós 1975, é que estas rivalidades étnicas entre os partidos políticos
sobressaíram, ou seja, só depois da Independência de Portugal, e quando se
esperava uma unidade entre o povo angolano, é que começaram as disputas
entre os movimentos nacionalistas (os partidos políticos). A proclamação da
Independência foi feita num só momento, mas em três lugares diferentes
(Luanda, Huambo e Ambriz, capital de Bengo), com ideais políticos e
propósitos completamente antagônicos o que enviesou por completo o fim
da luta pela libertação (p.02).
Por sua vez, Moçambique conseguiu unir os três partidos inicialmente existentes32 e
que surgiram durante o período da colonização nos meados de 1959 a 1960. Contudo, estes
partidos também tiveram influência forte de uma base étnica diferenciada. A fusão destes
partidos se deu em 1962 sob mediação de Julius Nyerere,33 dando origem à Frente de
Libertação de Moçambique (FRELIMO). Sua liderança - Eduardo Chivambo Mondlane conduziu o processo de luta de libertação em Moçambique, tendo como interlocutor Amílcar
Cabral – os dois fizeram parte da CEI (Casa de Império dos Estudantes) em Lisboa.
Em linhas gerais, a própria unidade na criação do partido único não só facilitava o
enfrentamento do sistema de opressão colonial, como também servia para unir forças na
formação de uma frente única para a obtenção do êxito nas lutas de libertação.
31
União Nacional de Independência Total de Angola, criada por Jonas Savimbi, em março de 1966, depois de
ter saído da FNLA. Vale ressaltar que a UNITA tem como base de apoio o povo Ovimbundu do Planalto
Central (CHIVINDA, 2008). Disponível em <http://www.ovimbundu.org>. Acesso em: nov. 2011.
32
União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO); Mozambique African National Union (MANU)
(à maneira da KANU do Quénia); e União Nacional Africana para Moçambique Independente (UNAMI).
33
Trata-se do primeiro presidente de Tanzânia. É um país da África Oriental, limitado a Norte por Uganda e
pelo Quênia, a Leste pelo Oceano Índico, a Sul por Moçambique, pelo Malauí e pela Zâmbia, e a Oeste pela
República Democrática do Congo.
73
Equacionando os conflitos e tendo em vista as diversidades étnicas que compõem o
continente, a África precisava seguir seu próprio modelo democrático, e a integração era
certamente o caminho ideal para os nacionalistas africanos na representação dos interesses
comuns e da nação. Esta experiência teve êxito na condução das independências, porque se
entrelaçou com a efervescência de unidade africana que proliferava no continente, e, sem
dúvida, foi indispensável na obtenção das independências.
Grosso modo, o projeto nacionalista dos partidos únicos africanos - em particular das
colônias portuguesas (PAIGC, FRELIMO, MPLA, entre outros) - teve o sucesso necessário
durante o processo de luta de libertação, porque a articulação da unidade nacional se deu em
vista do combate ao inimigo comum, e esse inimigo comum então foi vencido. Na medida em
que a independência foi conquistada, reacenderam as divergências de cunho étnico entre as
elites urbanas e as “massas camponesas” (militares), que antes foram ocultadas pelo desejo de
expulsão dos colonialistas. Para Fanon (2005, p.199-201):
A partir da independência o partido não ajuda mais o povo a formular as
suas reivindicações, a tomar mais consciência das suas necessidades e a
melhor fundamentar seu poder. [...] não há mais aquele vaivém fecundo da
base à cúpula e da cúpula à base, que garante a democracia num partido. [...]
o partido que durante o combate atraíra para si o conjunto da nação, se
decompõe. Os intelectuais que nas vésperas da independência aderiram ao
partido confirmam pelo seu comportamento atual que essa adesão não tinha
outro objetivo senão participar da distribuição do bolo da independência. O
partido se torna um meio de sucesso individual.
Portanto, na Guiné-Bissau, o período da independência é marcado pela letargia do
PAIGC no tocante aos propósitos do desenvolvimento do país. O partido não conseguiu
estabelecer a conexão entre a teoria e a prática da sua ideologia revolucionária, com vistas à
promoção do bem estar social e econômico dos povos da Guiné-Bissau. A questão da unidade
africana, tão defendida por estes líderes, cai por terra no momento em que tiveram acesso ao
poder e se manifestaram contra o nacionalismo e seus signos. O partido torna-se
exclusivamente instrumento de manipulação de poder e de autoridade política centrada nas
mãos do governo. Como afirmou Fanon (p.213):
No plano da unidade nacional o partido também vai multiplicar erros. É
assim que o partido nacional se comporta como partido étnico. É uma
verdadeira tribo constituída em partido. Esse partido que proclama nacional,
que afirmava falar em nome do povo em geral, secreta e em algumas vezes
abertamente, organiza uma autentica ditadura étnica. Assistimos não mais a
ditadura da burguesia, mas a ditadura tribal. Os ministros, os chefes de
gabinetes, os embaixadores, os prefeitos são escolhidos na etnia do líder, até
algumas vezes diretamente na sua família.
74
Como se vê, o partido que conduziu a independência mergulhou na própria
contradição ideológica; a burguesia nacional seguiu os modelos de administração colonial,
antes contestada, e no lugar de advogar pelos anseios populares, se transformou em máquina
administrativa dos interesses individuais dos seus lideres, e “um meio de sucesso individual.”
(FANON, 2005).
Estas considerações só reforçam o discurso propalado pelos colonialistas que
confirmava a inoperância administrativa dos africanos no destino do próprio país,
minimizando a reivindicação da autonomia política e a formação dos Estados independentes.
É sabido que, durante séculos, os colonialistas fomentaram os conflitos entre os africanos,
criaram sistemas de hierarquias étnicas que facilitavam colocar uns contra outros, tentaram
enfraquecer todas as formas de organizações que visavam a contestar suas estruturas e
tentaram também a todo custo desarticular qualquer ação política por parte dos africanos que
prenunciava a independência, alem de ter destruído toda forma de organização política e
militar tradicionais.
Em vista disso, o PAIGC foi uma representação política expressiva, que durante os
processos árduos da luta de independência serviu de portador de uma mensagem de libertação
a todos bissau-guineenses na representação política do Estado nação. Embora haja hoje certa
descredibilidade do partido, devido aos fracassos e desilusões no tocante à administração do
Estado nação pós-independência, deve-se atentar para as potencialidades do partido e seu
mérito histórico. Como dizia Fanon (2005, p.236), a construção coletiva de um destino é
assumir uma responsabilidade à dimensão da história.
É importante rever o sistema político bissau-guineense. Pois, numa sociedade onde a
vida política está atrelada às questões étnicas, o desenvolvimento democrático é incipiente e o
equilíbrio da sustentabilidade do país e a promoção do bem estar social dos cidadãos são
remotos. A definição clara das funções dos órgãos estatais, tais como os partidos políticos, o
governo e as forças armadas, é um ponto de partida para promover uma democracia viável
que nos conduza para a paz e a estabilidade política.
75
Capítulo II - Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: da chegada dos
portugueses à costa africana aos processos de resistências anticoloniais
Neste capítulo, proponho esboçar brevemente alguns aspectos da superestrutura
ideológica do Estado colonial, na sequência que envolve a chegada dos portugueses à Costa
Ocidental Africana, bem como as diversas formas de resistências desencadeadas pelos povos
nativos na região da Alta Guiné, atual Guiné-Bissau. A abordagem centrar-se-á na montagem
do sistema do tráfico de escravos pela administração colonial, bem como nos vários processos
de resistências desencadeados pelas populações nativas.
É a partir destas formulações que pretendo, de uma forma sucinta, descrever como se
deu o início da escravidão pré-colonial e a sua diferença da europeia, e como eram
estruturadas as sociedades africanas antes da chegada dos europeus. Essa análise facilitará a
compreensão das alianças estabelecidas entre a elite africana, os árabes e os mercadores
europeus.
Em seguida, considerando a cronologia histórica, descreverei a emergência da luta
anticolonial contemporânea, mais precisamente nos meados do século XX, partindo do olhar
sobre a criação dos movimentos de libertação nacional, em particular os dois que mais se
destacaram: o Movimento de Libertação da Guiné (MLG), liderado por Rafael Barbosa, que
tinha como tese inicial o gradualismo, ou seja, não a independência total e imediata, já que a
Guiné-Bissau não contava com quantidade de quadros administrativos preparados para
assumir o aparato administrativo colonial, postulando assim a não unidade com os
caboverdianos; e o Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde
(PAIGC), liderado por Amílcar Cabral, cuja tese central passava por um projeto de unidade
entre os países com o pressuposto primordial da convergência interétnica em torno de um
projeto de unidade nacional bissau-guineense.
2.1
O contexto da chegada dos portugueses na Costa Ocidental Africana e a
conjuntura da escravidão atlântica
O debate sobre a expansão ultramarina e o tráfico transatlântico de escravos é dado
como quase esgotado na literatura contemporânea em decorrência da enorme produção
76
existente. Não obstante, para o historiador bissau-guineense Kwame Daaku, “não há outro
problema na história da África a respeito do qual se tenha tanto escrito e que se conheça tão
mal como o do comércio dos escravos através do atlântico” (DAAKU apud M’BOKOLO,
2009, p.210).
Os equívocos inerentes à historiografia africana atravessaram séculos e se
prolongaram até aos dias atuais, legitimados pela antropologia e respaldados pelo
revestimento teórico dos chamados pesquisadores do século XIX, sendo assim propagados
com ênfase na inferioridade e primitivismo dos povos africanos. Vale salientar que o
resultado destes estudos sobre o continente africano, entre o século XIX e meados do século
XX, na sua maioria foi determinante para a consolidação de preconceitos e racismos, quando
não do próprio desconhecimento do continente africano pautado num discurso de inexistência
de culturas africanas e, portanto, de sua história.34
Desse modo, mesmo com a existência de uma literatura, registram-se algumas
análises que irão ponderar as questões sobre a ocupação europeia e o comércio de escravos na
Costa Africana, fazendo uma breve análise da fase que antecedeu a chegada europeia, isto é, a
ocupação árabe e a experiência da escravidão doméstica nas sociedades pré-coloniais
africanas.
Não é do meu interesse fazer uma descrição histórica densa e aprofundada deste
processo, por isso farei uma análise introdutória da questão com vistas a situar melhor o foco
do objeto de estudo que é a Guiné-Bissau, e como se deu o processo da ocupação portuguesa
em contraponto com o resto do continente.
O século XXI apresentou uma virada significativa na historiografia africana, que
durante muito tempo foi permeada de mitos, equívocos, pré-noções, preconceitos que tiraram
o privilégio de muitos ao acesso da “verdadeira” história da África. Ou seja, este século não
só abriu leques de possibilidades para questionamentos sobre o conjunto de escritos sobre a
historiografia africana, como também permitiu a visualização e reconhecimento dos
preconceitos e pré-noções no tratamento das fontes no tocante às produções sobre este
continente.
34
Conforme o discurso instituído por Hegel, nas suas formulações sobre a Filosofia da história universal, ao
descrever as características geográficas de todos os continentes e as suas contribuições, não obstante, em
relação ao continente africano, o autor analisou-o negativamente afirmando que a “África propriamente dita é
a parte característica deste continente [...] não tem interesse próprio, senão o de que os homens vivem ali na
barbárie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. Por mais que retrocedamos a história,
acharemos que a África está sempre fechada no contacto envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da
história consciente [...] nessa parte principal da África, não pode haver história” (HEGEL apud
HERNANDES, 2005, p.20).
77
Refiro-me aos esforços realizados tanto pelos pesquisadores africanos, quanto pelos
da diáspora que, ao reescreveram a história de grande parte da África, restituíram aos
africanos sua capacidade “como criadores de culturas ‘originais’ que floresceram e se
perpetuaram, através dos séculos, por vias que lhes são próprias e que o historiador só pode
apreender renunciando a certos preconceitos e renovando seu método” (AMADOU; M’BOW,
2010, p.18-19).
Com o avanço do tempo, no âmbito da produção escrita, aos africanos foi restituído o
protagonismo de suas histórias pelas resistências e esforços coletivos. E “uma identidade
cultural solapada pelo colonialismo”, na feliz expressão de Leila Hernandez. Tal identidade
ressurgiu, em parte influenciada pela tradição cultural reconhecida como uma das
importantíssimas fontes históricas, que narram os valores, símbolos, crenças e
comportamentos que entoam as diversidades de maneiras de pensar, viver e de fazer, que
tornam a África várias áfricas. Isso é o que torna diferente, por exemplo, um angolano de um
bissau-guineense, e até dentro de um mesmo país as diferenças étnicas fazem da África um
universo de pluralidades e diversidades culturais.
Da textualidade escravista emerge a ambivalência da experiência do africano diante
do comércio transatlântico, cuja tese inicial apontava para as trocas comerciais, que
posteriormente priorizou o tráfico de escravos que trouxe consequências que até hoje
desestabilizam o continente.
No que tange à presença do colonialismo na África, Elikia M’Bokolo (2009, p.209)
lança mão da fatídica pergunta: “o que teria sido o resultado das dinâmicas sociais, políticas,
demográficas e econômicas de que a África deu provas dos séculos VII ao XV, se não se
tivessem registrado os tráficos negreiros?”. É bem verdade que o tráfico negreiro causou
danos irreparáveis ao continente africano, destruiu as estruturas políticas, sociais e
econômicas de todas as sociedades africanas e deixou a África subdesenvolvida (ROODNEY,
1975).
É importante destacar que, antes do início do comércio transatlântico de escravos, o
continente africano já havia sido palco de tráfico de seres humanos durante a expansão árabe
nos meados do século IX. Carlos Moore (2007) retrata bem essa visão crítica nas suas
formulações sobre o modelo da escravidão árabe, cuja ênfase se baseava nas questões raciais e
modulada mais tarde pela escravidão atlântica europeia. Segundo o autor:
O sistema escravista desenvolvido durante sete séculos pelos árabesmuçulmanos elegeu o continente africano, partindo da África do Norte,
como o centro fornecedor da mercadoria que se buscava negros-escravizados
para serem submetidos a trabalhos domésticos, servindo de arma, trabalho
78
agrícola a serem utilizados como moeda internacional. Essas demandas das
sociedades árabe-muçulmanas desestruturaram e destruíram as bases
sociopolíticas de muitas sociedades africanas, pois foram política,
econômica e militarmente obrigados a ceder as pressões de um mercado
escravocrata externo. Este desenvolvimento avassalador do comércio de
escravos chegou até a Europa- que se tornou herdeira do sistema escravista
sofisticando a cultura da escravidão – assim como fizeram os árabes quando
herdaram dos gregos e bizantinos (2007, p.97).
É neste sentido, que durante muitos séculos, ao escravizarem os africanos, os árabes
se transformaram em principais traficantes de escravos, aliando-se mais tarde com os
portugueses.
Vários aspectos estão entre as motivações apontadas pelos historiadores no tocante às
viagens de descoberta dos portugueses no Oceano Atlântico a partir de 1415 a 1499. Dentre
os fatores, a mais recorrente é a questão econômica. Entretanto, a religiosa merece uma
destacada importância nesta primeira fase, pois foi através das Bulas Papais (BOXER, 1969),
apregoadas sob a regência do Infante D. Henrique, que as questões de descobrimento,
conquistas, colonização e exploração, ganharam destaque dentro da Coroa portuguesa. Em
outras palavras, as Bulas Papais serviram como uma espécie de autorização legitimada pela
Igreja para o início do processo de descobrimento engendrado pelos portugueses.
De modo geral, as três Bulas Papais (a Dum diversas, de 18 de junho de 1452, a
Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, e a Inter caetera de 13 de março de 1456)
expressavam claramente as intenções de Portugal em relação à exploração e apropriação dos
bens dos habitantes da Costa Atlântica Africana como forma de angariar a riqueza para o Rei
de Portugal. Por outro lado, expressavam também a imposição à submissão e à conversão ao
catolicismo dos povos, de modo particular nas regiões muçulmanas (Marrocos e Índias),
àqueles que eles denominavam de inimigos de Cristo e estendendo aos pagãos, ou seja, os
descrentes, que “seguramente diz respeito à população do litoral shariano e aos negros da
Senegâmbia, com quem os portugueses haviam já tido contatos” (BOXER, 1969, p.43).
Além da sua posição geográfica e centralização prematura de seu reino, um
importante fator que favoreceu o pioneirismo de Portugal na conjuntura europeia
internacional e no contexto dos descobrimentos, e que consagrou a sua chegada à costa
ocidental africana, é o fato que, durante todo o século XV, Portugal estava livre das guerras
civis que assolavam a Europa Ocidental (A Guerra dos Cem anos, a Guerra das Rosas, etc.),
que de modo particular contribui para a entrada tardia de outros países na disputa pela
exploração.
79
Charles Boxer (1969) afirma que os portugueses só chegaram à Costa Africana
depois da ocupação de Ceuta, em 1415, através das informações obtidas sobre a procedência
do ouro e outras especiarias vindas do Alto Níger e do Senegal. Desse modo, estabeleceram
contactos com a costa africana por via marítima e desviaram o comércio de ouro das
caravanas do Sudão Ocidental e dos intermediários muçulmanos da Berberia. Vale salientar
também que Ceuta constituía um dos portos terminais do comércio do ouro transaariano, o
que poderia estar por detrás do aliciamento dos portugueses na expedição e conquista desta
cidade.
Depois da conquista de Ceuta em 1415, os mouros desviaram as suas rotas
comerciais para outras cidades do Norte da África. Os portugueses resolveram então iniciar
viagens por mar na esperança de chegar ao local de origem do ouro e especiarias. Assim
sendo, “nas paradas, os portugueses negociavam com as populações locais e sequestravam
pessoas que chegavam às praias, levando-as para os navios para serem vendidas como
escravas. Tal ato era justificado por esses povos serem seguidores das leis de Maomé” (Souza,
2006, p.51).
Portanto, seguindo as expedições, depois da primeira passagem do Cabo Bojador
pelo navegador Gil Eanes em 1434, os portugueses encontraram ao sul os povos não
islamizados, mas eram pagãos e desconheciam as leis de Deus, no entanto não eram
considerados inimigos, contudo não ficaram imunes a escravização. Não obstante, tinham
uma saída, segundo os portugueses, como não inimigos eram passíveis à conversão ao
catolicismo e possivelmente à salvação da alma.
Foram nessas aventuras pelos mares desconhecidos, que os portugueses se
enraizaram na Costa Africana, como as Ilhas do Cabo Verde e de São Tomé, formadas pelos
povos de procedências diversas, escravizados e mestiços que nelas nasciam. Nesta senda,
estas ilhas, pela sua posição geográfica, serviram de suporte estratégico para a
comercialização de escravos com as demais regiões da costa africana e também para posterior
manutenção e domínio português no continente. E também serviu para “reprodução da
experiência com plantio de cana sacarina que já haviam realizado na Ilha de Açores e
Madeira, arquipélagos colonizados por portugueses que para lá migraram” (SOUZA, 2006,
p.54).
No primeiro contato com a Costa Africana, provavelmente, os europeus mostraram
interesse em estabelecer o comércio, isto porque no continente africano existiam redes
expressivas de transações comerciais de ouro e outros produtos, da África para Índia e para os
80
países árabes. A larga experiência do comércio africano explica o interesse dos mercadores
europeus pela Costa Africana no século XVI com o objetivo de estabelecer relações
comerciais.
Entretanto, no início, as desconfianças pairavam entre as partes, só que os europeus
tinham interesses expressivos pelas especiarias africanas (cravo, canela e pimenta), cujo
controle era dos árabes. Os árabes aplicavam preços arbitrários para os europeus, e eram
cobrados impostos sobre os produtos. Desta forma, os portugueses manifestaram interesse em
obter as mercadorias com preços baixos diretamente da Índia, a fim de revendê-las a preços
altos, só que a rota tradicional terrestre era controlada pelos árabes.
Contudo, com recurso à parte significativa das fontes pode-se afirmar que,
inicialmente, os portugueses conseguiram estabelecer uma relação dita amigável com os
povos africanos. O primeiro passo foi pedir autorização aos chefes tradicionais locais para a
instalação de entrepostos comerciais como forma de alcançar as minas de ouro. Mas, tudo
leva a crer que os portugueses já reconheciam a existência de relações de poder entre os
africanos, conforme atesta Ribeiro (1989, p. 227):
Nos primeiros contactos, os comerciantes europeus não tinham um espaço
territorial próprio, com estruturas próprias para exercerem a atividade
comercial. Realizavam os negócios com o apoio dos reis africanos, que os
hospedavam durante o período necessário para a realização da operação
mercantil.
Assim sendo, os portugueses articularam todas as formas para a sua inserção no
espaço comercial da Alta Guiné35, e também tentaram forçar uma aproximação de confiança
com os demais comerciantes. Este processo de aproximação e aceitação na comunidade foi
lento e conflituoso. Com a forte colaboração dos chefes locais conseguiram colocar na prática
o projeto de instalação e exploração de matérias primas, e posteriormente a exportação de
mão de obra escrava.
Entre 1415 e 1482, consolidou-se o marco da tentativa de implantação dos
entrepostos comerciais na Costa Atlântica, a fim de terem acesso às especiarias, tais como o
35
O termo Guiné (mundo do negro, na terminologia da época) foi usado para designar toda a Costa Atlântica
Africana, então principal região de relacionamento entre os europeus e os negros e confluência das religiões
tradicionais com o Islã e o Cristianismo na época. Compreendia duas partes: a Alta Guiné, que se estendia de
Norte para o Sul, ou seja, do Cabo Branco a Serra Leoa, e a Baixa Guiné, que ligava Serra Leoa aos Camarões.
O interior da região era designado Sudão Ocidental (NDJAI, 2012, p.17).
81
ouro, o marfim, a pimenta, a malagueta, etc., buscando chegar às Índias. Só em 1445, o
projeto de instalação da feitoria se concretizou em Arguim (a sul do Cabo Branco). Neste
sentido, foi construído em 1455 um castelo que serviria de suporte comercial para os
portugueses, possibilitando-lhes efetuar trocas comerciais de marfim, cobre, trigo, pó de ouro,
escravos, tecidos, cavalos, etc., com a costa africana (SOUZA, 2006).
A construção e a expansão de entrepostos na Costa Ocidental Africana visavam não
apenas a guardar produtos de alto valor comercial, a exemplo de ouro e marfim, como
também a demarcação de territórios ocupados por Portugal, defendendo-se das possíveis
ameaças provenientes das disputas hegemônicas com outros países. Desta maneira, na
segunda metade do século XV, “através da sua feitoria fortificada de Arguim e de outras
feitorias não fortificadas, situadas na região costeira da Senegambia, os portugueses
conseguiram desviar uma percentagem considerável deste comércio transariano” e
construíram o primeiro entreposto comercial na costa do ouro chamado São Jorge da Mina,
em 1482 (BOXER, 1969, p.51).
A expectativa de comércio da feitoria de São Jorge da Mina (El Mina) ultrapassou a
de Arguim, que rapidamente se consolidou não apenas nas mediações da Costa do Ouro,
como também em Sudão Ocidental. Em 1503, foi construída outra feitoria, a de Axim. Vale
salientar que de todas as feitorias estabelecidas nenhuma efetivou a sua instalação no interior
do continente. Por isso, os portugueses sentiram-se forçados a estabelecer relações de
“amizade” com os africanos como forma de intermediação do fornecimento de produtos de
grande valia (ouro e escravos), que não conseguiam, eles próprios, extrair do interior do
continente.
É neste contexto que, depois da instalação destes entrepostos, os portugueses
tentaram estreitar relações com os chefes tradicionais africanos e posteriormente com seus
povos, a fim de conseguir o total apoio e a inserção no interior do continente. Em troca dessa
relação, ofereciam presentes, professavam falsas promessas, enfatizando sempre o interesse
em estabelecer comércio dos produtos existentes no continente.
Assim sendo, com o passar do tempo, os europeus conseguiram de modo definitivo a
confiança dos chefes tradicionais, que mais tarde tornaram-se aliados. Conseguiram, também,
o tão sonhado ouro africano - assim como marfim, pimenta, escravos, etc. - e o levaram para
Portugal. Esta aproximação marca o início do que viria a ser o tráfico de escravos para o
“novo mundo”. De fato, seria “simplório pensar que esses tráficos no continente aconteceram
simplesmente porque outros vinham até o continente africano e pegavam as populações nas
regiões costeiras como se fossem cocos” (MOORE, p.17).
82
O historiador Marion Malowist (2010), em linhas gerais, reafirma a tese universalista
do interesse comercial dos europeus na África, contudo chama a atenção para o
desconhecimento destes em relação à escravidão doméstica de pequena escala, que existia no
continente, e que também veio a lhes interessar. Desta forma,
[…] a tradição de exportar escravos para os países árabes era muito antiga
em grandes partes do continente, em particular do Sudão. Nos séculos XV e
XVI, esta tradição pareceu ter ajudado, em certa medida, os portugueses a
conseguir, regularmente, escravos em uma grande parte da África Ocidental,
notadamente, na Senegâmbia, parceira econômica, de longa data, do Magreb
(p. 08).
Desta forma, o tráfico de escravos acelerou a rivalidade entre os chefes africanos
envolvidos na venda dos seus em troca de beneficio próprio. O continente africano
desempenhou um papel importante no fortalecimento do peso relativo de Portugal nas redes
internacionais da economia europeia durante a expansão comercial. Portanto,
[…] uma grande quantidade de ouro da Guiné levado para Lisboa, foi
reexportado para pagar os cereais e os produtos manufaturados de que
Portugal precisava. Por outro lado, o ouro africano ajudou, por assim dizer, a
colocar Portugal no mapa de circulação monetária européia. Desta maneira,
durante séculos, certos tipos de moedas de ouro que circulavam na Europa
Setentrional, foram denominados portugaleses (BOXER, 1969, p. 53).
Como citado anteriormente, a chegada dos europeus à Costa Africana foi justificada
pelo estabelecimento comercial de trocas de mercadorias. Mas também, veio a associar-se a
estas mercadorias outro interesse muito particular que unia os traficantes de escravos
europeus aos chefes locais, isto é, aos seus fornecedores.
É recorrente a referência ao continente africano, na literatura, como lugar onde se
praticava a escravidão anteriormente à chegada dos europeus. Contudo não podemos perder
de vista que o escravismo não se limitou apenas ao continente africano. Não obstante,
“nenhum continente conheceu, durante um período tão longo (VII-XIX), uma sangria tão
contínua e tão sistemática como o continente africano” (M’BOKOLO, 2009, p.209). Ou seja,
a prática escravista no continente africano foi atípica, pelas características específicas que
apresentou e pelo uso de atrocidades sem limites. Vale ressaltar que o Império Romano
experimentou a escravidão em larga escala, sem, contudo, esquecer a Grécia Antiga, o Oriente
Médio e algumas regiões da Ásia, onde o comércio de escravos durou vários séculos. No seu
ensaio, J. E. Inikori (2010) reforça essa visão crítica:
[...] todos os povos do mundo venderam como escravos, em regiões
longínquas e no curso de uma ou outra época, alguns de seus conterrâneos.
Aprendemos, assim, que a missão enviada no século VI para converter o
povo inglês ao cristianismo estava ligada à venda, no mercado de Roma, de
83
crianças inglesas, vítimas das freqüentes lutas entre os povos anglo-saxões
que vendiam, como escravos, os prisioneiros capturados durante seus
combates. Situação idêntica verifica-se em outros territórios europeus.
Durante séculos, as etnias da Europa Oriental e Central (e, sobretudo os
eslavos, cujo nome deu origem a palavra “escravo”) forneceram escravos ao
Oriente Médio e a África do Norte (p.92).
No entanto, é importante destacar que, tanto na Grécia quanto em Roma, a
escravidão era marcada pelo patriarcalismo, ou seja, centrava-se nos homens, onde a cor da
pele ainda não era pré-condição para se tornar escravos, ao contrário do que mais tarde viria
acontecer com outros modelos de escravidão no período moderno.
Cabe assinalar que qualquer sistema de escravidão – isto é, indivíduo sob domínio de
outrem em condições de opressão – possui caráter violento, seja ele brando ou hostil. Não é
minha intenção justificar a forma de escravidão doméstica africana antes da chegada dos
árabes e europeus, apenas sinalizo que não foi, e nem é, uma prática exclusiva do continente
africano. Apesar de existir uma grande diferença na estrutura organizativa da escravidão précolonial africana, em detrimento da escravidão atlântica.
É sabido que, de todas as formas de escravidão, a escravidão europeia contra
africanos foi a mais cruel e extremamente desumana, porque ela se centralizava no trabalho
forçado, tortura física e na proibição do desenvolvimento intelectual e cultural dos povos
escravizados. Por outro lado, na escravidão euro-ocidental o escravo era uma condição, ao
passo que no continente africano, ser escravo era uma categoria social.
Inicialmente, a escravidão pré-colonial nas sociedades africanas foi caracterizada
como escravidão doméstica de pequena escala por se basear em aprisionar alguém a fim de
explorar a sua força de trabalho na agricultura familiar. Os cativos - ou escravos - eram
divididos de acordo com o sexo (homens e mulheres) para as funções domésticas diferentes, e
estavam integrados nos círculos familiares do seu senhor (SOUZA, 2006).
A posse dos cativos caracterizava certo prestígio e poder aos seus senhores, sendo
que representava a capacidade de fortalecimento da linhagem. Tornavam-se cativos aqueles
capturados em guerras, feitiçaria, roubo, e, por vezes, os que cometiam o adultério, ou aqueles
incapazes de quitar suas dívidas e sem recurso de sobrevivência. Destaca-se que as sociedades
africanas são caracterizadas pela continuidade da linhagem como forma de fortalecer os laços
de parentesco. É por essa via que os filhos de cativos são incorporados na família do senhor,
perdendo assim a sua condição servil, passando a incorporar a linhagem.
Nas sociedades islamizadas, por exemplo, os cativos além de trabalhar nas grandes
plantações pertenciam exclusivamente aos reis ou aos chefes locais, isto é, à elite muçulmana.
84
A sua incorporação no exército com status de comando fazia-lhes desempenhar a função de
conselheiros dos reis. Em outros casos, os cativos perdiam a sua condição se prestassem bons
serviços ao Rei (SOUZA, 2006; HERNANDEZ, 2005). Este sistema de integração de
escravos à família dos chefes é um dos aspectos encontrados nas sociedades africanas, e é o
que estabelece a crucial diferença com a dinâmica de escravidão transatlântica desenvolvida
pelos europeus.
A estrutura da escravidão doméstica africana de pequena escala facilitou o projeto
dos portugueses para a viabilização do processo atlântico escravista. Como já citado, os
cativos africanos resultantes da disputa étnica entre os reinos africanos eram feitos
prisioneiros e trabalhavam para os chefes locais, como forma de compensar o castigo. A esse
respeito, Carlos Ribeiro (1989, p.230) afirma:
O desenvolvimento do tráfico só foi possível porque já existiam em África
redes complexas de circulação de bens, regionais ou a longa distância, que
adaptadas às novas condições permitiram a drenagem da mercadoria humana
para o litoral [...]. Enquanto no período anterior à presença europeia o
escravo era incorporado e absorvido na nova sociedade que o acolhia, com a
presença europeia introduz-se uma ruptura no sistema encontrado, tornandoo puramente depredatório, sob o ponto de vista africano.
Todavia, essa estrutura de escravidão doméstica africana sofreu grandes
transformações com a chegada dos árabes entre o fim do século VIII e meados do século IX.
Desde então, a escravidão doméstica africana experimentou moldes diferentes e passou a
conviver com o comércio mais intenso da escravidão transatlântica. Diferente da organização
anterior, os árabes desenvolveram a escravidão como um grande empreendimento comercial.
Aumentaram o número de cativos e transformaram-nos em meros objetos comerciais,
vendidos dentro e fora do continente africano.
Também, criaram novos padrões ao inserir o critério fenotípico racial como
parâmetro na seleção do escravizado, “resultando numa forte racialização dos segmentos
livres e escravizados, na qual os povos negros foram cada vez mais submetidos aos povos
brancos”. A África foi caracterizada pelos árabes, em termos raciais, como sendo Bilad as
Sudan, “Terra dos negros” (MOORE, 2007, p.99). Este modelo de escravidão racial árabe foi
herdado mais tarde pelos europeus.
Segundo Carlos Moore (2008), desde o século VIII o continente africano já tinha se
convertido no foco de tráfico pioneiro dos árabes. Para este autor,
[...] havia rotas de tráfico de escravos organizadas, rotas tradicionais
históricas: através do Saara, pela parte Ocidental, através do eixo do KanenBornou e o Cairo (Egito), através do eixo Cairo-Sudão, e, de eixo de
Zanzibar e de Omam, diretamente até a Arábia. Quando os árabes finalmente
85
apoderaram a Península Ibérica, no inicio do século VIII, deu-se início a
outro eixo pelo qual escoava a população servil africana diretamente do
Sudão Ocidental até a Península Ibérica (Espanha e Portugal) a partir da
África do Norte (p.17).
É oportuno destacar que o continente africano, antes da chegada dos europeus, já contava com
impérios e reinos com grandes organizações sociais, políticas e econômicas, sem contar com
uma vasta experiência em exercício do poder político (RIBEIRO, 1989). Entretanto, a história
da África Ocidental é marcada entre os séculos pela presença de três grandes impérios
sudaneses: Ghana, Mali e Songhay. Como informa Ribeiro:
Estes impérios tinham presença de uma elite composta pelos reinados,
governadores de províncias, conselheiros, comerciantes, etc., isto é, tinham
uma estrutura hierárquica forte de poder centralizado nas mãos do Rei. O
império do Gana, o primeiro império negro conhecido com bastante precisão
cujo apogeu se situa entre os séculos IX e X (RIBEIRO, 1989, p. 223).
Do ponto de vista historiográfico, o século XV marca o início da chegada dos
portugueses na Costa Ocidental Africana, concretamente nas regiões costeiras da Costa
Atlântica, que compreende a Costa da Guiné, a região do baixo Zaire e de Angola, mais tarde
o vale do Zambeze e a Etiópia. Com o tempo, nos meados do século XVI e XVII, a
penetração acentuou-se no interior do continente, atingindo outras regiões. A Costa da Guiné
foi a primeira região da África Ocidental a ser descoberta pelos europeus. Nas formulações de
Davidson (1989), os portugueses desembarcaram em países para os quais a Europa nem
sequer tinha nomes. Mas, o que se seguiu à chegada desses navegadores foi um sistema de
extração primitiva e não de civilização.
Marcados pelos influxos desse empreendimento econômico, os séculos XV e XVI
foram coroados por uma parceria econômica entre os chefes locais africanos e os mercadores
europeus, num trato que envolvia ouro e outros itens de valor comercial (açafrão, marfim,
pérola, ébano, cobre, cerâmicas, etc.), mas que se centrou na exportação de seres humanos,
visto como um meio de aceleração de riquezas.
Este processo deu início ao enfraquecimento do continente africano em todos os
aspectos: além de se tratar de uma troca desigual que em nada beneficiava o continente em
termos econômicos, “os grandes espaços administrativos historicamente constituídos (os
impérios) se fragmentaram e, no seu lugar, surgiu uma miríade de minúsculos reinos em
constantes guerras entre si” (MOORE, 2008, p.25).
Tal empreendimento flagrou dois aspectos que merecem ser destacados: o social e o
cultural. Do ponto de vista social, o continente foi dilacerado e esvaziado em termos
86
demográficos, um número expressivo de africanos foram torturados e dizimados pelos
colonialistas, desde a sua captura para o embarque no navio negreiro até as resistências
desencadeadas pelas sociedades africanas lutando contra a repressão e a dominação, visando à
obtenção da liberdade.
Do ponto de vista cultural, a tentativa dos colonialistas em aniquilar a identidade
étnica do africano, levou-lhes a criar e programar a política de “civilização” e de conversão ao
catolicismo. A religião católica passou a ser uma forma de “salvar” os africanos e inserir-lhes
numa nova sociedade. Portanto, os europeus não entenderam e nunca entenderiam a
importância do significado das tradições étnicas no modo de vida dos africanos.
Dito de modo direto, nenhuma conversão identitária apagaria na essência dos
africanos a compreensão simbólica da sua cultura. E por mais violento que seja o sistema
colonial (e este o foi), onde quer que fossem levados carregariam consigo inscritos nos seus
corpos, seus valores tradicionais e suas marcas étnicas, enfim, a preservação da memória
ancestral, signos estes que representam e apresentam seu orgulho de pertencimento étnicoidentitário baseado na partilha da mesma fé religiosa. Foram essas alegorias identitárias que
permitiram as ressignificações culturais das tradições africanas de modo sui generis em cada
parte do mundo onde foram considerados apenas como objetos de acúmulo de riquezas
capitalistas dos seus senhores.
Uma parte significativa das fontes pesquisadas permite afirmar que não foram
levados para o velho mundo africanos sem contribuição para dar, e cabe dizer que muitos
tinham o domínio da agricultura, do comércio, da arte, além da experiência em metalurgia e
domínio da escrita. Além disso, tratava-se de indivíduos oriundos de sociedades com
organizações políticas complexas, baseadas no desenvolvimento de redes comerciais internas,
com um enorme potencial econômico, político e cultural.
No seu enunciado, Elikia M’Bokolo (2009) analisa a escravidão como um comércio
antigo em crescimento, e faz referências à sua existência antes do tráfico europeu e, nesse
ensejo, o autor afirma que,
Os primeiros tráficos abriram caminho aos europeus, o do Atlântico e o do
Oceano Índico, que se inscreveram na sua esteira, por outro lado,
contribuíram também para dar forma e depois transmitir aos europeus as
percepções e imagens dos africanos, suas atitudes e seus preconceitos, suas
crenças e suas convicções as quais este comércio pouco comum, não se teria
tornado tão comum (p.211).
87
Em linhas gerais, a África serviu por séculos como palco de tráfico de homens sob
uma forte organização e cumplicidade das elites africanas e árabes. A expansão islâmica
acelerou ainda mais o processo escravocrata no continente. Assim como o catolicismo, o
islamismo usou o recurso religioso para atrair seus adeptos, e nessa senda ofereceu aos
prisioneiros de guerra (cativos) a flexibilidade de deixar a condição escrava pela conversão ao
islamismo. Isto é, os que não eram islamizados eram vendidos pelos chefes tradicionais, como
objeto de troca de mercadorias com os europeus (HERNANDES, 2005, SOUZA, 2006).
O Estado colonial se configurou assim a partir do resultado de alianças, de trocas de
favores e promessas entre os europeus e os chefes tradicionais e religiosos africanos,
sobretudo os islamizados. Estas alianças também desenharam uma longa e dolorosa
desumanização, levando os africanos a serem considerados meros objetos de troca no circuito
das relações comerciais, além da destruição dos valores culturais africanos e da imposição da
cultura europeia, com o discurso da necessidade de civilizar os povos africanos, e instituindo
assim a superioridade cultural “europeia” em relação às tradições culturais africanas.
Figura 2: Mapa ilustrativo da África antes da divisão da Conferência de Berlim 36
A escravidão auferiu uma dimensão intercontinental com a chegada dos europeus à
Costa Africana a partir do século XV até meados do século XIX. É neste âmbito que a África
se tornou a principal exportadora de mão de obra escrava para o novo mundo.
36
Disponível em: http://www.geoensino.net/2011/10/blog-post_792.html.
88
O primeiro contato foi com os portugueses e, posteriormente, outras nações se
envolveram na disputa do comércio de escravos, resultando mais tarde na partilha do
continente pelo acesso às zonas mais ricas, na chamada Conferência de Berlim (1884-1885),
organizada na Alemanha de Bismarck. Foi nesta conferência que a Alemanha perdeu suas
colônias para a França e Inglaterra, como é o caso do atual Camarões que era colônia da
Alemanha e passou para a França.
A desenfreada rivalidade que se verificava no seio das potências europeias, no
tocante ao acesso às zonas mais ricas para exploração de matérias primas, impulsionou a
convocação da Conferência de Berlim para organizar a divisão legal das zonas de exploração.
Cerca de quatorze países europeus se reuniram em Berlim, na Alemanha, a fim de discutirem
as formas de administrar as suas colônias em África.
Na ausência de africanos, a África foi dividida em forma de bolo, cujas fatias foram
repartidas, conforme o peso de cada potência, assim como fora também avaliado o prestígio
econômico, de modo que a Inglaterra e a França obtiveram mais colônias, bem como acesso
às zonas estratégicas.
Foi nesta conferência que se estabeleceram as linhas da divisão da África entre as
potências imperialistas, originando um novo mapa geográfico do continente africano
maquiado com o rosto do colonialismo. O objetivo desta conferência era a defesa dos
interesses das grandes potências sem, contudo, ter em conta as questões socioculturais e
políticas das sociedades africanas.
89
Figura 3: Mapa ilustrativo da divisão da África – Conferência de Berlim (1884-1885).37
Dessa forma, ao dividirem territórios, impuseram a convivência, no mesmo espaço
geográfico, de grupos étnicos que nunca antes conviveram. Além disso, instituíram leis,
costumes e línguas diferentes, adotando a política de assimilação aos povos africanos pautada
na conversão identitária, regularizada sob a ótica da ideologia do catolicismo, justificando
“civilizar” os africanos.
A elaboração de uma resolução que serviria de fio condutor para o cumprimento das
decisões tomadas na conferência sinalizou a exploração de algumas zonas. Por exemplo, o
Estado livre do Congo, sob comando do Rei da Bélgica, Leopoldo II, estaria livre para acesso
ao comércio e à exploração de todas as potências, sem privilégios para Inglaterra e França,
consideradas mais fortes.
Outro aspecto que chama a atenção nessa resolução é a livre circulação comercial
nos grandes rios africanos, tais como Zaire, Níger, Zambeze, Tanganica e Niassa. Foi também
determinado nesta conferência que as potências só poderiam garantir suas colônias mediante a
ocupação militar dos territórios. Como Inglaterra e França tinham maiores forças militares
acabaram por ocupar maior parte do continente.
A referida resolução ainda adotava a linha de defesa do tratado de protetorado com
os soberanos africanos como a única via de fixação para os capitalistas europeus, além de
37
http://revistaescola.abril.com.br/historia/fundamentos/historia-colonizadores-africa-450594.shtml.
90
defender a abolição dos direitos alfandegários dos produtos. Tudo isto em nada beneficiava as
populações locais, ao contrário, visava a favorecer a exploração europeia e a beneficiar suas
indústrias. Não obstante, essa conferência não conseguiu dissipar as rivalidades entre as
potências, e a ambição em obter mais colônias fez com que as tensões fossem cada vez mais
evidentes.
Em linhas gerais, as consequências desta conferência para o continente africano são
inúmeras. Desde a implantação acirrada das disputas étnicas, o subdesenvolvimento do
continente, a extrema pobreza, até o alto índice do analfabetismo e a perda da autonomia e
liberdade. Vale ressaltar que, durante séculos de exploração, foi desenvolvida no continente
uma economia voltada para os interesses europeus, deixando o continente subdesenvolvido
sem uma boa estrutura econômica.
É fato que o fim da escravidão não se deu por questões humanitárias, mas sim por
questões puramente econômicas provocadas pela Revolução Industrial e pela pressão do
liberalismo. O liberalismo teve um papel forte no processo de abolição da escravidão no
mundo. No final da primeira metade do século XIX, os liberais ingleses e franceses,
confortados com o processo da Revolução Industrial, começaram a pressionar os países
traficantes dos escravos, por meio dos governos da Inglaterra e da França, para que todas as
províncias da metrópole que praticavam tráfico de escravos parassem de praticá-lo. Desta
forma, o tráfico de escravos foi dando espaço para o trabalho livre onde o trabalhador passa a
vender a sua força de trabalho para o capital.
2.2
A colonização da Guiné-Bissau como desdobramento da formação do Império
português
Considerada um mosaico étnico e cultural devido à sua rica e diversificada
composição étnica, a Guiné-Bissau é um país situado na Costa Ocidental do continente
africano, limitado entre duas Repúblicas, ao norte pelo Senegal e ao sul pela Guiné-Conacri,
com superfície total de 36.125km2.
O país integra ainda cerca de quarenta ilhas que constituem o Arquipélago dos
Bijagós, separado do continente pelos canais de Geba, Bolama e Canhabaque, além dos
territórios continentais, que compreendem oito regiões: Bolama, Báfata, Gabú, Cacheu,
Biombo, Oio, Quinará e Tombali, mais o setor autônomo de Bissau que é a capital. O clima é
quente e úmido, caracterizado como subguineano. Trata-se de um clima favorável para a
91
prática de agricultura e pesca, que constituem principais fontes de subsistência para a
população.
Figura 4 - Mapa Guiné-Bissau - Esboço de regiões administrativas38.
Segundo dados estatísticos de 2009, a população bissau-guineense corresponde a um
total de 1.548.159 habitantes. Tem uma densidade de 33,22 habitantes por km², e a grande
maioria da população reside em zonas rurais. A Guiné-Bissau conta com mais de trinta
etnias39, e se configura em cinco grandes grupos étnicos espalhados em diferentes regiões do
país, compondo o seguinte cenário: Balantas (27%), Fulas (22%), Mandingas (12%),
Manjacos (11%), Papeis (10%) e outros (18%). Ressalte-se que a tradição cultural destes
grupos étnicos é bastante rica e diversificada, enfatizada através das diferenças linguísticas e
expressões artísticas, entre outras categorias de análise.
38
39
Disponível em: http://www.africa-turismo.com/mapas/guine-bissau.htm.
Entendo etnia como uma unidade tradicional de consciência de grupo que se diferencia de outros pelo fato de
partilhar laços comuns de território, cultura, valores, “raça” ou tradição histórica .
92
Figura 5 – Mapa da localização espacial das principais etnias da Guiné Bissau. C. Spinola e al, 2008.
Assim, como em outras partes do continente africano, o século XV –
aproximadamente o ano de 1446 – marca o início da chegada dos portugueses no território
que viria mais tarde a denominar-se Guiné-Bissau, pois o acesso à Costa da Guiné, ou seja,
Senegâmbia, deu-se através da rota instituída pelo navegador Álvaro Fernandes. Entretanto,
na Guiné-Bissau, a ocupação começou no norte do país a partir da cidade de Cacheu, fundada
em 1588, mas sob a regência da administração do Arquipélago de Cabo Verde40.
As primeiras feitorias foram construídas nos cursos dos rios São Domingos, Cacheu,
Farim e Buba, já que inicialmente os portugueses não intencionavam a ocupação no interior
do país. Assim, em 1642, a cidade de Cacheu torna-se a capitania e principal referência dos
portugueses para o acesso ao resto do país. A cidade de Farim foi fundada em 1640, e a atual
capital, Bissau, teve a sua ocupação em 1686.
Apesar dos rios e da costa dessa área terem sido uma das primeiras partes
colonizadas pelos portugueses, o interior só foi explorado a partir do século XIX. A atual
capital do país foi fundada em 1697, com intuito de servir de suporte para a fortificação
40
Em 1834, pela aplicação da nova organização administrativa portuguesa de 1832, que suprimia teoricamente
toda a distinção entre a Metrópole e as colônias, Cabo Verde e Guiné passaram a formar uma prefeitura, na
qual a Guiné era uma circunscrição dirigida por um subprefeito. Em 1836, foi criado um governo geral das
ilhas de Cabo Verde no qual a Guiné passou a ser um distrito, comandado por um governador. Em 1869, a
Guiné foi subdividida em quatro comunas, Cacheu, Bissau, Bolama e Buba. O governador residia em Geba
(PAIGC, 1974, p. 96).
93
militar e entreposto de tráfico negreiro, que mais tarde viria a ser elevada a cidade e capital do
país. Ainda na intenção de estabelecer trocas comerciais com o continente,
[…] os portugueses trocam as suas mercadorias por ouro – o do bambuk na
Gâmbia, o do Buré nos estuários da Guiné, o das regiões do Sul em Elmina,
que é o maior centro de tráfico – por pimenta da Guiné (a malagueta), por
fim e por escravos que são exportados para as ilhas e para Portugal. Por
outro lado, o estabelecimento da costa serve de escala de navios que, a partir
de 1498, vão buscar as plantas aromáticas na Índia. A partir de 1510, começa
a exportação de escravos para a América, que se tornará progressivamente o
trafico essencial (PAIGC, 1974, p 72).
Assim sendo, a edificação da Fortaleza de Bissau aconteceu no século XVIII devido
à disputa acirrada entre as potências europeias nas áreas ocupadas por Portugal. É importante
ressaltar que a colonização efetiva do interior da atual Guiné-Bissau se iniciou no final do
século XIX. Os interesses portugueses na região foram negociados na Conferência de Berlim
como contraponto às ambições francesas de criação de uma África Ocidental Francesa
(PÉLISSIER, 1989, p.232).
Nesse sentido, articulando o esforço teórico de Carlos Lopes (1982), à assertiva de
Mamadu Mané (1989) e Peter Karibe Mendy (2005), é plausível compreender a tese de que
antes da chegada dos portugueses, em 1446, a Guiné-Bissau foi previamente uma parte do
Império de Kaabu que, após a sua extinção, passou a pertencer ao Império do Mali, fundado
por Sundiata Keita41; partes do reino perduraram até o século XVIII.
A consideração de Mendy (2005, p.760) evoca ainda outra questão fundamental, de
que Kaabú “tinha se tornado um império de direito próprio com a influência política que se
estendeu ao norte e a leste da região do Casamance, do Senegal, e mais ao norte, até a
Gambia”. Acentua-se que Kaabú corresponde hoje ao atual Gabú e constitui o último império
que os portugueses encontraram quando da sua chegada. Desta forma, houve uma grande
aproximação entre os dirigentes do império de Gabú e os colonizadores, o que mais tarde
ocasionou a intensificação do comércio e tráfico dos bissau-guineenses.
Importante salientar que Kaabu não sobreviveu às pressões externas originárias das
potências colonizadoras (franceses, britânicos e portugueses) e às rivalidades políticas
internas, culminando assim numa crise política que originou a sua desintegração nos meados
do século XIX, mediante uma grande batalha intitulada “Kansala”, na qual os fulas, que
41
A história da Guiné-Bissau quase se confunde com a dos reinos mandingas, a desintegração do império Mali
no século XVI, que deu origem a vários Estados autônomos no oeste africano antes dominado por Niani
(capital do Império do Mali). Entre estes Estados consta o reino de Kaabú com Kansala como capital,
dependências territoriais (farins) que se deixava sob jurisdição de princípios escolhidos entre as famílias
reputadas (Sane e Mane), e a transmissão de todos os poderes fazia-se segundo tradições matrilineares.
(LOPES, 1982, p.20).
94
vieram do império do Mali, travaram uma guerra com os mandingas, liderados pelo
Imperador Mama Djanke Wali. Nesta batalha os fulas saíram vencedores.
No período posterior ao “descobrimento” da Costa da Guiné seria a vez das Ilhas de
Cabo Verde, em 1456, que só viriam a ter a ocupação efetiva em 1462 pela Ilha de Santiago,
onde foi desenvolvida uma das principais capitanias portuguesas. No ensejar das descobertas,
a coroa portuguesa requer os direitos de exclusividade sobre as regiões até então
“descobertas” na Costa Africana, compreendendo as regiões de Senegal até Serra Leoa.
Segundo Peter Karibe Mendy (2005), a exigência portuguesa perante os seus
concorrentes europeus no tocante à legitimidade da tutela das terras na Costa da Guiné em
1486 não perdurou, devido à fraca proliferação dos centros comerciais e de uma representação
expressiva destes na cidade de Cacheu e Bissau, principais pontos de referência do comércio
colonial, que desempenhavam a função de receber as taxas de comerciantes com intuito de
beneficiar aos governadores locais. Com efeito, o século XVII marca o fluxo intensivo dos
comerciantes e mercadores de escravos de várias nacionalidades na Costa da Guiné, dentre
eles, os caboverdianos.
Neste grupo, podiam ser encontrados indivíduos de diferentes estratos sociais, desde
professores, padres, administradores, soldados, mercenários, entre outros que estavam à
procura de ouro, marfim e escravos. Dentre os caboverdianos, destacam-se os “lançados”, isto
é, os colonos aventureiros que eram ameaçados de morte em Portugal, e os “tangomaos”,
aqueles resultantes da miscigenação com os indígenas, que procuraram estabelecer redes
comerciais, sem, contudom respeitar as regras da coroa portuguesa (MENDY, 1994).
António E. Duarte e Silva (2010) parece se empenhar num esforço teórico crítico
sobre o desenrolar do processo da ocupação portuguesa na Guiné-Bissau, sinalizando para as
balizas construídas pela administração colonial, quando da sua chegada e depois da sua
instalação. Desta maneira, o autor adverte que a Guiné-Bissau “não se tratava ainda,
propriamente, de colônia, e os políticos europeus demonstravam pouco interesse na região”.
Não obstante, a Conferência de Berlim forjou uma ocupação efetiva do país; para este autor,
inicialmente, na concepção dos portugueses, o território que compreendia Bissau:
[...] reduzia-se a uma Praça (a de Bissau), quatro Presídios (Cacheu, Geba,
Farim e Ziguinchor), um Posto (Bolor) e a Ilha de Bolama. Esses
“estabelecimentos” encontravam-se sujeitos ao Governo das Ilhas de Cabo
Verde e eram permanentemente cercados por Gentios mais ou menos
insolentes, mas que geralmente dominam português. O território nem sequer
tinha nome próprio (Costa da Guiné, Rios da Guiné do Cabo Verde,
Senegâmbia, etc.) e segundo a então vigente Carta Constitucional, de 1826,
apenas compreendia Bissau e Cacheu (SILVA, 2010, p.19).
95
Neste sentido, depois das delimitações das fronteiras resultantes dos acordos entre
portugueses e franceses, em 1886, onde uma parte do território que pertencia à Guiné-Bissau
(Cassamanse e Ziguinchor) ficou sob tutela da França, a Guiné-Bissau foi designada, em
1879, como uma província independente, sendo desvinculada da subordinação administrativa
de Cabo Verde. Nesse ensejo, a aprovação do Estatuto da Província da Guiné-Bissau, em
1950, veio a consolidar o país como uma província ultramarina.
Diante disso, é importante ressaltar que, por muito tempo, a Guiné-Bissau era
reconhecida prioritariamente como Guiné Portuguesa, isto é, o território que participava do
ultramar português, sinalizando assim o pertencimento como uma colônia portuguesa; ou seja,
em 1951, a Guiné Portuguesa foi declarada província do ultramar, governada diretamente por
funcionários portugueses. Desta forma, o país passou a se chamar Guiné Portuguesa,
considerado colônia exclusivamente de Portugal.
Salienta-se que a região que hoje denominamos de Guiné-Bissau nem sempre foi o
mesmo território da chamada Costa da Guiné ou Costa Africana, ou melhor, Senegâmbia, pois
a divisão arbitrária da Conferência de Berlim, em 1884-1885, traçou fronteiras e separou
povos sem levar em conta as tradições culturais dos grupos étnicos existentes e suas
fronteiras, obedecendo, portanto, somente aos interesses econômicos.
E são esses limites territoriais estabelecidos nesta conferência que ainda perduram na
delimitação geográfica contemporânea dos diversos países do continente africano. Com
efeito, na partilha territorial de África aconteceram casos em que um mesmo povo ou
comunidade era dividido em vários subgrupos, de acordo com o número de candidatos
europeus, sem sequer atentar-se para as diferenças culturais dos povos, como também das
organizações políticas e sociais existentes, marcados por hostilidades, que tornavam difíceis
as suas adaptações às estruturas políticas e administrativas coloniais. Em síntese, a cronologia
histórica da Guiné-Bissau, que retrata a ocupação territorial do país:
PERÍODO
1446
1588
1614
1624-1630
1696
1707-1753
1753
1792
1879
EVENTO
Descoberta por Nuno Tristão
Cacheu povoado por Cabo Verde
Inicio da administração do Cacheu, sujeita a Cabo Verde
Ocupação Holandesa
Povoamento de Bissau por portugueses,
sujeita à administração de Cacheu
Bissau ficou abandonada
Bissau passa a ser uma colônia sujeita a Cabo Verde
Colônia independente de Bolama
União de Bissau ao Cacheu como colônias portuguesas
e separadas de Cabo Verde
96
1951
Província ultramarina da Guiné
Fonte: adaptação do livro de Aniceto Afonso; Carlos de Matos Gomes. Os anos da guerra colonial (19611975). Editora: Quidnovi Lisboa, 2010. p.169.
Mas, o que seria Guiné na época do tráfico, diferente da atual Guiné-Bissau ou
Guiné-Conacri ou Golfo da Guiné? Portanto, Guiné, Guinauha ou Gnawa eram os termos
usados para designar “terra de pretos”, derivado da palavra berbesca guinéus, que significava
negro (LEMOS, 1995). Assim, a Guiné na concepção dos portugueses foi ganhando
codinomes devido ao trânsito comercial, que se estabelecia na época, com Costa dos
Escravos, Costa do Ouro, Costa da Malagueta, Costa do Marfim, sendo classificada consoante
a predominância dos produtos comerciais que ali se vendiam. Por fim, quando da ocupação
efetiva, foi denominada de Guiné Portuguesa, sob regência da administração do Estado
colonial português, e mais tarde, depois da proclamação unilateral da independência em 1973,
foi denominada oficialmente de Guiné-Bissau.
Após a Guiné-Bissau ter sido desvinculada da administração de ilhas de Cabo Verde,
e tornar-se uma província independente, Bolama foi escolhida como capital da ocupação
efetiva. Portanto, Bolama passou a ser a primeira capital do país, por se tratar de uma ilha, o
recurso da via portuária articularia “benefícios comerciais em toda a região do Rio Grande de
Buba, proporcionado pelo desenvolvimento das “pontas” de produção agrícola e incremento
da recente cultura de mancarra, ou seja, amendoim” (SILVA, 2010, p.23).
A Ilha de Bolama é caracterizada pelas águas profundas de fácil navegação,
oferecendo também acesso aos comerciantes entre os rios Grande e Geba, bem como à subregião. Nesse contexto, foi por muitos anos rota comercial e objeto de disputa. Num primeiro
momento, serviu aos comerciantes nativos, através dos habitantes da costa (os beafadas,
papeis e banhuns), estabelecendo redes comerciais de trocas de produtos (noz de cola, sal,
ferro, algodão e malagueta, dentre outros). Num segundo momento, foi útil aos mercadores
europeus nos meados do século XVI quando da descoberta da Costa da Guiné na década de
1446. Essa é outra disputa que merece ser ressaltada, pois é o evento que veio dissipar a
hegemonia dos portugueses e seus aliados caboverdianos na corrida comercial na Costa da
Senegâmbia.
O que está subjacente na concorrência entre os nativos, portugueses e outros países
europeus é que “Bolama era cobiçada devido à sua localização geográfica estratégica em
relação às rotas comerciais entre os rios Grande e Geba, e devido à reputada salubridade do
ambiente e fertilidade do solo” (BROOKS, 1991, p.09). Foram essas características que
fizeram com que Bolama fosse escolhida como polo de expansão comercial com os países da
97
sub-região. Nesse âmbito, seguindo as formulações de George E. Brooks, sobre as tensões
imperiais na Costa da Guiné, no tocante ao estabelecimento de rotas comerciais, o autor
evidencia outros interesses que o permearam:
Durante os séculos XVIII e XIX, Bolama tornou-se centro de interesse de
imperialismos concorrenciais uma vez que africanos, euro-africanos,
europeus e americanos procuravam controlar seus portos e recursos quer
reais quer imaginários. No século XVIII, os comerciantes franceses
escolheram Bolama como base de expansão pra sul, a partir do Senegal.
Uma sociedade colonizadora britânica estabeleceu sem sucesso a colônia em
1792, e entre 1820 a 1830, os membros de American Colonization Society,
enalteceram as potencialidades de Bolama como parte de uma quimérica
“Nação afro-americana [...] no entanto, os mais lutaram pelo controle de
Bolama e o comércio dos rios vizinhos são os luso-africanos, e os caboverdianos, que desde o século XVIII concorreram com os anglo-africanos e
ingleses que operavam desde o rio Nunez até Serra leoa” (sic) (BROOKS,
1991, p.10).
A tentativa de criação de balizas pelas nações europeias rumo à disputa pela
hegemonia da Ilha de Bolama é talvez a questão que mais se salienta no ensaio de George E.
Brooks. A despeito de não haver evidências das fontes, no tocante ao povoamento da ilha
pelos grupos étnicos locais, e não obstante registrar-se a presença dos beafadas e bijagós
desenvolvendo atividade de agricultura, não houve o povoamento permanente, apesar de mais
tarde os bijagós passarem a reivindicar a posse da Ilha de Bolama.
Na esfera institucional e administrativa, foram instalados em Bolama o Palácio de
Governo, repartições judiciais, comissão municipal, escola primária, hospital, clero católico e
Capitania do Porto, além das casas comerciais e do Banco Ultramarino. Todos esses atributos
estão na base da construção e efetivação de um Estado colonial, que almejava a urbanização
das cidades, consolidando novos pilares para a sua administração. É verdade que não
podemos perder de vista a gênese do Estado colonial, baseada na exploração dos nativos, nos
abusos excessivos de poder, racismos e aniquilação cultural de todas as formas. Nesses
termos, há que se considerar a conquista da liberdade e autonomia dos povos da GuinéBissau, representados pelos movimentos da contestação e de luta pela independência, que
merecerá análise mais adiante.
Com efeito, a mudança de capital de Bolama para Bissau aconteceu em 1941,
justificada pelas dificuldades que a situação administrativa e as carências estruturais, que
Bolama apresentava para o desenvolvimento do governo colonial. A cidade de Bolama, além
de se situar na parte insular do país, de difícil acesso por via terrestre, contava com menor
número de população, além de não dispor de grande centro de comercialização.
98
Assim sendo, restaria à cidade de Bolama a função de centro político administrativo
da metrópole e sede editorial da publicação do Boletim Oficial da Guiné portuguesa, um
jornal de circulação nacional, que publicava desde as decisões administrativas e políticas da
administração colonial portuguesa até as obras literárias dos assimilados. “Tratava-se de uma
revista de grande cunho histórico da colônia portuguesa” (SILVA, 2010, p. 27).
Segundo António E. Duarte e Silva, a composição do quadro político administrativo
colonial aparece como ponto nodal, que marca a hierarquia entre os portugueses de origem, os
assimilados e os indígenas. Nesta ordem de ideias, o autor descreve a pirâmide social da
Guiné portuguesa:
A organização político-administrativa e a hierarquia colonial iam-se
instalando por todo o território, desdobrando-se em três níveis: no topo,
dirigentes e técnicos (de origem metropolitana), no nível intermédio,
funcionários da administração pública, patrões e empregados comerciais
(maiormente mestiços e cabo-verdianos); no nível inferior, os indígenas
(trabalhadores domésticos, artesãos, trabalhadores braçais, agricultores,
assalariados agrícolas nas pontas, etc.) (2010, p.27).
Ressalte-se que essa divisão não se limitava apenas ao setor administrativo, mas sim
abrangia toda a configuração social do país que estava hierarquicamente dividida em
civilizados, não civilizados, assimilados e “indígenas” ou gentios, distribuídos entre brancos,
pretos e mestiços. Esta divisão é característica da política do governo colonial baseado na
superioridade cultural e imposição das normas e costumes, como afirma Mendy (2005, p.15):
“Fundamentalmente, ser civilizado significava a internacionalização da arrogância racista dos
portugueses”.
O domínio de comércio e administração estava centrado nas mãos daqueles que eram
civilizados ou assimilados. António E. Duarte Silva (2010) traduz bem essa visão crítica:
[...] as distinções fundamentais eram entre civilizados (dotados de cidadania
portuguesa) e indígenas, por um lado, e entre portugueses e estrangeiros, por
outro. Classificou-se, primeiro, a população civilizada (categoria que passara
a abranger desde 1946 os então classificados como assimilados): havia, ao
todo, 8,32 residentes dos quais 1.501 eram originários da metrópole, 1.703
provinham de Cabo Verde e os restantes 4.644 da própria Guiné. Acresciam
366 estrangeiros, a maioria era libaneses. Daquele total de Civilizados
(residentes), 2.263 eram brancos, 4.568 mestiços, 1.478 negros e 11
indianos. A taxa de analfabetismo dos civilizados alcançava 43,54%. Quanto
à restante população, contaram-se aproximadamente 500.000 indígenas,
distribuídos por trinta grupos étnicos. (p.34).
De fato, o caso da Guiné-Bissau não foi diferente do resto da África no tocante às
alianças estabelecidas com o poder local, pois quando os portugueses chegaram encontraram
numerosos grupos étnicos estabelecidos e com uma estrutura dividida entre os que pertenciam
99
a uma sociedade vertical, isto é, grupos com forte experiência de poder estatal, como, por
exemplo, mandingas, fulas, manjacos, papeis, e outros grupos sem estrutura vertical
hierárquica de poder — balantas, felupes e baiotes, entre outros — e que eram consideradas
sociedades horizontais.
A população, de certo modo, era dividida em dois blocos: de um lado, a população
nativa (denominada pelos portugueses de indígena), não falantes do português; e, do outro,
uma pequena minoria constituída por grumetes, isto é, os cristianizados falantes de português.
Nesses dois blocos encontravam-se os grupos com uma organização hierarquizada (nobres,
homens livres, artesãos reagrupados em castas, ferreiros, entre outros) e alguns estavam
organizados em pequenos “Estados”, a exemplo dos fulas e mandingas, sendo que estes
últimos tinham o domínio do Império de Mali, eram considerados guerreiros e altos
comerciantes.
Os mandingas emigraram para a Costa Africana vindos do alto Níger entre os séculos
XIII e XIV e rapidamente se instalaram em diferentes pontos (Gâmbia, Cassamanse - no
Senegal - e Kaabú ou Gabú, na Guiné-Bissau). Nessa mesma direção, os fulas também foram
provenientes do Rio Nilo. Eram pastores nômades, que aos poucos se estabeleceram no
interior da Guiné-Bissau. Por outro lado, temos os grupos não islamizados, ou seja, os
chamados “animistas”,42 a exemplo dos manjacos, mancanhas, papeis, bijagós, balantas, etc.
Dentre os grupos referidos, é importante destacar que - exceto os balantas, que
careciam de uma estrutura organizativa vertical e sem classe dominante - os outros tinham
uma organização social hierarquizada nos moldes dos fulas e mandingas. Desta forma, os
portugueses se aliaram aos grupos de sociedade vertical com uma organização social rígida e
hierarquizada. Em contrapartida, eram-lhes oferecidas armas de fogo, que aumentavam a
dominação sobre os demais grupos étnicos. Assim sendo,
[…] o colonialismo português procurou utilizar os feudais fulas como
auxiliares da sua dominação e da sua exploração, sistema que ele adotou em
relação a outros povos da Guiné, seja utilizando os “notáveis” tradicionais,
seja fabricando completamente uma organização artificial de chefes
(PAIGC, 1974, p.51).
Convém observar que, além dos fulas, os grumetes (africanos cristianizados) também
serviram de intermediários entre os europeus e as etnias. Neste sentido, ao estabelecerem
alianças com as lideranças étnicas, atribuiu-se-lhes a função de intermediários nos entrepostos
comerciais.
42
Uma denominação depreciativa que os portugueses atribuíam aos adeptos de culturas tradicionais.
100
Desta forma, com a expansão de pontos comerciais e a necessidade de aumentar a
mão de obra e suprimir a despesa da administração colonial, o governo português criou, em
1903, um regulamento, que instituía o imposto de palhota43, sob responsabilidade dos chefes
locais. Cabe dizer que a institucionalização do imposto de palhota veio reforçar outros
impostos alfandegários já existentes. Com efeito, esse novo tributo gerou um mal estar no seio
das comunidades. Revoltas que mais tarde seriam decisivas no desencadear das guerras de
resistências étnicas contra os impostos arbitrários e a ocupação portuguesa na Guiné-Bissau, a
partir de 1903. Este assunto será abordado, mais adiante, neste trabalho.
É importante descrever como se estruturavam as etnias pertencentes a cada uma
dessas sociedades. Algumas delas – a exemplo de fulas, manjacos e mandingas – constituíamse em sociedades verticalizadas, e apresentavam características semifeudais. Todos os demais
integrantes do grupo possuíam um vínculo de dependência com o seu chefe. Além disso, os
fulas eram considerados conquistadores na Costa Africana por pertencerem a uma sociedade
hierarquicamente forte em termos de poder político. A estratificação social era rígida, e as
funções que cada membro do grupo desempenhava eram específicas. Cabe assinalar que –
tendo em conta a obediência às tradições culturais – “os camponeses fulas tinham, muitas
vezes, a tendência de seguir os seus chefes. Por isso, a sua mobilização exigiu um trabalho
profundo e intenso” (CABRAL, 1974, p.28).
2.3
Identidades e resistências à escravidão na Guiné-Bissau: a luta pela soberania
nacional
Elikia M’Bokolo (2011) afirma que as três décadas que vão de 1880 até as vésperas
da Primeira Guerra Mundial constituem-se, para o continente africano, em anos sombrios, que
concentram uma soma inédita de catástrofes, sendo um ponto inicial para analisar as
sucessivas violências, que assombraram o continente africano desde a chegada europeia na
Costa Africana, a exportação de milhões de africanos pelo mundo, até as resistências
desencadeadas por estes como forma de contraposição às terríveis humilhações e violências
promovidas pelas autoridades coloniais (M´BOKOLO, 2011, p.329).
43
Imposto de palhota era a contribuição predial aplicada pela propriedade das vivendas, baseadas nas
casas de colmo que serviam de habitação.
101
Esta seção tem como objetivo descrever como se desencadearam os processos de
resistências na Guiné “portuguesa”, tendo como protagonistas os seus habitantes. Por outro
lado, interessa desmistificar a concepção de passividade, a que foram submetidos os africanos
durante os séculos da colonização. Com efeito, esta descrição contribuirá para corrigir as
distorções eurocêntricas, as quais foram associadas ao passado do colonialismo na história da
Guiné-Bissau.
Saliento que não se trata de uma descrição completa e abrangente da história das
resistências na referida Guiné, apenas tento construir balizas para enaltecer a rica tradição de
resistência dos povos da Guiné-Bissau, que na visão eurocêntrica é desdenhada pela
historiografia colonial. Também não é do meu interesse, neste trabalho, fazer uma análise
detalhada de todos os grupos étnicos envolvidos nos processos de resistências na GuinéBissau, visto que demandaria outro estudo.
Contudo, farei a análise de alguns grupos específicos que tiveram uma contribuição
mais expressiva na tradição das resistências étnicas, o que possibilitará a compreensão das
funcionalidades políticas das campanhas de “pacificação” desencadeadas pelo regime
colonial.
Desde a chegada dos portugueses na Guiné-Bissau, em 1446, com objetivo inicial de
estabelecer trocas comerciais com os chamados “desdenhosamente por eles de gentios44”,
intermediados por alguns chefes locais, até a sua “partida forçosa”, em 1973, ano em que a
Guiné “portuguesa” passa a ser reconhecida pelo mundo afora como República da GuinéBissau, exaltando a soberania conquistada durante mais de uma década de árdua luta de
libertação nacional, assistiu-se às relações recheadas de injúrias, humilhações, submissões e
revoltas entre as partes.
Durante esse período de aproximadamente cinco séculos (1446 a 1974), os habitantes
da Guiné-Bissau travaram sangrentas lutas de resistências contra os colonialistas portugueses,
que oscilavam entre as questões inerentes à submissão ao pagamento de impostos, ao cultivo
forçado de produtos de exportação, trabalho forçado, serviço militar, obediência às
autoridades portuguesas, etc. Não obstante, os processos de resistência foram relativamente
dispersos, moldados pelas reações individuais, isoladas e fragmentadas de todos os grupos
étnicos, que gravitavam entre a revolta aberta e a resistência passiva.
44
Trata-se dos indígenas, ou seja, aqueles que na concepção colonial não eram civilizados, porque não sabiam
ler, escrever e falar português. Podemos dizer, por outro lado, que são aqueles bissau-guineenses agarrados às
suas tradições étnicas e que se orgulhavam de serem povos tradicionais .
102
Vários chefes locais se aliaram ao colonialismo e recusaram a participação nos
processos de resistências por acreditarem em benefícios destes no apoio para a consolidação
no poder nos seus Estados e outros privilégios, que poderiam usufruir dos portugueses
colonialistas, tornando-se assim seus reféns.
Neste contexto, “os chefes africanos dificilmente se aperceberam de que os ‘tratados
de amizade’ que assinaram poderiam arruinar a sua independência e soberania” (MENDY,
1994, p.43). Estes tratados com os chefes locais faziam parte das estratégias utilizadas pelos
portugueses para a consolidação da ocupação efetiva, além de estimular as rivalidades entre
os grupos étnicos. Ou seja, “o colonialismo português esforça-se por alimentar a desconfiança
e o ódio, cultivando os privilégios de casta, o regionalismo, o racismo, para melhor dominar e
explorar todos os africanos” (PAIGC, 1974, p.53).
Esclarece-se que nem todos os chefes locais das comunidades africanas aderiram aos
tratados de amizade com os colonialistas para desempenhar a função de auxiliares. Alguns
resistiram contra a ocupação e organizaram-se em frentes para combater os excessivos abusos
e imposições do poder colonial.
Desta forma, as resistências se intensificaram quando os colonialistas instituíram o
imposto de palhota em todas as regiões da Guiné dita portuguesa, que entrou em vigor a partir
de janeiro de 1904, na tentativa de consolidar o domínio da ocupação. Para facilitar a
cobrança deste imposto, os portugueses contaram mais uma vez com o apoio dos chefes locais
(seus aliados) e os régulos, que eram isentados do pagamento de imposto de palhota, e ainda
ganhavam pelos serviços prestados.
Os estudos de Clara Carvalho sobre a revitalização do poder tradicional e os
regulados manjacos da Guiné-Bissau elucidaram o papel de intermediários que alguns régulos
desempenharam durante o período colonial em África. Segundo a autora:
A política de reenquadramento dos antigos chefes tradicionais, da
indigitação de novos titulares e da criação de chefados, bem como da sua
integração no sistema administrativo colonial que, inclusive, transformou os
chefes em seus assalariados, foi seguida pelas diversas potencias
colonizadoras da África Ocidental. Uma das consequências desta política
administrativa consistiu na minoração da figura dos pequenos chefes locais
face a valorização dos chefes principais, e sobretudo, da transformação dos
dignitários locais em funcionários do Estado (CARVALHO, 2003, p.11).
Esse cenário de aliciamento dos chefes tradicionais, como funcionários
administrativos coloniais, é que facilitou a aplicação do imposto de palhota sobre habitações
dos indígenas, e não só como outras formas de exploração, que orientavam a política colonial.
Assim sendo,
103
[...] o recenseamento para o imposto de palhota implicava a recolha de
informação estatística vital acerca da população indígena, que estava
dividida em seis categorias, por idades, além de sexo e Estado civil. A
informação era importante não só para fins fiscais, mas também para outras
coisas, como por exemplo, trabalho forçado e serviço militar (MENDY,
1994, p.405).
Assim, as primeiras reações foram várias contra os abusos na coleta de impostos e na
imposição de trabalhos forçados. Algumas etnias, a exemplo dos fulas e mandingas - das
quais, devido à extensão das famílias que possuíam, cada chefe de família habitava numa casa
própria separada dos demais na mesma tabanca, apesar de pertencerem a uma linhagem devido à cobrança de imposto de palhota, passaram a habitar com os parentes numa mesma
casa, evitando o pagamento das taxas.
Esta, entre outras estratégias, faz parte das resistências desenhadas pelos nativos para
enfrentar a redução do número de palhotas. Os manjacos, mancanhas, felupes, dentre outros,
optaram por emigrar para territórios vizinhos de Casamanse para dar continuidade ao cultivo
dos produtos, que eram taxados na Guiné portuguesa, dentre outras estratégias traçadas pelos
grupos étnicos a fim de bloquear o imposto de palhota. Estas foram as primeiras reações
denominadas de resistências primárias.
Peter Karibe Mendy (1992) descreve a intenção desesperada dos portugueses após a
Conferência de Berlim, ou seja, em 1886; depois da fixação das fronteiras para consolidar a
Guiné portuguesa, Portugal ainda não havia concretizado uma ocupação efetiva do território.
Da Guiné chamada portuguesa existia apenas o nome formal. Não existia reconhecimento e
legitimidade da soberania portuguesa.
É nesse ensejo que os portugueses, ao instituírem o novo imposto de palhota em
1903, apostaram no restabelecimento da soberania, submissão dos nativos e exclusividade do
território. Contudo, as reações dos habitantes da Guiné desafiaram as autoridades portuguesas,
visto que todas as etnias responderam com veemência à tentativa de aplicação do imposto,
como citado acima.
Destaque-se que, na Guiné-Bissau, as resistências tiveram características regionais e
étnicas, devido à configuração social do país, sendo que cada grupo étnico pertence a uma
terra. É neste sentido que os processos de resistências étnicas foram desencadeados de forma
regional por cada grupo étnico. Todavia, a divisão não se limitava ao espaço geográfico, mas
também às tradições culturais destas etnias, ou seja, às formas de organização social e cultural
de cada sociedade. É nesse cenário de divisão do espaço geográfico e étnico que as primeiras
expedições portuguesas foram desencadeadas, a partir de 1886, e findas em 1897, contra os
104
balantas, os beafadas e os oincas, caracteristicamente identificados como habitantes do litoral
do país.
Em seguida, as expedições seguiram contra os papeis da Ilha de Bissau, em 1900, e
mais tarde contra os bijagós de Formosa, em 1906. Importante salientar que a intensificação
definitiva das campanhas de “pacificação45”, realizadas de 1913 até 1936, foi comandada pelo
sanguinário Capitão Teixeira Pinto46 do Estado-Maior da Colônia.
Teixeira Pinto comandou as expedições contra os nativos na Guiné-Bissau elegendo
como principais aliados os grumetes e Abdul Injai47, cuja função era de intermediação entre as
autoridades coloniais e os habitantes locais. Desta forma, para melhor reconhecimento das
regiões, o capitão realizou primeiro um estudo minucioso, que objetivava o mapeamento das
regiões críticas de expedições e o contato com algumas regiões, disfarçado de contabilista de
casa de comércio francesa, a fim de espreitar os nativos temidos pelas autoridades
portuguesas, possibilitando a organização dos ataques contra os revoltados.
Nessa conjuntura, cotejando a cronologia histórica, pode-se classificar os processos
de resistências em duas etapas: a primeira são as resistências étnicas, denominadas de
“resistências primárias”, comandadas por alguns segmentos étnicos contra a ocupação
portuguesa entre 1913 e 1936; as chamadas “resistências secundárias” tiveram o seu marco a
partir de 1952, quando as primeiras organizações urbanas clandestinas surgiram lideradas pela
elite intelectual local contra a administração portuguesa. Este assunto será abordado mais
adiante neste capitulo.
De forma sucinta, seguindo a cronologia e a divisão do espaço geográfico e étnico na
Guiné-Bissau, as campanhas de pacificação comandadas pelo Capitão Teixeira Pinto
começaram na região de Oio contra os Oincas, em 1913, sob a condição para o término dos
ataques se “os indígenas entregassem todas as armas e cumprissem o pagamento do imposto
de palhota, sendo que os que estavam envolvidos teriam que pagar impostos de três anos
45
Trata-se do nome dado pelos portugueses à sua tentativa de dominar as etnias existentes na Guiné pela via
militar no inicio do século XX.
46
João Teixeira Pinto, natural de Angola, era neto de um oficial de exército português, graduou-se na academia
militar em Portugal, regressou a Angola em 1902, onde participou duma quantidade de operações contra os
indígenas rebeldes, obtendo o almejado titulo de Kurika, a mais elevada condecoração por mérito militar. Em
setembro de 1912, desembarcou em Bolama (Guiné-Bissau) onde foi nomeado chefe do Estado-Maior a fim
de comandar as campanhas de pacificação contra os indígenas, promovendo o estabelecimento da soberania
portuguesa na Guiné (MENDY, 1994, p.218).
47
Tratava-se de um fugitivo senegalês que residia na Guiné. Considerado homem valente, cruel e de sangue
frio, era temido pela sua hostilidade, também considerado como braço direito do capitão Teixeira Pinto. Os
estudos de Peter Karibe Mendy (1994, p.250) ressaltam que Addul Injai e o seu bando de
mercenáriosdesempenharam papel importante nas campanhas de pacificação, que possibilitaram as tão
celebradas vitórias portuguesas. A utilização da sua quadrilha como tropa de choque foi decisiva para quebrar
a determinação dos insubmissos.
105
anteriores, e os que não estavam envolvidos na reivindicação pagariam apenas dois anos, de
1912-1913” (MENDY, 1994, p.222).
Em 1914, foi a vez dos manjacos da região de Cacheu, que constituíam os principais
contestadores da administração portuguesa. Nessa campanha, também foram incluídos os
territórios dos mancanhas da região de Bula e Có, que contestaram de forma desafiadora
através dos chefes locais. Depois dos territórios mancanhas, Teixeira Pinto e seus aliados
seguiram para tabanka, dos balantas Binar e Nhacra, distribuindo a violência, dando
continuidade à missão de intimidar, assassinar os resistentes, além de pilhar, e incendiar as
tabancas indefesas.
No ano de 1915 seguiu-se a pacificação contra os papeis da Ilha de Bissau,
sinalizando para uma ocupação definitiva e permanente da Ilha de Bissau. Neste caso, os
papeis não aceitaram a imposição de impostos arbitrários, ofereceram resistência, na qual os
portugueses sofreram grandes baixas, como também incendiaram os bairros dos grumetes
(assimilados) aliados aos portugueses. Em resposta a essa ofensiva, os portugueses proibiram
todas as relações comerciais com os papeis, até sua submissão.
Com efeito, também, os balantas, os bijagós e os manjacos recusaram pagar impostos
e repudiaram a soberania portuguesa, desencadeando, assim, operações onde assassinaram-se
tanto portugueses como seus aliados, os assimilados. Estas ações coletivas visavam a
demarcar a autonomia das identidades étnicas locais no tocante à preservação das suas terras e
culturas contra a invasão portuguesa, a ponto de:
Em fins de 1915, os manjacos do Xuro assassinaram o administrador de
Cacheu e chacinaram a tripulação do motor “Cacine”, tendo sido necessário
enviar uma coluna de operação para repor a ordem; em Março de 1917, foi
organizada uma coluna móvel à ilha de Canhabaque, a fim de aí estabelecer
um posto militar, o que não foi possível devido à resistência dos Bijagós, que
abriram fogo assim que a força desembarcou. Já em 1919, o régulo de Cuór,
Abdul Injai, que tão relevante serviços prestara no comando dos auxiliares
de Teixeira Pinto, começou a recusar acatar as ordens do governo e acabou
por ser destituído e deportado, juntamente com 13 dos seus mais importantes
partidários. Abdul Injai veio morrer, anos depois, em Cabo Verde. (LEMOS,
1996, p.65).
Não obstante, em Bissau, antes da chegada dos portugueses, já existia grandes
rivalidades entre os papeis de diferentes linhagens (os de Antula e os de Intim), cada uma
dessas linhagens contava com apoio de outros grupos étnicos ou dos chamados grumetes48.
48
Inicialmente, a palavra grumete designava os criados livres dos lançados e deles próprios, utilizando-os com
freqüência como remadores. Muitas vezes, esses grumetes adotaram o nome, a língua e a religião de quem os
protegia. Com o correr do tempo, dessa integração mais ou menos profunda dos lançados na sociedade
africana, resulta nas praças (Cacheu, Bissau, Bolama, etc.) dois tipos de família: uma que, apesar dos
106
Neste sentido, enfatiza-se que Bissau sempre foi território de disputa acirrada, não somente de
portugueses com os nativos, bem como entre os próprios nativos.
Destaca-se que, apesar da existência de estratificação social marcante nestas etnias
bissau-guineenses, as diferenças antagônicas de classes não os impediram de unir-se contra a
opressão colonial e lutar pela obtenção da liberdade. Certamente, o inimigo comum forjou a
unidade na luta colonial, ou seja, a subordinação imposta pela administração portuguesa
atenuou a rivalidade entre as etnias, promovendo a unidade contra a ocupação. Não obstante,
não se dissiparam as diferenças de classes e hierarquias presentes nestas sociedades.
Como vimos, as campanhas de “pacificação” foram desencadeadas separadamente
conforme as regiões. Com o término das guerras contra os papeis de Bissau, em 1915, foi a
vez das ilhas dos Bijagós, região considerada crítica para a soberania portuguesa. Desta
forma, a organização da guerrilha contra os bijagós, da Ilha de Canhaba, iniciou-se em 1917
com a tentativa de implantação de um posto militar. Para os portugueses, “esta ilha é a prova
de desrespeito para com a nossa soberania, cada vez mais acentuada, e o estado de
insubmissão torna-se um péssimo exemplo para os povos das outras ilhas” (MENDY, 1992,
p.44).
Estas campanhas foram excessivamente sangrentas, pois os portugueses utilizaram-se
de toda a artilharia pesada para terminar com as resistências dos bijagós. O recurso à
infantaria organizada e à violência extrema, incendiando as tabancas (aldeias), com chacinas,
pilhagens, destruição das propriedades, fizeram com que os bijagós abandonassem as
tabancas e procurassem refúgio nas florestas.
Sem dúvida, foi uma das campanhas mais violentas, caracterizada por uma guerra
desigual, já que os nativos de uma forma geral só dispunham de flechas e armas artesanais,
que nada equivaliam em relação a uma artilharia portuguesa. Contudo, resistiram às batalhas
causando também baixas aos portugueses, graças ao recurso das tradições religiosas (uso da
arte e da feitiçaria), uma das importantes “armas” no combate à exploração e à opressão
portuguesa mesmo depois, nas frentes da luta armada de libertação nacional.
Durante o período colonial, vários relatos evidenciam o papel dos tradicionalistas (os
guardiões das tradições ancestrais, isto é, os sacerdotes e os adivinhos) na organização e
coordenação das guerras. Amílcar Cabral não subestimou o poder dos mágicos e o recurso aos
amuletos como forma de se proteger das balas e obter sucesso na luta armada.
elementos culturais europeus recebidos, mantém uma estreita ligação cultural e econômica com a família
africana; outra, cujos membros haviam assimilado mais profundamente a cultura europeia e que faziam parte
da elite política e comercial local (LEMOS & MATOSO, 1996, p.25-26).
107
Entretanto, ressaltou as limitações destes credos tradicionais no tocante à prática
militar. Uma das estratégias usadas pelos portugueses para pilhar as ilhas e prender os
produtos alimentícios, foi forjar a derrota dos bijagós após uma intensa luta em 1936. Foi
somente na década de 1930 que se registrou a completa ocupação portuguesa no território da
Guiné-Bissau, ano que marca o término das “campanhas” de pacificação nas ilhas de Bijagós,
as denominadas resistências étnicas, obrigando assim os povos da ilha a cumprirem o
pagamento de impostos.
O que está subjacente nestas resistências é o fato dos colonialistas limitarem a
liberdade dos bissau-guineenses, impondo a obediência total ao sistema colonial, além de
postular a aniquilação cultural dos nativos. O depoimento de Masemba, um chefe tanzaniano,
retrata bem a reafirmação da soberania e a independência, almejados pelos africanos: “Eu
procuro uma razão por que lhe deva obedecer e não encontro nem a mais pequena. Se o que
quer são relações amistosas, muito bem. Estou pronto para isso agora e sempre, mas nunca
para ser seu súdito” (MENDY, 1994, p.37).
Em linhas gerais, o que impulsionou tais resistências foi a destituição do poder aos
africanos, os abusos excessivos e a imposição cultural, como também a falta da liberdade, a
soberania e a independência. Importante ressaltar que a pressão e a dominação colonial não
cessaram com o término das campanhas de “pacificação”, muito pelo contrário, ganharam um
contorno político e ideológico com os movimentos nacionalistas para a reivindicação das
independências. É neste contexto que as diversas configurações étnicas do país manifestaram,
através da unidade étnica, protestos coletivos contra a subjugação colonial.
Nos seus estudos, Elikia M´Bokolo afirma que:
[…] as resistências africanas não foram apenas produtos de unidades
políticas e dos grupos sociais que existiam antes da colonização,
mobilizaram também forças sociais novas resultantes da própria dinâmica do
processo colonial e suscitaram fecundas organizações pré-coloniais. (2011,
p. 389).
Apesar de todas as resistências organizadas por grupos étnicos, a violência dos portugueses
foi ganhando maiores proporções. Os colonialistas portugueses aliaram à ocupação não só a
repressão como também o racismo, a perseguição das crenças, tortura, massacres, mortes,
recursos utilizados como forma de intimidar os nativos, no que se refere aos levantes e à
resistência contra a imposição colonial.
Essas revoltas dos povos nativos não só exprimiram, de um lado, o ódio do povo em relação à
dominação portuguesa, no tocante à recusa total de pagamentos excessivos de impostos e à
108
submissão da soberania portuguesa, como também forjaram a conscientização da unidade
para a luta de libertação nacional, como explicita Davidson:
[...] o grosso modo das populações colonizadas permaneceu dentro do seu
próprio quadro histórico de crenças e de comportamento que também
procuraram utilizar na sua autodefesa. Lutaram contra os invasores em
muitas duras batalhas. Depois de derrotados, ergueram-se em incontáveis
rebeliões que foram reprimidas mediante o que se tornou conhecido como
‘campanhas de pacificação’ (1976, p.32).
Essas reivindicações contra o sistema colonial, pelos distintos grupos étnicos do país,
objetivavam lutar contra a opressão e o restabelecimento da liberdade e, neste sentido, não
tinham características de movimentos de contestação para a independência e autonomia
política.
Na contramão dos fatos, surgem as primeiras manifestações de caráter reivindicativo,
que almejavam a integração na sociedade portuguesa conduzida por uma pequena elite
assimilada da Guiné-Bissau denominada de protonacionalismo bissau-guineense; a Liga
Guineense, criada por iniciativa de uma pequena elite dos filhos de Bolama, surgiu como a
primeira organização política do país de convicção republicana, ainda que de forma tímida,
fundada em 1910, pelos mestiços e grumetes de Bolama.
Entretanto, a literatura existente, acerca desta organização, é divergente, alguns
apontam que a Liga não objetivava a contestação da independência, mas sim “propunha
apenas estabelecer escolas, trabalhar na medida das suas forças para o progresso e
desenvolvimento da Guiné Portuguesa e, sendo assim, nenhum destes desejos e objetivos
desafiavam direta ou indiretamente as ambições imperialistas portuguesas” (MENDY, 1994,
p.329).
Outros lhe atribuem um caráter político (Barreto 1938), mas, no entanto, o pouco que
se sabe sobre a Liga é que esta era constituída por comerciantes, artífices, trabalhadores
marítimos, na sua maioria de Bolama e Bissau. Ou seja, a Liga englobava uma categoria
sociocultural heterogênea constituída de bissau-guineenses de origem e bissau-guineenses de
segmento social caboverdiano além de grumetes. Também faziam parte da Liga os filhos
(legítimos ou não) de comerciantes portugueses, tendo contestações com o Tribunal da Guiné
portuguesa, para fazerem reconhecer a sua herança (PELISSIER, 1989, p.130).
Para Mário Pinto de Andrade, o protonacionalismo surgiu na emergência de um
discurso de caráter fragmentário face ao posicionamento do sistema colonial. Segundo o
autor, este movimento teve sua propagação nas colônias portuguesas e na metrópole,
impulsionado por uma facção social onde a intelligentsia exercia a hegemonia e se erigiu
109
como portavoz das populações anônimas. Portanto, trata-se de uma produção ideológica, que
se insere nos movimentos libertadores da época (1997, p.77).
Neste sentido, pode-se afirmar que: a Liga Guineense era uma organização exclusiva
da elite intelectual com apoio dos grumetes; não se alargava para os gentios ou os nativos
residentes; e sua preocupação centrava-se na propagação da instrução e promoção do
desenvolvimento moral e intelectual dos seus membros. A instituição ambicionava constituir
uma contrassociedade à sociedade colonial, no que se refere à formação intelectual dos
membros. Ressalte-se que “todos se proclamavam portugueses”.
Os não assimilados, o gentio bissau-guineense, só entram nos seus esquemas como
vizinhos e, muitas vezes, como inimigos de grumetes, dos quais se faziam portavozes.
Portanto, a Liga procurava mais uma consagração social, do que um verdadeiro embrião de
organização anticolonial (PELISSIER,1989, p.129-130).
Apesar do trabalho etnográfico de Peter Karibe Mendy (1994, p.330) deixar claro
que a Liga “não tinha quaisquer ambições políticas, que a sua significação política nasceu da
crescente hostilidade gerada por uma sensibilidade exagerada às críticas e tentativas de ligar a
associação com as revoltas dos gentios”, pois, os objetivos desta organização nas suas
entrelinhas possuíam caráter político, ao criar uma sociedade de letrados, estimulá-los-ia mais
tarde a se posicionarem contra o sistema colonialista português.
Além disso, a Liga marca o nascimento embrionário de uma elite política bissauguineense, que marcou a vida cultural e política da colônia, antes da hegemonia dos
caboverdianos nesse território. Tem-se um marco do nascimento da elite política na colônia
portuguesa imprescindível para a origem do nacionalismo moderno da Guiné-Bissau. Ou seja,
na feliz expressão de Mário de Andrade, os protonacionalistas devem ser considerados como
precursores do nacionalismo moderno (ANDRADE, 1997, p.185).
Dos relatos acerca dessa instituição, depreendemos que a Liga Guineense - ou, como
era conhecida, Liga das Figuras da Guiné Portuguesa - era uma organização temida pelos
colonialistas. Apesar de não pautar-se pela política de ruptura com a administração colonial,
advogava pela igualdade dos direitos entre os portugueses e os africanos residentes,
contestando a subserviência, a dependência e recusando a mediação dos intermediários com a
administração colonial.
Por isso, eram agremiações de figuras genuinamente da Guiné-Bissau, constituídas
pela camada de intelectuais, que não compactuavam com a opressão dos colonialistas
portugueses aos gentios, e postulavam pelo fim da divisão da sociedade entre os “civilizados”
110
e gentios, propondo a abolição à emissão da dupla carteira de identidade (bilhete de
identidade), de um lado, dos que eram gentios, e do outro, dos que eram civilizados:
[...] os protonacionalistas desfraldam a bandeira do protesto contra as leis
iníquas de excepção e inscrevem a sua opção no quadro de uma grande
pátria lusitana. [...] daí que a matriz dos discursos repouse essencialmente
sobre os dois elementos: a pertença ao mundo negro e a reclamação do
estatuto jurídico, social e político de africanos portugueses. (ANDRADE,
1997, p. 183).
É notório que a Liga Guineense em Bolama apresentava, nos meados de século XIX
e início do século XX, uma elite urbana de expressiva representação social, que agregava os
régulos Adulai Canté e Oliveira Sanca nas suas pautas de discussões, articulando propostas
para uma integração dos bissau-guineenses na administração colonial. Por estes motivos, as
autoridades coloniais sentiram-se pressionadas e desenharam estratégias para a mudança da
capital de Bolama para Bissau. Isso demonstra que desde os meados do século XVIII havia
bissau-guineenses negros com domínio da instrução.
Com efeito, estes fatos foram posteriores à criação dos movimentos que vieram a
reivindicar a libertação nacional na década de 1950, ou seja, antes da chegada de Amílcar
Cabral à Guiné-Bissau e do surgimento do PAIGC, em 1959, ano que marca a sua fundação
depois da versão oficial (1956). Por esta razão, é importante esclarecer as distorções na
historiografia bissau-guineense, de que a elite intelectual do país se constitui com a chegada
de Amílcar Cabral e dos seus conterrâneos caboverdianos.
A Liga Guineense foi dissolvida pela administração colonial depois da campanha de
pacificação contra os papeis de Bissau em 1915, sendo seus seguidores acusados pelo
comandante Teixeira Pinto de instigarem a revolta dos “gentios”, isto é, dos papeis, por se
identificarem com as suas origens. Deste modo, a Liga foi silenciada e assim a Guiné-Bissau
perdeu a sua elite nativa nessa década.
Em defesa dos membros da Liga, o advogado caboverdiano Loff de Vasconcelhos
afirma:
[...] eram e são contrários as guerras indígenas, porque elas só trazem o
retrocesso desta colônia, a emigração em massa dos indígenas para a
fronteira francesa, a paralisação de comércio, do trabalho indígena, a
diminuição das receitas da província, a miséria, o pranto e a dor (MENDY,
1994, p.334).
Em linhas gerais, a Liga Guineense, apesar de se opor à pacificação com os
indígenas no tocante à aplicação arbitrária do imposto de palhota, ainda assim é acusada de
defensora de interesses portugueses e de lealdade ao governo português. Assim como a Liga
Guineense, a Liga Angolana também é acusada de se identificar com as autoridades
111
portuguesas e prestar colaboração durante as revoltas contra os nativos. Um fato semelhante
aconteceu em Moçambique com o Grêmio Africano de Lourenço Marques e a Liga dos
Interesses Indígenas de São Tomé e Príncipe, ambos acusados de advogarem a lealdade ao
governo português, opondo-se às revoltas dos indígenas.
Mario Pinto de Andrade(1997) descreve com pertinência a configuração social das
agremiações que se constituíram nas colônias portuguesas, em particular de Angola, São
Tomé e Príncipe e Moçambique, que objetivavam a progressão, ou seja, a promoção do
desenvolvimento moral e intelectual dos sócios. Seguindo Andrade,
A explosão organizacional nas colônias não foi pacifica: os poderes locais
levantavam obstáculos à constituição das associações nativas, protelavam a
aprovação dos seus estatutos e, em determinadas circunstancias, quando lhes
imputavam responsabilidades no levantamento das populações, puseram
termo as suas atividades, notoriamente em Angola e na Guiné (1997, p.88).
Seguindo a mesma lógica da Liga Guineense, surge em Angola a denominada Liga
Angolana, fundada no ano de 1912, e que tinha como presidente João de Almeida Campos. A
entidade era formada majoritariamente por negros e mestiços angolanos, e por africanos que
não eram assimilados, os chamados na Guiné-Bissau de gentios. Tinha como objetivo
defender os interesses dos seus membros no tocante à inserção social na sociedade colonial,
fazendo frente ao estatuto colonial.
Em paralelo à Liga Angolana, surge o Grêmio dos Africanos de Luanda, formado,
principalmente, por mestiços mais claros e brancos que nasceram em Angola. Ressalte-se que
assim como a Liga Guineense, o Grêmio dos Africanos de Luanda conglomerava elementos
heterogêneos na sua composição, inclusive filhos de europeus nascidos localmente. Esta
situação vai criar cisões internas entre as organizações angolanas baseadas na questão racial49.
Importante frisar que pelo perfil das ligas, que visavam à reivindicação do nacionalismo
integrativo, todas essas organizações tiveram seus dias contados, pois a Liga Angolana
decretou o seu enceramento em 1915, vitima da perseguição política (ANDRADE, 1997).
Surge em Moçambique, em 1908, o denominado Grêmio Africano de Lourenço
Marques, mas que terá seu estatuto aprovado só em 1920. A sua constituição se diferencia das
49
Assim, a ANANGOLA dos anos 1930 tal como o seu predecessor, o Grêmio Africano dos anos 1910, atraiu
principalmente os mestiços mais claros e incluiu alguns brancos nascidos em Angola, e os seus membros
sentiam-se cultural e socialmente superiores aos da sua rival, a Liga Nacional Africana. Esta que foi uma
continuação da Liga Angolana era em grande parte composta de mestiços mais escuros e negros, incluindo uma
percentagem muito maior de naturais de distritos e vilas do interior, tais como Malange, Dondo ou Catete
(OLIVEIRA, 2009, p.02).
112
ligas anteriores, pois pautava-se principalmente nos grupos religiosos (católicos e
protestantes) falantes de língua portuguesa; deste modo:
O primeiro grupo era constituído por mulatos e mestiços (afro-europeus ou
afro-goeses), e negros, enquanto no segundo predominavam os negros.
Outros grupos e indivíduos de origem diversa, convergirão para o Grêmio, o
que reflete bem a diversificação e a intensidade das relações no seio da
comunidade nativa de Lourenço Marques, neste período (ROCHA, apud
OLIVEIRA, 2009, p.02).
A Liga dos Interesses Indígenas de São Tomé e Príncipe foi criada em 1910, com o
objetivo de “servir de laço fraternal à união de todas as colônias, promovendo a defesa dos
seus legítimos direitos e empenhando-se em elevar o seu nível intelectual e moral”; era
constituída por nativos de São Tomé, filhos de portugueses nascidos na região e pessoas
provenientes das ilhas adjacentes (ANDRADE. 1997 p.86).
Já Cabo Verde congregou várias organizações de natureza política, civil e sindical,
que objetivavam os direitos republicanos igualitários para os nativos. E assim surge, em 1912,
“o Grupo Republicano Democrático de Cabo Verde, na cidade de Praia. Em 1913 surge a
Associação Operária 1º de Dezembro, em Mindelo, que se propunha a estabelecer uma caixa
econômica de ajuda mútua” (ANDRADE, 1997, p.88). O conjunto de instituições criadas
passou a configurar o seguinte quadro:
Cabo Verde
Guiné
Associação
Operária 1º de
dezembro 1913
Centro Escolar
Republicano
(1911)
Liga Bissauguineense (1910)
São Tomé
e Príncipe
Liga dos
interesses
indígenas de S.
Tomé e Príncipe
(1910)
Grêmio de S.
Tomé (1906)
Angola
Moçambique
Liga Angola
(1912)
Grêmio Africano de
Lourenço Marques
(embora existindo
desde 1908 os seus
estatutos só foram
aprovados em
1920)
Grêmio Africano
(1913)
Caixa Econômica
de S.Tomé (1905)
Quadro Ilustrativo do surgimento das ligas e grêmios nas colônias portuguesas de 1905 a 1920.
Fonte: Uma adaptação de Mário Pinto de Andrade (1997, p.87).
Em linhas gerais, o que fica subjacente nestas organizações – tanto na Liga BissauGuineense quanto nas de Angola, São Tomé e Moçambique – é que tinham uma ideologia
política diferente da dos estudantes da Casa do Império (CEI) em Lisboa, cuja ideologia
política era de influência pan-africanista, os quais reivindicavam a independência, a
autonomia e a África para os africanos, ao passo que as ligas defendiam o regionalismo
113
africano, postulando uma cooperação leal e afinidades culturais entre os portugueses e os
nativos, rumando para uma política de inclusão social e promoção de direitos iguais dos
africanos, traduzida no slogan “A África também para os africanos”50.
2.4
A criação dos primeiros partidos políticos e movimentos contestatórios
A assertiva de Amílcar Cabral51 – reforçada por Mendy (1994) – de que a tradição de
resistência do povo da Guiné-Bissau não teve término com a guerra contra os “indígenas” nas
campanhas de “pacificação” é um ponto inicial para analisar as organizações políticas urbanas
de cunho nacionalista, criadas pelos filhos da terra com intuito de prosseguir as reivindicações
contra a submissão à dominação estrangeira. A primeira onda de resistência veio a reforçar a
segunda, dando forma à contestação definitiva que serviria não apenas para a liberdade e
autonomia, mas também como base para a conquista total da independência.
Cabe repetir que, na Guiné portuguesa, foram os indivíduos hierarquicamente
denominados como assimilados (civilizados, grumetes, mestiços, funcionários administrativos
e pequenos comerciantes, entre outros privilegiados pelo colonialismo português, que
colaboravam direta ou indiretamente com o empreendimento colonial), que, contra a estrutura
colonial portuguesa, reivindicaram a integração e a participação na sociedade e política
colonial, como também o fim dos abusos e injustiças, e a viabilização da independência
política, pois ansiavam também a participação no poder do seu país.
É nesse cenário que proliferaram os movimentos nacionalistas de reivindicação para
a independência política e econômica da Guiné portuguesa, as denominadas resistências
secundárias no ano de 1952, ressaltando que todos estes movimentos comungavam de um
mesmo objetivo: conquista da autonomia política e independência total.
Analisando com cuidado a tese da contestação política desses movimentos, cabe
também indagar: a quem interessava a independência na Guiné-Bissau? Em resposta,
localizamos os interesses de uma elite intelectual bissau-guineense, buscando autonomia,
liberdade, soberania e independência dos filhos da Guiné-Bissau. Essa elite organizou vários
movimentos clandestinos a partir da década de 1950, para pensar o projeto de nação e
50
Baseado no discurso proferido por Marcus Garvey, África para africanos e para todos outros povos pretos do
mundo, o presidente da Liga São Tomé e Principe, Dr. José António de Magalhães, repudia e conclama a defesa
da África em que os brancos também possuem direitos e os africanos, por sua vez, imploram para serem
incluídos no seu proprio país, e ainda desempenhando papéis subalternos (OLIVEIRA, 2009).
51
Arma da Teoria, 1980.
114
promover a articulação política (tanto a nível interno quanto externo), para garantir a
legitimidade das ações contra a ocupação portuguesa.
A estas organizações – que denominamos de resistências secundárias, rubricadas
pelas elites urbanas – couberam a responsabilidade de culminar com a luta armada de
libertação nacional, em 1963. Tais grupos eram associações de bairro, clubes desportivos,
dirigidos pelos assimilados e intelectuais, os quais eram funcionários das grandes casas
comerciais coloniais (Casa Gouveia, Banco Ultramarino, dentre outros), que reivindicavam
dos seus patrões ações contra o racismo e a discriminação racial no serviço público colonial, o
trabalho forçado, as más condições de trabalho, os salários baixos, a falta de educação para os
nativos, e a favor do reconhecimento e liberdade para os povos da Guiné-Bissau.
É a partir desse período pós-Segunda Guerra Mundial que as reivindicações de cunho
nacionalista proliferaram na Guiné-Bissau, representadas por várias organizações, sinalizando
o início dos movimentos denominados de “nacionalismo incipiente”. A questão que está na
origem do nacionalismo – não só na Guiné-Bissau, como também em Angola, Moçambique,
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – deve-se excepcionalmente à política assimilacionista
portuguesa, que ambicionava formar cultural e politicamente um grupo de indivíduos, que
estabeleceriam uma relação de lealdade com o governo português, isto é, africanos que seriam
intermediários entre o sistema colonial e comunidades locais, objetivando assim a
consolidação do domínio português nos territórios africanos.
Posteriormente ao período da campanha de “pacificação”, em 1936, o governo
português nomeou uma nova administração sob comando de Sarmento Rodrigues52, que se
encarregaria de implementar uma nova política de instalação e exploração do sistema colonial
português na Guiné-Bissau, objetivando “afastar o emblema pejorativo de ‘imperialista’ de
que Portugal era acusado nos meios internacionais, e defendendo a correspondência entre a
unidade do Estado federal e a unidade das populações ultramarinas e metropolitanas”
(SILVA, 2010, p.59).
52
O mandato de Sarmento Rodrigues correspondeu a um período de particular coesão e progresso na história
colonial da Guiné. No fundo, correspondeu também ao apogeu do sistema colonial português, muito embora,
quanto à Guiné, além da sua pequena dimensão, seja de destacar duas particularidades: o papel dos
caboverdianos e a proliferação étnica. Mantendo a política de aliança com os muçulmanos, sobretudo fulas,
Sarmento Rodrigues desenvolveu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de
dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços
(que também dominavam o setor comercial), admitindo alguns mestiços bissau-guineenses de cor escura.
Além disso, restringiu os poderes dos régulos e foi intransigente na proibição da violência sobre os indígenas,
atitude que teria provocado diversas lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam (SILVA,
2010, p.44).
115
Desta forma, dentre todas as colônias portuguesas sob domínio, a Guiné-Bissau
desempenhava pouca importância no quadro da administração. Não só pelo fato de ter havido
grandes resistências étnicas que impossibilitaram, inicialmente, a efetivação do domínio,
como também – e não podemos perder isto de vista – porque a cidade de Bissau, apesar de
inicialmente apresentar condições favoráveis por dispor de rios navegáveis, que facilitavam a
aproximação com as regiões vizinhas, na concepção dos portugueses, era precária em todos os
sentidos, principalmente, no que se refere à estrutura urbana. Sem condições mínimas de
sobrevivência, pois não tinha estradas e o fornecimento da energia elétrica se limitava aos
bairros dos civilizados, enfim faltava um pouco de tudo na cidade, especialmente nos bairros
dos “indígenas”.
Por outro lado, Bissau era considerada um lugar pouco favorável para a permanência
devido ao desenvolvimento de certas doenças tropicais, tais como febre amarela, paludismo
(malária), dentre outras. Com isto, Bissau passaria prioritariamente a ocupar o lugar de
residência temporária para os portugueses, para o desenvolvimento do comércio, já que o
território apresentava infinitas potencialidades para a prática da agricultura. Nas formulações
de Maria Manuela Lucas,
Angola e Moçambique foram, desde a independência do Brasil, as duas
grandes colônias portuguesas de África, às quais a metrópole voltava a maior
atenção ao passo que a Guiné ocupava, desde o início, um lugar pouco
importante. Era a única que dependia exclusivamente dos capitais da
metrópole e tinha uma condição subalterna resultante da sua união com Cabo
Verde. Pesava sobre ela a má reputação da insalubridade e do paludismo, por
isso mesmo tinha sido apenas, até aí, um mercado bem abastecido de
escravos. As condições climáticas eram consideradas pouco propícias à
fixação dos europeus. Quanto às gentes, era costume afirmar-se serem as
mais desvairadas e rebeldes e possuírem costumes bizarros. Por isso, era
essencialmente a ralé do Reino que ali se fixava vivendo em palhotas
miseráveis, fazendo comércio e pagando impostos aos chefes indígenas
(apud FRANCO, 2009, p.40).
Com efeito, mesmo com as alegadas condições climáticas pouco propícias para a
fixação no país das autoridades coloniais portuguesas, criaram divisões no país, as quais
ostentaram racismos sem receios e concederam privilégios àqueles que, a todo o custo,
tentavam imitar e reproduzir a cultura portuguesa.
Desse modo, a cidade de Bissau estava hierarquizada entre os que sabiam ler e
escrever, os assimilados e os nativos, aqueles que não se socializavam com o costume
português, isto é, não eram cristons assimilados e nem tinham domínio da língua portuguesa.
Importante dizer que os cristons eram os indivíduos de ascendência africana, que adotaram a
religião católica e a língua portuguesa como categoria de uma identidade social europeia.
116
Neste sentido, a cidade de Bissau, no final do século XIX e início do século XX, estava
caracterizada pelo sentimento exacerbado de pertença de castas, linhagens e grupos étnicos.
Assim sendo,
[…] em termos de estratificação social, a Guiné colonial da segunda metade
do século XIX caracterizava-se por linhas de clivagem em volta de várias
camadas sociais, entre as quais se destacavam os mulatos (descendentes de
um europeu e de uma africana) e os mestiços (de mãe bissau-guineense e de
pai cabo-verdiano). Estes grupos preferiam em geral a cultura europeia e o
cristianismo. Muitos oriundos de Cabo Verde ocupavam o topo da pirâmide
e formavam o núcleo dos designados por creoulos, outra expressão para
designar os descendentes do cruzamento de europeus e africanos ou de
qualquer outra mestiçagem baseada em origens socioculturais diversas. A
seguir vinham os africanos cristãos ou gurmetos, de pura ascendência
africana. O denominador comum que os unia era o facto de todos
reclamarem a africanidade, uma identidade social contraposta à identidade
social europeia (CARDOSO, 2008).
Nesse contexto, era natural a divisão dos centros de socialização entre estes
segmentos, pois havia espaços que eram prioritariamente dominados pela elite branca e os
cristons de praça (os residentes na zona urbana), a exemplo de União Desportiva
Internacional de Bissau (UDIB) e o Benfica, também uma agremiação esportiva dos
portugueses, além de clubes dos caboverdianos. Este assunto será analisado no terceiro
capítulo.
Estas divisões geraram um mal estar no seio da sociedade local, que se agravou,
segundo Elisée Turpin53, com as chacinas dos bissau-guineenses ocorridas em 1942,
originando o despertar da consciência política e forjando organizações clandestinas com
ideias iniciais pouco elaboradas para enfrentar o regime colonial.
No seu testemunho, Aristides Pereira54 (caboverdiano, ex-funcionário dos Correios
na administração colonial na Guiné Portuguesa) afirma que as organizações políticas na
Guiné-Bissau eram superficiais e limitavam-se aos funcionários do serviço da administração
colonial e oscilavam em torno de algumas reivindicações pontuais, tentando abranger as
pessoas de outras repartições sem nenhuma experiência política. Todavia, ressalta que:
[…] a nossa conscientização propriamente dita só começa a aparecer depois
de Nkrumah, Sekou Turé, Nasser, etc. antes disso, as nossas referências
eram, sobretudo, em relação ao regime fascista, à repressão salazarista,
fatores que fortaleciam em nós o sentido de liberdade. Enfim, uma luta que,
53
54
Combatente da Liberdade da Pátria e um dos fundadores do PAIGC.
Aristides Pereira é um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC) com Amílcar Cabral e outros combatentes. Em 1973, assumiu o cargo de Secretário Geral do partido
em Conakri. Com a conquista da independência, em 1975, Aristides Pereira tornou-se o primeiro Presidente da
República de Cabo Verde. Permaneceu na Presidência da República até 1991. Em 2011, veio a falecer aos 87
anos.
117
em certo sentido, estava entroncada na luta que os próprios portugueses
faziam. Nessa altura, não chegávamos a falar em reivindicações
independentistas. Essas ideias só apareceram mais tarde depois da chegada
do Amílcar Cabral (PEREIRA, 2003, p.84).
Importante ressaltar que antes da chegada de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau - em
1952, como engenheiro agrônomo da Estação Agrícola na granja do Pessubé, como
funcionário da Repartição Provincial dos Serviços Agrícolas e Florestais na Guiné
portuguesa, a fim de assumir a responsabilidade para planejar e executar o recenseamento
agrícola de 1953 - já se falava em organizações clandestinas para a reivindicação da liberdade
e autonomia política comandadas pelos filhos da terra.
Neste aspecto, Cabral trouxe não apenas a sua experiência como agrônomo, mas
também a formação política adquirida na Casa de Estudantes de Império (CEI) em Lisboa, da
qual fazia parte com outros estudantes e intelectuais africanos, com as ideias mais elaboradas
e uma estrutura política e organizacional bem mais definida. Estes aspectos foram
imprescindíveis na criação do clube desportivo de cunho nacionalista, que mais tarde veio a
se transformar num movimento de libertação nacional, atribuindo ao PAIGC o papel de
conduzir a luta de libertação nacional. Entretanto, o recenseamento “proporcionou-lhe um
conhecimento do território e um relacionamento pessoal ímpares, nos matos da Guiné ficará a
memória do (primeiro e único) engenheiro negro” a serviço da administração colonial
(SILVA, 2010, p.85).
A década de 1950 marca a expansão do nacionalismo nas colônias africanas
portuguesas e a proliferação dos movimentos associativos. Nesse momento, surgem os
primeiros movimentos urbanos clandestinos na Guiné-Bissau. Estes movimentos tinham
características diversas, que agregavam tanto os assimilados, que se pautavam pela unidade
entre Guiné-Bissau e Cabo Verde, como também aqueles que defendiam a exclusividade dos
filhos da Guiné-Bissau na organização.
Como foi abordado no primeiro capítulo, foram criadas as primeiras organizações
com caráter partidário: o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC); a União
de Povos da Guiné (UPG), fundada pelo caboverdiano Henri Labery, que, apesar da
designação, reunia alguns bissau-guineenses residentes em Kolda; a Reunião Democrática
Africana da Guiné (RDAG), constituída pela colônia mandinga do Senegal; a da Guiné União
dos Naturais Portuguesa (UNGP); a União da População Libertada da Guiné (UPLG), que
agrupava a minoria de etnia fula do Senegal; o Movimento de Libertação da Guiné (MLG),
fundado em 1958, que agregava a maioria da etnia manjaca da Guiné-Bissau o Movimento
118
para a Independência da Guiné (MING), fundado em 1954 por José Francisco e Luís António
da Silva “Tchalobé”; o Partido Africano para Independência (PAI), que mais tarde daria
origem ao PAIGC, fundado em 1956, já por iniciativa de Amílcar Cabral, e os seus
compatriotas caboverdianos e bissau-guineenses (Luís Cabral, Aristides Pereira, Elisée
Turpin, Abílio Duarte, Júlio de Almeida e Fernando Fortes).
Por fim, surgiram também a Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING),
fundada em 1962 e dirigida por Labery, Pinto Bull e François Kankola Mendy (uma coligação
de vários grupos étnicos de emigrantes caboverdianos e bissau-guineenses no Senegal,
particularmente manjacos e mandingas), que foi resultado da unidade partidária entre o UPG,
o RDAG e a UPLG. (CABRAL, 1984; PEREIRA, 2003; GARCIA, 2000).
Importante ressaltar a falta de solidez no tocante ao ano da criação de algumas
organizações na historiografia oficial: distingo o MING, fundado em 1955, sob liderança de
José Francisco e Luís António da Silva; o PAIGC, diz-se fundado em 1956, liderado por
Amílcar Cabral, constituído pela pequena burguesia crioula, com uma forte influência teórica
acentuada no marxismo-leninismo55; o MLG, fundado em 1958, que agregou os cristons de
praça do bairro de Varela (chão de papel), entre eles Rafael Barbosa e alguns filhos de
Bolama; e, por fim, a FLING, em 1962, encabeçada por Benjamim Pinto Bull. São estes
movimentos que se destacaram na história dos movimentos de libertação nacional da Guiné.
As demais organizações “não passaram, como diz Rafael Barbosa, de outro campo de
experiência”.
Todas as organizações objetivaram a liquidação do sistema colonial português,
exigindo a liberdade e autonomia dos filhos da Guiné e a independência total. Entretanto, a
maioria das organizações possuía a sede em Dakar-Senegal e Conacri, tentando, por várias
vezes, costurar mobilizações e alianças políticas para a obtenção da legitimidade diante das
outras organizações. Não obstante, apenas o MLG, PAIGC e FLING permaneceram na
disputa pela liderança da mobilização para a independência. Por outro lado, não podemos
perder de vista o papel do MLG na consolidação do PAIGC. Como havia citado
anteriormente, a leitura que se faz (PEREIRA, 2003, TURPIN, 2011), no tocante ao
surgimento de vários movimentos nacionalistas na Guiné-Bissau deve-se à aversão dos
bissau-guineenses com relação à unidade entre Guiné-Bissau e Cabo Verde.
55
Segundo Francisco Proença Garcia (2000, p.102), o PAIGC se sobrepôs a todas as outras organizações, e era
de orientação ideológica marxista-leninista, mas desde a sua criação intitulou-se democrático, anticolonialista,
anti-imperialista e atuante no quadro da democracia revolucionária.
119
A existência das sedes representativas de organizações fora de Bissau se devia, por
um lado, ao fato de que em Bissau se tinha pouca flexibilidade para exercer a militância
política, porque era controlada pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa Nacional
Portuguesa). Por conseguinte, a PIDE visava à segurança interna e às atividades de caráter
informativo, que interessavam a defesa nacional portuguesa. Por este motivo, as organizações
que emergiam no país eram clandestinas e tinham representações em Dakar ou Conacri. É
neste contexto que a primeira tentativa de Amílcar Cabral de exprimir as suas intenções
políticas se deu através do clube esportivo, como forma de planejar a estratégia da fundação
do partido sem atrair desconfianças dos portugueses.
A data da criação do PAIGC em 1956 é um dissenso na historiografia da luta de
libertação nacional. Entretanto, os próprios integrantes do partido, a exemplo de Aristides
Pereira, no seu testemunho afirmam que o partido havia sido consolidado, apenas, depois do
massacre de Pindjiguiti, em 1959. No entanto, alguns estudos recentes, como os de Leopoldo
Amado (2005), António E. Duarte Silva (2010), António Tomás (2010) e Julião Souza
(2011), vieram reforçar a tese de Aristides Pereira sobre a não fundação do partido em 1956.
Este assunto terá mais respaldo no terceiro capitulo.
Quero assinalar que a veracidade da data da fundação do PAIGC não constitui a
prioridade de análise neste trabalho, apenas fiz a menção deste debate, que é recorrente na
atualidade acadêmica na Guiné-Bissau. Em linhas gerais, o partido tinha como fundadores
pequenos burgueses mestiços ou negros (do qual o próprio Cabral fazia parte) instalados no
seu papel subalterno de auxiliares do colonialismo. Segundo Antonio Duarte E. Silva (2010),
a criação do partido teve participação majoritária de caboverdianos. O cerne articulador entre
bissau-guineenses e caboverdianos foi Rafael Barbosa, o qual esteve fora da reunião por
questões, que o próprio explica, como sendo de segurança de Amílcar Cabral (SILVA, 2010).
É preciso assinalar ainda que a reivindicação de cunho nacionalista que se fazia estava alçada
na cultura e na afirmação da identidade nacional.
As concepções de Dulce Duarte (apud PEREIRA, 2002, p.91) vieram elucidar o
dilema da “caboverdianidade” no tocante à conscientização nacionalista, centrada na
duplicidade do pertencimento identitário: a africana e a europeia; sendo que a dimensão
africana desta identidade foi e é recorrentemente menosprezada, não só pelos claridosos, isto
é, aqueles que reclamavam certo nacionalismo europeu, como também pelos caboverdianos
negros, que incorporavam o eurocentrismo português de que, de todos os africanos, os
caboverdianos estavam mais próximos dos portugueses.
120
Verificamos essa relação na entrevista de Adriano Ferreira, em que depreende-se
como a elite caboverdiana e, em particular, os mestiços demonstraram pouca disposição para
uma consciência nacionalista, mas pautavam a sua conduta no aspecto da cultura europeia e
prezavam pela continuidade do colonialismo português. Assim sendo,
[…] a maior parte da elite cabo-verdiana não estava de acordo com a luta de
libertação. Por outro lado, Cabo Verde não tinha condições de realizar a luta
armada, pessoas como Cabral perceberam a importância de integrar Cabo
Verde na luta pela independência na Guiné que serviu como palco da guerra
armada. Apesar de que Cabral sempre foi claro com os combatentes, dizia
que estavam fazendo uma luta, mas era apenas um início para libertar o país,
a verdadeira luta será depois da luta armada (Adriano Ferreira, militante do
PAIGC, abril de 2011).
Não podemos perder de vista o esforço empenhado por Abílio Duarte, no final da
década de 1950 depois da Conferência de Bandung56, ao proporcionar em Cabo Verde
encontros que permitiram desenhar planos e estratégias de mobilização, com intuito de
conscientizar os caboverdianos e despertar-lhes uma postura política clara para reivindicação
da independência e tomar parte do projeto de unidade africana que estava em curso e que
impulsionaria a unidade de Guiné-Bissau e de Cabo Verde liderada por Amílcar Cabral. “O
Abílio teve papel preponderante na conscientização de uma identidade cabo-verdiana própria
que em nós despertou, sobretudo a partir dos fins dos anos 50, nos estudantes liceais” (sic)
(PEREIRA, 2003, p.93).
Ao analisarmos o surgimento dos movimentos contestatórios nos anos 1950 na
Guiné-Bissau, deparamo-nos com uma figura ilustre pouco referenciada na atual
historiografia dos movimentos de libertação nacional: Rafael Barbosa. Ele foi – este
combatente da liberdade da pátria – um dos primeiros protagonistas dos movimentos políticos
de contestação da independência da Guiné-Bissau, além de ter sido o cerne articulador da
unidade entre os bissau-guineenses e caboverdianos para a luta de libertação nacional, dirigida
pelo PAIGC sob liderança de Amílcar Cabral (AMADO, 2005).
Quanto ao MLG, fundado em 1958, alguns relatos apontam que se trata de uma
reformulação da Liga Guineense, dissolvida em 1915 depois da campanha de pacificação
contra os papeis de Bissau. Vale repetir que a organização tinha como objetivo constituir um
Estado federado bissau-guineense e combatia a ideia da federação entre Guiné-Bissau e Cabo
verde (GARCIA, 2000). O grupo era formado exclusivamente pelos assimilados de origem
56
A referida Conferência de Bandung foi realizada em Indonésia em 1955, e reuniu representantes dos países
africanos e asiáticos, com objetivo de construir balizas para preservação das independências nos referidos países.
Esta conferência teve uma repercussão internacional, forçando a ONU a pressionar as potências mundiais para
que reconhecessem a autonomia destes países.
121
bissau-guineense, nomeadamente pelos da etnia manjaca, que passaram a residir nos bairros
dos “indígenas” como forma de traçar estratégias para a mobilização das massas populares.
A partir desta ação, os bairros de Tchon di Papel e Bandé, ambos de indígenas,
“passam a corresponder ao berço da luta de libertação, fornecendo a nata dos dirigentes do
movimento nacionalista” (SILVA, 2010, p.20). No nível nacional, o MLG questionava a
relação de colaboração dos caboverdianos com os portugueses ao ponto de hostilizarem o
próprio Cabral. Já no nível internacional, interveio junto à ONU, insistindo na concessão da
autonomia do território aos bissau-guineenses e a retirada imediata dos portugueses; o que
estava subjacente à discrepância entre PAIGC, MLG, FLING e outras organizações era o
caráter ideológico e estratégico, como também a composição majoritária das estruturas
dirigentes do PAIGC por caboverdianos.
A FLING foi fundada em 1962, depois da reunião em Dakar, entre os líderes
políticos das organizações UPG, RDAG e UPLG, que redundou na unificação destas
organizações numa única frente para libertação. A FLING era composta por empregados e
pequenos funcionários fugidos por repressão colonial na Guiné-Bissau, que se radicaram no
Senegal. Entretanto, segundo Garcia, pouco se ouviu falar da FLING na Guiné portuguesa
durante o processo de mobilização clandestina, “suas ações se limitaram na publicação de
alguns comunicados, organização das reuniões e participação em algumas conferências
internacionais” (GARCIA, 2000, p.99). Desta forma, desempenhava uma forte influência
política nas zonas limítrofes das regiões vizinhas da República do Senegal e Conacri.
Em linhas gerais, a FLING era caracterizada pela sua incisiva rivalidade com o
PAIGC e, por conseguinte, nunca havia desencadeado qualquer atividade militar no interior
da Guiné-Bissau, limitando as suas ações apenas nas repúblicas da Guiné Conacri e Senegal, e
pautando-se pela campanha de unificação de outras organizações contra o PAIGC. Nesta
direção, segundo Francisco Proença Garcia:
A FLING parecia condenada, pois restringia cada vez mais a sua ação,
perdia terreno e, inclusivamente, o apoio dos governos vizinhos. Este partido
parece só ter despertado em 1965, face aos progressos do PAIGC que
estendia já a sua influência política da República da Guiné ao Senegal, ao
mesmo tempo em que procurava captar a simpatia de adeptos de outros
movimentos (2000, p.100).
Com efeito, a efervescência da unidade nacional, que permeava os discursos políticos
de quase toda a década de 1960 e meados de 1970, no continente africano forjou a unidade
das diversas organizações políticas, que surgiram para contestação das independências.
122
Contudo, isto não se constituiu numa tarefa fácil, porque as diferenças ideológicas
entre estas organizações partidárias eram evidentes e a questão étnica também era recorrente
em algumas pautas políticas, o que dificultava inicialmente a unificação entre os partidos.
Este foi o caso da FLING e de uma ala do MLG, que divergiam radicalmente da política de
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde. Sobretudo, porque consideravam que a Guiné-Bissau
“ainda não estava preparada para a independência” imediata e que a unidade implicava a
subordinação dos bissau-guineenses aos caboverdianos, sendo, por isso, “preferível uma
autonomia progressiva, a fim de dar tempo para a formação de quadros” (SILVA, 2010, p
128)57.
Depois de várias tentativas e esforços de unificação dos movimentos na Guiné
portuguesa, feitos pela OUA sob mediação de Ahmed Sekou Touré (Presidente de GuinéConacri) e Leopold Senghor (Presidente do Senegal), “o PAIGC foi reconhecido em 1965
pela OUA como o movimento mais apetrechado e melhor estruturado para o desenvolvimento
da luta, passando a canalizar para ele toda a ajuda material” (GARCIA, 2000, p.100).
Neste universo de organizações políticas, destaca-se que só o PAIGC conseguiu a
hegemonia política para dirigir a luta de libertação nacional, como analisado no primeiro
capítulo. Portanto, a resistência cultural e política contra a ocupação portuguesa na GuinéBissau foi representada pelo movimento de libertação nacional liderado por Amílcar Cabral,
engendrando a unificação de todas as etnias dentro das fronteiras, sem distinção cultural, num
programa de “consciência nacional” para a liquidação do colonialismo, criando assim uma
contrassociedade à sociedade colonial.
Finalmente, é importante destacar a influência das linhas ideológicas marxistaleninistas, pan-africanistas e de negritude no pensamento ideológico do líder do PAIGC,
Amílcar Cabral, no processo da descolonização da Guiné-Bissau, objetivando o fim da
opressão e repressão colonial e a conquista da independência imediata. Para Amílcar Cabral, o
partido traçou prioridades centradas em duas fases em seu programa de luta: primeiro, a
libertação que daria seguimento à construção de uma nova sociedade, sendo que a luta da
libertação seria contra todas as formas de exploração do homem pelo homem, do racismo e do
sistema colonial; e a segunda tratava da concessão total da independência da Guiné-Bissau e
Cabo Verde e da reconstrução nacional.
57
Em entrevista concedida a Aristides Pereira.
123
Capítulo III - Amílcar Cabral e o contexto do pós-guerra: os
acontecimentos que impulsionaram a via armada na Guiné-Bissau
A via única e eficaz para a realização definitiva
das aspirações dos povos é a luta armada.
É esta a grande lição que a história contemporânea
da luta de libertação ensina a todos
os que estão verdadeiramente empenhados
no esforço de libertação dos seus povos.
Amílcar Cabral (1974).
Este capítulo objetiva realizar uma breve análise acerca da conjuntura pós-Segunda
Guerra Mundial, que favoreceu sobremaneira os movimentos de autodeterminação dos países
colonizados. Interessa, por outro lado, analisar os movimentos pan-africanos da década de
1950, balizados através das conferências que visavam à criação de fóruns únicos de debates
dos países africanos contra a ocupação colonial. Esta iniciativa, que deu alento aos países
colonizados, contribuiu de forma decisiva na formação dos movimentos locais para a
contestação da presença colonial, tendo como base o projeto de unidade africana.
A citação de Amílcar Cabral que abre esse capítulo é o ponto inicial para nos
debruçarmos sobre os acontecimentos que impulsionaram a luta armada de libertação nacional
na Guiné-Bissau e a tentativa da implementação do projeto por ele formulado de unificação
da identidade étnica bissau-guineense e unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, para
viabilização da única frente de libertação para a independência da Guiné-Bissau e de Cabo
Verde.
É oportuno lembrar que a luta de libertação nacional é a mais pura prova da tradição
de resistências na história dos povos africanos (mesmo com a destruição dos grandes estados
africanos e a partilha da África na Conferência de Berlim), e constitui um ato que representa a
determinação na condução dos seus destinos. Nas palavras de Amílcar Cabral, é “o direito à
autodeterminação e a independência à expressão tradicional e sempre manisfestada vontade
combativa dos povos africanos contra a dominação estrangeira” (FUNDAÇÃO MÁRIO
SOARES, 1965, p.03).
No caso particular da Guiné portuguesa, a intensa organização para a descolonização
teve seu marco a partir do Massacre de Pindjiguiti, em 1959, que sem dúvida impulsionou a
124
via armada contra o regime colonial. O ressurgimento de Amílcar Cabral na vida política da
Guiné-Bissau, a criação da Frente Única para a Libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde,
merecerão análise no desdobramento deste trabalho.
Os pensamentos e formulações escritas de Amílcar Cabral (1974, 1977), Elikia
M´Bokolo (2007) e Yves Benot (1969) reforçam que o fim da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) deu lugar a uma nova etapa de luta dos povos africanos.
A despeito disso, nossa análise até aqui indica que é o contexto etnográfico –
amplamente descrito por Elikia M’Bokolo (2007, p. 545) – que sintetiza as razões pelas quais
a Segunda Guerra foi determinante na tomada de consciência política em África, realçando os
eixos decisivos: a repressão sangrenta das populações por parte do colonialismo,
aterrorizando as populações, incendiando as aldeias, a perseguição, a discriminação racial
postulada pela política colonial de imposição de uma única religião com base na
superioridade racial branca, “a distinção entre os funcionários europeus do quadro
metropolitano e funcionários africanos do quadro local com estatutos e salários diferentes”
(M’BOKOLO, 2007, p. 545). A esse contexto, soma-se a repressão às reinvidicações
pacíficas através de greves e por fim as divisões sociais apregoadas pelo colonialismo nas
sociedades africanas entre os chamados “indígenas”, assimilados e brancos.
Todos esses elementos, do ponto de vista sociopolitico, impulsionaram nos estratos
das populações africanas o desejo de conquistar a emancipação política do continente, que só
se concretizou após a Segunda Guerra Mundial, onde os movimentos constestatórios
ganharam reconhecimento. Neste âmbito, reconhecemos que
[…] a segunda guerra mundial (1939-1945), provocada pelos imperialistas
facistas, teve um duplo caracter: em certos aspectos, ela foi uma guerra
imperialista, por outros aspectos, foi uma guerra de libertação dos povos
atacados ou oprimidos pelo fascismo. A vitória da URSS sobre a Europa e a
Ásia, no âmbito do afundamento do sistema colonial do imperialismo, a
maior parte dos países coloniais ou semi-coloniais conquistaram a sua
independência, e alguns deles para passar ao socialismo (China, Vietnam,
Coréia, Cuba). Mas outros não obtiveram mais que uma independência
aparente, que deixa intacta a dominação do imperialismo (é o
neocolonialismo). Sob a direção do imperialismo mais forte, o dos Estados
Unidos da América, as forças imperialistas tentam, utilizando a guerra,
manter a sua dominação colonial. Manter a sua dominação colonial ou
neocolonial (Indochina, Médio-Oriente, colônias portuguesas) (PAIGC,
1974, p.125).
Ao analisar a tomada da consciência política da elite africana, é inevitável
estabelecer a conexão com o término da Segunda Guerra Mundial. Portanto, é no final desta,
em 1945, com a derrubada do nazismo e do fascismo na Alemanha e Itália, e o desacordo
125
entre os países vencedores, motivado pela incompatibilidade entre os sistemas comunista e
capitalista, que se dá alento à autodeterminação dos povos colonizados. Nesse ensejo, vale
destacar a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), que postulava o princípio da
autodeterminação dos povos, contemplando todos os povos colonizados.
A Carta das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNICDAS, 2012),
de 26 de junho de 1945, no seu artigo primeiro recomendava manter a paz e a segurança
internacional, desenvolver as relações de amizade entre os povos, fomentar a cooperação
entre nações e impulsionar os direitos humanos. Outra recomendação expressa no mesmo
documento propõe legitimar as lutas anticoloniais de libertação nacional e a construção dos
estados autônomos.
Assim, no período pós-guerra, os conceitos de soberania nacional, direitos humanos,
tolerância e promoção da democracia substituíram os conceitos de civilização, dirimindo sua
conotação discriminatória e racista, contestando o trabalho forçado e a exploração do homem
pelo homem.
É a partir deste contexto que a questão de “autodeterminação ganha uma forte ênfase,
protagonizada pelas elites africanas que passavam a se empenhar na escolha de estratégias
eficazes, estabelecendo ações comuns, negociando também com elites políticas asiáticas, em
torno dos mesmos interesses” (CAMPBELL, 2009, p.69).
Outro contexto que favoreceu a autodeterminação dos povos colonizados em
articulação com a criação da ONU, é a Conferência Afroasiática de Bandung58 em 1955,
realizada em Nova Deli na Ásia, que reuniu diferentes correntes para a emancipação, luta
contra o colonialismo e o direito a autodeterminação a todos os povos colonizados. É
oportuno salientar que nesse período a maioria dos países asiáticos e alguns países africanos
já haviam conquistado suas independências mas, no continente africano, as colônias
portuguesas estavam a se organizar em termos de movimentos de libertação nacional.
58
Na década de 1950, cinco recém-independentes países asiáticos (Índia, Paquistão, Ceilão, Birmânia e
Indonésia) representados pelos seus primeiros-ministros decidem lançar a ideia de uma vasta conferência
afroasiática com intuito de unir os países que se apresentam as características idênticas de subdesenvolvimento
e que são vitimas das mesmas ameaças de agressão direta do imperialismo estrangeiro, sentem-se solidárias
umas com as outras, como nações menos favorecidas que ainda devem conduzir, contra o colonialismo direto, as
batalhas de libertação.. Em 18 a 24 de abril de 1955 em Bandung, Indonésia abre a conferência afroasiática, que,
pela primeira vez, permite que o terceiro mundo afirmar-se na cena internacional. Presidida pelo líder indonésio
Sukarno, que reúne 24 países: Afganistão, Camboja, China, Egito, Etiópia, Costa de Ouro (Gana), Irã, Iraque,
Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Filipinas, Arábia Saúdita, Dudão, Siria, Tailândia, Turquia,
Vietnã do Norte, Vietnã do Sul e Iêmen. São os delegados de 29 governos da África e da Ásia, isto é, são os
cinco países que convidam e os 24 convidados. Entre os que mais destacaram na conferência são Gamal Abdel
Nasser do Egito, o primeiro-ministro indiano Nehru e Zhou Enlai da China (LETIN, 1977, p.39).
126
A Conferência Afroasiática de Bandung vai aproximar os anseios políticos e unir
posições comuns de dois continentes em fases diferentes de processos de libertação, com
vistas a unir os esforços para preservar as nações recém-formadas, criar medidas de
cooperação mutua, e firmar o desejo de independência e não alinhamento às potencias
mundiais. Paralelamente a isso, foi criada a noção de terceiro mundo, representada a partir de
um bloco político unitário com acentuado caráter internacional, reivindicando a necessidade
do reconhecimento do direito a autodeterminação dos povos e o combate ao racismo.
Portanto, a conferência de Bandung vai marcar a entrada no cenário internacional dos países
de terceiro mundo.
Com o objetivo de opor todas as formas de colonialismo e lutar pela independência, a
conferência de Bandung vai adotar como parâmetros: a descolonização e emancipação dos
povos da África e da Ásia; a coexistência pacífica e o desenvolvimento econômico; e a não
interferência nos assuntos internos de outros países, repeito aos Direitos do Homem e a Carta
da ONU59, respeito à soberania e a integridade de todas as nações, etc.
Em linhas gerais, podemos afirmar que Bandung foi o marco na luta das
independências dos países asiáticos e africanos, sobretudo na construção do projeto da
libertação comum e na afirmação da política internacional de não alinhamento. Assim sendo,
o delegado argelino M´Hamed Yazid sintetiza a importância da conferência de Bandung ao
afirmar que:
Bandung fez nascer um movimento irreversível. De Bandung saiu um
espírito, uma solidariedade, uma vontade de ação que desordenaram as
posições imperialistas e colonialistas na Ásia e na África. Bandung acelerou
as lutas de libertação nacional que, em dez anos subverteram o mapa político
do mundo.60
Esta conjuntura internacional pós-Segunda Guerra, favorável às democracias liberais,
e sobretudo à autodeterminação dos povos que se encontravam sob dominação do
colonialismo europeu, ajudando assim a mitigar os abusos dos mais fortes sobre os fracos, é
que legitimou as lutas nacionalistas dos países africanos, culminando com o surgimento do
nacionalismo africano.
Tal cenário, que deu alento à autodeterminação dos povos sob dominação colonial,
forçou o governo de Portugal – que não intencionava cumprir o processo de descolonização –
a reformular estratégias de ocupação, difundindo a ideia de que não possuía colônias e sim
59
Disponível em:http://www.cvce.eu/obj/la_fin_des_colonies_europeennes_texte_integral-fr. Acesso em: 10
abril 2013. Texto original em francês.
60
LENTIN, 1977, p.40
127
províncias ultramarinas, onde se consideravam todos os habitantes das colônias portuguesas
pertecentes à nação portuguesa. Esta estratégia traçada por Portugal, no sentido de legitimar o
colonialismo, visava à manifestação contra o princípio de autoderminação dos povos
estabelecido pela Carta das Nações Unidas.
Diferentemente de França, Inglaterra e Bélgica, Portugal era contra qualquer política
que lhe impusesse a limitação do domínio colonial. Essa atitude justificava a fragilidade
econômica a que Portugal estava condicionado em relação aos países da Europa, forçando seu
governo a adotar o ideário de lusotropicalismo61 de Gilberto Freyre62, que visava à
preservação de suas colônias, que eram fontes principais do abastecimento econômico do
país. É oportuno dizer que o lusotropicalismo é particularmente aplicado às colônias
portuguesas, e teve seu marco no continente africano no inicio dos anos 1950. Serviu de
instrumento extremamente útil para legitimar o colonialismo portugues tardio objetivando
escamotear o impacto da colonização na vida dos colonizados.
Um dos grandes ícones do nacionalismo africano, o angolano Mario Pinto de
Andrade, sob o pseudônimo de Buanga Fele, foi o primeiro crítico africano da ideologia
lusotropicalista de Freyre apropriada pelo regime salazarista português. Para Mário Pinto de
Andrade (1955), o lusotropicalismo não é nada mais que uma forma de garantir a legitimidade
do colonialismo nas terras colonizadas e reforçar suas politicas de segregação e assimilação.
Ainda segundo o sociólogo angolano, é a forma de manter as barreiras entre os níveis
de vida das duas populações e de evitar que a direção político-econômica seja disputada
contra o europeu. Para Andrade (1955, p.01)
[...] Portugal é demasiado pobre pela sua demografia e recursos
metropolitanos para que a segregação possa obter resultados nas
suas colônias da África a não ser pela limitação sistemática da
61
O lusotropicalismo foi uma teoria política e ideologica utililizada pelo regime colonial português para se
contrapor às pressões internacionais e legitimar o império e seus mecanismos de super-exploração dos povos
coloniais. Divulgava a idéia dos portugueses serem diferentes dos demais colonizadores, por terem uma
capacidade especial para a miscigenação e a “democracia racial” (GUILLEN, 2007, p.11)
62
Gilberto Freyre difundiu a tese de luso-tropicalismo não apenas no Brasil como também nas colônias
portuguesas em África; a convite do governo português, realizou um tour pelas colônias portuguesas, na
primeira metade dos anos 1950, com propósito de enaltecer a política portuguesa para a África. Vale lembrar
que a tese de luso-tropicalismo estava pautada na originalidade e individualidade histórica da adaptação da
cultura portuguesa a ambientes tropicais. Segundo Claudia Castelo (2013) O objetivo da viagem é dar a
conhecer ao sociólogo brasileiro o ultramar português, para que ele o percorra “com olhos de homem de
estudo” e, depois, produza um trabalho de reflexão sobre as realidades observadas. Será durante esta viagem
que o sociólogo brasileiro usará pela primeira vez a expressão «luso-tropical» para caracterizar o modo de
adaptação do português aos trópicos. Ora esta teoria era de enorme utilidade para o fortalecimento da ideia de
«unidade da nação pluri-continental portuguesa» e para o programa de fixação de população originária da
metrópole no ultramar. O Estado Novo soube apropriar-se de algumas máximas luso-tropicalistas para se
defender das pressões da comunidade internacional, sobretudo no quadro da ONU (Portugal integra esta
organização em 1955), mas também em campanhas de propaganda do país no exterior, nas declarações dos
altos representantes da nação à imprensa estrangeira e nos circuitos diplomáticos.
128
ascensão social dos autóctones e pelo sacrifício de uma parte do
branco. Os compromissos são difíceis de evitar nos meios pobres.
No Brasil e nas colônias africanas via-se por vezes o português
aceitar cumprir tarefas que os outros europeus consideravam
indignas de branco.
A estratégia ideológica do governo Salazar era reforçar os laços entre a metrópole e
as colônias; preconizava a criação da “unidade nacional” em todas as suas colônias que
passariam a ganhar status de “províncias ultramarinas”, tentando justificar o cumprimento da
Carta das Nações Unidas de que Portugal era signatário. Segundo Amílcar Cabral,
[...] com o mito da “unidade nacional”, o que o colonialismo portugues
pretende é povoar as nossas terras com europeus e transformar os nossos
povos em minorias nacionais nos nossos países [...] sabemos que os nossos
povos – balantas, sãotomenese ou maconde, por exemplo, são distintos do
povo portugues, seja ele minhoto ou alentejano, algarvio ou transmontano.
Sabemos que os nossos países nunca foram, não são e nunca serão terra
portuguesa (FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, 1965, p.03).
Tanto Mário de Andrade quanto Amílcar Cabral concluem que
lusotropicalista de Freyre é inadequada e falsa para
a tese
as circunstâncias do colonialismo
português em África, pois a convivência relativamente harmônica entre os colonizadores
portugueses e os nativos africanos não condizia com a política do regime colonialista
apregoada nas colônias.
Em linhas gerais, Andrade atribui um novo conceito ao lusotropicalismo, que este
seria apenas “um movimento de integração de valores tropicais na cultura lusitana ou de
circulação de produtos em áreas de influência portuguesa; nunca como uma harmonização de
valores europeus (lusos) com os africanos ou orientais” (1958, p.10-11).
Importante assinalar que as independências nas colônias portuguesas, ao contrário
dos outros países africanos (a exemplo de Argélia, Zimbabwé, Senegal, Conacri) foram
precedidas de intensas lutas anticoloniais sob liderança da “Geração Cabral”, isto é, dos exestudantes da Casa de Estudantes do Império (CEI). Estes estudantes, ao atingirem a
consciência da situação em que se encontravam os seus países, desenharam e implementaram
estratégias unitárias de atuação e protestaram contra as ideologias do colonialismo português
coletivamente, como já havia analisado no primeiro capítulo deste trabalho.
Para estes futuros nacionalistas africanos, apesar de provenientes de países diferentes
separados pela geografia, havia uma preocupação em comum: a submissão ao regime
colonialista que atravessava os seus países. Esta constitui uma das principais motivações que
forjou a criação de uma organização só de estudantes africanos fora do Centro dos Estudos
129
Africanos (CEA), instituição que se debruçava sobre os problemas comuns com o único
objetivo de analisar o regime colonial e seus efeitos, além de buscar respostas e modos de
enfrentamentos.
Mário de Andrade (1997) ressalta como foi possível nesse período criar uma
organização paralela ao governo português, afirmando que: “[…] só depois da Segunda
Guerra Mundial foram criadas as condições para se desenvolver esse tipo de consciência,
observo ainda que a geração Cabral está ligada à relação de forças no contexto político
mundial” (p.09).
A socialização do conhecimento sobre os modos de exploração colonial e os
impactos disso no continente veio reforçar o espírito africanista destes jovens, que procuraram
organizar, através de grupos, encontros semanais de poesias e seminários, que lhes faziam se
sentirem mais próximos ao contexto dos seus países.
Obviamente que a concretização das experiências adquiridas no CEA e CEI teriam
sido colocadas em prática mais tarde na organização dos movimentos de libertação,
acompanhadas pela ideologia pan-africanista, inserida na formação ideológica dos militantes
destas colônias no desenvolvimento da luta armada. Neste sentido, Elikia M´Bokolo (2011,
p.551) afirma que:
A gradual conscientização política, o despertar do sentimento “nacionalista”,
a mobilização das elites, o seu conhecimento da Europa bem como os seus
contatos com as formas europeias de luta política contribuiram para importar
para a África instrumentos ‘modernos’ de luta, alguns dos quais, por
exemplo, o boicote ou a greve não estavam muito longe das vias anteriores
da resistência no continente negro.
Cabe ressaltar que o arranjo político da Segunda Guerra Mundial, que forjou o
despertar da consciência política da elite africana, ganha uma forte ênfase no ideário panafricanista, importante elo na edificação dos movimentos nacionalistas africanos. O panafricanismo teceu relações imprescindíveis, que deram possibilidade aos africanos de
estabelecerem o diálogo com outros negros fora do continente.
No ensejo desta discussão, Elikia M´Bokolo enfatiza a influência da ideologia panafricanista na tomada da consciência da elite africana e o peso que a unidade representaria no
futuro do nacionalismo africano. Ainda, segundo M´Bokolo, foi nesse âmbito que os
“intelectuais africanos adquiriram o hábito de se reunirem e de constituírem agrupamentos e
associações, clubes locais de diálogo” (2007, p.551). Desde então, passaram a promover
eventos comuns com intuito de se debruçarem sobre as questões do continente perante o
colonialismo.
130
Yves Benot (1969) retrata bem os acontecimentos que marcaram esse período, no V
Congresso Pan-Africano de Manchester, realizado de 15 a 21 de outubro de 1945, em
Londres. Este Congresso teve a participação prioritária dos representantes das colônias
inglesas,63 no entanto, os estudantes africanos residentes na França iriam reproduzir a
resolução do congresso aos seus respectivos colegas.
O relator desse congresso foi o ganês Kwame N’Krumah, que desempenhava a
função de cossecretário do congresso, e na ocasião leu o memorando intitulado “Apelo aos
povos colonizados”, em que destacava a necessidade de autodeterminação dos povos, o
direito à condução dos próprios destinos, ou seja, a luta pelo poder político dos povos
oprimidos, rubricada sob condição da independência imediata e incondicional.
O congresso, no seu documento intitulado “Apelo aos povos colonizados”, produziu
as seguintes resoluções:
Estamos firmemente convencidos de que todos os povos têm o direito de se
governarem a si próprios. Afirmamos o direito de todos os povos
colonizados decidirem por si próprios o seu próprio destino. Todas as
colônias devem ser libertadas do controle imperialista estrangeiro, tanto
político como econômico. Os povos das colônias devem ter o direito de
eleger os seus próprios governos, governos livres de qualquer limitação
imposta por uma potência estrangeira. Afirmamos aos povos colonizados
que devem lutar por todos os meios ao seu alcance para atingir estes
objetivos (N’KRUMAH, 1962 apud BENOT, 1981, p. 146).
Além disso, outros pontos foram denunciados no congresso de Manchester e
adotados na resolução, como as divisões territoriais do continente africano com base da
Conferência de Berlim (1884-1885). Entre eles figuram a superexploração econômica, que
desencoraja a industrialização; o analfabetismo e a subnutrição; a negação dos direitos
sindicais; e a criação de cooperativas. Além disso,
[…] os congressistas votavam uma resolução sobre as Antilhas, exigiam a
independência da Argélia, da Tunísia e do Marrocos. Aprovou também por
unanimidade a declaração da delegação oeste-africana64, segundo a qual a
única solução para problema existente era a absoluta independência para os
povos do Oeste africano (DECRAENE, 1962, p.27).
63
Os dirigentes africanos presentes em Manchester, entre os quais, ao lado de Kwame Nkrumah, Jomo Kenyatta
(Quénia), Wallace Johnson (Serra-Leoa), Peter Abrahams (África do Sul), dentre outros.
64
O Congresso de Manchester serviu mais tarde para convocar o denominado “West African National
Secretariat”, em 1946, por Kwame N’Krumah, com objetivo de “promover uma federação oeste-africana,
como alavanca indispensável à realização da esperança pan-africana dos Estados Unidos da África. Nesse
sentido, em 1947, a federaçao pan-africana lançou o Jornal Panafrica, que logo desapareceu, para dar lugar ao
Pan African Age, financeiramente sustentando pelo governo de Gana (DECRAENE, 1962, p.30).
131
É importante destacar a relevância de congresso de Manchester nas reivindicações
que visavam à implementação da libertação e autonomia do continente africano, propondo
soluções concretas a partir do plano geral dos acontecimentos nas diferentes colônias. Mesmo
porque se tratava de primeiro congresso com objetivo de traçar as táticas sobre a
operacionalização de estratégias principais para a luta contra o colonialismo.
Foi nesse congresso que se decidiu que as primeiras reações contra o regime
colonialista deveriam seguir firmemente a necessidade de preservação da paz. O apelo às
greves, o boicote econômico e a organização política e sindical são recursos que se
imprimiam nas primeiras reivindicações pacíficas para a autodeterminação dos povos
africanos. Contudo, em última instância, seria necessário recorrer à força para se libertarem,
na feliz afirmação de Amílcar Cabral. Como se vê, essa resolução serviu de referência para a
luta em todas as colônias africanas; essa estratégia seria adotada também nas colônias
portuguesas, em particular na Guiné-Bissau.
Em linhas gerais, foram organizados vários congressos do pan-africanismo, mas o
quinto congresso deu um tom mais expressivo em relação ao nacionalismo africano, e “a
necessidade de existência de movimentos bem organizados e unidos, como condição de
sucesso de luta pela libertação em África”. Neste sentido, o movimento pan-africano tornavase a expressão do nacionalismo africano. (NKUMAH, p.155).
No seu ensaio teórico, Yves Benot (1969) traça a síntese de acontecimentos na
Europa no período pós-Segunda Guerra Mundial, que favoreceram a legalização dos
movimentos contestatórios em África, dando início ao processo de descolonização do
continente.
Segundo Benot, os intelectuais africanos souberam bem aproveitar o contexto
internacional de sublevação dos povos colonizados na Ásia e Indonésia contra os
colonizadores europeus para se organizarem. Foram registrados três acontecimentos a nível
mundial, que potencializaram os movimentos contestatórios, a saber: “[…] a vitória quase
inesperada, dos comunistas chineses, em seguida, Dien Bien Phu, a vitória militar alcançada
pelos oprimidos sobre o exército colonial, finalmente, a intervenção soviética no momento da
crise de Suez de 1956” (BENOT, 1969, p.04).
Salienta-se que o contexto pós-Segunda Guerra Mundial teceu relações de
continuidade das resistências étnicas protagonizadas pelos nativos com a chegada do
colonialismo português na Guiné, que culminaram na década de 1930 com a derrota dos
Bijagós. O contexto pós-guerra vai marcar a afirmação da nacionalidade, da reivindicação da
pertença cultural, baseado no comportamento irredutível das submissões coloniais e de
132
formulação de programas de libertação nacional. Elikia M´Bokolo (2011) descreve com
pertinência a eclosão dessa necessidade identitária por parte das elites. Para este historiador
congolês,
O nacionalismo não se reportava a “nações”, visto que as entidades étnicas
que mais evocam o conceito de nação foram fracionadas ou englobadas em
entidades territoriais novas. Antes de se identificar com esses territórios de
origem colonial, a tomada de consciência fez-se quer ao nível étnico, quer ao
nível dos grandes conjuntos coloniais (AOF, West África, AEF, etc.), e o
mais das vezes ao nível do continente. O termo “africano”, utilizado
exclusivamente pelos europeus durante muito tempo, tornou-se pouco a
pouco uma referencia para os próprios negros (p.545).
O renascimento dos “novos africanos” que sentiram a necessidade de se libertar da
alienação colonial, isto é, da assimilação imposta pelo ensino colonial, está centrada no
projeto de “reafricanização”, ou, como dizia Amílcar Cabral, 65 seria preciso uma
“reafricanização dos espíritos” para uma manifestação da consciência nacionalista.
No entanto, todo o sentimento de marginalidade identitária provoca a necessidade da
reconfiguração da nova identidade, reportada através de símbolos mediados pelo retorno às
origens. A releitura da preservação identitária dos nativos está assente nos aspectos culturais
e no retorno às raízes culturais, bem como no resgate das tradições étnicas como pilares do
reconhecimento no processo da identidade negro-africana. É neste sentido que,
Alguns autores, a exemplo de Michel Agier (2001), Paul Gilroy (1993),
Stuart Hall (1997), Lívio Sansone (2003) problematizam a questão do
sentimento da marginalidade identitária no contexto diásporico. Para Michel
Agier (2001, p.1), os sentimentos da perda de identidade são compensados
pela procura ou recriação identitárias em novos contextos. Assim ocorre com
o uso de africanidades, isto é, o uso de costumes, crenças e tradições
africanas, que são recriados e ressignificados no contexto diaspórico,
tornando-se o que Lévi-Strauss definiu como “abrigo virtual” (LÉVISTRAUSS apud AGIER, 2001, p. 03). Por seu turno, Lívio Sansone (2003)
realça que seria mais do que necessária a ascendência africana ou a
experiência de discriminação para fazer com que as pessoas se tornassem
“negras” ou africanas (CANDE MONTEIRO, 2008, p.80-81).
É desse modo que a dita “geração de Cabral” revaloriza a ascendência africana em
Lisboa e articula várias estratégias de organização. No caso em questão, propondo a
“reafricanização dos espíritos” através da construção de uma identidade estratégica (CUCHE,
65
Convém ter igualmente em conta que Amílcar Cabral viveu a experiência de perto não só pela sua condição
de estudante em Portugal e ter acesso de perto o sistema português, como também participou das ações de
Movimento da Unidade Democrática (MUD que era parte do Partido Comunista Português - PCP)
representando os interesses da secção juvenil do partido. É a partir deste momento que Amílcar Cabral e os
companheiros de CEI vivenciaram de perto o sistema do regime salazarista e suas repressões (TOMÁS, 2008).
133
2002), para uma manifestação de consciência nacionalista em torno da questão do
colonialismo, visando a preservar as tradições africanas, dialogando com ideologias panafricanistas, algo que, evidentemente, tem ensejado um intenso processo de recriação e
invenção daquilo que se imagina como sendo africano. Vale salientar que
O processo de (re)construções e/ou recriações da identidade negra, definidas
como “novas identidades”, não pode ser entendido sem considerarmos as
“estruturas transnacionais que se desenvolveram e se articularam em um
sistema de comunicação global, constituído por fluxos que transportam
imagens, ideias e símbolos negros por todo o Atlântico”, o que leva Gilroy
(1993) a referir-se ao Atlântico Negro. Nesse sentido, a (re)construção ou
fortalecimento da identidade é entendida por alguns autores como uma
tentativa de retorno ao passado histórico (HALL, 1997), enquanto outros
destacam a afirmação da diferença e da pertença étnico-racial
(WOODWARD, 2000, p.81).
Paradoxalmente a esse movimento nacionalista de reafricanização de Lisboa, o
contexto pós-Segunda Guerra Mundial, em Bissau, também teve repercussões, nas quais
alguns grupos da denominada elite bissau-guineense manifestaram a sensibilidade para o
movimento, mas que ainda não constituía uma contestação da dominação portuguesa e nem a
independência nacional (nacionalismo revolucionário), mas sim acesso ao poder e tomada de
decisão no governo colonial; vale dizer que nesse caso seria nacionalismo integracional, que
visava à reivindicação da integração dos intelectuais africanos na sociedade portuguesa.
Portanto, se associaram à pequena elite os simpatizantes66 do Movimento da Unidade
Democrática (MUD), do Partido Comunista Português (PCP) de Bissau, que se apresentava
sob condições de clandestinidade, opondo-se ao regime antifascista que se implantava no país.
O historiador bissau-guineense Leopoldo Amado descreve:
[...] a maior parte dos "notáveis" bissau-guineenses da sociedade colonial
pertencerem ao Conselho Legislativo do Governo da Guiné, tal como Mário
Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva (advogado), Joaquim
Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em
Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante),
Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado).
A estes juntaram-se outros bissau-guineenses pertencentes à pequena
burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e portugueses
que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não
escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial,
dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente
nacionalismo bissau-guineense. Os notáveis desse grupo que se destacaram,
tendo por isso merecido um registro das suas atividades pela PIDE, foram
Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca”
(comerciante) e Fernando Lima (comerciante), os quais foram acusados de
66
Vale salientar que desse movimento de apoio ao PCP foi criado em 1948 o Partido Socialista da Guiné, sob
liderança de Rafael Barbosa, José ferreira de Lacerda, José Monteiro e Hipólito Mário Fernandes, não obstante
esse partido desaparecer no início dos anos 1950 por falta de estrutura política.
134
fomentarem a rebeldia entre os bissau-guineenses considerados indígenas,
chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação,
embora sem nela tomarem parte ativa (AMADO, 2005).
Com efeito, essas manifestações - denominadas por muitos de nacionalismo
incipiente - estariam no âmbito da tentativa de restabelecer a Liga Guineense, que também era
constituída por grumetes, que almejavam, sob objetivos ocultos, a ascensão na sociedade e
estruturas do poder coloniais pautada na formação de quadros locais. Vale lembrar que a Liga
Guineense, fundada em 1910 pelos grumetes, é extinta em 1915 pelo Capitão Teixeira Pinto
sob fortes acusações de incitar as rebeliões dos “indígenas” de etnia papel, como havia
analisado no segundo capítulo.
Além destas manifestações de reafricanização registradas no período pós-Segunda
Guerra Mundial, Elisée Turpin67 testemunha outros acontecimentos ocorridos nos anos que
antecederam a guerra e que influenciaram de forma decisiva a tomada da consciência
nacionalista dos bissau-guineenses.
Para o bissau-guineense Turpin, de igual modo como acontecia nos campos de
concentração da Alemanha de Hitler, em Bissau também ocorriam assassinatos, repressões e
injustiças a mando do então administrador português António Pereira Cardoso. Turpin foi
mais enfático ao demarcar o ano de 1942 como o ano crucial das chacinas, fato que forjou
uma tomada de decisão contra os colonialistas logo após a Segunda Guerra Mundial.
Salienta-se que os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram marcados
pela emergência e consolidação de movimentos de independência, como também de
intensificação de movimentos contestatórios. Nesse período, muitos países africanos haviam
conquistado suas independências. A maioria por via pacífica, isto é, uma independência
negociada, a exemplo das colônias francesas68 e inglesas. Somente Portugal se opunha à
conjuntura internacional de liberdade e autonomia das colônias africanas, contrapondo-se à
resolução das Nações Unidas e de demais organizações, que postulavam o fim da aventura
colonial portuguesa no continente africano.
67
68
Combatente de liberdade da Pátria. Entrevista realizada em março de 2011, Bissau.
Sobre essa situação, há que levar em consideração os condicionalismos político-sociais de França e Portugal
naquele período. O primeiro já professava valores democráticos adquiridos com a Revolução de 1789 e, além
do mais, passou por uma experiência militar não muito agradável quando tentou negar a independência à
Argélia. Já o segundo ainda vivia sob um regime de ditadura militar instaurada em 1926, enfrentava graves
problemas econômicos e tencionava encontrar nos territórios além-mar (colônias) recursos para fortalecer sua
economia (SEMEDO, 2009, p.14).
135
Nesse contexto da emergência das independências africanas é que a década de 1950
vai se revelar importante nas concessões das independências no continente, como adverte José
Vicente Lopes:
Os anos 50 e 60 começam de forma auspiciosa para a África. De Argel ao
Cabo verificam-se sinais de que tinha chegado a hora de o continente se
tornar independente. Ao todo 17 novos países irão juntar-se a Libéria (1847),
União Sul-Africana (1909), Egipto (1922), Etiópia (1940) Líbia (1952),
Gana (1957) e Guiné (1958), Senegal (1960), Congo (1960), Argélia (1962).
Este se avizinha a Guiné, sobretudo esta presidida por Ahmed Sekou Touré
(1922-1984), vão revelar-se baluarte importantes para o PAIGC na luta pela
independência da Guiné-Bissau (LOPES, 1996, p.75).
Com efeito, a década de 1950 foi marco na era das independências no continente
africano. Este evento deu mais força aos movimentos independentistas, que germinavam nos
países ainda em processo de contestação da autonomia e liberdade política. A Guiné-Bissau
não fugiu a essa regra, atrelou-se a essa efervescência independentista, representada pelo
diversos movimentos que reivindicavam junto às Nações Unidas a autodeterminação dos
povos.
Era a fase de um nacionalismo bissau-guineense propriamente dito, influenciado pela
corrente política pan-africanista, e influenciado pela própria evolução política que em parte o
continente atravessava. As independências dos países vizinhos, como Senegal, Guiné-Conacri
e Gana, influenciaram de maneira decisiva o desenvolvimento das organizações nacionalistas
africanas, em particular da Guiné-Bissau.
Neste sentido, importante ressaltar as duas conferências que marcaram a década de
1950, e que influenciaram de forma significativa na edificação das lutas nacionalistas
africanas no tocante à articulação de interesses comuns de organização e de unidade na
África, e solidariedade entre África e Ásia.
O primeiro foi o Congresso West África, criado em 1954 por Kwame N’Krumah,
com objetivo de promover a unidade da África Ocidental, no que se refere à organização de
um fórum de diálogo comum nos territórios coloniais. Em seguida, a Conferência Afroasiática
realizada em abril de 1955, em Bandung, na Indonésia, que objetivava a criação de um bloco
dos países da Ásia e da África, que reivindicavam a liberdade e a independência política.
Esta estratégia dos nacionalistas africanos visava a unir esforços para combater o
colonialismo e “participar coletivamente da política internacional e dos assuntos econômicos,
buscando construir um mundo com justiça e paz” (HERNANDES, 2002, p.165).
136
Os objetivos do Congresso West África, de organização de conferências periódicas
na África, vieram fortalecer a criação de um bloco de caráter internacional para advogar os
interesses dos países colonizados (da África e Ásia) na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Nessa oportunidade, foi proposta a coalizão dos estados do “terceiro mundo”69 na I
Conferência dos Países Não Alinhados, em Belgrado, em 1961. Este evento não se restringia
apenas aos países africanos e afroasiáticos, se estendia à América Latina (Cuba) e Europa
(Iugoslávia).
Considerado um movimento de acentuado caráter internacional com expressiva
flexibilidade de participação nos espaços privilegiados de luta política - fóruns das Nações
Unidas, respondendo pelo bloco dos não alinhados na defesa dos interesses que norteiam os
princípios fundamentais:
A paz e o desarmamento, visando abrandar as tensões entre as grandes
potências; a independência, ressaltando o direito de autodeterminação dos
povos; o direito à igualdade racial e econômica, destacando-se a necessidade
de reestruturar a economia internacional, especialmente no que se refere ao
crescimento, à desigualdade entre as nações pobres e ricas; a igualdade
cultural, enfatizando que é essencial reorganizar a ordem informativa
mundial com o fim do monopólio ocidental dos sistemas de informação, o
universalismo e o multilateralismo, mediante forte apoio ao sistema das
Nações Unidas,considerando o foco próprio para a discussão dos assuntos
mundiais (HERNANDES, 2002, p.166).
Em linhas gerais, a conjuntura internacional de pós-Segunda Guerra Mundial foi
implementada a partir de intensas organizações coletivas de unidade e solidariedade dos
países colonizados para a obtenção das independências.
A resolução da Carta das Nações Unidas, que preconiza a autodeterminação dos
territórios colonizados, colocou Portugal no teatro de operações das estratégias ideológicas
articuladas com objetivo de legitimar o colonialismo. E também apropriou-se da ideologia do
lusotropicalismo, promovendo a integração das colônias africanas à metrópole. A insistência
em manter as colônias a todo custo é que irá levar a cabo a resolução da conferência de
Manchester de, em última instância, recorrer à força para a obtenção da independência tal
qual ocorreu em Guiné-Bissau a partir de 1959, culminando com o Massacre de Pindjiguiti.
69
Todos os países, autointitulados marxistas ou nao, voltam-se para a África como parte integrante do “terceiro
mundo” revolucionário. Além disso, em graus diversos, de acordo com as diferenças de seus sistemas
politicos, veem-se diante da hostilidade dos Estados Unidos e de seus aliados. [...] o segundo pós-guerra é
marcado por um sistema bipolar dominado pelos Estados Unidos e pela União Soviética. O primeiro atua
segundo um sistema de pressões desenvolvido por meio de uma política voltada para a contenção do
comunismo no mundo, enquanto a União Soviética tem como objetivo consolidar o socialismo e dar suporte
para as lutas de libertação nacional (HERNANDES, 2002, p.169).
137
3.1 O ressurgimento de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau no contexto do
Massacre de Pindjiguiti
Na Guiné-Bissau, o marco fundamental na história do movimento de libertação é a
década de 1950, que também marca o ressurgimento de Amílcar Cabral no contexto político
do país, no âmbito da sua nomeação como engenheiro agrônomo na granja de Pessubé a
serviço da administração colonial.
Foi nesta circunstância que ele teceu laços com o país dando início à sua vida política
clandestina, como mencionado no segundo capítulo. Na verdade, o governo português tinha o
intuito de realizar o recenseamento agrícola na Guiné-Bissau como parte da sua agenda
internacional. Amílcar Cabral prestava serviço ao governo português na Estação Agrícola de
Lisboa quando o governador decidiu confiar-lhe essa missão na Guiné-Bissau.
Importante frisar que Amílcar Cabral nasceu a 12 de setembro de 1924, na GuinéBissau na cidade de Bafatá (Leste do país); é filho de emigrantes caboverdianos e servidores
públicos do governo colonial na Guiné portuguesa. Aos onze anos de idade deixou o país
seguindo para Cabo Verde onde fez estudos primários e concluiu o ensino médio.
Pelo contexto da carência do ensino superior em Cabo Verde, assim como nas
demais colônias portuguesas africanas, e por pertencer a uma familia assimilada, conseguiu
uma bolsa de estudos para fazer engenharia agrônoma no Instituto Superior de Agronomia
(ISA) em Lisboa. É a partir daí que inicia uma vida política paralela à vida acadêmica na CEI
em Lisboa, como citado anteriormente.
Assim como no continente africano, marcado pela expansão do nacionalismo na
década de 1940 e 1950, Guiné-Bissau não fugiu à regra, havendo uma proliferação de
organizações recreativas de diversos segmentos em que gravitavam toda a vida social;
algumas eram exclusivamente de caboverdianos e portugueses, outras agregavam apenas os
bissau-guineenses assimilados.
Existia uma subdivisão social dentro da sociedade bissau-guineense, entretanto, além
de tudo isto, havia também o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné,
Angola e Moçambique, que reforçava a estratificação social com base na legislação colonial.
Este estatuto objetivava dividir as populações em grupos: “indígenas”, assimilados e
brancos, como forma de estimular uma divisão cultural e “racial” no tocante à forma de
tratamento das pessoas. Por outro lado, facilitava em explorar os africanos que não estavam
cobertos pelo estatuto de assimilados e, portanto, não dispunham de cidadania portuguesa.
138
Assim sendo, a aplicação de trabalho forçado e repressão constituíam instrumentos principais
da submissão do regime colonial.
Nos ensaios de Antonio E. Duarte Silva (1997), Carlos Cardoso (2008) e Oscar
Oramas (1998), pode-se ver uma descrição panorâmica de como era constituída a sociedade
bissau-guineense na época. Para Antonio E. Duarte Silva (1997), o Censo de 1950 realizado
na Guiné-Bissau visava a distinguir os “indígenas”, os cidadãos portugueses e estrangeiros; as
indicações são de que
A população civilizada era composta 8.32 indivíduos, dos quais 7.954 eram
cidadãos portugueses, dentre eles, 1.501 provinham da metrópole, 1.703 de
Cabo Verde e os restantes 4.644 da própria Guiné-Bissau, e os 366 eram
estrangeiros, dos quais cerca de 80 % eram libaneses. Desse total, 2.263
eram brancos, 4.568 eram mestiços, 1.470 negros e 11 indianos e a taxa de
analfabetismo alcançava 43,54%. A restante população (cerca de 500.00
residentes era constituída por indígenas, distribuídos por cerca de trinta
grupos étnicos, sendo balantas, fulas, manjacos, mandingas e papéis,
decrescentemente, os mais numerosos. Em outras palavras, 99,7 % da
população tinha estatuto indígena de produção (monocultura e amendoim)
era totalmente nativa, a maioria da população civilizada vivia nas zonas
urbanas (p.26-27).
Oramas (1998), ao analisar a estrutura social da Guiné Portuguesa, é enfático ao
denunciar a farsa da política assimilacionista portuguesa em Bissau. Na Guiné Portuguesa,
99% dos seus habitantes são filhos da terra, ou seja, nativos atrelados às tradições, fato que
não se comparava com Cabo Verde, que contava com 70% da população de assimilados dos
quais mestiços convertidos ao catolicismo. Ou seja, os pré-requisitos para se tornar assimilado
na Guiné são distintos em relação a Cabo Verde.
Ainda segundo Oramas, outro fato que merece ser destacado é a recorrente
discriminação racial que se estabelecia contra os nativos na Guiné-Bissau, situada na Lei
Fundamental da metrópole e descrita no Estatuto do Indigenato. Com efeito,
O artigo segundo do Estatuto da Guiné Portuguesa estipula que todo o
individuo de raça negra ou os seus descendentes, que não possuam algumas
das características e dos costumes individuais e sociais requeridos para
prestação do direito público e privado dos cidadãos portugueses não podem
gozar desse direito. Em conseqüência o indígena não tem direitos políticos,
não pode eleger nem depor, nem sair dos limites das regras estipuladas pelas
autoridades [...]. E mais, para passar da condição de indígena à de cidadão
deve ter um bom conhecimento da Língua Portuguesa e exercer uma
profissão que lhe permita subvencionar as necessidades das pessoas o seu
cargo (p.28).
139
O regime colonial utilizou-se de mecanismos de superexploração da mão de obra, da
negação de instrução, legitimado por uma forte demarcação racial entre nativos e “cidadãos
portugueses”, isto é, assimilados,70 para justificar a exploração.
Importante frisar que os funcionários administrativos eram reconhecidos pelo
estatuto jurídico colonial de assimilados, visto que gozavam de certos privilégios em relação
aos demais membros da população nativa, considerada “indígena” e desprovida da cultura
portuguesa. Esse fato estabelecia de forma automática a diferença de status social que
demarcava a identidade destes sujeitos.
Tudo isto, fazia parte da estratégia que visava destruir a unidade das populações
contra o regime, reforçando o ódio e as divisões étnicas. Vale lembrar que a política colonial
portuguesa contava com dois grandes objetivos, que constituiam o principal eixo da
colonização, a expansão da “raça” branca e a “civilização” dos nativos com base na educação
e preceitos europeus. Segundo Amílcar Cabral,
A chamada “ política de assimilação” dos povos africanos, além de ser falsa
do ponto de vista científico, é desumana, oportunista, imoral. Baseia-se na
realidade na tese racista de indignidade e da capacidade da raça negra
e,consequentemete, no desprezo total dos valores da cultura e da civilização
negro-africana, pretende impedir que o génio dos povos africanos, na sua
autencidade original, continua para o enriquecimento da cultura e da
civilização humanas, fomenta o desprezo, o desrespeito e a dessolidariedade
de minorias ditas “assimiladas” para com as grandes comunidades africanas
aque realmente pertencem{...} nós, os africanos das colónias portuguesas,
conhecemos as mentiras , as perversidades e as hipocrisias contidas nessa
politica que tem tentado dividir-nos para nos explorar mais e melhor.
Sabemos quanto custa obter um “ bilhete de identidade” (prova de
assimilação), para fugirmos a desgraça de sermos considerados “indigenas”
e, ao fim e ao cabo, continuarmos humilhados nas nossas proprias terras,
depois de semos obrigados a negar a nossa condição de africanos (apud
FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, 1965, p.06).
O depoimento de Adriano Gomes Ferreira71 veio elucidar a forte demarcação racial
protagonizada pelos portugueses na Guiné Portuguesa, os aspectos que impulsionaram a
criação dos movimentos contestatórios contra o regime colonial. Este afirma que:
Os Colonos criaram um grupo intermediário formado por mestiços filhos de
nativos e marinheiros fora os que vieram de Cabo Verde que eram servidores
da administração pública. Então os intelectuais que não se misturavam que
70
O paradoxo é inerente à própria categoria de “assimilado”, que, ao estender a cidadania para os negros e
mestiços, legitima a “supremacia branca”. Equivale dizer que é legitimada a opressão de raça e de classe para
excluídos, ou seja, a maioria africana. Além disso, o critério de escolaridade acentua as diferenças entre os
poucos “assimilados” com educação formal e superior e a maioria que não a possui. Por fim, o estatuto de
assimilado não extingue, na prática, as mais distintas modalidades de discriminação, principalmente no âmbito
do processo de trabalho. Ao contrário, introduz “voluntariado” que perpetua a situação prevalecente,
caracterizada por condições de trabalho e salário aviltantes (HERNANDES, 2002, p.160).
71
Entrevista de Adriano Ferreira, militante do PAIGC, abril de 2011, Bissau.
140
estavam em destaque, se sentiram ameaçados com a presença dos mestiços.
Daí começaram a criar o movimento empírico, movimento em si e não para
si. Tratava-se de um grupo aflito que sentia injustiçado, mas que não estava
agrupado como uma organização para enfrentar os colonos. Portanto, para
este grupo de nativos os intermediários (mestiços) dos colonos eram seus
inimigos principais porque estes ocupavam seus lugares. Por outro lado, a
presença de colonos lhe incomodavam. A partir daí começou a criação de
vários pequenos movimentos puramente nacionalistas que colocava de lado
os mestiços, em seguida, surgiram movimentos que apareceram com grupo
de Amílcar Cabral Cabral que decidiram pensar que isoladamente e não
conseguiriam fazer nada e resolveram juntar com outros grupos que eram
escolarizadas como os não escolarizados, porque todos tinham mesma
vontade de se libertar culturalmente. A partir desta ideia se formou um grupo
forte onde se incluía os mestiços, nativos, cabo-verdianos portadores da mais
valia que resultou num movimento mais progressista em relação a um grupo
de nacionalismo mais estreito (Cruz Pinto, Buscardine, Otto, Mario Lima,
Carlos Schwartz eram mestiços e não cabo-verdianos).
Foi nesse sentido que Amílcar Cabral,72 pouco depois da sua chegada em 1953,
propôs a criação de uma organização de convívio desportivo, que abrangeria interesses dos
filhos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, ou seja, a união se impõe diante dos matizes
ideológicos e políticos das organizações.
Esta associação teria como objetivo oculto despertar os ideais nacionalistas entre os
jovens bissau-guineenses e caboverdianos, sensibilizando-os para as excessivas opressões e
injustiças imposta pela metrópole. Assim, seria denominado de Clube Desportivo e Cultural,
ou seja, associação desportiva e recreativa dos africanos, apresentado ao governo colonial
para os fins da legalidade, sem, contudo, associar a imagem de Amílcar Cabral ao clube. Luís
Cabral, no seu testemunho “Crônicas da Libertação”, afirma que “era absolutamente claro que
o aparecimento do nome de Amílcar Cabral ao lado de outros africanos de condição social
muito diferente despertaria suspeitas quanto aos objetivos reais do Clube” (1986, p.32).
Mas como seria possível Amílcar Cabral, visto na época da luta armada como
caboverdiano, propor a unidade dos bissau-guineenses e caboverdianos, que estariam
separados por divisões estabelecidas pelo Estatuto Indigenista do governo português? E ainda
afastados por ressentimentos devido à alegada colaboração e relações de cumplicidade que os
segundos estabeleciam com os portugueses?
72
No seu ensaio intitulado “Crônicas da Libertação”, Luís Cabral (1986,p.33) preconiza que, depois da sua
chegada a Bissau em 1952, Amílcar Cabral se associou primeiro ao Clube de Benfica, como forma de obter
certa proximidade com os bissau-guineenses e também para efetuar um levantamento sobre a situação colonial
vigente no país.
141
Foi nesse contexto que Amílcar Cabral traçou estratégias para dissipar as rivalidades
existentes entre bissau-guineenses e caboverdianos, como forma de dar corpo ao seu projeto
de movimento nacionalista. Nesse sentido, relata Abílio Duarte:
O Cabral destinou-me ao Sporting, que era o clube mais anti-cabo-verdiano
naquela altura. Entretanto, as coisas foram andando... do meu lado, quebrei a
vidraça da cachupa: acabei por estabelecer um relacionamento profundo com
os bissau-guineenses sem romper contudo os meus laços com os caboverdianos. Havia um casulo em que os cabo-verdianos viviam. Formava um
mundo a parte, só seu.73
Convém de igual modo repetir que Amílcar Cabral, apesar de nascer na GuinéBissau, não era visto como bissau-guineense, era prioritariamente apreciado como
caboverdiano pela maioria da sociedade bissau-guineense, como havia analisado no primeiro
capítulo. Com a sua aguçada sensibilidade política, influenciado pelo ideário pan-africanista,
Amílcar Cabral compreendeu cedo que o sucesso do movimento nacionalista só seria possível
se se aliasse aos filhos da terra (Guiné-Bissau), ou seja, reforçando o ideário da unidade entre
Guiné-Bissau e Cabo Verde, através da acentuada singularidade histórica e social que ligava
os dois países, caso contrário seria inviável a convocação de todos para a luta pela
autodeterminação.
Salienta-se que, antes da chegada de Amílcar Cabral, havia movimentos
nacionalistas de caráter embrionário na Guiné-Bissau compostos pelos filhos da terra. E mais,
antes da criação oficial do PAI já existiam movimentos que contestavam o sistema colonial.
Esse fato aliou-se ao contexto africano de unidade, forjou a criação de uma frente para o
movimento de contestação da independência, que será analisado mais adiante.
O Clube Desportivo e Cultural de cunho nacionalista teve seus dias contados, devido
à movimentação que forçou os caboverdianos e bissau-guineenses a ultrapassarem as reservas
e os ressentimentos antes existentes. Isto despertou a desconfiança dos colonialistas que
passaram a vigiar os passos de Amílcar Cabral, ao ponto de passarem a vigiar também a sua
residência (CABRAL, 1984).
Em virtude disso, o pedido da legalização do clube foi negado pelo governo colonial,
que alegou suspeita sobre a verdadeira intenção do clube. Com efeito, o clube não saiu do
papel mesmo sendo composto na sua maioria por membros que também eram funcionários
administrativos coloniais.
73
Entrevista concedida a José Vicente Lopes (LOPES, 1996, p.49). Abílio Duarte é caboverdiano, excombatente de liberdade da Pátria.
142
Diante disso, Amílcar Cabral deixou o país em 1954 e passou a residir em Portugal
onde mais tarde estabeleceria os contatos com Angola. A sua contribuição na criação do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),74 em 1954, marca o início dos
movimentos nacionalistas nas colônias portuguesas.
Sobre o seu abandono forçado de cidade de Bissau, o registro apresenta muitas
lacunas e controvérsias na literatura bissau-guineense. Contudo, há um fato comum: ele
ocorreu devido à repressão que o governo colonial impunha aos movimentos reivindicatórios,
e a única via que restava os ativistas era a clandestinidade.
Paralelamente à vida política de Amílcar Cabral em Lisboa, Angola e Guiné-Bissau,
por influência do contexto da evolução política dos dois países vizinhos (Senegal e GuinéConacri), em 1955, e por iniciativa de alguns assimilados liderados por “José Francisco,
conhecido entre os ativistas pelo codinome Maneta, de etnia manjaca, foi criado o Movimento
para a Independência da Guiné (MING), objetivando despertar a consciência nacionalista do
proletariado dos cenros urbanos” (SILVA, 1997, p.32).
Apesar do seu forte cunho étnico, o MING constituía-se no primeiro movimento de
reivindicação nacionalista na Guiné-Bissau, que, devido à carência da estrutura ideológica e
pouco preparo teórico e pragmático, não avançou. Essa iniciativa deu lugar mais tarde, em
1958, ao Movimento da Libertação da Guiné (MLG), que seria o ponto aglutinador de
unidade dos filhs da Guiné e Cabo Verde.
Mesmo depois da sua saída forçada de Bissau, Amílcar Cabral deu continuidade à
vida política. Seguiu sempre a linha de uma única luta para libertar os povos de Guiné-Bissau
e Cabo Verde. Nesse sentido, convocou uma reunião em 1957, em Paris, com Mário de
Andrade, Viriato Cruz, Marcelino dos Santos e Guilherme do Espírito Santo, todos exestudantes de CEI, para se debruçarem sobre as questões coloniais nas províncias
ultramarinas portuguesas a fim de traçarem estratégias comuns de intervenção
(PEREIRA,2003).
Nessa reunião foi criado o Movimento Anticolonialista (MAC), uma organização de
caráter clandestino e de resistência, que teve como idealizadores os ex-estudantes africanos de
Portugal, e em particular da CEI provenientes de Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola,
Moçambique e São Tomé e Príncipe. A instituição tinha como objetivo desenvolver e
74
O MPLA foi oficialmente formado em 10 de dezembro de 1956. Tratou-se, na verdade da junção numa só
força política de várias organizações então existentes, designadamente o Movimento para a Independência
Nacional de Angola (MINA), Partido da Luta Unida dos Povos Africanos de Angola (PLUAA), Partido
Comunista de Angola (PCA). O primeiro presidente do MPLA foi Mário de Andrade, que cedeu lugar depois
a Agostinho Neto, tendo a partir de então entrando em dissidência (LOPES, 1996, p.55).
143
coordenar a unidade dos africanos na luta pela liquidação do colonialismo português na
África e conquistar a independência nacional (FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, 1965, p.03).
O que subjaz ao processo das lutas de libertação das colônias portuguesas na África
se relaciona com o que posteriormente implicou na descolonização destes territórios. Tal
modo de agir justifica-se no fato de que Portugal, ao contrário das outras potências europeias,
como Inglaterra, França ou Bélgica, negou e impediu sistematicamente o término da ocupação
e submissão através da negociação com os movimentos independentistas. Nas antigas
colônias africanas, como explica Guilen, “[Portugal] não utilizou a tática das independências
negociadas; foi necessária a Revolução de 25 de abril de 1974 75 para que se colocasse fim à
guerra colonial e se assinasse os tratados de paz e o reconhecimento das independências”
(GUILEN, 2007, p.29).]
Não obstante, os portugueses seguiam firmes sob intensa ofensiva contra as colônias,
com o consentimento do então Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, António
Salazar,76 que alegava a insubmissão dos africanos à soberania portuguesa. Foi nesse âmbito
que assistiu-se a inúmeros massacres nestas colônias, que antecederam o início da guerra
colonial, a exemplo do Massacre de Pindjiguiti,77 de 1959, em Bissau, que ceifou vidas de
centenas de marinheiros em reivindicação por melhorias nas condições de trabalho.
Fato semelhante aconteceu em Angola com o Massacre de Malange, em 1961,
desencadeado contra os agricultores de algodão, que lutavam contra as duras condições de
75
76
Sobre Revolução de 25 de abril, ver: AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos. Os anos da
guerra colonial. Lisboa: Quidnovi, 2010.
Salazarismo ou Estado Novo é o regime político autoritário, corporativista, repressivo, com influências do
fascismo, aplicado em Portugal, durante a ditadura de Salazar. Vigorou durante 41 anos em Portugal. Iniciou
quando António de Oliveira Salazar assumiu o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, em 1932. Em
1933, com a aprovação de uma nova Constituição por plebiscito nacional, ampliaram-se os poderes de Salazar
até seu afastamento do governo em 1968. O seu sucessor foi Marcelo Caetano, que manteve as características
e a política centrais do regime. Esse regime chegou ao fim com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Em 1930,
Salazar elabora um Decreto que inclui o seu projeto político para as colônias: o “Acto Colonial”, inaugurando
uma nova fase na administração colonial portuguesa, uma fase imperial, centralizadora e em parte
nacionalista. Esse projeto, em linhas gerais, vigorou até 1951, e reflete as mudanças internas com a queda da
República e uma nova relação com as potências internacionais, um temor de que os territórios coloniais
pudessem ser ameaçados pelas grandes potências. O “Acto Colonial” reafirmava a trajetória histórica de
Portugal possuir e colonizar domínios ultramarinos, estabelecendo colônias como parte do Império Colonial
Português, civilizando as populações indígenas, reservando ao Estado a administração e exploração dos portos
comerciais das colônias e impõe que as futuras concessões do Estado, mesmo as de capital estrangeiro, fiquem
subordinadas à nacionalização e desenvolvimento da economia. Em relação aos “indígenas” estabeleceu
estatutos especiais, atribuindo ao Estado o dever de garantir a proteção e defesa dos indígenas, proibindo o
regime de trabalho forçado, mas prevendo que o Estado pudesse requisitar os indígenas ao trabalho em obras
públicas e em execução de penas judiciárias. Em relação à religião, considerava as missões religiosas do
ultramar um instrumento de civilização e de influência nacional, concedendo-lhes proteção e auxilio do
Estado, como instituições de ensino (GUILEN, 2007, p.17).
77
Ver Amado (2010) sobre Massacre de Pindjiguiti.
144
trabalho e salários atrasados. Em São Tomé e Príncipe não foi diferente com o Massacre de
Batepá, em 1953, tirando mais de mil vidas (AFONSO & GOMES, 2010).
Outra grande matança que antecedeu a guerra colonial nestas colônias foi Mueda, em
Moçambique, em 1960, cuja reivindicação dos camponeses macondes era para melhores
condições de vida e aplicação dos preços dignos aos seus produtos. Nesse sentido, diante do
cenário de mal estar entre os camponeses e as autoridades coloniais, “foi convocada pelas
autoridades locais uma reunião de negociação com o administrador da região, onde
comparecerem os chefes e os dirigentes camponeses, a referida reunião foi sem acordo e
culminou na intervenção militar, ceifando um número considerável de vítimas” (AFONSO &
GOMES, 2010, p.44).
Outras colônias portuguesas também experimentaram a violência e repressão do
regime salazarista, como a Índia, que insistia na transferência de soberania em 1953, baseada
na negociação pacífica com o governo de Portugal, que por sua vez manteve a posição de
ocupação sem limites.
Todo esse cenário colaborou para intensificação dos conflitos entre as tropas
coloniais e os satyagrahas (civis desarmados que queriam ocupar pacificamente o território).
Este conflito também somou inúmeras vítimas. Situações desta natureza também foram
registradas em Timor-Leste, cuja repressão violenta desencadeada contra as aldeias indígenas
contabilizou de quinhentos a mil mortos em junho de 1959 (AFONSO & GOMES, 2010).
Tais evidências certificam que Portugal não tinha interesse em efetuar a negociação
pacífica da desocupação em nenhuma das colônias. Isso pode ser percebido nas diversas
contestações pacíficas organizadas pelas colônias, que tiveram respostas justificadas por mera
violência obstinada do governo português, culminando nos diversos massacres acima
descritos.
Estes eventos marcaram significativamente as décadas de 1950 e 1960 e
impulsionaram as lutas de libertação nas colônias portuguesas justificadas sob diversos
fatores, como melhores condições de trabalho e de salário, a liquidação do trabalho forçado,
as arbitrariedades e excessos da violência, o abuso de poder, a discriminação racial, e a
obtenção da soberania nacional. Salienta-se que na Guiné-Bissau todos os movimentos
nacionalistas se encontravam na clandestinidade devido à repressão da PIDE, que impedia aos
seus ativistas desenvolverem as mobilizações de forma direta.
O contexto que antecedeu o Massacre de Pindjiguiti, em Bissau, foi traçado pelos
nacionalistas bissau-guineenses como a fase de pressão pacífica para o enfrentamento do
sistema colonial, dentre as táticas orquestradas por estes que consistiam em orientar a maioria
145
da classe trabalhadora em organizar greves para exigir que os portugueses mudassem a sua
posição relativa aos direitos legítimos do povo bissau-guineense, a autodeterminação e a
independência nacional.
Evidencia-se que estas ações estavam rubricadas na resolução da conferência de
Manchester, que postulava pela via pacífica de reivindicação e de autonomia. Foi nesse
sentido que, em 1957, aconteceu a primeira contestação, “desta vez entre a administração
colonial e os marinheiros e estivadores do Porto de Pindjiguiti por questões salariais. A greve
satisfez, em grande parte, as petições dos trabalhadores sem pressões significativas e sem
vítimas” (AFONSO & GOMES, 2010, p.43).
Desta forma, tendo em conta o cenário anterior, os trabalhadores portuários
resolveram de novo cruzar os braços em 1959 com os mesmos objetivos da primeira greve,
desta vez impulsionados pelo Movimento da Libertação da Guiné (MLG). Contudo, os
portugueses reagiram de forma repressiva e violenta, considerando ilegal a greve. Assim
sendo, acionou-se o exército para impor a ordem à força, provocando inúmeras vítimas. É
nestas condições que traçamos diferenças entre o massacre de Bissau e os massacres em
outras colônias portuguesas, uma vez que em Bissau o Massacre de Pindjiguiti foi motivado
pela determinação política.
O Massacre de Pindjiguiti, de 03 de agosto 1959, constitui-se num marco da
repressão violenta que a administração colonial executou contra os marinheiros e estivadores
no Cais de Pindjiguiti, devido a uma grave organizada por estes no intuito de reivindicar
melhores condições de salário.
Dos estudos registrados pelo PAIGC, depreende-se que foram assassinados centenas
de marinheiros pelos militares e civis portugueses. No entanto, o governo português tentou
equacionar o problema reduzindo o número de vítimas. Como testemunha, a guarda de PSP
(no diário do clero católico) nos manuscritos de Henrique Pinto Rema, sobre a História das
Missões Católicas da Guiné (apud SILVA, 1997, p.36):
Os trabalhadores do porto de Bissau responderam melhor do que quaisquer
outros às solicitações dos dirigentes do Partido, que organizam nos centros
urbanos, a começar por Bissau. São os mesmo grevistas de 1956 que irão
desencadear nova ação de força em 3 de agosto de 1959, agora porém já
mais unidos e muito maior numero. Mas os comandos portugueses de 1959
não são os mesmos de 1956. Quando a insurreição desponta nas Oficinas
Gerais e se espalha a toda a zona marítima do cais de Pindjiguiti, a polícia
acode ao local de armas carregadas. Os insubordinados dispõem de remos,
paus, barras de ferro, pedras e arpões. As duas partes em confronto não
cedem, não dialogam. No primeiro reencontro, os dois chefes da polícia
disparam para o ar, da refrega saem 17 guardas feridos. A polícia perde o
autodomínio e começa a tirar a matar em força, sem quaisquer
146
considerações. No fim, há uns 13 a 15 mortos espalhados no Cais de
Pindjiguiti, mais cadáveres de marítimos e estivadores são arrastados pelas
águas do Geba, não se sabe quantos; alguns moribundos ou gravemente
feridos vão falecer no hospital. Muitos dos amotinados conseguiram escapar
para o Senegal e Republica da Guiné Conacri nos próprios barcos em que
trabalhavam (sic).
Importante ressaltar a falta de solidez e a disparidade que permeiam as estatísticas
que quantificam as mortes do Massacre de Pindjiguiti. Não obstante, os nacionalistas bissauguineenses calculam mais de 50 mortos e dezenas de feridos. Por outro lado, os colonialistas
portugueses minimizam o cenário reconhecendo apenas sete mortos e 17 feridos. Observando
a cena em que situamos esses acontecimentos políticos, podemos considerar que o Massacre
do cais de Pindjiguiti constitui o motor que impulsionou a luta armada na Guiné-Bissau.
Depois de assassinatos dos estivadores portuários e de marinheiros em greve, os
bissau-guineenses acompanharam de perto os reflexos da repressão do regime colonial. Com
objetivo de neutralizar a repressão colonial, a elite intelectual reformulou as estratégias junto
às massas populares, depois do Massacre de Pindjiguiti. Desse modo, surgiu a necessidade de
uma organização mais consistente para enfrentar a administração colonial: a via armada.
Segundo Amílcar Cabral (1974), a luta armada constitui a única via para libertação do povo
bissau-guineense da opressão. Tendo isso em perspectiva ele afirmou que:
Nessa altura, o nosso Partido decidiu realizar uma conferência clandestina
em Bissau e foi então que mudamos de orientação. Quer dizer, começamos a
mobilizar os campos e decidimos preparar-nos ativamente para a luta armada
contra as forças colonialistas portuguesas. Decidimos que as massas
populares não deviam fazer nenhuma manifestação que pudesse dar lugar a
represálias criminosas da parte dos colonialistas portugueses (CABRAL,
1974, p.57-58).
A partir deste evento, a situação tornou-se mais complexa para os nativos; a
administração portuguesa usou métodos severos para manter o poder da repressão. Desse
modo, além da repressão armada acionaram outras formas de reprimir a população. O preço
dos produtos alimentícios que constituíam a cesta básica triplicou, os valores aumentaram de
forma estrondosa. A fome foi usada como uma das formas de intimidar as organizações
clandestinas lideradas pela elite intelectual local e consequentemente intensificou-se a pressão
sobre as massas populares que apoiassem aquelas.
Cabe lembrar que o uso da fome como recurso para oprimir não se limitava apenas a
Guiné-Bissau, mas também às ilhas de Cabo Verde, cuja população era submetida à esta
147
condição pelo governo português, que entre 1958 e 1959 obrigou milhares de jovens
caboverdianos a trabalharem nas plantações portuguesas de outras colônias (LOPES, 1996).
A repressão portuguesa não se limitava apenas a esse modo de operar. Ampliava as
suas táticas com bombardeamento de aldeias como forma de aterrorizar e intimidar o apoio
que as massas populares concediam à elite intelectual local no tocante ao movimento de
libertação nacional. Todas essas circunstâncias confirmaram ao PAI a necessidade de
mobilizar as massas camponesas no interior do país, para o início de uma conscientização
política.
As sucessivas ondas de repressão por parte da administração portuguesa forjaram
uma maior conscientização das massas populares para ingressarem nas fileiras da luta armada
como forma de se oporem ao sistema opressor português. Ao contrário do que vinha
acontecendo, os portugueses começaram a perder apoio de alguns segmentos étnicos no país
devido às excessivas taxas e impostos e, consequentemente, ao não cumprimento das
promessas, como atestou Cabral (1974, p.21):
[...] a situação política é, portanto, cada vez mais tensa. A Guiné-Bissau vive
(hoje) em estado de sitio, estando todos os colonos armados e as populações
autóctones submetidas a provocações freqüentes da parte dos militares e da
policia colonial. Para fazer face à maré crescente da nossa luta de libertação,
os colonialistas portugueses reforçam continuamente o exército.
Com efeito, depois dos acontecimentos do Massacre de Pindjiguiti, o PAIGC decidiu
dar corpo ao projeto de luta armada. A partir desse momento, as mobilizações se
intensificaram entre os bissau-guineenses e caboverdianos, que partilhavam do mesmo ideal
para liquidar o colonialismo. António E. Duarte e Silva (2010, p.110) evidencia no seu
trabalho que o Massacre de Pindjiguiti “tornou-se um marco histórico e politicamente
aproveitado pelo PAI para a impor a passagem da agitação nacionalista à fase superior da luta
de libertação nacional”.
Todavia, a ação da mobilização para a viabilização da greve dos marinheiros e
estivadores do Cais de Pindjiguiti tem a sua paternidade disputada entre o MLG e o PAI.
Alguns autores, como o historiador bissau-guineense Leopoldo Amado, atribuem ao MLG
(fundada em 1958) o pioneirismo das mobilizações dos grevistas portuários. É verdade que o
fato de ter um membro do MLG envolvido na greve dos portuários, sem dúvida, reforça o
protagonismo do MLG neste evento.
Igualmente é importante enfatizar que Rafael Barbosa (membro do MLG que,
também sob clandestinidade, atendia pelo pseudônimo de Zain Lopes) foi um dos
148
protagonistas do itinerário nacionalista bissau-guineense, antes da precoce liderança de
Amílcar Cabral atribuída pela historiografia da luta de libertação. Nesta direção, afirma
Amado (2005, p.08):
Assim, a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do
PAI (GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o
PAI partilhavam indistintamente, como já se referiu, o mesmo espaço
político, a mesma clientela, chegando mesmo muitos membros do PAI a
serem concomitantemente do MLG e vice-versa, de resto, tendência essa que
em certa medida se acentua mesmo depois de consumada a rotura entre as
duas formações políticas, sobretudo a partir do momento em que a partir de
Conacri e Dakar Amílcar Cabral, movido pelo imperativo da união na luta
contra o colonialismo, passou a produzir e a expedir para Bissau inúmeros
panfletos em que, à cautela, omitia de propósito quer a sigla do PAI quer a
do MLG, para apenas se referir ao Movimento de Libertação da Guiné e
Cabo Verde, os quais, de resto, eram clandestinamente distribuídos em
Bissau por elementos de filiação dupla, particularmente os que, não
renegando o MLG em favor do PAI, tal como fez Rafael Barbosa, de alguma
maneira permaneceram no PAI, sob a influência deste último.
Estes são alguns dos episódios indefinidamente por esclarecer na historiografia do
país, como também a verdadeira data da criação do PAIGC; devido a esse fato, os estudos
atuais evidenciam que a fundação do partido só teria se concretizado depois da ida de Amílcar
Cabral a Bissau, período posterior ao Massacre de Pindjiguiti, em setembro de 1959, para se
situar sobre os acontecimentos do massacre (CABRAL, 1984; PEREIRA, 2002; TOMÁS,
2010; SOUZA, 2011).
3.2 Uma luta, dois países: a criação de uma única frente para libertação da
Guiné-Bissau e Cabo Verde e a inserção dos camponeses nas fileiras de luta
Foi também em setembro de 1959 que Amílcar Cabral havia se reunido com Rafael
Barbosa no intuito de formar uma única frente nacionalista para a luta de libertação nacional.
Assim, teria o MLG se unido ao PAI traçando os mesmos programas para a luta armada
(AMADO, 2005; PEREIRA, 2002; CABRAL, 1984).
Depois de muitas controvérsias entre o MLG e o PAIGC, os partidos concordaram
em se unificar para a luta de libertação. Mais uma vez, vale registrar o papel desempenhado
por Rafael Barbosa no processo de intermediação e conciliação entre as duas organizações.
Sobre o encontro de Amílcar Cabral e Rafael Barbosa, Luís Cabral afirma:
149
Amílcar Cabral apreciou imenso o trabalho que estava sendo feito pelo
Rafael e a sua perfeita compreensão da necessidade de união e do papel que
o Partido aí devia desempenhar. Do seu encontro e das discussões que
tiveram lugar, resultou a criação de uma Frente de luta- a Frente de
Libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde (FLGC). O Rafael e os seus
companheiros continuariam, portanto, com seu grupo, agindo em
coordenação e sob direção do partido. Deste grupo, deviam sair mais tarde,
alguns militantes de grande valor para o trabalho clandestino que ia entrar na
sua fase adulta (CABRAL, 1984, p.74).
Foi a partir desse contexto que Rafael Barbosa serviu de articulador político entre os
bissau-guineenses e os caboverdianos, para a consolidação da unidade para a luta de
libertação. Dessa forma,
Rafael Barbosa tornar-se-á a partir de então e dentro da Guiné, o elemento
fundamental da campanha de mobilização a favor do PAI- PAIGC, que se
traduziria, sobretudo no encaminhamento de jovens militantes para o
exterior, visto que como elemento da construção civil estava bem
posicionado para dialogar com os assalariados e operários, fazia viagens e
mobilizava as pessoas. Nas várias deslocações pelo interior era
freqüentemente acompanhado por Fernandes Fortes e a quantidade de
lançamentos de panfletos por todo território, foi constante e em grande
escala (SILVA, 2010, p.114).
Portanto, o projeto de Amílcar Cabral para viabilização da luta armada passaria pela
unidade entre os dois povos, que visava constituir uma frente única para independência,
objetivando a liquidação do colonialismo português. Cabral defendeu o seu projeto de
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde com base na ligação histórica entre os povos das então
colônias portuguesas. Porém, apesar de tais laços históricos, esses dois povos não se
reconheciam mutuamente como um só povo. É essa falta de reconhecimento mutuo que irá
refletir no projeto de unidade binacional de Amílcar Cabral.
É a partir deste momento que a ideia da unidade africana é redesenhada sob novos
contornos na Guiné-Bissau, objetivando a congregação étnica sem distinção de pertencimento
étnico e religioso, como também da unidade com os filhos de Cabo Verde. Isto seria a
ideologia que conduziria a mobilização para a luta - unidade e luta. Nesse sentido, Amílcar
Cabral “desempenha um papel decisivo na criação de uma estrutura política binacional e
biterritorial que engloba a Guiné-Bissau e Cabo Verde” (ORAMAS, 1998, p.43).
Evidentemente que as pesquisas recentes vieram a reforçar a inexistência oficial do
PAI antes do ano de 1959, diferente do que preconizava a historiografia oficial. No entanto, o
que pode ser considerado fruto da associação recreativa cultural criada por Amílcar Cabral e
150
seus seguidores é o Movimento para Independência Nacional da Guiné (MING), fundado em
1955, sob liderança de José Francisco Gomes, como referido acima.
Desta forma, o ano de 1959 marca o cenário da reviravolta com uma nova versão da
fundação do PAI, desta vez agregando os militantes do MLG, tornando Rafael Barbosa um
dos personagens principais da unidade dos filhos da Guiné-Bissau com os caboverdianos,
constituindo uma frente única de libertação nacional.
Assim, Rafael Barbosa assumiu a mobilização clandestina na capital Bissau e no
interior, convocando os filhos da terra para o que seria mais tarde a luta armada. Dito de outra
forma, foi Rafael Barbosa quem inseriu Amílcar Cabral no movimento nacionalista bissauguineense, conclamando todos os bissau-guineenses para o projeto de unidade nacional e
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde. Este assunto será analisado mais adiante.
Seguindo a ideologia da Unidade Africana, o Partido Africano de Independência
(PAI) veio a tomar uma forma política diferente dos demais partidos, quando propôs a
unidade dos caboverdianos e bissau-guineenses para criação de uma frente de libertação
nacional, ou seja, um partido que abrangeria os interesses dos bissau-guineenses e
caboverdianos, resultando no Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC).
O partido tinha objetivos bem definidos, situados entre o programa mínimo e o
programa maior. O primeiro objetivava “a união orgânica de todas as forças nacionalistas e
patrióticas, com vistas à independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde”, e outro programa
que expressava os anseios dos combatentes, o programa maior (LOPES, 1996).
Este programa traçava nove pontos, a saber: 1. independência imediata e total; 2.
unidade da nação na Guiné-Bissau e em Cabo Verde; 3. unidade dos povos da Guiné-Bissau e
de Cabo Verde; 4. unidade africana; 5. regime democrático anticolonialista e anti-imperialista;
6. independência econômica, estruturação da economia e desenvolvimento da produção; 7.
justiça e progresso para todos; 8. defesa nacional eficaz e ligada ao povo; e 9. política
internacional própria no interesse da Nação, da África, da paz e do progresso da humanidade.
(LOPES, 1996, p.33).
Assim, no mesmo ano de 1959, Amílcar Cabral reuniu-se com os bissau-guineenses
e caboverdianos radicados em Dakar para falar do sentido da unidade para a luta, e apelou
para uma organização massiva dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde para apoiar o
desenvolvimento desta luta.
151
Destaca-se que esta reunião marca a verdadeira criação do PAI de Amílcar Cabral
em Dakar, que mais tarde acrescentaria o GC de 1961 a 1962. No seu estudo intitulado
“Guiné Bissau: a nação africana forjada na luta”, Amílcar Cabral afirma que:
Após a criação do Partido, numa primeira fase, a sua atividade limitou-se a
mobilizar as camadas urbanas da pequena burguesia, dos funcionários da
administração publica e do setor comercial, dos assalariados da capital, dos
trabalhadores do porto, e dos jovens vindos do campo para a cidade, que são
a principal força revolucionária (CABRAL, 1974, p.26-90).
A partir de 1959, houve uma participação expressiva das massas populares afiliadas
ao PAIGC, o que possibilitou uma ação decisiva do partido para a via armada. Entretanto, o
partido contava com alto índice de analfabetismo em seu seio, e tinha que suprir esse quadro
crítico de forma que traçou planos de cursos de alfabetização e formação para estes membros.
No que se refere à educação, raros foram os estudos que evidenciaram em uma das
colônias portuguesas uma ampliação do sistema de ensino para as populações de modo geral,
pois era prioritária para os brancos e para os negros assimilados. A educação estaria a cargo
das escolas missionárias ou da igreja católica. Os nativos (indígenas), por sua vez, não tinham
direito à instrução. Esta situação se repete em todas as colônias sob domínio de Portugal em
África. Nesse sentido, Aristides Pereira (2003, p.54) declara:
A Escola e o Estado tornaram-se, por conseguinte lugares históricos de
formação de classes. Estas instituições são o berço do que mais tarde virá a
chamar-se de “pequena burguesia burocrática”, ou seja, o universo daqueles
que detêm habilitações escolares, dominam a língua portuguesa e são
empregados públicos ou em setores diretamente ligados ao Estado.
Seguindo a ideologia de formação de classe social citada acima, na sua primeira fase
de mobilização em Bissau, os nacionalistas limitaram-se a estabelecer os primeiros contatos
com os indivíduos que sabiam ler e escrever, residentes na zona urbana, especificamente na
capital, Bissau, ou seja com os funcionários administrativos, os comerciantes, os indivíduos,
que gozavam de status de assimilados, e que eram próximos aos dirigentes do partido, já que
não tinham um espaço de manobra seguro para estender o processo a outras camadas sociais
devido ao forte esquema da PIDE.
No entanto, o processo de mobilização foi desencadeado nesses estratos sociais
acima referidos, sendo o PAI o representante dos interesses dos povos da Guiné-Bissau e
Cabo Verde nas reivindicações contra o sistema colonial; não obstante, nem todos estavam
comprometidos para lutar contra a dominação estrangeira, em particular a pequena burguesia,
152
que não se manifestou em renunciar aos privilégios concedidos para aliar-se à defesa da
população.
O Massacre de Pindjiguiti confirmou, para os movimentos nacionalistas da GuinéBissau, que o processo da independência não passaria pela mesa de negociações. A
prepotência dos colonialistas ficou evidente depois do trágico acontecimento de 03 de agosto
de 1959, reforçando, contudo, a sua posição de responder com violência a todo e qualquer
movimento que viesse a contestar o regime colonial.
Articulando o esforço teórico de Luís Cabral (1984) à assertiva de Licínio Azevedo
(1977) e Leopoldo Amado (2005), é possível analisar que as lições do Massacre de Pindjiguiti
serviram para reformular novas estratégias do movimento nacionalista. Foi nesse ensejo que
os nacionalistas chegaram à conclusão de que dentro da cidade de Bissau não se poderia
iniciar uma guerra desigual.
Assim, o PAIGC sentiu a necessidade de intensificar as mobilizações no seio das
massas camponesas com objetivo de desencadear a luta armada. Diante disso, os
desdobramentos dessa reformulação de estratégia de luta abrem uma nova etapa: o
deslocamento do combate para o interior do país (zonas rurais) e a mobilização das massas
camponesas para o enfrentamento.
Deste modo, Amílcar Cabral estabelece as linhas gerais de um plano de ação
(CABRAL apud ORAMAS, 1998, p.47) que orienta a organização da luta: 1. mobilizar e
organizar sem demora as massas camponesas, que a experiência revelou serem a força
principal da luta de libertação nacional; 2. reforçar a organização nos meios urbanos e mantêla na clandestinidade, evitando toda e qualquer manifestação pública; 3. desenvolver e
reforçar a unidade dos africanos de todas as etnias, de todas as origens e de todas as camadas
sociais à volta do partido; 4. preparar o maior número de quadros, tanto no interior como no
exterior, para a direção política da organização e para o desenvolvimento vitorioso da luta; 5.
mobilizar os emigrados residentes nos territórios vizinhos a fim de servirem à luta de
libertação e ao futuro do povo; e 6. lutar para obter os meios indispensáveis à continuação
vitoriosa da luta.
Esta é a segunda fase de mobilização mais expansiva, que marca a inserção dos
camponeses no cenário de luta de libertação nacional. Para o efeito da conscientização destas
camadas, a estratégia recaiu na realidade cotidiana destes camponeses, nas explorações na
qual eram vitimas no tocante aos produtos cultivados e aos preços submetidos pelas
153
autoridades coloniais. Aos poucos conseguiam enxergar a sutileza da exploração que sofriam,
como declara Cabral:
[...] Na Guiné- Bissau, os camponeses estão sujeitos a uma espécie de
exploração equivalente a escravatura, mas mesmo que se tente explicar-lhes
que estão a ser explorados e roubados, é difícil convencê-los mediante uma
explicação desprovida de experiência de tipo técnico-econômico, que são as
mais exploradas das pessoas. Em contrapartida é mais difícil convencer os
trabalhadores e as pessoas das cidades que ganham, digamos, 10 escudos por
dia num emprego em que um europeu ganha entre 30 a 50 escudos, de que
estão a ser vitimas de uma exploração e injustiça maciças, pois eles vêem no
por si próprios (CABRAL, 1974, p.44).
Este episódio se constituía num fato complexo para a mobilização dos camponeses
contra a presença colonial, porque não se tratava de uma exploração direta de trabalho, como
acontecia, por exemplo, em outras colônias portuguesas, a exemplo de Angola e
Moçambique, nas empresas agrícolas.
Na Guiné-Bissau os portugueses não criaram empresas agrícolas como acontecia em
Moçambique e Angola. Destarte, podemos afirmar que na Guiné-Bissau a terra estava “livre”
e naturalmente pertencia à propriedade coletiva da tabanca. E, por outro lado, alguns
camponeses não eram conscientes dos efeitos do domínio estrangeiro, já que a terra
continuava sendo um bem coletivo e comum da tabanca e estava na sua posse e
administração (CABRAL, 1974).
Dois fatores cruciais forjaram a mobilização nas zonas rurais. Primeiro, a cidade de
Bissau era toda dominada pelo governo português, visto que todas as empresas eram
controladas por eles e a população urbana dependia única e exclusivamente do comércio e
emprego das empresas coloniais existentes na cidade e, por isso, era fácil ser manipulado
pelas autoridades coloniais nessa relação de dependência.
Ademais, só a população urbana não teria condições de dar corpo à luta armada,
havia sempre os infiltrados que atrapalhariam a organização da luta, visto que, alguns haviam
sido corrompidos pelos privilégios concedidos pelo governo colonial, de integrar a sociedade
como assimilados (CABRAL,1984).
Outro fator é que a população rural era mais independente nesse ponto de vista em
relação à urbana, portanto não dependia do colonialismo para sobrevivência, ou seja, era o
campo que abastecia a cidade (CABRAL, 1984; AZEVEDO, 1977).
154
O livro de Licínio Azevedo (1977), “Diário da Libertação”, veio elucidar as
dificuldades em desenvolver o movimento nacionalista em Bissau e a luta armada. Para este
autor:
Além da posição geográfica dentro do campo de luta, houve a
desestruturação da rede clandestina do PAIGC na capital Bissau. A
organização foi praticamente desmantelada pela ação implacável da PIDE.
Como manter líderes clandestinos dentro de uma cidade cercada por
quartéis? Isso contribuiria para acentuar mais o desnível entre a população
urbana e o interior [...]. O próprio presidente do PAIGC, um dos militantes
mais antigos, o capataz de obras públicas Rafael Barbosa, foi preso, em 13
de março de 1962 [...]. Com ele caíram os principais responsáveis pela
organização das células. O número um da capital, Fernando Fortes um dos
seis fundadores do Partido foi preso duas vezes. E encarcerado quatro anos
num campo de concentração em Angola (AZEVEDO, 1977, p 26).
Luís Cabral (1984), no seu ensaio “Crônicas da libertação”, enfatiza a independência
da zona rural em relação à cidade, e a possibilidade de efetuar a mobilização no campo e
desencadear a luta arma. Para este combatente da liberdade da pátria:
O homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o
colonialista. Era de campo que vinham o arroz, a mancarra (amendoin), o
coconote, as hortaliças e grande parte do dinheiro dos impostos. E mais, a
população ali não dependia dos colonialistas, como também ainda não se
identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do
tempo de escravatura aos dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários,
encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava
as forças para resistir à poderosa influência do inimigo (p.75).
Desta forma, depois de muitas dificuldades no momento da mobilização das massas
populares do campo para se juntarem à ação armada, os camponeses vieram a constituir-se na
principal força física da luta de libertação nacional aliados com a pequena elite urbana. Nesta
senda, vale destacar o papel preponderante dos distintos grupos étnicos nesse processo. Assim
sendo, no seu depoimento, Adriano Ferreira78 ressalta:
No processo de mobilização todas as etnias tiveram papel importante no
processo de luta de libertação. Os balantas que foram para sul vieram das
zonas de Nhacra, Incheia, foram lavados pelos chineses (que eram
deportados da China-Macau por terem cometidos crimes) para sul. Hoje
muitos militares que nas Forças Armadas nem dois por cento deles estavam
na luta. Sul é terra de dos nalus beafadas. Os balantas tiveram papel
importante na luta, mas não estavam na posição de destaque. A história de
dizer que os balantas foram os que mais lutaram não é verdade. Eles
participaram na luta ativamente na luta tanto quanto os beafadas. Até porque
os grandes comandantes na época da luta eram papeis, beafadas, nalus,
(Nino, Osvaldo, Quemo Mane, Sambá Lamine, João da Costa, Braima
Dakar, Kaba Mané, Ndjamba Mané, Manuel Saturnino Costa, Gazela, Bota
78
Entrevista realizada em abril de 2011 em Bissau.
155
Nam Batcha, etc.) poucos eram comandantes balantas, muitos deles foram
promovidos depois da luta e com 14 de Novembro de 1980.
Neste âmbito, a contribuição desses grupos étnicos possibilitou as primeiras ações
traçadas pelo partido para a obtenção da soberania nacional via pacífica, adotadas pelos
métodos de sabotagem como forma de neutralizar as forças coloniais, começando pelo sul do
país, onde se “destruiu barca no rio Bedanda (na região de Catió), derrubou árvores e escavou
trincheiras em diversas estradas, inviabilizando trânsito no local, além de cortar pontes, redes
elétricas, linhas telefônicas” (AFONSO & GOMES, 2010, p.159).
Tudo isso assinalava a ação direta na primeira fase da atividade do partido, o que
ainda não constituía a luta armada por falta de infraestrutura que sustentasse esse fim.
Importante salientar que foi em 1962 que o PAI acrescentou à sua sigla a letra G (de GuinéBissau) e C (de Cabo Verde), como forma de potencializar esforços com vistas à
autodeterminação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Também nesse ano foi instalada,
em Conacri, a base política e militar do PAIGC junto da fronteira da Guiné-Bissau com o
intuito de possibilitar a deslocação dos combatentes.
As disputas estabelecidas em Conacri entre o PAIGC e as organizações partidárias
bissau-guineenses para a obtenção da legitimidade não foi fácil, uma vez que os
caboverdianos ligados à administração colonial eram vistos por muitos bissau-guineenses
como colonialistas.
Ressalta-se que Amílcar Cabral encontrou várias dificuldades para impor o PAIGC
como a única organização nacionalista de representação dos interesses comuns dos filhos da
Guiné-Bissau e Cabo Verde. Mas é importante salientar que, entre inúmeras organizações que
existiam em Conacri e Senegal, eventualmente o PAIGC fosse o único partido que tinha a
capilaridade de luta anticolonial ao propor uma convergência nacionalista antiétnica.
Para o historiador bissau-guineense Tcherno Ndjai, “a maior vantagem de Amílcar
Cabral, em relação aos seus opositores, estava precisamente naquilo que colocava estes em
oposição ao próprio Amílcar Cabral: a unidade entre bissau-guineenses e cabo-verdianos”
(NDJAI, 2012, p.140). Porque, no contexto africano da época, para as autoridades de Conacri,
segundo esse historiador, “era mais fácil apoiar o discurso político de Amílcar Cabral, que se
encaixava no ideário pan-africanista da época, do que o discurso de seus opositores, que
contrariava união africana” (NDJAI, 2012, p.141).
A proposta de Amílcar Cabral distingue-se pelo desafio e modo como impôs aos
bissau-guineenses e caboverdianos o seu projeto de libertação, com o objetivo de formar duas
156
nações sob uma única bandeira, para os dois povos, após a independência. É por tudo isso que
os estudos atuais sobre Amílcar Cabral, o seu pensamento político, tornam-se instigantes.
Feitas essas considerações, é importante registrar que os desdobramentos da criação
da frente única para luta, da unidade sem distinção étnica e social, a incorporação das massas
camponesas na estrutura do partido e a transferência de parte da direção do PAI para Conacri,
sem dúvida, contribuiram para o sucesso da preparação para a luta armada.
É nessa perspectiva, da preparação para desencadear a luta armada, que vão se traçar
prioridades da luta que residem exclusivamente na preparaçâo técnica e militar dos
combatentes, englobando assim a formação de quadros, aspectos imprescindíveis para a
constituição de um movimento verdadeiramente nacional.
157
Capítulo IV - A luta armada de libertação nacional e a consciência
nacional: uma análise da conjuntura internacional
Não somos dos que consideram como absoluto,
como sésamo mágico, o poder das armas.
Não defendemos a solução das contradições,
principais ou secundárias, de uma dada sociedade
unicamente no recurso a guerra do povo.
Mas afirmamos que face ao estado de violência
permanente que o domínio imperialista
implica a libertação nacional
passa normalmente pela luta armada.
Mário de Andrade (1975, p.7).
Neste capítulo, a análise recai sobre a Luta de Libertação Nacional na Guiné-Bissau
e nos desdobramentos da conjuntura internacional na sua evolução. Tomamos como objeto de
investigação os contornos da Batalha do Como e do Congresso de Cassacá, de 1964, o
processo de divisão territorial do país em frentes de luta, o processo político e militar que vai
engendrando a consciência da Nação e reformando a ideia do Estado, bem como os marcos
dos limites territoriais da província colonial.
Interessa, por outro lado, analisar a internacionalização da luta armada, tendo como
representante Amílcar Cabral, sob o pseudônimo de Abel Djassi, que advoga os interesses dos
dois países. É nesse ensejo que os nacionalistas bissau-guineenses e caboverdianos dão conta
da necessidade de intensificação da descolonização por via armada.
O estado de violência a que Mário de Andrade se refere na citação que abre esse
capítulo se relaciona com o contexto de vários massacres citados anteriormente, que
antecederam a via armada nas colônias portuguesas.
O Massacre de Pindjiguiti em Bissau não foge à regra. Considerado como símbolo de
libertação do povo da Guiné-Bissau, forjou a consciência nacional dos bissau-guineenses,
embora numa fase incipiente, convocando a unidade com os caboverdianos para a
viabilização da luta conjunta de libertação nacional contra a opressão colonial.
Em vista disso, o contexto pós-Massacre de Pindjiguiti também forjou a unificação
dos dois principais movimentos contestatórios – o Partido Africano da Independência (PAI) e
o Movimento para Libertação da Guiné (MLG) – numa única frente para a via armada, dando
a Amílcar Cabral o papel de representar os interesses dos filhos da Guiné-Bissau e de Cabo
158
Verde, tanto a nível internacional como a nível interno, e de coordenar e orientar as ações
políticas e ideológicas do PAI, no processo de reivindicação da independência nacional.
Essa é a diretriz válida para toda a luta, a unidade baseada tanto nos aspectos
históricos, quanto pela lealdade política, constituindo um movimento amplo, verdadeiramente
nacional, marcado por uma única coordenação política, que representa os interesses
reivindicativos para a independência, não só da Guiné-Bissau, mas, também, de Cabo Verde.
A partir daí, os símbolos representativos destes dois países foi traduzido num único
Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Unidade
acentuada numa aproximação histórica entre dois povos, que na verdade estão ligados pelos
laços de ancestralidade comum. Vale lembrar que a origem da população do Cabo Verde tem
uma forte ligação com a Guiné-Bissau. Este intenso fluxo marcado pelo sistema escravocrata,
fez com que muitos bissau-guineenses, levados de forma forçada para Cabo Verde,
estabelecessem laços de parentesco nesse território.
Além disso, alguns caboverdianos, que foram forçados a emigrar para Guiné-Bissau
em busca de melhores condições de vida e de trabalho, recriaram laços de parentesco e
irmandade na Guiné-Bissau. Outro aspecto não menos importante é a política do governo
colonial, que considerava Guiné-Bissau e Cabo Verde como uma única entidade
administrativa. Tudo isso fez com que as relações de solidariedade e de parentesco se
intensificassem entre estes dois povos, sendo difícil existir um caboverdiano que não tenha
antepassado bissau-guineense. As questões norteadoras da unidade Guiné-Bissau e Cabo
Verde serão analisadas mais adiante nesse trabalho.
Em vista disso, a década de 1960 marca a virada do plano dos nacionalistas, depois
das reformulações das estratégias, que recaem na mobilização e inserção do campesinato no
cenário de luta de libertação. E é também o marco do início da denúncia internacional do
colonialismo português.
No plano externo, as novas estratégias englobam também a transferência do Secretariado do
PAIGC para Conacri,79 na República vizinha de Guiné Bissau; nesse sentido, Amílcar Cabral
decidiu ampliar a sua ação política para além do espaço geográfico de Guiné-Bissau, Angola e
Lisboa, traçando de forma prioritária a participação nos congressos internacionais.
Em fevereiro do mesmo ano de 1960 realizou-se a primeira conferência de imprensa
em Londres, na qual se denunciou de forma enérgica e contundente o colonialismo português,
79
A repressão da PIDE forjou a saída dos nacionalistas de Bissau, e fez com que Amílcar pedisse a autorização
da vizinha Guiné-Conacri recém-independente em 1958, para instalar a sede do partido.
159
suas políticas discriminatórias, em particular o Estatuto do Indigenato imposto nas colônias.
Com efeito, Cabral vai desencadear uma intensa mobilização internacional, assumindo a
liderança do movimento nacionalista de Guiné-Bissau e Cabo Verde, sob pseudônimo de
Abel Djassi.
Com fins de fortalecer a mobilização interna e externa, Abel Djassi - ou seja,
Amílcar Cabral – cria, em dezembro de 1960, o primeiro jornal do partido, denominado
“Libertação”, um instrumento imprescindível na divulgação, agitação e denúncia do
colonialismo português. Através do jornal, Cabral conseguia expressar as ideias centrais do
partido e os fins que justificariam a criação de movimentos nacionalistas; com isso, a nível
interno e externo, o jornal era um meio para tornar conhecidas as hostilidades do colonialismo
português na Guiné-Bissau.
É oportuno lembrar que a internacionalização do PAIGC estava inserida no contexto
da necessidade de constituir um fórum de diálogo dos países colonizados, que visava
legitimar os movimentos nacionalistas a nível internacional, ou seja, conquistar solidariedade
e apoio internacional, como também constituir grupos coesos para atuarem de forma mais
efetiva contra o colonialismo.
Todas essas questões estão rubricadas nas resoluções das conferências de Manchester
e da West Africa, citadas anteriormente, sob liderança de Kwame N’Krumah, na década de
1950. Importante dizer que a década de 1950 é marcada por manifestações públicas sob várias
formas contra o domínio estrangeiro, através de participações em conferências que
possibilitaram a coesão das forças na luta contra o colonialismo em África.
Tão importante quanto as duas conferências acima mencionadas é a Conferência de
Bandung (1955), que declarou o apoio incondicional à independência para todos os povos,
além de postular a ajuda mútua dos povos da Ásia e da África na luta pela libertação.
Fortalecidos pelo espírito desta conferência – a de Bandung –, que proclamava a luta contra o
colonialismo em sintonia com uma acentuada frente de representanção internacional, a
Conferência de Solidariedade dos Povos Afroasiáticos em Cairo (1957) marca o ciclo das
independências dos países africanos. Nessa conferência, a palavra de ordem baseava-se no
reconhecimento da independência imediata de todas as colônias.
Por fim, a Conferência dos Povos Africanos em Accra, capital de Gana, em 1958,
reafirmou os princípios das Conferências de Bandung (Indonésia) e do Cairo, capital do
Egito. Este evento intensificou o desejo de lutar contra a dominação estrangeira, prometendo
com isso que a libertação total do continente seria a tarefa daquela geração. Portanto, a
libertação da África da dominação estrangeira é a luta dos próprios africanos.
160
Seguindo os desdobramentos das resoluções das conferências acima citadas, a década
de 1960 marca a inserção de Amílcar Cabral no contexto da internacionalização do PAIGC,
participando de vários congressos pan-africanos, tanto na Europa como no continente
africano, ele apresenta uma retórica e proposições políticas elaboradas na condução de
discursos contra o colonialismo português.
Cabral participou da sua primeira conferência internacional já como representante
legítimo do PAIGC. Isso ocorreu em janeiro de 1960, durante a II Conferência dos Povos
Africanos em Tunes (Tunísia). Foi nessa conferência que ele teria fundado, junto com os
dirigentes nacionalistas de outras colônias portuguesas, a Frente Revolucionária Africana para
a Independência Nacional das Coloniais Portuguesas (FRAIN), substituindo o Movimento
Anticolonial (MAC), criado em 1957. A criação da Frente Revolucionária estava no bojo das
novas demandas que as colônias portuguesas estavam atravessando, portanto, uma frente
revolucionária teria uma estrutura mais ampla, que lhe daria condições de efetivar uma
representação mais vigorosa de todas as colônias.
A intensidade com que estas organizações vinham traçando a estratégia da
representação coletiva das colônias em questão, no tocante à participação nas conferências
internacionais e no empenho em acompanhar o desenvolvimento das organizações
nacionalistas e suas evoluções na luta contra o regime colonial, mostrou a necessidade de
fortalecer a unidade dos movimentos de libertação das colônias portuguesas.
Nesta trilha, surge a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias
Portuguesas (CONCP), criada em 18 de abril de 1961, em Marrocos, objetivando coordenar o
desenvolvimento da luta nestas colônias e fortalecer o espírito de unidade dos movimentos
nacionalistas em cada colônia pautada em ações e programas comuns.
A CONCP daria uma visibilidade internacional aos movimentos nacionalistas das
colônias portuguesas. Assim sendo, os nacionalistas justificaram a substituição do FRAIN,
afirmando que “era necessário criar um novo instrumento que marcasse o desejo de todos em
caminhar juntos, embora tivesse em conta a nova situação criada um ano depois do início da
nossa ação aberta contra o poder colonial” (CABRAL, 1984, p. 108).
Deste modo, a CONCP teria a sua sede em Rabat (Marrocos), tendo como secretário
o dirigente moçambicano Marcelino dos Santos. No seu testemunho, Luís Cabral afirma que o
reino do Marrocos era na época o único país do continente africano que possuía no seu
governo o Ministério de Assuntos Africanos, fato que traduzia de forma clara o apoio aos
movimentos de libertação.
161
Neste cenário, não podemos perder de vista a influência do reflexo da efervescência
da unidade africana que permeava o continente e que, sem dúvida, orientou a criação destas
ações políticas conjuntas dos movimentos nacionalistas das colônias portuguesas. Este
espírito de unidade estava evidente também no contexto interno de cada colônia no que se
refere à articulação política que se fazia, a fim de criarem uma única frente de representação
política, que apregoava em nome de todos os movimentos.
No entanto, o divisionismo na Guiné Portuguesa80 entre as organizações políticas
constituía-se num desafio para o PAIGC, que ambicionava o entendimento com uma facção
política da sub-região, que discordava da liderança do partido na condução da luta, em
particular as que estavam sediadas na região vizinha do Senegal e Conacri, propondo-lhes a
formação de uma única frente de libertação denominada Frente Unida de Libertação da
Guiné-Bissau e Cabo Verde (FUL), objetivando uma coordenação conjunta das ações contra o
domínio colonial, dissipando todas e quaisquer manifestações isoladas que objetivavam o
mesmo fim.
De qualquer modo, os esforços do PAIGC foram registrados em todos os aspectos
que visavam à unidade étnica e binacional na Guiné-Bissau, mas que não surtiram efeitos. A
questão étnica estava consagrada no espírito nacionalista, que norteava os movimentos que se
proclamavam nacionalistas.
Essa atmosfera de rivalidades e sabotagens contra as ações do PAIGC, que
preconizavam a unidade para a luta, justificava-se a priori pela resistência da origem
caboverdiana de Amílcar Cabral, ou seja, ele carecia do atributo que distingue os bissauguineenses (laços étnicos) não obstante o seu reconhecimento no país, enquanto cidadão
bissau-guineense, ser recente depois da luta de libertação nacional, em particular no período
após a sua morte.
Fato semelhante de apelo à unidade aconteceu com os emigrantes caboverdianos
residentes na Europa, e também com os jovens caboverdianos das ilhas, ao serem convocados
diretamente numa missiva, denominada Mensagem aos Jovens da Guiné-Bissau Cabo Verde,
escrita por Amílcar Cabral em 1961, para se unirem aos bissau-guineenses na fileira do
80
“[...] Alguns patriotas nesta cidade continuavam a mesma confusão e a mesma incapacidade de dar uma
contribuição válida na luta contra o colonialismo português. A sua tarefa essencial consistia em criar as
dificuldades ao bom entendimento entre o nosso Partido e o Governo do Senegal, aproveitando-se das más
relações existentes entre este Governo e da Republica da Guiné. Como o Secretariado do nosso partido estava
instalado em Conacri, onde tínhamos garantida a nossa retaguarda principal, a diplomacia senegalesa via-nos
como sendo ‘movimento de Conacri’ e queria forçosamente que Dakar tivesse o seu ‘próprio movimento de
libertação de Guiné’. [...] dando aos nossos opositores um apoio incondicional que incluía facilidades
consideráveis como a difusão de programas pela emissora senegalesa, facilidades que eram essencialmente
utilizadas para nos combater, e não para combater o colonialismo” (CABRAL, 1984, p.124).
162
partido, realçando não apenas o sentido da unidade para a luta contra o colonialismo
português, como também enfatizando as questões de dominação e submissão que estes dois
países atravessavam, afirmando:
[...] os nossos povos, cansados de injustiças, de crimes e de abusos,
levantaram-se para agir diretamente contra as forças colonialistas
portuguesas. Apesar das enormes forças militares de que os colonialistas
dispõem nas nossas terras, apesar das barbaridades que essas forças estão a
fazer para manter nas nossas terras o domínio estrangeiro, os nossos povos
estão certos de que a hora da liberdade chegou já. [...] uma vida em que as
juventudes bissau-guineense e caboverdiana terão oportunidade de se
dedicar seriamente aos problemas das nossas terras e lutar pela realização do
programa do nosso partido. [...] a nossa juventude, consciente dos seus
direitos, mas também consciente dos seus deveres, e como força viva do
nosso povo, mobiliza, organiza e dirige as massas populares das nossas
terras, para a conquista da independência nacional (CABRAL, 1977, p.17).
Enquanto Amílcar convocava os povos de Guiné-Bissau e Cabo Verde para uma
única frente para combater o colonialismo e seus atos nefastos, Portugal havia ganhado fama
de bom colonialista na época (tanto no Brasil, quanto na Europa e em algumas colônias
africanas) devido ao tão propagado lusotropicalismo de Gilberto Freyre.
Nessa época, para agradar o governo português, esse cientista social exaltava a
existência da “democracia racial” no Brasil, reafirmando o papel de “bom colonialista” que
Portugal desempenhava nas suas colônias, onde supostamente não haveria práticas racistas e
divisões sociais com base na cor da pele. Este fato dificultou sobremaneira a campanha de
sensibilização e conscientização dos movimentos nacionalistas de colônias portuguesas contra
o regime colonial, tanto a nível interno, quanto externo, conforme testemunha Aristides
Pereira (apud LOPES, 1986, p.78)
[...] é que havia a fama que tudo estava bem, com a integração ou com
assimilação das populações africanas. Mesmo em Conacri, para não
dizer no Senegal, esse era problema que se punha. Todos diziam: Ah,
Portugal, vocês não têm problemas! Em 1960, quando cheguei a
Conacri, o único país que aceitou ter relações conosco foi a China. Por
exemplo, a URSS chegou a dar bolsas a gente do Luís da
Silva(FLING), mas para nós não. O bloco socialista aproximou-se de
nós mais tarde e com muitas cautelas, através dos checos.
Importante repetir que a condição desfavorável em que Portugal se encontrava para
manutenção das colônias no período pós-Segunda Guerra Mundial fez-lhe apropriar-se da tese
do lusotropicalismo de Freyre como forma de legitimar a sua política nas colônias africanas,
propagando a ideia de que todos os habitantes destas colônias eram pertencentes à nação
portuguesa.
163
Entretanto, esse desespero por parte de Portugal de considerar os nativos, chamados
desdenhosamente por eles de “indígenas”, cidadãos portugueses, fazia parte da estratégia de
continuar a implementação da política colonial. Importante considerar, também, que o
lusotropicalismo era inspirado na experiência civilizatória portuguesa no Brasil, e que esta
realidade não se adequava ao continente africano.
Em outubro de 1961, Amílcar Cabral reagiu à iniciativa do governo português de
considerar as colônias africanas províncias ultramarinas, ou seja, de atribuir aos habitantes da
Guiné-Bissau o estatuto de cidadãos portugueses, criticando a tentativa de neutralização do
direito à autodeterminação defendida pela resolução da ONU, advertindo:
[...] o governo português sabe muito bem que os povos da Guiné e Cabo
Verde não estão a lutar para serem portugueses, nós lutamos para conquistar
a independência nacional. Para realizar esse sagrado objetivo, os nossos
povos estão firmemente decididos a recorrer a todos os meios. Tal fato é
aprovado pela ação direta já desencadeada na Guiné pela grande agitação
que reina em Cabo Verde, como resposta a repressão policial e armada
praticada em silencio pelas forças colonialistas portuguesas [...], todavia o
Partido Africano da Independência, interpretando as justas aspirações dos
nossos povos a independência nacional, a paz, ao progresso e a colaboração
pacifica com todos os povos, incluindo o de Portugal, toma a iniciativa de
propor ao governo português que resolva via pacífica o conflito que o opõe
aos nossos povos, seguindo assim o exemplo do que foi feito pelos governos
de outras potencias coloniais em África (CABRAL, 1977, p.33).
Ao equacionar as questões relativas ao sistema colonial no tocante à falsa política de
civilização portuguesa e à propagada integração cultural, Cabral conclamou os líderes
nacionalistas africanos para denunciarem o sistema colonial português. Desse modo,
fortalecia a contraposição ao lusotropicalismo de Freyre, desmascarava o discurso da
integração racial e de uma suposta ou aparente harmonia da cultura portuguesa nas sociedades
africanas.
Vale destacar a importância imprescindível de duas conferências - a de Tunes, na
Tunísia, em 1960, e a do Marrocos, em 1961 - na internacionalização política dos
movimentos nacionalistas das colônias portuguesas. Foi a partir destas conferências que
Amílcar Cabral construiu balizas para denunciar o sistema colonial português, enfatizando os
atos de abuso, repressão e disfarces do regime colonial, destacando o Massacre de Pindjiguiti
e a forte opressão que os povos da Guiné-Bissau e das outras colônias portuguesas
vivenciavam.
164
Importante observar que, na II Conferência da CONCP, realizada em Dar-Es-Salaam
(Tanzânia), no dia 5 de outubro de 1965, Cabral elaborou uma vasta avaliação que focava no
principal objetivo da política ultramar – a exploração do homem pelo homem justificada na
política de civilização, a que o colonialismo português propagava, pautada no catolicismo.
Some-se a isso outro aspecto apontado por Cabral, a condição de subalternidade a
que Portugal se encontrava em relação aos outros países da Europa, portanto, para ele,
Portugal não dispunha de capital econômico e cultural que ajudasse no desenvolvimento que
as colônias precisavam. Tudo isso fazia com que a permanência do colonialismo português
refletisse no retrocesso das respectivas colônias africanas. Nessa direção, o pensamento de
Cabral indica que
[...] é evidente que Portugal não possui, em si mesmo, os fatores humanos e
materiais capazes de promover o bem-estar e o desenvolvimento dos povos
nativos das colônias de acordo com as exigências e as possibilidades
presentes. Portugal é o país europeu que conta mais analfabetos (40,4 por
cento da população, segundo estatísticas oficiais de 1950). E é justamente
classificado como um país agrícola atrasado. O próprio povo português não
está satisfeito com o baixo nível da cultura e civilização do seu país. Não é
lógico nem justo admitir que essa cultura e civilização sejam, com as
deficiências e monstruosidades próprias, imposta pela força aos outros
povos. Continuar, pois, a confiar ao domínio português a “missão sagrada de
civilização” nas colônias, seria condenar, criminosamente, onze milhões de
Africanos, legítimos donos de países com recursos, a viver na retaguarda de
uma nação atrasada [...] conhecemos o grau de “civilização” dos colonos
portugueses, muitos deles analfabetos, quando chegam as nossas terras.
Conhecemos, por amarga experiência, os crimes praticados pelo
colonialismo português, em nome da civilização e do catolicismo
(FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, 1965).
Depois da intervenção na Conferência de Povos Africanos, em Tunes e Tanzânia,
outro pronunciamento de Cabral foi crucial na denúncia do sistema colonial em África. Aqui
nos referimos ao pronunciamento realizado em Londres. Nessa empreitada, Cabral contou
com o apoio do seu grande amigo Basil Davidson, em Londres, para a tradução do texto em
inglês e francês para a conferência de imprensa, reunindo jornalistas internacionais, se
colocando em oposição a toda integração harmoniosa creditada a Portugal e que era
protagonizada por Gilberto Freire. Assim, Cabral seguia no seu discurso:
Portugal é um país subdesenvolvido com 40 % de analfabetos e o seu nível
de vida é o mais baixo da Europa. Se conseguisse ter uma “influencia
civilizadora” sobre qualquer povo seria um milagre. O colonialismo clássico,
fenômeno histórico em vias de desaparecimento, nunca contou com milagres
para se manter vivo. Portugal exerce a única “influencia civilizatória” de que
é capaz, a que corresponde ao tipo de colonialismo que adotou e a sua
posição de potencia cuja economia, cultura e civilização são atrasadas. [...]
“99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é
165
considerada “não civilizada! Pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é
considerada “assimilada”, para que uma pessoa “não civilizada” obtenha
estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade economica e
gozar de nível de vida mais elevado do que maioria da população de
Portugal. Tem de viver à “européia”, pagar impostos, cumprir serviço militar
e saber ler e escrever corretamente o português. Se os portugueses tivessem
de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao
estatuto de “civilizado” ou de “assimilado” (CABRAL apud LOPES, 1996,
p.81).
O que fica subjacente nessa análise de pensamento e ativismo de Amílcar Cabral é
que a assimilação da cultura portuguesa por parte dos africanos era superficial, baseada na
obrigatoriedade da renúncia dos costumes e das culturas étnicas, como condição para adquirir
a cidadania portuguesa.
Em vista disso, só era considerado cidadão de direito aquele indivíduo que se
atrelasse à cultura europeia e cumprisse os requisitos deste pertencimento. Não havia a
possibilidade de reciprocidade cultural e a legitimidade da cultura portuguesa estava baseada
na legislação colonial. Vale dizer que a missão civilizadora dos portugueses nas colônias
africanas era nada mais que criar divisões societárias e fustigar o racismo e a superioridade
racial no continente africano.
É oportuno lembrar que, no Brasil, a tese de “democracia racial” está alicerçada no
racismo disfarçado, e diluída na teoria do branqueamento. Ou seja, o regime colonial
estruturou a sociedade brasileira, em Casa Grande e Senzala,81 na qual estabelecia os limites
da mobilidade, sociocultural e econômico, entre os brancos, “indígenas” e africanos, além da
imposição cultural, justificada pelo processo civilizatório com base na “raça superior e
inferior”. Portanto, as concepções de civilidade e cultura imprimiam a superioridade da raça
branca.
O curioso é que esta mobilidade, baseada na estratificação social que impõe a
transformação de costumes, culturas e outras mudanças sociais, que inferioriza culturalmente
os sujeitos que não se adaptam à cultura europeia, denuncia o papel do bom colonialista a que
o próprio Freyre destaca no lusotropicalismo. A Senzala simboliza, para os negros brasileiros,
o espaço de intenso conflito, de negação dos seus direitos sociais e culturais, de abusos
81
A Casa grande, completada pela Senzala, representa todo um sistema econômico, social, político de produção
(a monocultura latifundiária), de trabalho (a escravidão), de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o
cavalo), de religião (o catolicismo de família com capelão subordinado ao pater famílias, culto aos mortos,
etc.), de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo), de higiene do corpo e da casa (do banho do rio,
o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés), de política (o compadrismo). (Cf.: FREYRE, Gilberto.
Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. In: SANTIAGO,
Silvano (Coord.). Intérpretes do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2002. p.131) .
166
excessivos de trabalho forçado, onde o colonialismo exercia seu poder sobre todos que se
encontravam sob seu domínio.
Nessa conjuntura da emergência da luta armada, na década de 1960, Amílcar Cabral
articulou novos esforços para estabelecer diálogos com o governo português na figura do seu
representante, ao endereçar um memorandum82 exigindo a independência pacífica para povos
da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Este apelo constitui a última tentativa de liquidação pacífica
da dominação colonial, que infelizmente não teve retorno da parte da autoridade portuguesa.
A indiferença do governo português não deixou dúvidas por parte do PAIGC,83 que anunciava
a via armada, alegando recusa por parte de governo português de uma transição pacífica de
poder.
Articulado pela efervescência tempestuosa do início dos anos 1960, no tocante às
articulações dos apoios internacionais, a visita de Amílcar Cabral à República da China em
agosto de 1960 marca o início da terceira etapa na preparação para a luta na Guiné-Bissau. É
nessa visita que o presidente da China84 concedeu ao PAIGC à possibilidade de formação dos
quadros para a luta de libertação. Depois do primeiro treinamento dos combatentes na China e
no Conacri, os novos quadros militares foram distribuídos em regiões que corresponderiam
mais tarde às frentes de combate a fim de efetuar os primeiros contatos com os habitantes das
regiões e expressar seus objetivos de mobilização para a luta.
Como informa Amílcar Cabral nas formulações de Davidson (1976):
O nosso procedimento consistia em falar numa aldeia e depois ir para o mato
e passar lá a noite. Era a única maneira de nos tornarmos conhecidos a nós e
ao partido. Pouco a pouco, começaram a aparecer simpatizantes do partido
entre a gente da aldeia, que iam ao mato levar-nos comida. Mais tarde,
conseguimos convocar os camponeses ou pelo menos alguns deles e falarlhes, explicar-lhes o significado da nossa luta e pedir a sua ajuda (p. 64).
82
O memorandum do PAIGC ao Governo Português encontra-se transcrito, na integra, em: ANDRADE, Mário
(Coord.). OBRAS ESCOLHIDAS DE AMÍLCAR CABRAL: a prática revolucionária Unidade e Luta. Vol II.
[s.n.:s.l.], 1977. p.27-31. (anexo à este trabalho o conteúdo do memorandum).
83
Cabe ressaltar que o esforço do PAIGC em desenhar as ações que visavam à reivindicação pacífica da
independência, através da sabotagem econômica e das vias de comunicação, greves, manifestações civis, etc.,
limitando a deslocação dos colonialistas nos territórios onde cobravam impostos foram sem sucesso, isto é,
todas as tentativas feitas pelo PAIGC para estabelecer diálogo com o governo colonial teriam redundado
apenas em maior pressão por parte da administração colonial, desta vez tendo como vítimas a população civil.
84
Segundo testemunha Luís Cabral, foi a República da China que apoiou a primeira preparação militar dos
jovens que viriam a ser os principais mandantes da guerrilha e alguns, mais tarde, dirigentes eminentes do
partido. Foram eles: Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Rui Djassi, Vitorino Costa, Constantino Teixeira,
Hilário Gomes, Pedro Ramos e Manuel Saturnino Costa, aos quais se juntaram Chico Mendes e João Bernardo
Viera (Nino Vieira) que aderiram ao partido em Conacri. O seu regresso iria permitir o envio dos primeiros
grupos para as diferentes zonas de luta em que Amílcar dividira a Guiné (1984, p.105) .
167
No âmbito interno, apesar de Sekou Touré ter permitido a instalação da sede do
partido em Conacri, as relações entre o Partido Democrático da Guiné (PDG) e o PAIGC
ficaram cada dia mais difíceis. O PAIGC havia recebido uma importante ajuda de munições
doadas pela Checoslováquia, entretanto, foram apreendidas pelo governo de Conacri, que
alegava suspeita de tráfico de armas por parte dos dirigentes do partido.
Devido a essa crise que se instalou entre os dois partidos, o governo de GuinéConacri desencadeou uma forte fiscalização nas fronteiras do país através dos seus serviços
aduaneiros no que se referiu à entrada e saída dos produtos, reforçando a sua decisão de não
liberar quaisquer munições para combatentes do PAIGC.
Durante esse período, todas as ajudas recebidas foram cuidadosamente conduzidas
para a fronteira da Guiné portuguesa, desviando-as assim das vistorias de Conacri. Com
efeito, a crise gerou atraso significativo no desenvolvimento da luta, na continuidade das
mobilizações e na demarcação dos territórios que seriam a base de luta. Nesse contexto, para
fazer face à crise, em 1962, Cabral decidiu solicitar o apoio do Rei de Marrocos por
intermédio do Ministro de Assuntos Africanos, a fim de dar continuidade à luta armada contra
o colonialismo. A esse respeito, Luis Cabral (1984, p.133-134) testemunha:
[...] resolvemos aproveitar as condições favoráveis existentes em Marrocos,
para conseguir o armamento. O Governo Marroquino prontificou-se
imediatamente a dar-nos armas e a permitir que a partir do momento em que
elas saíssem do Ministério da defesa, ficassem sob nossa inteira
responsabilidade, podendo levá-las como melhor entendêssemos para frente
de luta. [...] começamos por pequenas quantidades de granadas, explosivos,
detonadores e algumas pistolas. A preparação das embalagens era feita na
sede da CONCP, com colaboração dos camaradas que ali trabalhavam. Entre
outras embalagens, apareciam pacotes de cigarros LM americanos, que
Amílcar, fumava caixas de tinta Gestetner, caixas de sardinhas, e gravadores
de mesa.
Sem dúvida, o apoio do governo marroquino foi imprescindível na evolução e na
organização da guerrilha, pois, com o abastecimento das armas nas frentes de luta, os
guerrilheiros tinham toda a estrutura para controlar os ataques das tropas coloniais contra as
populações.
No entanto, como é notório, o governo de Guiné Conacri se manteve vigilante e
descobriu os disfarces desses materiais transportados clandestinamente do Marrocos, e
autorizou a prisão de alguns dirigentes. Nesta ocasião, Cabral, que estava a caminho da
Tanzânia, regressou a Conacri para um encontro emergencial com o presidente Sekou Touré.
Depois de uma longa e intensa conversa, obteve a autorização e o reconhecimento do
168
presidente para dar continuidade à luta de libertação, que daria abertura a uma fase decisiva
da luta armada.
4.1 A luta armada de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde: o Congresso de Cassacá
e a criação do partido-Estado
O ano de 1963 marcou o início da ação armada com ataque ao quartel de Tite, no
centro sul do país, sinalizando o marco oficial da luta que se estendeu por várias regiões da
Guiné-Bissau. O êxito da guerrilha não tardou, porque o sucesso da luta estava atrelado às
vantagens do sul do país em relação à sua estrutura geográfica e suas condições naturais.
O sul é considerado o chão dos Nalus e Balantas, etnias que são conhecidas pela
tradição agrícola, em particular o cultivo de arroz. Em vista disso, dominavam a geografia da
região, principalmente no referente à travessia dos rios que dividiam as tabancas umas das
outras.
Neste sentido, a conjugação de diversas etnias resultante dos laços de solidariedade e
de pertença a uma pátria foi relevante para o início da luta, pois todas estas etnias trouxeram
para a luta armada suas experiências de guerrilha nas campanhas de pacificação
desencadeadas pelo colonialismo português nas décadas de 1915 a 1930.
Paralelamente à luta armada na Guiné-Bissau, o ano de 1963 é o marco oficial da
unidade africana. Com intuito de criar as diretrizes políticas que orientassem a organização
para a independência das colônias africanas, os líderes nacionalistas dos estados
independentes decidiram reunir-se em Adis-Abeba (Etiópia), a fim de criar um Comitê da
Libertação Africana, que objetivava coordenar e encaminhar os movimentos de libertação
nacional para continuar a luta pela libertação total do continente.
A reunião protagonizada por Kwame N’Krumah (Gana), Sekou Turé (GuinéConacri), Abel Gamal Nasser (Egito), dentre outros líderes, selava a criação da Organização
de Unidade Africana (OUA), no dia 25 de maio de 1963, com propósitos de renovar votos de
solidariedade para com os países colonizados e mobilizar apoio internacional para pôr fim ao
colonialismo, como analisado anteriormente.
No início da luta, devido às dificuldades de conduzir as munições para abastecer as
frentes de batalha, os guerrilheiros contavam com algumas pistolas e metralhadoras que eram
incompatíveis com o arsenal e o aparato militar de que dispunham os colonialistas
portugueses.
169
Entretanto, os guerrilheiros do PAIGC dispunham de domínio do conhecimento
territorial, o que lhes facilitou as estratégias de emboscadas, permitindo-lhes apropriarem-se
de quantidades importantes de material de guerra do inimigo. 85 Foi nesse sentido que os
colonialistas portugueses intensificaram os ataques tanto nas zonas urbanas quanto no interior
do país contra os habitantes do sul do país, em particular aos que eram colaboradores diretos
do PAIGC, como forma de conter suas ações, conforme relata Amílcar Cabral (1977, p.37):
Alarmados perante a intensificação da nossa ação, as forças portuguesas
desencadearam então em todo o país, mas, sobretudo no sul, a mais violenta
repressão militar e policial contra as populações, principalmente contra os
suspeitos de pertencerem ao nosso partido. Eles aprisionaram, torturaram e
assassinaram patriotas, massacraram populações sem defesa e incendiaram
as tabancas.
As repressões não intimidaram o PAIGC, e o desenvolvimento de luta fortaleceu-se
no interior do país, organizada em estruturas correspondentes às frentes - norte, sul e leste - no
sentido militar, subdividas em sub-regiões e unidades de guerrilha. Essa estrutura está baseada
nas divisões administrativas do país, seguindo as atribuições dos novos quadros militares.
Relata Luis Cabral (1984, p.105) como foi a primeira indicação dos combatentes nas frentes:
Nino Vieira dirigiu o grupo do Sul, isto é seria o comandante da Frente Sul,
constituídos por setores de Quetáfine, Cubucaré, Unal e Como. Seu
companheiro Rui Djassi, encarregaria de comandar o Centro-Sul que incluía
Tite, Cubisseco, Buba e N´djassani, Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Manuel
Saturnino Costa e Hilário Gomes (Lolo), responderiam pela Frente Norte
com base em Morés. Para uma parte da Frente leste, constituída por Xitole e
Bafatá foi confiada à responsabilidade de Domingos Ramos, Vitorino Costa,
Bobo Queita tendo Pascoal Alves como adjunto que seguiu se para região de
Gabú, também na leste do país. O setor autônomo de Bissau, foi denominada
de Zona zero, que ficaria sob comando de Luciano N´Dao, Constantino
Teixeira e Pedro Ramos (sic).
Importante salientar que a luta armada não se desenvolveu de forma idêntica em
todas as diferentes frentes do país. Dos relatos de ex-combatentes86 da liberdade da pátria
depreende-se que, de todas as frentes, a frente sul (habitada pela maioria étnica, Balanta e
Nalus) foi a que mais incorporou os objetivos do partido e integrou-se de forma rápida com os
combatentes e concedeu-lhes toda a proteção contra as forças coloniais.
No seu depoimento, o Coronel Manuel Saturnino Costa testemunha que os
combatentes aderiram aos hábitos culturais desse povo, se vestiam da mesma forma,
85
86
Entrevista de José Lopes, março de 2011, Bissau.
Coronel Manuel Saturnino Costa, Carmem Pereira e Francisca Pereira (entrevistas concedidas em abril/maio
de 2011, Bissau).
170
trançavam os cabelos conforme os costumes dos balantas, facilitando a sua integração na
comunidade e também para não despertar a desconfiança das tropas coloniais já que isso
facilitava o trânsito livre dos combatentes. Portanto, a adesão aos hábitos culturais da etnia
balanta obedecia às hierarquias dessas tradições, centradas nos símbolos étnicos que eram
distribuídos conforme a idade de cada combatente.
Era evidente que ao aceitarem ingressar nas fileiras da luta, as “massas populares”
estavam recusando a soberania portuguesa e consequentemente a sua dominação cultural. Por
outro lado, também estavam demonstrando suas posições acerca da valorização das tradições
culturais no tocante ao sentido da pertença ao lugar, ou seja, a um determinado território
histórico. Nesse sentido, Cabral (1974, p.114) declara que:
Através da luta estamos forjando a nossa Nação Africana, que como sabem
não estava bem definida, com todos os problemas de grupos étnicos, com
todas as divisões criadas pelo próprio colonialista, por exemplo, indígenas e
assimilados, gente dos campos, etc., etc. Estamos forjando a nossa Nação
Africana que é cada dia mais consciente de si mesma, mas ao mesmo tempo
temos que está vigilante em relação ao desenvolvimento do fenômeno classe
no seio dessa nova nação, entretanto a luta dá-nos uma experiência baseada
exatamente neste postulado, pela qual não só reforçaremos cada dia mais na
nossa unidade política e moral como nação, mas também reforçaremos a
nossa vigilância para evitar que o problema da luta de classes venha a tomar
um aspecto que possa ser prejudicial ao progresso do nosso próprio povo.
Por certo, há exceções, entretanto nem todos se manifestavam dessa forma. Diferente
da frente sul, nas outras frentes - por exemplo, a leste - havia uma forte colaboração dos
chefes de tabanca, ou seja, chefes locais que eram intermediários e confidentes do regime
colonial.
No leste, povoado pelos fulas, que na sua maioria eram aliados dos portugueses e
mantinham estreita ligação com o regime colonial, essa relação ocorreu de forma diferente.
Os habitantes estavam dispostos a denunciar qualquer presença de outra força que não fosse a
das tropas coloniais. É verdade que alguns chefes tradicionais se colocaram contra a
mobilização de luta de libertação nacional, dificultando a ação da guerrilha. Tudo em troca de
bom emprego, concessões de bolsas de estudos para seus filhos, dentre outras vantagens
sociais ou econômicas (PAIGC, 1974).
Convém apontar que toda a estratégia para a mobilização traçada por Amílcar Cabral
objetivava ressaltar a importância das tradições culturais locais, como fator principal da
viabilização da luta armada. Segundo Oramas, referindo-se a esse período, “Amílcar está
consciente de que, para poder desenvolver a contenda, num meio em que [impera] a
171
ignorância, algumas crenças ancestrais podem converter-se num travão à causa libertadora”
(ORAMAS, 1998, p.63).
Não obstante, a luta da libertação nacional também é uma luta cultural, de
preservação da cultura e da recusa de submissão colonial. Desta maneira se, por um lado, a
recusa da imposição do domínio cultural europeu incentivou a convivência e troca de
experiências culturais diferentes entre as etnias bissau-guineenses, por outro, forjou um
projeto comum: a cultura de libertação nacional. Isto também foi testemunhado por Cabral e
está documentado por Davidson (1976, p.40):
[...] a participação das massas passa a significar a ativa integração individual
em comitês políticos eleitos e a aceitação das numerosas responsabilidades
decorrentes do esforço para construir, nas áreas libertadas, novas estruturas
para uma nova sociedade. É por isso que estes movimentos se tornaram
revolucionários.
Considerado como um dos precursores do projeto de unidade étnica que visava
dissipar as diferenças entre os diversos grupos étnicos, Cabral estabeleceu um espírito
comunitário e forjou a mobilidade territorial através de um vínculo de comunicação nacional:
o crioulo, uma língua de unidade nacional, que englobava o país numa só nação, numa só
língua nacional. Para Santos (1989, p.195):
[...] a formação da nação a partir de uma população étnica cultural e
socialmente heterogênea passa pela substituição de laços de solidariedade de
grupo por laços de solidariedade nacionais, pois a sobrevivência e o
progresso do grupo deixem de depender dos laços de solidariedade internos e
passam a depender de laços intergrupos mais vastos que tenderão a fazer
desaparecer as grandes diferenças étnicas, culturais e sociais existentes.
Das entrevistas com os combatentes de liberdade da pátria em Bissau depreende-se
que o PAIGC sempre tentou inibir o “tribalismo”. No processo de distribuição das frentes de
luta, dispersavam os grupos étnicos para as regiões diferentes evitando assim a
regionalização.
Desta forma, os indivíduos de diferentes origens étnicas conviviam e estabeleciam
laços de autoajuda e de solidariedade, construindo assim os laços de unidade nacional. Neste
quadro, a luta armada não só edificou o projeto da nação através da unidade política, mas
também forjou uma unidade étnica, que conduziu o processo da independência. No entanto, a
luta de libertação nacional impulsionou a criação do Estado, ou seja, o Estado nacional
bissau-guineense teve sua gênese na luta de libertação nacional compartilhada através de uma
comunidade de interesses. Segundo Handem (1989, p.273):
172
A formação e o fortalecimento da consciência nacional exigiu, da parte do
PAIGC, o impulso de uma nova dinâmica social, baseada não só numa
renovação ideológica e numa reestruturação política, como numa capacidade
continua de readaptação e reajustamento das instituições e das estratégias da
luta a cada etapa desta mesma luta.
A persistência em expulsar o colonialismo português e o desejo de liberdade
impulsionou nos membros do PAIGC a vontade de prosseguir a luta armada para conquista da
soberania nacional, baseada na consciência da unificação das forças provenientes de diversos
segmentos sociais e étnicos, resultando num sentimento de unidade nacional atrelado a uma
pátria que se quer independente. Entretanto, vale considerar que:
É desta unidade, baseada numa vontade comum de libertação do jugo colonial,
que vai nascer a luta e é desta luta que vai emergir a consciência nacional,
compreendida como o sentimento de pertença a uma comunidade que
ultrapassa as fronteiras étnicas, ou seja, uma comunidade pluriétnica
(HANDEM, 1989, p.270).
Depois das distribuições nas frentes, os guerrilheiros começaram a demarcar os
territórios que mais tarde constituiriam a zona libertada do país. O governo português até
então não havia reconhecido o movimento de libertação na Guiné-Bissau, apenas desdenhava
da existência de alguns “bandidos do mato”, e com isso resolveu avançar confiante para o sul
do país em direção a Ilha de Como,87 contando com um grande arsenal de guerra para atacar
os chamados bandidos do mato.
Em resposta a essa ofensiva, entre janeiro e março de 1964, os guerrilheiros
desencadearam uma intensa ação sobre os colonialistas portugueses na Ilha de Como,
sudoeste do país. Esta ocorrência, denominada de Batalha de Como, constituiu uma das mais
relevantes ofensivas já desencadeadas pelo PAIGC, como também foi um das mais duras e
bem sucedidas batalhas na Guiné-Bissau, quantificando grandes baixas ao colonialismo
português durante setenta e cinco dias. Como relata Azevedo (1977, p.110-112):
Dos três mil soldados envolvidos no ataque, dois mil haviam sido
transferidos há pouco de Angola para a Guiné. Ao contrário dos que
87
A designada Ilha de Como é, na realidade, constituída por três ilhas, Caiar, Como e Catunco, mas que formam
na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na marécheia essa separação é notória. As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui
numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros, pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento,
acrescido do fator estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base
num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.
Portugal não exercia, de fato, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação
do Como. Foi então planejada pelo Comandante-Chefe a Operação Tridente na qual foram envolvidos
numerosos efetivos, divididos em quatro Agrupamentos [...], num total de cerca de 1200/1300 homens (Cf.:
DIAS, Mário: Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op. Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I. Disponível em:
<http://blogueforanada.blogspot.com.br>. Acesso em: 18 jun. 2012.
173
chegavam direto de Portugal, já vinham temperados pela luta contra
guerrilheiros africanos. Acostumados ao calor, aos insetos, tomando
regularmente suas pílulas semanais contra a malária [...]. Os soldados
atacaram por seis pontos diferentes com a cobertura de aviões. Esquadrilhas
de jatos bombardeavam a margem da mata, separada do mar, em alguns
lugares, por mais de três quilômetros de areia e pântano com vegetação
rasteira. Com a ilha cercada por mar e pelo rio que a separa do continente, os
portugueses pegaram os guerrilheiros em má situação. Os tugas avançaram
em todas as frentes, protegidos pelos aviões e pelo fogo das canhoneiras.
Avanço rápido nos primeiros momentos [...]. Os portugueses tiveram duas
preocupações logo no início: bombardear tabancas onde os guerrilheiros
poderiam encontrar apoio e queimar plantações de arroz, como medida
preventiva. Era época de colheita. Se o arroz fosse destruído, os defensores
da ilha não teriam meios de se alimentar, caso resistissem mais do que estava
previsto. A fome dos guerrilheiros poderia ser uma aliada preciosa,
independente da quantidade de cola que tivessem guardado nos bolsos. E
balantas, banhus e bijagós tiveram que abandonar suas palhotas destruídas,
as bolanhas incendiadas, e refugiar-se em volta da base. Os portugueses
nunca avançavam sós. Eram sempre precedidos pelos aviões, pelas bombas,
e se acostumaram a esperar pela segurança tecnológica da força aérea para
tentar algum ataque.
Mesmo com toda a supremacia militar dos colonialistas portugueses,88 os
guerrilheiros do PAIGC venceram na Ilha de Como89. Esse território passou a fazer parte das
regiões denominadas de “zonas libertadas”, que estavam sob domínio do PAIGC, que tinha
como comandante das operações João Bernardo Vieira (Nino Vieira), responsável pela frente
sul. Desta forma, a vitória em Como, constitui
Uma grande vitória militar que em certa medida foi a base de outras vitórias
conquistadas às nossas forças (sic) no decorrer do ano de 1964 [...] além
disso, Amílcar afirma que a Batalha de Como contribui de maneira eficaz
para o aperfeiçoamento de diversos aspectos da nossa vida e da nossa luta,
porque foi a batalha de Como que criou-nos novos problemas políticos e
militares reveladores de maneira inesperada de deficiências e perigos para o
nosso Partido e para nossa luta (CABRAL, 1977, p.42).
Com efeito, a condução da luta no sul do país concedeu sucesso ao partido nas
conquistas das “zonas libertadas”. Além de facilitar o transito com a República de Conacri,
88
Enquanto os oficiais portugueses, que dirigem a luta portuguesa, saem das academias militares, após sete anos
de preparação, para além de cursos que lhes são dados – cursos de base, nós tivemos de mobilizar para o
combate jovens vindos da cidade ou do campo, alguns deles sem nenhuma instrução e que foram obrigados a
adquirir no decurso da própria luta a experiência necessária para enfrentar os oficiais portugueses (CABRAL,
1974, p. 70).
89
A vitória de Como representou para o P.A.I.G.C. a tomada de consciência da própria capacidade militar e da
justeza das estratégias e tácticas utilizadas. Por outro lado, alcançada em plena estação seca, a vitória de Como
confirmou a tese de que a época das chuvas não era necessariamente a melhor para intensificar a luta. Esta
constatação permitiu um melhor aproveitamento das energias no decorrer da estação das chuvas (JunhoNovembro), nomeadamente o desenvolvimento de algumas culturas agrícolas. (Cf.: GOMES, Patrícia. Poiésis
– Revista do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado), Tubarão: Universidade do Sul de Santa
Catarina (Unisul), v. 3, n. 6, p. 121-139, jul./dez. 2010).
174
que faz fronteira com a Guiné ao sul, onde o partido tinha uma base militar (CABRAL, 1984;
PEREIRA, 2003).
Vale frisar que estas zonas libertadas se configuravam como um Estado bissauguineense, dentro do Estado colonial, promovendo políticas públicas de inclusão que
contemplassem as populações e os membros do partido através de construção de escolas para
formação de quadros políticos, postos médicos, etc.; portanto, constituíam instituições
incipientes, criadas nessas zonas libertadas, que serviriam de base a um futuro Estado
independente. Nesta perspectiva, Davidson (1976, p.76) ressalta no seu enunciado o relato de
Amílcar, que adverte:
[...] o partido revolucionário tinha o objetivo de assegurar que o esforço e o
sacrifício despendidos na conquista e na conservação de uma área libertada
tivessem a sua recompensa clara, visível o mais depressa e o mais
eficazmente possível, em benefícios positivos que todos pudessem
compartilhar. Esses benefícios eram as escolas elementares, as clinicas do
mato e outros serviços sociais que, na medida do possível, foram criados,
dotados de pessoal e abastecidos.
Paralelamente à Batalha de Como, e a poucos quilômetros do teatro das operações,
Amílcar Cabral convoca o I Congresso do Partido, em fevereiro de 1964, na zona libertada de
Cassacá, sul do País, tendo como participantes os principais dirigentes das bases militares,
delegados de tabancas e quadros do partido.
Foram cinco dias de intenso trabalho, para discutir questões de ordem disciplinar dos
guerrilheiros. Os motivos da convocação gravitavam em torno de vários aspectos, entretanto,
o mais preocupante recaía sobre os desvios dos princípios do partido e da conduta, por parte
de alguns dirigentes do partido, nas bases da unidade de guerrilha.
Na pauta do congresso ganharam relevo as denúncias de desvio de comportamento
de alguns dirigentes do partido pautado no abuso excessivo do poder e na intimidação das
populações. Dentre os abusos cometidos pelos guerrilheiros, acusações de feitiçaria, seguida
de assassinatos, estupros das mulheres, maus tratos, etc. Conforme testemunha José Lopes
(2011),90
O Congresso de Cassacá foi organizado para discutir a questão de feitiçaria.
Muitos combatentes acusavam os homens da tabanca de feitiçaria, quem
fosse acusado era fuzilado e o acusador casava com a mulher do acusado.
Cabral foi avisado sobre o ato. Imediatamente ele organizou o congresso de
Cassacá. Uma das decisões do congresso era mandar matar os combatentes
que acusavam outros de feitiçaria, efetuar prisões e transferências dos
acusados.
90
Entrevista de José Lopes, bissau-guineense, combatente de liberdade da pátria. Bissau, abril de 2011.
175
Fortalecendo essa informação, Manuel Saturnino Costa91, atual vice-presidente do
PAIGC, que também foi um dos comandantes de luta armada na base de Cassacá, ressalta
que, apesar de se situar dos fatos de abusos, de estupro e de acusação de feitiçaria noutras
bases de luta, ele não tinha a dimensão da relevância da convocação do primeiro congresso.
Para este combatente de liberdade da pátria,
O congresso de Cassacá serviu para reorganização do partido e suas
estruturas de luta, evidenciando que a luta armada só teria sentido se tivesse
sintonia com as populações, e preconiza a guerrilha totalmente integrada no
seio das massas populares e condena qualquer tipo de militarismo.
Certamente, problemas dessa natureza colocam em risco todo o plano político e
militar desenvolvido pelo partido no tocante à coesão nacional e da unidade no seio do
mesmo. Some-se a isso outro aspecto, a ameaça à legitimidade do partido e da liderança de
Amílcar Cabral, visava manchar toda a construção positiva da imagem pública do PAIGC,
dos seus objetivos e princípios que o diferenciavam do regime colonial (HERNANDEZ,
2002).
O Congresso de Cassacá foi considerado, por muitos militantes, a exemplo de Luís
Cabral, como o “renascimento” do PAIGC; além do mais, forjou a materialização do Estado
para concretização dos objetivos do partido, pois “o alcance das decisões aí tomadas nos
planos políticos, econômico e social, deram a este congresso um caráter histórico, um novo
impulso de vitalidade e confiança à atividade do partido” (CABRAL, 1977, p.43).
Segundo o Coronel Manuel Saturnino Costa foi desse congresso que saíram decisões
importantes para o desenvolvimento da luta, entre elas a criação do Conselho de Guerra
(órgão central de decisão), das Forças Armadas e das milícias populares, objetivando
controlar as bases e dar mais segurança às populações e reforçando as novas estratégias de
ofensiva militar. Esta mesma reflexão é reforçada por Amílcar Cabral (1977), que afirma:
A aplicação prática das resoluções e decisões do nosso Congresso permitiunos realizar progressos notáveis no decorrer do ano de 1964, que
transformaram significativamente a situação no nosso país. Por outro lado,
submetendo as deficiências e os erros cometidos no seio do Partido a uma
crítica severa e a uma autocrítica sincera, o nosso Congresso determinou as
medidas necessárias á eliminação dessas faltas. A nossa organização tornouse assim, no decorrer de 1964, mais forte do que nunca (p.43).
A mudança efetuada no Congresso de Cassacá, considerada primordial na
reorganização do partido, concentrou-se em dois níveis: político e militar. No nível político e
administrativo foram criados comitês especiais de administração (estado civil, justiça,
91
Entrevista do coronel Manuel Saturnino Costa, combatente da liberdade da pátria. Bissau, março de 2011 .
176
instrução, saúde, etc.), como forma de suprir as carências das populações e controlar as
atitudes abusivas. Além de fortalecer as estratégias do partido para o desenvolvimento da luta,
o congresso serviu também a nível militar, para lançar as bases do partido-Estado, através da
criação do
[...] Bureau Político, com poderes para criar um Comitê Executivo,
constituído por Comitê Central de 65 membros com os seguintes
departamentos: Ação Política das Forças Armadas e do Aparelho do partido,
Secretariados para as Atividades Políticas, Informação e propaganda,
Segurança, Economia e Finanças, Desenvolvimento e Coordenação da
Organização do Partido entre as Massas (ORAMAS, p.60).
Com efeito, essas bases rubricadas pelas ações militares, calcadas na reestruturação e
redistribuição das Forças Armadas, através da criação de comandos inter-regionais e de um
órgão central da direção da luta armada (Conselho de Guerra), visa conduzir e acompanhar o
desenvolvimento das ações nas bases da guerrilha, além da criação de exército popular e da
milícia popular encarregada da vigilância das zonas libertadas, a formação de quadros
militares especiais (armas pesadas, armas antiaéreas, etc.) marcam de forma decisiva uma
nova etapa de luta de libertação nacional, a quinta fase.
No seu testemunho intitulado de Campo em Campo, o comandante Bobo Keita,
combatente da liberdade da pátria bissau-guineense, frisa a nova estrutura desenhada com
vistas à formação do Estado independente. Segundo ele (apud TAVARES, 2011, p.97):
Esta nova organização do Partido iria permitir-nos afirmar que a
situação concreta na nossa terra assemelhava-se a de um Estado
independente cuja parte do território, nomeadamente os centros
urbanos, era ocupada por forças militares estrangeiras. Foi à estratégia
utilizada por Cabral mais tarde para pedir as Nações Unidas que
viessem ver no terreno a disposição das nossas forças em relação ao
território ocupado pelos colonialistas.
Importante observar que a criação das Forças Armadas Revolucionárias do Povo
(FARP)92 antecede o surgimento do Estado nacional na Guiné-Bissau. Entretanto, foram as
FARP o baluarte principal do partido em termos de ações militares e na estruturação das
unidades de luta. A instituição tinha uma dupla função: era a peça principal para a obtenção
da independência e tinha a incumbência de proteger as populações das zonas libertadas.
92
Sobre a importância da FARP na luta de libertação nacional, vide: GOMES, Patrícia. Poiésis – Revista do
Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado), Tubarão: Universidade do Sul de Santa Catarina
(Unisul), v. 3, n. 6, p. 121-139, jul./dez. 2010).
177
Das entrevistas, depreende-se que o Congresso de Cassacá, também denominado de I
Congresso, reacendeu novos espíritos nos combatentes, criou estruturas para a reconstrução
nacional, ajudou de forma significativa a reestruturação de novas Forças Armadas e das
primeiras unidades escolares e de saúde nas zonas libertadas.
Foram também redefinidas a nova táctica militar resultante da experiência da própria
guerrilha, além das questões relacionadas à unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde. A instalação
das unidades de saúde nas zonas libertadas foi imprescindível, porque foi no período em que
os colonialistas portugueses recorreram à utilização dos armamentos pesados, em particular
aos aviões de bombardeio contra as populações, com o objetivo de reprimir a evolução da luta
do PAIGC e os significativos avanços na reestruturação do partido na organização das
estratégias de luta.
Seguindo as resoluções do Congresso de Cassacá, o PAIGC decidiu garantir às
populações das zonas libertadas o direito à cidadania, criando novas bases tanto econômicas
quanto políticas, que favorecessem a elevação de nível de vida destas populações. Para
complementar o cenário, a criação de “armazéns do povo” foi primordial no abastecimento
dos produtos da cesta básica, como também concedeu o suporte técnico na diversificação das
culturas junto aos agricultores, promovendo a reestruturação agrícola e melhorando o nível de
vida dos camponeses.
Para o partido, o armazém do povo surgiu como uma empresa geral de comércio tipo
estatal que, além de garantir o fornecimento de artigos de primeira necessidade à população
das regiões libertadas e, por meio de troca, receber produtos agrícolas que deveriam em
seguida ser escoados para o exterior, possibilitou a criação e o desenvolvimento progressivo
da base de um comércio externo.
Por sua vez, no nível da organização política nas zonas libertadas, o partido decidiu
pela criação de órgãos administrativos, que abrangeriam diversas instituições sociais e
políticas, que funcionaram paralelos ao partido, e que teriam a função de preservar a ideia do
partido, com vistas a dirigir a sociedade e o Estado. Neste sentido,
A organização político-administrativa das regiões libertadas compreende as
regiões, as zonas e as tabancas. O governo das regiões libertadas está
confiado ao Comitê Nacional das Regiões Libertadas, cujo órgão executivo –
a Comissão Permanente que decide sobre todos os problemas, em todas as
ocasiões necessárias, tanto nas regiões libertadas do norte como nas do sul e
leste do país. O responsável nacional da justiça trabalha em estreita ligação
com a Comissão Permanente do Comitê Nacional das Regiões libertadas. A
justiça é praticada ao nível das tabancas pelos Tribunais populares (PAIGC,
1974, p.160).
178
No âmbito educacional, destacam-se as unidades escolares denominadas de escolas
piloto, centros de referência política e educacional, destinadas aos filhos dos combatentes e
aos órfãos de guerra.
Eram nessas unidades escolares que as crianças eram educadas e socializadas com
base nos princípios de luta, de amor à pátria, do sentido de solidariedade e desenvolviam as
aptidões da poesia e teatro. Como forma de potencializar estas unidades e atrair apoios da
comunidade internacional para a manutenção dos internatos, criou-se uma instituição de
caráter jurídico, denominada Instituto da Amizade, a fim de reforçar a permanência dos
alunos (CABRAL, 1984).
Vale analisar que as zonas libertadas constituem palco de internacionalização política
de Amílcar Cabral e da sua política de combate ao colonialismo português. Nesses territórios
é que Cabral desenhava todas as estratégias do funcionamento do Estado nacional bissauguineense e da promoção da cidadania e dignidade humana. Não obstante, nessas zonas,
consideradas estados livres, é que se concentravam as visitas das mais distintas instituições
africanas e internacionais para conferir de perto o sucesso da ideologia revolucionária de
Amílcar Cabral.
É importante notar que os dois grandes eventos de 1964 - a Batalha de Como e o I
Congresso do Partido, ou seja, o Congresso de Cassacá - alteraram de forma significativa o
desenvolvimento da luta armada na Guiné-Bissau. Foi através desses eventos que o partido
reformulou a sua estrutura para uma evolução consistente da luta, criando alicerces para a
geração do embrião do futuro Estado.
Daí, inicia-se uma nova etapa na intensificação da luta e da ampliação das frentes de
combate, com a formação das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e a
reconstrução nacional nas regiões libertadas.
Desta forma, o Congresso de Cassacá abriu caminho para o partido na concretização
de sua ideologia de luta e conquista da legitimidade política junto às massas populares, além
de fortalecer as relações de confiança numa coordenação conjunta na organização da luta
(milícia popular), confiando-lhes a função de segurança das zonas libertadas e das populações
destas regiões.
A partir do Congresso de Cassacá houve a parceria entre o poder político e o poder
tradicional, conferindo aos chefes de tabanca a legitimidade e a confiança na organização
política do partido, como também tornou-se cada vez mais segura a construção de uma
sociedade mais justa centrada na igualdade e liberdade de todos os cidadãos sem distinção de
classe social, crença ou etnia.
179
Mas é preciso observar que há outros aspectos também dignos de atenção especial,
que nortearam os bastidores do Congresso de Cassacá, nomeadamente as contradições étnicas
e o dilema da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde. A alegada ausência dos caboverdianos nas
frentes de combate rendeu várias críticas a Amílcar Cabral por parte de muitos combatentes
bissau-guineenses, que afirmavam existir só bissau-guineenses na linha de frente da guerra e
que caboverdianos ficariam em Cabo Verde ou no quartel general de Conacri.
Após este congresso, Pedro Pires, Luís Cabral e outros caboverdianos tiveram uma
presença mais acentuada nas zonas libertadas na organização e na formação do exercito. É nas
formulações de José Castanheira que observamos as mudanças provenientes do Congresso de
Cassacá no tocante às questões de nacionalidades e hierarquias militares entre bissauguineenses e caboverdianos. Segundo o autor
Em 1964, no Congresso de Cassacá, criou-se o cargo de presidente do
Comitê Central, sob a proposta de Cabral, foi eleito Rafael Barbosa, um
bissau-guineense que nunca viria a exercer as funções devido ao seu
afastamento do partido. Tinham medo que alguém fizesse sombra à Amílcar
Cabral, acusa Rafael Barbosa”. Daí em diante a liderança militar era
religiosamente dividida, ou seja, uma espécie de marcação homem a homem.
Nino Vieira, apud (Castanheira, 1995, pp.164/165) afirma: a frente de
combate era dividida em três: a frente leste, comandada pelo Osvaldo Vieira
e pelo Amílcar Cabral, a Sul, por mim e pelo Aristides Pereira, e a Norte,
pelo Chico Mendes e pelo Luís Cabral, mas ainda tinha o Pedro Pires que
também estava na frente leste. Todos pertenciam ao Conselho de Guerra
(CASTANHEIRA, 1995, pp.164/165).
Tão importante quanto a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde são as questões
relativas à unidade nacional na Guiné-Bissau, ou seja, à unidade étnica, que estava em
descompasso na luta; o engajamento de alguns grupos étnicos estava condicionado à sua
estratificação social, o que acentua certa desproporção, deixando claro que a conexão entre
diversidade étnica e unidade nacional para a luta de libertação estava limitada a um aparente
discurso. Amílcar Cabral reconhece as dificuldades dessa conexão e afirma:
[...] a luta no litoral de nossa terra, entre os manjacos é outra, no Oio tem de
ser de outra maneira. Há muitas diferenças. Por exemplo, os homens grandes
(anciões) mandingas, temos de ver a maneira de lidar com eles, não da
mesma maneira que tratamos com os homens grandes balantas. Mas no
Gabú já é diferente e tivemos de fazer a luta de uma maneira completamente
diferente [...]. Se compararmos a luta no Gabú com a luta ao sul da nossa
terra, são duas lutas como se fossem de duas terras diferentes (CABRAL,
1977, p.101).
A citação acima nos coloca diante da fatídica questão: que unidade étnica ou
nacional então se preconizava? Vale salientar que a unidade nestas circunstâncias de
180
diversidade étnica concretiza-se nas aspirações comuns, no caso em questão, da opressão
colonial, da submissão de abusos excessivos de forma direta ou indireta, de apelo ao
patriotismo, de uma ampla conscientização política para a libertação nacional.
4.2 Reflexos da evolução da luta no contexto internacional
O sucesso da luta de libertação nacional não se limitava apenas ao projeto visionário
de unidade étnica e unidade binacional preconizada por Amílcar Cabral, mas também pelas
alianças estratégicas estabelecidas com diversos países que apoiaram e financiaram a luta
contra a colonização portuguesa.
Em nível internacional, o PAIGC contou com o aval da OUA e da ONU no
reconhecimento da legitimidade política no tocante à representação dos interesses do povo da
Guiné- Bissau e Cabo Verde para a obtenção de liberdade, autonomia e soberania nacional.
É nesse ensejo que a ONU decidiu, através da Resolução 2395(XXIII), parágrafo 12
da Assembleia Geral, de 29 de Novembro de 1967, usar medidas restritivas a Portugal quanto
ao uso de alguns métodos na repressão dos movimentos independentistas nas colônias
africanas, neste caso particular da Guiné “portuguesa”.
As restrições gravitavam ao redor dos ataques aos civis, aos territórios controlados
pelo PAIGC, a aplicação de armas criminosas (napalm), por fim, ao aliciamento forçado das
populações para aderirem ao sistema colonial, ou seja, a constituição do comando africano
dentro da tropa colonial.
Ainda no âmbito da conjuntura internacional, além da ONU e OUA acima referidos,
o PAIGC recebeu apoio de vários países, em particular os países socialistas, a exemplo da
então URSS e Cuba, que foram significativos no desenvolvimento da luta contra o domínio
colonial português na conquista da soberania.
Havia também uma forte articulação com outros países, como Checoslováquia,
China, Bulgária, Hungria, Alemanha Oriental, Noruega, da Suécia, etc., no sentido de
formação política, treinamento militar e de suporte do abastecimento material para o
desenvolvimento da luta armada. A Suécia através do seu primeiro ministro Olof Palme tinha
uma particularidade que se distingue em relação aos outros países no tocante a ajuda, pois
forneceu um apoio incomensurável para PAIGC no desenvolvimento da luta nas zonas
libertadas e na melhoria de condições de vida das populações destas zonas. Assim testemunha
Luís Cabral (1984):
181
[...] em menos de dois anos era visível em todas as nossas atividades sociais,
a presença inconfundível da ajuda da Suécia. Material escolar diverso e de
primeira qualidade foi posto à disposição dos nossos alunos quando
tínhamos falta de artigos escolares, medicamentos e material sanitário,
tecidos, sabão, fósforos e outros artigos de primeira necessidade foram
levados para os depósitos dos Armazéns do povo e contribuíram
significativamente para melhorar a vida das populações. (...) o grande valor
da ajuda da Suécia consiste no fato de que ele veio preencher um vazio que
começava a ser explorado pelo inimigo. E é por isso que a ajuda sueca veio
permitir um gigantesco passo na construção de uma vida melhor para o povo
das áreas libertadas (p.334).
Importante destacar, neste cenário de apoios, a significativa contribuição dos países
africanos independentes, tais como Líbia (1952), Marrocos (1956), Gana (1957), GuinéConacri (1958), Senegal (1960), Congo (1960) e Argélia (1962), dentre outros, que
constituíram-se em importantes baluartes no desenvolvimento das estratégias de lutas e na
preparação de militantes políticos na luta pela independência da Guiné Bissau.
Assim sendo, os apoios variavam desde armamentos à estruturação da base
organizativa para a viabilização das mobilizações através de materiais políticos de divulgação,
tais como panfletos, cartilhas, impressão de artigos, etc. (CABRAL, 1984; GARCIA, 2000;
LOPES, 1996).
Neste contexto, destacamos, ao nível do continente, a República de Guiné-Conacri
como retaguarda principal da luta na então Guiné portuguesa. Trata-se de um país vizinho,
situado ao sul da atual Guiné-Bissau, que serviu de base não só na implantação de uma
academia militar para a viabilização da luta armada, onde seriam construídas as balizas para
as ações ideológicas e armadas para o desenvolvimento e a concretização da luta, como
também de suporte para suprir carências sociopolíticas e educacionais dos combatentes.
Por essa via, foi instalada uma unidade de escola política, ainda que em condições
precárias, que objetivava formar politicamente os militantes a fim de capacitá-los sobre os
projetos de luta de libertação.
Nesse período, foi construído o “Lar dos combatentes”, que servia de centro de
formação dos primeiros combatentes no manejo de armamentos mais simples e onde também
receberam a sua preparação política e cívica (CABRAL, 1984, p.108). Havia o chamado
“Seminário de quadros”, que objetivava elevar a consciência política e a militância dos
estudantes do partido, dirigido por Amílcar Cabral com intuito de conter a fuga dos militantes
que pretendiam abandonar a luta para viabilizar os estudos em Portugal ou outros países da
Europa.
182
Importante analisar que Conacri serviu também de base transitória para Angola.
Alguns Estudantes da CEI estavam no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),
como Mário de Andrade (presidente do movimento), Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Eduardo
dos Santos, Hugo Menezes, Gentil Viana, etc., que trabalharam lado a lado para traçar as
estratégias ideológicas para o desenvolvimento da luta nas colônias portuguesas (CABRAL,
1984).
Convém de igual modo ressaltar a contribuição de Mário de Andrade em Conacri na
formatação ideológica da luta e também na sua internacionalização. Dentre todos os colegas
de CEI, Mário de Andrade constituiu-se num dos principais interlocutores de Amílcar
Cabral93 na construção da engenharia da ideologia cabralista, que conduziu à luta de
libertação nacional.
A sua formação em filosofia clássica e sociologia modelou sobremaneira a retórica
discursiva e ideológica, que permeava os movimentos anticolonialistas das colônias
portuguesas. Não quero dizer com isso que Mário de Andrade era o principal articulador
político da ideologia nacionalista africana, menosprezando com isso a capacidade ideológica
de Amílcar Cabral, apenas sinalizo que as articulações políticas dessas duas personagens
contribuíram de modo significativo na engenharia da luta de libertação nacional e na obtenção
da independência nacional.
Durante a fase de edificação do Estado nacional no periodo pós-independência, já na
ausência de Amílcar Cabral, devido aos problemas internos com a MPLA, Mário de
Andrade94 foi nomeado para cargo de ministro da Informação e Cultura no primeiro governo
de Guiné- Bissau.
Deve-se observar também que Amílcar Cabral teve outros interlocutores (diretos e
indiretos), que influenciaram de forma significativa no ideário de formação, organização
política, ideológica e militar do PAIGC.
93
Importante salientar que a confluência teórica presente nos papers apresentados por Amílcar Cabral,
principalmente no campo das ciências sociais, no tocante aos conceitos de cultura, tribo, etnia, povo, classe,
etc. é, sem dúvida, a demonstração clara da expressiva influência desse campo de conhecimento na
socialização política de Amílcar Cabral. Outro aspecto não menos importante é a formação política panafricanista no pensamento político de Amílcar e de outros dirigentes africanos.
94
Em 1974, Mário de Andrade, com o seu irmão Joaquim de Andrade funda a “Revolta Activa”, corrente que se
opõe à liderança de Agostinho Neto no MPLA, exigindo a democratização do regime; os dois irmãos Pinto de
Andrade e outros militantes são muito perseguidos e têm que abandonar Angola. Em 1976, após a independência
de Angola, Mário exila-se na Guiné-Bissau e ocupa o cargo de coordenador-geral do Conselho Nacional de
Cultura. Em 1978 a 1980, Mário de Andrade é o Ministro da Informação e Cultura da Guiné-Bissau, ou seja, do
ministro de informação e cultura. Em 1980, com o Golpe de estado liderado por “Nino” Vieira na Guiné; Mário
desloca-se para Cabo Verde. Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt. Acesso em agosto de 2012.
183
Foi possível identificar as contribuições das teorias marxistas de acentuado caráter
socialista, adquiridas, sobretudo nas relações de proximidade com países tais como: União
Soviética, Cuba, China, etc., e da corrente ideológica pan-africanista, além das personalidades
que lhes inspiravam, como o martiniquense Frantz Fanon, os africanos Patrice Lumumba,
Kwame N’Krumah, Gamal Abdel Nasser, Agostinho Neto, Julius Nyereré, o presidente
cubano Fidel Castro, Mao Tsé-Tsung, o general vietnamita Vo Nguyen Giap, para citar
alguns, que contribuíram e inspiraram o trabalho político e a prática revolucionária da luta
de libertação nacional na Guiné-Bissau.
O reconhecimento da transversalidade teórica de Amílcar Cabral entre seus pares e a
nível internacional, e os contributos para a teoria e a prática revolucionária no
desenvolvimento da luta de libertação nacional na Guiné-Bissau granjeou-lhe os títulos de
“Honoris Causa em Ciências Sociais da Academia das Ciências Sociais da União Soviética e
Doutor Honoris Causa da Universidade de Lincoln dos Estados Unidos e das condecorações
Gamal Abdel Nasser”, etc., atributos que consolidam o reconhecimento da sua personalidade
intelectual de leader revolucionário merecendo destaque entre outros líderes de libertação
nacional em África (ORAMAS, 1998, p.139).
No que se refere à república vizinha, Senegal, não houve apoio exaustivo comparado
com o oferecido por Guiné-Conacri. Entretanto, colaboraram à sua maneira através do
governo de Senghor, que depois de superar a crise entre as organizações partidárias no país e
o PAIGC, autorizou a circulação dos materiais de guerra do PAIGC sob controle e
fiscalização do exército senegalês (CABRAL, 1984).
Todas as manifestações de apoio provenientes das diversas organizações políticas e
países foram resultado da configuração da engenharia política e ideológica com que o PAIGC
conduziu a luta de libertação nacional, fazendo com que ao nível do próprio continente se
atraísse a ajuda dos países independentes.
Em linhas gerais, um dos aspectos que também marcaram a internacionalização da
luta armada foi a participação de Amílcar Cabral nas conferências internacionais, que lhe
possibilitaram estabelecer contatos com os líderes nacionalistas de outros países e que
contribuíram significativamente não apenas na viabilização do envio de munições para o
desenvolvimento da luta, como também deram prestígio político ao PAIGC no rol dos
movimentos independentistas africanos. Outro aspecto que merece ser revelado é o apoio no
âmbito da formação política e militar dos combatentes, objetivando a especialização militar
dos quadros.
184
Nesse âmbito de concessões de apoios, vale destacar a Conferência Tricontinental,
em Havana, em 1966, no desenvolvimento da luta de libertação. Nesta conferência, houve a
participação de uma delegação do PAIGC (Vasco Cabral, bissau-guineense; Pedro Pires,
caboverdiano; Abílio Duarte, caboverdiano; e Domingos Ramos, bissau-guineense),
encabeçada por Amílcar Cabral, a fim de participarem da I Conferência de Solidariedade com
os Povos da África, Ásia e América.
O encontro de Amílcar Cabral com o dirigente cubano Fidel Castro nesse evento
contribuiu de forma significativa para dirimir as dificuldades do partido e do andamento da
luta. Um dos resultados desse encontro ocorreu no campo da saúde, permitindo que fossem
deslocados médicos cubanos para a Guiné-Bissau a fim de contribuírem no apoio à população
civil das zonas libertadas.
No seu depoimento, Carmem Pereira95 afirma que a presença de médicos cubanos
permitiu a troca de experiência entre os quadros de saúde que o PAIGC havia treinado para
prestar os primeiros socorros nas zonas libertadas, auxiliando-os a aprimorarem os
conhecimentos de medicina.
Além desses profissionais, outras ajudas foram concedidas, “tais como: carros
(acompanhados de motoristas e mecânicos para instruir os combatentes), cigarros, açúcar
vermelho, fardas e equipamento para as forças armadas” (CABRAL, 1984, p.252).
Contudo, há alguns autores, como Oscar Oramas, que ressaltam que os militares
cubanos não apenas auxiliaram no campo social, como também no campo de combate
estiveram lado a lado com os guerrilheiros do PAIGC. É também nos fins de 1966 que o
PAIGC obtém o controle de 60% do território, permitindo a expansão de atividades políticas e
sociais nas regiões libertadas.
Para Amílcar Cabral, tanto os apoios dos países socialistas (Cuba e União Soviética),
quanto dos países africanos da sub-região são primordiais na engenharia da luta armada.
Entretanto, é da proximidade ideológica com Cuba que o líder de PAIGC ressalta:
A Cuba está muito mais próxima das suas concepções, devido às
peculiaridades da luta que lidera pela independência nacional. Sente um alto
apreço por Fidel e pela sua posição nacionalista, independente, afastada do
conflito sino-soviético, com uma decidida ação anti-imperialista, anticolonialista e de apoio sem restrições a luta de libertação nacional dos povos.
Assim se expressa Amílcar, ressaltando que a identidade nacional cubana
que une brancos e negros, o seu espírito internacionalista, a sua decisão de
manter a todo o custo a independência e soberania nacionais, são fatores que
podem influir positivamente nos objetivos que o PAIGC persegue, como
95
Entrevista concedida em abril de 2011, em Bissau.
185
nenhum outro país, está em condições de o fazer (CABRAL apud
ORAMAS, 1998, p.88.).
O ano de 196796 marca a decadência do colonialismo português na Guiné-Bissau.
Depois da significativa derrota na Batalha de Como, a evolução do PAIGC tornava-se cada
vez mais evidente, ao inaugurar a primeira emissão da Rádio Libertação,97 que permitia
fortalecer sua campanha contra o colonialismo e conquistar os adeptos que ainda não haviam
aderido à ideologia da luta. Além de possibilitar o “desenvolvimento da ação política por
meio de uma ampla informação sobre a marcha da luta, os objetivos do partido, os crimes dos
colonialistas portugueses e acontecimentos africanos mundiais” (CABRAL, 1977, p.59).
Some-se a isso outro meio importante de divulgação mensal, o PAIGC L`Actualités, de
circulação internacional, objetivando também difundir o desenvolvimento da luta, como
também atraindo apoios dos organismos internacionais.
Um ano mais tarde, em 1968, o PAIGC tomou o campo fortificado de Madina de
Boé, concluindo a libertação da região do Boé na frente leste, região leste da Guiné. Foi nesse
contexto que o governo militar de Bissau na pessoa de Arnaldo Schultz pediu a demissão em
maio de 1968, e foi substituído pelo Comandante António Spínola.
Durante o ano de 1969, os colonialistas foram surpreendidos com a ousada investida
dos guerrilheiros no ataque ao aeroporto de Bissalanca em Bissau durante a visita de
presidente de Portugal. Paralelamente a este evento, o novo governo português desenhou duas
estratégias principais para reverter a situação, que visava conquistar a confiança dos bissauguineenses através do “Programa para uma Guiné melhor”, ou seja, a denominada política de
duas faces, na feliz observação de Amílcar.
96
Nas Ilhas de Cabo Verde, os colonialistas portugueses, alarmados pelos progressos realizados pelo nosso
partido no ano de 1967, reforçaram o seu aparelho repressivo e desencadearam uma vasta operação contra as
forças nacionalistas. Centenas de patriotas foram perseguidos ou presos, outros deportados para Portugal,
Angola e Moçambique. Estas medidas repressivas mais não fizeram do que polarizar a atenção das populações
para a luta, desmascarar a verdadeira face do colonialismo português no arquipélago, reforçar o ódio e a
consciência política dos patriotas no âmbito da unidade necessária, sob direção do nosso partido (CABRAL,
1977, p.55).
97
Era através das emissões da rádio que muitos guerrilheiros, em deslocações lentas e arriscadas pelo interior do
território, tinham noticias, através dos freqüentes comunicados de guerra, da situação militar noutras frentes...
As emissões eram feitas em português e em crioulo, mais rapidamente se alargou o espectro de ouvintes, com
programações em outras línguas nacionais como balanta, beafada, mancanha e, numa fase posterior, fula e
mandinga. Entre as várias rubricas, a rádio emitia “vamos conhecer a Nossa Terra”, com duração de 15
minutos que focava temam relacionados com a geografia do país. O programa foi alargado para meia hora,
passando a difundir noticias sobre outras guerras de Portugal em África, sobretudo a de Angola, graças aos
permanentes contactos com o pessoal da rádio do MPLA, Viva Angola Combatente, emitida a partir de
Brazzaville para todo o território angolano (TOMÁS, p. 201) .
186
O primeiro, com intuito de destruir todas as formas de resistências sobre a presença
colonial, seguiram a política de aliciamento das populações locais no tocante à denominada
“compra das consciências africanas”.98
Outra estratégia articulada pelo Comandante Spínola foi enfatizada nos depoimentos
concedidos a esse trabalho pelos combatentes da liberdade da Pátria, que recai sobre a
libertação dos prisioneiros políticos do PAIGC. Este ato aconteceu nas circunstâncias das
manifestações organizadas nas diferentes capitais no tocante ao 10º aniversário do Massacre
de Pindjiguiti, no comício de 03 de agosto de 1969, com intuito de reforçar a denuncia dos
crimes e atrocidades coloniais. Foi nesse ensejo que os colonialistas aproveitaram a
oportunidade e os prisioneiros políticos do PAIGC foram apresentados.
Segundo os depoimentos dos combatentes da liberdade da pátria,99 dentre os
prisioneiros, o escolhido para falar em nome dos colegas foi Rafael Barbosa, antigo
presidente do comitê central do partido. Em tom de agradecimento pela sua liberdade e dos
seus colegas, Rafael sentiu-se obrigado a proferir elogios ao governo colonial, afirmando “que
o governo militar não era mais português do que ele próprio”.100
Foi nesse contexto que o principal articulador do movimento clandestino se “opôs”
aos companheiros da luta, servindo de elo do colonialismo, denunciando as ações do
partido101. Esse fato pesou muito sobre Rafael Barbosa, o que resultou mais tarde no seu
afastamento definitivo do partido.
Daí que a imagem de Barbosa, marcada pela brilhante atividade política clandestina
no protagonismo de movimento de contestação de cunho nacionalista, foi manchada pela
forçosa atitude de “colaborar” com o colonialista para concessão de sua liberdade. Desta
forma, mesmo depois da independência, Barbosa não foi compreendido pelos compatriotas, e
assim ficou por fora do PAIGC como membro.
98
Tratava-se de uma política caracterizada, por um lado, por atos de falsas gentilezas e atenções para com as
populações das zonas de centros urbanos ainda ocupados, de concessões nos planos social e religioso, com a
construção ativa de escolas, de postos sanitários e de mesquitas, assim como na organização de viagens a
Portugal, atribuição de bolsas de estudos, etc. Por outro, fala-se de paz, de evolução para a uma situação “em
que os filhos do país enfim preparados poderão decidir o seu próprio destino”. Nós, os combatentes, somos
acusados de ser promotores de guerra, de não querer a paz que permitiria construir uma vida melhor, etc.
(ANDRADE apud CABRAL, 1977, p.69).
99
Entrevista de Manuel Saturnino Costa, Carmem Pereira, José Lopes, Francisca Pereira, Elisée Turpin e
Adriano Ferreira. Bissau, março/abril de 2011.
100
O “Times”, na sua edição de 5 de agosto de 1969, citava excertos do discurso de Rafael Barbosa em que
dizia: “Bem haja, pois a vossa excelência, pela bela atitude que, neste momento, carregou sobre os seus
ombros, ao libertar estas dezenas de homens que iludidos nas promessas vãs daqueles que, a soldo dos países
estrangeiros, os lançaram na rebelião [...]. Eu prometo que serei tão português como Vossa Excelência”
(TOMÁS, p. 228).
101
Entrevistas concedidas em abril/maio de 2011 em Bissau.
187
Do ponto de vista político, o governador português sentia-se ameaçado com o
desenvolvimento dos meios de comunicação promovido pelo PAIGC com o propósito de
ampliar a mobilização da população local. Neste sentido, Spínola atacou a grande fragilidade
do projeto de Cabral: unidade entre bissau-guineenses e caboverdianos para desencadear a
luta.
Ciente dos antagonismos que assombravam a relação entre os militantes destes dois
países, produzido pela própria administração portuguesa por conceder privilégios aos
caboverdianos em relação aos bissau-guineenses, o então administrador português prometeu
destituir os caboverdianos de altos cargos para substituí-los pelos nativos locais. Ainda
afirmava que a unidade com Cabo Verde só prejudicava os verdadeiros filhos da GuinéBissau. Estas alusões, Cabral considerou-as oportunistas e racistas.
Deve-se observar que apesar de todas as estratégias de governo colonial de articular
esforços para a permanência do domínio colonial, o ano de 1969102 sinalizava, sem dúvida,
que os dias do colonialismo na Guiné-Bissau estavam contados. O sucesso militar do PAIGC
era notório, os guerrilheiros estavam fortalecidos em todos os aspectos, em particular a nível
militar com emprego de novas munições e o avanço nas áreas fortificadas do inimigo se
concretizava a cada dia, causando inúmeras baixas aos oponentes.
Tudo isso gerou uma forte crise no seio do exército português, provocando
deserções103 de alguns soldados em suas fileiras. Não obstante, dentre todas as colônias
portuguesas, a Guiné-Bissau constitui-se numa das colônias onde a luta obteve mais alto
nível, tendo repercussão tanto nacional quanto internacional; na feliz expressão do jornalista
do “Times” de Londres: é o país que se tornou o Calcanhar de Aquiles da política colonial
portuguesa”.104
Sobre esse ponto, Cabral (1977, p.74) considera que
Em ano de 1969, consolidamos os progressos realizados em 1968 e
intensificamos a luta em todas as frentes. Até os meados de dezembro
102
Em Cabo Verde, onde a nossa atividade política é ainda clandestina, os progressos realizados no decorrer de
1969, ultrapassaram significativamente as nossas previsões. Desenvolveu-se e consolidou-se a organização do
partido em algumas Ilhas, nomeadamente no campo e entre os trabalhadores em geral. Milhares de panfletos e
outros documentos do partido foram amplamente distribuídos em todo o Arquipélago, e reforçadas as
condições necessárias a uma nova fase da luta. Se é certo que tais resultados são o fruto de trabalho da direção
do Partido e dos esforços e sacrifícios feitos pelos militantes de vanguarda, e que refletem numa elevação geral
do nível de consciência política e patriótica das populações caboverdianas, é igualmente certo que os próprios
colonialistas portugueses, com a repressão criminosa e cega que praticaram num determinado número de ilhas
[...] criaram as condições mais favoráveis à nossa ação (CABRAL apud ANDRADE, 1977, p.73).
103
Convém assinalar que, oito militares portugueses desertaram, para a Guiné [...] mas é em Portugal que as
deserções são mais numerosas. Milhares de jovens portugueses fugiram para o estrangeiro, nomeadamente os
que souberam ou suspeitaram de que seriam mandados para a nossa terra. Também isso é uma vitória
(CABRAL apud ANDRADE, 1977, p.153).
104
Idem, p.38.
188
as nossas forças armadas efetuaram setenta e um ataques contra as
posições fortificadas inimigas, causando grandes prejuízos nas
instalações e nas forças vivas militares, travaram cento e sessenta e
quatro combatentes no decorrer das emboscadas e outros reencontros,
efetuaram quarenta e seis ações importantes de explosão de minas,
puseram fora de combates pelo menos mil quatrocentos e oito
militares inimigos, apoderaram-se duma quantidade importante de
material de guerra, destruíram nove aviões [...].
Fortalecendo os planos de Spínola, outra atitude desesperada foi empreendida pelo
governo português: em 22 de novembro de 1970, objetivando destruir e neutralizar o PAIGC
e as conquistas alcançadas pela luta armada, desencadeou um ataque denominado “Operação
Mar Verde”, contra a região vizinha de Guiné-Conacri onde o PAIGC tinha a sua retaguarda
de guerra.
Nesta ação planejada pelos colonialistas portugueses estiveram implicados os altos
dirigentes da República bissau-guineense, que intencionavam derrubar o regime do Sekou
Touré e ter acesso ao poder. Portanto, a “Operação Mar Verde”, chefiada pelo comandante
português Alpoim Calvão, tinha como objetivo a libertação dos soldados portugueses presos
pelo PAIGC no campo da batalha, prender os dirigentes do PAIGC e assassinar o Presidente
da República Sekou Touré. Não obstante, tanto Amílcar quanto Sekou Touré estavam
ausentes do país durante a operação; nesse sentido, a operação não cumpriu todos os
objetivos.
Retomando o cenário da evolução da luta de libertação nacional, convém assinalar a
relevância dos anos de 1967, 1968, 1969 e 1970, na consolidação da independência na GuinéBissau. Estes anos foram cruciais na evolução da luta armada, traçando períodos de vitórias
significativas contra a supremacia militar do colonialismo português.
Portanto, todas estas estratégias do governo português não contiveram as ações do
PAIGC, deixando o colonialismo em vias de decadência. O reconhecimento das regiões
libertadas da Guiné-Bissau por parte das delegações estrangeiras constitui uma das maiores
derrotas do colonialismo português; foi nas regiões libertadas que se registrou a visita de
vários “jornalistas, fotógrafos, cineastas, parlamentares e militares provenientes de países
africanos, de países socialistas da Europa, Ásia e América, dentre eles, a delegação militar da
OUA e uma delegação parlamentar sueca” (PAIGC, 1974, p.153-154.), que ansiavam por
documentar a experiência inédita de luta de libertação nacional num país africano que
conseguiu estruturar uma nação no interior do Estado colonial.
Apesar de todos os avanços registrados no tocante ao desenvolvimento da luta, o
PAIGC sofreu perdas significativas dos seus principais combatentes na guerra contra o
189
colonialismo português, como é o caso de Domingos Ramos (membro de bureau político),
Pansau Na Isna (membro do comitê central do partido), Chico Mendes 105 (membro do bureau
político), Vitorino Costa, Titina Silá, Canha Nan Tunguê, Quinta Kinté, só para citar alguns
nomes, que são mártires e heróis nacionais da luta de libertação nacional.
Em 1972, Amílcar Cabral participou da quarta comissão dos assuntos gerais das
ONU, onde reforçou a existência das zonas libertadas na Guiné-Bissau, apelando para o apoio
à descolonização total da Guiné-Bissau e Cabo Verde, como também pediu o reconhecimento
dos delegados dos países membros da ONU das zonas libertadas na Guiné-Bissau,
considerado por ele como um Estado independente dentro do Estado colonial, em que parte
do território nacional é ocupada pelo PAIGC. Alguns meses depois, a solicitação de Amílcar
Cabral havia se concretizado e a ONU decidiu enviar uma delegação paras as regiões
libertadas da Guiné-Bissau.
A visita da delegação da ONU nas regiões libertadas serviu para reforçar o prestígio
que o partido vinha adquirindo a nível internacional, pois se tratava da primeira organização
de caráter internacional a efetuar visitas nas zonas libertadas a fim de conferir o
desenvolvimento da luta e as condições que o PAIGC atravessa no tocante ao combate ao
colonialismo.
Esse evento concedeu legitimidade ao PAIGC para proclamar a independência
unilateral na Guiné-Bissau. Vale ressaltar que essa independência da Guiné-Bissau estava
estendida a Cabo Verde, no entanto, cada ofensiva militar desencadeada na Guiné-Bissau
visava à libertação conjunta dos dois países.
Devido ao avanço da guerra e ao fato do partido controlar a maior parte dos espaços
territoriais do país com a exceção de algumas aldeias e ilhas de difícil acesso, controladas
pelos colonialistas, o PAIGC contava em 1972 com cerca de 70% dos territórios libertados.
Nesse momento foi organizado o sufrágio universal nas zonas libertadas, objetivando
não só eleger as assembleias regionais, com intuito de formar os representantes da assembleia
nacional, visando à construção da base de um Estado independente, como forma de enfocar a
105
Francisco Mendes, vulgo Chico Mendes, aqui citado, era combatente da liberdade da pátria na Guiné
Bissau, membro de bureau político do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)
durante a luta de libertação nacional,veio a morrer depois da independência. Francisco Alves Mendes Filho,
mais conhecido como Chico Mendes, foi seringueiro, sindicalista, ativista ambiental e ultrarrevolucionário
brasileiro. Sua atividade política visava à preservação da Floresta Amazônica e lhe deu projeção mundial. Em
2012, foi eleito o 28º maior brasileiro de todos os tempos, no concurso O Maior Brasileiro de Todos os
Tempos, realizado pelo SBT com a BBC de Londres. Em 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes foi
assassinado com tiros de escopeta no peito na porta dos fundos de sua casa. Chico anunciou que seria morto
em função de sua intensa luta pela preservação da Amazônia, e buscou proteção, mas as autoridades e a
imprensa não deram atenção.
190
separação entre partido e Estado, como também ampliar a participação política nas estruturas
do futuro Estado. Foram convocadas reuniões que objetivavam explicar:
O significado das eleições e das assembleias, a elaborar um recenseamento
eleitoral, a nomear aqueles que fiscalizariam a votação, a discutir os fatores
que tinham influenciado na escolha dos candidatos: fatores de equilíbrio
local entre aldeias, de escolha entre homens e mulheres, deste ou daquele
assunto local, etc. (SANTOS, 1989, p. 65).
Tudo isso implicava num processo da retomada do poder e consequentemente da
independência. As circunstâncias da crise que Portugal atravessava a nível interno, reforçada
pela derrota que o colonialismo português enfrentava na Guiné-Bissau, fez com que o PAIGC
decidisse proclamar o Estado da Guiné-Bissau, condicionando uma parte do território sob
domínio colonial.
Portanto, a legalidade dessa proclamação unilateral da independência estava alçada
nos princípios da ONU, que também prezava pelo controle da maioria do território. Este fato
veio tornar a ocupação portuguesa na Guiné-Bissau ilegal.
Amílcar Cabral havia traçado a estrutura do novo Estado de Guiné-Bissau composta
por: Constituição da República, principais órgãos do poder, métodos eleitorais, a composição
da assembleia nacional popular e os princípios que regem essa organização.
Não obstante, o pior estava por vir: Amílcar Cabral foi assassinado em 20 de janeiro
de 1973 em Conacri. Sua morte constituiu um dos maiores golpes que o PAIGC sofreu
durante todo o percurso da luta, visto que ali morreu não apenas um ideólogo do partido como
também todo o projeto visionário de um Estado nacional centrado na justiça, liberdade,
igualdade de todos os cidadãos e na unidade binacional.
4.3 O assassinato de um líder africano e os desdobramentos do II Congresso de Boé
“Se um dia for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente, por um homem do meu povo,
do partido e talvez mesmo da primeira hora” (CASTANHEIRA, 1995, p.81). Esta afirmação
de Cabral relatada por Castanheira é o ponto inicial para nos debruçarmos sobre os
acontecimentos que motivaram a sua morte, e das circunstâncias que o impulsionaram a
proferir esta afirmação no contexto da organização da luta armada. Cabral pressentia que o
seu assassinato não era coisa impossível e alheio aos companheiros de luta. Isso, por outro
191
lado, nos retrata que o projeto visionário de Cabral estava no seu fim de linha, ou seja, não era
comungado por todos.106
Os fatos evidenciam que o clima nos bastidores do quartel general de Conacri não
era dos melhores; as desconfianças pairavam no ar, havia infiltração dos agentes africanos a
mando da PIDE, como observa Luís Cabral, entre muitos que ali estavam sem tarefas
concretas e permanentes no quadro da luta (CABRAL, 1984, p.434).
Some-se a isso outro aspecto, a existência de combatentes dissidentes, descontentes
com a liderança majoritária de caboverdianos na administração do partido. Tudo isso deixava
tenso o próprio Amílcar Cabral, que havia recebido inúmeras vezes alertas de planos e
conspirações do seu assassinato que, segundo Aristides Pereira, nenhum foi alimentado e por
fim desconsiderados. Não obstante, Pereira justifica a atitude incrédula do líder do partido ao
afirmar que “em Conacri havia uma verdadeira psicose do complot, de tal maneira que nos
tornáramos cépticos a todos os rumores de conspirações”.107
No entanto, apesar dos relatos apontarem certa negligência perante o ambiente que
pairava no quartel general de Conacri, é no estudo de Luís Cabral que se registra a
preocupação aparente do líder do PAIGC, quando se viram pela última vez no aeroporto de
Dakar, em 1972, numa rápida escala de um voo que seguia para Moscou108. Segundo Luís
Cabral,
Mal o vi na sala de trânsito do Aeroporto de Yoff, apercebi-me de que estava
preocupado [...] eram grandes as preocupações com a situação em Conacri.
Havia qualquer coisa que ali não andava bem, e isso levava-o a crer na
existência de problemas, e problemas graves que ainda não se tinham
manifestado (CABRAL, 1984, p.433-434).
Vale considerar outro aspecto enfatizado durante a entrevista, que nos facilita melhor
o entendimento sobre a morte de Cabral. Alguns dos combatentes entrevistados afirmam que
a morte de Cabral está ligada aos problemas internos do PAIGC, outros centravam no
questionamento de por quê Cabral enviava os caboverdianos para estudar no exterior e os
bissau-guineenses ficavam para estudar na escola piloto. Outros, ainda, afirmam que Amílcar
106
Na altura da sua morte ele precisamente estava nesse fogo cruzado entre os bissau-guineenses e os caboverdianos. Os bissau-guineenses achavam que ele só queria saber dos cabo-verdianos, que estavam a comer
bem..., os cabo-verdianos da parte deles, achavam que Cabral só dava atenção a luta armada na Guiné-Bissau e
que Cabo Verde não servia para nada. [...] Cabral sentia-se incompreendido e injustiçado pelos caboverdianos
(Pereira, apud Lopes, 2012, p.191).
107
Entrevista de Aristides Pereira (apud CASTANHEIRA, 1995, p.82).
108
Em Moscovo, Amílcar foi convidado a visitar o Instituto de África, onde lhe foi atribuído o título de Doutor
Honoris Causa em Ciências Sociais (CABRAL, p.434).
192
Cabral foi assassinado por não atentar ao desconforto dos bissau-guineenses no tocante à
unidade com os caboverdianos.
Certo é que o descontentamento desses militantes foi engendrado pela dinâmica do
movimento da libertação nacional, nesse caso concreto o suposto “privilégio” dos
caboverdianos nos destacados postos de administração de luta; some-se, a esse, outro aspecto,
o da prolongada ausência dos dirigentes máximos do partido, na sua maioria os caboverdianos
na frente de combate.
Aristides Pereira (apud Lopes, 2012), José Pedro Castanheira (1985) e Oscar Oramas
(1998) confirmam nos seus achados da pesquisa, a formulação da quase ausência dos
caboverdianos na frente de combate na Guiné-Bissau. Por sua vez, Pereira cita cinco nomes
dos quadros caboverdianos que regressaram de estudos em Lisboa e que se integraram
totalmente na luta de libertação na Guiné-Bissau, ou seja, os que foram para o terreno de
combate, a exemplo de Jaime Mota, Sotero Forte, Agnelo Dantas, Jota Jota Tchifon, Eduardo
Santos e Manecas Santos. Ainda segundo Pereira [...] o certo é que alguns ficaram no
Secretariado onde tínhamos falta de gente para fazer certas tarefas. Mas combatentes para a
infantaria, de fato, foram muito poucos, reconhece, pois a maior parte foi para a artilharia ou
marinha (p.154).
Segundo Castanheira (1985, p.165), os nomes como de Julio de Carvalho, João
Pereira da Silva, Eduardo Santos, José João Lopes da Silva, Honório Chantre, Amâncio Lopes
e Timóteo Tavares eram todos escalados na área de artilharia e condecorados como
comandantes; desse modo, a maioria dos comandantes do PAIGC eram caboverdianos e a
parte da infantaria era reservada aos bissau-guineenses109 de modo geral. Aí reside a grande
contradição do PAIGC durante todo o processo da luta de libertação na Guiné-Bissau e que
veio a culminar com a crise do projeto binacional.
No plano externo tanto na sub-região quanto na Europa, o partido também contava
com grande número de representações exclusivamente caboverdianas. No quartel general de
Conacri, era Amílcar Cabral o interlocutor direto do PAIGC; no Senegal, a interlocução com
o presidente Senghor cabia a Luís Cabral; na Mauritânia, estava sob a responsabilidade de
Silvino Luz, que após a declaração unilateral da independência em 1973 foi colocado nas
Nações Unidas; em Argel e Havana, foi indicado Abílio Duarte; no Cairo (Egito) era Gil
Fernandes; em Estocolmo, a representação do partido estava a cargo de Onésimo Silveira.
109
É isto que explica que a esmagadora maioria dos combatentes abatidos durante a guerra tenham sido
naturais de Guiné. O obituário do PAIGC registra apenas três cabo-verdianos mortos no teatro das operações:
Jaime Mota, o Zeca santos e o Justino Lopes(CASTANHEIRA,1995,p.165).
193
Da parte dos bissau-guineenses apenas três pessoas desempenharam o cargo de
secretário internacional: Vitor Saúde Maria com escritório em Acra (Gana); no Cairo Lamine
Aidará; e por fim José Pereira tinha a seu cargo as relações com o governo de Senegal
(CASTANHEIRA, 1995, p. 165).
Vale resaltar que os bissau-guineenses constituíam a maioria no Conselho Executivo
de Luta (CEL), ou seja, por Guiné-Bissau ser o palco de operações de luta de libertação era
natural que tinha a maioria dos filhos de Guiné-Bissau na composição do partido, não
obstante os membros bissau-guineenses não participarem da parte administrativa do partido e
na tomada das decisões, pois segundo Aristides Pereira, careciam de formação superior poucos tinham atingindo o nível superior, a exemplo de Vasco Cabral, para desempenhar
funções administrativas. Portanto, Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Carlos Correia, Nino
Vieira, Carmem Pereira, Francisca Pereira, Fidelis Cabral de Almada, Vitor Saúde Maria e
outros não possuíam formação superior, mas haviam completado o ensino secundário da
época e sem dúvida tinham como desempenhar cargos de destaque na administração do
partido.
Membros de Conselho de Guerra
Nacionalidade
Amílcar Cabra l (Secretário Geral)
Guineocaboverdiano
Aristides Pereira
Caboverdiano
Luís Cabral
Guineocaboverdiano
João Bernardo Vieira (Nino)
Bissau-guineense
Paulo Correia
Bissau-guineense
Mamadú N´djai
Bissau-guineense
Osvaldo Silva
Caboverdiano
Suleimane N´djai
Bissau-guineense
Vasco Cabral (Secretário)
Bissau-guineense
Osvaldo Vieira
Bissau-guineense
Francisco Mendes(Chico Mendes)
Bissau-guineense
Pedro Pires
Caboverdiano
Fonte: Fundação Mário Soares, pasta 07073129004.
É oportuno ressaltar que a desproporção numérica dos bissau-guineenses na luta em
relação aos caboverdianos era tamanha, não obstante a minoria caboverdiana que sempre
estava no comando das decisões da luta, como descreve Pedro Castanheira (1995):
194
A luta armada e o esforço de guerra eram assegurados, basicamente, por
bissau-guineenses. Quanto a liderança fosse da guerrilha, fosse do partido,
pertencia predominantemente aos cabo-verdianos. A discrepância era de tal
forma patente que, em 1973, uma conceituada revista de estudos francesa
realçava a prevalência de militantes das ilhas na direção do PAIGC. (...) No
topo da pirâmide, o cargo de secretário- geral esteve sempre ocupado por
dirigentes de ascendência cabo verdiana: primeiro Amílcar Cabral, até a sua
morte, em 1973, se pois Aristides Pereira, até 1980, quando do golpe de
estado de Nino Vieira, por um fim súbito e radical no PAIGC como partido
que aspirava a representar os dois povos.
[...] Durante largos anos, a direção efetiva estava nas mãos da
comissão permanente do Comitê executivo, composto por três membros,
todos eles eram de origem cabo-verdiana: Amílcar Cabral, Luís Cabral e
Aristides Pereira. Com o congresso de 1973 foi ampliado para quatro: pela
Guiné, Francisco Mendes (Chico Té), e João Bernardo Vieira(Nino), por
Cabo Verde, Aristides Pereira e Luís Cabral. Uma pirâmide ilusória, uma
vez que estes dois últimos estavam investidos nos cargos de secretário-geral
e secretário geral adjunto, respectivamente(p.164).
Paradoxalmente a estas justificativas, ressaltamos a enquete elaborada por Aquino de
Bragança, em fevereiro de 1973, um mês depois do assassínio de Amílcar, publicada na
revista Afrique-Asie (FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES…, 1965)110, intitulada Le complot
contre Cabral.111 Bragança traça o triângulo de acusações em torno de Sekou Touré (GuinéConacri), Rafael Barbosa (Guiné-Bissau) e a infiltração dos serviços de segurança e
telecomunicação da PIDE (Portugal).
O curioso é que das pessoas mencionadas por parte da cúpula do partido estariam
indivíduos de confiança de Amílcar Cabral e, em alguns casos, membros do partido que eram
encarregados de executar as diretrizes do Conselho de Guerra, a exemplo do comandante
Joaquim da Costa, oficial de Videta, que sabotava os planos do Conselho de Guerra em prol
da viabilização do complô para assassinar Amílcar Cabral.
A enquete elaborada por Aquino de Bragança descreve como foram as primeiras
organizações para a execução do plano de assassinato de Amílcar, sob representação de:
Pereira Crespo - Ministro da Marinha portuguesa; general Costa Gomes - Chefe do Estado
Maior das Forças Armadas de PAIGC; General Spinola - Governador Militar da Guiné
Portuguesa; e Major Paes - Chefe do PIDE (FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES…, 1965, p.
60).112
Todas as estratégias traçadas para a captura do líder do PAIGC tiveram a
colaboração do seu chefe de segurança/guardacostas, que disponibilizou a sua agenda pessoal
110
Tradução da autora.
O complô contra Cabral.
112
Tradução da autora.
111
195
para que a data do complô fosse efetivada, já que Amílcar Cabral estaria ausente, em
dezembro, de Conacri, participando da Conferência da OUA. Desta forma, a data oficial foi
marcada depois de várias reuniões de concerto entre o general Spínola e Costa Gomes em
Bissau.
É importante assinalar que a maioria dos membros do partido aliciados pela PIDE era
de membros descontentes do partido, ou seja, eram dissidentes que contestavam a unidade
Guiné-Bissau e Cabo Verde e também a liderança de Amílcar Cabral, a exemplo de Aristides
Barbosa113 e “Inocêncio Kani114 ex-comandante de Marinha do PAIGC, que teve um
comportamento bastante equívoco pelas intrigas fomentadas contra o PAIGC e o excesso de
ingestão de bebidas alcoólicas, depois castigado recebeu nova oportunidade de continuar a
luta dentro do partido” (ORAMAS, p.155); não obstante continua a alimentar problemas entre
os bissau-guineenses e os caboverdianos atraindo descontentes para a fileira do partido.
Foram estes que serviram de recursos para instrumentalizar o plano de desestabilizar
o partido com a morte de Amílcar Cabral. Eis a lista descrita por Aquino de Bragança
(FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES…, 1965, p. 61);115 os principais suspeitos envolvidos
diretamente com a execução de Cabral são:
Rafael Barbosa - antigo presidente de PAIGC; [...] Mamadú Turé (Momo
Turé) - antigo membro de comitê central do PAIGC, antes do início da luta
armada [...] Aristides Barbosa - Agente português de PIDE, que infiltraram
no campo de concentração de Tarrafal, a fim de conquistar a confiança dos
nacionalistas; [...] João Tomás - Membro de PAIGC desde a sua criação e
membro de comitê central e sindicalista até a sua adesão a kundara; [...]
Soares da Gama - membro do PAIGC desde a sua fundação. Foi comandante
da operação na frente sul e comissário político de marinha até outubro de
1971; [...] Mamadú Ndiaye - antigo comandante de PAIGC nas diferentes
vários anos; [...] Koda Nabonia (Batia) - Membro de guarda pessoal de
Amílcar Cabral. Depois de assassinato de Cabral se suicidou; [...] Valentino
Mangana - agente de serviços português, depois da deserção da força armada
portuguesa, recebido por Soares da Gama que lhe nomeou comandante
adjunto da vedeta nº 05; [...] Nene - um dos responsáveis de
telecomunicação de PAIGC colaborava estreitamente com os conspiradores,
durante os seus contactos regulares com Bissau; [...] Inocência Kanni membro de PAIGC desde a sua criação e membro de comitê executivo de
luta. Ele foi excluído em outubro de 1971 por voto unânime do partido, e
113
Nasceu em Bafatá, leste do país, de origem mestiço, católicos, funcionários de setor de serviços da
administração colonial. Considerado intelectual entre os seus companheiros ele também era considerado
defensor da liberdade dos bissau-guineenses e contra a presença portuguesa na Guiné.
114
Um caso de corrupção, relacionado com a venda do motor de um barco do partido no mercado negro de
Conacri, leva-o a tribunal de guerra em dezembro de 1971. É duplamente castigado: expulso por unanimidade,
do Comitê Executivo, e afastado do comando da Marinha. Poupado pela amnistia, é lhe entregue o comando de
uma das vedetas – aquela em que viria a ser aprisionado no mar, com os 21 homens que o acompanhavam.
Muitos dos combatentes ter-se-ão admirado, chocado mesmo, com a notícia de que Cani fora o carrasco. Porque
Cabral investira nele, porque fora tolerante e lhe dera todas as chances. De nada valeu (CASTANHEIRA, 1995,
p.118).
115
Tradução da autora.
196
depois autorizado a assumir posto de comandante de uma das vedetas. É ele
que vai matar Cabral depois de ter dado a chance de retornar o partido.
O governo militar colonial de Bissau articulou as estratégias para atrair a
cumplicidade dos membros dissidentes do PAIGC, ao prometer-lhes a independência da
Guiné-Bissau, mas sob condição de excluir os caboverdianos do movimento nacionalista, já
que Portugal intencionava conservar a Ilha de Cabo Verde como parte de uma base estratégica
de importante capital portuguesa (BRAGANÇA, 1965).
Sem dúvida, o governo militar colonial ciente das rivalidades e diferenças existentes
entre caboverdianos e bissau-guineenses - por sinal resultado da política colonial que dava
mais privilégios aos caboverdianos considerando-os portugueses de segunda classe116
-
direciona sua promessa a um grupo de dissidentes bissau-guineense, e rapidamente consegue
estabelecer acordo com os ex-prisioneiros políticos dissidentes do PAIGC. Vale ressaltar que,
“Aristides Barbosa tinha estado preso no Tarrafal, em Cabo Verde, junto com Momo Turé e
depois tinham sido amnistiados por um gesto do General Spínola e regressado a Conacri via
Bissau” (ORAMAS, 1998, p. 157).
Aquino de Bragança ressalta no seu testemunho investigativo que o alvo desta
promessa é o antigo presidente do bureau político do partido em Bissau, Rafael Barbosa.
Seguindo a ideologia do governo colonial, Rafael Barbosa seria o principal administrador do
país quando da concessão da autonomia, e futuramente ele poderá conduzir o país a uma
independência, sob o controle neocolonial de Portugal. Entretanto, essa condição só seria
viável se Guiné-Bissau renunciar a ilhas de Cabo Verde (1973, p.63).
É importante que fique claro que as circunstâncias da morte de Amílcar Cabral
desenharam várias acusações a que muitos até hoje se reservaram no campo de suspeitos, não
comprovando a veracidade do envolvimento direto destes – como é o caso de Rafael Barbosa
e Osvaldo Vieira, que, por coincidência ou não, eram as pessoas que faziam críticas
sistemáticas à Cabral em relação a sua política de libertação (CABRAL, 1994,
CASTANHEIRA, 1995, PEREIRA, 2003).
Mas o curioso neste cenário de complô que culminou em assassinato é que Amílcar
Cabral estaria residindo num país independente, que lhe garantiu toda a segurança e proteção,
questões que justificavam a instalação da base militar do partido em Conacri. Seu assassinato
levanta algumas suspeitas sobre a aludida segurança do líder do PAIGC em Conacri, ao ponto
116
Segundo Corsino Tolentino apud CASTANHEIRA, 1995, a contradição intrecomunitária existiu sempre no
partido de uma forma latente ou expressa. Muitas vezes, ela polarizou-se em torno da questão da mestiçagem: o
burmedju, a corruptela do vermelho, como era conhecido o mestiço de Caboverde ou da Guiné-Bissau, sempre
entendido como algo impuro e ameaçador, com uma enorme carga negativa (p.177).
197
do presidente Sekou Turé estar inserido no rol das desconfianças que pairavam sobre o
assassinato de Amílcar Cabral.
Nos seus achados de pesquisa, José Pedro Castanheira (1995) ressalta algumas
atitudes do presidente de Conacri, que traduziria a sua cumplicidade com a morte de Amílcar
Cabral. Ele destaca o fato dos assassinos terem sido recebidos no palácio após o crime. Os
principais suspeitos da execução de Amílcar Cabral (Momo Turé, João Tomás, Soares da
Gama, Inocêncio Kanni), tendo como portavoz do grupo Momo Turé, dirigiram-se a Sekou
Turé para explicar as circunstâncias da morte de Cabral, afirmando, “nós somos parte do
grupo responsável supremo da revolução, e viemos assumir nossas responsabilidades. É
preciso descartar Cabral, mesmo se é pra matar-lhe se for preciso, para salvar o nosso país”
(FUNDAÇÃO…, 1973, p.62); isso levantou várias indagações dos jornalistas e representantes
internacionais em Conacri, sobre o fato que justificaria tal declaração.
Mas é no impasse ideológico entre Amílcar Cabral e Sekou Turé, no tocante à
construção da Grande Guiné, que alguma literatura justifica a conivência do presidente de
Conacri no assassinato do líder bissau-guineense. Um dos relatos citados no trabalho de José
Pedro Castanheira enfatiza que a concessão de auxilio ao PAIGC em Conacri estaria no bojo
do Projeto da Grande Guiné, isto é, de que Guiné Conacri e Guiné-Bissau fossem reunidas
num Estado Federal, depois da independência da Guiné-Bissau, proposta esta rejeitada por
Amílcar Cabral; este fato foi apontado como sendo um dos motivos de Sekou Turé desejar a
morte de Amílcar Cabral para que tivesse margem para viabilizar o projeto Grande Guiné.
Em meio à celeuma iniciada desde o assassinato de Amílcar Cabral, a relação
conturbada entre bissau-guineenses e caboverdianos ficou insustentável, isto porque o
desconforto gerado pela unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde estava no auge da sua
decadência, some-se a isso outro aspecto, entre os assassinos de Amílcar Cabral eram
suspeitos alguns membros do partido do conselho de guerra: Osvaldo Vieira (um dos críticos
da atuação dos caboverdianos na luta de libertação) e Cruz Pinto foram os suspeitos de
envolvimento no assassinato, citados por Luís Cabral na sua entrevista. No entanto, havia
forte suspeita em relação a Vieira, conforme afirma Luís Cabral:
É um fato que nunca foi tornado ao público. Um dos documentos
fundamentais que levou o congresso a tomar essa decisão foi uma pequena
carta escrita por um dos assassinos, João Tomás, dirigida ao Osvaldo Vieira,
aquando da sua passagem na fronteira leste, para onde os seus suspeitos
foram enviados- uma vez que Sekou Touré não permitiu que os
interrogássemos em Conacri. Quando Tomás passou pelo quartel de
Cundara, escreveu a carta ao Osvaldo, dizendo que as coisas estavam
arrumadas, que seriam conduzidos a fronteira e que estariam lá a espera dele.
A carta foi passada a um oficial da Guiné- Conacri do quartel de Cundara,
198
que tomou a decisão de entregá-la a Otto Shacht, membro do Comitê
Executivo da Luta e responsável pela Segurança do PAIGC [...] a carta não
confirmava, mas era comprometedora. Se provasse a sua cumplicidade direta
na morte de Amílcar, não teríamos reabilitado o Osvaldo, que teve a sua
residência fixa em Cundara para permitir a segurança, prosseguir o inquérito
sobre o seu comportamento (CASTANHEIRA; NEVES, 1994, p.51).
Ora, uma coisa é certa, o quartel general de Conacri era constituído por bissauguineenses e na maioria caboverdianos, como seria possível apenas os bissau-guineenses
organizarem o complô para assassinar Amílcar Cabral sem que nenhum caboverdiano
soubesse? Sem dúvida, existiam caboverdianos que não compactuavam com as ideologias de
Cabral e havia grupos ainda que acusassem Cabral de não se preocupar com Cabo Verde
(PEREIRA, 2012).
Essas questões merecem uma análise mais cuidadosa e aprofundada acerca dos
motivos que permearam o assassinato do líder da luta de libertação, não apenas reduzi-la a um
grupo de dissidentes bissau-guineenses, mesmo porque seria quase impossível numa cidade
como Conacri planejar o assassinato de Cabral sem que os outros membros do PAIGC
residentes em Conacri soubessem.
Tudo isso reforça a ideia de que não havia consenso entre os membros do partido que
visasse à construção sólida do projeto de unidade binacional. Depois do assassinato de
Amílcar Cabral, o partido convocou, em julho do mesmo ano, o II Congresso em Boé (frente
leste) com objetivo de reestruturar o partido, designando assim um membro (Aristides
Pereira) para ocupar a função de secretário geral do partido que era função desempenhada por
Amílcar Cabral, e Luís Cabral para o cargo de secretário adjunto. Não obstante, os erros
apontados que estiveram na base da morte de Cabral foram repetidos depois da
independência, ao se colocar um caboverdiano como presidente do Estado. Este assunto
merecerá uma análise mais profunda no quinto capítulo.
É verdade que o cenário de desconfianças que se desenhou depois do assassinato de
Amílcar Cabral entre os bissau-guineenses e os caboverdianos se refletiu nos bastidores do II
Congresso em Boé, que objetivava a nomeação de um novo secretário geral do PAIGC; cabe
ressaltar que o assassinato de Cabral já assinalava o fim da unidade Guiné-Bissau e Cabo
Verde, ou seja, estava mais do que evidente que, com a morte de Amílcar Cabral, seria difícil
prosseguir com o seu projeto de unidade binacional. Sobre esse ponto Luís Cabral considera
que:
[...] o desaparecimento de um líder como o Amílcar tornava a sua
substituição muito difícil. A decisão não poderia ser tomada de ânimo leve.
199
Houve uma corrente no seio do partido que falou na necessidade de um
dirigente que fosse autenticamente bissau-guineense... O nome de Nino
apareceu proposto pelo Fidelis Almada [...]; defendi sempre o principio de
que qualquer dirigente podia candidatar-se ao cargo. Só que essa candidatura
não poderia basear-se no fato de ser genuinamente bissau-guineense ou
cabo-verdiano. Isso criou grandes perturbações, mesmo no seio dos
combatentes de Cabo Verde, que se sentiram discriminados. Criou-se uma
atmosfera muito tensa. Depois de discutir com os outros companheiros da
direção, incluindo o Nino, chegamos à conclusão que o Aristides Pereira, era
o homem que fisicamente estava mais próximo de Amílcar
(CASTANHEIRA; NEVES, 1994, p.51).
Há outro aspecto digno de atenção que também norteou os bastidores do II
Congresso e que elevou os ânimos dos combatentes: a desconfiança que pairava entre os
camaradas de luta no tocante ao assassínio de Amílcar, e que levou Luís Cabral à decisão de
que a segurança do congresso seria incumbida prioritariamente aos combatentes da frente
norte, da qual ele fazia parte. A esse respeito, Luís Cabral também afirma:
[...] os homens que participaram no assassínio do Amílcar, eram senão estou
em erro, 70 ou 80 pessoas, eram de quase todos do Sul e alguns do Leste.
Por isso decidimos ao nível da direção máxima da Frente norte reforçar a
segurança do congresso, com a presença de militares do Norte. Foi o que
fizemos, com um grupo bastante forte de homens armados
(CASTANHEIRA; NEVES, 1994, p.51).
Some-se outro fator levantado sobre a proclamação do Estado nacional como forma
de honrar o desejo de Amílcar Cabral, que na verdade já tinha sido “anunciado por Amílcar
Cabral na sua mensagem do final de ano” de 1972-1973, segundo afirma Luís Cabral.
Assim, em 24 de setembro de 1973, foi proclamada a independência unilateral pelo
PAIGC. Este ato assinalava assim o nascimento do novo Estado soberano e independente,
representado pelos delegados do partido. Nesse ensejo, Luís Cabral foi nomeado Presidente
do Conselho do Estado, cargo compatível à presidência do Estado. Só em 25 de abril de 1974,
Portugal viria a reconhecer a independência e a proclamação do novo Estado quando da
derrota do fascismo.
200
Imagens da Proclamação da Independência em Madina de Boé Por Nino Vieira (Leste do País).
Arquivo: Fundação Mário Soares.
Esta fase encerra a luta armada de libertação nacional, e sinaliza para o nascimento
do Estado africano sedimentado sob a divisa da unidade nacional. A complexidade que
traduzia esta fase residia nas instituições tomadas de empréstimo do sistema colonial, baseada
na opressão e ajustes de contas, tanto dos que participaram do movimento de libertação,
quanto dos bissau-guineenses que colaboravam com o colonialismo português. No seu
depoimento a esse trabalho, Adriano Ferreira117 afirma:
Depois da luta, todas as pessoas que contribuíram para luta na
clandestinidade foram isoladas e maltratadas, como se não bastasse a tortura
que sofreram nas mãos dos colonos. Rafael Barbosa e muitos outros foram
vítimas deste comportamento do partido. Havia lugar somente para os
vieram do mato. Cruz Pinto e outros foram amarrados e presos.
Cabe enfatizar o papel dos intelectuais africanos no processo da luta de libertação
nacional e na formação do Estado nação dos respectivos países. Foram eles que estabeleceram
relações tanto internas quanto externas, que visavam reivindicar a liberdade, a autonomia e a
soberania nacional, produzindo ideologias, desenhando estratégias, a fim de contestar
veementemente a presença europeia na África.
Neste caso, destacamos o papel preponderante de Amílcar Cabral tanto dentro do
continente africano quanto a nível internacional. Organizava e participava de eventos que
117
Entrevista concedida em 2011, Bissau.
201
objetivavam denunciar ao mundo a tirania dos colonialistas, e solicitava a solidariedade para
com os povos africanos.
Em linhas gerais, é imporante registrar a evolução da estrutura do partido no tocante
à organização da luta de libertação. Neste cenário, é oportuno destacar os momentos cruciais
que marcaram as etapas de luta e a sua evolução. A internacionalização das ações do partido
possibilitou a atração dos simpatizantes que apoiaram em termos estruturais o
desenvolvimento da luta, como também a inserção do partido nos fóruns coletivos de
conferências mundiais, que ajudaram a denunciar o colonialismo português.
Nesse ensejo, o I Congresso em Cassacá foi primordial na construção do aparelho
político, dando origem às primeiras formas de organizações estatais. Some-se a isso o II
Congresso em Boé, que priorizou de forma decisiva a independência nacional, rubricada sob
desejos da institucionalização do Estado nacional.
Vale observar que a unidade binacional sempre esteve permeada do velho
antagonismo entre os bissau-guineenses e caboverdianos, mesmo forjada pelos objetivos
comuns, na eliminação do inimigo comum, não se conseguiu superar as divergências que
constituíram essa unidade, e foi um dos aspectos que também esteve no contorno da
motivação do assassinato de Amílcar Cabral.
4.4 – As mulheres no cenário da Luta de Libertação Nacional
Discutirei nesta seção, ainda
que de forma suscinta a grande contribuição das
mulheres africanas no movimento de libertação nacional, trazendo como suporte os excertos
de suas entrevistas como ex-combatentes de
liberdade da pátria de Guiné-Bissau. Não
pretendo retormar a vasta literatura sobre gênero e equidade social, e os debates que se
estabeleceram acerca do assunto, apenas dedicarei mais atenção sobre a importância da
contribuição feminina no processo de luta de libertação nacional resultante da sua
emancipação política em particular na Guiné-Bissau.
As mulheres bissau-guineenses foram coadjuvantes na engenharia da luta de
libertação, além de constituírem suportes principais na manutenção das bases de luta, elas
também participaram das guerrilhas e no teatro das operações de luta, através da criação de
grupo de milícia feminina. Em outras palavras, as mulheres tornaram necessária a política de
organização do PAIGC para o desenvolvimento da luta de libertação nacional. Segundo
202
Elisée Turpin(2011)118, as mulheres participaram ativamente na luta de libertação. As
mulheres estavam na parte ativa da luta que envergonhava alguns homens.
Imagens da participação das milícias populares na luta de libertação.
Arquivo: Fundação Mário Soares.
Para Carmem Pereira119, uma das mulheres combatentes mais ativa e de maior
destaque no processo de luta de libertação, comissária política na frente sul, a participação
feminina foi imprescindível no desenvolvimento da luta de libertação; no entanto, atingiu seu
nível máximo depois do Congresso de Cassacá, cuja resolução abrangia a proteção das
mulheres, equiparando os direitos de igualdade com os homens, tanto na família quanto no
trabalho e nas atividades políticas, cessando todas as formas de abusos e opressões antes
existentes.
É também no contexto de Congresso de Cassacá que fortaleceu a União Democrática
das Mulheres de Guiné-Bissau (UDEMU) criada em 1961 em Conacri, objetivando
estabelecer contatos com as organizações internacionais de mulheres com fins de
fortalecimento de luta para emancipação política, social e econômica. Segundo Carmem
Pereira:
A UDEMU tinha como principal tarefa nesta fase histórica a mobilização
das mulheres para um melhor enquadramento no processo de luta. Esse
enquadramento propunha-se não só preparar as mulheres para saberem reagir
contra o colonialismo mas também contra todas as atitudes atentatórias à
dignidade da mulher e contra as diretivas do PAIGC nesse campo120.
É oportuno salientar que nem todas as mulheres desempenharam funções no teatro de
operações da luta de libertação, outras contribuíram à sua maneira para a concretização da
118
Entrevista concedida em janeiro de 2011, em Bissau.
Entrevista concedida em maio de 2011, Bissau.
120
GOMES, Patricia Godinho (2013). Disponível em: http://www.buala.org/pt/mukanda/na-senda-da-luta-pelapaz-e-igualdade-o-contributo-das-mulheres-bissau-guineenses.
119
203
luta, sobretudo na fase de clandestinidade, participando diretamente nas atividades políticas,
como por exemplo: na produção de alimentos para os combatentes; no carregamento de
materiais de guerra; na distribuição dos materiais de propaganda, como informantes,
disponibilizando as suas casas para esconderijo dos combatentes; e como enfermeiras,
costureiras, esposas, professoras, cumprindo papel estratégico no desenvolvimento da luta de
libertação.
Destarte, a força e a união das mulheres africanas, na luta pela libertação nacional,
foram responsáveis pelo aumento da mobilização e conscientização de libertação de seus
povos. Pereira relata que:
Fui para frente sul, recrutei as meninas, para aprender a ser enfermeira, mas
vale lembrar que muitas meninas que aderiram as bases da luta fugiram do
casamento forçado, e são imediatamente inseridos na formação escolar. De lá
criamos escolas em todos os postos médicos onde estudavam até quarta classe
e são enviados para Rússia para reciclagem na área de saúde. Depois de
Congresso de Cassacá abrimos postos de milícias populares e as meninas
recebiam a instrução militar para ficar nas suas tabancas. As mulheres
desempenharam todos os papeis durante a luta, foram milicianas, foram
lavadeiras, cozinheiras, enfermeiras, e, em todo batalhão que vai para a linha
de frente as mulheres estavam presente (PEREIRA, 2011).121
As entrevistas com os combatentes de liberdade da pátria sinalizam o consenso sobre
a importância da mulher na luta de libertação nacional na Guiné-Bissau. “As mulheres
comandavam a luta, Enestina Silá (Titina Silá) era comandante na zona norte [...], Carmem
Pereira, Nhima Sanhá, Satam, Mariatu, Francisca Pereira, uma das primeiras mulheres que
batalhavam na luta e participaram ativamente na luta armada”.122 Sobre o processo de
mobilização e inserção na luta, Satú Camará Pinto123 afirma:
Quando chegamos em Boké encontramos Teodora, Silvina, Carmem e outras
mulheres. Em pouco tempo fomos levados para Gana onde recebemos
preparação militar. Na volta para Guiné fomos distribuídos para diferentes
regiões onde eu fui enviada para leste (Bafatá e Gabú). Depois fomos
enviados para Rússia para receber formação como enfermeira.
Seguindo a mesma reflexão, reafirma:
Cabral incluía as mulheres em todas as esferas da luta de libertação. Em
1967, Cabral fez uma palestra onde afirmou que em todos os órgãos tinha
que ter mulheres a fim delas possam conquistar seu lugar. As mulheres
estavam também na linha de frente com suas armas.
121
Carmem Pereira, comissária política da frente sul. Entrevista concedida em maio de 2011, Bissau.
José Lopes, 2011, Bissau.
123
Combatente de liberdade da pátria, entrevista concedida em abril de 2011, Bissau.
122
204
Outra reflexão de uma mulher combatente na zona de Quitafine (sul do país) foi
descrita por Oscar Oramas (1998,p.137):
Quando ouvi falar dos direitos das mulheres, no princípio da mobilização,
compreendi imediatamente o que queria dizer. E também era necessário e
possível. Hoje trabalho com os homens e tenho mais responsabilidades que
muitos deles. E isto não está certo só para mim. Compreendo que há que
lutar com as outras mulheres contra a nossa dominação. Mas devemos lutar a
dobrar: primeiro, para convencer as mulheres e depois para convencer os
homens que as mulheres têm os mesmos direitos do que eles.
A inclusão feminina na frente da luta armada pelo movimento de libertação nacional
foi um ato muito bem apreciado pelo líder do PAIGC, num dos seus excertos publicados
sobre “as mulheres na frente da nossa vida e da nossa luta” (FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES…,
1965). Cabral ressalta a importância da mulher africana na vida dos povos africanos, quer no
âmbito do cuidado com a família, na concepção da vida, e nas funções domésticas.
Entretanto, reconhece que apesar de todas as versatilidades atribuídas às mulheres,
no que se refere à participação política, as suas atividades eram limitadas. Ou seja, a mulher
africana era forçosamente afastada das questões políticas e das decisões que emanavam da
esfera política. A essas questões, Amílcar Cabral atribuiu à questão cultural do próprio
continente africano, que subestimava a potencialidade das mulheres em relação ao homem.
Portanto, “Cabral sabia que a luta pelos direitos civis e políticos tinha de estar ligada à luta
pela independência nacional e que nos países onde a mulher participou nos movimentos de
libertação nacional, lutando e sacrificando-se ao lado dos homens, ela conseguiu obter o
reconhecimento dos seus direitos legítimos” (DUARTE, 2005, p.643).
Na entrevista concedida ao Jornal Kansaré, de Bissau, Ana Maria Soares,
combatente de liberdade da pátria bissau-guineense, reafirma os ideais de Amílcar Cabral no
tocante à emancipação feminina:
Ele advertia nos muito a ponto de nos dizer que não podíamos deixar que um
homem nos influenciasse e nos desviasse do nosso caminho engravidandonos. Cabral defendia que uma mulher tinha de ir a escola como homem e
combater ao lado dos homens e não permitia a discriminação entre homens e
mulheres.124
Nesta mesma direção, Carmem Pereira125 afirma numa das entrevistas em 1978 sobre a
condição social da mulher bissau-guineense atrelada às tradições culturais:
124
Jornal Kansaré, Bissau, 2009, p.08.
“Carmen Pereira: woman revolutionary”, in Sowing the first harvest. National reconstruction in GuineaBissau, Oakland, CA, LSM Information Center, 1978, p.63 (Centro de Informação e Desenvolvimento Amílcar
Cabral, Lisboa, cota-GW-H I-10). Texto original em Inglês: Apud, Gomes, Patricia Godinho (2013).
125
205
[...] A posição da mulher era muito atrasada. Para cumprimentar o marido,
por exemplo, uma mulher teria de se ajoelhar e colocar a testa no chão. Ela
foi trabalhar e o marido ficou em casa. Ela trabalhou até o pôr do sol, voltou
para casa, cumprimentou seu marido, preparou a refeição, tendo um pouco
de água para que ele lave o corpo, trouxe-lhe comida e ajoelhou-se antes de
dar a ele. O partido tem lutado contra essas tradições negativas e acabar com
mais do que isso. Agora, os homens trabalham com as mulheres nos campos.
O homem muçulmano no passado nunca quis uma mulher para ir a uma
reunião. Houve muitas reuniões durante a luta e as mulheres estavam muito
interessadas em ouvir o que estava acontecendo. Os homens se recusavam a
deixá-las ir por três ou quatro vezes, mas as mulheres continuavam
insistindo. Finalmente, os homens eram obrigados a aceitar. Agora, as
mulheres estão nas comissões de aldeia e são por vezes eleito presidente.
Homens agora aceitam mulheres que conduzem reuniões, porque é uma
diretiva do partido e por que é correto.
Sem dúvida, a luta de libertação nacional engendrou transformações significativas
nas relações entre homens e mulheres diante das tradições culturais, ao tempo que interferiu
nas questões mais delicadas como no casamento arranjado, a ausência do direito de divórcio
para as mulheres e a poligamia, ou seja,
[...] muitas mulheres tinham que se casar por casamentos arranjados, este
velho costume é combatido graças ao direito ao divórcio, em muitos casos,
quando as mulheres são casadas contra a sua vontade, o Partido pronuncia o
divórcio automaticamente (ORAMAS, 1998, p.137).
Fortalecendo essa afirmação, Vera Duarte, no seu estudo “Cabral, gênero e
desenvolvimento”,126 ressalta em seus excertos o pensamento do líder bissau-guineense em
relação à participação da mulher africana na luta pela independência da sua terra, criticando a
inferioridade cultural a que a mulher africana está condicionada. Seu discurso inovador - que
preconizava a inserção da mulher atrelada às tradições culturais, convocando-a para a sua
emancipação política - constitui a priori o programa do partido, postulado no princípio de
“igualdade dos cidadãos perante a lei, sem distinção de sexo”.
Sobre este ponto, Cabral ainda preconizou:
Defender os direitos da mulher, respeitar e fazer respeitar as mulheres, mas
convencer as mulheres que a sua libertação deverá ser obra delas mesmas,
pelo seu trabalho, ligação ao partido, respeito próprios, personalidade e
firmeza, combatendo o que puder ser contra a sua dignidade (Carmem
Pereira apud, Oramas, 1998, p.136).
Cabral foi ainda mais enfático no discurso proferido em virtude da comemoração do
dia 8 de março em 1968, em Conacri, na unidade da escola piloto, onde ressaltou:
126
Disponível em: CABRAL NO CRUZAMENTO DE ÉPOCAS. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL
AMÍLCAR CABRAL, 2., 2005, Praia. Anais… 2005. p. 643.
206
Devemos honrar a mulher, respeitar a mulher, amar a mulher no sentido
mais puro que possa haver. E acrescentou: “queremos que as nossas mães
sejam iguais aos nossos pais, queremos que as nossas irmãs sejam iguais a
nós, queremos que as nossas filhas não sejam escravas de ninguém, que não
sejam dominadas por ninguém". Para isso, é preciso lutar, nada cai do céu a
não ser a chuva (CABRAL apud DUARTE, 2005, p.643-645).
Na contramão destes fatos, a inserção das mulheres na luta de libertação nacional
sinaliza a emancipação política, contribuindo assim para uma grande revolução nacional.
Importante dizer que o discurso de Cabral, tanto pela sua retórica enfática quanto pelo seu
significado histórico, legitimou as mulheres bissau-guineenses quebrando os muros de
preconceitos materializados através do comportamento cultural, ao tempo que pregou a
dignificação da mulher na sociedade patriarcal, abrindo novos caminhos que possibilitam a
contribuição da mulher no desenvolvimento socioeconômico e político do seu país. No
entanto, é o próprio Cabral que adverte: “as mulheres têm dois colonialismos a vencer: o dos
portugueses e o dos homens”.127 Portanto, mais que participação política, a promoção e a
dignificação da mulher, isto é, a necessidade de a mulher ser respeitada pelo homem,
completam as preocupações de Cabral.
Apesar de todas as dificuldades acima citadas, contemporaneamente, estas mulheres
buscam seguir seus papéis políticos nas diferentes esferas sociais dos seus países, reafirmando
suas missões no novo cenário de construção sociopolítico e econômico, sem, contudo, deixar
de ser mães e esposas.
A fala de Matilde Muhindo Mwamini, da República Democrática do Congo,
deputada do Parlamento Congolês e membro da Subcomissão de Direitos Humanos, no
discurso proferido no V Congresso Internacional “A África, de pé, com rosto de mulher”,
realizado em 2006, em Roma, nos deixa clara a contribuição das mulheres africanas no
desenvolvimento político e social. Para ela,
As mulheres africanas são as verdadeiras tecedoras das relações humanas e
sociais. A mulher na África – suporta todo o peso dos países nas quais
existem ferozes ditaduras. Cotidianamente acontecem crimes terríveis, mas
apesar disto, a esperança e a coragem de ser mulher prevalecem [...] é
necessária uma revolução cultural, e também possível, a partir da educação e
da instrução das mulheres. A mulher africana deseja conhecer os seus
direitos, quer participar da vida política num momento no qual os direitos
humanos são violados, a mulher quer ser responsável do seu destino e do
destino da sua comunidade. Muitas mulheres estão no Parlamento e têm,
inclusive, cargos de governo. A mulher é pela vida – concluiu – não pela
127
Oramas, 1998, p.136.
207
guerra. Ser solidários com a mulher significa humanizar a nossa
sociedade.128
Na mesma linha de raciocínio no tocante às mulheres africanas e suas realidades,
tomemos como base o discurso da representante das organizações não governamentais de
Eritréia, Elisa Kidané, ao retratar a realidade das mulheres africanas perante as tradições
culturais, e as difíceis tarefas de maternidade, da responsabilidade de educar os filhos, entre
outras. Assim sendo, afirma Elisa Kidané:
Desejo dizer com força o que se sente pelo fato de ser mulher africana:
alegria, responsabilidade, cansaço! Somos guardiãs da vida da humanidade.
Queremos, ao menos uma vez, ser escutada com igualdade, ter espaço para
exprimir e fazer ouvir nossa voz, e nada de qualquer um falar por nós. As
mulheres africanas, portanto, sabem caminhar com a cabeça erguida,
sorridentes, com paciência, vivem uma vida feita de fios de algodão e
prontas a tecer, com os ombros jamais caídos, como em uma dança infinita
de esperança!129
Em linhas gerais, o que fica claro nessas duas falas é o fato de que estamos perante
uma nova figura feminina nas sociedades africanas, que, pelas demandas sociais, querem
fazer parte das decisões políticas, sociais e econômicas do seu país, enquanto mulheres,
somando assim com as mulheres de outras partes do mundo, que há tempos reivindicaram a
emancipação, assim como o acesso à escola, oportunidades iguais, trabalho igual, salário
igual, complementaridade no lar e na criação dos filhos, dentre outros. Ou seja, “a mulher do
século XXI vai imprimindo mudanças significativas na sociedade, contribuindo para o avanço
e progresso social” (SOUZA, 2007).
No período pós-independência, o PAIGC não conseguiu equilibrar o ativismo
político das mulheres no tocante à sua participação efetiva na esfera política, apesar da
tentativa de criar em 1975 uma Comissão Feminina que objetivava a elaboração de programas
de ação em prol da condição feminina após a luta de libertação; a participação política das
mulheres foi tímida em comparação com o período da luta de libertação. Os fatores inerentes
a essa participação oscilam tanto nos aspectos socioculturais, quanto econômicos. Relata
Gomes:
[...] em termos políticos, persistem várias dificuldades com que as mulheres
bissau-guineenses se deparam, sobretudo em termos de candidaturas para
cargos políticos: falta de meios financeiros para suportar a própria
candidatura a lugares políticos ou de decisão; a falta de unidade que existe
128
INFONLINE: A África, de pé, com rosto de mulher. Meridianos
<http://www.cgfmanet.org/info/mostranews.asp africanas>. Acesso em: 17 out. 2007.
129
Idem.
&
Paralelos.
In:
208
entre as mulheres quando se trata de apoiar uma candidatura feminina;
enfim, o pouco empenho e envolvimento nas estruturas políticas que se
traduz muitas vezes na falta de iniciativa e por vezes na ausência das
mulheres nos processos de escolha dos candidatos a nível das estruturas
partidárias e de outras organizações políticas130.
Em termos gerais, o periodo pós-independência também
foi marco de várias
fragilidades, não apenas no ativismo politico feminino, mas também na implementação das
narrativas fundantes da nação bissau-guineense, contabilizando crises, rupturas e golpes que
comprometaram em parte os processos de edificação do stado nacional.
Capítulo V - A Guiné-Bissau no contexto das independências africanas e o
nascimento de um Estado africano: desafios e possibilidades
Neste último capítulo pretendo discorrer sobre os desafios da construção do Estado
nacional pós-independência e dos dilemas que nortearam o nacionalismo bissau-guineense.
Em seguida, a ênfase será dada no papel da cultura na articulação da consciência nacional na
Guiné-Bissau, no movimento de libertação. A falência do projeto de Cabral de unidade étnica
e unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde na política contemporânea do país completa essa
análise. Interessa-me, também, abordar os efeitos do Movimento Reajustador de 1980, e as
tensões da primeira abertura multipartidária de 1994, geradora da II República bissauguineense.
5.1 Nacionalismo bissau-guineense e conexões com a cultura: unidade étnica e unidade
Guiné-Bissau e Cabo Verde
A partir de 1950, o nacionalismo bissau-guineense teve o seu auge com a
efervescência dos movimentos contestatórios, rubricados sob vários vertentes131, sobretudo a
cultural. Vale repetir que em quase todo o continente, a década de 1950 foi marcada por
intensas reivindicações nacionalistas, que constituíram as etapas decisivas do nacionalismo
com vistas à independência.
No caso particular bissau-guineense, essas movimentações culminaram com a
criação de uma Frente Única da Luta de libertação. A iniciativa estava em sintonia com a
130
131
GOMES, 2013.
Política, econômica e armada (Cabral, 1974.p.140).
209
dinâmica política que o continente africano atravessava como havia analisado no terceiro
capítulo.
É nesse sentido que estão vinculadas todas as articulações políticas locais e a nível
internacional, para a constituição de uma solidariedade em torno das questões coloniais na
África que impulsionariam a unidade africana. E aí ressalta-se o projeto de Amílcar na GuinéBissau e Cabo Verde, que visava à unidade política para a luta de libertação.
É importante frisar que um dos fatores importantes que nortearam os bastidores dos
movimentos nacionalistas na Guiné-Bissau foi a questão cultural, dando azo à reafirmação e
reconhecimento da identidade étnica e cultural dos bissau-guineenses diante da negação,
fragmentação e reconversão identitária a que se propunha o colonialismo português. Como
atesta Cabral, documentado por Mário Pinto de Andrade (1975):
[...] é (n)a cultura que o movimento de libertação nacional vai buscar o seu
fundamento, e é da capacidade dos povos para preservarem a sua identidade
cultural que vai receber o seu élan e a sua determinação. Cabral demonstra
que a negação do processo histórico da sociedade dominada, é
necessariamente a negação do seu processo cultural. Finalmente a luta
mantém no decurso do seu processo relações de reciprocidade com a cultura:
desde a escolha, a estruturação e o desenvolvimento dos métodos mais
adequados para a luta, até a atitude e ao comportamento de cada categoria ou
de cada individuo face a luta e ao seu desenrolar (ANDRADRE, 1975,p.30).
É importante registrar que os anos 1950 marcam o início de estudos mais
aprofundados pelas Ciências Sociais sobre a questão étnica em África. Portanto, é nessa
década que começa a problematização do conceito de etnia de forma mais clara no continente,
tanto pelos movimentos de libertação nacional africanos, que almejavam construir unidade em
torno das diversidades étnicas existentes para enfrentar o colonialismo, quanto pelos governos
coloniais que tinham nas diferenças étnicas o recurso para implantar discórdias e reforçar o
divisionismo entre os africanos, a fim de afirmar o seu domínio, minimizando os focos de
unidade entre africanos.
Vale dizer que o Estado colonial usou as questões étnicas como “canal ideológico”
na Guiné-Bissau para manipular a distribuição política entre os chefes nativos locais, ao
atribuir importância política a uns em detrimento de outros, criando privilégios entre os
grupos étnicos, estimulando assim as guerras e acirrando as diferenças.132
132
Importante dizer que o poder colonial criou e estimulou a reprodução das questões étnicas, mas as divisões já
existiam, as diferenças já existiam, as desigualdades já existiam. Aquilo que mudou foram as formas de
relacionar-se com estas realidades e o tratamento em questão, tratamento esse que acabou por conferir novos
significados ao termo (LIBERATO, 1992, p. 87).
210
É nessa conjuntura que os líderes nacionalistas africanos vão centrar na unificação
dos movimentos de libertação como prioridade na conquista das independências dos seus
respectivos países, sendo a cultura o elemento que vai sustentar e dar forma a todo o processo
de libertação nacional, traçando balizas para a transformação das velhas divergências étnicas
num único movimento que visava à construção coletiva de políticas com vistas à edificação
do Estado nação soberano. Assim sendo,
O conceito da etnia é o resultado de uma construção teórica e política: tanto
vai sendo elaborado conforme é utilizado pelo discurso cientifico, como se
vai tornando uma realidade a partir de uma série de estratégias, criadas pelo
Estado colonial para o cristalizar e reproduzir diferenças em particular no
continente africano durante o presente século. Assim, a definição deste
conceito é tanto o fruto da elaboração dos cientistas sociais como o resultado
de uma estratégia colonialista da construção de um fato concreto
(LIBERATO, 1982, p. 87).
Ao usar a cultura como alicerce para construção de uma nova sociedade, Cabral
conceituou a cultura como algo dinâmico e evolutivo. Ou seja, nas formulações de Paulo
Franco (2009), Cabral
[...] afastou-se, então, das concepções de Senghor (a negritude) e de Cheikh
Anta-Diop (a unidade cultural da África Negra), e advertia que: “numa
análise mais profunda da realidade cultural, não se pode pretender que
existam culturas continentais ou raciais. E isso porque, como a história, a
cultura se desenvolve num processo desigual, ao nível de um continente, de
uma ‘raça’ ou mesmo de uma sociedade (p.133).
Desta forma, a identidade nacional proposta pelo líder nacionalista bissau-guineense
foi modelada com base nas diversidades étnicas rubricadas em unidades, a fim de vencer as
distinções dos costumes, tradições, e impor uma unidade cultural, forjando a consciência
nacional que visava superar a dominação cultural e colonial.
Mas cabe perguntar: na época, quem dos distintos grupos étnicos tinha a aguçada
sensibilidade política para compreender o que seria uma nação? E ainda, quem se reconhecia
nessa identidade estratégica atribuída a uma reivindicação coletiva, o de ser bissau-guineense?
Como seria possível uma nação se erguer com todos os seus construtos ideológicos
homogeneizantes perante o mosaico cultural e das divergências culturais existentes na GuinéBissau?
De fato, o despertar das consciências nacionais surge, primeiro, com as resistências à
ocupação colonial protagonizada pelos distintos grupos étnicos desde 1911 (a chamada guerra
de pacificação), reforçada pela segunda onda com o movimento de descolonização da
pequena burguesia urbana de década de 1950 (denominada “idade de ouro”), engendrando um
211
movimento nacionalista bissau-guineense a fim de exaltar uma identidade ocultada pelo
colonialismo português.
Convém esclarecer que os grupos étnicos resistiram culturalmente a todas as formas
de submissões coloniais ao preservaram suas tradições culturais, mesmo não tendo a
consciência de que essas reivindicações individuais em defesa das identidades culturais
seriam a posteriori traduzidas como pertencentes a uma identidade coletiva atrelada à nação
bissau-guineense. Assim, afirma Cabral:
As grandes massas rurais, assim como uma fração importante da população
urbana, isto é, mais de 99% do total da população indígena, se mantém à
margem, ou quase à margem, de qualquer influência cultural da potência
colonizadora. O que acabamos de dizer implica que nem nas massas
populares do país dominado nem nas classes dominantes autóctones (chefes
tradicionais, famílias nobres, autoridades religiosas) se produz, em geral uma
destruição ou depreciação importante da cultura e das tradições.Reprimida,
perseguida, humilhada, traída por certas categorias sociais comprometidas
com o estrangeiro, refugiada nos povoados, nos bosques e no espírito das
vítimas da dominação, a cultura sobrevive a todas as tempestades para
depois, graças às lutas de libertação, recuperar todo o seu poder de
florescimento (CABRAL Apud, FRANCO, 2009 pp132-133).
Seria paradoxal, cmo afirmam Carlos Lopes (1989) e Diana Handem133(1986),
desencadear a luta de libertação sem a existência da nação, mas a vontade de se libertar do
colonialismo português forjou a existência da formação de consciências nacionais. De fato, o
PAIGC defendeu a prévia existência da nação como modo de justificar a luta de libertação
nacional e que depois da independência uma nova forma do Estado nacional teria sido
elaborada perante uma nova realidade social. Nesse ensejo, a unidade dos conjuntos étnicos
foi imprescindível para a idealização de uma cultura nacional global no país. Para o sociólogo
bissau-guineense Carlos Lopes (1989):
O Movimento de Libertação Nacional (MLN) conseguiu uma conjugação
interétnica notável. Durante a luta armada, as diferentes etnias partilharam a
causa comum. Desenvolveram a interação. Acreditaram nas mesmas
palavras de ordem. Descobriram cumplicidades coletivas. Não foi fácil
convergir às etnias para uma consciência, mas estrategicamente era evidente.
O MLN teria que nascer da conjugação interétnica ou seria um fracasso
(pp.236).
Os excertos de Diana Handem (1986) retratam os reais motivos que estiveram na
base da conscientização nacional de diferentes estratos da sociedade bissau-guineense,
133
Fundação Mário Soares Lisboa.
212
impulsionando uma interação de trocas de experiências, visando à formação duma sociedade
contra à sociedade colonial. Segundo a autora,
O apelo à insurreição de todos os filhos da Guiné-Bissau lançado pelo
PAIGC e a vontade de se libertar da dominação colonial, por parte dos
indivíduos ou de grupos oriundos de diversas comunidades étnicas e de
várias categorias sociais no campo e nas zonas urbanas, constituíram a partir
do fim dos anos 50 os primeiros alicerces reais do edifício nacional (p.02).
Neste âmbito, a afirmação de Carlos Lopes (1987, p.71), de que é através da cultura
que podemos explicar toda a base do nascimento do nacionalismo bissau-guineense, é o ponto
de partida para analisar como se engendrou a unificação entre a cultura, o Estado e a luta de
libertação nacional, que desdobrou na formatação da ideia da nação com os contornos étnicos
na Guiné-Bissau. Assim sendo, os atributos étnicos134 estão comungados no sentimento
nacional, através da partilha do mesmo território histórico, tradições culturais, mitos,
memórias e histórias comuns.
Anthony D. Smith (1997) afirma que a identidade nacional e a nação são construções
complexas, cunhadas de componentes que conectam as questões étnica, cultural, territorial,
econômica e política, que traduzem a multidimensionalidade da identidade nacional, modelos
característicos dos Estados nações desenvolvidos fora da Europa ocidental, que é o caso em
questão do nosso estudo.
Nesse ensejo, o autor traça a diferença entre o Estado e o nacionalismo, pontuando
que o nacionalismo é a ideologia da nação, não do Estado. Assim sendo, o nacionalismo é
uma doutrina cultural, ou mais precisamente uma ideologia política que tem como centro uma
doutrina cultural (Smith, 1997, p.98), ou seja, é a cultura que vai desempenhar o papel de
motor ou acelerador do processo de organização dos homens em nações (ANDRADE, 1986).
Importante dizer que, na Guiné-Bissau, a ideia de nação antecede a ideia do Estado.
No entanto, é através do nacionalismo que vai se criar um movimento ideológico regulado
pela unidade de uma identidade nacional que constituirá o alicerce de um Estado
verdadeiramente nacional através da cultura. É oportuno salientar que a reivindicação do
nacionalismo bissau-guineense reside, a priori, na busca da igualdade de direitos e na
conquista da liberdade, que está no bojo de uma identidade negada pelos colonialistas.
Desta forma, o recurso da busca das tradições culturais e do resgate ao passado
histórico constitui prioritariamente as alegorias nacionais de reivindicação por excelência na
reafirmação da identidade, que sugere a unidade das consciências étnicas e culturais. Em vista
134
Anthony Smith enumera no seu trabalho seis atributos étnicos que constituem a comunidade étnica e que são
compartilhados dentro do estado nacional, como, um nome próprio coletivo,um mito de linhagem comum,
memórias históricas partilhadas, um ou mais elementos diferenciadores de cultura comum, associação a uma
terra natal especifica, e por fim, um sentido de solidariedade em setores significativos da população (1997, p.37).
213
disso, Smith (1997, p.97) define o nacionalismo como um movimento ideológico para atingir
e conservar a autonomia, a unidade e a identidade de uma nação.
Diante disso, é importante indagar qual é a ressonância da formulação do conceito de
nação do PAIGC de Amílcar Cabral em termos étnicos? Será que a narrativa discursiva de
construção da nação de Amílcar Cabral foi absorvida de forma geral pelos seus seguidores, ou
apenas contemporizada com um único objetivo inicial de expulsão dos colonialistas
portugueses?
Sabe-se que na Guiné-Bissau, assim como nas outras ex-colônias portuguesas, o
conceito de nação como espaço político unificado sob interesses comuns nasceu na
emergência da desocupação colonial, cuja presença colonial era concebida como uma
“ameaça” aos interesses políticos dos africanos.
Assim sendo, a mobilização dos distintos grupos étnicos para criar um consenso e
enfrentar a referida ameaça seria assumir a unidade entre os povos objetivando a
conscientização necessária para a formatação do partido-Estado para a luta de libertação que
engendraria a construção do Estado nação, exercendo os direitos de cidadania através do
reconhecimento cultural. Nesse ensejo, a exigência do PAIGC para a consolidação desses
objetivos seria que
Esses militantes deveriam estar conscientes do seu papel histórico em todas
as fases da luta, sabedores das realidades sociais e culturais das diversas
comunidades étnicas e imbuídos de uma visão clara dos objetivos da luta de
libertação, bem como capazes de assumir uma análise crítica no que dizia
respeitoàs forças e fraquezas do movimento (FRANCO,2009,p.134).
Nesse propósito, a construção da nação na Guiné-Bissau está acentuada com forte
caráter de solidariedade cultural das comunidades étnicas, que se sentiram ameaçadas diante
do colonialismo e que paulatinamente estavam perdendo suas autonomias políticas tendo que
se submeter à reconversão identitária imposta pela cultura europeia.
Deste modo, a cultura permeou todo o processo de construção da nação bissauguineense, sendo fator de libertação dos homens visando ao desenvolvimento sociopolítico e
econômico, impulsionando para a construção de um “novo homem” e uma “nova cultura”,
livre de opressão colonial (CABRAL, 1974).
Vale lembrar que a iniciativa de criar os movimentos surge de um grupo de cristons
de praça, dos chamados assimilados, que se organizaram em grupos de resistência a fim de
defenderem a independência total, conduzidos em forma de partido político, pautado na
unidade de todos os grupos culturais sem distinção, forjando uma nação africana com base na
solidariedade étnica.
214
Salienta-se que o projeto central do PAIGC para a viabilização da luta armada e da
independência está acentuado no forte caráter unitário: unidade étnica e unidade Guiné-Bissau
e Cabo Verde, sendo que a “cultura, o fundamento e o motor da luta de libertação, o seu
caráter irredutível e a sua virtude vital terão permitido contrariar as políticas de assimilação
concebidas pelo colonizador” (CABRAL, apud. BAH, 2005, p. 108).
Neste sentido, a unidade proposta possui um significado nacionalista que visa à
defesa do território contra a dominação. Ou seja, “o conceito de unidade nacionalista volta-se
para as suas raízes em busca de uma uniformidade que transcenderá as diferenças culturais
com a nação projetada” (SMITH, 1997, p.100). Esta tônica na unidade em diversidade étnica
na Guiné-Bissau teve sua sustentação na efervescência da unidade que todo o continente
africano atravessava na década de 1950; a “África deve unir-se”, tendo como grande
protagonista o ganês Kwame Nkrumah que defendia a unidade africana como o único
caminho possível para a conquista das independências africanas, como havia mencionado
anteriormente.
Acredita-se que essa narrativa serviu para fins políticos que o continente africano
estava atravessando, objetivando a independência total da presença do colonialismo europeu,
e também visava ao ordenamento das sociedades africanas, garantindo o controle em relação
ao aliciamento europeu. Foi nessa linha que surgiram algumas frentes unidas sob direção da
“geração Cabral”, que visavam à independência dos países que faziam parte das possessões
portuguesas em África, a exemplo de MAC, FRAIN, CONCP, com vistas a fortalecer a
campanha internacional para derrotar o colonialismo português, como já mencionado
anteriormente.
Em vista disso, o nacionalismo bissau-guineense se estrutura em torno de dois eixos
que se entrelaçam e se completam: o eixo político, que mostra o caminho da transformação ou
construção da sociedade através de um processo revolucionário de luta de libertação para a
independência dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, via unidade entre os povos; o
segundo eixo é cultural, congrega todas as culturas sem distinção, engendrando a unidade
étnica na construção de balizas para a nação bissau-guineense.
Saliento que a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, fruto do legado de Cabral, foi
baseada nos laços históricos135 que ligam estes dois países e endossada através da infusão
135
Os laços históricos entre a Guiné-Bissau e Cabo verde são realmente irrefutáveis. Estes laços foram
reforçados durante a luta de libertação nacional contra o colonizador comum, uma luta sangrenta levada a cabo
nas florestas de Guiné-Bissau na qual os cabo-verdianos tiveram contribuições significativas. Assim, tiveram um
papel importante em ambos os acontecimentos, na dominação colonial e na libertação nacional dos bissau-
215
social de um ideário pan-africanista. Sem dúvida, Cabral estava ciente que era a única via
possível para a concessão da independência nacional dos dois países. Por Cabral ter nascido
na Guiné-Bissau, filho de pais caboverdianos, usufruiu da dupla pertença identitária, que lhe
conferiu a legitimidade de propor uma frente unida que visava aos objetivos comuns, apesar
dele reconhecer as diferenças que constituíam as configurações sociais das duas sociedades 136.
Sobre a necessidade da unidade para a luta, testemunha Amílcar Cabral (1974):
Nas sociedades que têm classes: classe dirigente, classe de artesãos, classes
de camponeses. Era preciso fazermos a unidade, o máximo possível, das
forças de diferentes classes, de diferentes elementos da sociedade pra
fazermos a nossa luta. Não é preciso unir toda a gente, como já disse, mas é
preciso ter certo grau de unidade. Mas isso vê-se numa sociedade apenas do
ponto de vista da sua estrutura social, no seu sentido comum, vulgar. Porque
na nossa sociedade há vários grupos étnicos, quer dizer, grupos com culturas
e costumes e que, segundo a sua própria convicção, vieram de grupos
diferentes, de origens diferentes: fulas, mandingas, papéis, balantas,
manjacos, mancanha, etc., incluindo também descendentes de caboverdianos, na Guiné- Bissau (1974, p. 87).
Nessa concepção, a proposta da unidade seria inicialmente criar condições para a
unidade interna nos dois países e posteriormente engendrar a unidade política para a
viabilização da luta de libertação nacional. Neste sentido, “a nação cria uma unidade de
grande diversidade, uma conjunção de consciência humana que cria autonomia que liberta o
homem da opressão, isto é, assegurando-lhe a direção do seu destino, numa sociedade feita
por ele e para ele” (COMBLIN,1965,p.42).
Por conseguinte, o significado dado à nação diluiu as rivalidades étnicas que eram
evidentes na sociedade bissau-guineense, forjando uma nação com base na solidariedade
étnica, pautada na ideologia de unidade política. Desse modo, a criação da estrutura
ideológica da nação induziu na época a constituição de uma rede de relações de indivíduos
etnicamente diferentes engendrando o benefício da liberdade e autonomia de cada grupo
étnico, adquirindo a memória de uma vida comum, ligado à comunidade de interesses,
guineenses. Contudo para a maioria dos bissau-guineenses, os “colonialistas maus” visíveis eram de fato os
cabo-verdianos (MENDY,1993,p.28).
136
Amílcar Cabral Cabral analisou os grupos sociais da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, diferenciando as
sociedades da cidade e da área rural. Nas cidades da Guiné-Bissau, encontravam-se os africanos e os
portugueses. Entre os primeiros estavam os funcionários da burocracia colonial, os trabalhadores do cais,
marinheiros, pedreiros, carpinteiros, mecânicos, motoristas. Havia também aqueles que viviam de biscates e os
que não tinham nada a fazer. Entre os descendentes de “bissau-guineenses” e “cabo-verdianos”, destacavam-se
três grupos: os favoráveis aos colonialistas, aqueles indecisos em relação às propostas do Partido e temerosos de
perder os seus empregos e os que estavam dispostos a lutar contra a dominação portuguesa. Em Cabo Verde, nas
ilhas de Santiago e São Vicente, Cabral observou a mesma divisão. A diferença, em decorrência da forma como
a administração colonial incidiu sobre o arquipélago, era que havia um número maior de afro-portugueses
(FRANCO,2009,p.140).
216
criando a unidade étnica e tendo o crioulo como a língua veicular deste consenso nacional.
Nesta direção,
A língua é o fator da unidade, e mais ainda, de consciência de unidade. Pela
língua os homens reconhecem a comunidade pela qual pertencem [...] a
comunidade de língua não gera uma comunidade racional. E antes verdade
que a comunidade nacional gera a língua nacional (COMBLIN, 1965, p.59).
Destarte, a questão da unidade étnica dentro do movimento da libertação nacional
consistia em eliminar as diferenças hierárquicas entre as etnias, pois a coesão de todas as
etnias seria o sucesso de libertação, o que Carlos Lopes (1998) chama de conjugação interétnica. Importante esclarecer aqui que essa unidade étnica era inquestionável aos olhos do
povo bissau-guineense, devido às dinâmicas sócio-históricas e políticas que o país enfrentava.
Entretanto, o mesmo não aconteceu com a unidade com Cabo Verde que era permeada de
discórdias, que dificultou sobremaneira o PAIGC no período pós-independência, acirrando as
rivalidades e disputas entre os bissau-guineenses e caboverdianos no acesso ao poder político,
como analisaremos adiante.
Vale enfatizar alguns fatores que estão na base da unidade étnica e que nos ajudarão
a compreender como foi possível o alinharmento à matriz discursiva do nacionalismo cultural
a que se propõe Cabral para a implementação e fortalecimento do Estado nacional. Dentre os
fatores, destacamos a questão do inimigo comum como leitmotiv que pavimenta a unidade
entre os povos. Em vista disso, o medo comum, o ódio comum, o inimigo comum foi o
cimento da solidariedade que permeou todas as conjunturas históricas da gênese do
nacionalismo bissau-guineense.
Isso se torna evidente quando nos deparamos com a questão da unidade étnica na
Guiné-Bissau em que só foi possível construir uma comunidade de interesses aparentemente
“uniforme”, que conduziu à unidade dos distintos grupos étnicos, a partir dos laços comuns
compartilhados através do sentimento de ódio pelo inimigo comum, impulsionando a adesão
de diferentes grupos culturais para as fileiras da luta de libertação, forjando consenso para a
concepção do nacionalismo cultural. Conforme testemunha Amílcar Cabral,
[...] o problema da unidade surge na nossa terra, repito bem, não por causa
da necessidade de juntar pessoas com pensamentos políticos diferentes, mas
sim por causa da necessidade de juntar pessoas com a situação econômica
diferente, embora essa diferença não seja tão grande como noutras terrascom situação social diferente, com culturas diferentes, incluindo a religião,
quer dizer, pusemos o problema de unidade na nossa terra, tanto na Guiné
como em Cabo Verde, no sentido de tirar ao inimigo a possibilidade de
explorar as contradições que pode haver entre a nossa gente para
enfraquecer a nossa força, que temos que opor contra a força do inimigo
(CABRAL,1974,p. 74).
217
Nesse âmbito, ao usar a cultura como forma de criar a solidariedade entre os bissauguineenses, construindo uma nação com base na igualdade cultural e econômica, Amílcar
Cabral teve que lutar contra um dos adversários da nação: o tribalismo. Cabral abominava
todas as manifestações tribais e fazia uma distinção entre a cultura e o tribalismo. Ao levantar
a bandeira de repúdio contra qualquer forma de tribalismo, elevou a cultura ao seu mais alto
cargo de parceira na luta de libertação. Desta forma, Cabral defendia a “liquidação dos
aspectos negativos da cultura africana, e visava criar uma nova sociedade cultural baseada nas
tradições locais, mas aproveitando as cinquistas atuais que possam servir ao homem”.137
Dessa forma, a luta de libertação nacional assumiu a dimensão da identidade coletiva
imprimida nas características culturais, exigindo todo o processo libertador e de
reconhecimento de valores, tradições que afirmam o pertencimento identitário de um grupo.
Assim, a própria cultura138 ganha uma nova roupagem no seio da luta de libertação
nacional, sendo convocada a desempenhar um papel revolucionário na construção de novas
relações sociais, sedimentada através da unidade entre distintos grupos étnicos, que passaram
a se identificar ou se reconhecer através da partilha de um símbolo de representação comum:
o movimento de libertação para a independência nacional.
É a partir daí que as tradições culturais tiveram papel preponderante na luta e deram
novo sentido à conquista da liberdade, ao criarem novos laços de solidariedade étnica,
formando uma homogeneidade cultural a partir dos elementos remanescentes das tradições
populares, provenientes de diversas contribuições étnicas. Ou seja, a unidade na diversidade
étnica tornou-se o alicerce imprescindível para a organização e viabilização da luta armada.
Neste sentido,
[...] a colonização foi um catalisador de nacionalismo. Difundiu ideias, do
modelo nacional nos países que antes tinham poucos contatos com as nações
ocidentais multiplicou os pontos de encontro. E pela ocupação militar e
dominação política, a colonização estimulou o desejo de independência. Os
137
138
(Cabral, apud ANDRADE, 1983, p.279).
Para Amílcar Cabral resistir culturalmente não significa defender as coisas negativas das nossas culturas. Por
exemplo, o culto aos irans e as suas crenças na interpretação da realidade social. Cabral minimizava os efeitos
dos irans e mézinhos e generalizava as suas representações simbólicas no mundo de vida dos bissau-guineenses.
Para o líder do PAIGC, a crença nos mesinhos fazem parte dos aspectos negativos da cultura, e que devem ser
combatidos. Na sua concepção a cultura é uma dinâmica mundial que se reproduz conforme os contextos. Neste
sentido ele afirma: ninguém pense que o tambor é só da África, que ninguém pense que certas maneiras de vestir
são só da África, as saias de palha, de folhas de palmeira, etc., que ninguém pense que comer com a mão é só da
África, todos os povos do mundo passaram por isso (...) as cantigas dos balantas, analisadas a fundo são cantigas
do homem da planície. Quando comparamos as cantigas balantas com as de Europa, vemos que são parecidas
com as cantigas alentejanas, lentas, em coro. Porque há certos tipos de vida econômica e meios geográficos que
dão certos tipos de canções (1974,p. 190).
218
intelectuais firmaram-se para a vontade nacionalista que queriam despertar,
no ódio aos colonizadores e a dominação estrangeira. Este fator também foi
um catalisador de nacionalismo (COBLIM, 1965, p.132).
Assim sendo, um partido-Estado formado a partir das diversidades étnicas teve uma
contribuição inegável na formação da identidade nacional contra qualquer forma de alienação
cultural e com o único propósito de libertação. Esta é uma das circunstâncias que levou
Amílcar Cabral a formular a premissa de que a luta de libertação é também um ato de cultura.
Nesta direção afirma Cabral:139
[...] para pudermos fazer a nossa resistência cultural, devemos limpar da
nossa terra toda a influência nociva da cultura colonial, camaradas. E o
primeiro ato da cultura que dever fazer na nossa terra o seguinte: unidade do
nosso povo, necessidade de lutar e desenvolver em cada um de nós uma
ideia nova que é o patriotismo, o amor pela nossa terra, como uma coisa só.
Essa é a primeira parte da cultura que devemos dar a nossa terra. E devemos
mostrar o valor que tem resistirmos ao inimigo, ao estrangeiro, na nossa terra
(p. 195).
Nesse sentido, a cultura passa a desempenhar o papel de mediação das relações
sociais entre grupos estabelecidos através de normas e valores que orientam suas práticas
cotidianas. Nessa direção, testemunha Cabral:
[...] é nela (a cultura) que reside a capacidade de elaborar de fecundar
elementos que garantam a continuidade da história, e determinem ao mesmo
tempo as possibilidades de progresso ou de regressão da sociedade”. [...] por
isso e porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo
estrangeiro retoma caminhos ascendentes da sua própria cultura que se
alimenta da realidade do meio e nega tanto as influencias nocivas como
qualquer espécie de sujeição a culturas estrangeiras- a luta de libertação é
antes de tudo um ato de cultura (CABRAL, apud ANDRADE, p. 280,1983).
Destaque-se que a maioria dos movimentos de libertação nacional procuraram a via
da cultura como a saída da forte alienação a que seus povos eram submetidos, como a forma
de resgatar a originalidade das matrizes tradicionais. Contudo, Amílcar Cabral alerta para os
laços que ligam a cultura e a política, e que, na sua observação “o ato político repousa sobre o
fundamento cultural”; neste sentido, à cultura é atribuído o papel fundamental do pensamento
da ação revolucionária.
Ressalte-se que o nacionalismo bissau-guineense cumpriu na sua primeira fase a
promessa da emancipação política. A segunda fase marcada pelo período pós-independência
tratava- se de transformação das estruturas sociais, a formação de uma cultura nacional gerada
139
Idem.
219
pela liberdade, a cidadania plena, os direitos sociais e políticos, o bem estar social dos povos,
a construção de uma economia sólida e indústrias, etc., mas que não se consolidaram.
Elikia M'bokolo (2011) adverte:
Os partidos únicos asseguraram o imperativo absoluto de criar a nação, e
para conseguir, fundir as múltiplas componentes étnicas resultantes das
fronteiras artificiais da colonização num só cadinho e sob autoridade de um
único chefe, considerado precisamente como “pai da nação”. Esses discursos
sintonizavam-se mal com as realidades visíveis no terreno, tanto no domínio
do “desenvolvimento”, como no da “construção nacional” (p.662)
No caso da Guiné-Bissau, o pós-independência foi marcado por fraquezas
características do período da colonização, ausência de sinais de desenvolvimento e o PAIGC
mergulhado nas próprias contradições ideológicas. Foi sem dúvida a razão que justifica o
adiamento do desenvolvimento do país, que compromete o ideal projetado de nação
tencionado por Cabral, de promoção de bem estar social, político, econômico e cultural dos
bissau-guineenses.
No período pós-independência, os representantes do PAIGC, ao assumirem o poder,
não conseguiram criar uma interlocução entre a identidade cultural e a nação, e tão pouco
deram vida às instituições que foram sendo criadas, isto é “não se conseguiu criar um sistema
onde o desenvolvimento da identidade cultural fosse condição sine qua non para nos
identificarmos com a nossa terra dentro da universalidade da nação” (CEITA, 1998, p.207).
Diante desse cenário, cabe indagar: será que a consciência nacional, fundamentada
para a viabilização da luta de libertação nacional acentuada num forte caráter cultural unitário,
teve suas bases sólidas durante todo o processo de luta armada contra o colonialismo?
De fato, a contradição ideológica que marca o período pós-independência não é
caso exclusivo do PAIGC, fato semelhante aconteceu na maioria dos países africanos cujos
líderes nacionalistas preconizavam a unidade política sustentada através de regimes de
partidos únicos, ou seja, a unidade africana, no período da dominação colonial. Entretanto,
depois da independência, alguns líderes (pertencentes ao grupo de Monróvia formado pelas
doze antigas colônias francesas) alinharam-se ao discurso inverso de que “a unidade que
devemos neste momento, não é a integração política de estados africanos soberanos, mas a
unidade de aspirações e de ação do ponto de vista da solidariedade africana e da identidade
africana” (sic) (M'BOKOLO,2011,p.633).
Mas é oportuno ressaltar que o pan-africanismo, além dessa solidariedade africana,
trouxe também capilaridade de regimes africanos fortes em torno de formação de partidos
únicos que engendraram a formação de seus estados nacionais. Este fato não só obrigou o
220
engessamento destes regimes na atualidade, mas também criou dificuldades para o
enfrentamento de novas formulações multipartidárias com a instituição de regimes
democráticos nos diferentes Estados nação.
Nesse sentido, o pan-africanismo enquanto ideologia de libertação nacional para a
união de aspirações comuns é valido no enfrentamento do inimigo comum. No período pósindependência, porém, a ideologia pan-africanista torna-se incompatível aos processos
democráticos que demandam a existência de regimes de vários partidos.
Com efeito, na ausência do inimigo comum, os laços unificadores sempre serão
desfeitos pelos princípios da disputa política, nesse caso traduzido pelo acesso ao poder
político no aparelho do Estado.
Efetivamente o PAIGC não conseguiu definir qual era o caminho a seguir pelo novo
Estado pós-independência. Como confessariam alguns dirigentes atuais, não houve uma
reflexão aprofundada do tipo de Estado que se queria instituir (LOPES, 1987, p.94). Outro
fator não menos importante é a contradição proveniente do projeto binacional (unidade
Guiné-Bissau e Cabo Verde) que também não teve o mesmo nível de compreensão entre os
nacionalistas. Um dos membros do partido, Filinto Barros (2011), no seu testemunho,
reconhece as dificuldades desta conexão e relata as contradições e os dilemas que
enveredaram no período pós-independência. Segundo este militante do partido,
[...] optou-se pela fuga em frente, criando dois Estados independentes, cada
um com os seus órgãos de soberania sem qualquer ligação funcional com o
outro. Sonhou-se hipoteticamente com uma super Assembleia onde estariam
representados dois povos, mas na prática não se fez para a materializar (...)
Mas o combinado era que (...) implantado os dois Estados-Nações, impunhase que em cada um deles o poder fosse exercido pelos autóctones. Foi para
isso que a maior parte lutou. Revolução sim, mas passando pela criação da
nação, portanto nacionalistas acima de tudo! (p.09).
Ou seja, a proposta era de desenvolver a luta comum, não obstante a construção do
Estado nação fosse executada de forma particular, sendo que os caboverdianos exerceriam o
poder em Cabo Verde e os bissau-guineenses na Guiné- Bissau. Reforçando, Barros afirma:
Se tivéssemos optado pela Federação dos dois estados, a questão da
liderança teria menos impacto. Alguém tinha que ser Presidente, pouco
importando a sua origem! Mas optando por duas entidades separadas, por
dois estados-nações, a característica dos homens do poder ganhou
importância enorme (p.09).
221
Por sua vez, René Pelissier140 elenca algumas contradições que nortearam os
bastidores desta unidade entre os bissau-guineensess e os caboverdianos durante o processo
de descolonização, ao se referir que para muitos caboverdianos na época a questão da
independência nacional não constituía prioridade, já que existia uma relação de cordialidade
entre estes e os colonialistas portugueses. Nessa direção, René Pelissier adverte:
[...] Não estou a apontar o dedo aos cabo-verdianos: eram mais educados
porque se beneficiavam de cinco séculos de colonização. Eram a única parte
do antigo império africano - com as ilhas de São Tomé e Príncipe - que se
beneficiou dos cinco séculos de colonização e aproveitaram o facto de serem
mais desenvolvidos para virem a ser agentes do poder (PELISIER,2010).
A partir deste enunciado, lançamos mão da fatídica pergunta que permeia esse
trabalho: a quem interessava a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde? Segundo Adriano
Ferreira141, no testemunho dado a esse trabalho:
Do ponto de vista econômico Cabo Verde tinha mais interesse nesta unidade,
no ponto de vista social os dois países estavam interessados. Porque existem
componentes que precisam ser usados para ajustar e equilibrar. A GuinéBissau tem potencialidades econômicas e Cabo Verde tinha recursos
humanos bem preparados e experientes na área de administração pública que
trabalharam na Guiné- Bissau, Moçambique, Angola, São Tome na época
colonial.
É oportuno salientar que as manifestações contrárias ao projeto de unidade GuinéBissau e Cabo Verde permearam todo o processo de luta de libertação nacional, e foram
documentadas numa correspondência secreta da PIDE com nomes e autorias fictícios
disponíveis nos arquivos da Fundação Mário Soares. Os excertos extraídos desta
correspondência levantam uma das questões importantes que permearam o conflituoso projeto
de unidade dos dois países. Segundo o senhor Alpha142
O trabalho importante dos bissau-guineenses é acabar com a guerra que está
a ser feita pelos cabo-verdianos mas que estão a gozar sentados nos bureaux
e mandam matar os filhos da Guiné-Bissau [...] Cabo-verdiano está aliado ao
Sekou Turé para tomar conta da Guiné-Bissau. Qualquer pessoa inteligente e
que perceba um pouco de política chega rapidamente a essa conclusão.
Ainda nessa mesma reflexão, segue o senhor Alpha:
O senhor Mara tem que fazer todo o trabalho para mobilizar todos os filhos
bons da Guiné-Bissau para não fazer a guerra que é comandada e para
interesse dos cabo-verdianos, a guerra tem que acabar para que o governo
com dinheiro que gasta na guerra possa construir com a colaboração de
todos os filhos da Guiné-Bissau uma Guiné-Bissau ainda melhor [...] se um
140
Jornal A SEMANA - Cabo Verde (18 Abril 2010).
Entrevista concedido em Bissau abril de 2011.
142
Fundação Mário Soares, pasta 04999.034. Carta de autoria de Alpha, 1973.
141
222
dia os portugueses largassem a Guiné-Bissau os filhos da terra passavam a
ser colonizados pelos cabo-verdianos.
Estes enunciados ratificam a relação tempestuosa entre os bissau-guineenses e
caboverdianos e que permeou toda a luta de libertação nacional, reforçando a fragilidade da
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde. Tudo isso nos leva a fortes evidências de que o projeto
de Amílcar Cabral era comungado apenas pela minoria. Isto é, a unidade binacional foi
ajustada sem, contudo, ter o consentimento de uma parte significativa da elite caboverdiana da
ilha e de alguns representantes dos movimentos nacionalistas na Guiné-Bissau.
Segundo Peter Karibe Mendy (1993.p.28), na Guiné-Bissau, as profundas feridas
causadas pelo envolvimento negativo dos caboverdianos com a administração colonial
portuguesa durante o processo de colonização não estavam ainda saradas na altura em que se
concertavam esforços para a unificação dos dois países, e , por sua vez, em Cabo Verde, onde
“a oposição hostil, principalmente de membros de classes privilegiadas pensava, que não
tinham nem afinidade cultural nem parentesco racial com os bissau-guineenses, colocou em
xeque o projeto unitário que não teve apoio popular tanto na Guiné-Bissau quanto em Cabo
Verde”.
Vale repetir que, no caso bissau-guineense, a unidade só foi possível com a mediação
de Rafael Barbosa, que, em várias circunstâncias, foi acusado pelos bissau-guineenses de ser
responsável por todos os filhos da Guiné-Bissau que foram à luta e pelas vidas ceifadas
durante a luta armada de libertação, não só como também de ter vendido a Guiné-Bissau aos
caboverdianos pelos seus companheiros de movimentos nacionalistas, em particular o MLG,
da qual fazia parte143.
A prova eloquente do dito acima é a participação pioneira de Barbosa nas
mobilizações clandestinas em Bissau e no esforço de proporcionar a fusão do MLG com o
PAI depois do contato de Cabral no contexto de massacre de Pindjiguiti, conforme havia
citado anteriormente neste trabalho. Vangloriando-se desse pioneirismo, Rafael afirmava: “o
primeiro homem da Guiné que entrou para as matas fui eu” (PEREIRA,2003,p.580).
Desta forma, Barbosa foi o único elemento do MLG que se juntou a Amílcar Cabral,
na “histórica reunião”, em 1959, depois do evento de Pindjiguiti para criar diretrizes precisas
no sentido de trabalhar pela fusão dos dois grandes movimentos (MLG e PAI) 144. Em outras
143
Na altura apesar das explicações de Rafael Barbosa de que os dois movimentos (PAI e MLG) eram um só, os
notáveis do MLG repudiaram fortemente esta ideia, alegando que nunca antes tinham ouvido falar do PAI [...]
dessa conjuntura resultou a passagem das estruturas do PAI para a clandestinidade e o desmantelamento do
MLG em Bissau (PEREIRA,2003,p.118).
144
PEREIRA, 2003.
223
palavras foi Rafael Barbosa que conferiu credencial ao Cabral para dar início ao processo de
libertação nacional, traindo assim os ideais do MLG. Como atesta Julião Soares Sousa: “antes
de abandonar Bissau, Cabral ainda recebeu das mãos de Rafael Barbosa credenciais que o
habilitavam a representar a organização do interior (Guiné portuguesa) em Dacar e em
Conacri” (SOUSA, 2011, p.209).
Em linhas gerais, o que ficou evidente na atitude de Rafael Barbosa é a forma
individual que estabeleceu a aliança com Cabral sem contudo envolver inicialmente seus
colegas dirigentes do MLG, o que, segundo o historiador Tcherno Ndjai, se deu “praticamente
escondido dos demais elementos bissau-guineenses do MLG” (NDJAI,2012,p.136), deixando
a impressão mais de uma traição “do que a sensação de uma união genuína e legítima”
(NDJAI,2012,p.169).
Quanto a Cabo Verde, a unidade foi dirigida por uma classe que representava
caboverdianos em Bissau, isto é, os funcionários administrativos que ali trabalhavam e
caboverdianos de Bissau. Entretanto, não advogavam os anseios de todos os caboverdianos
em particular da elite das ilhas de Cabo Verde.
Salienta-se que havia movimentos nacionalistas caboverdianos que não endossavam
a ideia de união com os bissau-guineenses, como, por exemplo, de União Democrática
Caboverdiana (UDC) liderada por João Baptista Monteiro, e a União do Povo das Ilhas de
Cabo Verde (UPICV) de Leitão da Graça. Esse fato suscita dúvida sobre a legitimidade de
Cabral como único interlocutor válido do movimento nacionalista em Cabo Verde.
Por outro lado, Abílio Duarte era considerado por Pereira (2003,p.95) como
protagonista número um da conscientização nacionalista em Cabo Verde, por ter dirigido as
mobilizações dos caboverdianos para adesão ao PAI. Leitão da Graça145 era contrário à
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, por isso a UPICV constituía-se num movimento
divergente do PAIGC, ao enviar uma
[...] “petição” à O.N.U alertando esta organização que “As Ilhas de Cabo
Verde são realmente uma colônia distinta da Guiné-Bissau, a ex-colônia
portuguesa”, que “os cabo-verdianos são um povo africano distinto do
bissau-guineense” que “a nacionalidade cabo-verdiana deve a sua formação
a elementos de quase todas as etnias transportadas dos rios da Guiné para o
arquipélago de Cabo Verde”.
145
Leitão da Graça foi provavelmente o primeiro político a erguer a voz contra a unidade entre a Guiné e Cabo
verde. O primeiro protesto contra o princípio da unidade Guiné e Cabo Verde, a nível político-diplomático
verificou-se em 1962, quando expediu de Dakar um telegrama-carta ao Secretário-Geral da O.N.U contra a união
forçada com a Guiné. Na carta afirmou que Cabral “muitas vezes mentia, para justificar as ambições do seu
partido” pois chegou a afirmar em Dar Es Salam (Tanzânia) por estas palavras: “nós, na Guiné e nas ilhas de
Cabo Verde, somos as mesmas gentes, temos a mesma língua e um só partido (FERNANDES, 2007,p.39).
224
Outro fator não menos importante é que Amílcar Cabral era visto como “impostor” por alguns
caboverdianos ao propor a revolução nacionalista, engendrando a unidade entre os dois países,
visto que o discurso de unidade africana não era comungado pelos caboverdianos, que, por
sua vez, não se sentem africanos, e defendiam perante Portugal um status idêntico ao das ilhas
de Açores e Madeira e adjacências.
Neste âmbito, tanto a unidade étnica na Guiné-Bissau quanto a unidade binacional
com Cabo Verde foram necessárias para um determinado contexto histórico e político, neste
caso, para o sucesso da luta de libertação e a proclamação da independência. Com a
proclamação da independência em 1973, Luís Cabral (irmão de Amílcar Cabral) viria assumir
a presidência do Estado de Guiné-Bissau. A tomada do poder pelos nacionalistas reacendeu o
estranhamento entre os membros do partido único (PAIGC), reforçando discórdias e
promovendo “matanças”, intrigas que dividiram a sociedade política entre os caboverdianos e
os bissau-guineenses.
Segundo as entrevistas dos combatentes da liberdade da pátria,146 o governo de Luís
Cabral instituiu o regime de privilégio, criou hierarquias entre os caboverdianos e os bissauguineenses, o que seria contrário à ideologia preconizado pelo programa do partido, que
postulava a unidade dos povos sem distinção: “[...] o princípio de unidade binacional implica,
pressupõe, segundo o Programa do Partido e o pensamento de Cabral, a unidade nacional de
um e outro povo” (PEREIRA, 2003, p.109).
Outro aspecto não menos importante que permeou o período pós-independência
frisado pelo cientista político Peter Karibe Mendy (1993,p.29) é a insensibilidade da liderança
do PAIGC,e os modos arrogantes dos funcionários do Estado, um número significativo dos
quais eram caboverdianos ou seus descendentes, relativo ao mau estar dos bissau-guineenses
no que diz respeito “às feridas por sarar” largamente ignoradas por uma liderança do partido
caboverdiana, contribuindo significativamente por não ter havido apoio popular na unificação
entre as chamadas “repúblicas irmãs” e que eventualmente resultaria na ação militar de
novembro de 1980.
Além disso, some-se outro aspecto que está na base da fragilidade do novo Estado
pós-independência na Guiné-Bissau, relatado pelos membros do PAIGC147 bissau-guineense,
a aplicação da política contrária ao que preconizava a unidade binacional. Como, por
exemplo, as decisões tomadas na Guiné-Bissau eram totalmente contrárias ao que se decidia
146
147
Elisée Turpin, Carmem Pereira, Manuel Satunino Costa, Satú Camará Pinto. Bissau, março e abril de 2011.
Zé Lopes, Adriano Ferreira. Bissau, abril de 2011.
225
em Cabo Verde. Como por exemplo, enquanto que em Cabo Verde a Constituição não
permitia a um bissau-guineense ser Presidente da República, na Guiné-Bissau,o texto da
Constituição da República foi elaborado para que permitisse que um caboverdiano fosse
presidente, além da aplicação da pena da morte em Bissau, que inexistia em Cabo Verde, e
outras decisões tomadas a nível do governo bissau-guineense que não se aplicavam em Cabo
Verde. Como testemunha Adriano Ferreira (2011):
Na Guiné-Bissau uma base de administração do estado foi expulsa de suas
funções por terem deslocado para Portugal a procura de seus direitos de
reforma, no lugar deles foram colocados os comissários e outros
comandantes sem preparos para exercer a função. Isso acabou refletindo no
fracasso do estado bissau-guineense. Enquanto que Cabo Verde aproveitou
seus recursos humanos muito bem rodados no campo da administração
pública durante época colonial, usou esta base para estruturar o estado Caboverdiano com algumas adaptações148.
Estes e outros motivos constituem um dos principais fatores, que estiveram na
ruptura da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, que veio a culminar com o movimento
reajustador de 1980.
5.2 O “Movimento Reajustador 14 de Novembro” e a ruptura do legado de Amílcar
Cabral
O denominado “Movimento Reajustador” de 1980 - constituído por um grupo de
elementos bissau-guineenses do PAIGC que, liderados pelo general Nino Vieira, depôs Luis
Cabral, primeiro presidente da Guiné-Bissau - foi fatídico para a ruptura de unidade GuinéBissau e Cabo Verde, pondo em causa o legado de Amílcar Cabral de unificação dos dois
países.
Segundo os pesquisadores de Cidac (Luís Moita e Carolina Quina), o uso da
expressão movimento reajustador e não golpe de Estado foi devido ao fato de que “não se
tratou obviamente de um mero golpe de palácio”, mas sim um “reajustamento, por priorizar o
combate às injustiças, a resolução da crise econômica e a satisfação das mais prementes
necessidades do povo” (MOITA et al,1980.p.07).149
148
Entrevista de Adriano Ferreira. Bissau abril de 2011.
Luís Moita e Carolina Quina. IN: Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral – CIDAC Dez de
1980. Disponível em: Fundação Mário Soares, Pasta:043520005.
149
226
Assim, o “Movimento Reajustador 14 de Novembro” é caracterizado como uma
revolução nacionalista e populista “sem ter a partida a grande definição política, ideológica e
programática, ou seja, de traduzir-se nas afirmações genéricas de servir ao povo, de reparar as
injustiças e outras semelhantes” (MOITA et al, 1980, p.08).
É através dos acontecimentos de 14 de novembro de 1980, que a Guiné-Bissau
separa-se definitivamente de Cabo Verde depois de longos anos de reivindicação da
independência conjunta.
As possibilidades políticas prenunciadas que justificavam essa ruptura são passíveis
de muitas leituras e interpretações tanto pela ala bissau-guineense do PAIGC, quanto pela ala
caboverdiana do PAIGC. Sobre as razões que levaram à ação militar não faltam justificações.
Um dos membros entrevistados do PAIGC de Bissau atesta:
14 de Novembro aconteceu por causa de asneiras cometidas depois da luta.
Depois da morte de Cabral o partido (PAIGC) caiu numa nova contradição:
O Luís Cabral não poderia ser presidente da República pós-independência,
visto que foi o mesmo motivo que está em torno da morte de Amílcar. A
Unidade Guiné e Cabo verde era apenas para luta armada, depois teria que
ter a administração separado. No entanto, os cabo-verdianos ocupavam
lugares de destaque em Bissau, enquanto que em Cabo Verde não tinha
sequer nenhum bissau-guineense na administração do estado. Esses conflitos
de interesses geraram 14 de Novembro de 1980. Após independência o
presidente da Guiné-Bissau deveria ser Tchico Té, Vitor Saúde Maria ou
João Bernardo Vieira. Se isso tivesse acontecido não haveria possibilidade
de acontecer o Golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, e as relações
entre a Guiné- Bissau e Cabo Verde seria de solidariedade e reconhecimento
mútuo pelo objetivo comum da luta pela independência (A.A.)
Deve-se admitir que a conjuntura que se desenhava pós-independência visava ao
enfraquecimento dos laços entre os dois povos, ou seja, as crises e as tensões herdadas da luta
de libertação nacional e que possivelmente se agravaram com o assassinato de Amílcar Cabral
permearam todo processo da proclamação da independência e desenvolveram-se no mandato
de Luís Cabral durante a primeira tentativa de implementação do Estado nacional pósindependência na Guiné-Bissau.
Os excertos de Filinto Barros, membro do PAIGC, trouxeram algumas evidências
que reforçam os motivos pelos quais o período pós-independência foi marcado pelo fracasso
do projeto unitário. Segundo ele,
Luís Cabral é um cabo-verdiano de origem e não devia ocupar o cargo de
Presidente da República. O nacionalismo bissau-guineense saiu muito
confundido com este figurino! Era patente para todos que ninguém lutou
para substituir o português pelo cabo-verdiano. [...] num outro figurino, um
figurino federalista, Luís Cabral teria toda a legitimidade de exercer esse
cargo. Mas havendo dois Estados separados, o lugar dele na Guiné -Bissau
não podia ser a do presidente! (BARROS; 2011, p.05).
227
Some-se a isso outros aspectos não menos importantes adotados no contexto pósindependência, herdados da administração colonial: a exacerbação da repressão, do
desrespeito pelos direitos humanos; da falta de segurança pública; da ausência de liberdade de
imprensa e de expressão; do baixo crescimento econômico e insegurança alimentar; e da
perseguição e execução de várias personalidades civis e políticas, etc.
No entanto, a unidade entre os bissau-guineenses e caboverdianos para a
emancipação política desfaz-se quando os primeiros alegam a situação de submissão aos
caboverdianos, traduzida como uma nova forma de “colonização”. Nessa ordem de ideias, as
tensões entre as partes componentes do Partido Africano para a Independência de Guiné e
Cabo Verde (PAIGC) foram avigoradas, a unidade foi dissipada seis anos depois da
independência, e a ruptura que era inevitável devido ao assassinato de Cabral foi precipitada
pelo movimento 14 de Novembro de modo que:
Depois da morte de Francisco Mendes – conhecido por Tchico Té (que era
obstáculo para Luís Cabral) começou a movimentação no partido e no
governo. Manuel Saturnino, que era Ministro da administração interna,
avisou Aristides Meneses que havia um plano para assassiná-lo, depois
prosseguiu a sua viagem a Cuba. Isso gerou um ambiente hostil. Daí as
pessoas começaram a questionar uma série de situações em torno da questão
nacional. Uma pergunta que se fazia era a seguinte: por que existe uma
empresa de pesca NAGUICAP com o nome da Guiné-Bissau e Cabo Verde,
porém o barco ficava em Cabo Verde? Todas as madeiras da Guiné-Bissau
eram levadas para Cabo Verde. [...] Mario Cabral, Filinto de Barros foram
para Cabo Verde para questionar por que existia a pena de morte na GuinéBissau e não existe em Cabo Verde uma vez que ambos os países estavam
sendo governado por um mesmo partido (A.A.)
Evidentemente, muitos dos problemas mal equacionados desde a luta de libertação
no que tange à problemática da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde se agravaram com o
assassínio de Amílcar Cabral em janeiro 1973, que veio a culminar no mandato de Luís
Cabral, que gerou os acontecimentos de 14 de novembro de 1980, que nas primeiras horas
tiveram várias interpretações, como: primeiro, o clima tempestuoso que permeava a relação
do então Presidente Luís Cabral e Nino Vieira (então Comissário de Defesa, cargo
equivalente ao de Ministro da Defesa) reforça a ideia de uma alegada eliminação física de
Nino comandada pelos agentes de Luís Cabral; segundo, os relatos descritos por
pesquisadores de CIDAC (1980) e reforçados por José Vicente Lopes (1996):
[...] Nino Vieira soube que estava em marcha um plano, comandado por
Umaro Djaló, Comissário de Estado das Forças Armadas, apadrinhado por
Luís Cabral, visando a sua eliminação, e que ao saber disso, mais não fez do
que jogar na antecipação. Ainda dentro de tal plano, cuja execução estaria
programada para 16 de Novembro, dia das FARP, os dirigentes bissauguineenses se encontravam no exterior – José Araújo, em Lisboa e o grupo
228
de militares, em Cabo Verde, chefiados pelo comandante Lúcio SoaresDeveriam fazer declarações de apoio a Luís Cabral, outra peça deste alegado
plano seria o comandante André Gomes, que se encontrava em
Nhacra(região do interior da Guiné Bissau), onde estavam abertas valas que
iriam receber os corpos de Nino Vieira e, eventualmente, de outros
dirigentes, a fim de aí serem enterrados em segredo(Jornal Lisboa. “GuinéBissau: revelado o plano para a eliminação de Nino”. 28-11-1980, apud,
LOPES,pp.638-639, 1996).
Baseado nessa conjuntura de suspeitas e acusações, Nino Vieira desencadeia o
“contragolpe” sob comando de Paulo Correia, Manuel Saturnino Costa e Ansumane Mané
(Bric-Brac). Nesse âmbito, os tanques e os homens de Nino controlam os pontos estratégicos
de Bissau. A notícia não tarda e a primeira Rádio Difusão Nacional de Guiné-Bissau emite-a
em tons de marcha de luta, sinalizando o acontecimento batizado de “movimento
reajustador”.
Várias foram as razões descritas pelos estudiosos que nortearam o derrube do
primeiro governo pós-independência, que gerou a segunda República. Mas, o contexto
etnográfico amplamente descrito por pesquisadores do Centro de Informação e Documentação
Amílcar Cabral em Lisboa (CIDAC), um mês depois do acontecimento, é que sinaliza as
principais razões que levaram ao fim do projeto de Cabral, a saber: a crise que se institui no
PAIGC de Guiné-Bissau, gerando a perda de capacidade de mobilização popular, ou seja, o
descontentamento por parte da população local, que se sentiu traída pelas medidas de fortes
repressões políticas, torturas, prisões e detenções arbitrárias, flagrantes abusos dos Direitos
Humanos, etc. Como atesta Raúl Fernandes,
A violência dirigia-se contra os antigos comandos africanos, milícias
africanas do exército colonial, e contra os chefes tradicionais. Um grande
número de chefes tradicionais acusados de crimes contra a nação foram
julgados e condenados à morte por tribunais populares instituídos. Na região
norte do país o chefe manjaco Baticã foi julgado e fuzilado em pleno estádio
de futebol de Canchungo, perante uma assistência popular forçada pelo
exército a presenciar a execução [...] a região leste na cidade de Bafatá foi
uma das mais afetadas pelas execuções dos chefes tradicionais. Na cidade de
Bambadinca foram executados os chefes mais importantes desta região,
entre os quais o chefe fula Sembel Koio, e os chefes Mamadu Bonko Sanha
e Sankun Kose (1993,pp.44/45).
Evidencia-se, com isso, o fraco abastecimento de produtos de primeira necessidade,
em particular o arroz, um dos mais importantes produtos da cesta básica bissau-guineense,
provocando fome que abalou todo o país. Some-se ao cenário de problemas os baixos salários
que afetavam os antigos combatentes da liberdade da pátria, o desagrado por algumas
colocações ou promoções de patentes no tocante à hierarquização das Forças Armadas
229
Revolucionárias do Povo (FARP), a corrupção e a ostentação de privilégios e os excessivos
gastos do dinheiro público, a deslealdade com os princípios de luta (MOITA et al, 1980;
LOPES, 1987 e LOPES,1996).
Esta violência de Estado fez-se acompanhar pelo monopólio sobre a
economia do país. As empresas comerciais nacionalizadas, as pequenas
indústrias criadas pelo Estado serviam de base econômica desta burocracia
que, por intermédio do aparelho militar e policial, exercia um controle total
sobre a vida social [...] esta centralização do Estado e esta ideologia nacional
eram na realidade produzidas pelas camadas sociais crioulas urbanas que se
afirmavam em oposição aos etnismos perturbadores e geradores de
tribalismo e em consequência, na sua lógica, contra os fatores de
degenerescência da nação e do Estado (FERNANDES, 1993,p.45).
Outros fatores, também foram listados como base da explosão do movimento
reajustador, como o caso da aprovação da Constituição do país de 10 de novembro de 1980,
pela Assembleia Nacional Popular, constituindo ponto crítico que aflorou outros debates
como, por exemplo, a ausência de referência da obrigatoriedade do Presidente da República
ser cidadão bissau-guineense, e a admissão da pena de morte na Guiné-Bissau e não em Cabo
Verde.
Por fim, inclui-se também nesta lista a concentração de poderes na figura do
Presidente da República e o esvaziamento das funções do Primeiro Ministro, cuja função é
exercida pelo Presidente da República de despachar direta e exclusivamente os assuntos de
Negócios Estrangeiros, FARP e Segurança, marginalizando o comandante Nino Vieira desde
a sua nomeação, ao contrário do que acontecia quando Francisco Mendes (Tchico Té) era
Primeiro Ministro (MOITA, et al,1980). De acordo com A.A.:
14 de Novembro aconteceu por dois motivos: primeiro porque criamos um
estado sem alicerce ou fundação, que significa construir uma boa
administração pública; após independência a maioria das pessoas que não
foram a luta, não ficaram contentes com os fatos que aconteceram depois da
morte de Cabral, então não tiveram uma abertura para o Partido. Além dos
outros oportunistas que ficaram em Bissau, resolveram criar partidos para
negociar com os portugueses. Então nossa gente que estava em Lisboa
começou a criar resistência dizendo que não viriam para Bissau enquanto os
cabo-verdianos estão em Bissau. Havia reformados que decidiram ir para
Portugal a fim de pedir suas reformas (como cabo-verdianos fizeram,
criando uma advocacia para reivindicar esta questão de reforma junto aos
portugueses), visto que estavam sendo substituídos em termos de chefia
pelas enfermeiras e pessoas que vieram de luta, quando estas pessoas foram
para Portugal foram imediatamente exoneradas de seus cargos pelo governo
de Bissau sob comando de Luís Cabral. Estas pessoas exoneradas
provocaram uma descapitalização de recursos humanos (que eram
professores, enfermeiros, etc.) na administração pública. Isso fez crescer um
ambiente anti-cabo-verdiano na Guiné-Bissau.
230
Todos estes fatores, políticos, econômicos, sociais, militares e institucionais,
contribuíram de forma significante para por ponto final ao regime de Luís Cabral que,
consequentemente, trouxe a ruptura da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, que era o projeto
central de Amílcar Cabral e do PAIGC.
É verdade que estes fatores conjunturais fizeram reacender os velhos ressentimentos
da época colonial entre os bissau-guineenses e os caboverdianos, no tocante à larga
colaboração dos cabo-verdianos com a administração colonial portuguesa, sendo estes
acusados diretamente por bissau-guineenses de serem segundo colonizadores. Os motivos que
estão na base deste ressentimento, aparecem em alguns textos a exemplo de:
É precisamente seu papel como administradores e chefes de posto, como
instrumentos da brutal dominação portuguesa, que deixou um ressentimento
profundo em relação aos cabo-verdianos. Para as verdadeiras vítimas da
dominação portuguesa, a esmagadora maioria da população das áreas rurais,
desdenhosamente referida como gentios, o pior aspecto da presença colonial
portuguesa está associado aos cabo-verdianos, como funcionários coloniais
que lhes cobravam os impostos, os forçavam a trabalhar gratuitamente nos
“projetos públicos” e castigavam-nos sem demora pela mas pequena
infracção do código indigenato (MENDY,1993,p.27).
Outrossim, outros fatores recentes também contribuíram para aflorar os
ressentimentos no período pós-independência, como a questão da desigualdade de condições
entre os caboverdianos e os bissau-guineenses que pertenceram ao quadro colonial
(funcionalismo ultramarino) no tocante às políticas de reformas e aposentadorias aplicadas
pelos dois estados, além de existir no aparelho de Estado de Guiné-Bissau “cerca de 200
funcionários caboverdianos em posto de responsabilidade”, o que não se verificava em Cabo
Verde (MOITA et al,1980,p.06).
De fato, tratava-se de dois países que lutaram pelos mesmos ideais e princípios de
luta norteados pela inspiração comum, a independência, e a política dos governos deveria
responder às mesmas preocupações. Na Guiné-Bissau se demitiam os quadros administrativos
coloniais e se aplicava a pena de morte aos antigos comandos africanos, além de se perseguir
uma parte da população que era contrária à ideologia do regime cabralista, gerando clima de
medo na sociedade. Em Cabo Verde, ao contrário de tudo que se passava na Guiné-Bissau, o
governo do Presidente Aristides Pereira aplicava a política de concórdia nacional com vistas à
inclusão dos cidadãos caboverdianos; com tradição na administração colonial, aproveitou os
ex-funcionários administrativos coloniais para auxiliar no desenvolvimento e construção da
nação caboverdiana, e
[...] não se escusou de relegar a cooperação com a Guiné -Bissau para o
segundo plano, para obter alianças internas com a outra faixa da pequena
231
burguesia, muito poderosa devido ao fenômeno emigratório e sujeita a
pressões das comunidades de cabo-verdianos no exterior, instalados
sobretudo nos EUA, Portugal, Holanda e Senegal (LOPES,1987,p.185).
No campo político e administrativo, não podemos perder de vista inúmeros
projetos
150
de grande valia para Guiné-Bissau implantados na área da indústria e economia,
mas que careciam de uma estrutura sólida a nível de sustentabilidade e que hipotecaram de
vez o desenvolvimento socioeconômico da Guiné-Bissau.
É oportuno salientar que a intensa vontade por parte do então presidente Luís Cabral
em promover o desenvolvimento no país recém-independente,151 através da implantação de
indústrias, levou, no caso da Guiné-Bissau, à criação de unidades fabris sem uma obediência a
um plano de desenvolvimento compatível com a natureza orgânica do país e sem obediência
aos pareceres dos técnicos. Como informa Barros (2011):
É neste mar de ingenuidade que os dirigentes da Guiné-Bissau se
lançaram numa tarefa inglória de industrializar por industrializar, na
vã esperança de uma unidade industrial caída de paraquedas, geraria
por si só todas as condições necessárias ao seu sucesso (p.14).
Em linhas gerais, estes e outros motivos apontados pela ala do partido bissauguineense é que estariam na base da justificativa do novembro reajustador revelando as
dificuldades do regime de Luís Cabral perante o Estado novo. Segundo José Vicente Lopes
(1996):
[...] apenas com 14 de Novembro se fica a saber, do verdadeiro
relacionamento entre as duas alas (bissau-guineense e Cabo-verdiana), da
mesma forma que ficam expostas as mazelas do regime de Luís Cabral.
Aliás como forma de o desacreditarem internacionalmente, os novos
senhores revelam à imprensa estrangeira a existência de valas - comuns onde
estavam enterrados cerca de 500 corpos de antigos comandos africanos e
adversários do regime, entre eles um grupo de 80 refugiados no Senegal
entregues a Bissau por Leopold Senghor, fuzilados sem julgamentos. O
chefe desta cerimônia Joseph Turpin, afirma em Mansoa, diante de uma vala
com mais de 100 corpos, que aquele era o preço que os bissau-guineenses
tiveram de pagar pela unidade com Cabo Verde(p.641).
150
Complexo Agroindustrial de Cumeré (CAIC), Unidade de Montagem de Veículos (NHAI), Leite Blufo,
Volvo – Garagem, Unidade de Corte e Processamento da Madeira (SOCOTRAM), Unidade de Produção de
Sumos e Compotas de Fruta – Titina Silá, Espuma, Unidade de Metalomecânica (GUIMETAL), Cerâmica de
Bafatá, Unidade de Folhados e Contraplacados de Madeira (FOLBI).
151
Trata-se de um país que praticamente não herdou estruturas industriais e econômicas da administração
colonial, e que tinha uma economia deficitária baseada exclusivamente na exportação de amendoim e de coco.
Ou seja, “da estrutura colonial herdamos em 1974 uma unidade industrial moderna (CICER-Unidade de fabrico
de cerveja e refrigerantes). As outras pequenas fábricas de transformação de óleo de amendoim ou de corte de
madeira encontravam-se já bastante utilizadas, mesmo com um bom serviço de manutenção, tinham pouco
tempo de vida útil” (BARROS, 2011, p.15).
232
Estas denúncias mobilizaram a imprensa internacional que prontamente traduziu o
movimento como “a segunda libertação dos bissau-guineenses, desta vez do “colonialismo
cabo-verdiano”, testemunhado por Joseph Turpin como sendo pior do que o colonialismo
português, nem a PIDE foi capaz de semelhantes atos (Expresso Lisboa, 29-11-1980, apud
LOPES, 1996, p.641).
Todavia, a reação imediata e satisfatória da população de BissauM em particular dos
chefes tradicionais em relação ao movimento de 14 de novembro, eram evidentes, devido a
todos os problemas citados anteriormente, em particular assassinatos dos familiares, a fome, e
arbitrariedades de toda a natureza contra os opositores da unidade Guiné-Bissau e Cabo
Verde. Esse clima de satisfação dos bissau-guineenses está documentado no trabalho de Jose
Vicente Lopes (1996):
Em Bissau, a adesão popular ao golpe de Estado foi imediata. A alegada
supremacia dos cabo-verdianos na condução dos destinos da Guiné-Bissau, a
penúria de produtos básicos, nomeadamente o arroz, a falta de combustíveis,
enfim, a corrupção, o compadrio, a insatisfação dos militares, que tinham
acabado de passar pela distribuição de patentes e reforma de um nível
significativo de antigos combatentes, a degradação do nível de vida da
população e, principalmente, a unidade com Cabo verde, que as novas
autoridades apelidam de unidade de cavalo e cavaleiro, eram algumas das
causas mais do que suficientes para o sucesso do golpe junto à população
(p.639).
Salienta-se que as primeiras reações à queda do regime de Luís Cabral, tanto na
Guiné-Bissau como em Cabo Verde, foram publicadas nos jornais Nô Pintcha, de Bissau,
Expresso de Lisboa e Documentos do PAIGC, o que acabou despertando mais oponentes e
detratores no tocante ao golpe, tanto em Bissau quanto em Cabo Verde.
Na sua primeira carta enviada ao seu homólogo de Cabo Verde, Aristides Pereira, e
também combatente da primeira hora na luta de libertação nacional, o comandante do
Conselho da Revolução (CR), Nino Vieira, justifica os motivos pelos quais recorreram ao
golpe de Estado e adverte:
Perante a grave situação que se criou nos últimos tempos cujo desfecho era
imprevisível capaz de provocar consequências irreparáveis pondo em causa a
nossa revolução os objetivos e a linha do pensamento do nosso Saudoso
Amílcar Cabral, fomos obrigados respondendo aos anseios do povo, no dia
14 do corrente mês de Novembro a tomar as medidas que a situação
impunha.
E continua, reafirmando que
A integridade física do ex-presidente do Conselho de Estado Luís Cabral e
de sua família encontra-se garantida pelo Conselho da Revolução. A situação
233
encontra-se normal em toda a extensão do território nacional (Do PAIGC ao
PAICV,1981).
Nessa ocasião, Nino Vieira, presidente do Conselho da Revolução (CR), externaliza
os problemas que afligiam a administração de Luís Cabral na Guiné-Bissau depois de oito
anos de independência, e que afetaram de modo decisivo o desenvolvimento dos princípios de
luta traçados por Amílcar Cabral. Não obstante, o legado de Amílcar Cabral é reivindicado
tanto por parte da ala bissau-guineense quanto pela ala caboverdiana do PAIGC.
Isso fica evidente quando Nino Vieira assegura, na sua primeira missiva enviada ao
seu homólogo, que “permanecemos fiéis aos princípios, linha e objetivos traçados pelo
saudoso camarada Amílcar Cabral e expressamos a nossa firme determinação de continuar a
desenvolver os laços históricos que unem os nossos dois povos” (Do PAIGC ao PAICV, 16 de
Novembro de 1981). No entanto, Nino Vieira alertava que o Movimento Reajustador
sinalizava para uma unidade reconfigurada, isto é, uma unidade na igualdade entre as ações e
projetos políticos dos dois países.
A intensidade das trocas de mensagens152 entre os membros do PAIGC ficava cada
vez mais calorosa. É na resposta enviada por Aristides Pereira que o conteúdo da missiva
ganha um teor forte de acusação. Os questionamentos de Aristides Pereira feitos ao Conselho
de Revolução gravitavam sobre algumas questões a saber: “Em que é que o PAIGC tem
entravado a afirmação da identidade nacional do povo da Guiné-Bissau? Em que é que o
PAIGC tem impedido que o povo da Guiné-Bissau seja senhor dos seus destinos?”.153
Estas indagações provocaram reviravoltas nos acontecimentos de 14 de novembro e
reabriram o clima tenso que permeava os bastidores deste 14 de novembro; sendo assim
Aristides Pereira e Nino Vieira se acusam mutuamente e Nino imputa Luís Cabral a má
administração do país e de todos os desmandos alusivos ao uso excessivo do poder e crítica a
forma como foi conduzida a discussão da nova Constituição do país. Para Nino Vieira, “a
situação que se criou ultimamente no país atingiu proporções insustentáveis que nos levaram
a agir daquela forma”, e seguiu acusando Aristides Pereira de conivência com o regime do
então presidente da nação bissau-guineense:
É do pleno conhecimento do Camarada Secretário-Geral do Partido as
atitudes do camarada Luís Cabral na solução dos problemas do Estado e da
Nação. A atitude passiva do Camarada Secretário-Geral do Partido perante
152
Do PAIGC ao PAICV, abril de 1981.Gráfica Europam Ltda., Mira-sintra - Mem Martins. Portugal. (em anexo
o conteúdo na integra da missiva).
153
Do PAIGC ao PAICV.
234
comportamento e posições antidemocráticos do camarada Luís Cabral
contribuiu largamente para deterioração da situação no país. As discussões
acerca do Anteprojeto da nossa Constituição política revelaram todas as
anomalias que essa mesma Constituição comportava. Os militantes e
cidadãos, alguns dirigentes e responsáveis manifestaram publicamente o seu
descontentamento, desacordo quanto a certos artigos da Constituição.
Durante a reunião extraordinária da segunda Legislatura da ANP para
aprovação da futura Constituição de maneira mais inaceitável e
antidemocrática o camarada Luís Cabral confiante do poder que detinha,
influenciou certos quadros que impediram os deputados de tomar parte
activa nas discussões da Constituição stop Todos os factos acima
mencionados são bem conhecidos do Camarada Secretário- Geral e das
instâncias superiores do Partido. As últimas reuniões da Comissão
Permanente do CEL e do próprio CEL não abordaram com seriedade a
situação real que prevalecia na Guiné-Bissau.154
Ainda neste sentido, Nino Vieira responsabiliza Aristides Pereira de, enquanto
dirigente máximo do partido, não ter tido coragem política para conter o mal que ia em
contradição aos princípios do partido, e nem tão pouco se mostrou responsável pela situação
de deterioração em que a Guiné-Bissau se encontrava.155
Nessas circunstâncias tempestuosas que permeavam os bastidores do golpe de
Estado, os membros do partido da ala bissau-guineense consideram a unidade Guiné-Bissau e
Cabo Verde como
unidade de
caboverdianos exerciam
“cavalos e cavaleiros”, ou seja, onde somente os
poder na Guiné-Bissau. Importante afirmar que todo o
desentendimento gerado pelo 14 de Novembro foi apenas uma gota de água em meio ao mal
estar que já havia entre os membros do PAIGC. Como reforça Carlos Lopes (1987):
Dirigentes cabo-verdianos eram promovidos rapidamente para aumentar o
numero de representantes nacionais de Cabo Verde na direção, nas patentes
militares os cabo-verdianos, apesar de terem uma participação fraca em
numero, na luta armada, eram favorecidos, no campo da política externa
Cabo Verde mantinha relações diferentes das opções mais radicais da GuinéBissau (p.185).
Ao analisar os acontecimentos que desencadearam o “contexto novembrista”, Carlos
Lopes (1987) adverte que os “dirigentes cabo-verdianos de praticar o nacionalismo
exacerbado que conduziu o separatismo” (sic), fizeram vistas grossas com o que se passava na
Guiné-Bissau, sobretudo com a política instituída na Guiné-Bissau pelo presidente Luís
Cabral.
Reagindo a esse tipo de apreciação, Pedro Pires, então Primeiro Ministro de Cabo
Verde, admite, ao dar testemunho ao jornalista José Vicente Lopes, que:
154
155
Do PAIGC ao PAICV.
Do PAIGC ao PAICV, 1981.
235
O 14 de Novembro foi também consequência dos problemas mal
equacionados da luta, por um lado, havia muito voluntarismo no
comportamento do Luís Cabral, ou uma visão pouco realista do
desenvolvimento econômico da Guiné-Bissau. A luta deu uma
dimensão enorme a Guiné-Bissau e talvez se pensasse que se poderia
construir um futuro do país no mesmo estilo em que tínhamos feito a
luta (apud, LOPES,1996, p. 652).
Em linhas gerais, apesar de uma parte de membros do PAIGC de ala caboverdiana
manifestarem surpresas diante do golpe de Estado na Guiné-Bissau pelos motivos alegados
em torno do golpe, alguns confessaram que este era previsível e que a unidade Guiné-Bissau e
Cabo Verde estava mal equacionada.
É oportuno lembrar que a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde constituía a espinha
dorsal do projeto de Amílcar Cabral. Mesmo limitado por vários problemas citados
anteriormente, Cabral via na unidade destes dois países a única solução viável para a
libertação do colonialismo português.
É verdade que a proclamação da independência criou condições novas na estrutura
do PAIGC. A ala caboverdiana de PAIGC decidiu proclamação de independência separada
dos dois países. No trabalho de José Vicente Lopes (1996), o relato do combatente
caboverdiano Olívio Pires expõe os motivos pelos quais recusaram proclamar a
independência de Cabo Verde junto com a de Guiné-Bissau:
[...] Nós é que não podemos esquecer os acontecimentos que tinham estado
por detrás da morte de Cabral. Note-se que, se quiséssemos, não teríamos
dificuldades nenhuma em proclamar a independência da Guiné-Bissau e
Cabo Verde ao mesmo tempo, na certeza de que os países que reconheceram
a independência da Guiné-Bissau seriam os mesmos a reconhecer a
independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, caso a via fosse esta. Da
nossa parte não o fizemos porque achávamos que era preciso, primeiro, a
formação da nacionalidade caboverdiana e, só depois, iríamos para a unidade
(p. 647).
Ora, com todo o processo de desenvolvimento de luta na Guiné-Bissau postulado
pela unidade e soberania nacional guineocaboverdiana, Cabo Verde ainda precisava formar a
sua nacionalidade? Com efeito, essa atitude unilateral de proclamação de independência
indicava também o início de distanciamento caboverdiano com o projeto de Cabral de
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, que, na já ausência do inimigo comum, pouco sentido
fazia, em meio às desconfianças e competição pelo poder que roubavam a cena em relação à
necessidade dessa unidade.
Por outro lado, é preciso observar a dinâmica de processos de independência em
Cabo Verde no tocante ao interesse da elite caboverdiana da ilha na obtenção da
236
independência, isso coloca em dúvida a legitimidade do PAIGC de proclamar a
independência de Cabo Verde conjuntamente com Guiné-Bissau, como citado anteriormente.
Torna-se imperativo afirmar que a unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde
sempre teve seus detratores dentro do PAIGC em ambas as alas (bissau-guineense e
caboverdiana), sendo considerado o “calcanhar de Aquiles” (LOPES,1997); e também servia
de canal ideológico para o colonialismo português a fim de explorar as desconfianças entre os
bissau-guineenses perante aos caboverdianos no âmbito da luta de libertação. Com a
independência, aceleram as divergências reforçadas pelo assassinato de Amílcar Cabral, em
1973, e que culmina com o 14 de Novembro de 1980.
O relato do combatente da liberdade da pátria de Cabo Verde, Osvaldo Lopes da
Silva, retrata bem a crítica da indesejada unidade Guiné- Bissau e Cabo Verde, na sua fase
inicial, quando foi estudar em Moscovo, em 1962:
É em Moscovo que tenho os meus primeiros contactos com os bissauguineenses e começo a perceber as reticências que eles punham à unidade. É
também aqui que começo a compreender a complexidade do problema.
Depois de vários episódios, escrevo uma carta ao Amílcar Cabral em 1963 e
questiono, pela primeira vez, a unidade. Digo nessa carta que nem o povo de
Cabo Verde nem o povo da Guiné-Bissau acreditam que são um só povo.
Defendo que se devia pôr claramente a questão. Para mim, tratava-se de dois
povos que se tinham juntado para fazer em comum a luta pela independência
e que, se tudo corresse bem, poderiam partir para a unidade. [...] eu dizia que
pra mim a argumentação avançada para justificar a unidade não era
convincente. Quanto a mim ela não pode ser justificada por termos a mesma
cultura, a mesma história [...] ainda na minha carta, eu admitia que,
consultados, a dois povos, ou um deles, pudesse dizer não á unidade, o que
Cabral não admitia (Osvaldo Lopes da Silva apud LOPES, 1996, p.645).
Por sua vez, Aristides Pereira minimiza as divergências entre os bissau-guineenses e
caboverdianos e adverte: “na Guiné-Bissau só tínhamos problemas com gente destribalizada,
das cidades, mas não com o homem do campo” (apud, LOPES,1996 p.644). Ora, os
destribalizados a que se refere Aristides Pereira são os que constituem, na primeira hora, a
elite do nacionalismo bissau-guineense, e são estes que acordaram junto com Amílcar Cabral
a constituição da Frente Única para Libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde, que culminou
na unidade com Cabo Verde para a independência.
No que se refere às fragilidades da unidade binacional, evidenciamos os depoimentos
de alguns caboverdianos na formulação de José Vicente Lopes (1996):
Segundo Rodrigues, o grande equívoco era o desconhecimento que os povos
cabo-verdiano e bissau-guineense tinham de si, o que tornava a unidade um
paradoxo [...] bem ou mal, os cabo-verdianos conheciam a Guiné-Bissau,
mas os bissau-guineenses não conheciam Cabo Verde. Para ele, o PAIGC
237
quis fazer o cabo-verdiano esquecer o seu próprio passado em relação à
África, evocando uma solidariedade que considera, de certo modo, fictícia
[...] temos as nossas culpas nesta África como capatazes de brancos, algumas
das culpas são devidas ao nosso próprio feitio e também não acredito que os
nossos irmãos nos tenham perdoado tudo (p.659).
É no período pós-independência que vai se tornar claro que o projeto edificado de
unidade binacional de Amílcar Cabral não teve seguidores, ou seja, Cabral não deixou
sucessor que levasse adiante o seu legado. A fragilidade desta unidade tornava-se cada vez
mais evidente tanto a nível interno quanto externo. Os dois países eram quase que opostos nas
suas participações nas conferências internacionais, defendiam interesses diferentes, e faziam
alianças políticas também diferentes (LOPES, 1987).
Cabe assinalar que a relação conturbada de falta de confiança e diálogo entre os
membros do PAIGC, na pós-independência, já era fortemente sentida desde o assassínio de
Cabral. Não se surpreende, portanto, com a postura de distanciamento adotada pela ala cabo
verdiana em Cabo Verde, depois de todo um processo de luta armada conjunta desenvolvida
na Guiné-Bissau. Evidentemente, não era necessário nenhum grande esforço analítico para
perceber que esse processo já sinalizava algo mal alinhado, desde seus primórdios, dentro do
PAIGC.
Segundo Carlos Lopes “o grosso dos quadros, bem como militantes do Partido
sempre foram bissau-guineenses, o que logicamente deveria centrar a irradiação das ideias do
Partido de Bissau para Praia e não o contrário” (LOPES, 1987, p.185). No entendimento dele,
a lógica da estrutura organizativa do partido foi desvirtuada, porque “o dirigismo político
provocou o encadeamento contrário, visto que os quadros qualitativamente aptos se
encontravam em Cabo Verde e os que serviam o eixo em Bissau eram na sua grande maioria
de origem cabo-verdiana” (LOPES, 1987, p.185).
Evidentemente, como palco de guerra, todo o saldo negativo da guerra armada ficou
na Guiné-Bissau. Teve mais combatentes mortos, os bissau-guineenses tiveram menos
oportunidade de ir à escola, o acesso ao ensino constitui privilégio de poucos, além de outras
consequências que a guerra colonial pode causar no desenvolvimento de um país. Estes
fatores constituem um marco diferencial das duas sociedades, que, depois da independência,
traçaram destinos separados.
De fato, o 14 de Novembro foi apenas um empurrão no processo de insatisfação que
reinava entre as duas alas do partido, principalmente na ala bissau-guineense no tocante ao
modelo de gestão do Estado aplicado em Cabo Verde, contrário do que acontecia na Guiné-
238
Bissau. Fatores como este contribuíram bastante para efetivação do Movimento Reajustador
de 14 de Novembro, conforme coloca E. J. M. na sua entrevista:
14 de Novembro foi um passo para bem estar de bissau-guineenses. Alguns
relatos enfatizam que a ruptura de Guiné-Bissau e Cabo Verde consistem em
tirar um cabo-verdiano na presidência e colocar um bissau-guineense puro
ou filho da terra. Luís Cabral protegia os cabo-verdianos, isto contraria o
projeto de Cabral.
Traçando balizas de alguns fatos que antecederam o Movimento Reajustador 14 de
Novembro, vale dizer que já existiam aspectos que sinalizavam de modo flagrante a
fragilidade do projeto político de Cabral de unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, e que
traduzia a perda da sua funcionalidade política do PAIGC como representante dos interesses
comuns dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, depois do assassinato de Cabral. Segundo
Leitão da Graça:
Cabral estava obcecado pela ideia da unidade e acredita que ela acabou por
ser a “razão ideológica” da sua morte, da mesma forma que acredita que a
oposição em Cabo Verde a esse projeto, nomeadamente junto de certos
setores cabo-verdianos, particularmente da sua elite urbana, devia
fundamentalmente ao racismo destes. Tais setores não admitiam, em
hipótese alguma, que Cabo Verde se fosse juntar a Guiné-Bissau ou qualquer
país africano, porque entendem que Cabo Verde nada tem a ver com a
África. Ele ainda afirma que até 14 de Novembro 1980, a soberania caboverdiana encontrava-se “hipotecada ou ameaçada” por uma unidade com a
Guiné-Bissau, indesejada pela maioria dos seus compatriotas. Segundo ele,
em Novembro de 1980, ao mesmo tempo em que os bissau-guineenses se
libertavam uma segunda vez, desta feita do paternalismo duns imigrantes
cabo-verdianos na Guiné-Bissau, permitiram a recuperação da plena
soberania em Cabo Verde (LOPES, 1996, p. 659).
Em linhas gerais, todos esses desencontros entre a ala caboverdiana do PAIGC e a
bissau-guineense vieram culminar com o 14 de Novembro deixando de modo evidente que a
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde só foi possível num contexto específico (de luta contra o
colonialismo português). A concórdia aparente entre bissau-guineenses e caboverdianos caiu
por terra; as razões acabaram por demonstrar que a vontade da ala caboverdiana era a
condução do destino dos seus cidadãos e de praticar a concórdia nacional de modo que cada
país seguisse o seu destino e seus projetos.
Visto desse modo, o golpe de novembro de 1980 era inevitável, pois seu grande eixo
norteador é o desconforto com a unidade com os caboverdianos por parte das elites de ambos
os países, e veio a ser reforçado com os abusos e desvios de conduta moral e de princípios do
partido, que nortearam o ciclo pós- independência durante o mandato de Luís Cabral:
239
Não se escolhia os dirigentes só pelas suas qualidades, mas também pela sua
nacionalidade. A política dos governos deveria responder as preocupações
“nacionais”. Esta política favorecia nitidamente os órgãos cabo-verdianos do
PAIGC, pois sendo fracos qualitativamente e comparativamente à GuinéBissau, precários, viam-se investidos da força que não possuíam
(LOPES,1987, p. 185).
Apesar de toda a clareza que traduzia os motivos que conduziram o 14 de Novembro,
os dirigentes caboverdianos vão optar radicalmente pela separação histórica com a GuinéBissau, retomando o antigo formato do PAI (que era o partido dos caboverdianos de Bissau
antes da proposta da Frente Única de Libertação Guiné-Bissau e Cabo Verde em 1959), para
criar um novo partido denominado PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo
Verde) como admite o Comandante Pedro Pires “o PAIGC vem do PAI. Do meu ponto de
vista, o que era preciso conservar era o PAI, o resto era Cabo Verde. Assim as pessoas
aceitariam também mais facilmente a ruptura” (apud Lopes,p. 657).
Essa decisão dos membros do partido de Cabo Verde, só veio reforçar os anseios da
ala caboverdiana que já demonstrava clara a falta de interesse no projeto comum e agiam de
modo particular, traçando suas ações em prol do desenvolvimento de Cabo Verde.
Das entrevistas concedidas por alguns combatentes da liberdade da pátria na GuinéBissau depreende-se que alguns caboverdianos manifestaram-se contrariamente à política de
Luís Cabral na Guiné- Bissau, a exemplo de Aristides Pereira e Pedro Pires,156 mas nunca se
manifestaram publicamente em contrapor as perversidades que se aplicava ao povo bissauguineense. Não obstante, o movimento foi traduzido por alguns caboverdianos como uma
ação antecaboverdiana (sic) e de cunho racista dos bissau-guineenses (JORNAL NÔ
PINTCHA,1980).
Pelos relatos de alguns combatentes de liberdade da pátria bissau-guineenses, 14 de
Novembro era uma forma de resgatar o nacionalismo bissau-guineense diante da
neutralização de alguns comandantes de luta, no tocante à tentativa de inversão de hierarquias
saídas da luta de libertação, fazendo subir os inferiores hierárquicos, tudo em vista de evitar a
promoção concedida a Nino Vieira (BARROS,2011).
Luís Cabral, por sua vez, numa entrevista ao Jornal Expresso157 de Lisboa, minimiza
todas as acusações que permearam o movimento de 14 de Novembro e adverte não ter tido
conhecimento das mortes e das mazelas a que as populações estavam submetidas; e concorda
que a ação não foi contra os caboverdianos. Alerta do objetivo de 14 de Novembro: “eles
156
157
LOPES,1986.
A Guiné-Bissau é o País da Mentira. In:Jornal Expresso,1994, p. 54.
240
queriam era fazer a boa vida que estão a levar agora, deixando o povo na desgraça que grassa
hoje na Guiné- Bissau”.
Questionado sobre a alegada existência de pena da morte na Guiné-Bissau segurada
pelo seu governo, contrário ao governo de Cabo Verde, ele conclui no texto do mesmo jornal
já citado:
A pena de morte consta da Lei de Justiça Militar, feita por Amílcar Cabral
durante a guerra, sempre admitimos que poderia ser revogada a todo
momento pela nova Constituição, todo o indivíduo traidor à pátria poderia
ser punido com a pena máxima prevista na lei.
No entanto, ao ser interpelado sobre aplicação de pena da morte aos comandos
africanos das milícias portuguesas no seu governo, ele responde:
Nós tínhamos de tomar posições duras, para evitar que a guerra continuasse.
Como se sabe, havia tantos ou mais soldados bissau-guineenses no exercito
colonial do que no nosso próprio exercito. Essa gente foi desmobilizada e
muitos fugiram para o Senegal, levando armas, assaltaram postos da nossa
fronteira, atacaram aldeias próximas, mataram gente. Depois de uma guerra
de tantos anos tínhamos de tomar medidas que cortassem qualquer hipótese
de continuidade do conflito.158
Nesse ensejo, Luis Cabral também ignora as acusações de execuções comandadas
pelos seus agentes, António Buscardini (diretor-geral da segurança e do tenente Romão
Correia) e atesta que “havia uma lei que previa a pena da morte. Nenhum dirigente do partido
pode fugir à parte que lhe cabe nessa responsabilidade” (p.56).
Apesar de toda demonstração contrária ao Movimento Reajustador 14 de Novembro
pela ala caboverdiana do PAIGC, Luís Cabral ficou isolado depois do golpe. Seus
companheiros de luta em Cabo Verde negaram-lhe a residência fixa depois de 14 meses de
asilo político em Cuba; restou-lhe aceitar o acolhimento de governo português.159 Luís Cabral
testemunha ter sentido frieza por parte do governo caboverdiano quando decidiu deixar o
asilo político concedido em Cuba. Segundo ele,
[...] estive em Cuba, onde fui muito bem tratado, mas sentia-me
verdadeiramente só, queria estar com os meus, até pelas incertezas que tinha
em relação ao futuro. Mandei, então dizer que ia para Cabo Verde. Foi
quando recebi uma mensagem a dizer que não devia levar a família.160
Estas contradições estremeceram a relação de Luís Cabral e Aristides Pereira e uma
parte da ala caboverdiana do PAIGC. Portanto, a indefinição política em relação ao paradeiro
de Luís Cabral criou desconforto generalizado entre os compatriotas caboverdianos.
158
Idem, p.56.
Luís Cabral in: Jornal Expresso,1994.
160
Idem. Jornal Expresso, 1994, p.58.
159
241
Paradoxalmente, na Guiné-Bissau, a confiança no comandante Nino Vieira era comungada
por todos, sendo assim “considerado como um homem justo, dotado de autoridade
indiscutível, garante da fidelidade ao espírito de Amílcar Cabral e ao PAIGC, bem como à
unidade nacional da Guiné-Bissau (MOITA et al,1980,p.11).
Em linhas gerais, todos esses desencontros entre a ala caboverdiana do PAIGC e a
bissau-guineense vieram culminar com o 14 de Novembro, deixando de modo evidente que a
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde foi forçada num contexto específico (colonialismo
português).
No período após 14 de Novembro, o país tem poucos sinais de desenvolvimento
socioeconômico por causa da insuficiência de quadros técnicos e superiores bem qualificados
para administrar as instituições do Estado, bem como pelo desvio da conduta institucional
voltada à corrupção, e muitos países socialistas que apoiavam a Guiné-Bissau diminuíram os
apoios financeiros que prestavam ao país.
Um dos caminhos importantes e que tem um papel preponderante no
desenvolvimento do país é a educação. Apostar no investimento voltado para o setor da
educação básica e formação técnica e superior constitui um fator que poderá abrir as portas
para o desenvolvimento do país. Por isso, Vieira afirma:
Nenhum país se pode desenvolver com analfabetos. O desenvolvimento
consegue-se com quadros capazes que se entreguem, diariamente, a essa
tarefa. Entretanto, nenhum país se desenvolve só com quadros superiores. O
desenvolvimento consegue-se, sim, com quadros superiores, médios, bons
carpinteiros, bons mecânicos, bons ferreiros e outros. Se não houver uma
junção desses quadros não podemos, jamais, desenvolver a nossa terra. Por
isso, não podemos pensar, nunca, que só teremos valor na nossa sociedade
quando formos doutores, engenheiros. É mentira. Todo e qualquer cidadão
tem o seu valor na nossa sociedade, desde que produz e aumente a sua
produtividade diariamente.161
Portanto, em termos gerais, a educação constitui um dos elementos principais no
processo do desenvolvimento. Apesar das crises política e econômica que os governos após
14 de Novembro têm enfrentado, vale salientar que o Movimento Reajustador 14 de
Novembro permitiu a redução do alto índice da repressão política, das prisões e detenções
arbitrárias, assassinatos, enfim, restaurando direitos humanos e liberdade de expressão.
Se 14 de Novembro de 1980 foi uma data assinalada pelo Jornal Expresso de Lisboa
como a segunda libertação da Guiné-Bissau do colonialismo, hoje o golpe é minimizado por
161
Bernardo Vieira (apud Jornal Nô Pintcha, p. 8, 1985).
242
alguns políticos, em particular do próprio PAIGC, que atribuem a responsabilidade ao
contexto novembrista das mazelas e corrupção que afetavam o país então.
Essa tentativa de minimização foi evidenciada no governo de Carlos Gomes Júnior, o
atual presidente do PAIGC e Primeiro Ministro, quando decidiu por alegada legitimidade
política mudar o nome de uma das avenidas principais de Bissau, a que tinha sido atribuído o
nome de Avenida 14 de Novembro, substituindo para Avenida Combatentes da Liberdade da
Pátria.
Esse tipo de atitude, por sua vez, desqualifica todo o significado histórico e político
do 14 de Novembro e os motivos reais que impulsionaram esse movimento, não obstante tira
a oportunidade de existência de registro de memória sobre os fatos que compõem a história da
conquista da soberania do povo da Guiné-Bissau. Num país onde se omite uma grande parte
da historiografia oficial, cuja publicação de livros e circulação é deficitária porque não
existem incentivos para estes fins, onde o ensino é precário, a possibilidade da invenção de
nova historiografia é cada vez mais evidente e a vulnerabilidade dos bissau-guineenses no
tocante aos fatos históricos é preocupante.
Em linhas gerais, os anos que se seguiram à independência foram de muitas
dificuldades para construção de um Estado verdadeiramente nacional. Isso porque além das
disputas por uma hegemonia política no aparelho estatal entre bissau-guineenses e
caboverdianos, outro aspecto reforça essa fragilidade: as diferenças étnicas bissau-guineenses
ganham cenário nas narrativas discursivas do Estado nação, desta vez não no formato de uma
unidade nacional, mas na necessidade de uma determinada etnia possuir representante político
com amplo poder de destaque no Estado. Ou seja, a pertença étnica tornou-se uma das
principais formas de identificação social em detrimento da identidade nacional. Esta corrente
ideológica ficou mais evidente na abertura política de 1993.
5.3 A abertura multi-partidária de 1993 e a emergência da política étnica no Estado
bissau-guineense
Na Guiné-Bissau, o advento de multipartidarismo ressuscitou as velhas
manifestações de cunho tribal antes repreendidas por Cabral durante a luta de libertação; as
distinções étnicas antes vistas como riqueza cultural do país, hoje estão servindo de recurso de
atração de votos para eleger um determinado candidato.
243
As alegorias das narrativas fundantes da nação cunhadas na unidade e solidariedade
étnica, aos poucos vêm definhando e se transformando no discurso de poucos. A falta de
solidariedade, a desintegração dos camponeses, o uso excessivo de poder e corrupção, a
guerra civil, enfim, uma reconversão de valores nacionais que estão na base do
enfraquecimento do Estado nação na atual Guiné-Bissau.
Além da luta pelo acesso à educação, a crise profunda que se vive hoje no interior
das Forças Armadas (sucessivas instabilidades políticas resultantes de golpes de Estado
promovidos pelos militares) é outro fator que acompanhou o fracasso do projeto da unidade
nacional na Guiné-Bissau. As Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) foram à
primeira instituição republicana criada no contexto da luta de libertação, símbolo da unidade
nacional e da integração territorial criada pelo PAIGC no decorrer da resistência política,
cultural, econômica e armada e que informou o imaginário coletivo acerca da invenção e
consolidação do Estado nação.
Hoje, as FARP se apresentam em uma profunda crise de autoridade ao
transformarem-se numa arena de conflitos, de disputas políticas e de acesso pelo poder
político entre diferentes partidos políticos, impelindo à reconfiguração do campo identitário
de cunho étnico, pondo em xeque a legitimidade da identidade nacional.
O problema que se consubstancia na Guiné-Bissau é que a participação no sistema
político, a partir da identificação da unidade étnica, não foi capaz de incluir todos os grupos
de modo equilibrado, pois na prática a participação no governo e na representação
parlamentar tem sido marcada pelo poder de mobilização e de ativismo dos que tiveram um
nível avançado de instrução, gerando conflito e descontentamento na grande maioria dos
grupos que não possuem este nível e que, no entanto, lutaram pela consolidação da
independência.
Essa forma de configuração política bissau-guineense tem estimulado os grupos que
se sentem marginalizados a utilizarem soluções fora da regra do jogo democrático, isto é, o
recurso à força como meio para fazer com que as suas demandas sejam incluídas no processo
político. Por outro lado, alguns líderes de partidos políticos adotaram a política étnica pautada
na valorização de símbolos de uma determinada etnia, a qual pertencem, como forma de
obtenção de votos e de acesso ao poder.
Atualmente, o país vive numa instabilidade política de cunho étnico, trazendo para o
cenário atual as primeiras divergências manifestadas no início da criação dos movimentos de
libertação nacional, evidenciando reminiscências étnicas na conformação da democracia.
Desta maneira, constata-se uma total renúncia dos ideais de luta não apenas em relação à
244
unidade com Cabo Verde, mas também com o propósito da unidade interétnica base das
narrativas fundacionais da nação bissau-guineense.
A abertura política na Guiné-Bissau inaugurou uma nova fase na história do país. O
primeiro passo desta abertura política iniciou-se dentro do PAIGC. Na qualidade de quem
conquistou a independência, se manteve no poder mais de vinte anos num regime político de
partido único, e que deveria adequar as suas normas estatutárias a fim de se integrar nas regras
do jogo democrático e multipartidário.
Neste sentido, em janeiro de 1990, o Presidente da República João Bernardo Vieira
(Nino Vieira) anunciou a constituição de duas comissões encarregadas de fazer uma revisão
de programa, de estatutos do PAIGC e de leis referentes à propriedade da terra. Também foi
realizada a Primeira Conferência de Quadros do PAIGC, em outubro de 1990, onde surgiram
as primeiras tendências dentro do partido que comungavam com a ideia do multipartidarismo.
A Assembleia Nacional aprovou uma série de emendas constitucionais referentes aos
direitos civis e políticos dos cidadãos, enfatizando o direito de formar, e aderir a, partidos
políticos e movimentos sindicais, e o direito à liberdade de expressão. Razão pela qual, em
janeiro de 1991, durante o II Congresso Extraordinário do PAIGC, o Presidente Vieira
anunciou a democratização do país (ZEVERINO, 2003).
Houve também pressão por parte das agências internacionais, como é o caso do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), cuja filosofia é restringir o
peso da atuação dos estados nacionais na economia. Neste sentido, quando financiam os
projetos dos estados nacionais impõem condições sobre a maneira que o financiamento deve
ser investido, o que muitas vezes limita as possibilidades desses estados investirem os
recursos nos programas que deveriam ser prioritários para promover o desenvolvimento local.
Vale frisar que os grandes acontecimentos políticos e econômicos que se verificaram
nos finais dos anos 1980 - afetando negativamente os países do leste europeu, principais
parceiros de desenvolvimento da Guiné-Bissau - atingiram fortemente o país. Diante desta
crise, o país foi obrigado a firmar novos acordos com algumas agências multilaterais, tais
como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, com a finalidade de implementar
seus projetos de desenvolvimento. De acordo com Cardoso (1995, P. 259):
Na mesma altura a África encontrava-se mergulhada numa profunda crise
econômica. Alguns países como a Guiné-Bissau, o Ghana, a Costa do
Marfim, O Senegal vinham tentando ultrapassar esta crise apelando às ajudas
de organismos financeiros internacionais como FMI (Fundo Monetário
Internacional) e o Banco Mundial.
245
A ausência da democracia e multipartidarismo na Guiné-Bissau comprometia a
credibilidade do país no âmbito internacional, era preciso encontrar caminhos adequados para
resolver o problema. Ainda segundo Cardoso (1995, P. 259-260):
A nível interno de África tinha-se chegado à conclusão que o sistema de
partido único bem como a ausência da democracia tinha sido uma das causas
principais do desastre econômico verificado ao longo de três décadas de
independência. (...) Estavam assim criadas as condições internas e externas
para que a África pudesse embarcar no comboio da mudança que, entre
outras, brandava a bandeira do liberalismo econômico, da democracia
multipartidária e da defesa dos direitos do homem.
Assim sendo, conforme autor e referência acima:
A Guiné-Bissau, sendo um dos países mais pobres do mundo, tendo
praticado ao longo dos primeiros quinze anos da sua independência uma
política econômica desastrosa, tendo tido um regime autoritário de partido
único e tendo diversas vezes violado os direitos elementares da pessoa
humana, não podia escapar à regra. Também aqui estavam reunidas as
condições internas e externas para se iniciar um processo de mudanças
profundas a todos os níveis da sociedade, mormente nos domínios político e
econômico.
Nesse sentido, levando em consideração a situação política que se desenhava naquela
época, era necessário que o país acompanhasse essa evolução. Este processo de abertura
política permitiu o surgimento de vários partidos políticos: Resistência da Guiné-Bissau –
Movimento Bafatá (RGB-MB); Frente Democrática (FD); Partido da Renovação Social
(PRS); e outros partidos que sugiram depois da abertura política. Por outro lado, vale salientar
que já existia a Frente de Libertação e Independência da Guiné (FLING) desde a época da luta
de libertação, muito antes da existência do PAIGC, e que também ressurgiu.
Portanto, a proliferação de partidos políticos na Guiné-Bissau se deveu à abertura
política e ao multipartidarismo implementados no país. Segundo Zeverino (2003 p. 46-47):
Entre 1992 e 1993, assistiu-se ao nascimento e proliferação de várias
formações partidárias, tendo concorrido 13 partidos legalizados às eleições
legislativas de 1994. Destes, apenas dois, a Frente de Libertação Nacional da
Guiné (FLING) e a Resistência da Guiné – Movimento Bafatá, não eram
resultado de cisões ou dissidência do PAIGC ou criados por antigos
militantes ou dirigentes.
Em 1994, foram realizadas as primeiras eleições legislativas e presidenciais, cuja
vitória foi do PAIGC, que elegeu um governo e o Presidente da República na pessoa de Nino
Vieira. Não obstante, o conflito político-militar de 7 de junho de 1998 resultou num golpe de
Estado, que interrompeu o mandato do presidente e do governo eleitos do PAIGC,
fragilizando assim o processo democrático recém-implantado no país.
246
Durante o desenrolar do conflito que ceifou muitas vidas, foi instituído um governo
de transição intitulado Governo da Unidade Nacional (GUN) liderado por Francisco José
Fadul, que teve a missão de organizar novas eleições legislativas e presidenciais que
acabaram sendo realizadas no dia 28 de novembro de 1999 e que culminaram com a vitória do
Partido da Renovação Social (PRS) e do seu candidato presidencial, Koumba Yala.
Ao longo de sua história democrática, nenhum governo e presidente eleitos na
Guiné-Bissau terminaram o mandato por motivos de golpes de Estado. O único presidente que
não terminou o seu mandato presidencial, não através de golpe, mas por motivo da doença,
que culminou com a sua morte, foi o Presidente Malam Bacai Sanhá, em 2012.
A transição democrática constitui um passo importante para o país em termos de
direitos civis e políticos, bem como no âmbito da liberdade de expressão. Porém, apesar da
nova reformulação da Constituição da República garantir estes direitos, estes são
sistematicamente violados desde que o país adotou o regime democrático em termos
constitucionais.
A democratização do país fez emergir junto aos cidadãos bissau-guineenses
tendências políticas de cunho étnico. Neste sentido, existem pessoas que votam nos
candidatos pertencentes às suas etnias. Mas, esta tendência não chegou ao nível de um partido
político incentivar um conflito étnico, jogando uma etnia contra outra. Segundo Rudebeck
(1997, p. 22):
[...] Não se pode dizer, pelo menos ainda, que a vida política da GuinéBissau seja fortemente caracterizada por “tribalismo” ou etnicidade. Nenhum
dos novos partidos políticos tenta, de uma maneira aberta, colocar grupos
étnicos uns contra outros, ainda que seja evidente que o PRS de Koumba
Yala tem um apoio claro do povo balanta.
Essa mesma preocupação com o mau uso de questões étnicas pelos líderes dos
partidos políticos foi manifestada também por Carlos Cardoso (1996, p. 166), ao afirmar que
historicamente o tribalismo apareceu num contexto em que, conquistadas as independências e
movidos pelas suas ambições, os políticos quiseram tornar-se “gente do povo”,
propagandeando o slogan “eu sou da mesma etnia que vocês”.
Portanto, no universo de 13 partidos que concorreram às eleições gerais em 1994
(Rudebeck, 1997) e 12 partidos que participaram nas eleições gerais de 1999 (Zeverino,
2003), a grande maioria dos partidos políticos desenvolveu discursos de cunho étnico e outros
partidos se beneficiaram do voto étnico por causa do candidato que é de uma determinada
247
etnia e acaba se beneficiando do voto dessa etnia; alguns destes partidos deixam transparecer
isto de forma mais clara, tais como PRS, RGB-MB, FLING, UNDP etc.
O processo de democratização e multipartidarismo na Guiné-Bissau representou uma
oportunidade para implementar reformas de base no aparelho de Estado bissau-guineense,
cujas características estavam fortemente atreladas ao regime do partido único. Assim, uma
reforma política nas diferentes esferas, tais como Defesa, Segurança e Justiça, Tributária,
Educação e Saúde contribuiria para o desenvolvimento do país. Não obstante, nenhum
governo até o presente momento foi capaz de iniciar e terminar um aspecto dessa reforma.
No caso da Guiné-Bissau, a consolidação da democracia e do multipartidarismo tem
seus custos, desafios e ameaças ligados à pobreza e ao saneamento básico, que se não forem
bem trabalhados em termos de mecanismos de prevenção e de planejamento podem acarretar
uma série de problemas e que podem afetar o processo de desenvolvimento. De acordo com
Rudebeck (1997, p. 37), “a ameaça geral à democracia é a pobreza e as difíceis condições de
vida que parecem não melhorar para grande maioria da população”.
Portanto, a transição política na Guiné-Bissau poderia trazer mais vantagens e
resultados se a classe política tivesse debatido de forma coerente as questões mais pertinentes
vinculadas ao funcionamento das instituições do Estado e os principais problemas que afetam
os cidadãos bissau-guineenses, visto que com a adesão do país à democracia e ao
multipartidarismo a gestão das instituições do Estado passa a seguir um modelo de
administração mais moderna e integrada no âmbito da globalização. Infelizmente, durante o
período da transição política não houve um debate qualificado em termos de programas de
governabilidade. Neste sentido, “temos que reconhecer que uma das fraquezas deste processo
de transição é a ausência de debates e de discussões organizadas sobre os seus diferentes
aspectos” (CARDOSO, 1996, p. 163).
Um debate mais qualificado tanto no seio das organizações da sociedade civil como
da classe política abre possibilidade de construir o processo do desenvolvimento na GuinéBissau, oferecendo aos cidadãos a oportunidade de usufruir de melhores condições de vida.
Assim, como observa Amartya Sen (2010, p.16), “o desenvolvimento pode ser visto como um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”.
Pensando na realidade bissau-guineense, levando em consideração o nível da pobreza
que existe no país, crises políticas, violação da liberdade de expressão, pode-se dizer que estes
aspectos representam obstáculos para o processo do desenvolvimento que na concepção de
SEN (2010):
248
O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação
de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e
destituição social sistemática, negligencia dos serviços públicos e
intolerância ou interferência excessiva de estados repressivos (p.16).
Existem várias alternativas que podem ser adotadas para fazer face às questões que
geram obstáculos ao processo de desenvolvimento de um país, independentemente de sua
extensão territorial. Uma destas alternativas pode ser encontrada na promoção do crescimento
econômico, que tem condições de atrair recursos financeiros para o Estado. Neste sentido, “o
crescimento econômico pode ajudar não só elevando rendas privadas, mas também
possibilitando ao Estado financiar a seguridade social e intervenção governamental ativa”
(SEN, 2010, p. 61).
Essa possibilidade pode ajudar a minimizar os focos de conflitos internos. Como
também permite agregar as condições financeiras objetivas que oferecem ao Estado a
possibilidade de promover investimentos que ajudam a reduzir pobreza e desigualdade social,
diminuir o índice de analfabetismo e ampliar investimento na área de saúde e educação em
geral. Na visão de Amartya Sen “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades
básicas em vez de meramente como baixo nível de renda, que é critério tradicional de
identificação da pobreza” (p. 120).
Nessa ordem de ideias, as alternativas supracitadas são apropriadas e adequadas aos
problemas que a Guiné-Bissau enfrenta atualmente. O país precisa criar as condições
objetivas para renovar o seu processo democrático, eliminando as causas de conflitos e
potenciais focos de conflito. Uma das causas é a interferência de partidos políticos nas
questões militares indevidamente. Conforme aponta um dos entrevistados, A. A.:
FARP era do povo e PAIGC. Depois da independência deveria ser Forças
armadas do estado. Atualmente temos umas Forças Armadas étnicas
vinculadas ao PRS do que PAIGC. Neste momento não temos forças
armadas, mas sim milícias. Deixou de ser republicana, porque não juram
bandeira, não há recrutamento, os elementos são pegos nas tabancas durante
cerimônia de fanado para integrar as forças armadas, não fazem Regimento
Disciplinar Militar (RDM).
Neste sentido, é possível apontar que uma das potenciais causas de conflito interno
está nas manobras dos políticos que promovem discursos tribalistas que ameaçam a paz e a
estabilidade democrática, como também a construção do Estado de Direito.
249
Para alguns intelectuais, a Guiné-Bissau não tem Estado, visto que as suas
instituições se encontram fragilizadas sem ações efetivas que promovam o desenvolvimento.
De acordo com a fala de um dos entrevistados A. A.:
A Guiné não tem estado. Teve estado até meados de 80. Depois disso tudo
estragou. A expulsão e perseguição dos quadros esvaziou o potencial do
estado bissau-guineense, não há uma classe média que possa enfrentar os
mais poderosos a fim do que estado possa promover uma política do
desenvolvimento do país.
Sem minimizar o pensamento supracitado, as fragilidades das instituições de Estado
bissau-guineense não são suficientes para afirmarmos que o país não tem Estado. Para todos
os efeitos ele existe, não obstante é um Estado ineficiente e extremamente fragilizado. Por
isso, requer ações políticas acertadas a partir de reformas estruturantes capazes de fortalecer
as instituições do Estado e a democracia.
Vale lembrar que dentro da perspectiva democrática, Amílcar Cabral tinha o sonho
de ver o país realizar as suas eleições gerais. No discurso à Assembleia Nacional Popular,
deixou isso muito claro no seu testamento político em que afirma: “far-se-ão públicos os
resultados das eleições gerais e nosso objetivo será informar a opinião pública mundial e
todas as instâncias nacionais e internacionais a respeito desse importante acontecimento
histórico da luta do nosso povo” (CABRAL,1980, p. 15). Por isso, o grande desafio dos
cidadãos bissau-guineenses é o de consolidar o sonho de Cabral dentro das condições
objetivas em que o país está inserido no âmbito da globalização.
Um dos combatentes entrevistados, J. Sicó, ao falar da democratização, fez uma
reflexão preocupante com a democracia e multipartidarismo bissau-guineense:
Na qualidade de combatente, a democratização do país foi muito importante,
mas entramos sem estarmos preparados para entrar na democracia. Com
isso, começou a invenção dos políticos para atender as suas ambições
pessoais. Koumba Yala representa a divisão da etnia, para ele “sumbia” ou
chapeu é um símbolo da sua etnia. PAIGC fez de tudo para evitar a divisão
étnica. Os balantas não eram maioria na luta de libertação. Havia um numero
maior dos beafadas e outras etnias, contrario do que muitos afirmam hoje
que os balantas eram a maioria que deram peito na luta de libertação. O
surgimento de partidos políticos fez nascer sentimento da divisão étnica.
Nesta ordem de ideias, vários entrevistados demonstraram preocupação sobre como
está sendo explorada negativamente a questão étnica no processo democrático bissauguineense para se chegar ao poder, uma estratégia que pode abrir caminho para uma clivagem
étnica, fato que o país nunca experimentou. Por outro lado, esta problemática abre precedente
para discutir que tipo de democracia se quer para o país, fato que deveria ter sido discutido no
período da transição política na década de 1990.
250
Existem outros arranjos da democracia que o país poderia ter adotado de acordo com
a sua realidade social e cultural. Por exemplo, se o país, através da sociedade civil organizada
e a classe política, quer que a configuração étnica faça parte da estrutura democrática do país
pode seguir o modelo de democracia de consenso em que um partido ganha. Porém é certo
que todos os partidos, etnias e religiões estabelecem seus campos de interlocução e participam
do governo.
Mas, se a sociedade civil e a classe política querem um modelo de democracia que
permite ao partido ganhador governar sozinho, então seria melhor seguir o modelo da
democracia majoritária. Afinal, quando o partido ganhador não tem a maioria absoluta, muitas
vezes em alguns casos é obrigado a formar um governo de coalizão, que também tem as suas
consequências, como é o caso do Brasil.
Pode-se verificar exemplo similar analisando o que ocorreu em Bissau no ano de
2000 quando o PRS ganhou as eleições legislativas, mas como não tinha a maioria absoluta
teve que formar um governo de base alargada com RGB-MB, que acabou não surtindo efeito.
Portanto, a ausência de um debate consistente sobre que tipo de arranjos político
democráticos o país deve adotar pode trazer consequências graves para o processo de
construção de uma democracia sólida. Tal é o caso da Guiné-Bissau, que não assume a
possibilidade de admitir a composição étnica e religiosa no seu sistema político democrático
em que cada um dos grupos teria seu espaço no governo. Não obstante, em todas as
campanhas eleitorais, os candidatos fazem discursos tribalistas nos bastidores, ressaltando a
necessidade de se obter voto étnico para suas legendas políticas, que lhes permitiria ter
representantes de sua etnia ou religião no governo.
Vale lembrar que a unidade étnica sempre foi cultivada e incentivada pelo líder da
independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Cabral. Esta visão de Cabral visava a
enfrentar o inimigo comum, colonialista português, como também Cabral entendia que
mantendo esta visão seria possível construir duas nações, Guiné- Bissau e Cabo Verde. Mas,
infelizmente, com o seu desaparecimento físico, esta ideia começou a desmoronar.
De acordo com a fala de um dos combatentes da liberdade da pátria, M. M. S., ao
falar da unidade étnica, multipartidarismo e Estado na Guiné-Bissau,
A unidade inter-étnica vigorou até 1993. Com o multipartidarismo muitos
partidos começaram a usar a questão étnica para tirar proveito. A
necessidade comunicação fez o crioulo tornar a língua nacional por causa da
luta. Temos uma tentativa de Estado e não um estado nacional, isso porque a
Guiné-Bissau recuou depois de 1994. O país não estava preparado para
entrar na democracia. Todos os partidos que existem na Guiné-Bissau são
piores do que PAIGC e são pobres culturalmente. A Guiné -Bissau vai ter
251
uma nação em termos culturais quando começa a valorizar os valores
externos (tecnologias). O nacionalismo bissau-guineense está mais pautado
nas questões étnicas. Depois da independência houve uma evolução, muita
gente do partido que foram enviadas para se formarem no exterior. Hoje a
Guiné-Bissau está com déficit nos recursos humanos qualificados.
Evidentemente, hoje é possível perceber a fragilidade que existe no processo da
unidade étnica bissau-guineense, causada pela disputa de poder político entre os lideres
políticos e que começou logo após a proclamação da independência.
Em relação à existência ou não do Estado ou Estado nacional, acredita-se que existe
sim um Estado nacional na Guiné-Bissau. Porém, acontece que o Estado bissau-guineense
possui instituições extremamente frágeis, incapazes de garantir a estabilidade política,
econômica e bem estar dos cidadãos bissau-guineenses. É preciso frisar também que vários
estados já experimentaram na sua edificação fragilidades ou crises de diversas ordens. O
importante é criar mecanismos institucionais fortes que permitAm enfrentar os desafios
impostos constantemente ao Estado.
No que tange ao déficit de quadros, até os anos 1990, o país registrava insuficiência
destes em várias áreas. Mas, a partir do ano 2000, a Guiné-Bissau começou a registrar um
aumento de número de quadros superiores que se formaram no Brasil, Portugal, Senegal,
Argélia, Marrocos, somando com uma boa quantidade de quadros que se formaram nas
décadas de 1980 a 1990 nos países da antiga União Soviética, bem como de Cuba.
Portanto, hoje o país registra um grande aumento de quadros formados nas últimas
décadas, mas por uma questão de falta de planejamento estratégico existente na política do
governo faz com que esses quadros não sejam bem aproveitados para o processo de
modernização e fortalecimento das instituições de Estado. Todas estas questões poderão ser
resolvidas mediante reformas no aparelho de Estado. Hoje, uma boa parte destes quadros que
vivem na Guiné-Bissau não tem contrato de trabalho formalizado com o Estado, num país
onde o maior empregador é, precisamente, o Estado. As instituições do Estado estão repletas
de funcionários, cuja maioria não tem formação média ou superior.
A implementação de reformas ajudaria a resolver vários problemas que não foram
debatidos ao longo do processo da transição política e multipartidária no país. As reformas
deveriam acontecer de forma profunda nos partidos que existiam antes da democratização do
país, fato que não aconteceu de forma aprofundada dentro do PAIGC. Segundo um dos
combatentes da liberdade da pátria, o entrevistado M. M. S:
Koumba Yala não tem um eleitorado, mas sim uma etnia, mesmo nesta etnia
o PAIGC vai buscar alguma coisa. Muitos jovens que você vai encontrar
hoje que são muito fanáticos pelo PAIGC que é um mito. Nas ultimas
252
eleições PAIGC ganhou com 67 por cento de votos.Fui uma das pessoas que
participou no processo de multipartidarismo na Guiné, mas nunca fui
partidário da forma que este processo aconteceu. Eu e Carlos Lopes
preparamos um documento onde dizíamos que era necessário mudar o
partido a partir de dentro, democratizá-lo para que as pessoas tivessem a
vivencia democrática a fim de poder enfrentar os novos partidos que irão
surgir. As decisões são tomadas na assembleia por meio da troca de votos
pelo dinheiro. Hoje temos partidos criados para ganhar dinheiro.
A proposta de reformas profundas no interior do PAIGC possui uma essência muito
pertinente, posto que visa a preparar o maior partido do país para entrar no jogo democrático e
multipartidário de forma mais consistente e benéfica para o país. Segundo a fala de um dos
combatentes entrevistados, E. T.:
A entrada na democracia foi bem orientada no momento. Infelizmente a
ambição dos pretos deturparam as intenções iniciais. As pessoas queriam
tirar certo proveito e se beneficiar. O que deu errado foi justamente o
oportunismo de certas pessoas (assimiladas), que queriam se colocar por
cima dos indígenas.
O autoritarismo e a exclusão exercidos sobre um grupo social pode gerar
consequências negativas no processo de construção e consolidação da democracia dentro de
um país como a Guiné-Bissau, que tem vivenciado ciclos de instabilidade político militar ao
longo de sua história recente, e que acaba fragilizando o crescimento do Estado de Direito no
país, como também ataca outros direitos fundamentais como a tortura, liberdade de expressão
etc. Em linhas gerais, a democratização e multipartidarismo na Guiné-Bissau constituem uma
estratégia importante que permitiu o país inserir-se no cenário político mundial.
Considerações Finais
Ao longo deste trabalho constatei que as nações africanas, forjadas na luta de
libertação nacional, tiveram suas bases inspiradas no modelo ocidental de nação, atentando
para as suas especificidades que gravitam entre a concepção da unidade nacional e da cultura.
A intenção foi demonstrar como se deu a construção da identidade nacional na
Guiné-Bissau mediada pelas etnicidades, tendo como fio condutor o discurso da unidade
nacional que contagiava o continente africano na década de 1950.
Ao compreender os motivos que impulsionaram a criação de diversos movimentos de
libertação nacional com um único propósito, que é a expulsão do colonialismo, apontei para
construções de balizas que identificam o pensamento da nação em Amílcar Cabral em meio
253
aos modelos defendidos na tradição ocidental, articulando suas principais acepções acerca da
nação e nacionalismo, ligadas à questão da comunidade de destino, baseada na experiência
comum dos seus membros e de uma constante interação mútua, renovada através dos valores
culturais, ou seja, da nação como estratégia de enfrentamento.
No decorrer deste estudo, verifiquei também que a superestrutura do Estado colonial
desenvolvido na África, contou com uma forte organização e cumplicidade das autoridades
políticas e religiosas africanas.
Esta solidariedade com o escravismo europeu desenhou uma longa e dolorosa
desumanização, além da destruição dos valores culturais africanos, e da imposição da cultura
europeia, pautada no discurso da necessidade de civilizar os povos africanos instituindo a
superioridade cultural “europeia” em relação às tradições culturais africanas, sendo os
africanos considerados meros objetos de troca no circuito das relações comerciais para o novo
mundo.
Com base nessa imposição abusiva, surgiram várias articulações em torno de
resistências ao colonialismo em África, e que vão se consolidar de forma elaborada com os
movimentos urbanos na década de 1950.
Convém acrescentar que a intransigência do colonialismo provocou o despertar do
nacionalismo em África, porque estimulou o desejo de independência e forjou a unidade entre
diversos movimentos nacionalistas, objetivando a descolonização.
No caso da Guiné-Bissau, o despertar nacionalista teve a sua origem com os “cristões
de praça” e, mais tarde, contou com a contribuição inegável de Amílcar Cabral com uma
experiência mais elaborada adquirida na Casa de Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, o
que lhe rendeu mais tarde o protagonismo de líder nas colônias portuguesas.
A Geração Cabral, que surgiu do encontro entre estudantes africanos das colônias
portuguesas em Lisboa, Amílcar Cabral (Cabo Verde e Guiné-Bissau), Agostinho Neto e
Mário de Andrade (Angola), Marcelino dos Santos e Vasco Cabral (Guiné-Bissau-Bissau),
entre outros, serviu de elo para a tomada de consciência destes estudantes africanos em Lisboa
frente à sua condição de assimilados.
Tratava-se de um movimento com acentuado caráter no retorno ao processo histórico
a partir de uma valorização das tradições culturais que foi imprescindível na “reafricanização
dos espíritos”, em meio à reconversão identitária proposta pelo colonialismo português. É a
partir dessa vontade de mudança que o nacionalismo africano mais elaborado teve sua origem
em Lisboa, na CEI, pelas mãos da Geração Cabral, articulado sob várias influências teóricas,
tendo o marxismo e o pan-africanismo como referências teóricas principais.
254
É neste contexto que o final da Segunda Guerra Mundial seria providencial para unir
as vozes dos africanos fora do continente aos que estão dentro, e proporcionar a aproximação
entre as lideranças de movimentos de emancipação asiáticos, com o único propósito de
constituir fóruns de debates favoráveis à autodeterminação.
Em contraponto a esses debates, ressurge a ideia do lusotropicalismo com estratégias
para reforçar os laços entre a metrópole e as colônias; preconizando a criação da “unidade
nacional” em todas as suas colônias que passariam a ganhar status de “províncias
ultramarinas”, tudo isso para neutralizar o desenvolvimento dos movimentos de
autodeterminação.
Por sua vez, Cabral rebate a proposta colonial e aponta para a nova diretriz para a
libertação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Daí, surge a emergência do discurso
unificador como prioridade na conquista da libertação do colonialismo, tendo a cultura como
elemento que vai sustentar e dar forma a todo o processo de libertação nacional.
Ao se tratar dos movimentos nacionalistas e suas organizações, constatamos o forte
papel dos partidos políticos na formulação dos estados nação sendo veículos representativos
de interesses coletivos, definindo os meios para se alcançar os fins: independência e
soberania.
Assim, os primeiros partidos políticos africanos nasceram nos bastidores da
reivindicação da independência e da soberania total dos povos africanos, e a eles são
atribuídos o papel de dinamizadores do nacionalismo em África. Em outras palavras, os
partidos políticos, de um modo geral, foram portavozes e intérpretes dos anseios das massas
populares, servindo assim também de elo mediador nos aspectos relacionados com a unidade
étnica, o que conferiu a seus membros legitimidade para formação do Estado nação.
Quanto aos aspectos centrais da identidade nacional bissau-guineense, eles estavam
rubricados nas narrativas discursivas de “a África deve unir-se” e foram absorvidos por
alguns líderes africanos que viam na unidade africana a única condição para a libertação dos
povos do colonialismo.
Conclui-se que o projeto da unidade africana visava não apenas a obtenção das
independências, como também permitiria uma viabilização econômica através de uma
integração regional/continental, construindo assim uma economia homogênea e viável.
Com isso, a África teria condições favoráveis de avançar futuramente com posições
fortes de decisões no nível da política interna e externa, em defesa da sua identidade cultural.
É neste sentido que o debate em torno da união dos estados africanos fez emergir, em 1963, a
255
Organização Unidade Africana (OUA) como uma forma de formalização política que daria
voz às aspirações compartilhadas dos nacionalistas africanos.
Inspirada na onda da unidade africana, surgiu na Guiné-Bissau, em meio a vários
movimentos de libertação, a proposta ousada preconizada por Amílcar Cabral de unir dois
países em uma única luta de independência (a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde).
A constituição dessa frente única para a luta de libertação só foi possível na GuinéBissau com a mediação de Rafael Barbosa (do Movimento da Libertação da Guiné-Bissau MLG), considerado nesta pesquisa um dos protagonistas do itinerário nacionalista na GuinéBissau.
É claro que a proposta de unidade entre as então colônias portuguesas não teve o
consenso necessário esperado por Cabral, tornando-se assim o “calcanhar de aquiles” do
processo de luta armada conduzido por ele. As reações foram das mais diversas, a parte
bissau-guineense, apoiante à proposta de Cabral, era representada por Rafael Barbosa, e este
foi acusado e muitas vezes responsabilizado pela morte de todos os filhos da Guiné-Bissau na
guerra organizada pelos caboverdianos162.
Pude perceber que a unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, constituiu-se num parto
difícil para Cabral, visto que a presença caboverdiana na Guiné-Bissau era prioritariamente
confundida com a presença do colonialismo português, já que os caboverdianos foram
funcionários coloniais que representavam os portugueses na cobrança abusiva dos impostos e
na aplicação de trabalhos forçados.
Desta forma, essa unidade não tinha como não atrair opositores, porque as
desconfianças dos bissau-guineenses eram maiores que a boa vontade de Cabral de propor a
unidade como fator de libertação. Nesta senda, o próprio Cabral, não estava confortável com a
sua condição de alógeno,163 pois carecia de atributos étnicos para a sua identificação como
bissau-guineense. Por isso é que o sucesso do seu legado tinha que ter a mediação de uma
figura genuinamente bissau-guineense, neste caso Rafael Barbosa.
Ciente das desavenças entre bissau-guineenses e caboverdianos, Cabral vai se
fundamentar na ideologia da unidade africana inspirada nos ideias pan-africanistas, justificada
na origem histórica como um dos aliados imprescindíveis para equacionar as diferenças e
consolidar a unidade entre os dois países. É neste sentido que o legado de Amílcar Cabral de
unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde vai se acentuar na aproximação histórica entre dois
162
FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, IN: Arquivos secretos da PIDE. Pasta 04999.034. Carta de autoria de Alpha,
1973.
163
São denominados de alógenos os que nasceram num país sem ser etnicamente daquele país, ou seja, em
virtude do direito do solo, deter a nacionalidade de um país. São os casos de Amílcar Cabral e Luís Cabral.
256
povos que na verdade estão ligados pelos laços de ancestralidade comum, tendo como fio
condutor o inimigo comum.
Essa é a diretriz válida para toda a luta, a unidade baseada tanto nos aspectos
históricos, quanto pela lealdade política, constituindo um movimento amplo verdadeiramente
nacional, marcado numa única coordenação política, que representa os interesses
reivindicativos para a independência, não só da Guiné-Bissau, mas, também, de Cabo Verde.
Amílcar Cabral vai dinamizar o conceito de cultura, e atribuir-lhe uma nova
concepção, a de criar novos laços de solidariedade étnica, formando uma homogeneidade
cultural a partir dos elementos remanescentes das tradições populares, provenientes de
diversas contribuições étnicas. Desse modo, a nação cria uma unidade de grande diversidade,
uma conjunção de consciência humana que postula a constituição de uma rede de interrelações de indivíduos etnicamente diferentes engendrando o beneficio da liberdade e
autonomia de cada grupo étnico, adquirindo a memória de uma vida comum, ligada à
comunidade de interesses.
A pesquisa revelou dados importantes sobre a dinâmica de luta de libertação
nacional, diferente do preconizado pela historiografia oficial, no momento em que trouxe à
cena o ressurgimento de Amílcar Cabral no contexto do massacre de Pindjiguiti, de 1959, em
Bissau, depois da sua saída forçada em 1953, particularmente contestando a existência do
PAIGC antes da constituição da Frente Única de Libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde.
Vale acrescentar que Amílcar Cabral teceu seus laços históricos com a Guiné-Bissau
no contexto da sua nomeação como o primeiro engenheiro negro na granja de Pessubé em
Bissau. Depois de deixar o país aos onze anos de idade.
Ademais, a investigação buscou estabelecer conexões da internacionalização da luta
de Amílcar Cabral tendo como marco a década de 1960, na qualidade de representante dos
interesses dos filhos da Guiné-Bissau e Cabo Verde e a evolução da luta armada na GuinéBissau. Além disso, percebe-se que apesar da ambição de propor um projeto unitário entre
Guiné-Bissau e Cabo Verde, baseados nos laços de historicidade, eram dois povos que não se
reconheciam enquanto um só povo.
Mesmo tendo Rafael Barbosa ao seu lado, na criação de uma frente única, ela não se
traduzia em total consenso entre os bissau-guineenses. Por isso, Cabral desencadeia uma
intensa mobilização a nível interno e externo para a concretização do seu objetivo enquanto
líder do movimento para independência, o que não se constitui numa tarefa fácil. A
confrontação de Amílcar Cabral com outros movimentos nacionalistas radicados no exterior
257
(Dakar e Conacri) para a viabilização de uma única frente foi extremamente desgastante e
conflituosa.
Constatamos que a legitimidade do PAIGC só foi possível devido ao discurso panafricanista adotado por Cabral em contrapartida aos outros líderes dos movimentos
nacionalistas. Pois aí residia a vantagem de Amílcar Cabral em relação aos seus opositores, já
que o discurso pan-africanista postulado por ele preconizava a unidade nacional e a unidade
Guiné-Bissau e Cabo Verde.
No nível internacional, Amílcar Cabral vai desenhar a sua terceira dimensão da
unidade, que vai residir na criação das ações políticas conjuntas dos movimentos nacionalistas
das colônias portuguesas a fim de se criar uma única frente de representação política, que
apregoava em nome de todas as colônias.
Nesse ensejo, surgirá o Movimento Anticolonialista (MAC), e em seguida, a Frente
Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Coloniais Portuguesas (FRAIN),
que mais tarde será substituída pela Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias
Portuguesas (CONCEP), como movimento unitário anticolonial que vai dar respaldo aos
representantes políticos das colônias portuguesas na contestação contra a ocupação colonial.
Portanto, a década de 1960 vai se constituir num grande marco na internacionalização da luta
armada, realçando o papel de Amílcar Cabral como líder dos movimentos nacionalistas das
colônias portuguesa. Ainda, a nível externo, o PAIGC contará com inúmeras contribuições
dos países europeus e africanos, a fim de materializar os seus objetivos.
Com o início da luta armada, em 1963, Cabral foi surpreendido com um novo desafio
dentro do PAIGC, que ameaça a sua legitimidade e liderança, visando manchar toda a
construção positiva da imagem pública do PAIGC: os desvios das normas do partido e
condutas abusivas de alguns dos seus dirigentes junto às “massas populares”. Daí surge a
convocação para o primeiro congresso do partido, em Cassacá.
Percebe-se, também, que a necessidade de criar o partido-Estado nasceu nos
contornos do Congresso de Cassacá, que visava a institucionalizar definitivamente as
diretrizes que vão conduzir a política de libertação.
Portanto, o Congresso de Cassacá lançou as bases para o futuro Estado independente,
ao criar instituições, embora incipientes, que visavam à promoção de políticas públicas de
inclusão que contemplassem as populações das zonas libertadas e os membros do partido
através da construção de escolas para formação de quadros políticos, postos médicos. É a
partir daí que vão nascer as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), antecedendo a
própria criação do Estado bissau-guineense.
258
De modo geral, podemos dizer que, apesar de todos os avanços que marcaram o
processo de luta de libertação desencadeada pelo PAIGC, Amílcar Cabral veio a ser
assassinado antes de ver a concretização dos objetivos traçados. Os motivos que estão na base
da sua morte ainda constituem, para a literatura bissau-guineense, um desafio. Nessa pesquisa,
apontamos que Cabral morreu vítima do seu próprio projeto unitário de caráter binacional.
O legado de Amílcar Cabral continua vivo na África e na sua diáspora. Com efeito,
vale salientar que tanto na Guiné-Bissau quanto em Cabo Verde, Cabral não teve sucessores.
Amílcar Cabral morreu cedo sem antes ver materializado seu sonho de libertar os povos da
Guiné-Bissau e Cabo Verde do colonialismo português. Depois da morte do líder, o seu
legado está reservado apenas ao nível teórico.
O propósito de construir um só país depois da luta armada foi apenas forçado na
presença do inimigo comum: o colonialismo português. Os anos que se seguiram à
independência foram marcados pela ruptura da unidade Guiné-Bissau e Cabo Verde, já
esperada por causa da forte desconfiança em relação aos caboverdianos que muitos bissauguineenses nutriam.
A forma como os bissau-guineenses viam os caboverdianos no cenário da
colonização era um dos aspectos para que essa unidade não fosse viável. A unidade, em seus
princípios, era contraditória à própria convicção nacionalista dos bissau-guineenses, porque o
sentimento nacionalista destes surgia como consequência da dominação colonial e, quando se
definia contra este domínio, naturalmente, o nacionalismo bissau-guineense estaria se
definindo contra a própria presença caboverdiana. E o Movimento Reajustador de 14 de
Novembro de 1980 foi apenas a gota d´água para que a ruptura se tornasse realidade.
A Guiné-Bissau que se viu nascer, hoje, está assombrada pela instabilidade política
proveniente dos sucessivos golpes de Estado. Os sinais de subdesenvolvimento retardam o
país que almeja a melhoria dos índices de desenvolvimento humano (IDH).
Evidentemente por ser palco da luta de libertação nacional, o país está administrando
o saldo negativo da luta armada. Ao passo que Cabo Verde, por não se tratar de palco de
operações de luta armada, no entanto, já contava com saldo positivo da colonização
portuguesa em todos os níveis, está no caminho do progresso e de uma evolução econômica
invejável a nível dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Em linhas
gerais, tanto na Guiné-Bissau quanto em Cabo Verde, o líder Amílcar Cabral é rememorado
apenas nos eventos históricos do país, a exemplo dos dias dos heróis nacionais na GuinéBissau e 20 de janeiro é o dia em que se celebra o seu desaparecimento físico.
259
Ao refletir sobre a construção da identidade nacional na Guiné-Bissau, forjada na
luta de libertação nacional, pude perceber que os símbolos decodificadores dessa identidade
foram substituídos em meio aos símbolos da pertença étnica. Este fato é visível no campo
político, a partir da adesão do país ao sistema multipartidário de 1994.
A democratização do país fez emergir junto aos cidadãos bissau-guineenses
tendências políticas de cunho étnico. Não obstante, estas tendências ainda não chegaram ao
nível de incentivar um conflito étnico. O que seria uma oportunidade para implementar
reformas de base no aparelho de Estado bissau-guineense, a democracia virou um pesadelo
para a sociedade local e para a comunidade internacional, pois a transição política do sistema
único de partido para o multipartidarismo não estimulou debates suficientes e coerentes sobre
as questões vinculadas à diversidade do país, apenas preocupou-se em adotar o modelo
europeu de representação sem, contudo, atentar para a configuração da sociedade bissauguineense.
Não houve um debate qualificado em termos de programas de governabilidade, nem
que modelo de democracia seria mais adequado a essa configuração. Repetiu-se o mesmo erro
que se instaurou no primeiro governo pós-independência de ignorar as questões étnicas na
formulação das políticas estatais e prezar pelo discurso do Estado moderno ocidental.
Hoje, a maioria dos candidatos políticos adota as narrativas discursivas com forte
teor étnico, como possibilidade de atrair votos e ter acesso ao poder, além de aliar-se às
FARP, como forma de legitimar-se diante do eleitorado.
A Guiné-Bissau é um dos países da África ocidental que além do Estado ser
ineficiente e extremamente fragilizado, alem de não possuir ações efetivas que promovam o
desenvolvimento, também vive assombrado pela ditadura militar desde finais de década de
1990. Assim, o país tem, ainda, o desafio de tornar a sua democracia multipartidária mais
eficiente, capaz de promover a estabilidade política, social e econômica aos seus cidadãos.
260
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270
ANEXOS
271
ANEXO I - OS SIMBOLOS DA NAÇÃO BISSAU-GUINEENSE
Os significados das cores do nacionalismo
A banda vermelha – simboliza o sangue derramado pelos negros herois e mártires, desde os tempos imemoriais, no seu combate contra a
dominação estrangeira;
A banda verde- a nova esperança nascida nos nossos corações com o ressurgimento da luta para a paz e o progresso;
A banda amarela – a abundancia que vai ser criada pelas nossas próprias mãos, nos nossos países libertos do colonialismo;
A estrela negra – lembra os objetivos do nosso grande Partido, instrumento de unidade e da libertação dos nossos povos.
HINO NACIONAL DA GUINÉ-BISSAU
Esta é a nossa Pátria amada
O hino da Guiné-Bissau, começa com a discrição da paisagem natural e humana das nossas terras, como as encontrou o combatente do
PAIGC:
Sol, suor e o verde e mar,
Séculos de dor e esperança!
Esta é a terra dos nossos avós!
Vinha a seguir a contribuição que a elas trazia a nossa geração de combantentes cuja a missão era a de transformar a realidade encontrada na
Pátria bem-amada:
Fruto das nossas mãos,
Da flôr do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada!
Cantamos , no coro, a Pátria gloriosa, fazendo apelo à luta sem tréguas para a realização dos nossos objetivos superiores:
Viva a pátria gloriosa!
Floriu nos céus a bandeira da luta.
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir na pátria imortal
A paz e o progresso!
O hino continuava explicando as origens e identidades dos povos da Guiné e de Cabo verde:
Ramos do mesmo tronco,
Olhos na mesma luz:
Esta é a força da nossa união!
E termina com um canto de glória às vitórias alcançadas:
Cantem o mar e a terra
A madrugada e o sol
Que a nossa luta fecundou!
272
O EMBLEMA DO PARTIDO AFRICANO PARA INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ E
CABO VERDE
Os dois ramos de palmeira em Circulos laterais representa a Guiné,
A concha amarela em baixo representa Cabo Verde.
O alto entre as folhas de palmeira a Estrela negra do Partido e envolvendo todo este conjunto, na periferia do emblema, a inscrição Unidade
Luta e Progresso.
Fonte: Cabral, Luis. Cronicas da Libertação, 1984,pp.114/116.
273
ANEXO II - MAPA DE REPÚBLICA DE GUINÉ-BISSAU E ALGUNS DADOS
RELEVANTES DO PAÍS
PAÍS
Localização: A República da Guiné-Bissau fica situada na
Costa Ocidental de África, limitada Norte pela República do
Senegal, a Leste e Sul pela República da Guiné Conakry e a
Oeste pelo Oceano Atlântico
















Presidente da República – Serifo Nhamadjo
Superfície - 36.125 Km2
População - (RGPH-2009 Resultados Definitivos)
1.520.830
Capital - Bissau
Língua Oficial - Português
Moeda - Franco Fcfa
PIB - 418,8 Bilhões de Fcfa - 2010 provisório
Importação - 54,9 Bilhões de Fcfa - 2009
Exportação - 34,5 Bilhões de Fcfa - 2009
Taxa de Crescimento de PIB real - 3,5 - 2010
Taxa de Inflação anual - 1,9 - 2010
Taxa de Câmbio média anual Dólar - Franco Cfa
2010-472.2
Massa Monetária 2010 , Bilhões de Fcfa -123.1
Receitas Totais e Donativos 2010, em Bilhões de
Fcfa - 85,6(Provisório)
Despesas Totais Mais Empréstimos, 2010 em Bilhões
de
Fcfa -91.1
(Provisório)
Incidência de pobreza extrema(1$- dólar Americano)
em 2010 (Inquérito Ligeiro para Avaliação de
Pobreza - ILAP2) - 33%
Religião na
Guiné-Bissau
Religião
% aprox.
Religiões
étnicas
Muçulmanos
Cristãos
Outras (inclui
ateus)
44,9%
41,9%
11,9%
1,3%
Fonte: http://www.stat-guinebissau.com/. Acesso em 16 de julho de 2013.
274
II - DESCRIÇÃO DAS ETNIAS ((NÓBREGA, 2003); (PÉLISSIER, 1986); (CARLOS LOPES, 1982)
Grupos étnicos:






Balantas 30%
Fulas 20%
Manjacos 14%
Mandingas 13%
Papéis 7%
Europeus e outros: menos de 1%
Balantas
Uma das mais populosas etnias da Guiné-Bissau, os balantas, principalmente agricultores e criadores de gado,
são tidos por expansionistas e dados como um povo algo agressivo. Portugal foi incapaz de os subjugar até
1910. Para os Balantas, “não existe diferenciação na base da propriedade, não havendo autoridade (…) sendo a
família o único símbolo de unidade política e social”(Joop, 2003:3), organizam-se em “moranças” dispersas
pelo “chão” (as culturas de arroz assim o exigiam).
Manjacos
Conhecidos por migrantes, são um povo de agricultores que na sua génese subsistia da agricultura do arroz,
milho e feijão. A criação de gado assume-se, também, como um importante recurso económico. Em termos
religiosos, como animistas, rezam aos seus irãs, sendo no entanto uma etnia bastante permeável ao cristianismo e
ao islamismo.
Papeis
Originários de Bissau, a sua proximidade dos portugueses, antes da independência, conferia-lhes um maior
conhecimento da sociedade ocidental, no entanto, deixava-os numa posição mais sensível às agressões
portuguesas. Organizados por régulos e clãs (onde apenas um nobre pode exercer o poder regular), são
defensores acérrimos do seu “chão” embora, agora, bastantes permeáveis aos migrantes que para lá se deslocam.
Os Papeis dão grande importância à família.
Mancanhas
Com reputação de excelentes agricultores, embora se tenham envolvido em conflitos com os portugueses, são
conhecidos por serem um povo pacífico e com uma grande vontade de se adaptarem à sociedade moderna. São
também conhecidos como os grandes Djambacós.
Bijagós
Uma etnia de marinheiros e agricultores, agora presentes num arquipélago com dezenas de ilhas, foram os
últimos resistentes à vaga colonizadora. Apesar da escassez de meios, são excelentes navegadores ganhando
prestígio como provocadores de pirataria e naufrágios. Este é um povo ainda pouco influenciado pelas estruturas
externas, tal é o seu isolamento, e, embora não se organizem em forma de Estado, usufruem de um sistema social
de classes
Fulas
Segundo Amílcar Cabral (1974), os fulas estão organizados numa “estrutura semifeudalista”. À semelhança de
outras etnias, esta é divisível em algumas sub-etnias, os Futa-Fulas, os Fula Forros e os Fula Pretos. Originários
do Futa Djalon, os conhecidos Futa-Fulas, expandemse para a Guiné-Bissau após o estabelecimento franco na
Guiné (Conacri), submetendo Beafadas e Mandingas. Os Fulas Forros entraram pacificamente no território
misturando-se com as populações rurais, tendo, em alguns casos, estado sob o poder Mandinga e Beafada. Por
275
último, os Fula Pretos, hierarquicamente inferiores, utilizados como escravos, são na sua maioria Mandingas e
Beafadas que foram fulanizados/islamizados.
Mandingas
Provenientes do império do Mali, estabeleceram-se naquele que se tornou num dos seus mais importantes reinos,
o Kaabu, e de onde outrora dominaram o território bissau-guineense. São agricultores, criadores de gado e
comerciantes. Originalmente animistas, foram islamizados pelos Fulas, desempenhando mais tarde um papel
importante na tentativa de islamização da Guiné-Bissau.
Beafadas
Animistas convertidos pelos Islamizados, são na sua maioria agricultores. A constante pressão demográfica dos
Balantas, a penetração fula e as consequentes derrotas belicosas que lhes foram por estes impostas, reduziram
em muito o seu número. Os Beafadas eram essencialmente um povo de tradições animistas, com uma
organização política baseada em régulos e com um sistema agrícola semelhante ao dos Balantas.
276
ANEXO III – INFORMAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE LUTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL
As Divisões das regiões em frentes de luta
Fonte: LOPES, 1982,p.50
277
PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO ENTRE PAIGC E O GOVERNO PORTUGUÊS PARA A
CONCESSÃO DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
Fonte: ANDRADE,1977
278
ANEXO IV-
TRANSIÇÃO DE GOVERNO PORTUGUÊS PARA GOVERNO DE PAIGC
ACORDO DE ARGEL, DE 26 DE AGOSTO DE 1974
Reunidas em Argel aos vinte e seis dias do mês de Agosto de mil e novecentos e setenta e quatro, as Delegações do Governo Português e do
Comité Executivo da Luta do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), na sequência de negociações bilaterais
anteriormente realizadas, em ambiente de grande cordialidade, em Londres e Argel, acordam o seguinte:
Artigo 1.° - O reconhecimento de jure da Republica da Guiné-Bissau, como Estado Soberano, pelo Estado Português terá lugar no dia dez de
Setembro de mil novecentos e setenta e quatro.
Art. 2.° - Com a assinatura deste Protocolo de Acordo o cessar-fogo mutuamente observado de facto em todo o território da Republica da
Guiné-Bissau pelas forças de terra, mar e ar das duas partes converte-se automaticamente em cessar-fogo de jure.
Art. 3.° - A retracção do dispositivo militar português e a saída progressiva para Portugal das forças armadas portuguesas continuarão a
processar-se de acordo com o estabelecido no anexo a este protocolo, devendo essa saída estar concluída até ao dia trinta e um de Outubro de
mil novecentos e setenta e quatro.
Art. 4.° - O Estado Português e a Republica da Guiné-Bissau comprometem-se a estabelecer e a desenvolver relações de cooperação activa,
nomeadamente nos domínios económico, financeiro, cultural e técnico, numa base de independência, respeito mutuo, igualdade e
reciprocidade de interesses e de relações harmoniosas entre os cidadãos das duas Republicas.
Art. 5.° - Com este fim, e depois do acto de reconhecimento de jure da Republica da Guiné-Bissau pelo Estado Português, os dois Estados
estabelecerão entre si relações diplomáticas ao nível de embaixador, comprometendo-se a celebrar, no mais curto prazo, acordos bilaterais de
amizade e de cooperação nos diferentes domínios.
Art. 6.° - O Governo Português reafirma o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência e garante a efectivação desse
direito de acordo com as resoluções pertinentes das Nações Unidas, tendo também em conta a vontade expressa da Organização da Unidade
Africana.
Art. 7.° - O Governo Português e o PAIGC consideram que o acesso de Cabo Verde à
independência, no quadro geral da descolonização dos territórios africanos sob dominação portuguesa, constitui factor necessário para uma
paz duradoura e uma cooperação sincera entre a Republica Portuguesa e a Republica da Guiné-Bissau.
Art. 8.° - Lembrando a resolução do Conselho de Segurança que recomenda a admissão da Republica da Guiné-Bissau na ONU, a Delegação
do PAIGC regista com satisfação os esforços diplomáticos significativos feitos nessa ocasião pelo Governo Português os quais estão em
perfeita harmonia com o espírito de boa vontade que anima ambas as partes.
Art. 9.° - As duas delegações exprimem a sua satisfação por terem podido levar a bom termo as negociações que tornaram possível o fim da
guerra, de que foi responsável o deposto regime português, e abriram perspectivas para uma frutuosa e fraterna cooperação activa entre os
respectivos Países e Povos.
Feito e assinado em Argel, em dois exemplares em língua portuguesa, aos vinte e seis dias do mês de Agosto do ano de mil e novecentos e
setenta e quatro.
Anexo ao Acordo entre o Governo Português e o Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde
O presente Anexo destina-se a regular, por livre e mutuo acordo entre o Governo Português e o PAIGC, a forma de coexistência transitória
das forças armadas de Portugal e da Republica da Guiné-Bissau, no território da Guiné-Bissau, no período que mediar entre o início de
cessar-fogo de jure a que se refere o Protocolo de Acordo assinado em vinte e seis de Agosto de mil e novecentos e setenta e quatro e a saída
das forças armadas portuguesas do referido território, que se completam até trinta e um de Outubro de mil e novecentos e setenta e quatro.
1.° - A presença das forças armadas portuguesas apenas se justifica a título transitório, em ordem a permitir a Portugal uma retracção e saída
ordenadas dos seus dispositivos e a facilitar a transmissão gradativa dos serviços de administração nas zonas ocupadas por aquelas forças,
sem quebra da continuidade do seu funcionamento.
2.° - A retracção do dispositivo das forças armadas portuguesas continuara a processar-se progressiva e gradualmente do interior para o mar,
segundo um escalonamento a estabelecer por acordo mutuo, que tome em conta o interesse de ambas as partes e os meios materiais
disponíveis, por forma que as últimas zonas de reagrupamento das forças armadas portuguesas sejam a povoação do Cumeré e as ilhas de
Bolama, Caravela e Bissau. Salvo motivo de força maior reconhecido por ambas as partes, esta retracção será efectuada até dez de Setembro
de mil novecentos e setenta e quatro.
3.° - As zonas de reagrupamento transitório das forças armadas portuguesas, nos termos do número anterior, continuarão sob o contrôle
militar das autoridades portuguesas. Nessas zonas continuará a ser hasteada a bandeira portuguesa até ao termo da presença dessas forças.
4.° - A residência do comandante-chefe das Forças Armadas Portuguesas e representante do Governo Português será o palácio presidencial
de Bissau até ao termo da permanência das forças armadas na área da ilha do mesmo nome.
5.° - Até ao termo da permanência das forças armadas portuguesas em Bissau, a Republica da Guiné-Bissau manterá nessa zona de
reagrupamento um efectivo, em princípio, de cerca de trezentos homens das forças armadas da Republica da Guiné-Bissau que, isolada ou
279
conjuntamente com as forças armadas portuguesas, neste casa em patrulhamentos mistos, participara na manutenção da ordem publica,
segundo normas a estabelecer por acordo.
6.º - Mantém-se a livre circulação de pessoas e viaturas militares, nas e entre as zonas de reagrupamento mencionadas neste Anexo, desde
que não armadas e acompanhadas dos respectivos documentos de identificação, que lhes poderão ser exigidos pelas autoridades em serviço.
7.o - Sempre que a natureza de materiais ou reabastecimentos a transportar exija especiais medidas de segurança, serão os mesmos
acompanhados por elementos armados, segundo normas de procedimento a estabelecer por acordo das duas partes.
8.º - Nas vias fluviais e marítimas manter-se-á igualmente a livre navegação de unidades
militares, na extensão necessária ao apoio logístico, retracção do dispositivo e saída das forças armadas portuguesas.
9.º - Sempre que no transporte fluvial ou marítimo, para fins idênticos aos referidos no
numero anterior, sejam utilizadas embarcações civis, aplicar-se-á o disposto no n.º 7.º
10.º - Por razões de segurança contra infiltrações vindas do mar, as unidades navais portuguesas poderão patrulhar livremente os acessos às
ilhas de Bissau, Bolama e Caravela, o arquipélago dos Bijagós e as aproximações oceânicas.
11.º - A circulação de aeronaves não armadas, em missão de reabastecimento e transporte, processar-se-á livremente nas e entre as zonas de
reagrupamento das forças armadas portuguesas.
12.º - Ficam igualmente autorizados os voos de reconhecimento no espaço aéreo das ilhas de Bissau e Bolama, do arquipélago dos Bijagós e
da fronteira marítima.
13.º - Ficam interditos voos em grupos de mais de três aeronaves.
14.º - A República da Guiné-Bissau obriga-se a neutralizar os seus meios antiaéreos
susceptíveis de afectar a circulação aérea prevista nos n.ºs 11.0 e 12.0
15.o - O julgamento e a punição das infracções cometidas por militares portugueses nas zonas de reagrupamento das forças armadas
portuguesas, ou fora dessas zonas, se neste caso não atingirem interesses legítimos da Republica da Guiné-Bissau, ficam sujeitos à jurisdição
da autoridade militar portuguesa.
16.º - Os aquartelamentos das forças armadas portuguesas situados fora das ilhas de Bissau, Bolama e Caravela serão circundados por uma
área de três quilómetros de profundidade, por seu turno circundada por uma zona tampão com dois quilómetros de profundidade, em que
nenhuma das partes poderá não abranger a satisfação das necessidades de abastecimento de agua e lenha das forças ali estacionadas.
17.º - As forças armadas portuguesas obrigam-se a desarmar as tropas africanas sob o seu contrôle. A República da Guiné-Bissau prestará
toda a colaboração necessária para esse efeito.
18.º - Uma comissão mista coordenara a acção das duas partes e vigiara pela correcta e pontual aplicação do disposto no presente Anexo,
dando-lhe ainda a sua interpretação e a integração das suas lacunas, e o julgamento das eventuais infracções ao que nele se dispõe,com a
correspondente imputação de responsabilidades.
19.º - A Comissão Mista funcionará em Bissau, será constituída por seis membros, dos quais cada uma das partes designara três, e entrara
em funções nas quarenta e oito horas que se seguirem à assinatura do Protocolo de Acordo de que este instrumenta constitui anexo.
20.º - A Comissão Mista funcionara validamente desde que esteja presente ou representado um mínimo de dois membros de cada parte, e as
suas deliberações serão tomadas por unanimidade dos votos dos membros presentes e representados.
21.º - Os membros da Comissão Mista só poderão ser representados por outro membro
pertencente à mesma parte e o mandatado devera constar de carta simples assinada pelo
mandante.
22.º - Em caso de falta de unanimidade, o assunto sobre que se não fez vencimento será
sujeito aos governos de cada parte para decisão por acordo ou por arbitragem na falta de
acordo.
23.º - Na sua primeira reunião, ou em qualquer das reuniões subsequentes, a Comissão Mista regulamentara o seu funcionamento. Em caso
de necessidade, poderá ainda constituir subcomissões para assuntos determinados, em que delegue, no todo ou em parte, os respectivos
poderes, as quais se regerão pelas mesmas regras da comissão delegante.
24.º - A delegação do PAIGC regista a declaração do Governo Português de que pagara todos os vencimentos até trinta e um de Dezembro
de mil novecentos e setenta e quatro aos cidadãos da Republica da Guiné-Bissau que desmobilizar das suas forças militares ou militarizadas,
bem coma aos civis cujos serviços às forças armadas portuguesas sejam dispensados.
25.º - O Governo Português pagará ainda as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tenham direito quaisquer cidadãos da
Republica da Guiné-Bissau por motivo de serviços prestados às forças armadas portuguesas.
26.º - O Governo Português participara num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da Republica da Guiné-Bissau que prestem
serviço militar nas forças armadas portuguesas e, em especial, dos graduados das companhias e comandos africanos.
27.º - No prazo máximo de quinze dias, a contar do inicio do cessar-fogo de jure, cada uma das partes entregara à outra todos os prisioneiros
de guerra em seu poder.
28.º - O presente Anexo entra em vigor ao mesmo tempo que o Protocolo de Acordo de que faz parte integrante.
Feito e assinado em Argel, em dois exemplares em língua portuguesa, aos vinte e seis dias do mês de Agosto do ano de mil e novecentos e
setenta e quatro.
ANEXO IV
Primeiro Governo Constitucional da República da Guiné-Bissau
Lei N.° 3/73, de 24 de Setembro
Sob proposta do Conselho de Estado e em execução da vontade unânime dos seus
membros; A Assembleia Nacional Popular, reunida nesta data na Região do Boé, determina o seguinte:
Artigo 1.° - É nomeado o primeiro Conselho de Comissários de Estado da Republica da Guiné-Bissau. Ele será assim constituído:
Comissário Principal: camarada Francisco Mendes (Chico Té), membro do Secretariado
Permanente do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC;
Comissário de Estado das Forças Armadas: camarada João Bernardo Vieira (Nino), membro do Secretariado Permanente do CEL do PAIGC;
Comissário de Estado Adjunto das Forças Armadas: camarada Pedro Pires, membro do CEL do PAIGC;
Comissário de Estado da Economia e Finanças: camarada Vasco Cabral, membro do CEL do PAIGC;
Comissário de Estado da Secretaria Geral do Estado: camarada José Araújo, membro do CEL do PAIGC;
Comissário de Estado do lnterior: camarada Abdulai Barri, membro da CEL do PAIGC;
Comissário de Estado dos Negócios Estrangeiros: camarada Victor Saúde Maria, membro do CEL do PAIGC;
Comissário de Estado da Justiça: camarada Fidélis Cabral d'Almada, membro do CEL do PAIGC;
Sub-comissário de Estado do Comércio: camarada Armando Ramos,membro do Conselho Superior da Luta (CSL) do PAIGC;
280
Sub-Comissário de Estado da Educação e Cultura: camarada Manuel Saturnino, membro do CSL do PAIGC;
Sub-Comissário de Estado da Saúde e dos Assuntos Sociais: camarada Joao da Costa, membro do CSL do PAIGC;
Sub-Comissário de Estado do Desenvolvimento dos Recursos Naturais: camarada Julio Semedo;
Sub-Comissário de Estado do Contrôle Economico e Financeiro: camarada Mário Cabral;
Sub-Comissário de Estado da Juventude e Desportos: camarada Adelino Nunes Correia;
Sub-Comissário de Estado da Agricultura e Pecuaria: camarada Samba Lamine Mané;
Sub-Comissário de Estado da Estatística e Planificação: camarada Luís Sanca.
Art.° 2.º - O Conselho dos Comissários de Estado entra em funções imediatamente após a prestação do juramento a que se refere o artigo 48.º
da Constituição.
Art.° 3.º - A presente Lei entra imediatamente em vigor.
Boé, 24 de Setembro de 1973. - A Assembleia Nacional Popular.
ANEXO V
Correspondência entre Nino Vieira e Aristides Pereira Sobre o Movimento Reajustador 14 de Novembro
Ao Camarada Aristides Pereira
Secretário- Geral do PAIGC e
Presidente da República de Cabo Verde
Camarada Secretário - Geral
Perante a grave situação que se criou nos últimos tempos cujo desfecho era imprevisível capaz de provocar consequências irreparáveis pondo
em causa a nossa revolução os objectivos e a linha do pensamento do nosso Saudoso Amílcar Cabral fomos obrigados, respondendo aos
anseios do povo, no dia 14 do corrente mês de Novembro a tomar as medidas que a situação impunha.
A integridade física do ex-Presidente do Conselho de Estado Luís Cabral e de sua família encontra-se garantida pelo Conselho da Revolução.
A situação encontra-se normal em toda a extensão do território nacional.
Não houve efusão de sangue nem quaisquer actos de vigança. Todos os cidadãos caboverdianos que se encontram na República de GuinéBissau não foram vítimas de quaisquer actos. Permanecemos fiéis aos princípios e linha objectivos traçados pelo saudoso Camarada Amilcar
Cabral e expressamos a nossa firme determinação de continuar a desenvolver os laços históricos que unem os nossos dois povos.
Saudações Revolucionárias
Pelo Conselho da Revolução
JOÃO BERNARDO VIEIRA (NINO)
---------------------------------------------&----------------------------------------------------------Camarada João Bernardo Vieira (Nino)
Comandante de Brigada
Membro da Comissão Permanente e Presidente do Conselho Nacional da Guiné-Bissau do PAIGC BISSAU
Acabo receber a tua mensagem ansiosamente aguardada stop Pelo teor da mesma constato pelas tuas palavras que apesar do acto gravíssimo
cometido contra princípios e fundamentos do nosso Partido não há abandono total dos princípios de linha e objectivos traçados pelo Saudoso
Camarada Amílcar Cabral stop Quero deixar bem claro que golpe de Estado nunca foi método do PAIGC para resolução dos nossos
problemas internos possuindo o Partido de órgãos eficazes para esse efeito stop Sejam quais forem problemas políticos económicos ou
sociais que prevaleçam actualmente na Guiné, são da responsabilidade de todos os dirigentes nacionais, nada justifica acto político de
rebeldia às instituições causando mortos feridos e desaparecidos nomeadamente membros do Conselho Superior da Luta do Comité
Executivo da Luta da Comissão Permanente e substituição das instâncias do Partido por um Conselho de
Revolução estranho ao nosso Partido política e ideologicamente indefinido stop Frente a um acto que provocou desvios tão graves da nossa
linha e que revelou uma evidente falta de confiança da tua parte na minha pessoa apesar dos laços profundos que nos uniram durante tantos
anos é minha opinião que isso exige uma explicação leal e responsável da tua parte stop A tua mensagem e conteúdo dos comunicados do
Conselho da Revolução levantaram no meu espírito algumas interrogações desse Conselho da Revolução levantaram no meu espírito
algumas interrogações desse Conselho da Revolução? Em que é que o PAIGC tem entravado a afirmação da identidade nacional do povo da
Guiné? Em que é que o PAIGC tem impedido que o povo da Guiné seja senhor dos seus destinos? Que pensar Nino da fidelidade devida aos
nossos mártires como Domingos Ramos, Guerra Mendes, Chico, Pansau, Victorino, Rui, Corka, Saco Vaz, Titina, Justino Lopes, Jaime Mota
e tantos outros camaradas que morreram pelos ideais comuns do PAIGC? Devemos esquecê-los debaixo dos sete palmos de terra que cobrem
os seus corpos? Quero reafirmar-te que igualmente sinto-me responsável pela segurança fisica e moral de todos os nossos companheiros de
luta bissau-guineenses ou caboverdianos e, especialmente, daqueles que são membros da direcção do nosso Partido a quem os nossos povos
muito devem pelo seu sacrifício e dedicação stop Embora na situação criada seja válida a garantia dada pela integridade física do camarada
Luís Cabral ela é insuficiente stop Torna-se necessário garantir ainda a sua liberdade e todos os direitos inerentes à sua condição de
combatente da Pátria stop Confio que tu Nino em quem depositei tanta confiança e esperança saberás repor as coisas no seu devido lugar
para que o diálogo entre nós possa continuar stop A história não perdoará qualquer outra saída stop
Saudações Fraternais
ARISTIDES PEREIRA
Praia, 17/11/80
-------------------------------------------------&------------------------------------------------Camarada Aristides Pereira
Secretário-Geral do PAIGC
Presidente da República de Cabo Verde – Praia
Camarada Secretário-Geral
Recebemos a vossa mensagem de 16 do corrente relativo aos acontecimentos de 14 de
Novembro cujo conteúdo nos estranhou profundamente stop Informamos que a situação que se criou ultimamente no país atingiu proporções
insustentáveis que nos levaram a agir daquela forma stop É do pleno conhecimento do Camarada Secretário-Geral do Partido as atitudes do
camarada Luís Cabra na solução dos problemas do Estado e da Nação stop A atitude passiva do Camarada Secretário-Geral do Partido
perante comportamento e posições antidemocráticos do camarada Luís Cabra contribuiu largamente para deterioração da situação no país
stop As discussões acerca do Anteprojecto da nossa Constituição política revelaram todas as anomalias que essa mesma Constituição
comportava stop Os militantes e cidadãos, alguns dirigentes e responsáveis manifestaram publicamente o seu descontentamento, desacordo
quanto a certos artigos da Constituição stop Durante a reunião extraordinária da segunda Legislatura da ANP para aprovação da futura
281
Constituição de maneira mais inaceitável e antidemocrática o camarada Luís Cabra confiante do poder que detinha, influenciou certos
quadros que impediram os deputados de tomar parte activa nas dicussões da Constituição stop Todos os factos acima mencionados são bem
conhecidos do Camarada Secretário- Geral e das instâncias superiores do Partido stop As últimas reuniões da Comissão Permanente do CEL
e do próprio CEL não abordaram com seriedade a situação real que prevalecia na Guiné-Bissau stop O Camarada Secretário- Geral do
Partido, primeira figura da nossa orientação política, não teve coragem política suficiente nem agiu de acordo com a responsabilidade que
detém e que o momento exigia para pôr a discussão a situação que se deteriorava cada vez mais na Guiné-Bissau stop Reafirmamos ao
Camarada Secretário-Gera/que os acontecimentos do 14 de Novembro nada têm contra linhas e pensamentos do Saudoso Amílcar Cabra e os
fundamentos do Partido stop Prosseguiremos de maneira irrevercível a nossa marcha inicial no 14 de Novembro dentro do mesmo espírito
partidário stop Estamos prontos e abertos para discussões com o Camarada Secretário-Geral sobre os acontecimentos do 14 de Novembro e a
continuação da obra que nos legou Amílcar Cabra stop Qualquer tentativa de influenciar a nossa marcha será categoricamente rejeitada e o
Camarada Secretário-Geral poderá daí tirar as conclusões que entender stop Os elementos que participaram no processo do dia 14 de
Novembro e que constituem o Conselho da Revolução não são pessoas estranhas ao Partido stop São verdadeiros militantes, responsáveis e
dirigentes do Partido conscientes dos seus deveres cívicos e políticos stop Assim não houve nenhum desvio às linhas do Partido stop O
pensamento dos heróis nacionais como Domingos Ramos, Pansau na Isna, Titina Silá e tantos outros que tombaram pelos ideais do PAIGC
ficará sempre presente nos nossos espíritos e corações stop
Saudações Fraternais
João Bernardo Vieira (Nino)
Presidente do Conselho da Revolução
Bissau, 17 de Novembro de 1980
----------------------------------------------------&---------------------------------------------------Camarada João Vieira (Nino)
Comandante de Brigada
Presidente do CNG-Bissau
Recebi a tua segunda mensagem parecendo-me que reina grande confusão no teu espírito a respeito das responsabilidades que cabem às
diversas instâncias e aos dirigentes do PAIGC stop Devo lembrar-te que desde a independência dos nossos dois países e com a preocupação
de reafirmar a entidade nacional de cada um dos nossos povos e ainda de demonstrar o respeito pela soberania dos nossos países o PAIGC
criou dois Conselhos Nacionais, um na Guiné e outro em Cabo Verde, com amplos poderes estatutários para tomar decisões sobre todas as
questões políticas e partidárias de cada um dos países. Assim, sendo o Secretário-Geral também Presidente de Cabo Verde, evitava-se a
anomalia do Presidente de Cabo Verde estar a dar ordens ao Estado da Guiné, que tinha de funcionar de facto como um Estado
verdadeiramente soberano e independente stop Ao Secretário-Geral só ficaram poderes muito gerais e de arbitragem que nem de longe se
aproximam do Executivo stop Ora, Já há anos és tu o Presidente do CNG e assim o chefe do órgão máximo do Executivo Nacional do
Partido da Guiné, portanto com um instrumento nas mãos que devia ser o dinamizador e lugar de debate de todos os problemas nacionais,
onde deviam aparecer todas as observações e críticas
à acção do Partido e do Governo na Guiné e em particular do Camarada Luís Cabral como chefe do Estado stop O que de facto aconteceu é
que em vez de te servires deste órgão e do seu Comité Permanente para matar o que qualificas de comportamento e posições
antidemocráticas do camarada Luís Cabral bloqueastes pura e simplesmente o funcionamento destas instâncias que o Partido pôs sob a tua
responsabilidade stop O Comité Permanente praticamente nunca funcionou e o CNG só se reuniu quando não havia outra solução para
resolver problemas pontuais stop A verdade é que estes dois órgãos do partido morreram nas tuas mãos por não serem utilizados, trazendo
consequências paralisantes e extremamente nocivas ao Partido, como agora vês. Mesmo que fosse do meu conhecimento a situação que
referes na tua mensagem, quem devia levantar os problemas da Guiné nas instâncias supranacionais do Partido nesse país, vivendo nele o dia
a dia, sobre o terreno stop Pergunto agora: algum dia pusestes à discussão algum problema relativo ao comportamento e posições do
camarada Luís Cabral nas instâncias supranacionais do Partido? Algum dia me abordastes de maneira responsável, mesmo a nível pessoal,
para pôr algum problema do género? Deixo à tua consciência a resposta a estas questões. Mas mais, deves reparar que falas da acção do
Luís Cabral na solução dos problemas do Estado e da Nação e não do Partido. Ficam mais questões: ao Secretário-Gera é que cabia combater
decisões e atitudes do chefe de um Estado soberano, mesmo de um país irmão? Não seria isso um atentado à entidade nacional do povo desse
mesmo Estado? Não estaria assim impedindo que esse povo se afirmasse como senhor do seu destino? E mais, não estaria passando por cima
de todas as instâncias nacionais bissau-guineenses e faltando ao respeito pelos mais altos responsáveis da Guiné que tinham todos os
atributos através das instituições estatais e do Partido para agir contra quem quer que fosse que se estivesse a desviar da linha do PAIGC?
Não têm, pois razão de ser as ostensivas acusações que fazes à minha pessoa: os responsáveis pela situação da Guiné só podem ser os
próprios bissau-guineenses que ali tinham funções de direcção e ao mais alto nível stop Como sempre estou pronto a te ouvir na base dos
laços que há longos anos nos uniram mas deves assumir as tuas responsabilidades na íntegra stop
Saudações Fraternais
ARISTIDES PEREIRA
Presidente da República de Cabo Verde
Praia, 19/11/80
--------------------------------------------------&-----------------------------------------------------Camarada João Bernardo Vieira (Nino)
Comandante de Brigada
Presidente do CNG Bissau
Acabo de tomar conhecimento do conteúdo da reunião que tiveste com mensageiro stop
Assunto está a ser apreciado cuidadosamente espírito construtivo stop Encaro favoravelmente um encontro contigo no Saiem tête-à-tête em
delegação ou as duas coisas conforme tua conveniência. Desde estefvnos acordo princípio proporei data. Aguardo resposta.
Saudações Fraternais
ARISTIDES PEREIRA
Secretário- Geral do PAIGC
Presidente da República de Cabo Verde
---------------------------------------------------------&----------------------------------------------Urgente
Camarada Aristides Pereira
Secretário-Geral do PAIGC
No seguimento das conversações eletrônicas acerca da possibilidade do nosso encontro e considerando que o CNG e o Conselho dos
Comissários de Estado ainda não se pronunciaram sobre a posição de Cabo Verde face aos acontecimentos do 14 de Novembro o Conselho
da Revolução decide levar ao conhecimento do Camarada Secretário-Geral o seguinte:
1- Que não considera de momento oportuno o envio de uma delegação a Cabo Verde pelas razões acima exposta.
282
2- Que não obstante esse facto mantém aberto a receber o Camarada Secretário-Geral em qualquer opotunidade que julgue conveniente a sua
deslocação a Bissau.
Bissau, 12/12/80
Saudações Revolucionárias
JOÃO BERNARDO VIEIRA
Presidente do Conselho da Revolução
Presidente do CNG do PAIGC
-------------------------------------------------------&------------------------------------------------Sua Excelência
Comandante de Brigada João Bernardo Vieira
Presidente Conselho Revolução — Bissau
N 1681PR180
O conteúdo da última mensagem recebida a 12 do corrente veio coroar toda a série de
contradições entre as declarações de intenção do Conselho da Revolução e a sua acção prática manifestada através dos seus membros
assessores e representantes stop O conteúdo da dita mensagem demonstra a obstrução total e a recusa formal a qualquer espécie de diálogo
que pudesse conduzir à clarificação das nossas posições respectivas e a distenção e normalização das relações entre os nossos dois países
stop Na impossibilidade de fazer funcionar os competentes órgãos do Partido mantivemos contactos com o Presidente do Conselho da
Revolução na sua qualidade de Presidente do conselho Nacional da Guiné e membro da Comissão Permanente do CEL do PAIGC a ver se
algo haveria ama a salvar ou preservar do Partido stop Mandámos um alto emissário a Bissau e em conjunto com outros países de expressão
oficial portuguesa fizemos ir a Bissau uma missão de alto nível sempre no espírito de encontrar uma base de discussão afim de clarificar as
posições respectivas stop Parece que todas essas iniciativas foram mal interpretadas chegando-se numa manifesta inversão de papéis ao
cúmulo de praticamente convocar o Secretário-Geral a Bissau afim de ser ouvido pelo Conselho da Revolução stop Ao mesmo tempo
constatamos a persistência em pretender endossar as responsabilidades de todos os males da Guiné e Cabo Verde aos caboverdianos e até ao
seu Presidente através de toda a sorte de calúnias injúrias e insultos proferidos em Bissau e no estrangeiro por membros assessores e
representantes do Conselho da Revolução stop Dessa maneira a mantermos a mesma atitude de abertura e a boa vontade poderia levar a
conclusões erradas não só o próprio Conselho da Revolução como também a opinião pública interna e internacional stop
Sendo assim pensamos que é tempo de cada um assumir de facto as suas responsabilidades frente ao seu povo à Africa e à História stop Nem
os dirigentes de Cabo Verde nem o povo caboverdiano vão tolerar que se pretenda, através de manobras de diversão e de uma sistemática
intoxicação demagógica, atribuir-lhes as responsabilidades não só pela situação criada na Guiné, mas também pelas consequências do golpe
de Estado na vida do Partido e no projecto da unidade, que incumbem unicamente aos dirigentes e responsáveis nacionais da Guiné stop
Somos obrigados a nos demarcamos claramente de toda a confusão política e ideológica e de qualquer demagogia stop A nossa análise do
que representou o golpe de Estado para o PAIGC e para a unidade mantém-se intacta stop A parte esse aspecto partidário não nos ingerimos
nos assuntos internos da Guiné-Bissau stop Entretanto reiteramos a disponibilidade do Estado de Cabo Verde para o diálogo construtivo com
o novo regime instituído na Guiné que, na base de lealdade e do realismo, permita a continuidade de relações de cooperação fraterna na via
do progresso entre os povos caboverdianos e bissau-guineense stop
Saudações Fraternais
ARISTIDES PEREIRA
Presidente da República de Cabo Verde
Praia, 16/12/80
ANEXO IV
Abaixo assinado dos Bissau-guineenses contra a condenação à morte do presidente Rafael
Barbosa
Irmãos:
283
Acaba de ser condenado à morte por fuzilamento, pelo tribunal de guerra do PAIGC, Rafael Barbosa, o verdadeiro fundador, o militante
número um e o presidente do Comitê
Central do partido. A sentença foi pronunciada no dia 4 do corrente e o facto já está conhecido e divulgado no estrangeiro pelos meios de
comunicação, quer falados, quer
escritos, de alguns países.
Vai ser fuzilado Rafael Barbosa. Nem mais!
O combatente da liberdade que, acicatado pela sua intrépida coragem, e utilizando-se da sua invulgar capacidade de organização, de chefia e
de intuição política, levou o nosso povo a tomar consciência da sua escravidão e a recusar essa condição, pelo recurso à luta armada, este
homem, dizíamos, vai ser assassinado pelos caboverdianos do PAIGC, com a colaboração de alguns lacaios seus, nossos conterrâneos.
O homem que aliciou e mobilizou o próprio Amilcar Cabral e milhares de jovens para
a luta…vai ser bárbara e cobardemente morto. Só porque isso convém aos usurpadores do poder na nossa terra. Aquele que é, hoje por hoje,
uma das mais brilhantes figuras de África e um dos seus mais sagazes políticos vai ser fuzilado pela casta usurpadora do poder, porque
sabem que o povo o elegeu desde sempre.
Aquele que conheceu, durante tão longos anos, a tragédia da doença, a crueldade da tortura e a dilaceração do sofrimento nas masmorras da
sinistra PIDE/DGS, enquanto Luís Cabral, Fidélis Cabral, José Araújo, Fernando Fortes e companhia eram assíduos
frequentadores de “boites” e levavam farta vida de comilões e beberolas em Dakar, Conakry, Luanda, etc., pois, é esse que vai ser para
sempre calado. Só porque conhece demais os podres do PAIGC, desde vis traições até hediondos crimes e massacres contra os melhores
filhos da nossa terra. É que Rafael Barbosa em vida é um constante atentado à segurança e tranquilidade, no “podium” do poder dos
indesejáveis traidores, usurpadores e assassinos dirigentes caboverdianos do PAIGC. Convém que Rafael Barbosa seja liquidado para que
tudo possa continuar envolto em mistérios e os usurpadores possam ficar aquitados.
Pois, irmãos, a condenação de Rafael Barbosa à morte pelos caboverdianos é, a um tempo, uma provocação, sem precedentes, a todos os
filhos da Guiné e à dignidade do nosso povo, e é também o acontecimento mais desafiador que se nos deparou até hoje. Está aqui talvez o
repto mais custoso que a história caprichou em nos colocar pela frente. É um teste exigente. Urge que nos definamos: se somos, ou não, pela
Guiné; se lutamos, ou não, concretamente, pela recuperação da nossa própria dignidade. Este momento é o que podemos chamar de momento
propício. Vivemos o agora do desafio que nos lançam, dos umbrais cíclicos do tempo, os nossos imortais (Domingos Ramos, Osvaldo Vieira,
Rui Djassi, o próprio Rafael Barbosa e tantos outros que nunca aceitaram o jugo caboverdiano), para que os imitemos em coragem, em amor
à causa nacional, em espírito revolucionário, virtudes que não se compadecem com nenhuma espécie de opressão ou de totalitarismo, donde
quer que sejam chegados.
Devemos viver e celebrar o nosso orgulho de filhos da Guiné, na solidariedade com Rafael Barbosa. A tua missão histórica, tanto como filho
da Guiné, define-se na tua atitude frente a este evento, na justa medida da tua posição pública concreta, ou não, em relação ao “caso Rafael
Barbosa”. Não há outra alternativa. Não há meios termos. Não há calculismo. Não há condições a pôr. Não penses demasiado no teu futuro,
na tua segurança pessoal, no teu curso, na tua bolsa. Que é isso tudo, em relação ao contributo que, pela tua coragem e decisão,tu podes dar
para salvar uma vida, sobretudo quando essa vida é a de Rafael Barbosa, com tudo quanto ele significou e continua a significar para ti e para
a Guiné?
Em que situação estaríamos ainda hoje, se Rafael Barbosa, Amilcar Cabral, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Rui Djassi e tantos outros
combatentes, vivos e mortos, pensassem mais em si próprios do que na causa?
Não te esqueças de que, no dealbar do amanhã risonho em que acreditamos, todos nós, sem excepção, seremos julgados sobre o amor,
fidelidade para com a Guiné dos bissau-guineenses,vale dizer, para com a Guiné do “pai” Rafael.
Assina com coragem e orgulho, porque a coragem da atitude que se decide incondicionalmente pela defesa da justiça, da verdade, da vida e
da libertação, essa coragem, tu sabes, define os homens, assinala os verdadeiros revolucionários.
Fonte: DO PAIGC AO PAICV,1981.
284
Lista dos Informantes
NOME
LUGAR
ETNIA
DE
NASCIMENTO
QUANDO INGRESSOU
NA
LUTA/OU QUANDO
SE AFILIOU
AO PAIGC
FUNÇÃO ATUAL
OBSERVAÇÃO
Adriano Gomes Bissau(bairro
Ferreira
tchon de pepel)
Papel
Ingressou na luta
Governador
em 1972. Mas é militante do de Região de
PAIGC desde 1968.
Bafatá
Viajou para Portugal em
1968 para cursar eletrotecnia e máquinas
Ana Maria
Gomes Soares
Cubucaré- Sul
do País
Manjaco
Desde adolescente
Aposentada do
Partido
Como a luta armada deu inicio no
sul do país, nós fomos parte das
mobilizações efetuadas nesta região.
Desepenhava função de comissária
na luta de libertação nacional.
Formou-se em Kiev, ex- URSS.
Foi responsavel de saúde na zona
norte durante a luta, cargo que deixou
de exercer em 1969 depois do seminário
dos quadros do PAIGC em Conacry,
tendo sido nomeada comissária política
no Setor de Sara - Norte do país.
Augusto Olivaz
Bula- Região
de Cacheu
Mancanha
Secretário Permanente
do PAIGC
É formado em Psicologia Pela Universidade
de Rio Grande do Norte em 1989
Carlos Correia
Bissau
Papel
Carmem Pereira Bissau
Francisca
Lucas Pereira
Ilhas
das
Galinhas(setor
de Bolama
Bijagós)
Elisée Turpin
Bissau
Gã Jola- Sul
do país
Satú
Camará Pinto
N'Tuhana –
Sector de
Buba-Região
de Quinara.
Ingressou na
luta desde 1959
Ingressou na luta em 1962
Papel
Pepel de
pai francês
José Lopes
Militante do PAIGC desde
1974
Membro do
Bureau político
Ingressou na
luta desde 1959
É Militante do
PAIGC desde a sua
criação oficial
em 1956.
bijagó
Beafada
Membro do PAIGC
Estou no Licéu de Conacri, país vizinho.
Com a independencia de Guiné Conacri
em 1958, muitos bissau-guineenses
refugiaram por lá, e daí começou a se
organizar algumas pessoas para libertação
da Guiné-Bissau. Com a chegada
de Amilcar cabral em 1960 em
Conacri, a mobilização se intensificou
e se desencanseou a luta de libertação
nacional, tendo autorizado a base militar
do PAIGC em Conacri. Foi membro
fundador de UDEMU em 1961 em
Conacri.
Aposentado
do PAIGC
Membro do PAIGC
e animador cultural
Ingressou na fileira
de luta em 1962
Engenheiro Agronomo, formado na
antiga RDA.Membro de Bureau Político
na
Luta de libertação
Carmem Pereira tornou-se uma líder no
movimento político, e tornando-se uma das
pessoas chaves na luta de libertação
nacional. Em 1984 é eleita para a
presidência da Assembleia Nacional da
Guiné-Bissau cargo que deixou em 1989
para ser membro do Conselho de Estado.
Como o presidente da Assembleia
Nacional, assumiu o cargo de Presidente
da Guiné-Bissau no período de 14 a 16 de
maio de 1984 quando uma nova
constituição foi introduzida. Pereira atuou
como membro do Conselho de Estado de
1989 a 1990, e foi ministra de Estado para
os Assuntos Sociais, nos anos de 1990 e
1991. Por último foi Vice-PrimeiraMinistra da Guiné-Bissau até 1992.
2º Vice presidente
do PAIGC
Um dos fundadores do PAIGC. Foi
empregado da Companhia Francesa –
Sociedade Comercial Oeste Africana
(de 1942 a 1956). De 1958 a 1964,
Foi empregado da Casa António Silva
Gouveia.
Foi Militante do Partido Comunista
Português na clandestinidade em Bissau.
Era animador cultural nas
frentes de luta de libertação nacional
Em 1965, frequentou um curso de
enfermagem, como Enfermeira Auxiliar
para a frente de combate, na ex-União
Soviética, depois do qual foi colocada na Zona Leste
como Responsável de Saúde do Leste.
Em 1967, foi indigitada Responsável
de Saúde da Frente Leste em Koundará
(República da Guiné-Conakry).
(continua napróxima página)
285
Lista dos Informantes da Pesquisa
NOME
LUGAR
DE
ETNIA
NASCIMENT
O
QUANDO
INGRESSOU
NA
LUTA/OU
QUANDO
SE AFILIOU
AO PAIGC
FUNÇÃO ATUAL
OBSERVAÇÃO
Em 1974, após a proclamação
da Independência, foi colocada no Hospital
de Bafatá, como Responsável. Mais
tarde desempenhou as funções de
Presidente do Sector de Bafatá
durante 5 anos
Manuel
Saturnino
Costa
Manuel Maria
Monteiro
Santos
Bolama
Bijagós
Pepel
Ingressou na
fileira de PAICG
em 1959
Ex Comandante de frente sul na luta de libertação
nacional
caboverdiano
Cabo Verde
Ingressou no
PAIGC em 1962
em Lisboa
Teodora
Inácia Gomes
1º VicePresidente do
PAIGC
Formou-se em engenharia em Lisboa.
Comandante(na reserva) de Artilharia do PAIGC.
Em 1978 a 1979 desempenhoua função de
Ministro de Transportes.
Embaixador dre
Guiné-Bissau em
Angola
Coordenadora
Também é Deputada do PAIGC e Membro do
de Secção
Conselho do Estado.
de Assuntos Sociais
e dos Combatentes
da Liberdade da
Pátria
286
ANEXO VI – Quadro Analítico de Guiné-Bissau 1886 a 2012
 Situação Econômica fragilizada;
 Descontentamento nas FARP;
 Regime regressivo de Luis Cabral;
 Revisão Constitucional.
1886
1936
1900
Expedição
contra os
papeis da ilha
de Bissau
Primeiras
expedições
contra os
balantas
1952
Término da
campanha de
pacificação nas
ilhas de bijagós
Ano que se registra a completa
ocupação portuguesa no território
da Guiné Bissau

Revisão da
Constituição
Inicio da
democratização
2010
Tentativa de Golpe
de Estado
Assassinatos políticos
Marco das
Resistências
secundárias
Amilcar Cabral
nomeado
engenheiro
agrônomo na Guiné
Bissau


Adesão à UEMOA e ao franco CFA (97);
 Questão de Casamansa;
 Situação econômica;
 Impasse político.
1994
1991
1ª eleições: 13
partidos
concorreram
Acordo de
Abuja
1963
Massacre de
Pindjiguiti
Início da
luta
armada
Nascimento
do PAIGC
Criação
da OUA
1964
1973
1980
Congresso
de Cassacá
Assassinato de
Amilcar Cabral
Criação das
FARPS
Proclamação da
independência
I República –
nascimento do
novo estado
Golpe de Estado:
movimento
reajustador
(gerador da II
República)
Ruptura unidade
Guiné Bissau - Cabo
Verde
Desrespeito pelo Constituição;
Declínio das instituições;
 Agravamento da crise econômica e
social;
1999
2000
Eleições:
inicio do
mandato
de Kumba
Yala
Substituiçã
o da OUA
pela UA
1998
Inicio do
conflito
1959
2012
Morte de Malam Bacai Sanhá
Golpe de Estado
2003
Golpe de
Estado:
militares
tomam o
poder
2004
2005
2009
Eleições
Legislativas:
Carlos Gomes a
1º Ministro
Eleições
Presidenciais:
“Nino” Vieira
Assassinato de
Nino Vieira
Eleições
Presidenciais:
Malam Bacai Sanhá
Download

Guiné Bissau - Programa de Pós-graduação em ciências sociais da