Literatura e formação: um encontro que pode produzir outras experimentações Janine Bochi do Amaral (Universidade Federal de Santa Maria) Apoio financeiro: CAPES, bolsa de doutorado As reflexões que apresento surgem de uma pesquisa em que dialogo com a arte da literatura e a formação de professores. Penso que a experiência da leitura literária pode contribuir para a formação do professor, uma vez que a literatura, como arte, é um subsídio indispensável para o professor aprender-criar-ensinar, contribuindo, assim, para a sua formação e o seu fazer pedagógico. Pensar uma formação do professor, onde a literatura esteja presente significa pensar outros caminhos formativos. Esta pesquisa surgiu a partir de um problema que há muito tempo me desassossega: como a experiência da leitura literária, que perpassa a formação do indivíduo, pode contribuir para a sua formação? Penso que há a necessidade de relacionarmos leitura e educação como um espaço/tempo capaz de produzir conhecimento. Concluo mostrando, a partir de uma pesquisa bibliográfica, que a leitura de crônicas pode ser um desses lugares possíveis onde o professor, além de buscar um repertório literário e ser um apreciador de literatura, contribua para despertar em seus alunos o gosto pela leitura. Palavras-chave: Formação de professores, literatura, crônica. Justificando as primeiras desconfianças Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver. -Bertold Brech- Nas andanças acadêmicas e literárias, que fazem parte da formação de todo professor, encontrei muitas coisas: coisas velhas, coisas novas, coisas curiosas, coisas inovadoras. Posso afirmar, então que, enquanto aluna e professora, eu recorri a diferentes lugares formativos para melhor lidar com minhas angústias e dúvidas profissionais. Um desses lugares que busquei, e que me identifiquei, foi o campo das artes. E, assim, encontrei subsídios para aprender, criar e ensinar, contribuindo, desta forma para minha formação e para meu fazer pedagógico. Quando apenas copiamos modelos de formação importados deixamos de criar e corremos o sério risco de fracassar em nossos objetivos educacionais. Assim, será que avançamos, efetivamente, na nossa caminhada pedagógica? Paulo Freire (2006) dizia que o conhecimento não é um fim de semana numa praia tropical. Ao contrário, o conhecimento e sua construção exigem dedicação e persistência. Andar por outros lugares é essencial para a formação do professor comprometido com seu fazer. Os caminhos que percorremos enquanto educadores são muitas vezes árduos, e infelizmente, por isso, acabamos nos desiludindo. E nessas desilusões acabamos por acreditar que não há muito que buscar fora da educação. Acabamos reproduzindo teorias de autores de outros países que, em muitas vezes, quase nada tem a ver com a nossa realidade. Inúmeras vezes eu busquei em outras prateleiras de livros, que não as prateleiras da educação, leituras que me auxiliassem a responder meus questionamentos e desassossegos profissionais. E foi, principalmente na leitura de livros de literatura, através das crônicas e das autobiografias, que vivenciei experiências de leituras formativas. O escritor Renato Janine Ribeiro (2003) nos chama a atenção para a conhecida metáfora do grande cineasta italiano Federico Fellini, onde perguntado, certa vez, sobre a inspiração para seus filmes ele respondeu que para imaginar seus filmes, não via filmes. Fontes externas ao seu mundo imediato serviam-lhe de inspiração. Talvez minha necessidade de buscar na literatura, um lugar de formação docente seja fazer como Fellini. E desde já justifico que para pesquisar a formação docente podemos nos apropriar de outros referenciais, além dos tradicionalmente utilizados nas pesquisas sobre formação. Acredito que muitas vezes a fragilidade dos cursos de formação dos professores e a delimitação ou especificidade dos cursos de pós-graduação contribuem para gerar o caos que vivenciamos na formação dos professores. Nietzsche falava em “especialistas em rachar fios de cabelo ao meio”. Parece ser um pouco o que nos tornamos, infelizmente. Somos esses especialistas, quando apenas repetimos teorias importadas e deixamos de criar. Esta pesquisa surgiu a partir de um problema que há muito tempo me desassossega: como a experiência da leitura literária, que perpassa a formação do indivíduo, pode contribuir para a sua formação? Venho pesquisando na busca de aproximar-me desta resposta. E, de repente, vejo que outras questões se apresentam no caminho da pesquisa: como a subjetividade de leitura é construída? O professor não é um artista que busca formas inovadoras de aprender e ensinar? Ou ele é apenas um copiador, que reproduz conhecimentos já produzidos? Como a arte, especialmente a arte da literatura, pode estar presente na sala de aula? Como fazer da arte não apenas uma ferramenta ou um meio, mas, sim, um lugar de produção de conhecimento? Como o professor se constitui a partir de seus repertórios de leitura? O início da pesquisa Sem os livros, eu teria me desesperado há muito tempo. -Arthur Schopenhauer- A partir das questões acima colocadas, parti em busca de subsídios que me ajudassem contar um pouco a história da literatura. Nesta busca, encontrei algumas curiosidades. A literatura nasceu na Grécia Antiga e chamava-se poesia. Sua função primeira era divertir a nobreza, entre uma guerra e outra. Empregada como instrumento, era a língua dos poetas, significava o desprezo pela fala popular. Era intelectual e direta. Já na escola moderna era uma disciplina obrigatória. Somente muito tempo depois é que vamos utilizar a nomenclatura atual, no contexto que conhecemos hoje. Atualmente a literatura é institucionalizada e assume um caráter linguístico. A literatura está associada à leitura, pois, através da leitura de um texto literário, por exemplo, podemos acionar nossa fantasia, suscitar o posicionamento intelectual (ZIBERMAN E SILVA, 1990). Sabemos que a literatura permite a expansão de fronteiras já conhecidas. E mesmo quando realizada individualmente, é capaz de aproximar as pessoas, uma vez que é considerada uma atividade social. Ao lermos, socializamos experiências, discutimos preferências, checamos conclusões. A literatura, portanto, estimula diálogos, promove o compartilhar experiências, aguça os confrontos de ideias. Podemos perceber que a leitura proporciona, também, o desenvolvimento da sensibilidade, além da já reconhecida participação na produção do conhecimento. A educação pela arte vai além, uma vez que é capaz de educar sentimentos. Ao ler um livro sobre a vida das mulheres no Paquistão, por exemplo, podemos nos transportar para aquela realidade. Viver aquelas vidas que não são as nossas e daquela experiência vivida, através da leitura, sairmos transformados, modificados, sem nunca, fisicamente, termos estado lá. Gabriel Perissé (2006, 105) diz que “todo leitor rouba, por um lapso de tempo, do livro que lê, a vida que esse mesmo livro recuperou ao sabor de uma leitura. É uma posse ilusória daquela vida, daquela força verbal. E dá a essa vida uma serventia, uma utilização”. O autor acima citado, afirma que a palavra é criadora de mundos e esse mundo é o mundo humano, incluindo-se nele tudo aquilo que somos: humanos, desumanos, contraditórios, inacabados. Entendemos que o mundo é compreendido pela linguagem. Assim, Eduardo Galeano (1991, 16) no seu Livro dos Abraços diz ainda que “talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é”. Perissé (2006) destaca a importância de interpretarmos um texto - seja ele qual for: literário ou não, obras de arte, cinema... - como um caminho de interpretação da vida humana. E esse poder formativo que lhe conferimos é de interesse para a educação. A leitura vai além de decifrar um texto. Possibilita enxergar o não-escrito. Lembro e trago para compartilhar aqui, uma reflexão do escritor espanhol Jorge Larrosa (2003) quando ele nos diz que talvez o mais importante não seja o que um texto nos diz, mas o que o texto nos leva a pensar a partir da sua leitura. Nas palavras de Perissé (2006, 64): “ler é sonhar acordado (com direito a alguns pesadelos). É acordar do falso sonho dos imediatistas, dos calculistas, dos que exaltam o critério custo-benefício e tratam tudo como uma questão de „investimento‟ e „retorno‟”. Um livro é sempre novo, a leitura é sempre inédita. A cada nova leitura, novas descobertas. A leitura desencadeia - abre nossos cadeados - nos libertando. A leitura e a escrita possibilitam que nos sintamos mais vivos, mais ativos. Porém, a leitura e os livros sempre foram uma ameaça àqueles que pretendem manter uma situação de ordem vigente, onde há uma relação de poder onde muitos de submetem a poucos. Percebe-se, através de achados sobre O livro e a leitura o Brasil (EL FAR, 2006), que desde o início da história do nosso país havia censura na importação e posteriormente na impressão de livros “por temer uma possível propagação de ideias políticas progressistas e revolucionárias” (idem, 11-12). Avançando um pouco no tempo, mas não o pensamento, temos na Ditadura Militar outro momento onde a censura se fez bastante presente, pois era preciso mascarar os fatos e tentar impossibilitar a população de refletir sobre a realidade que estávamos vivenciando. A situação das mulheres caminhava no mesmo descompasso: raras eram as que sabiam ler e escrever e quando isso era permitido, havia quase sempre cunho religioso por detrás do fato. Muitas aprendiam a ler em função da religiosidade, para ler a Bíblia e os textos sagrados. Os livros que eram proibidos às mulheres até a metade do século XX mais enfaticamente. A justificativa para o referido fato era que de a mulher possuía personalidade frágil e, portanto, poderia se deixar influenciar por leituras destinadas exclusivamente aos homens. Quando D. João VI veio para o Brasil com sua corte, trouxe muitos livros, pois “como se sabe, na história mundial grandiosos acervos de livros ajudavam a conferir prestígio e poder aos governantes” (EL FAR, 2006, 17), além de fundar a “Imprensa Régia”. As impressões eram restritas e o conteúdo era fiscalizado, havendo censura no que poderia ser publicado. A escrita, com o advento da impressão em larga escala, é apreciada pelos “letrados”, fazendo com que os trabalhadores analfabetos continuassem a tradição oral. Contudo, segundo EL FAR (2006), A palavra pode ter apaziguado a intensidade do universo da oralidade, mas em nenhum momento silenciou suas vozes. Até hoje, a leitura de texto, a declamação de poemas ou a curiosidade para conhecer o final de uma boa história continuam a seduzir uma platéia ocasional de ouvintes. Afinal, como dizia Machado de Assis em seu romance Dom Casmurro, de 1899, “também se goza por influição dos lábios que narram”. (Grifos da autora, 31) Os poucos livros existentes eram lidos e relidos. Geralmente a leitura era realizada em voz alta por aqueles trabalhadores menos favorecidos, mas que sabiam ler, para os demais, que não tinham acesso à leitura. Aqueles que podiam adquirir livros liam silenciosa e individualmente. Este fato foi inclusive registrado em inúmeras obras de arte, como por exemplo, na pintura. No decorrer da nossa história, vimos que inúmeras editoras surgiram e muitas se mantêm até os dias de hoje e também que os custos com o texto impresso foi sendo barateado. Acontecimentos esses que possibilitaram o acesso a leitura a um número cada vez maior de leitores. A inserção da fotografia nos livros no início do século XX foi responsável por tornar mais fácil a leitura, pois através do fôlego que a imagem proporcionava a leitura se tornava mais prazerosa. Podemos afirmar que os dilemas em relação à leitura e aos livros sempre existiram. Se antigamente eram ocasionados pela censura, falta e acesso e custos elevados, hoje podemos considerar os gastos com outros meio de comunicação, como celular, internet e televisão por assinatura. De qualquer forma, continuamos a viver um dilema: os livros são caros porque há pouco consumo e há pouco consumo porque são caros. Como fazer para mudar essa situação? Não há uma resposta definitiva à esta pergunta. Ainda hoje a imensa maioria dos municípios do nosso país não tem livrarias e as bibliotecas públicas estão visivelmente sucateadas. Sabe-se também que, ao mesmo tempo em que há incentivo à leitura nas escolas, quando o aluno termina sua escolarização deixa o contato com os livros (EL FAR, 2006). Como proporcionar o gosto pela leitura na e além da escola? Esta questão parece ser antiga e neste trabalho, longe de ser uma prescrição, proponho uma alternativa. Ainda segundo EL FAR (2006, 65) Cada leitor possui uma maneira própria e subjetiva de colocar em prática o exercício da leitura. Mesmo podendo falar de hábitos e preferências comuns a uma época ou uma sociedade, cada pessoa, no sentido mais individual do termo, possui sua própria história da leitura. A relação com os livro, as primeiras descobertas, a possível formação de uma biblioteca, os autores e as edições prediletas, os locais de leitura e até meso a postura corporal para ler são alguns aspectos que podem aparecer na trajetória de muitos leitores. Porém sempre com significados e sentido particulares. A partir destes referenciais de literatura que trago aparece-me outras questões: por que a leitura literária não é valorizada na academia? Por que apenas os professores da disciplina de literatura falam e trabalham com literatura? Como os professores de outras áreas podem influenciar seus alunos a serem leitores? Há relevância da leitura, e especificamente, da leitura literária na formação docente? Como fazer para que professores e alunos gostem de ler? No momento me deterei apenas na última questão. Pensando na importância de gostar de ler, porque uma leitura para ser significativa tem que ser prazerosa é que trago neste texto algumas pistas sobre como despertar o gosto pela leitura. Despertar o gosto pela leitura... A mim, me interessa o que normalmente ninguém valoriza: escrevo tateando o avesso das coisas, de onde nos vem o medo, que impulsiona tanto quanto o desejo. -Lya Luft Em primeiro lugar, muito falamos e escutamos, enquanto professores que nossos alunos não lêem. Concordo parcialmente. A maioria dos alunos que conhecemos leem sim. Apenas não leem aquilo que o professor quer que eles leiam. Em segundo lugar: e quanto a nós, professores? Será que somos realmente leitores? Ou apenas nossos alunos não leem? Parece-me que à medida que as crianças vão crescendo, vão mudando os seus temas de interesse pela leitura. E os meios de ler também. Nem sempre o interesse será o livro impresso. Atualmente o livro virtual faz um grande sucesso entre a gurizada. Os adolescentes não leem poesias? Mas não são eles verdadeiros poetas? Quem sabe não somos nós que deixamos de escutar o que eles nos dizem, o que eles querem e têm a dizer? E quanto à escrita? Crianças e adolescentes são exímios escritores. Passam dias inteiros escrevendo, se deixarmos. Mas não escrevem importantes tratados. Escrevem para se comunicar com seus amigos, virtualmente. Escrevem também em seus diários, agendas, blogs, orkuts, messenger. Não escrevem nem leem apenas aquilo que queremos, mas escrevem e leem. E isso pode ser um começo. Então, pelo que observo, reafirmo: crianças e adolescentes gostam de ler. Cabe a cada um de nós, professores, saber valorizar a leitura das literaturas escolhidas se quisermos que algum dia eles tenham interesse em ler aquilo que julgamos ser “preciso” e “importante” que eles leiam. Geralmente antes de entrarmos na escola temos um grande interesse por aquele lugar. Desejamos ir para a escola. Nas brincadeiras de infância, fazemos de conta que lemos e escrevemos, mesmo antes da alfabetização. Folheamos uma revista ou um livro e somos capazes de inventar histórias. Pegamos um lápis e rabiscamos o papel. O que acontece então na escola? Exigimos dos alunos uma série de leituras que não tem nada a ver com a “vontade”, nem a realidade deles. Como será possível, assim, despertar o tal “gosto”? Lembramos que os livros que são “exigidos” para leitura são, muitas vezes, de autores consagrados. Leituras importantes, obviamente, porém pesadas demais para os alunos que geralmente nessa fase da vida tem outros interesses. Quem consegue manter o interesse por uma leitura que tem que ser feita consultando um dicionário? Uma leitura que muitas vezes não flui acaba não despertando o interesse do leitor. É preciso ter maturidade e fôlego para ler assim. Nossos alunos da educação básica preferem muito mais escutar música e assistir filmes que ler as leituras que são exigidas na escola. A leitura passa, então, a ser massacrante. Quem sabe se esse “gostar” de ler for despertado na escola, eles, os aluno não irão, por si mesmos, procurar posteriormente outras leituras? Mas como fazer com que isso aconteça? Desconfio de algumas coisas. Uma de minhas desconfianças é que a crônica pode ser uma excelente alternativa para a iniciação a uma leitura prazerosa. Lendo o prefácio de Antonio Candido ao livro Para gostar de ler: Crônicas, muitas coisas, ideias, situações, me ocorreram. Uma delas é sobre a importância desse gênero literário, que como diz Candido (1984), é tão brasileiro. Esse estilo de dizer as coisas, como diz o próprio autor citado: é a vida ao Rés-do-chão. Penso que nas escolas a leitura desse gênero literário deveria ser muito mais incentivada. Uma leitura que é gostosa, que se faz rapidamente, que não é rebuscada, que fala do dia-a-dia e da vida das pessoas. Um gênero que o leitor facilmente se identifica, possibilitando, assim, a realização de uma leitura significativa, uma vez que o texto dialoga com ele. Um texto que diz e que é escutado. A crônica, mesmo que tenha nascido para ser transitória, já que nasceu praticamente nos jornais, é ao mesmo tempo um texto que pode ter vida longa. A crônica está perto das pessoas. Não apenas expõe e argumenta, mas é uma conversa, onde há um interlocutor. E nessa conversa há poesia. Ao mesmo tempo em que pode evidenciar acontecimentos sociais, ela deixa o cotidiano mais leve. Como diz Candido (1984, 5), A crônica não é um „gênero maior‟. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. „Graças a Deus‟,- seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. Assim, concordo que esse gênero aproxima o leitor à leitura. Como realizar, então, efetivamente, uma aproximação dos alunos com a leitura? Nas nossas escolas, onde temos a intenção de que nossos alunos leiam, que gostem de ler, esse pode ser um excelente começo. Acredito que a partir da leitura de crônicas os alunos possam ter interesse em buscar outras leituras. E não que outras leituras sejam maiores ou melhores. Apenas serão leituras que exigirão mais fôlego dos alunos, mais paciência, mais tempo, mais maturidade. Lendo a coluna da escritora Lya Luft, na revista Veja encontro suas palavras exatamente neste sentido. Luft (2009) fala que os livros clássicos não despertam nos jovens essa vontade de ler, pois, entre outras coisas, é preciso consultar um dicionário o tempo todo. Ela sugere a crônica como um ponto de partida para que os jovens comecem a ler. Nas palavras da escritora: Falo da impropriedade, que talvez exista até hoje (e que não era culpa das escolas, mas dos programas educacionais), de fazer adolescentes ler os clássicos brasileiros, os românticos, seja o que for, quando eles ainda nem têm o prazer da leitura. Qualquer menino ou menina se assusta ao ler Macedo, Alencar e outros: vai achar enfadonho, não vai entender, não vai se entusiasmar. Para mim esses programas cometem um pecado básico e fatal, afastando da leitura estudantes ainda imaturos (LUFT, 2009). Sobre a importância de introduzir os estudantes ao mundo da leitura de crônicas, como uma maneira de despertar o gosto pela leitura em geral, Candido (1984, 11) diz ainda que: É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça própria da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas. A crônica, assim como acontece em outros gêneros literários, tem uma certa intencionalidade: despertar no leitor sentimentos, fazer com que ele possa refletir sobre o seu cotidiano, a sua vida, pensar em seus sonhos, fazer suas projeções, são algumas delas. Como o professor poderá ajudar seu aluno a ser tornar um leitor? Primeiramente, tornando-se ele próprio um leitor. Por onde começar a leitura? Ele quem decide, ou se ainda não sabe, também sugiro a leitura de crônicas. Para o antropólogo Roberto DaMatta (2009) a inspiração para a escrita de crônicas veio através da leitura da obra do escritor Arthur Schopenhauer . DaMatta (2009, 19) nos convida a uma reflexão quando questiona: “o que faz a crônica senão tentar tirar o leitor da caótica indiferença de um cotidiano fragmentado por todo tipo de injustiça, imoralidade e incúria governamental, fazendo-o olhar para si mesmo com mais caridade, paciência e esperança?”. Segundo Jorge de Sá (1990, 57), em todos os cronistas há um certo lirismo, pois é através dos seus estados de alma que eles observam o que se passa nas ruas. Entretanto, já vimos que a aparência de leveza da crônica revela, sempre o acontecimento captado sob a forma de uma reflexão, mesmo quando se trata de alguma coisa afetivamente ligada só ao escritor. O professor de quem falamos não é apenas o professor que está na escola de educação básica. O professor da educação superior, que é formador de outros professores, também deve ser um leitor. O professor tem um grande trabalho, que é ajudar nesse “despertar” do aluno para a leitura. E para isso, ele mesmo deve ser leitor, proporcionando ao aluno ir além daquilo que ele sabe ou deve vir a conhecer. Um aluno que seja capaz dele próprio também ser inventor. Para finalizar Como todo se humano, o escritor não faz o que quer, mas o que pode. A diferença entre querer e poder inventa o abismo que permite aproximar ou tornar distante o que ocorre conosco e, por projeção, com os outros. - Roberto DaMatta - A literatura é apenas um desses lugares, que precisa ser visitado, onde não há um caminho pronto, apenas trilhas. Por isso, não quero fazer, de maneira alguma, prescrições. Sabemos que não há uma fórmula, nem um roteiro pré-estabelecido. Penso, conforme já expus acima, que a leitura de crônicas pode ser um dos ingredientes importantes para a formação do professor enquanto leitor e consequentemente, de seus alunos. Acredito que somos capazes de ir além dos textos. Podemos misturar textos, contextos, leitura de mundo. E assim também, escrever nossos próprios textos. Outro excelente motivo para investir na literatura. Gostaria de trazer para esse texto uma citação do escritor André Gorz. A extensão do escrito vale a pena, quando pensamos que enquanto professores, deveríamos ser também, além de estudantes, escritores. No seu belíssimo Carta a D.: história de um amor, ele nos diz: O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausenta-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. É apenas num segundo momento que se põe a questão do „tema‟ a ser tratado. O tema é a condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa qual o tema é melhor, desde que ele permita escrever. Durante seis anos, até 1946, eu mantive um diário. Escrevia para conjurar a angústia. Não importava o quê; eu era um escrevedor. O escrevedor só se tornará um escritor quando a necessidade de escrever for sustentada por um tema que permita e exija que essa necessidade se organize num projeto. Somos milhões a passar a vida escrevendo, sem nunca terminar nem publicar nada. (GORZ, 2008, 28-29. Grifos do autor) O escritor Moacyr Scliar (1996) narra em seu livro de crônicas, Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar, uma história muito interessante sobre a vida de escritor. Scliar nos conta que um vizinho que passava em frente a sua casa, enquanto ele lia, lhe indagou: Descansando vizinho? Ao que ele retruca: Não vizinho, trabalhando. Mais tarde o mesmo vizinho volta e vê o escritor plantando algumas flores em seu jardim. O vizinho novamente indaga: Trabalhando vizinho? E o escritor lhe responde: descansando vizinho... Trouxe essa história para ajudar contar o quanto a produção da leitura e da escrita ainda não é valorizada. O trabalho do professor, que também é de leitura e escrita, passa muitas vezes despercebido. Como se a leitura fosse apenas uma tarefa de lazer. Uma tarefa despretensiosa e muitas vezes considerada sem utilidade. Acredito que não podemos ser professores sem sermos estudantes e escritores. A tarefa de ler e escrever vai além de ensinar conhecimentos que estão prontos. Quem lê imagina, interpreta, reorganiza idéias. A leitura e a literatura permitem entre outras coisas: pensar, refletir, interpretar, sonhar, aprender, contar, ensinar. A escola como instituição que educa, e que pretende educar para os constantes desafios que se impõem – e que são recheados de incertezas - deve manter presente que ler e escrever é uma tarefa para toda escolarização, para toda a vida. A leitura literária é feita geralmente em silêncio, mas imbricada por diversas vozes, por diversos sons e ruídos. A leitura nos permite mergulhar no texto, sem nos molhar. Sonhar, sem precisar dormir. Viajar, sem passaporte. A leitura é capaz de nos fazer transcender, sem que seja necessário sair do lugar. A leitura nos proporciona mudanças, sem fazer as malas. Conhecer, sem nunca ter estado lá. Amar, sem se machucar. Chorar, sem sofrer. Podemos sentir frio, mesmo quando os termômetros marcam 38º C, ou ao contrário, sentir calor abaixo de zero. E depois da leitura, quando fechamos o livro, podemos voltar transformados para a vida em que levamos que pode ser mais ou menos dura que a contada na literatura. Quem é o narrador da história que lemos, senão nossa própria voz? Que personagens somos nós na história lida? Aprendemos sobre lugares, pessoas, sabores, sentimentos. E quem vai dizer que isso que aprendemos não é “verdadeiro” - será tudo uma ficção? E por falar em ficção Ivete Walty (1986) nos lembra que ficção é criação. E em nossa sociedade, a criação é inútil e perigosa, pois ameaça a ordem instituída, já que vivemos em um lugar onde quem tem respostas é privilegiado e quem tem as perguntas é marginalizado. A mesma autora acima referida nos fala que: Pode-se considerar todo e qualquer texto produzido pela sociedade um texto digno de ser lido, pois assim se lê o texto e a sociedade que o produziu. É importante ressaltar que não falo apenas do texto feito com imagens, com sons, com cores; o texto da arte, o texto da ciência, o texto da arquitetura, do urbanismo etc., etc., etc. Lendo sempre, poderá se surpreender ao perceber quanta ficção esconde a chamada realidade e como, através da ficção, pode-se desvendar o real enquanto processo, fruto das relações dos homens entre si e com a natureza (WALTY, 1986, 50). Assim tomada, a literatura é universalizada e universalizadora. Quando olhamos, vemos e reparamos: somos outro(s), somos maiores, fomos (trans)formados. Ficamos suspensos, nossos olhos se agitam, nosso corpo se aquieta, nosso coração pulsa. Cada palavra esperando para ser lida, decifrada. Cada parágrafo conectando pensamentos, numa mistura de ruptura e continuidades. E assim como na leitura literária, chego ao final deste texto com aquela sensação de: e agora? Para concluir quero convidar ao leitor a continuar as reflexões que iniciei neste texto. E provocar, mais uma vez, com a seguinte colocação: Somos seres singulares, inacabados e em construção permanente, passíveis de infinitas interpretações, assim como a literatura. A literatura, então, como outro repertório formativo é capaz de ajudar a nos constituir em um profissional diferente, pois através da leitura de obras literárias somos também capazes de educar nossos sentimentos, nos tornando mais sensíveis a outras questões que até então seriam imperceptíveis. . Bibliografia CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. Prefácio. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. (et al). Para gostar de ler: crônicas. Volume 5. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1984. DAMATTA, Roberto. Crônicas da vida e da morte. Rio de janeiro: Rocco, 2009. EL FAR, Alessandra. O livro e a leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. FREIRE, Paulo. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. 16ª ed. São Paulo: Olho d‟Água, 2006. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1991. GORZ, André. Carta a D.: história de um amor. São Paulo: Annablume: Cosac Naify, 2008. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed. Belo Horizonte: Autentica, 2003. LUFT, Lya. Brasileiro não gosta de ler? Revista Veja. Edição 2125. 12 de agosto de 2009. LUFT, Lya. Em outras palavras. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. SÁ, Jorge de. A crônica. 4ª ed. São Paulo. Editora Ática, 1984. PERISSÉ, Gabriel. Literatura & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. RIBEIRO, Renato Janine. A universidade e a vida atual: Fellini não via filmes. Rio de Janeiro: Campus, 2003. SCLIAR, Moacyr. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM editores, 1996. WALTY, Ivete. O que é ficção. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. ZIBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura e Pedagogia: ponto & contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.