PALEONTOLOGIA E PORTUGAL
A Paleontologia está intimamente ligada à História da Vida e da Terra - tanto no
âmbito da Biologia e Evolução, como no da Geologia.
São profundas as suas repercussões no imaginário do público em geral
(cujo interesse cresceu espectacularmente), na política e religião, e até na economia.
História antes da História, com reflexos em Portugal desde há muito.
MIGUEL TELLES ANTUNES
I - O que em fim ∫e deve notar com particularidade
n’aquella parte do globo, em que habitamos, he a prodigioza multidaõ de conchas, perolas, o∫tras, coraes, peixes petrificados, e de outras producçoens marinhas, [...].
[(29) Veja-∫e ∫obre e∫ta materia a Buff. Hiftoir.Natur. tom.
I. art. 8. Vejaõ-∫e tambem os Autores, que elle cita, como Estenon, Ray, Woodward, Escheuchzer, Bourget.
Trans. Philof., Memoir. de l’Accad. &c.] [...] .
II - TARDE XXXV. Do Globo da Terra con∫iderado
em ∫i me∫mo e da ∫ua Atmosfera.
§. I. Da Terra firme e ∫eos montes , e das conchas do
mar que neles ∫e achaõ. [...] .
Teod. Em todos os montes, como tambem nos vales e planicies , ∫e ob∫ervaõ diver∫as camadas ou bancos
de barro , de terra , de areia , de ∫aibro , de cré , de pedra &c. e e∫tes bancos ou camas diver∫as , con∫ervaõ caSe con∫ultarmos os AA. mais celebres, que trataraõ
da theoria da Terra, acharemos, que
da uma delas a me∫ma gro∫ura por
todos elles concordaõ, em que o glotodo o ∫eo comprimento; [...] .
bo terraqueo tem padecido muitas
Tambem ∫e ob∫erva con∫tanterevoluçoes, e mudanças na ∫ua ∫upermente que em toda a parte , naõ ∫ó
ficie de∫de o principio do Mundo até
nos vales , mas ainda no cora∫aõ dos
o prezente tempo [...] .
montes e nos ∫eos cumes , ∫e encontraõ muitas conchas e produ∫oes
Os montes, os valles, os diverfos
do mar : alguns peixes inteiros , e
la∫tros horizontaes da Terra, as conmuitos e∫queletos ∫eos convertidos
chas, os peixes, e as mais producem pedras ; mas que no ∫eo feitio neçoens marinhas, que ∫e achaõ espanhum
e∫crupulo deixaõ a quem ∫e
lhadas por todo o globo; [...] ; e outras
per∫uade
que foraõ algum dia abita∫imilhantes particularidades, tudo no
dores
das
aguas .
sentir de Buffon dá evidentes mo∫tras,
Eu
tenho
vi∫to inumeraveis amede que a Terra, que prezentemente
joas
,
brebigoens
, e outros mari∫cos
nos ∫erve de morada, fora em algum
convertidos
em
pedra
, e em lugares
tempo proprio domicilio das agoas
de
certaõ
,
e
altos.
[...]
; e estes mado Oceano. [Páginas 197-198; 204]. Licenciado, doutorado e agregado em Ciências
Geológicas pela Universidade de Lisboa, Miguel ri∫cos ∫e achaõ ás vezes dentro dos
Em: HISTORIA DA CREAC,AÕ Telles Antunes está actualmente na Universidade mesmos rochedos ; e eles por denNova de Lisboa, onde é Professor Catedrático,
DO MUNDO CONFORME AS IDEAS Presidente do Departamento de Ciências da Terra tro cheios da me∫ma materia que os
DE MOIZES, E DOS FILOZOFOS: IL- e Director do Centro de Estudos Geológicos. Autor cerca.
LUSTRADA Com hum novo Si∫tema, de cerca de três centenas de trabalhos, publicados
em doze países, a sua investigação tem-se reparSilv. Eu estou taõ admirado , que
e com varias Notas, e Di∫∫ertaçoens tido pela Paleontologia dos Vertebrados e Humana,
ainda
me é precizo for∫ar o entendiEstratigrafia,
Doenças
endémicas
com
problemáPelo P. MANOEL ALVARES Da
tica
geológica,
História
das
Geociências,
Arqueozoologia,
mento
a crer i∫o , naõ obstante ∫er
Congregaçaõ do Oratorio de S. etc. Distinguido com vários prémios (Artur Malheiros,
uma
coiza
te∫tificada na face de todo
Filippe Neri. [...] . PORTO: Na Officina Pfizer, etc), é sócio da Academia das Ciências de
Lisboa,
membro
da
International
Commission
on
o
mundo
por
um corpo de sabios taõ
de Franci∫co Mendes Lima, Anno
History of Geological Sciences (UNESCO) e preside 1762. Com todas aslicenças ne- dente honorário da Regional Committee on Atlantic serio , e taõ grave como a Academia
Real de París.
ce∫∫arias.
Neogene Stratigraphy (IUGS).
54
Eug. E quem levou aî taõ prodigioza multidaõ de
conchas ?
Muito há que dizer acerca da Paleontologia e Portugal,
até porque o interesse vem de longe. Não é por acaso
que transcrevemos, à cabeça, textos (plenos de actualidade para a época) de dois padres da Congregação do
Oratório - a que havia sido cometido papel de relevo no
ensino através, nomeadamente, do portentoso Colégio
de Nossa Senhora das Necessidades, em Lisboa, fundado por D. João V. Não faltam ecos de obras estrangeiras de qualidade, nem observações pessoais. Como noutros países, havia em Portugal uma elite culta, ainda que
fosse abismal o fosso que a separava da maior parte da
população. No que segue, trataremos de elementos de
índole geral. No entanto, sempre que possível e a propósito, o enfoque privilegiará exemplos e problemas
concernentes a Portugal.
Teod. A con∫equencia imediata e nece∫aria , que
d’aqui ∫e tira , é que por e∫es lugares andaraõ as aguas
do Mar.
Silv. I∫o foi ∫em duvida obra do Diluvio univer∫al.
Teod. E∫a é a comua opiniaõ ; porém é daqueles , que
ne∫te ponto naõ tem meditado com vagar. [...] Mas com
evidencia ∫e mo∫tra que o Diluvio naõ podia meter as conchas , e peixes lá pelo cora∫aõ dos montes , [...] ; e muito menos introduzilas dentro dos me∫mos rochedos. [...] .
Teod. Di∫corre Mr. de Buffon de outro modo ; e quer
que tenha avido grandi∫ima mudan∫a no Globo da Terra,
de ∫orte que grande parte do que oje é Terra firme muitos
anos fo∫e Mar; e pelo contrario , muita parte do que oje é
abita∫aõ de peixes , fo∫e algum dia regiaõ de omens. [...] .
[Texto redigido como uma peça de teatro, na forma
de discussão entre três personagens - Teodoro, Silvano
e Eugenio; páginas 404-407].
Em: RECREASAÕ FILOZOFICA, OU DIALOGO Sobre
a Filozofia Natural , para inftruc-∫aõ de pe∫oas curiozas
, que naõ frequentáraõ as aulas. PELO P. TEODORO
D’ALMEIDA da Congrega∫aõ do Oratorio de S. Fili-pe
Neri , e Socio da Real Sociedade de Londres [Conforme
1ª pág. do Tomo I]. TOMO VI. E ULTIMO Trata dos
Ceos e do Mundo. LISBOA. Na Oficina de MIGUEL RODRIGUES, Impre∫. do Emin. Senhor Cardeal Patriarca. M.
DCC. LXII. Com todas as licen∫as nece∫arias , e Privilegio
Real.
Introdução
O recrudescimento do interesse público suscitado
pela Paleontologia é geral. É, também, óbvio em Portugal,
país rico de fósseis desde tempos que antecedem o início da Era Paleozóica, há cerca de 600 milhões de anos
(Ma). Jazidas do maior interesse ocorrem de Norte a Sul.
Entre outras, são notáveis as de trilobites e outros fósseis do Ordovícico de Valongo, as goniatites e vegetais
do Carbonífero, os dinossauros da Lourinhã, os vertebrados miocénicos de Lisboa, a fauna, marinha e terrestre, associada a um dos últimos homens de neanderthal da Gruta da Figueira Brava ...
A Paleontologia é fundamental para a compreensão
da Vida no passado e da sua Evolução. Porque a Vida
se modificou no decurso dos tempos, e porque os seus
vestígios muito esclarecem quanto à cronologia e aos
ambientes do passado, a Paleontologia desempenha papel fundamental no concernente às Ciências da Terra e
à Geologia Estratigráfica em particular. Esta é uma das
suas vertentes fundamentais, a par de outra, a que concerne às Ciências da Vida.
Fig. 1 - Teodoro d’Almeida (1722-1804).
O Homem e os fósseis, antes da Renascença
A Paleontologia assenta no estudo dos vestígios,
coetâneos, de seres que viveram e suas actividades:
os fósseis, cuja existência foi, há muito, notada pelo
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homem. Invocam-se a Antiguidade clássica e interpretações de filósofos, algumas com boa aproximação
da verdade. Porém, fósseis (às vezes utilizados e mesmo trabalhados) haviam sido colhidos muito antes, em
tempos pré-históricos. É conjectural a finalidade de
tais colheitas, talvez relacionada com significado mágico ou com aplicação como adorno, ou outra. Registemos
dentes de tubarão do período Miocénico (ca. de 24 a
5 Ma) encontrados na necrópole neolítica de Aljezur,
alguns do gigantesco Carcharocles megalodon - bem
antes de o dinamarquês Niels Stensen (1638-1686) ter
demonstrado a verdadeira natureza de tais fósseis [glossopetrae, ou “línguas de pedra”, que cairiam na Terra
em noites sem luar, segundo Plínio o Antigo (23-79
AD)], graças a comparação com os de um grande tubarão branco (Carcharodon carcharias), capturado
em Livorno, Itália, em 1666, do qual havia dissecado
a cabeça.
Fig. 3 - Niels Stensen (Stenon, ou Stenonis).
Desde tempos imemoriais, a farmacopeia chinesa
recorreu a fósseis, “dentes de dragão” e outros. Disso
deu conta o jesuíta e Académico, João de Loureiro, em
publicação póstuma (1799, Memórias da Real Academia
das Ciências de Lisboa) : caranguejos fósseis (Loureiro
aludiu ao próprio processo de fossilização) eram colhidos na Cochinchina e largamente exportados. Serviam
como "absorbente" «interiormente nas febres, nas dysenterias, nas diarrhéas, nos tenesmos, ...», e «externamente saõ uteis nas inflamações, e apostemas». Loureiro,
notável pela sua obra botânica acerca da Cochinchina
(onde viveu décadas, só retornando a Lisboa após o
fim da governação do Marquês de Pombal), pode legitimamente ser considerado pioneiro da Paleontologia
na Europa.
Estudos mais sistemáticos surgem na Antiguidade.
Muitas vezes, fósseis de óbvia origem marinha em sítios
no interior chamaram a atenção - preocupações que se
mantiveram até muito mais tarde. Anaximandro (ca. 570
AC) detectou conchas em rochas, significando que a terra fora antes coberta pelo mar; deduziu que toda a vida
animal descendia de seres marinhos. Xenófanes (570-480
AC), que colhera plantas e conchas fósseis na ilha de
Paros, considerava os fósseis como “produzidos outrora, na vasa, quando a terra se dissolvia nas águas do
mar”. Há a registar acrescentos de Pitágoras e Anaxágoras
(ca. 450 AC).
Fig. 2 - Dentes de tubarão miocénico (de Aljezur) referidos por Estácio
da Veiga, 1866.
56
Heródoto, célebre
geógrafo (ca. 440 AC),
descreveu fósseis que observou no Egipto (entre
eles as “moedas de pedra”, ou nummulites, supostamente lentilhas com
que eram alimentados os
construtores das pirâmides); chegou a conclusões que não se afastam
muito das de Xenófanes.
Filósofos gregos ulteriores assumiram posições distintas, basicamente de três tipos:
•
•
para os Estóicos, o
Mundo estaria destinado a perecer.
Porém, a decadência não excluiria regeneração. Haveria
eterno retorno dos
seres.
•
enfim, os Epicuristas
admitiam que o
Mundo morre e se
restaura periodicamente, sem retorno.
A mitologia grega
considerava os gigantes
cíclopes, com um só olho
frontal, o que parece relacionado com achados
de crânios de elefantes
anões que povoaram ilhas
do Mediterrâneo; tomava-se a abertura nasal, a
meio da região frontal,
pela “órbita”.
para Aristóteles (384322 AC), o Mundo é
eterno; a perenidade resulta do equilíbrio entre destruição
e simultâneo rejuvenescimento. A ideia
de evolução não tem
cabimento, o que se Fig. 4 - Cadeça de tubarão branco e as glossopetrae, segundo Stensen, 1667.
reflecte na apreciação dos seres vivos (na visão metódica e, ao tempo,
O caso, relacionado com a lenda de Ulisses e do giganenciclopédica) de Aristóteles. Rejeitava a origem gete cíclope, Polifemo, cujos despojos (elefantinos!) haviam siral no mar. Além dele, o seu discípulo Teofrasto fordo encontrados numa caverna perto de Trapani, foram remulou teoria segundo a qual as formas do cresciferidos pelo grande poeta Giovanni Boccaccio (1313-1375).
mento de plantas e animais eram determinadas na
"Ossos de gigantes" eram (Suetónio o diz) coleccioTerra por uma “virtude plástica”; esta explicaria a orinados pelo imperador Augustus. Afinal, o culto das grangem dos fósseis - como pedras que acidentalmente
des ossadas não se restringe à televisão e aos dinossaucresceram. Também eram tomados por ludus naturae - jogos da natureza. Este conjunto de ideias foi
largamente aceite até o séc. XVIII.
Fig. 6 - (Original) caranguejos trazidos da Cochinchina por João de
Loureiro e oferecidos "ao sabio exame" da Academia das Ciências de
Lisboa; provêm das margens do rio Suong Muòi ko, província de
Gua'ng Binh no antigo reino da Cochinchina (Vietname meridional).
[Quatro caranguejos figuram entre os fósseis escolhidos em 1808 (para o Muséum de Paris) por E. Geoffroy Saint-Hilaire do “Cabinet de
Notre Dame de Jésus”, ou seja, o Museu Maynense - depois integrado na Academia das Ciências; tudo leva a crer que se tratasse de parte da amostragem trazida por Loureiro, pois não há qualquer notícia
referente a essa época de outros achados de caranguejos fósseis].
Fig. 5 - (Original) dentes superiores e inferiores, face externa (de adultos, com posições semelhantes nas mandíbulas) de tubarão branco,
Carcharodon carcharias (actual, Mediterrâneo) e de Carcharocles megalodon (Miocénico médio, Chelas/ Lisboa).
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Fig. 7 - Calcário constituido por Nummulites (grandes foraminíferos
do Paleogénico), figurado por Michele Mercati (1541-1593).
ros ... , passando de permeio a procura do unicórnio na
Alemanha renascentista, e a descoberta do gigante
Teutobochus, rei dos teutões derrotado por Marius, general romano. Neste caso, são restos de dinotério, do
Miocénico superior, ca. 10 milhões de anos (Ma), descobertos em França em 11 de Janeiro de 1613 e exibidos em feiras, etc. - "moyennant finance" (o detentor de
parte do espólio, o cirurgião Mazurier, fez bom dinheiro!). Dúvidas acerca do seu valor terão pesado nos conselheiros de Luís XIII, que não se apropriou dos muito
publicitados ossos.
Ainda no Mundo romano, há referências a fósseis
pelo grande poeta Ovídio (43AC-16AD):
Fig. 9 - Representação medieval - Ulisses cegando o Cíclope (Chr. de
Pisan, Bibl. Nationale, Paris).
Plínio o Antigo, testemunha da destruição de Pompeia,
exprimiu ideias semelhantes.
Para a Cristandade dos primeiros séculos, não era
estranha a evidência de restos de animais marinhos
longe do mar; constituía clara demonstração de acon-
... Eu digo, algumas das terras mais firmes,
flutuavam no mar
e as águas se converteram em terras;
e os moluscos marinhos ficaram a jazer longe do mar.
Fig. 8 - Elefantes anões das ilhas mediterrâneas, derivados de Elephas antiquus (o mais pequeno dos quais, Elephas falconeri - cuja altura ao garrote era de apenas 0.9 m - pouco excedia o porte de um porco); (à direita) crânio de elefante anão do Quaternário da Sicília, vista anterior mostrando a pretensa "órbita única do cíclope”.
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ostras em montes longe
tecimentos relacionados
do mar, dando testecom o Dilúvio e suas vímunho do Dilúvio. Orósio
timas. Eusébio de Cesareia
é largamente citado na
(263-339) tomou os peiobra de Santo Isidoro,
xes do Cretácico do
Arcebispo de Sevilha
Líbano como prova de
(560-636), muito reso Dilúvio ter coberto os
peitada na Idade Média
mais altos cumes das
e de consulta fundaserranias.
mental para os estudioTambém chegaram
sos cristãos.
ecos à Península Ibérica,
O conhecimento dos
até aqui despercebidos
antigos gregos declinou
em Portugal. É o caso
na Grécia. A Escola de
do reputado discípulo
Atenas foi extinta pelo
de Santo Agostinho,
imperador bizantino,
Paulus Orosius (Bracara,
Justiniano. Muito não
hoje Braga, Portugal ca. 385? a 423, talvez so- Fig. 10 - (Original) Deinotherium giganteum na bacia do Tejo, fins do Miocénico foi perdido graças, em
brevivendo mais tarde; médio / ca. 13 milhões de anos (Ma); proboscídeo com defesas só na mandíbula. especial, a árabes, judeus e persas; dentre
autor da primeira tentaestes, avulta Abu ibn Sina (980-1037; conhecido na
tiva de História Universal numa perspectiva cristã): refere a frequente ocorrência de pedras com moluscos e
Europa cristã por Avicenna), filósofo e naturalista, atra-
Fig. 12 - (Original) peixe teleósteo do Cretácico do Líbano.
vés de cujas obras perspassam conhecimentos anteriores. Estes chegam aos meios cultos medievais, ao
menos parte, por intermédio do Califado de Al-Andaluz.
Ideia importante, quiçá herdada de Aristóteles, era a
da desconhecida vis lapidificativa, capaz de lapidificar restos de animais e plantas. As traduções em latim
de textos árabes, produzidas em Toledo após a ocupação (1085) por Afonso VI de Leão e Castela, contribuiram decisivamente para a difusão de conhecimentos e ideias. A “virtude plástica” (vis plastica) dos
antigos prevaleceu como interpretação até tarde na
Idade Média.
O fio condutor do pensamento grego, com relevo
para o de Aristóteles, ficou ligado a Córdova e, depois,
a Toledo; a obra de ibn Sina influenciou, entre outros,
o notável naturalista, Albertus Magnus ou Albert von
Bollstädt (1193-1280), o "Aristóteles da Idade Média".
Provincial dos dominicanos, deslocava-se muito em vi-
Fig. 11 - Página de título do panfleto publicitário de Mazurier, Histoire
véritable ... (1613).
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sitas a conventos no espaço alemão; observou e descreveu, em obras que chegaram até nós. É pesada a influência aristotélica, sem que isso signifique ausência de
posicionamento pessoal, de alguém, como ele, dotado
de espírito crítico. Admitiu que restos de plantas e animais podem ser convertidos em pedra sob a influência
de agentes petrificantes.
Pouco sabemos, neste domínio, quanto a Portugal.
Fósseis foram notados e até utilizados, como o tronco
silicificado de conífera cretácica a servir de pelourinho
em Pederneira, cerca da Nazaré.
Caso notável é o da Pedra da Mua, junto da enseada de Lagosteiros, a Norte do Cabo Espichel. A área era
frequentada desde o Paleolítico, como atestam instrumentos líticos. Referência literária existe desde o poema
Ora maritima, da autoria do procônsul Rufius Festus
Avienus (séc.IV), sob a denominação de Cempsicum jugum (os Cempsi habitavam a região). Terá, então, sido
local de culto? Sabemos de outras recuperações de sítios
sagrados, servindo sucessivamente as religiões que se
foram implantando. Na área, há indícios islâmicos (Azóia)
e culto cristão documentado desde 1250, possivelmente
anterior. A lenda relatada "em banda desenhada" nos paineis de azulejo da capela (implantada no séc. XV e que
precedeu a Igreja setecentista de Nossa Senhora do Cabo
ou Santa Maria da Pedra da Mua), presente na tradição
popular, diz que Nossa Senhora ou a Sua imagem desembarcaram, subindo a arriba a dorso de mula (= mua,
em português antigo). Tanto assim que as pégadas "da
Fig. 13 - Albertus Magnus (1193-1280).
Em suma, e no concernente ao que aqui interessa a Idade Média não foi período de muita luz, nem tão negativo quanto se poderia pensar atendendo ao desdém
pela Ciência em certos meios eclesiásticos.
Fig. 15 - (Originais) pistas de dinossauros cretácicos de Lagosteiros:
conjunto, mostrando, ao fundo, o Cabo Espichel, com extensa pista
de grande dinossauro.
Fig. 14 - (Original) pistas de dinossauros do Jurássico superior de Lagosteiros: vista de conjunto, vendo-se a Igreja de Nossa Senhora do Cabo; (à
direita) pormenor.
60
mua" lá ficaram - um conjunto espectacular de pistas de dinossauros que
parecem sair das águas.
Além das que se vêem
na enseada, à superfície
de camadas do Jurássico
superior (ca.145 Ma), há
outras do Cretácico (ca.
125 Ma), com pistas de
dinossauros diversos.
ticos, por ele reportados
a uma antiga idade do
Mundo entre Adão e
Tubalcaim.
No espaço germânico, Conrad Geßner (15161565) descreveu e figurou numerosos petrefactos
- "pedras figuradas" -, entre as quais ouriços do
mar (ver adiante as "pedras com uma cruz e sanO Homem e os fósgue"). Para Geßner, os
seis; a Renascença
fósseis eram comparáveis a seres viventes, de
Muito mudou com a
que seriam restos.
Renascença. Leonardo Fig. 16 - (Originais) pistas de dinossauros cretácicos de Lagosteiros: pista de diEscreveu, a propósito de
da Vinci (1452-1519), nossauro terópode, carnívoro e pégada (a 4ª da série) mostrando a forte impresdentes de peixe fósseis
são dos dedos com fortes garras.
além de artista, distin"que proviriam, de uma
guiu-se na Ciência e na
maneira ou de outra, de
Técnica. Afirmou que as
cadáveres de algum aniconchas fósseis viveram
mal, ou seriam consenos próprios locais anquência de um impulso
tes ocupados pelo mar.
criador da Natureza", e
Ideia semelhante foi deque a Terra seria capaz
fendida por Bernard
de gerar por si mesma.
Palissy, ceramista franSem certezas, admite que
cês (1510-1590; hugueos fósseis têm alguma
note, o que lhe valeu pricoisa em comum com as
são na Bastilha, onde
estrelas, o Sol, a Lua ou
morreu), contra o pensamento obsoleto, viquaisquer elementos.
gente na Sorbonne (vis
Por outro lado, o céplastica- ludus naturae).
lebre Georg Bauer, mais
Admitiu que certas esconhecido pelo nome lapécies desapareceram
tino de Agricola (1494Fig. 17 - (Originais) pistas de dinossauros cretácicos de Lagosteiros: reconstituição 1555), admitia claramente
(espécies perdidas).
Aspecto importante de Iguanodon (de que há impressões dos pés e da cauda, em repouso) em área que fósseis derivavam de
emersa, próxima do litoral, protegida ao largo por uma barreira de corais (pintufoi a ideia prevalecente ra de J.P.Martins Barata sobre esboço do autor).
seres vivos; para ele, manem cristãos desde, pelo
tinha-se a questão, de
menos, Tertuliano (ca.200), a de os fósseis serem inconprimeiro plano, sobre o modo como se verificou a petestável prova do Dilúvio - ideia que se manteve até o sétrificação, que explicava pela acção de um suco lapidiculo XVIII, e entre cujos
ficante (succus lapidesadeptos se conta Martinho
cens). A sedimentação
Lutero (1483-1546).
decorria a partir das águas,
formando-se fósseis graEm Itália, foram múlças a um suco terrestre
tiplas as contribuições.
engordurado (materia
O médico do papa
pinguis), ao calor e ao
Clemente VIII, Michele
frio.
Mercati (1541-1593) desO Diluvialismo fez
creveu fósseis das cocarreira
até o crescente
lecções do Vaticano (videscrédito,
a partir de
de Fig. 7); reconheceu o
meados do séc. XVIII.
verdadeiro carácter das
"ceraunias ou pedras do Fig. 18 - "Pedras do raio" - machados de pedra polida e outros instrumentos líti- Porém, houve interpretações mais realistas, das
raio" como artefactos lí- cos, figurados por Mercati.
61
ção (que considerava extravagante) de os fósseis serem
o resultado de uma vis plastica ; mais extravagante ainda seria a génese devida a influências celestes. Enfim,
Gottfried W. Leibniz (1646-1716) declarou que os fósseis
não são ludus naturae mas restos de antigos seres vivos; e, tendo em conta espécies perdidas, admitiu (quase temerariamente, na época) que as grandes transformações sofridas pelo Globo foram acompanhadas por
transformações em grande número de formas de Vida ou seja, admite, uma ideia transformista. É, de algum modo, um precursor do evolucionismo.
Voltando a Portugal, não dispomos de elementos
acerca do que porventura fosse ensinado, em particular
na Universidade de Lisboa após a instauração por D.Manuel
I da cátedra de Filosofia Natural. Algum conhecimento
haveria; só assim se explica a refutação por Garcia de
Orta (Coloquios dos Simples, ...) da afirmação de André
de Laguna segundo a qual teria “sido encontrado um
marfim fóssil e mineral”, visto nada haver mais longe da
verdade. Sabia que o marfim utilizado na Índia era, em
parte, importado da África oriental - mas ignoraria que
muito marfim fóssil (de mamute) vinha sendo explorado na Sibéria e daí exportado.
Outro caso: as "pedras com cruz e manchas de sangue", miraculosas, com que teriam sido lapidados os
Santos Mártires de Lisboa: Verissimo, Maxima e Júlia, jovens irmãos martirizados ao tempo do imperador Diocleciano,
ca.303-304. São objecto de culto anterior à nacionalidade, em Santos-o-Velho (Lisboa) - perto do sítio onde o
Tejo terá arrojado à praia os cadáveres - na igreja fundada por Afonso Henriques e, após transladação em 1490,
no mosteiro de Santos-o-Novo. Estão referidas pelo menos desde 1610, por Miguel Leitão de Andrade: «...se tem
achado muitas pedras, ... que são quasi como hum ovo
pequeno amassado, e com huma cruz de Malta d'uma
banda, e da outra relevadas, e em algumas delas gotinhas de sangue, ... ». Um dos pioneiros da Geologia por-
Fig. 19 - Estampa de Geßner mostrando "petrefactos": cristais (2 de
quartzo), machados de pedra polida, artículo isolado e pedaço de pedúnculo de crinoide, 4 dentes isolados e 2 placas dentárias de peixes
actinopterígios, 1 rostro e 3 fragmentos rostrais de Belemnites (cefalópode mesozoico), 4 radíolas de ouriços do mar, 2 ouriços regulares
e 2 irregulares.
quais salientámos as de Stensen, entre outras dignas de
nota. Destaquemos as de Robert Hooke (1635-1703),
membro da Royal Society. Opôs-se à clássica interpreta-
Fig. 20 - Hemiaster scutiger (vista dorsal) - ouriços do mar do Cretácico (ca. 95 Ma) de Alcântara, Lisboa. A disposição das áreas ambulacrárias e
interambulacrárias lembra uma cruz; crostas de minerais ferruginosos levaram à interpretação como manchas de sangue dos Santos Mártires.
62
tuguesa, Carlos Ribeiro (1813-1882) escrevia, em 1871,
«...pelos annos de 1820 a 1824, na egreja de Santos o
Velho em Lisboa, quando se celebrava a festa dos Santos
Martyres, orago da freguesia, expunham ali em bandejas muitos exemplares de echinodermes fosseis bem conservados, dizendo-se aos devotos que estas pedras eram
as mesmas com que os inimigos da nossa Fé tinham apedrejado, nas praias contiguas á egreja, os referidos Santos
Martyres». Na verdade, trata-se de ouriços do mar, alguns
com pátina ferruginosa vermelha, comuns nas rochas
cretácicas vizinhas; ouriços semelhantes ao penúltimo
da fila inferior da estampa de Geßner.
A ideia da vis plastica saiu ainda mais ferida.
Explicações científicas iam ganhando terreno, deixando menos lugar para fantasias; se é que isso se pode
dizer, porque fantasias desbragadas, quando não falsidades, enchem programas de televisão (decerto com
bom resultado económico) deformados por sensacionalismo. Publicitar asneiras é pecha que se vê mais do
que o bastante.
Textos e citações anteriores dão conta da enorme
projecção do Diluvialismo. Mais famoso exemplo não
há: em Öhningen, perto do Lago Constança, na Suiça,
foram colhidos fósseis do Miocénico superior, incluindo
um esqueleto descrito em 1726 pelo naturalista de Zurique,
Johann Jakob Scheuchzer (1672-1733). Seria, nem menos, de uma testemunha do Dilúvio, o Homo Diluvii testis: "filho da danação, por causa de cujos pecados a catástrofe [o Dilúvio] atingira o Mundo inteiro". A descoberta
deu brado. Chegou ao conhecimento de um dos principais fundadores da Anatomia Comparada e da Paleontologia,
Georges Cuvier (1769-1832), que demonstrou, sem a mínima dúvida, que o esqueleto do homem vitimado pelo
Dilúvio não passava de uma salamandra gigante, afim
das que ainda sobrevivem (mal, porque são apreciadas
O ocaso das "pedras figuradas"
e do Diluvialismo
O interesse pelos fósseis manteve-se no séc.XVIII.
Um dos interessados foi o Professor de Medicina de
Würzburg, Johannes Bartholomäus Beringer (16671740), que reunia uma colecção pagando a colectores
da área. Alguns "fósseis" eram lindos - flores, borboletas, salamandras e até rãs em cópula e letras hebraicas. Só que não passavam de intrujice: artefactos gravados em pedra, secretamente, por encomenda de um
rival na Academia. Sem se aperceber, Beringer publicou em 1726 um livro com a respectiva descrição, supondo-os cristalizados nas rochas por acção do Sol. A
verdade e o descrédito vieram logo depois. Beringer
passou o resto da vida a comprar a edição, tendo destruído quase todos os exemplares, hoje raridade bibliográfica.
Fig. 21 - "Pedras falsificadas de Würzburgo" da colecção de J.B.Beringer,
figuradas na sua obra.
Fig. 22 - Estampa de Scheuchzer representando o Homo diluvii testis.
63
como petiscos preciosos nas gastronomias chinesa e japonesa). Desaparecia, assim, um dos mais retumbantes
argumentos de cariz diluvialista.
Fantasia e desenvolvimento científico,
extinção dos dinossauros
A Ciência requer objectividade, sem excluir intuição e, às vezes, algum traço de fantasia na medida em
que aponte para modelos aceitáveis - se os factos os
não refutarem. Lembremos a visão redutora mas amiude justa de René Descartes (1596-1650): de dúvida, com
menos peso na produção de hipóteses. Fantasias, sempre as houve. Exemplo recuado no tempo, a procura
do unicórnio, reconstituido por Otto von Guericke
(1602-1686) (Burgomestre de Magdeburgo - o conhecido inventor dos "hemisférios de Magdeburgo", que
aderiam fortemente ao associá-los a um dispositivo para fazer vácuo). Possivelmente inspirado em Geßner,
associou um crânio de herbívoro a um "corno" frontal
comprido e ponteagudo, cerca de 20 vértebras, objectos não identificados, 2 grandes omoplatas e 2 membros anteriores.
Fig. 24 - Unicórnio, segundo Geßner (1553).
Buffon é autor da portentosa Histoire naturelle, muito lida em Portugal: a maior enciclopédia no género até
o século XIX, onde era muito bem apresentado o mais
amplo conhecimento dos animais. Assumiu posições revolucionárias quanto à idade da Terra, para ele muito
mais recuada do que as então admitidas a partir da Bíblia.
Fig. 23 - A "reconstituição" do unicórnio por von Guericke baseada
em ossos e objectos provenientes de Quedlinburgo.
O desenvolvimento científico assume crescente importância no século XVIII. Na Biologia, entre outros,
destacam-se o naturalista sueco Carl von Linné (17071778), cuja classificação dos seres vivos (10ª edição
do Systema Naturae, 1758) é essencial como ponto de
partida da Sistemática; e o Intendente do Jardin des
Plantes de Paris, Georges-Louis Leclerc, conde de
Buffon (1707-1788).
Fig. 25 - O conde de Buffon.
64
Com habilidade consumada, lidou com oposições da
Igreja e com polémica levantada pela Sorbonne. Iniciou
verdadeiramente a Paleontologia, ao demonstrar que os
fósseis correspondiam a espécies "perdidas" (extintas),
reflectindo, também, descobertas na América de mastodontes semelhantes - mas distintos - dos do Antigo
Continente. Migrações animais e a génese de espécies
diferentes (degeneradas, ou às vezes aperfeiçoadas) em
regiões para onde houve emigração serviram de base a
um esboço de transformismo (que só viria a impor-se a
partir de Lamarck, graças à evidência paleontológica).
Enfim, inseriu pela primeira vez o homem na história geral do Mundo; nas épocas da Natureza, teria sido criado
em último lugar: "veio tomar o ceptro da Terra só quando ela se tinha tornado digna do seu Império".
A instituição da Paleontologia muito deve a Georges
Cuvier (1769-1832), para quem as extinções eram causadas pelas "revoluções" sofridas pelo Globo; também
ao fundador da Paleobotânica, Adolphe Brongniart (18011876) e a William Smith (1769-1839), observador prático, que muito contribuiu para o conhecimento da vertente estratigráfica da Paleontologia. Muitos mais teria
cabimento citar.
A Paleontologia teve desenvolvimentos espectaculares graças, também, a progressos noutros domínios científicos. Recordaremos: a anatomia; a química; o conhecimento dos processos geológicos e de fossilização; o
Darwinismo e seus desenvolvimentos; a transposição para o passado de dados ecológicos a nível do indivíduo
e seu modo de vida, ou de comunidades; tectónica de
placas e paleobiogeografia; o conhecimento da evolução e seus processos, momente quando é possível representar a evolução de toda a Vida numa única árvore
filogenética, ramificada; a filogenia (que tem aproveitado da análise cladística, da distribuição no tempo de formas cuja evolução possa ser bem caracterizada, e das
comparações entre proteínas e sequências do ADN); o
desenvolvimento ontogénico e a embriologia; as modalidades de evolução (condicionada pelo isolamento de
populações) dentro de linhas evolutivas (gradualismo filético), ou devida a especiação (equilíbrio intermitente);
estatística; etc.
A Paleontologia é Ciência antiga e moderna, conservando todo o interesse e suscitando crescente interesse do público, até porque é, de certo modo e em relação à Vida, uma História de antes da História. O que
não exclui fantasia, excitante (como em filmes e séries
televisivas, "dramatizadas" de forma que se procura a
mais rendível) ainda que, não raro, faltando à verdade
ou deformando-a. Explicações da extinção dos dinossauros, há-as as mais desvairadas, recorrendo até a agressões por extraterrestres. Insiste-se no fim catastrófico dos
dinossauros (esquecendo as aves, que os representam)
em consequência do impacto de um meteorito ... o que
rendeu um prémio Nobel ... mais ou menos em parceria com concentrações anómalas de irídio (não gerais) e
com vulcanismo, cuja influência nada teve de decisivo.
Voltamos ao Catastrofismo de Cuvier, com as revoluções
do Globo. Que drama!
Esquece-se que:
•
grande parte dos dinossauros (e os maiores de todos) estavam extintos bem antes do final do Cretácico,
em boa parte em relação com um fenómeno de amplitude mundial: a transgressão marinha (a maior de
sempre após o Paleozóico) no Cretácico, há ca. de
100 Ma, a qual impôs grandes modificações paleogeográficas e climáticas. Extensas áreas continentais
ficaram reduzidas a ilhas, diferenciando-se faunas de
pequenos dinossauros, alguns minúsculos; mesmo
os de maior porte estão longe dos gigantes do Jurássico
superior e Cretácico inferior. Assim sucedeu com
áreas hoje integradas na Península ibérica, como evidenciam estudos sobre jazidas do final do Cretácico,
entre elas as do País vasco e de Aveiro e Taveiro, em
Portugal.
•
a extinção não foi simultânea onde quer que foi
possível reconhecer em pormenor a sucessão das
faunas do Cretácico terminal, e que as extinções,
graduais, são perfeitamente explicáveis através dos
mecanismos biológicos face à pioria climática, com
generalizado abaixamento de temperatura, verificada antes do termo do Cretácico (há cerca de 65
Ma). Esta situação penalisou sobretudo animais e
plantas tropicais e, em particular, os animais não
homeotérmicos, i.e. com temperatura corporal constante - como os mamíferos e, dentre os dinossauros, as aves.
•
nem sequer se tem de pé a correlação com quedas
de meteoritos, incluindo uma pretensa queda ao largo da costa portuguesa (!); nem sequer com o que
caiu nas Caraíbas/ Golfo do México (Chicxulub),
apesar das grandes dimensões, com diâmetro da or-
Fig. 26 - (Original) dente de Taveirosaurus costai, pequeno dinossauro, do Cretácico terminal de Taveiro. O comprimento máximo pouco excede 1 mm.
65
dem de 200 quilómas antes das obras funmetros. A idade de
damentais de Cuvier. A
tal impacte nem seobra em causa aparece
quer é adequada paisolada, num autor que
ra explicar as duas
também tratou do hovagas de extinção
mem - relacionando-o
verificadas no pecom o orangotango, haríodo Maastrichtiano,
bitante de regiões onde
último do Cretácico,
esteve. Justificadamente,
uma ca. de 5 e oupermanece alta reputatra ca. de 3 milhões
ção como botânico. De
de anos (com a deresto, a associação da
saparição de 5 fabotânica e dos caranmílias de dinossauguejos fósseis descritos
ros) antes do limite
por Loureiro tem um deCretácico-Paleocénico;
nominador comum, preoas 10 famílias rescupações de carácter méFig. 27 - A crise associada ao limite Cretácico-Terciário: passaram mamíferos (e o
tantes, correspon- rato Mickey), mas não os dinossauros não avianos.
dico e aproveitamento
dendo a 12 a 14 escomo medicamento. O
pécies, últimas das últimas, apagam-se ao longo
paralelo manteve-se, porquanto as primeiras pesquisas
dos derradeiros 3 milhões de anos. Nada disto
em Paleobotânica em Portugal se devem a um médico
sustenta a extinção catastrófica, pois o intenso
afamado, como veremos.
stress ecológico pode causar naturalmente extinAcrecentemos alguns dados inéditos. A redescoções em alguns milhares de anos, isolando popuberta na Academia das Ciências de Lisboa, por nós, de
lações com possibilidades de sobrevivência cada
material de origem brasileira, incluindo nódulos com
vez mais escassas.
peixes cretácicos (bem como animais naturalizados),
parece significar que são
Um pouco de
restos de colecções utiPaleontologia em
lizadas para apoio das
Portugal
aulas que aí se realizaram, na Aula Maynense,
Tratámos com maior
desde fins do séc.XVIII.
desenvolvimento de esO espólio está no mestudos paleontológicos
mo edifício, o Convento
que interessam a
de Jesus, que havia siPortugal (ANTUNES,
do equipado com rica
1986 e 1992, onde poBiblioteca, sala de aula
dem ser encontrados
e o Museu Maynense mais pormenores desgraças sobretudo a frei
de os primórdios até
José Mayne (1723-1792),
ca. de 1980).
franciscano da Ordem
Apontámos João de Fig. 28 - Nódulo com peixe -Vinctifer comptoni (Agassiz, 1841) da Formação Santana Terceira. O Gabinete de
Loureiro (1799) como (Cretácico); antiga colecção da Academia das Ciências de Lisboa. É um dos peixes História Natural, destipioneiro, após Buffon mais frequentes na Formação Santana (Chapada do Araripe, Ceará, Brasil).
nado ao apoio de acti-
Fig. 29 - Idem, reconstituição segundo J.G.Maisey (1991).
66
vidades pedagógicas, foi por ele colocado sob admialguns ainda se conservam na Academia (observação
inédita). A mesma memória inclui "Additamentos ou
nistração da Academia (1792).
Notas" de Alexandre António Vandelli (1784-1859; filho
O edifício foi alocado à Academia das Ciências após
do lente de Coimbra e, depois, Director do Museu da
a extinção das ordens religiosas em 1834. Entretanto, paAjuda, Domingos Vandelli - 1735-1816) e duas estampas
ra lá transitou (1836) espólio do Real Gabinete da Ajuda
suplementares. A.A.Vandelli, ao figurar restos de cetánão requisitado por Etienne Geoffroy Saint-Hilaire aquanceos e de peixes miocénicos, que identificou com boa
do da invasão de Portugal comandada por A. Junot em
aproximação, surge como pioneiro da Paleontologia dos
1807-1808. Foram, então, levados fósseis para Paris.
vertebrados em Portugal. No entanto, o seu esforço não
Ficaram restos de um acervo muito rico, transferido (1866teve continuidade. Politicamente conotado com o lado
1867) para a Escola Politécnica de Lisboa, o qual viria a
perdedor, teve que exilar-se (1834) para o Rio de Janeiro,
ser quase todo destruído aquando do incêndio de 17.03.1978.
sem retorno.
Incluia importantes colecções recolhidas no Brasil por
Outra fase de pesquisas, a que chamámos «ciclo inAlexandre Rodrigues Ferreira (1765-1815), que longaglês», resultou de Daniel Sharpe (1806-1856). Visitou
mente aí actuou. As suas sucessivas missões não o levaPortugal cerca de 1830 e viveu em Lisboa entre 1835 e
ram ao Ceará - donde provêm abundantes nódulos com
1838. Observou e colheu fósseis, que refere. Obteve,
peixes (e outros fósseis) cretácicos- mas podem ter-lhe
chegado indirectamente.
também, colaboração de paleontólogos qualificados Seja como fôr, podemos reportar a origem de tais
J.W. Salter, G.W. Sowerby, Charles J.F. Bunbury, etc.
fósseis ao tempo de Rodrigues Ferreira; e, portanto, conDesportista, matou-o uma queda de cavalo.
cluir que as primeiras colheitas científicas de fósseis no
Outro inglês, James Smith, esteve em Portugal antes
Ceará, hoje mundialmente célebres, resultam de exde Junho de 1841, quando apresentou comunicação com
um anexo onde G.W.Sowerby descreveu novas espécies
plorações portuguesas (a presença de peixes fósseis bem
a partir de fósseis mioconservados no Nordeste
cénicos da região de Lisboa.
do Brasil foi dada a coEnfim, as qualidades
nhecer ao mundo ciende dinamização e de cotífico, primeiramente,
laboração evidenciadas
pelos naturalistas bávapor Sharpe materializaros J.B. von Spix e C.P.F.
ram-se numa obra (1853)
von Martius, que estiacerca do Buçaco (On
veram no Brasil em 1817;
the Carboniferous and
publicaram referências,
Silurian Formations of
com figura, em 1828).
the neighbourhood of
No Ceará, tais fósseis esBussaco in Portugal).
tão relacionados com suEntre os colaboradores,
perstições; há quem recomo Sharpe, Salter, Rupert
jeite ofertas de nódulos
Jones e Bunbury, figura
fossilíferos, receando fiCarlos Ribeiro, implicacar também petrificado!
do na pesquisa de car[Informação do ilustre
vão no Buçaco, o qual
cearense, Embaixador
viria a ser um dos mais
Dario Castro Alves, que
Fig. 30 - Estampa IV de A.A.Vandelli (aditamento à memória do Barão de Eschwege, notáveis geólogos pormuito agradecemos].
1831) figurando “tres caveiras petrificadas”, atribuídas a “huma baleia”, a “hum Physeter”,
tugueses. Ribeiro, após
Há sumárias refe- e a “outra especie de Physeter” - crânios de cetáceos do Miocénico da Adiça.
aventuras galantes em
rências a fósseis, de pouco interesse, em comunicação de José Bonifácio de
parte relatadas pelo seu amigo que foi - nem menos Andrada e Silva (1763-1838), o impulsionador da reactiCamillo Castello Branco, casou com uma senhora pavação da mina de ouro da Adiça (Fonte da Telha), anrente próxima do industrial José Victorino Damásio (que
tes do regresso ao Brasil (1819) - onde desempenhou
explorou as minas de carvão do Cabo Mondego). Com
papel relevante no processo de independência. Com mais
carreira militar comprometida pela implicação no cerco
significado surgiu uma memória do barão Wilhelm Ludwig
do Porto, em 1847, ao lado dos revoltosos (que cederam
von Eschwege (1777-1855), um dos sucessores de José
através da Convenção de Gramido, pese que honrosaBonifácio na Adiça, e longamente residente em Portugal.
mente), Ribeiro criou uma alternativa que passou pela
frequência da Academia Politécnica do Porto. Os avaPublicada (1831) pouco após a expulsão do autor pelo
tares da política e da força armada fizeram um grande
regime miguelista, inclui, nomeadamente, figuras de rugeólogo ... que, aliás, foi sendo promovido na hierarquia
distas (lamelibrânquios recifais, com conchas particularmilitar até general.
mente robustas) do Cretácico dos arredores de Lisboa -
67
Politécnica, e mesmo a competência para a redacção da
Carta Geológica de Portugal. Vitória em grande parte eféEm muitos casos, e neste, a Academia das Ciências
mera; o Governo seguinte produziu outro Decreto, de
desempenhou papel da maior valia. Reformulada no rei18.12.1869, a restaurar, com outro nome, a Commissão
nado de D. Maria II, promoveu a constituição de orga- aquele organismo que ficou conhecido por Serviços
nismos visando o bem público. Seus pareceres favoráGeológicos de Portugal (nome que foi alterado algumas
veis levaram à instituição de uma Commisão Geológica,
vezes, agora englobado no Instituto Geológico e Mineiro).
em 1848, cuja responsabilidade foi cometida a um franInteressa sobremaneira considerar a actuação da
cês, Charles Bonnet. Foi extinta em 1855.
Commissão Geológica na década da sua existência, a
Em 1857, outra Commissão viria a ser constituipartir de 1857. Vimos quão pouco havia sido realizado
da em torno de duas personalidades marcantes, como
em Portugal no âmbito da Paleontologia - geralmente
Directores: Francisco António Pereira da Costa (1809em relação com a Academia das Ciências. Surgia então,
1889), Lente titular da 7ª cadeira (Mineralogia e Geologia)
pela primeira vez mas com certo peso e condições, um
da Escola Polytechnica de Lisboa, e Académico muito
organismo português a tratar especificamente de Geologia
activo; e Carlos Ribeiro. Adjunto da maior valia foi Joaquim
e Paleontologia.
Filippe Nery Delgado (1835-1908). Ribeiro (sobretudo
Pereira da Costa produziu obra de vulto. Não obshomem de terreno) e Pereira da Costa (mais devotado à
tante haver contributos antecedentes, em grande parte
de estrangeiros, Pereira da Costa pode ser considerado
investigação em gabinete) mantiveram excelente colapioneiro da Paleontologia
boração até desinteligên(e da Arqueologia) em
cias de saias - disputa de
Portugal. Dentre as suas
uma governanta, de que
obras, destacam-se as
uma relíquia "fóssil" era
memórias, com traduum estratégico e decrépição em francês, sobre
to canapé que o nosso
moluscos miocénicos,
Amigo Georges Zbyszewski
de Lisboa e do Algarve,
nos mostrou, num esconcom realce para os da
so do velho edifício do
magnífica jazida de
Convento de Jesus, sede
Cacela. Descreveu fordos Serviços Geológicos.
mas novas para a Ciência
J.F.Nery Delgado (1905)
e estabeleceu judicioafirmaria, pudicamente,
sas comparações com
desconhecer o que todos
material da Bacia de
sabiam, a razão das deViena, entre outras. As
sinteligências - que liquiestampas têm excelendaram Pereira da Costa
te qualidade; nem tocomo investigador e, glodas chegaram a ser inbalmente, tiveram funescluidas nos volumes,
tos resultados.
aguardando um texto
Pereira da Costa conque Pereira da Costa jaseguira (e sobretudo o nomais viria a produzir.
tável zoólogo José Vicente
Foram nulas, do ponto
Barbosa du Bocage, tamde vista da investigabém sócio da Academia e
ção, as cerca de duas
lente da Escola Politécnica),
décadas após a crise em
por Decreto de 16.03.1858,
que actuou na Escola
a transferência das colecPolitécnica.
ções (em boa parte proPela primeira vez,
venientes do Museu da
Pereira
da Costa publiAjuda) da Academia das
cou
elementos
acerca
Ciências para a Escola
da fauna das jazidas mePolitécnica. Conseguiria
solíticas de Muge, extambém, por Decreto de
23.12.1868, a suspensão Fig. 31 - Pereira da Costa, F.A. - Estampa XXVII do 2º caderno de MOLLUSCOS ploradas por Carlos
FOSSEIS/ GASTEROPODES DOS DEPOSITOS TERCIARIOS DE PORTUGAL (1867),
da Commissão Geológica, editado pela COMMISSÃO GEOLOGICA DE PORTUGAL, mostrando, em particular Ribeiro. No mesmo âma transferência do seu es- (6.a-c, 7.a-b), um dos fósseis mais notáveis do Miocénico de Lisboa (Margueira): bito prosseguiram os
pólio para a Escola Pereiraia gervaisii (Vézian).
trabalhos deste, com
A (2ª) Commissão Geológica
68
menos incidência em Paleontologia; e começaram os de
Nery Delgado, importante como paleontólogo, autor de
excelente trabalho acerca da Gruta da Furninha (Peniche),
que explorou, e de valiosas obras acerca do Paleozoico.
Correspondendo a solicitação de Pereira da Costa,
foi publicado o primeiro trabalho de investigação em
Paleobotânica de autor português (antes, havia pequenas contribuições de Bunbury): o famoso médico Bernardino
António Gomes, filho (1806-1877), a importante e bem
ilustrada memória (1865) Flora fóssil do terreno carbonífero das visinhanças do Porto, Serra do Bussaco, e
Moinho d'Ordem proximo a Alcacer do Sal, aproveitando, decerto, colheitas de Carlos Ribeiro.
No conjunto, a obra da 2ª Commissão Geológica pode ser considerada como altamente meritória.
de Sousa Pereira de Lima (1859-1919), cultor da Paleobotânica;
e uma plêiade de estrangeiros, autores de valiosas obras,
com ilustração da mais alta qualidade, que prestigiaram
o País e os Serviços Geológicos - superando largamente os contributos portugueses, possivelmente pouco estimulados. O último terço do séc.XIX e os primeiros anos
do séc.XX representam um apogeu da Paleontologia em
Portugal, ainda que o número de cultores portugueses
tenha sido muito limitado.
Sobreveio decadência acentuada, para o que contribuiram a morte do excelente animador que foi Nery
Delgado, em 1908, e as de Choffat e de Cotter, em 1919.
É profundo o contraste entre o que foi mostrado e a
actuação, a bem dizer nula (ao menos quanto a investigação), da Universidade de Coimbra e as demais escolas
superiores (Escola Politécnica de Lisboa, Academia
Politécnica do Porto). Exceptua-se a actuação, no Porto,
Os Serviços Geológicos e seu apogeu;
de Wenceslau de Lima, também no plano pedagógico,
divulgação da Paleontologia
com a actualização que promoveu - enquanto a política
o não desviou (foi Ministro dos Estrangeiros de D. Carlos
O bom trabalho realizado no seio da Commissão
e Primeiro-ministro no reinado de D.Manuel II, entre ouGeológica veio a ter continuidade após o Decreto de
tros cargos). O marasmo nos estabelecimentos de ensi18.12.1869, a restaurá-la com outro nome e sem Pereira
no superior manteve-se até a retoma, na década de 1930,
da Costa - aqui designada por Serviços Geológicos de
animada por João Carrington Simões da Costa (1891-1982).
Portugal. Na última fase da vida, Carlos Ribeiro muito se
No entanto, o Ensino superior teve apoios ao mais aldedicou ao homem fóssil. Conhecedor dos depósitos terto nível. D.Pedro V (1837-1861) protegeu a Politécnica.
ciários do Ribatejo, convenceu-se da existência humana
Decerto facilitou a transferência de colecções para aí, consmuito antes, nas «formações miocene e pliocene» com
tituindo o que poderia, à semelhança da generalidade dos
base em seixos que supôs talhados, os "eólitos". No conpaíses, vir a ser um Museu Nacional de História Natural.
texto da divulgação da obra de Charles Darwin acerca
Aliás, a problemática mantém-se, pelas mesmas razões: se
da origem das espécies, a descoberta de "missing links"
é Nacional não pode perentre o homem e os demanecer sob a tutela de
mais antropóides era tenuma Universidade. Se astadora. Daí a designação
sim continua, não tem
(pelo sábio G. de Mortillet)
(nem terá) gabarito a níde Homo simius ribeiroi
vel nacional. Tem de ter
para o desconhecido aupersonalidade própria (cotor dos supostos artemo reconheceu a Academia
factos. O assunto meredas Ciências em 1855: «o
ceu aceso debate aquando
Muzeu he pela propria
da 9ª sessão do Congresso
indole uma instituição
Internacional de Antroáparte» - Rómulo de
pologia e Arqueologia
Carvalho, 1981). O êxito
pré-histórica (Lisboa,
do Museu nacional de
1880). Aos membros
Arqueologia bem pode
antecedentes da Comservir de exemplo.
missão Geológica, Carlos
D. Luís I (1838-1889)
Ribeiro e J.F.Nery Delgado, Fig. 32 - Número de artigos de Paleontologia publicados entre 1885 e 1930 nas
viriam a juntar-se outros, Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal (a mais importante revista por- prosseguiu o apoio ao
com realce para [Léon] tuguesa nesta área); o óbvio decréscimo é muito mais acentuado se considerarmos Museu da Politécnica, o
Paul Choffat (1849-1919), as Memórias editadas pela mesma instituição, nenhuma depois de 1910 (25 antes, que também se verificou
com D. Carlos I (1863suiço, cuja carreira de- na maioria entre 1885 e 1900).
1908). Avulta, em 1862, a oferta da colecção da Casa
correu em Portugal desde 1878. Foi especialista dos terReal, incluindo a magnífica colecção, organizada em serenos mesozoicos, com abundante produção no campo
quência cronológica, oferecida a D.Pedro V pelo granda Paleontologia. Além de Choffat, são de lembrar em
de paleontólogo Alcide d'Orbigny (1802-1857) - ardeu
especial Jorge Cândido Berkeley Cotter (1845-1919), que
em 1978! O Museu da Escola Politécnica beneficiou de
desenvolveu o estudo do Miocénico de Lisboa; Wenceslau
69
meios que permitiram, além do mais, a compra de fósseis e quadros didácticos à casa Krantz (Bonn), sob a
égide de Pereira da Costa e sucessores imediatos. O elemento mais activo terá sido o Naturalista Jacinto Pedro
Gomes; além dele, Choffat teve ensejo de adquirir em
Fig. 34 - Caricatura de R. Bordallo Pinheiro: O simiesco “avô commum”, ao sabor das ideias surgidas na esteira do darwinismo acerca
dos “missing links” e do homem como “descendente do macaco” (invocado por Carlos Ribeiro, que defendia a presença de vestígios do
homem terciário - o Homo simius ribeiroi - “lança do alto do nivel terciario miocéne a sua benção paternal e agradecida sobre o contentamento geral”.
Londres (Novº de 1888) um dos fósseis mais apelativos
- esqueleto de veado gigante da Irlanda, Megaceros hibernicus, que viria a perder a espectacularmente ornada cabeça no incêndio (1978) do edifício da Rua da Escola
Politécnica. Meios alocados à Academia Politécnica do
Porto permitiram aquisições (muitas no estrangeiro) impulsionadas pelo Professor Aarão de Lacerda.
Do ensino superior e dos museus, algo terá restado
quanto à divulgação da Paleontologia. Talvez os reflexos mais notórios tenham sido os de R. Bordallo Pinheiro
- com humor, a comparar veneráveis instituições a "monstros ante-diluvianos", ou ao "Homem Terciário" português; é notória a influência da controvérsia em torno dos
Fig. 33 - Caricatura de R. Bordallo Pinheiro em O António Maria de
30 de Setembro de 1880: Carlos Ribeiro e o "HOMEM TERCIARIO PORTUGUEZ".
Fig. 35 - Caricatura de R. Bordallo Pinheiro: "O exercito (antigo mastodonte)", além de outros mimos “paleontológicos”.
70
para não recuar até Pereira da Costa, em tempos em que
a Paleontologia não gozava do favor do público. Soanos talvez como anedota o episódio que nos foi contado pelo Professor João Manuel Cotelo Neiva (1917-): enquanto Teixeira partia xistos na mira de obter fósseis no
Carbonífero dos arredores do Porto, Neiva, que o acompanhava, ficou encarregado de desfazer as desconfianças de um proprietário local, explicando que aquele era
tolo, mas que o deixassem entretido, porque não fazia
mal. A qualidade da obra que apresentou como dissertação de Doutoramento na Universidade do Porto, O
Antracolítico continental português (1944) está patente
ao vermos os seus resultados geralmente confirmados
em revisões ulteriores. Além de copioso trabalho - jusque ad mortem - interessou vários em pesquisas paleontológicas, após o ingresso na Universidade de Lisboa.
Fig. 36 - Caricatura de R. Bordallo Pinheiro:
O "Homo cauda-
tus" (o rei D.Luís).
pretensos homens da Era Terciária. Com efeito, para o
grande artista, republicano de todos os costados, o próprio rei (designado por Homo caudatus atendendo à
cauda do manto de arminho) representava um anacronismo, uma das “sobrevivências do homem paleontológico”.
Fig. 37 - Carlos Teixeira (foto M.T.Antunes, Agosto de 1970).
Crise, hiato e renovações
Devem-se alguns contributos ao Professor do Instituto
Superior Técnico, Décio Sequeira Santos Thadeu (19191995), autor de trabalhos sobre trilobites, etc.; e à antiga Junta de Investigações do Ultramar (Instituto de
Investigação Científica Tropical).
Nos Serviços Geológicos de Portugal merece realce
a dupla Zbyszewski - Octávio da Veiga Ferreira (19171997). Realizaram obra dispersa. Além de muitíssimo trabalho pessoal, Zbyszewski, privilegiando o seu País de
naturalização, promoveu colaborações francesas (algumas de muito boa qualidade), a quem passou muitos dos
melhores temas de trabalho disponíveis - criando situações pouco estimulantes para outrem em Portugal, através do esvaziamento de temas que teriam podido desenvolver. Além das numerosas publicações que produziram,
Zbyszewski e Veiga Ferreira muito enriqueceram o Museu
Geológico da instituição que serviam.
Apesar de algumas acções anteriores, pode considerar-se que o lançamento da Micropaleontologia em
Portugal - da maior importância - se deve, fundamentalmente, a Jaime Martins Ferreira (1927-) e a Arménio
Tavares Rocha (1923-1985), que trabalharam sobre foraminíferos.
Ao apogeu centrado nos Serviços Geológicos
sobrevieram tempos de crise, com produção escassa e
de modesto valor. Neste contexto, lembremos alguma
obra do Professor da Universidade Técnica de Lisboa,
Ernest Fleury (1878-1958). Há, também, que registar contributo interessante do Professor da Universidade de
Lisboa, Francisco Luís Pereira de Sousa (1870-1931), sobre goniatites do Carbonífero do Alentejo e Algarve.
A produção de investigação paleontológica portuguesa quase desceu a zero. Houve verdadeiramente um
hiato.
Uma renovação foi desencadeada por Carrington da
Costa. A sua produção científica foi muito limitada, como o ouvimos reconhecer, mas foi acompanhada de incentivo a outros. Polos fundamentais desta renovação,
ainda que com características diferentes, foram Carlos
Teixeira (1910-1982), na Universidade do Porto e essencialmente na de Lisboa; e Georges Zbyszewski (19091999), nos Serviços Geológicos de Portugal.
Carlos Teixeira é figura fundamental nas primeiras
fases da sua carreira, pelo que produziu e pelo que incentivou. Foi o primeiro paleontólogo português com
reputação e projecção internacionais após Nery Delgado,
71
Entretanto, a renovação do sector de Geologia na
Universidade de Coimbra resultou no campo da Paleontologia,
onde não existia tradição prévia. Dentre os seus obreiros destacam-se Gumerzindo Henriques da Silva (19261983) e António Ferreira Soares (1935-). Trabalharam,
sobretudo, em moluscos mesozoicos e cenozoicos, abordando temas concernentes a Portugal e antigos territórios ultramarinos.
Na Universidade de Lisboa, o interesse pela Paleontologia
esmoreceu - nem menos que por parte do Catedrático
do pelouro, C. Teixeira. Abandonou a Paleobotânica,
que lhe grangeara reputação internacional. Produziu publicações de Paleozoologia, depois nem isso. A sua não
assumida desistência teve efeitos perniciosos, acompanhada que foi do desencorajamento de outros (que desviava para outras tarefas), de obsolescência, da redução
do ensino da Paleontologia praticamente só à vertente
estratigráfica, a par de um erro fundamental - a quebra
de ligação com a Biologia e consequente redução drástica do espaço de Ensino e de Investigação, de que foi
principal responsável.
Carmen Fernandez, Ausenda Balbino, Octávio Mateus),
Paleontologia humana (M. Telles Antunes e A. Santinho
Cunha). Muitos dos temas abordados dizem respeito à
bacia lusitânica, às bacias terciárias do Baixo Tejo e de
Alvalade, e ao Algarve. Têm tido impacte considerável
na melhoria do conhecimento estratigráfico e da cartografia geológica do País. Outros investigadores têm colaborado ou aí completado a sua formação, alguns das
universidades de Aveiro, Coimbra e Évora.
Fig. 39 - Spiniferites bentorii (Rossignol, 1964) Wall & Dale, 1970, um
dinoflagelado do Miocénico superior da Ribeira da Lage, Península de
Setúbal (segundo J. Pais e Lígia Sousa; foto em microscopia electrónica de varrimento).
Fig. 38 - Publicações de Carlos Teixeira em Paleobotânica, Paleozoologia
e Geologia ao longo da sua carreira.
Em Coimbra, assuntos de tanto interesse como o
Jurássico do Cabo Mondego e correspondentes dados
paleontológicos foram objecto de estudos de Maria Helena
Henriques. Depois, Pedro Callapez veio a afirmar-se na
área da malacologia, do Cretácico ao Quaternário.
Na Universidade de Évora foi constituido um núcleo
de Paleontologia, encabeçado por Ausenda Cáceres Balbino.
Desenvolvimentos mais recentes e perspectivas
Sem cairmos em juizo de causa própria, mas correspondendo à verdade, notaremos que a Universidade
Nova de Lisboa implantou um núcleo particularmente
produtivo no âmbito da Paleontologia, integrado, de início, por alguns paleontólogos de Lisboa, além do autor
destas linhas. Todos aqueles vieram aí a doutorar-se, pelo que a área da Paleontologia teve aí, deste ponto de
vista, mais resultados do que em qualquer outra instituição em Portugal. Tem vindo a ser mantida intensa colaboração internacional.
Dentre os principais assuntos abordados destacamse amonites do Jurássico (Rogério Rocha, Beatriz Marques),
Paleobotânica e Palinologia (João Cardoso Pais), ostracodos (António Nascimento), vertebrados e sua icnologia, que temos desenvolvido desde o estudo da espectacular jazida do Cretácico inferior de Lagosteiros (1976)
- vide Figs. 14-16 - (M. Telles Antunes, João Luís Cardoso,
Fig. 40 - Pokorniella lusitanica Nascimento, ostracodo do Miocénico
inferior de Lisboa.
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de Lisboa, em especial no Museu Mineralógico e
Geológico.
Epílogo
actualidade e perspectivas
Grandes filmes e séries televisivas, além da divulgação por outros meios, vieram agitar o público acerca da
Paleontologia. Tudo teve reflexos por esse mundo. Assistese a esforços de publicidade, nem sempre séria - problema que é geral, mas que se agrava em países onde
falte suficiente contraponto de crítica. Tenta-se aproveitar o interesse público (muitas vezes vítima de difusão
incompetente, às vezes aldrabada, procurando êxito barato). Um pedaço de rabo de dinossauro pode ser elevado aos píncaros, com sensacionalismo que nada justifica. Porém, há que não esquecer a componente essencial,
que é a Investigação de qualidade.
É tarefa difícil e a pecar por omissões, de que pedimos escusa, referir uma situação que ainda não pode ser vista de uma perspectiva histórica. Lembramos
colecções de trilobites, etc. do Ordovícico (Arouca;
Parque Paleozóico de Valongo) e de goniatites no
Carbonífero do Sul do País; a inventariação palinológica no Centro de Estudos Geológicos da UNL; estudos
sobre icnologia dos dinossauros, no Museu de História
Natural da Universidade de Lisboa; o trabalho realizado no âmbito do GEAL/ Museu da Lourinhã, com apoio
científico da Universidade Nova de Lisboa, ao recolher
o que hoje deve ser o mais rico espólio de dinossauros em Portugal, com especial destaque para a melhor
jazida europeia (senão mundial) de ovos e embriões de
dinossauros jurássicos; os mamíferos do Eocénico basal de Silveirinha (Baixo Mondego), permitindo comparações com a América do Norte - possíveis por não
estar completa a abertura do Atlântico; trabalho sobre
o quase inesgotável Miocénico de Lisboa; faunas do
Quaternário e a importância dos últimos neandertais; e
da pesquisa acerca dos homens do Mesolítico e surpreendentes resultados acerca da morte e seus rituais.
Fig. 41 - (Original) pégada tridáctila de rinoceronte, que escorregou
ao pisar excremento (fóssil - coprólito); Miocénico médio, ca. de 15
Ma/ Olival da Susana, Charneca do Lumiar (Lisboa).
No Porto, tem havido actividades a apoio ao Parque
de Valongo, em cujos arredores se contam jazidas de
trilobites e outros fósseis, sobretudo do Ordovícico (ca.
de 500 a 435 Ma). Avulta, no entanto, a monumental
edição, coordenada por Manuel João Lemos de Sousa,
onde é invocada a sombra tutelar de Wenceslau de
Lima; nela se procede, em especial, à revisão do riquíssimo espólio paleobotânico do Carbonífero português.
Em Lisboa, assumiu relevância António Marcos
Galopim de Carvalho (1931-), que desenvolveu grande actividade quanto à divulgação da Paleontologia
(dinossauros, sobretudo), à conservação de sítios e sua
musealização - com realce para a Pedreira do Galinha
(Torres Novas), com pistas de dinossauros jurássicos.
É, com colaboradores, responsável pela dinamização
de acções de natureza paleontológica na Universidade
Fig. 42 - Dentes de pequeno tubarão, Paragaleus antunesi, do Miocénico terminal (ca. de 5 Ma) de Vale de Zebro e Esbarrondadoiro (bacia de
Alvalade, Alentejo), segundo A. Balbino.
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Fig. 43-44 - Bloco com postura de ovos de dinossauro terópode, alguns contendo esqueletos de embriões, do Jurássico superior de Pai Mogo
(GEAL/ Museu da Lourinhã); dimensões do bloco, 75x78 cm (Memórias da Acad. Ciênc. Lisboa, t.XXXVII, 1998, p.107); (44) ovo com esqueleto embrionário, a meio e à esquerda na Fig. 43.
As perspectivas de desenvolvimento do conhecimento paleontológico em Portugal merecem optimismo.
Parece estar para breve legislação acerca da protecção
de sítios paleontológicos; e foi, pela 1ª vez, incluída uma
área interdisciplinar de Estudos Paleontológicos entre as
que foram postas a concurso para Projectos de Investigação
(SAPIENS PROJ99).
Fig. 46 - Dente de neandertaliano extraído de cadáver e com incisões
paralelas, de significado desconhecido - Gruta da Figueira Brava
(Arrábida), ca. de 30 000 anos (escala: x2,4).
Fig. 45 - Associação "simbólica" de fósseis de uma bacia sedimentar
sofrendo influências marinhas e continentais, arenito argiloso com
fragmentos de mandíbula de pequeno veado (Procervulus dichotomus) associado a um pedaço de valva de ostra - Miocénico médio,
Olival da Susana, Charneca do Lumiar.
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Fig. 47 - Crânio feminino (vistas anterior e lateral direita), ca. de
35 a 40 anos aquando da morte, com lesões traumáticas de alta violência que provocaram a morte, mostrando, em especial, duas profundas incisões de cada lado do frontal, provavelmente para escalpe.
Fig. 49 - Crânio masculino, ca. de 20 a 25 anos, com vestígios de lesões
traumáticas suficientes como causa mortis, mostrando um desenho (a vermelho) em asterisco (representando talvez o Sol?) resultante de cortes no
couro cabeludo e de subsequente hemorragia ao longo dos cortes.
A Paleontologia continua bem viva. Constitui abordagem essencial, porque posicionada no tempo, de items
fundamentais como a História da vida, a evolução, paleoambientes, e relações com a História da Terra; o que
se passou pode deixar entrever o futuro. Afinal, é fonte
inesgotável do imaginário público - também em Portugal.
Fig. 50 - (Original) crânios mesolíticos de Muge (ca. 7000 anos), revelando acções, provavelmente rituais, relacionadas com a morte.
Crânio do sexo masculino, ca. de 13 a 16 anos, vistas laterais esquerda e direita, esfacelado ("abolachado"), mostrando a impressão do varapau e numerosas fracturas (fracturas por contra-golpe do lado direito, que estava assente no solo).
Fig. 48 - Crânio associado a vértebras cervicais (vista lateral esquerda),
masculino, ca. 30 anos, com marcas de escalpe, esfacelado à bordoada
e com manchas ferruginosas atribuíveis a hemorragia, confirmadas pela caracterização de vestígios de proteínas, ganga com cinza (cadáver
parcialmente queimado, como usual nos sítios mesolíticos de Muge).
SUGESTÕES DE LEITURA
ANTUNES, M. TELLES (1986) - Sobre a História da Paleontologia em
Portugal. HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA EM PORTUGAL/ II volume. Publ. do II Centenário da Academia das Ciências
de Lisboa, p.773-814.
ANTUNES, M. TELLES (1999) - Dinossauros e Portugal/ Dois casos menos conhecidos. Ciências da Terra (UNL), Lisboa, nº13,
p.59-69.
ANTUNES, M. TELLES & CUNHA, A. SANTINHO (1991) - SANTOS
MÁRTIRES DE LISBOA/ ESPÓLIO OSTEOLÓGICO DE SANTOS-O-NOVO. Câmara Municipal de Lisboa. 57 p.
ANTUNES, M. TELLES (1992) - Sobre a História da Paleontologia em
Portugal (ca. 1919-1980). HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA
EM PORTUGAL NO SÉC. XX. Publ. do II Centenário da Academia das
Ciências de Lisboa, p.1003-1026.
BERNIER, R. (1975) - Aux sources de la Biologie. Les Presses de
l'Université du Québec/ Masson et Cie Éditeurs - Paris, 264 p.
ANTUNES, M. TELLES, Editor (1998) - Colóquio - Paleoambientes do
Jurássico superior em Portugal/ Geologia, vegetação, ovos & dinossauros, mamíferos. Memórias da Academia das Ciências de Lisboa,
Classe de Ciências, tomo XXXVII, 153 p.
ZIEGLER, B. (1984) - Kleine Geschichte der Paläontologie. Stuttgarter
Beiträge zur Naturkunde, Serie C, Heft 19, 32 p.
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