UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Direcção de Jean-François Dortier HistCienHumanas_miolo.indd 1 06-01-2009 12:24:30 HistCienHumanas_miolo.indd 2 06-01-2009 12:24:54 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Direcção de Jean-François Dortier HistCienHumanas_miolo.indd 3 06-01-2009 12:24:56 Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre – Ministère Français Chargé de la Culture – Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro – Ministério Francês da Cultura – Título Original: Une Histoire des Sciences Humaines Direcção de Jean-François Dortier Tradução: Carla Gamboa e Hélder Viçoso Revisão: Hélder Viçoso Grafismo: Cristina Leal Paginação: Vitor Pedro © Sciences Humaines Éditions, 2005 Todos os direitos reservados para Edições Texto & Grafia, Lda. Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq. 1000 -217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21 797 81 03 E-mail: [email protected] www.texto-grafia.pt Impressão e acabamento: Papelmunde, SMG, Lda. 1.ª edição, Janeiro de 2009 ISBN: 978-989-95884-1-7 Depósito Legal n.º 287467/09 Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, sem a autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor será passível de procedimento judicial. HistCienHumanas_miolo.indd 4 06-01-2009 12:24:58 Nos movimentos e ritmos universais, a História está sempre presente; o instante que passa é já história no instante seguinte. Além de homenagear esta disciplina do saber como conceito aberto, esta colecção pretende oferecer ao público de língua portuguesa obras de valor indiscutível para uma formação universalista, que se integrem nos critérios de uma sólida cultura de base. HistCienHumanas_miolo.indd 5 06-01-2009 12:24:58 Concepção e redacção: Jean -François Dortier Com o contributo de: Claudie Bert, Philippe Cabin, Martine Fournier, Catherine Halpern, Evelyne Jardin, Nicolas Journet, Eric Keslassy, Alice Kreig-Planque, Michel Lallement, Pascal Lardelier, Serge Lellouche, Laurent Mucchielli, Charles Pépin, Jérôme Souty e Sandrine Teixido. Coordenação: Emmanuelle Garcia HistCienHumanas_miolo.indd 6 06-01-2009 12:24:58 ÍNDICE Abertura ...................................................................................................... 11 PRIMEIRA PARTE 1800-1900 – O tempo dos pioneiros Um projecto fundador: a Sociedade dos Observadores do Homem .......... 19 A grande história das línguas ....................................................................... 25 Adam Smith inventa a Economia Política ..................................................... 30 Alexander von Humboldt e o nascimento da Geografia ............................. 35 Alexis de Tocqueville e o advento da democracia ....................................... 42 Boucher de Perthes e a antiguidade do ser humano ................................... 47 Auguste Comte: da Sociologia à religião da Humanidade ........................... 52 Karl Marx, sábio e profeta ........................................................................... 59 Jules Michelet inventa a História de França ................................................. 68 Lewis Henry Morgan: encontro com os Iroqueses ...................................... 73 Léon Walras e os economistas neoclássicos ............................................... 80 Origens da Psicologia: uma história encoberta ........................................... 87 James Frazer e O Ramo de Ouro .................................................................. 94 SEGUNDA PARTE 1900-1950 – O tempo das fundações De como Freud inventou a Psicanálise ........................................................ 103 A Sociologia francesa organiza -se ............................................................... 115 Franz Boas, pai da Antropologia Cultural ................................................... 118 Ferdinand de Saussure, «fundador» da Linguística Moderna ...................... 124 Alfred Binet: estudos sobre a inteligência e o pensamento ......................... 129 Os sociólogos alemães face ao mundo moderno ........................................ 136 7 HistCienHumanas_miolo.indd 7 06-01-2009 12:24:58 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS A «ciência» da forma toma corpo na Alemanha ......................................... 139 Escola de Chicago: cidade, comunidades e marginalidade ........................... 143 Edmund Husserl e a fenomenologia ............................................................ 146 Em busca da «mentalidade primitiva» ......................................................... 154 O Círculo de Viena e o novo espírito científico ........................................... 158 Educação Nova: liberdade, criatividade, autonomia ................................... 161 A Escola de Praga ou o nascimento da Linguística Estrutural ...................... 164 1929 – Nascimento da revista Annales ........................................................ 167 Os intelectuais judeus no exílio ................................................................... 169 John Maynard Keynes revoluciona o pensamento económico .................... 172 Culturalismo: a personalidade é forjada pela cultura .................................. 176 Nascimento da Etologia – do animal ao ser humano .................................. 180 Existencialismo – da filosofia ao modo de vida ........................................... 183 Da Cibernética à Inteligência Artificial ......................................................... 186 Antropologia – o apogeu funcionalista ........................................................ 190 TERCEIRA PARTE Após 1950 – O tempo dos investigadores Os intelectuais e o marxismo ...................................................................... 197 Linguística: a revolução generativa .............................................................. 201 Cultura de massas: seus mitos, suas imagens .............................................. 204 A vaga estruturalista .................................................................................... 207 O impulso do interaccionismo – de Palo Alto à etnometodologia .............. 211 Os filósofos face à ciência ............................................................................ 214 Michel Foucault: poder, saber, loucura ........................................................ 218 Contracultura: a revolta dos seventies ......................................................... 222 A explosão da Nova História ...................................................................... 226 Rumo à revolução cognitiva ........................................................................ 230 De Lucy aos nossos dias... à descoberta das nossas origens ....................... 233 O retorno do actor ..................................................................................... 236 Economia, a vaga liberal .............................................................................. 240 Pierre Bourdieu, o anti -herdeiro ................................................................. 244 O tempo da comunicação ............................................................................ 248 Desordem e indeterminismo: uma nova visão do mundo ........................... 251 8 HistCienHumanas_miolo.indd 8 06-01-2009 12:24:59 ÍNDICE Os etnólogos chegam à cidade .................................................................... O laço social em crise? ................................................................................. O despertar da Filosofia .............................................................................. Pós-modernidade: uma ideia finissecular? ................................................... As Ciências Sociais no tempo das redes ...................................................... A inteligência dispersa ................................................................................. 256 259 262 266 269 273 Guia de leitura ............................................................................................. 277 9 HistCienHumanas_miolo.indd 9 06-01-2009 12:24:59 HistCienHumanas_miolo.indd 10 06-01-2009 12:24:59 ABERTURA «A História é a narrativa das coisas dignas de memória.» Giambattista Vico tinha sonhado com uma ciência nova: a scienza nuova. Estávamos então nos anos 1725-1730. Uma grande revolução científica tinha começado há já um século. Galileu apontara a sua luneta para os astros. Bacon lançou as bases da ciência experimental. Newton estava a inventar as leis da gravitação universal, Harvey tinha descoberto a circulação do sangue. Exploradores sulcavam mares, descobriam ilhas, progrediam no interior dos continentes até então inexplorados. Traziam descrições de plantas, animais, paisagens e povos desconhecidos. Das estrelas aos micróbios, das plantas aos animais, a ciência progredia a passos largos. Já nada podia escapar ao conhecimento dos humanos. «E encarregar-nos-emos de explicar o mistério das coisas, como se fôssemos espiões de Deus» (Shakespeare, Rei Lear). Havia, contudo, um domínio em que os humanos continuavam a ser estranhamente ignorantes: o conhecimento de si mesmos. Eis o que espantava Giambattista Vico: «Quem quer que reflicta a este respeito não pode deixar de ficar estupefacto ao ver que os filósofos consagraram toda a sua energia ao estudo do mundo da Natureza […] e descuraram o estudo do mundo das nações.» Esse «mundo das nações», a que hoje chamaríamos «sociedades humanas» ou «culturas» – eis o que devia ser o objecto da «scienza nuova». Será preciso esperar pelo fim do século XVIII para que a «ciência do Homem» se materialize. Será uma das grandes ambições dos filósofos das Luzes que convocarão todos à fundação daquilo se denominava então «ciência do Homem», «ciência social», «ciência moral» ou, muito simplesmente, «antropologia». Porém, ainda se tratava apenas de sonhos de filósofos. No início do século XIX, finalmente, o projecto toma forma. É o tempo dos pioneiros, que têm por nome Boucher de Perthes, 11 HistCienHumanas_miolo.indd 11 06-01-2009 12:24:59 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Alexander von Humboldt, Jules Michelet, Lewis Morgan e muitos outros. Alguns, como Auguste Comte, Karl Marx ou James Frazer, passaram a vida – em bibliotecas – a construir grandes edifícios teóricos: teoria da sociedade, do capitalismo, das mitologias da Humanidade inteira. Outros cruzam os oceanos, partindo ao encontro de povos cujos costumes e instituições querem compreender. Outros ainda – como Boucher de Perthes ou Edward Tylor – coleccionam, reúnem, classificam e organizam verdadeiros museus pessoais. Cada um à sua maneira participa na construção de um novo saber. Enquanto se completa a exploração do Planeta, parece começar a exploração do Homem. Nessa época, meados do século XIX, as fronteiras disciplinares ainda não estão bem estabelecidas. O método também ainda não está bem definido. Por volta dos anos 1860, iniciar-se -á, aliás, um grande debate a este propósito. Alguns pensam que é preciso aplicar ao estudo dos humanos o método que tanto êxito obteve nas Ciências da Natureza: observação, medição, classificação, experimentação, investigação de leis. Neste espírito, são criados laboratórios de Psicologia. A Economia, que se quer científica, decalca os modelos da Física. Outros inclinam-se de preferência para um novo método, específico do estudo dos humanos e baseado na reconstituição dos valores, das visões do mundo e dos universos mentais, pressupondo que as acções humanas, sempre mutáveis e singulares, não podem deixar-se encerrar em leis… Depois, vem o tempo das verdadeiras fundações. A passagem do século XIX para o século XX é um período -charneira, no qual se organiza a Sociologia em França sob a égide de Émile Durkheim, na Alemanha com Max Weber, vendo a luz do dia nos Estados Unidos na Universidade de Chicago. No mesmo momento, Sigmund Freud inventa a Psicanálise, Ferdinand de Saussure faz entrar a Linguística numa nova era, enquanto Franz Boas e Marcel Mauss formam as primeiras gerações de antropólogos profissionais. A cristalização das disciplinas é acompanhada da criação de revistas e associações profissionais. Cada disciplina estabelece os respectivos princípios e um método, traçando as suas fronteiras, não sem dissensões e querelas quanto a limites e legimitidade: já! Aplicada ao 12 HistCienHumanas_miolo.indd 12 06-01-2009 12:24:59 ABERTURA conhecimento científico, a palavra disciplina diz bem aquilo que pretende dizer: normas, poder, proibições. É após a Segunda Guerra Mundial que as Ciências Humanas ganham impulso. O seu desenvolvimento é imponente; quantitativo, a princípio. A partir dos anos 50, assiste-se à multiplicação do ensino universitário e do número de estudantes. Há somente um punhado de investigadores no início do século XX, contando-se dezenas de milhares no fim do mesmo. Cinco mil revistas, dezenas de milhares de artigos e livros aparecem no Mundo em cada ano. Tal crescimento quantitativo está ligado a uma tripla evolução: especialização, tecnicização, profissionalização. Especialização. Cada disciplina é subdividida em secções: há a Sociologia do Trabalho, das Classes Sociais, da Família, do Estado, etc. A Economia é compartimentada: finanças, desenvolvimento, emprego, etc. Cada ramo evolui separadamente com a sua linguagem e as suas referências. Assiste -se a uma certa balcanização e a uma babelização dos conhecimentos. Tecnicização. Os métodos querem -se mais rigorosos e codificados: análise de dados, estatísticas, abordagem clínica, testes projectivos, observação participante… O tempo dos investigadores sucedeu ao tempo dos pioneiros e dos fundadores. Profissionalização, por último. As Ciências Humanas entram na sociedade, com o desenvolvimento do número de psicólogos e psiquiatras; economistas, demógrafos e geógrafos fornecem dados aos decisores; sociólogos tornam -se especialistas em organização e política social… Até os historiadores são convocados para o pretório dos tribunais. Há duas maneiras de contar a história das ciências. A primeira – mais clássica – faz desfilar obras marcantes, momentos-chave e personagens importantes. As Ciências da Natureza tinham os seus heróis: Galileu, Newton, Darwin, Pasteur, Einstein. As Ciências Humanas terão o seu panteão: Marx, Freud, Durkheim, Chomsky, Foucault, Bourdieu… Encontrá-los-emos, obviamente, ao longo deste livro. Será uma visão ultrapassada conceder tanto espaço à biografia dos «grandes autores» e aos momentos fundadores? Acreditou-se nisso durante um certo tempo. Porém, os historiadores 13 HistCienHumanas_miolo.indd 13 06-01-2009 12:24:59 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS actuais já não menosprezam o género biográfico. Sabe -se que a História é edificante, por muito que já não ceda à exaltação das suas personagens. Um exemplo? Para o conhecimento da Psicanálise, não é indiferente saber que Freud não inventou o conceito de Édipo ao observar crianças, mas ao remexer na sua própria memória. A História permite revelar a parte pessoal na elaboração de uma obra. Pierre Bourdieu, tão cioso de rigor científico, sabia bem aquilo que a sua teoria do habitus devia ao seu percurso pessoal de jovem oriundo dum meio popular bruscamente confrontado com uma elite culta. Os conceitos e as teorias dependem de um passado. Restituir um pensamento no seu espírito fundador é compreender melhor o projecto, o ponto de vista, as ideias-chave e os programas de investigação respectivos. É também encontrar a parte humana sob a abstracção dos conceitos ou o aparelho das demonstrações. Quer-se social e panorâmica a outra maneira de fazer a história das ciências. Designada «externalista» pelos especialistas, procura pôr em relevo mais os movimentos de fundo do que as grandes figuras. Por detrás dos autores, procura as redes; por detrás das ideias, persegue as instituições; por detrás dos indivíduos, interessa-se pelas forças sociais. Prefere as correntes subterrâneas às datas e aos momentos fundadores. A abordagem é fértil, porque as ideias, maiores ou menores, nascem e desenvolvem -se num meio que, por sua vez, recriam e reconfiguram. Os conceitos vagueiam de um universo para outro, como veremos nas páginas seguintes. Em 1860, a evolução está na moda. Cem anos mais tarde, em meados do século XX, as ideias de «estrutura» ou «sistema» inspiram as Ciências Humanas. No fim do século XIX, a ideia de inconsciente circula um pouco por todo o lado. No final do século XX, é o cognitivo que se difunde como uma vaga de fundo. Em Les Mots et les Choses1, Michel Foucault tinha empreendido uma «arqueologia das ciências humanas», visando actualizar as estruturas do conhecimento ocultas. No mesmo momento, Thomas Kuhn fala de «paradigma científico», Gerald Holton 14 HistCienHumanas_miolo.indd 14 06-01-2009 12:24:59 ABERTURA de «themata», outras formas de falar dos modelos de pensamento de que é prisioneira cada época. Porquê debruçar-se sobre a história das Ciências Humanas? O olhar retrospectivo vacina-nos primeiro contra a ilusão do presente, o que nos leva a crer que estaríamos livres do peso do nosso tempo. A História lembra-nos que as Ciências Humanas são, em primeiro lugar, coisas humanas, o que quisemos muito sublinhar neste livro. Para tanto, será preciso admitir que o pensamento é errático e está totalmente sujeito ao espírito do tempo? Isso seria desconhecer um facto importante: há um século, quando os pioneiros se lançaram à aventura, sabia-se muito pouca coisa sobre os humanos, nada sobre as nossas origens pré -históricas, nada sobre o funcionamento da memória, nada sobre as estruturas de parentesco em diferentes civilizações, nem sobre o nascimento da inteligência infantil… Porém, num século e meio, a quantidade de dados é imensa, a tal ponto que ficamos desconcertados pela acumulação de investigações, teorias e modelos, sendo -nos difícil dar conta de achados, impasses e falsas pistas. Esta História das Ciências Humanas visa também ajudar-nos a medir o caminho percorrido, a colocar balizas, a dar pontos de referência numa história prolífica, a encontrar até algumas pistas esquecidas ou eliminadas, a reapropriar-se também de uma parte do saber e das ideias enunciadas pelas gerações anteriores. Pois, como veremos, a história das Ciências Humanas não é um cemitério de ideias mortas. Algumas continuam a viver em nós. Numerosos foram os erros e impasses, assim como foram eliminadas pistas promissoras. Aprendemos muito, mas esquecemos outro tanto. E nem tudo o que se passou está ultrapassado. J.-F. D. Nota 1 Consultar nota 2 da página 285 [N. T.]. 15 HistCienHumanas_miolo.indd 15 06-01-2009 12:24:59 HistCienHumanas_miolo.indd 16 06-01-2009 12:25:00 PRIMEIR A PARTE 180 0 -190 0 O TEMPO DOS PIONEIROS HistCienHumanas_miolo.indd 17 06-01-2009 12:25:00 HistCienHumanas_miolo.indd 18 06-01-2009 12:25:00 UM PROJECTO FUNDADOR Sociedade dos Observadores do Homem Em 19 de Outubro de 1800, duas fragatas (a Geógrafa e a Naturalista), comandadas pelo capitão Nicolas Baudin, deixam Le Havre rumo à Austrália e à Tasmânia, descobertas alguns anos antes pelos exploradores Abel Tasman, James Cook e Louis-Antoine, conde de Bougainville. A sua missão é recolher o máximo de dados sobre a fauna e a flora dessas paragens, assim como estudar os «povos selvagens» que aí habitam. Georges Cuvier, célebre naturalista, deu instruções com vista a compreender que espécie de seres humanos vive nessas terras, numa Nota Instrutiva sobre as Investigações a Fazer relativamente às Diferenças Anatómicas das Diversas Raças Humanas1. Joseph-Marie de Gérando redigiu à intenção dos exploradores Considerações sobre os Diversos Métodos a seguir na Observação dos Povos Selvagens2, verdadeiro manual de Etnografia, o primeiro do género3. Gérando sublinha primeiro que o estudo dos «selvagens» oferece o interesse de observar os humanos num estádio original da civilização. Junto deles como que remontamos às primeiras épocas da História, e «podemos estabelecer experiências seguras sobre a origem e a geração das ideias, a formação e os progressos da linguagem», pensa Gérando, que acrescenta: «O viajante filósofo que navega para as extremidades da Terra atravessa, de facto, a sequência das eras, viaja no passado; cada passo que dá é um século que transpõe. As ilhas desconhecidas a que chega são para ele o berço da sociedade humana.» O autor preconiza um método original, muito avançado para a época, sugerindo que os exploradores aprendam as línguas indígenas, sem as quais não se pode compreender o sentido das suas tradições (da sua «cultura», dir-se -á bem mais tarde). São formuladas instruções precisas. Primeiro será necessário recolher as «ideias simples», os nomes que os indígenas utilizam para designar plantas, animais e partes do corpo. Passar-se -á depois às «ideias complexas» que dizem respeito à aldeia, à floresta, à guerra. Por fim, interessar-se -ão por ideias abstractas: «Deveremos interrogá -los acerca de ideias morais como o desejo, a esperança, o temor e a morte.» Também será preciso recolher informações sobre a vida social, as técnicas, o parentesco, o pudor, a educação das crianças… É o programa inteiro da futura Antropologia que Gérando está a conceber, reconhecendo que se trata de «um trabalho imenso». Contudo, o 19 HistCienHumanas_miolo.indd 19 06-01-2009 12:25:00 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS contributo para a ciência será gigantesco. Os exploradores que se aprestam a «lançar-se para fora do mundo civilizado» estão, portanto, investidos de uma grande missão. A sua viagem inscreve -se num vasto programa de estudo definido alguns meses antes por um grupo de cientistas e ideólogos agrupados na Sociedade dos Observadores do Homem. Ideologia, nova ciência das ideias. Por «ideólogos» entende -se então os defensores da ideologia, uma filosofia cujo principal teórico é Antoine -Louis-Claude Destutt de Tracy (1754 -1836), membro do Institut de France. Oriundo de uma velha família escocesa, é um dos intelectuais ligados à Revolução que começaram nas armas a respectiva carreira antes de se consagrarem a assuntos políticos e a estudos eruditos. A ideologia é definida por Destutt de Tracy como a «ciência das ideias». Genealogia do conhecimento, visa descrever como as ideias nascem, se desenvolvem e se combinam na mente humana, mas pretende ser também um guia para dirigir rigorosamente o pensamento. Tal teoria é muito influenciada pelo filósofo Condillac (1795 -1780), que, em Essai sur l'origine des connaissances humaines8 (1749), defendera a tese «sensualista»: as ideias nascem dos sentidos, e pensar é, antes de mais, sentir, escutar, tocar. Nas origens do pensamento humano, não há razão, como defende Descartes, mas percepção. Para Destutt de Tracy, todas as ideias provêm não só dos sentidos externos (visão, tacto, audição), mas também dos «sentidos internos» (desejo, vontade). As ideias não são mais do que a transformação de sensações em símbolos da linguagem. Do sentido ao signo, das ideias simples às ideias complexas, do concreto ao abstracto, das necessidades básicas às concepções morais, o espírito produz assim uma grande quantidade de pensamentos que vão propagar-se pelas nossas mentes. Ciência da formação das ideias, a ideologia deve, segundo Destutt de Tracy, ter como efeito um método e uma pedagogia. Trata-se de aprender a separar e a combinar rigorosamente as ideias entre si. Tal trabalho exige uma aprendizagem particular, em que a análise das ideias (ou seja, a sua decomposição em proposições simples) ocupa um lugar particular. Em 1795, Destutt de Tracy lê no Instituto a sua Idéologie, esperando fazer dela o suporte de um manual de instrução para as escolas centrais. A ideologia tal como Destutt de Tracy a concebe então é ainda apenas um esboço, porque o autor está bem ciente de que, para construir uma verdadeira «ciência das ideias», é necessário deixar a especulação para se dedicar a observações exactas. Substituir a recolha dos factos por ideias gerais é mesmo um ponto essencial do seu método, razão pela qual Destutt de Tracy e os outros ideólogos desejam que se desenvolvam estudos comparativos acerca da mente humana em estado incipiente. 20 HistCienHumanas_miolo.indd 20 06-01-2009 12:25:00 1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS Quem são os Observadores do Homem? No fim do século XVII, a Sociedade dos Observadores do Homem compreende uns sessenta membros: cientistas de primeiro plano como os naturalistas Georges Cuvier e Bernard de Jussieu, linguistas e filósofos (Joseph-Marie de Gérando, Destutt de Tracy, o abade Sicard), médicos de renome (Pierre Cabanis, Philippe Pinel, Moreau de la Sarthe), geógrafos e historiadores (como o conde de Volney) e exploradores como Bougainville e Nicolas Baudin. Esses homens conhecem -se bem. Alguns encontraram -se antes da Revolução no salão de Madame Helvétius, já frequentado por Condorcet, Condillac, Cabanis, Diderot e Volney, formando um clube de pensadores, portadores de um ideal filosófico e educativo idêntico. Trata-se de promover o espírito das Luzes, prosseguir a obra dos enciclopedistas participando no desenvolvimento das ciências, criando primeiro a mais importante delas, a «ciência do Homem», que terá por objectivo estudá-lo sob um prisma tanto «fisiológico» como «moral». Por «moral» entende-se então o conjunto das faculdades relativas ao pensamento, à vontade e aos costumes, aquilo a que hoje se chama as dimensões psicológicas e culturais. Para eles, o progresso dos conhecimentos passa também por uma reforma da educação. Durante a Revolução, os principais membros desse clube de eruditos empenharam -se na reorganização do ensino. Entre 1792 e 1799, a sua obra será impressionante. Condorcet tinha redigido um projecto de Reforma da Instrução Cívica4 que define os princípios de um ensino popular. É com esse objectivo que as primeiras escolas normais, destinadas a formar professores primários, vêem a luz do dia em 1795. A criação das escolas centrais, precursoras dos liceus, é igualmente um ponto a favor deles. É o mesmo clube de pensadores que está na origem da Escola Normal Superior5, em 1794, e da Escola Politécnica, no ano seguinte. Por último, criaram novas instituições científicas: o Museu de História Natural6 e o Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (Cnam7). Para fechar com chave de ouro, o Institut de France é fundado em 1795. Destinado a promover as actividades científicas, substitui as antigas academias reais. No seio do Instituto, a secção de «Ciências Morais e Políticas» tornar-se -á o foco daqueles que são designados daí em diante por ideólogos. 21 HistCienHumanas_miolo.indd 21 06-01-2009 12:25:00 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Louis-François Jauffrey, o secretário, redigiu com esse propósito um texto programático que resume bem as orientações da Sociedade9. Trata-se de lançar um vasto programa de «antropologia comparada» destinado a observar os humanos sob todos os horizontes: descrever a sua constituição física, os seus costumes e as suas faculdades intelectuais ou «morais», como então se diz. Tais estudos comparativos deverão tomar diversas direcções. Primeiro, o estudo dos «povos antigos», que nos dá uma retrospectiva sobre os primeiros tempos da Humanidade. É a tarefa empreendida pelo historiador Volney, membro da Sociedade e autor de diversos trabalhos sobre os «povos da Antiguidade». O estudo dos «povos selvagens» é um outro eixo de investigação, motivo pelo qual a expedição de Baudin foi organizada e revestiu tão grande importância. Jauffrey sugere também outro tipo de estudos, nomeadamente o de pessoas surdas-mudas. De facto, admitia-se até então que elas estão no mesmo estado das pessoas com deficiência intelectual: por não poderem aceder à linguagem, carecem de inteligência. Ora, nos anos 1770, o abade [Charles-Michel] de l'Epée, fundador da primeira escola para pessoas surdas-mudas, mostrou que era possível educá-las mediante a língua dos sinais. O abade Sicard, que lhe sucedeu, aperfeiçoou o seu método. Jauffrey propõe -se, pois, questionar os seus alunos «sobre a época que precedeu a instrução deles». Poder-se -á assim conhecer em que estado mental eles estavam antes de adquirirem a linguagem, e «as suas respostas tornar-se-ão matéria preciosa para uma história filosófica do ser humano». Jauffrey sugere outrossim um programa totalmente original para a época: o estudo da origem do pensamento infantil. «Por que razão não teremos o mesmo prazer em considerar com olhar atento o alvor da mente que se desenvolve, em manter o diário pormenorizado dos progressos da inteligência de uma criança, em ver nascer as suas faculdades?» A Sociedade proporá até um prémio destinado a recompensar tais estudos sobre «os primeiros desenvolvimentos das faculdades do ser humano no berço». Jauffrey evoca ainda a possibilidade de proceder a uma experimentação, no mínimo, espantosa. Seria preciso, diz ele, «observar cuidadosamente, durante doze ou quinze anos, quatro ou seis crianças, metade de cada sexo, colocadas desde o nascimento num mesmo recinto, afastadas de qualquer instituição social e abandonadas – para o desenvolvimento das ideias e da linguagem – só aos instintos da natureza». Poder-se -ia assim distinguir aquilo que, no ser humano, depende da natureza e da educação. Porém, reconhece Jauffrey, tal experiência seria difícil de realizar… «Efectivamente, semelhante empresa exigiria o sacrifício de 22 HistCienHumanas_miolo.indd 22 06-01-2009 12:25:00 1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS uma vida inteira.» Não a vida das crianças, mas antes a vida do pobre erudito que deveria consagrar a tal experiência tanto tempo e dinheiro! Ao fim de quatro anos, a expedição Baudin regressa a França. A viagem foi terrível. Nada poupou os exploradores: tempestades, avarias das embarcações, escorbuto, motins… Exausto e doente, o capitão Baudin morreu durante o trajecto de regresso. Apesar de tudo, a expedição trouxe da Austrália uma rica colheita científica: milhares de plantas, insectos e pequenos animais desconhecidos. Charles-Alexandre Lesueur, desenhador naturalista, delineou mais de 1500 croquis relativos à fauna e à flora australianas. Pelo contrário, em matéria antropológica, o balanço é limitado. François Péron, contratado como «naturalista e antropólogo», recolheu sobretudo informações sobre a constituição física dos «selvagens» e respectiva aparência (penteado, trajo), mediu -lhes a força, fez um inventário dos seus utensílios e teceu algumas considerações sobre a sexualidade deles. Está-se muito longe do programa de investigação do pensamento e da linguagem estabelecido por Gérando. De qualquer maneira, no regresso da expedição de Baudin, em 1804, as actividades da Sociedade vão por mau caminho. Napoleão Bonaparte tomou o poder em 1799. Até então, os ideólogos tinham feito figura de pensadores da Revolução. Uns vão opor-se ao imperador, enquanto outros se aliam ao novo regime. Tais dissensões vão minar a Sociedade, que se autodissolve em 1805. Os ideólogos perante Napoleão. Napoleão, por seu turno, quer votar ao silêncio os ideólogos, cujos projectos não são do seu agrado. Julgando perigosa a instrução do povo, «porque gera ambiciosos», ordena a dissolução da secção de Ciências Morais e Políticas do Instituto, sede principal dos ideólogos. «São sonhadores, fraseadores, metafísicos, bons para atirar ao mar!» Na sua boca, os termos ideologia e ideólogos adquirem conotação pejorativa10. O seu sentido vai mudar então. A ideologia já não é a «ciência das ideias» concebida por Destutt de Tracy, mas uma doutrina filosófico -política mais ou menos obscura… A partir de então, cada qual prosseguirá o seu próprio percurso. Alguns desempenharão um papel importante na história da respectiva disciplina: Pinel em Psiquiatria, Cuvier em Paleontologia… Volney é considerado um dos precursores da Geografia Humana. Destutt de Tracy levará por diante a redacção de Elementos de Ideologia11, e entrará na Academia Francesa. Afecto ao regime imperial, Gérando tornar-se -á referendário do Conselho de Estado, prosseguindo a reflexão sobre a génese do pensamento humano. Todavia, tais êxitos individuais não impedirão o desaparecimento da ideologia. Banida por Napoleão, a doutrina oficial da Revolução será esquecida. Paradoxo: os ideólogos, que tanto tinham feito pela implantação de instituições 23 HistCienHumanas_miolo.indd 23 06-01-2009 12:25:00 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS educativas e científicas, não terão eles próprios feito escola! O estudo da génese das ideias e do seu impacto sobre a vida humana será suspenso durante quase um século. Será preciso esperar pelo final do século XIX para que a Antropologia Cultural, a Psicologia Social, a Epistemologia, a Sociologia do Conhecimento, etc., retomem à sua maneira o programa iniciado por Destutt de Tracy e os seus. Mas isso é outra história. J.-F. D. Notas 1 Note instructive sur les recherches à faire relativement aux différences anatomiques des diverses races d'homme, no original [N. T.]. 2 Considérations sur les diverses méthodes à suivre dans l'observation des peuples sauvages, no original [N. T.]. 3 Reeditado por Jean Copans e Jean Jamin em Aux origines de l'anthropologie française, Paris, Éditions Jean -Michel Place, 1994. 4 Marquês de Condorcet, Instrução Pública e Organização do Ensino, tradução de Eduardo Cruz, Porto, Educação Nacional, 1943 [N. T.]. 5 Depois designado «École normale supérieure» (ENS), esse estabelecimento de ensino parisiense denominou -se primeiro «École normale de l'an III» [N. T.]. 6 Muséum d'histoire naturelle [N. T.]. 7 Conservatoire national des arts et métiers [N. T.]. 8 Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, tradução de José Bragança de Miranda e João Afonso Santos, Lisboa, Via Editora, 1979 [N. T.]. 9 «Introduction aux Mémoires de la Société des observateurs de l'homme», in Aux origines de l'anthropologie française, op. cit. 10 Mais tarde, Marx retomará o termo para designar os filósofos alemães, sendo assim que ele ganhará a sua significação actual de uma doutrina política e moral assente em bases pretensamente científicas. Ver Raymond Boudon, L'Idéologie ou l'Origine des idées reçues, Fayard, 1986, reedição, Seuil, 1992. 11 Élémen[t]s d'idéologie (4 volumes, 1825 -1827), que constam de quatro partes publicadas antes em 3 volumes: I. Idéologie proprement dite; II. Grammaire; III -IV. De la logique [N. T.]. 24 HistCienHumanas_miolo.indd 24 06-01-2009 12:25:01 A GRANDE HISTÓRIA DAS LÍNGUAS Cada língua comporta vestígios do seu passado e do seu laço genealógico com outras línguas. Comparemos os primeiros três numerais franceses (un, deux, trois), italianos (uno, due, tre), espanhóis (un, dos, tres) e portugueses (um, dois, três). Não é preciso ser linguista para compreender que existe um laço de parentesco entre estas quatro línguas. Não é necessário ser historiador para saber que elas derivam do latim. Os linguistas sabiam, desde há muito, que as línguas mudam, evoluem, se transformam e subdividem. Porém, para reconstituir a respectiva árvore genealógica, examinando a sua estrutura e o seu vocabulário, era preciso que emergisse uma nova disciplina científica: a Linguística Comparada, que será a grande obra dos linguistas do século XIX. Do sânscrito ao indo -europeu. Um dos pontos de partida dessa vasta investigação começa com a descoberta do sânscrito por ocidentais. O sânscrito foi a língua da Índia Antiga. Em sânscrito clássico foram escritos os Veda, primeiros grandes textos religiosos do Hinduísmo (que remontam ao final do segundo milénio antes de Cristo). Todos os textos importantes da cultura indiana foram igualmente retranscritos em sânscrito: a epopeia do Mahabharata, os textos poéticos, a prosa literária e filosófica, o Kamasutra… Depois, como sucedeu com o latim ou o grego antigo, o sânscrito desapareceu sob a forma oral, sobrevivendo só sob a forma escrita entre letrados. Foi William Jones (1746 -1794) o primeiro a ter compreendido a relação que o sânscrito mantinha com as outras línguas europeias. Filho de um ilustre matemático, Jones é um estudante -prodígio, que manifesta muito prematuramente um talento excepcional para línguas. Já formado em Cultura Clássica, sobressaindo em Grego e Latim, aproveita as férias para se aperfeiçoar em francês, italiano, espanhol e português. Mas são sobretudo as línguas orientais que o apaixonam. Na adolescência, lança-se sozinho no estudo do hebreu e do árabe. Entrando na Universidade de Oxford para cursar Direito, o jovem Jones passa os tempos livres a estudar chinês, inicia-se no persa, aperfeiçoa-se em árabe graças a um amigo sírio, Mirza, que lhe serve de tutor. Em 1764, apenas com 18 anos, licencia-se em Oxónia! Enceta então uma carreira de preceptor e tradutor. Lança-se numa actividade editorial desenfreada: em 1770, tendo 25 HistCienHumanas_miolo.indd 25 06-01-2009 12:25:01 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS traduzido do persa Histoire de Nader Chah, connu sous le nom de Thahmas Kuli Khan, de Perse [História de Nader Xá, conhecido sob o nome de Thahmas Kuli Khan, Imperador da Pérsia], publica um Tratado sobre a Poesia Oriental; dois anos depois, traduções de poemas persas (em verso!). Aos 25 anos, publica uma Dissertação sobre a Literatura Oriental e, sobretudo, a sua Gramática da Língua Persa, que será uma referência duradoura. Os anos seguintes não são menos férteis em publicações e traduções. Com menos de 30 anos, Jones é já uma autoridade reconhecida e incontestada em matéria de estudos orientais. Contudo, tais actividades editoriais não bastam para fazer viver o rapaz. Paralelamente a elas, tinha encetado uma carreira de jurista imediatamente brilhante. Inscrito na Ordem dos Advogados de Londres em 1774, ei -lo comissário da falência apenas dois anos depois. Em 1778, publica um notável ensaio de Direito: Essay on the Law of Bailments. Almeja então um lugar de professor na Universidade de Oxford; não obstante o seu extraordinário currículo, as suas opiniões liberais não lhe dão qualquer oportunidade. Finalmente, a oportunidade da sua vida apresenta-se em 1783. Consegue obter o lugar de magistrado na corte suprema de Calcutá, colónia britânica então chamada Fort William. É o sonho da sua vida: ir às Índias, encontrar e ver a civilização oriental que ele só conhecia dos livros. A bordo do Crocodilo, barco que o leva à Índia em Setembro de 1783, William Jones redige o seu grande projecto: «Objects of Enquiry during my Residence in Asia». Entre os seus objectos de estudo, integra as leis hindus, a geografia e a organização política da Índia, do Tibete e do Nepal, as matemáticas e as ciências indianas, a poesia, a literatura, e até a música, o comércio, a agricultura, em suma, toda a civilização indiana! William Jones não está simplesmente fascinado pelo Oriente: pensa que essa antiga civilização é o berço da ciência e da cultura. Chegado à Índia, não tarda a empreender a tarefa. Primeiro objectivo: o estudo do sânscrito. Bastante depressa, Jones descobre paralelismos espantosos entre o sânscrito, o grego e o latim, perguntando -se se não haveria um parentesco entre essas línguas antigas. Em 1787, perante a Sociedade Asiática de Bengala, uma instituição erudita que ele próprio fundara três anos antes, aventa pela primeira vez esta hipótese audaciosa: o sânscrito e as línguas europeias poderiam estar ligadas entre si por uma história comum. «O sânscrito, por mais antigo que possa ser, tem uma estrutura espantosa; mais completo do que o grego, mais rico do que o latim, prevalece, pelo seu distinto requinte, sobre essas duas línguas, tendo com elas, tanto nas raízes das palavras 26 HistCienHumanas_miolo.indd 26 06-01-2009 12:25:01 1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS como nas formas gramaticais, uma afinidade bastante forte para que possa ser fruto do acaso.» Quando as ideias se encadeiam. Foi um grande achado. Pela primeira vez, sugere -se a hipótese de uma família de línguas indo -europeias1. Pela primeira vez? Não totalmente. Para ser justo, importa assinalar que, dois séculos antes, o mercador italiano Filippo Sassetti, também fascinado pela cultura indiana, já fizera a comparação entre o sânscrito e o latim. Igualmente, desde o século XVIII, vários eruditos holandeses notaram que o latim, o grego, o persa e as línguas europeias possuíam muitas palavras próximas. Pensa-se então que isso procede de uma origem «cítica», comum a essas línguas. Mas os preconceitos religiosos não permitem ir mais longe: não afirma a Bíblia que todas as línguas derivam do hebreu? Todos esses trabalhos permanecem, pois, isolados, não podendo desenvolver-se, por falta de um clima propício. Assim ia a história das descobertas científicas. No final do século XVIII, a situação altera-se. A expansão colonial trouxe para a Europa uma quantidade considerável de dados linguísticos provenientes da América, da Ásia, de África e de ilhas longínquas. Soada a hora das comparações, William Jones é pontual. Os seus trabalhos fazem já parte de um movimento emergente, de que ele é simplesmente um dos actores. Na mesma época, Johann Christoph Adelung, contemporâneo de Jones, reuniu em Mitrídates uma descrição sumária de sensivelmente quinhentas línguas do Mundo inteiro, propondo inclusive uma dúbia tradução do Pai -Nosso em cada uma delas… Nascimento da gramática comparada. Dessa vasta compilação das línguas só podia nascer a ideia de um método comparativo. A expressão gramática comparada surge efectivamente pela primeira vez em 1808, pela pena do escritor Friedrich von Schlegel (1772-1829), na obra Über die Sprache und Weisheit der Indier2. Mas foi ao alemão Franz Bopp que coube sistematizar o método e fundar, assim, a gramática linguística comparada. Em 1816, publica Über das Konjugationssystem der Sanskritsprache in Vergleichung mit jenem der griechischen, lateinischen, persischen und germanischen Sprache3, no qual mostra as estreitas ligações entre o vocabulário, assim como entre as estruturas gramaticais do sânscrito e das línguas europeias. Tal estudo será prolongado pelos três volumes de Vergleichende Grammatik des Sanskrit, Zend, Griechischen, Lateinischen, Litauischen, Gotischen und Deutschen4, publicados entre 1833 e 1852. Os estudos filológicos e a gramática comparada vão conhecer, pois, uma verdadeira explosão em meados do século XIX, nomeadamente com os trabalhos do linguista dinamarquês Rasmus Rask (1787-1832) e do filólogo alemão Jakob Grimm (1785 -1863). 27 HistCienHumanas_miolo.indd 27 06-01-2009 12:25:01 UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS O método comparativo baseia-se numa ideia simples: quando duas línguas têm alguns vocábulos em comum, tal pode dever-se a um mero empréstimo. Assim, a presença na língua portuguesa das palavras cheque ou café, que provêm do árabe, em nada indica um parentesco entre as duas línguas. Para que se estabeleça uma origem comum, é preciso que existam relações sistemáticas entre os sons ou as estruturas gramaticais. Assim, Rasmus Rask tinha mostrado que o /p/ que se encontra em palavras latinas como pai e pé (père e pied em francês), pater (em latim) ou pod (grego), corresponde geralmente a um /f/ germânico em foot ou father (em inglês). Do mesmo modo, ao /k/ germânico corresponde sempre um /g/ latino ou grego. Tais correspondências termo a termo indicavam um deslocamento progressivo na pronúncia que tem decerto uma origem comum. O alemão Jakob Grimm – um dos dois folcloristas «irmãos Grimm» – procurará estabelecer leis sistemáticas de correspondência entre as línguas indo -europeias. Da génese à estrutura. A linguística histórica e comparada será a grande ocupação dos linguistas alemães em meados do século XIX. Tal gramática baseia-se na ideia de evolução que se difunde então na maior parte das ciências sociais e biológicas. Franz Bopp tinha, aliás, estabelecido explicitamente a analogia entre a evolução das línguas e a evolução das espécies. A ideia de evolução integrava o princípio genealógico segundo o qual as línguas evoluem de forma divergente a partir de origens comuns. A esse princípio está associada a ideia de lei de organização. Bopp imagina que, à semelhança dos seres vivos, as línguas são organizadas, tendo, por isso, uma estrutura interna: «As línguas devem ser consideradas como corpos naturais construídos com leis.» No final dos anos 1870, sucedendo à gramática comparada, uma escola de jovens linguistas denominados «neogramáticos» (Georg Curtius, Johann Kaspar Zeuss, Friedrich Diez, Franc Mikloši , etc.) aprofundará essa ideia. Para eles, a língua já não é simplesmente concebida como o produto de uma história, mas forma um sistema cuja coerência se baseia nas suas leis de organização interna. As palavras estrutura e sistema ainda não estão lá, mas não tardarão a emergir. Virão nomeadamente na pena de um jovem linguista suíço de nome Ferdinand de Saussure, que sistematizará a concepção «estruturalista» da língua e impulsionará uma outra orientação a toda a linguística. J.-F. D. 28 HistCienHumanas_miolo.indd 28 06-01-2009 12:25:01 1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS Notas 1 Foi o inglês Thomas Young que lançou o termo indo -europeu em 1813, mas foram sobretudo os alemães Friedrich von Schlegel e Franz Bopp, empregando antes indo-germânico, que desenvolveram a comparação científica entre todas as línguas da Europa e a língua antiga da Índia. 2 Sobre a Língua e a Sabedoria dos Índios [N. T.]. 3 Acerca do Sistema de Conjugação da Língua Sânscrita, Comparado com o das Línguas Grega, Latina, Persa e Germânica [N. T.]. 4 Gramática Comparada do Sânscrito, do Zende, do Grego, do Latim, do Lituano, do Velho Eslavo, do Gótico e do Alemão [N. T.]. 29 HistCienHumanas_miolo.indd 29 06-01-2009 12:25:02