XV Encontro Nacional de Geógrafos
“O espaço não pára. Por uma AGB em movimento”
A Reprodução da Metrópole e o Processo de Valorização do Espaço Urbano: A
Contradição Deterioração/Revitalização na Área Central
Julio Cesar Ferreira Santos1
AGB-São Paulo
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana
Pesquisador do Grupo de Estudos sobre São Paulo (GESP-LABUR)
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
A intensidade das transformações verificadas na metrópole produz novas formas
espaciais reveladoras da desigualdade, formas estas associadas à urbanização
contemporânea. Até então reconhecidamente espaço da indústria, a metrópole tende a
conformar-se como lócus de dispersão da atividade produtiva. No bojo desse movimento,
novos processos e estratégias são engendrados, voltados à reprodução do espaço urbano,
adaptando a cidade às novas “necessidades” da reprodução.
Assim, as estratégias em voga apontam para a recuperação de áreas urbanas
degradadas, de modo a trazer de volta aos centros ou outras áreas em vias de revitalização
as classes sociais com maior poder aquisitivo. Por isso, neste momento, a cultura é
apropriada como produto e lógica potencializada por uma ideologia desenvolvimentista.
Em uma época em que tudo se autonomiza, o capital autonomiza a Cultura e a
utiliza como “álibi” para sua reprodução. O econômico dissolve-se no cultural – e o
cultural no econômico – através da mediação do político para a reprodução do capital.
Sendo o espaço produzido como mercadoria pelo processo de reprodução, investigamos de
que forma essa “abordagem” pelo cultural se realiza, vista pelo prisma da espacialidade.
Palavras-chave: (re)produção do espaço; segregação socioespacial; revitalização urbana.
1
Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
20 a 26 julho de 2008 / São Paulo - SP
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Considerações Iniciais – O GESP e a Proposta
O Grupo de Estudos sobre São Paulo (GESP) constitui-se como um espaço de
reflexão sobre o fenômeno urbano moderno, teórica e praticamente. No presente
momento o GESP assume nova abrangência diante de sua própria consolidação como
um grupo de estudo que busca também se consolidar enquanto um grupo de pesquisa
capaz de produzir um conhecimento geográfico da urbanização paulistana. Com isso,
ampliamos as possibilidades de pesquisa sobre a metrópole de São Paulo permitindo
novos desdobramentos teórico-metodológicos, sempre visando à construção de uma
Geografia crítica.
Entendida como um compromisso de analisar a realidade urbana em seu
movimento contraditório, lançando luzes sobre os conteúdos que explicitam a
desigualdade vivida concretamente no processo de urbanização contemporâneo, essa
“Geografia crítica” busca construir um projeto de “uma outra cidade”. Trata-se,
portanto, de um fórum empenhado na organização de um conhecimento cujas
prerrogativas de método substanciam uma análise da reprodução sócio-espacial, e que
busca, através de uma análise geográfica, superar pressupostos analíticos formais.
A comunicação coordenada que apresentamos pretende discutir conteúdos que
fundamentam a urbanização contemporânea de São Paulo, partindo do pressuposto de
que, no atual momento histórico, a reprodução do capital se realiza através da
reprodução do espaço e que a metrópole paulista guarda a centralidade deste processo
no Brasil. A análise está centrada na possibilidade de entender este processo, de um
lado, como reprodução das necessidades da acumulação do capital e, de outro, como a
reprodução das condições de realização da vida. Partindo da concepção desenvolvida
por Lefebvre, entende-se que o movimento da reprodução envolve a repetição (de
relações, da produção, de objetos, de necessidades) e, dialeticamente, a possibilidade de
criação do novo, que não elimina por completo a repetição. No tocante ao espaço,
significa considerar o produzido como condição geral da produção, o que supõe a sua
conservação, transformação ou destruição e a produção do novo, como necessidade.
Neste processo emergem e se restituem novas contradições, marcando descontinuidades
e continuidades do processo.
Do ponto de vista da Geografia, caminhamos para a superação da noção de
“organização espacial“ na medida em que, ao abordarmos a espacialização dos
fenômenos sociais numa dialética na qual a sociedade, ao produzir-se, constitui um
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espaço real e praticamente. Assim, caminhamos para a “produção do espaço”, entendido
como dimensão da sociedade que ganha sentido como condição, meio e produto da
reprodução social. Dessa forma, o ato que produz a sociedade tal qual a conhecemos é
também um ato de produzir um espaço – as relações sociais se realizam deste modo em
espaços-tempos passíveis de serem apropriados, reconhecidos. Portanto, partimos da
hipótese de que a reprodução da sociedade é também a reprodução do espaço em vários
níveis, isto porque a complexidade do fenômeno urbano abriga a vida social em todas as
suas dimensões.
Considerando o atual momento da reprodução do espaço, o entendimento das
contradições ilumina a compreensão da problemática urbana. Essa compreensão referese à análise da prática socioespacial, que permite a realização de situações capazes de
projetar adiante possibilidades. Com o aprofundamento das contradições pela
urbanização, uma nova leitura do espaço se impõe através da crítica da economia
política a fim de alcançar uma articulação teoria-prática. Através desse esforço, buscase superar as rupturas peculiares do movimento que encerra as contradições e
contemplar a extensão da luta de classes ao espaço conflitando com o caráter de
mercadoria deste último. Assim, acreditamos que a Geografia tenha condições de
realizar uma outra reflexão sobre a realidade metropolitana através do espaço,
produzindo uma análise marxista. Essa é a tentativa de construção de uma Geografia
Urbana Crítica fundamentada no método materialista dialético em busca de um projeto
radical.
Em “O Direito à Cidade”, Henri Lefebvre (2001) entrevê uma crise da cidade,
realizada de forma teórica e prática. Refletindo acerca do esfacelamento das ciências,
pondera a respeito de uma “ciência da cidade” que integre as diferentes visões de
mundo especializadas das ciências parcelares. Quando LEFEBVRE (2001) propõe uma
ciência da cidade para devolver o valor de uso, remete-se a uma ciência como
componente da prática socioespacial, uma ciência crítica ao urbanismo, que pensa a
cidade como obra, como arte, como lugar do vivido. Sua prática não se realiza como
ação estatal (política) sobre a cidade, mas como atividade social na cidade e pela cidade
contra o Estado. Portanto, é luta política e crítica da vida cotidiana. Para nós, constata-se
uma aparente contradição entre esta necessidade real da busca da totalidade que
Lefebvre identifica em sua obra e a particularidade da ciência geográfica, qual seja,
analisar os processos sociais através da espacialidade. Nestes termos, como o método
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materialista dialético contribuiria para superar a contradição formada pela necessidade
de compreensão da totalidade através de uma ciência parcelar?
Perante a constatação da contradição entre a totalidade e a ciência parcelar, o
desafio é estabelecer uma reflexão que procure construir um entendimento da metrópole
refletindo a partir da periferia da ciência geográfica e não de seu núcleo duro. Está claro
que não buscamos aqui “geograficizar“ conteúdos de outras ciências, mas superar a
ciência parcelar colocando no centro o problema, a partir da periferia do conhecimento.
Pela natureza de nossa pesquisa, esse entendimento delineia-se a partir do estudo
da realidade de um fragmento da metrópole, a Área Central de São Paulo. O estudo das
contradições e processos desta particularidade da maior metrópole brasileira viabiliza-se
a partir da articulação entre teoria e prática, fruto de um pensamento dialético,
pressupondo uma comparação do conceito com a realidade, do possível com o real, do
vivido com o concebido. Esse exercício possibilita escapar à delimitação do recorte e
projetar um caminho em direção à totalidade social, no conjunto de seu movimento
(LEFEBVRE, 1973). Em acréscimo à antiga lógica formal, a lógica dialética recupera a
transição dos desenvolvimentos, da “ligação interna e necessária” das partes do todo
(LEFEBVRE, 1987). Assim, o espaço, objeto da Geografia, consideraria a totalidade
nas explicações dos processos e fenômenos localizados, desempenhando uma função
decisiva na estruturação dessa totalidade. Esse instrumental teórico-metodológico
sinaliza com a eliminação da fragmentação do conhecimento e revela potência para
desconstruir os discursos ideológicos analisados, orientado pela prática socioespacial.
Isto posto, propomos neste trabalho aprofundar a análise da relação entre o
político e o econômico em prol da reprodução do espaço urbano. O objeto de nossa
pesquisa consiste no estudo da segregação socioespacial urbana através das relações
entre política, cultura e produção do espaço hoje. A definição deste objeto surge de
nossa inquietação ao vislumbrar na cidade a realização da segregação socioespacial
através da produção de novas formas gestadas pelo mercado imobiliário, cujo apoio
fundamental do Estado como facilitador da reprodução econômica ocorre, dentre outros,
através da efetivação de estratégias dirigidas à produção de novos espaços na metrópole.
Essas estratégias orientadas por ideologias, discursos e lógicas (re)produzem o espaço
como mercadoria para o consumo (mercado da moradia, turismo, setor financeiro, etc).
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Dessa forma, o objetivo principal desta investigação é discutir os termos nos
quais o processo de (re)produção do espaço urbano ocorre atualmente através de um
estudo sobre São Paulo, a partir do fragmento representado pela Área Central2.
O processo que se vislumbra é aquele de, cada vez mais, notarmos a
transformação de áreas objetivando a formação de novas centralidades, incluídas numa
dinâmica internacional em inúmeras esferas, com equipamentos sofisticados para o seu
suporte, edifícios inteligentes, etc., compondo os eixos de valorização imobiliária
ligados à realização do terciário moderno. Evidencia-se nesses espaços em valorização a
concentração de infra-estruturas que demonstram uma espacialização do orçamento
público voltada aos interesses de frações das classes dominantes. Ao mesmo tempo a
precarização maior das condições de vida de parcelas grandes da sociedade, que se
vêem cada vez mais excluídas (incluídas perversamente) socialmente e espacialmente
(nas periferias, favelas, cortiços) das centralidades urbanas, assim como se vê um
empobrecimento
geral
da
sociedade.
Aqui
revela-se
a
contradição
entre
integração/desintegração – dos lugares da metrópole em relação ao mundial anunciado,
como espaço de realização do capitalismo – repondo os termos do debate centroperiferia. Numa outra escala articula-se, dialeticamente, o local e o mundial em suas
contradições (internas a cada um dos termos e entre eles).
A complexização do processo de produção do espaço urbano nos coloca diante
de profundas transformações vividas pelas cidades no modo de produção capitalista em
dois momentos históricos: o primeiro momento diz respeito ao processo de produção
das aglomerações urbanas que criam possibilidades ampliadas para o desenvolvimento
urbano-industrial; e o segundo momento – em que nos concentramos – é aquele da
reprodução, e se refere ao movimento atual de passagem de uma economia industrial
para uma economia terciária moderna, que exije a produção de uma urbanização
complexa, voltada para a produção de espaços que permitam a realização da nova
dinâmica econômica, marcada por uma intensa atuação do setor financeiro e revelando
uma nova relação Estado-espaço.
Nestes movimentos de reprodução socioespacial, o espaço torna-se objeto e
instrumento de aplicação da racionalidade econômica. Torna-se, em essência,
mercadoria, que, sustentada pelo político, traz mudanças substantivas para a prática
socioespacial, mostrando que este processo possui uma materialidade concreta que
2
Nossa concepção de Área central encontra-se ancorada em ALVES (1999).
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ganha existência na vida cotidiana e que nele surgem novas contradições. Porém, é
importante destacar que o momento da reprodução não elimina aquele da produção.
Metrópole, Espaço e (Re)produção
O processo de urbanização revela, no plano espacial, as estratégias de
reprodução do próprio espaço, do capital e da vida na cidade. Neste sentido, a metrópole
aparece como mediação entre duas instâncias: as relações mais gerais da sociedade e as
relações sociais tecidas no plano da vida cotidiana, e essa articulação ocorre
concretamente na (re)produção do espaço urbano. Tal raciocínio permite pensar uma
articulação concreta dos níveis e dimensões de análise, em que o nível global se
estabelece através da relação entre as decisões tomadas no plano do Estado juntamente
com instituições de poder e dominação e através da realização de uma economia que
garanta a reprodução capitalista. O nível global – isto é, o do Estado – permeia toda a
sociedade, estruturando-a através da instauração de uma lógica de dominação social
marcada fortemente por uma racionalidade que produz e impõe normas e restrições,
levando a uma homogeneização, em contradição com uma sociedade cada vez mais
hierarquizada e desigual.
A intensidade das transformações verificadas na metrópole produz novas formas
espaciais reveladoras da desigualdade, formas estas associadas à urbanização
contemporânea. Até então reconhecidamente espaço da indústria, a metrópole tende a
conformar-se como lócus de dispersão da atividade produtiva. No bojo desse
movimento, novos processos e estratégias são engendrados, voltados à reprodução do
espaço urbano, adaptando a cidade às novas “necessidades” da reprodução.
Sob a égide da indústria, a urbanização capitalista promoveu mudanças radicais
na vida dos indivíduos e na relação com a sociedade. A urbanização originada da
industrialização produziu uma nova ordem espaço-temporal, com seu próprio espaço e
uma sociedade dita industrial, cujas necessidades foram determinadas pelo processo de
apropriação com base na propriedade privada. A forma como essa apropriação se realiza
definiu caminhos e se generalizou no plano da vida cotidiana, fragmentando o espaço,
incluindo o espaço da moradia. A industrialização alterou a relação da sociedade com o
trabalho, instaurando uma divisão do trabalho responsável pelo desenvolvimento
primordial da mercadoria. Alterado o caráter da cidade, o ato de produzir torna-se o
objetivo maior e a cidade o centro de controle da economia (SPOSITO, 2000) e “ponto
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de controle da reprodução da sociedade capitalista em termos de força de trabalho, da
troca e dos padrões de consumo” (SOJA, 1993: 118).
Neste sentido, o espaço fragmentado, apropriado pelo capital e tornado
mercadoria, é vendido aos pedaços. Sua valorização como objeto de consumo sobrepõese a seu valor de uso, ao passo que o valor de troca do espaço prepondera (o uso
persistindo como resistência). Neste contexto, a prática socioespacial cindida pela
industrialização obstaculiza a apropriação da cidade como possibilidade de realização
da vida e as referências se esboroam diante da fugacidade do tempo e da venalidade do
espaço, gerando profundo estranhamento (é o que Ana Fani A. Carlos denomina
“espaço amnésico”). No processo de transformação do espaço em mercadoria, o valor
de troca se impõe sobre a vida cotidiana, normatizando-a, privatizando-a, regulando-a.
Sobre esse aspecto, CARLOS (1999a) assevera que a venda do espaço “inaugura um
movimento que vai do espaço do consumo (particularmente produtivo – aquele da
fábrica que produz o espaço enquanto condição da produção, distribuição, circulação,
troca e consumo de mercadorias) ao consumo do espaço, isto é, cada vez mais se
compra e se vende ‘pedaços de espaço’ para a reprodução da vida”. A respeito desse
novo momento, as reflexões de DAMIANI (1999: 49) coadunam-se com as de Carlos
apontando a nova face das contradições do modo de produção capitalista a partir da obra
de Henri Lefebvre, revelando um “potencial amplo e global de produção do espaço –
que o desenvolvimento das forças produtivas permitiria alcançar – e retalhamento do
espaço em minúsculos pedaços para compra e venda”. Isto posto, instala-se a submissão
do uso à propriedade privada, que fragmenta o espaço e tem como pressuposto a
desigualdade. O espaço reproduz-se como mercadoria, limitando os espaços possíveis
de apropriação e afirmando a generalização da propriedade privada do solo urbano.
Assim, como ponto de partida para nossa reflexão, afirmamos que o espaço
concreto (produzido pelo trabalho do homem) transformado em mercadoria é
fundamental à reprodução do capital, como condição para tal. Produzindo o seu espaço,
o homem produz sua vida, isto é, produz a si mesmo no espaço (CARLOS, 2000).
Contudo, no capitalismo, o espaço como extensão da mercadoria produz o
esgarçamento das relações sociais e a cisão do homem. Ao considerar a validade dessa
problemática, a análise volta-se à produção do espaço por ser fundamental para a
compreensão da reprodução do capital, permitindo uma leitura geográfica da cidade e
um entendimento do mundo contemporâneo. Neste sentido, para SMITH (1988: 151),
“a desigualdade espacial não tem sentido algum, exceto como parte de um todo que é o
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desenvolvimento contraditório do capitalismo”. Corroborando um caráter determinante,
CARLOS (1996; 2000) afirma que o espaço, analisado na perspectiva do materialismo
dialético, transcende a noção de produto da existência humana, sendo também
condição e meio do processo de reprodução da sociedade.
Central na obra de Henri Lefebvre, o conceito de reprodução é um
desdobramento do conceito de produção, desenvolvido por Karl Marx. De acordo com
CARLOS (1999b), Lefebvre considera dois sentidos para o termo “produção”, um
referente à produção de mercadorias e outro relativo à produção de relações sociais,
ideologias, valores, cultura, costumes (escapando aos limites do econômico). A
racionalidade homogeneizante gerada pela acumulação produz a mercadoria
propriamente dita, bem como os modelos de comportamento indutores do consumo. Já a
“reprodução” diz respeito à produção de novos espaços através das relações sociais, em
função da reprodução geral das condições dispostas na sociedade. A fim de desvendar o
processo de produção do espaço, a análise focaliza a reprodução das contradições
imanentes ao capital, bem como novas contradições impostas, tornando a problemática
mais complexa em direção à totalidade. Assim,
“é preciso ter em mente que a reprodução ampliada do capital
implica a reprodução ampliada das contradições que seu
movimento incorpora e engendra. Trata-se, em verdade, do
próprio movimento do mundo das mercadorias, no e pelo qual o
espaço se torna objeto, não apenas de compra e venda (...), mas,
sobretudo sua produção se torna objeto das estratégias que
visam a impulsionar a acumulação de capital, e, portanto, tende
a dominar a prática social” (MARTINS, 1999: 29).
O processo de reprodução do espaço produz a segregação socioespacial a partir
da diferenciação no acesso à propriedade privada. A materialização das transformações
produz novas formas espaciais e altera e/ou acrescenta conteúdos à cidade, modificando
a prática socioespacial. Dessa forma, a racionalidade do capital possui como finalidade
sua própria reprodução através da produção do espaço para a realização econômica e se
autonomiza no contexto da reprodução, elevando a mercadoria à posição de relevância
inconteste, restringindo a realização da vida do homem. Esse movimento reproduz as
condições materiais e ideológicas para a reprodução do capital. Na visão de Milton
SANTOS, a racionalização do espaço relaciona-se diretamente ao processo de expansão
do modo de produção capitalista e de sua legitimação. Em suas palavras:
“a marcha do processo de racionalização, após haver
(sucessivamente) atingido a economia, a cultura, a política, as
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relações interpessoais e os próprios comportamentos
individuais, agora (...) estaria instalando-se no próprio meio de
vida dos homens, isto é, no meio geográfico” (2002: 290).
A teoria da produção do espaço enunciada por Lefebvre compreende uma
condição sine qua non para a reflexão sobre a cidade e o urbano. Ademais, outro
elemento crucial para a compreensão da reprodução do capitalismo refere-se ao papel
das estratégias do Estado via produção/controle do espaço. O Estado, como fragmento
da sociedade, reproduz a si mesmo enquanto poder político (gestão) e garante a
reprodução do capital, servindo às classes dominantes (LEFEBVRE, 1970). O poder
político totalizador do Estado alcança os mínimos interstícios da vida cotidiana
produzindo uma programação da vida, garantindo a reprodução social e a acumulação
ampliada de capital. Capitalistas e Estado organizam o espaço a fim de controlar a
reprodução das relações de produção, reunindo os fragmentos do espaço (estratégico)
homogeneizando e hierarquizando as parcelas, vendidas de acordo com a possibilidade
de extração de lucros, aprofundando a segregação socioespacial. Evidentemente, a essa
lógica que “alisa” o social e o cultural contrapõe-se o uso, instalando-se um conflito
entre valor de troca e valor de uso. O desvendamento das contradições sociais, assim,
tem como primeiro momento da análise o desvendamento das estratégias apoiadas pelo
Estado para se realizar (DAMIANI, 1999) ou, em outras palavras, descortinar a
exigência da mediação do político para a manutenção da autonomia do econômico.
A Reprodução e a Contradição Deterioração-revitalização: Alguns Caminhos para
compreender a Segregação Socioespacial e a Cultura como Negócio Hoje
Em primeiro lugar, o espaço é fundamental como possibilidade de reprodução
do capital, das relações sociais de produção e de realização das estratégias do Estado
resultando em uma prática socioespacial reveladora de processos contraditórios. Da
mesma forma, o espaço é força produtiva capaz de realizar a acumulação de capital por
meio de sua produção.
Logo, a cidade capitalista só pode se expandir através da reprodução econômica
e espacial. Contudo, nas Áreas Centrais, a propriedade privada torna-se um impeditivo
revelando, então, uma contradição, posto que a propriedade é, igualmente, condição e
obstáculo à reprodução. Dessa forma, a raridade é produto do processo de produção do
espaço ao mesmo tempo em que o espaço se torna obstáculo à sua própria reprodução
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(CARLOS, 2000). Assim, o capital necessita criar alternativas dentro da reprodução
através da produção de novos espaços.
Destarte, a necessidade de expansão da imobilização de capital contrasta de
modo inequívoco com a densa ocupação do solo urbano tipificada na Área Central, com
intensa quantidade de ativos imóveis concentrados, mas pulverizados do ponto de vista
da propriedade. Lá, o espaço tornado raro obstaculiza a reprodução do capital.
Concomitantemente, surge a exigência de se produzir novos espaços para o capital para
a realização dos novos setores da economia contemporânea. Esse fato explicaria o
surgimento de centralidades pelo espaço urbano (funcionalmente especializadas), bem
como a deterioração do Centro.
Diante da generalização no espaço do valor de troca, da existência da
propriedade privada do solo urbano, da centralidade e do grau elevado de ocupação
(CARLOS, 2000), a Área Central, com o passar do tempo, sofreu o processo de
desvalorização, vindo a produzir a deterioração das formas e a estagnação econômica.
Cabe ressaltar que, nesta análise, consideramos este movimento de desvalorização do
espaço como produto da lógica do capital, num movimento de deslocamento relativo
das funções centrais da cidade.
Nas últimas décadas, várias estratégias e projetos foram lançados e executados
carregando a justificativa de tratar-se de projetos de revitalização desta área. Aqui,
apontamos o movimento de deterioração-revitalização como uma contradição e não
como desequilíbrio. Dessa forma, descaracteriza-se o planejamento como a solução tida
como “natural” para a problemática urbana e projeta-se um desafio teórico-prático para
a compreensão da reprodução da metrópole atualmente.
Assim, alcançamos as estratégias do Estado para redinamizar a Área Central,
através dos projetos de revitalização urbana. Estes projetos intentam promover uma
revalorização imobiliária, a fim de reaquecer a economia local. Neste contexto,
afirmamos que, para interromper a dinâmica da deterioração urbana e promover o
crescimento econômico, o Estado atuaria mesmo na Área Central no sentido de eliminar
a raridade através da tentativa de produção de novos espaços para a reprodução do
espaço. Essa estratégia é levada a cabo por projetos de revitalização que possuem como
fundamento a cultura como elemento responsável pela revalorização. A apropriação da
cultura como lógica e produto passível de consumo se realiza como o argumento oficial
para a instalação de equipamentos urbanos relacionados ao setor terciário da economia,
bem como a recuperação da forma-aparência (patrimônio histórico).
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As ações do Estado em articulação com os interesses privados têm transformado
a área central para atrair serviços complementares às atividades financeiras e criar
possibilidades em termos de exploração do turismo como atividade econômica. De um
lado, percebe-se a implantação de equipamentos que visam atender o setor terciário
moderno da economia. De outro, a produção dos espaços de lazer e para o turismo
mercantilizando os lugares, valendo-se de estratégias oficializadas pelo poder do
Estado. A fórmula dessa nova estratégia urbanística vale-se do marketing de cidades, da
exploração dos bens culturais, da potencialização dos indicadores de qualidade de vida,
das intervenções urbanas pontuais e espetacularizadas, criando uma construção
imagética carregada de positividade. Essa estratégia é levada a cabo por projetos de
revitalização que possuem como fundamento a cultura como elemento responsável pela
revalorização.
Destarte, neste momento, a cultura é apropriada como produto e lógica
potencializada por uma ideologia desenvolvimentista3, reflexão que vai ao encontro de
ARANTES, quando afirma que a
“rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as
mãos, nesse processo de ‘revalorização urbana’ – sempre,
evidentemente, em nome de um alegado civismo (como
contestar?...). E para entrar neste universo dos negócios, a
senha mais prestigiosa – a que ponto chegamos! (de
sofisticação?) – é a Cultura. Essa a nova grife do mundo
‘fashion’, da sociedade afluente dos altos serviços a que todos
aspiram” (2002: 31).
Em uma época em que tudo se autonomiza, o capital autonomiza a Cultura e a
utiliza como “álibi” para sua reprodução. O econômico dissolve-se no cultural – e o
cultural no econômico – através da mediação do político para a reprodução do capital.
Para JAMESON (2002: 22), “a produção das mercadorias é agora um fenômeno
cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso
imediato”, orientada por um consumo estético. Sendo o espaço produzido como
mercadoria pelo processo de reprodução, investigamos de que forma essa “abordagem”
pelo cultural se realiza, vista pelo prisma da espacialidade.
3
“A ideologia é parte da cultura: é um estado, uma condição da cultura. É um conteúdo negativo que
afeta as possibilidades de conhecer e opaca a compreensão do social. Há graus (maior ou menor) de
ideologização dos discursos. Não é uma classe de discurso, mas um nível de significação dos discursos”
(MARGULIS, 2006).
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Considerações Finais – O Estado em Perspectiva
Se é possível pensar no processo de reprodução da metrópole levando em conta
a continuidade e reafirmação da propriedade, ainda que com especificidades, não se
pode negligenciar o papel do Estado, que emerge como elemento central e necessário,
na medida em que impõe seu aparato e sua racionalidade à disposição da continuidade
do processo, de modo que as rupturas sejam absorvidas e consideradas no plano da
reprodução.
No limite, a reflexão que se coloca é a de que a contradição entre a produção
social do espaço e sua apropriação privada, bem como as necessidades e interesses de
classe, e a força hegemônica do Estado, fundamentam o processo de reprodução da
metrópole hoje.
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20 a 26 julho de 2008 / São Paulo - SP
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