PAULA DE SOUSA LIMA
OS ÚLTIMOS DIAS
DE PÔNCIO PILATOS
Eu, Pôncio Pilatos, para mim tomo esta missão, quem ma
outorgou não sei, talvez a minha alma ainda coberta de dor, pena,
remorso, breve o sopro vital extinguir-se-me-á e ainda a minha
alma coberta de dor, pena, remorso, a minha alma velha como
o meu corpo em decrepitude, tantos anos vivi, tantos anos persistiu a minha alma, nela se calcinando, ano após ano, mês após
mês, dia após dia, momento após momento, esta missão a que
não posso ficar alheio, que devo cumprir antes que da minha respiração se extinga o último sopro, do meu coração se detenha o
último batimento, esta missão que por uma força maior para
mim foi determinada; assim o sinto, comanda-me e guia-me uma
força maior, a alma que um dia em mim surgiu e que em dor, pena
e remorso permaneceu, por ela fui incumbido, eu, Pôncio Pilatos, de tomar para mim a missão de dar testemunho do que vi e
ouvi, tal como do que por outros dignos de crédito me foi contado, ainda do que procurei entender, a mim mesmo explicar, se
bem que muito do que intento narrar não seja explicável, mesmo
assim tomo para mim a missão de relatar o respeitante àquele
justo, o mais justo dos justos, senhor da vida e da verdade, por mim
entregue para num madeiro ser dado à morte.
Estas palavras, decerto não exacta mas, aceitemo-lo, aproximadamente, acaba de escrever Pôncio, assim apenas pelo seu primeiro
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nome doravante o trataremos. Escreveu-as sob um limoeiro denso
de folhagem, no espaço frontal da sua vila, de onde ao longe distingue o Tibre e abarca a terra escura até às sete colinas brancas
da cidade. Trata-se, é fácil percebê-lo, do intróito da obra que,
pudemos constatá-lo, Pôncio tem por propósito levar a cabo, obra
essa de crescida responsabilidade, encargo subido, dado o assunto
a versar. Isto sabe-o Pôncio, muito meditou até ter ânimo para
se dispor à escrita, anos sobre anos se passaram durante os quais,
latente o projecto, talvez por pejo o adiou, por receio, por embaraço, por insegurança, tão alto tal projecto; só agora, cumpridos
tantos anos, a consciência de estar, em razão da lei da vida, não
longe o tempo de o seu tempo cessar, quase num impulso a escrita,
esta missão que Pôncio para si tomou. Concluído que está o dito
intróito, de um fôlego escrito, como, se tivermos atenção, podemos verificar, dadas as repetições e o estilo bastante intimista e,
por assim dizer, algo desconexo, Pôncio cuida de prosseguir o
seu labor; à narrativa propriamente dita tem por propósito passar, servindo-se para isso das suas notas, notas diríamos hoje, no
século vinte e um, porquanto naquele tempo, sob Nero, não eram
os utensílios de escrita tão comezinhos que muitos papéis, papiros,
no caso, se pudessem despender com notas, mesmo tratando-se de
um homem razoavelmente rico como Pôncio; portanto, as notas de
Pôncio são rascunhos compactos em caligrafia miúda, ciosamente
enrolados, que à frente dos olhos ele vai alisando para compor a
narrativa, pois de uma narrativa se trata, já o sabemos, ou tratará,
caso a consiga levar a bom termo, já a idade é avançada, isto também o sabemos pelas suas próprias declarações no intróito. Intróito
este, de facto, considera Pôncio ao relê-lo antes de prosseguir,
demasiado extenso, repetitivo, intimista, algo desconexo, nota-o
Pôncio, que de retórica tem conhecimento sobejante. A matéria,
ao longo de muitos anos compilada, com clareza já a estabeleceu,
com todo o rigor possível já a organizou, o rumo a dar à narrativa
já o definiu; depois do inventio, isto é, da busca das ideias a transmitir, a matéria considerada relevante, neste caso toda a que está
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nas ditas notas, necessariamente passou pelo dispositio, etapa
esta mentalmente feita e correspondente ao que hoje chamaríamos um esboço esquemático, para depois chegar ao elocutio,
onde as palavras têm de ser cuidadosamente escolhidas, elegantemente dispostas em frases e andamentos, a fim de que a obra
resulte clara e harmoniosa. Sendo Pôncio homem que reconhece
a necessidade do labor linguístico para a perfeição da obra, tendo
consciência de que não é sem atenção que se constrói o texto,
antes de prosseguir, releu o que havia escrito e no que releu se
quedou, suspensas as notas que começara a alisar. Agora mantém-se quedo, medita. Não lhe parece ter o intróito a clareza e a concisão desejáveis. Conhece bem Homero e Virgílio, a epopeia possui
uma abertura curta e apelativa, não é o caso daquilo que escreveu, considera, mas também considera que não é uma epopeia o
que intenta escrever, se bem que de momentos épicos não careça.
Recorda os escritos de Júlio César, a simplicidade, a clareza, a
objectividade, um registo do seu agrado, uma escrita feita de justeza, o género historiográfico, talvez deste género a sua narrativa
se aproxime, pois é sua intenção dar conta dos factos com rigor
e precisão; todavia, não consegue estabelecer o género exacto em
que se inserirá a obra apenas iniciada, e assim se queda, outra vez
relê o que escreveu, e o que escreveu muito se afasta dos seus
propósitos de simplicidade, clareza e concisão; com o problema
da objectividade ainda não se defrontou, mas defrontar-se-á, pois
diz-lhe a intuição que os factos, ali nas notas suspensos, não serão
seu único objecto de cuidado, com o que procurou saber, perceber e a si mesmo explicar igualmente se ocupará; aliás, ao reler
o que escreveu, nota ter feito tal declaração de intenções, a mim
mesmo explicar, e possivelmente será esta a efectiva razão que
move Pôncio: descortinar, compreender, através das palavras
escritas, muito do que mesmo visto, ouvido, por outros relatado,
escapa à sua compreensão; ao longo de tantos anos foi alvo da sua
meditação, mas ainda nem tudo se lhe esclareceu, aliás muito
pouco, um mistério nos factos encerrado, talvez o esclareçam as
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palavras escritas, foi esta a missão que para si tomou, como declara
no intróito. É certo que tal intróito necessita ser expurgado de
declarações intimistas, sê-lo-á, nele, porém, a autenticidade de
um anseio, não deixar esgotar-se-lhe o último sopro de vida sem
compreender, sem se esclarecer, coisa que talvez as palavras escritas tenham o condão de lhe outorgar, assim não me traiam elas,
pois ao fixarem-se por escrito sempre as palavras configuram a
realidade de forma mais estável, não necessariamente mais verdadeira ou mais justa, mas pelo menos mais estável, o que é imperioso a Pôncio, tantas décadas passadas
o que aconteceu
aquele homem que entreguei, aquele homem justo, sempre
na minha alma, que encontrei, descobri, a minha alma, de dor,
pena, remorso coberta.
Ainda. Sempre.
Desde aquele dia. Jesus de Nazaré, rei dos judeus, senhor da
verdade, foi o que numa tábua tosca escrevi, para ser pregada no
madeiro sobre a cabeça daquele homem; e, para me corrigir, chamando-me de parte o sumo-sacerdote, hipócrita como todos os
outros que o condenaram, o coração pela inveja apodrecido como
o de todos os outros que ao madeiro o levaram, repliquei o que
escrevi está escrito, também na minha alma está escrita a dor, a
pena, o remorso, talvez por isso estes anos todos de refúgio, um
quase alheamento do mundo, do qual a única benesse recebida
foi o viver muitos anos, se a isso é possível chamar benesse, talvez, pelo contrário, de maldição se trate; hoje, já a cabeça totalmente branca e prestes a esgotar-se-me o tempo, sei que um poder
maior me levou a tomar a decisão que tomei, sequer decisão foi,
sei-o hoje, mas nisto não encontro lenitivo para a dor nem para a
pena nem para o remorso, se fui eu que entreguei aquele homem
justo para no madeiro agonizar entre dois salteadores e não tive
capacidade de apresentar argumentos contrários aos dos que o
condenaram, calei-me, a minha omissão; eu, juiz nesta causa, como
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em todas as que ao território da Judeia respeitavam, dei sentença
calando-me, sentença por omissão, mandava-me o coração ter feito
o contrário, tomar a deliberação justa como aquele homem justo,
dizer vai, constrói o teu reino aqui mesmo, apesar de ele ter declarado, quando o questionei, não ser senhor de reino algum, senão
do da verdade,
que é a verdade?
isto desejava dizer e mandar chicotear os sacerdotes e os escribas e os anciãos e a populaça ensandecida, esses que o condenaram, por blasfémia disseram, por inveja, despeito, interesses, já
na altura o sabia; desejava mandá-los chicotear e vê-los agonizar
suspensos em madeiros, não aquele homem; claro que não tinha
poder para ordenar tais penas, poder tinha para lhes dizer ide,
raça de víboras, voltai para os vossos afazeres, deixai em paz este
homem justo, sob minha protecção fica, nem um fio dos seus
cabelos profanareis, ide, desaparecei da minha frente, isto mandava-me dizer o meu coração, mas, sei-o agora, estava determinado que não o dissesse. A minha deliberação foi determinada por
outro poder maior, favorável àquela raça indigna, víboras, sois as
mais danosas das víboras, calei-me, sem argumentos, omisso, mas
o meu coração
a minha alma de dor, pena, remorso coberta.
Para ocidente declina o Sol, como todos os dias, nada de novo
debaixo do céu e, no entanto, sempre tão desigual de si mesma
a alma humana, sempre num desalinho de emoções que se querem aquietar sem que tal seja possível, como não é possível deter
o fado, seja ele invenção do homem ou um poder maior. Com
os olhos ainda não desgastados pelo tempo, Pôncio olha as sete
colinas brancas, o Tibre, a terra escura, as árvores que rodeiam
a casa, os campos prenhes, a vida a emergir da terra, os servos,
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não propriamente servos, dado todos serem libertos, a cuidarem da vinha, dos pomares, um pássaro pousado num gorjeio
de fim de tarde, tudo o que supostamente aconchega a sua provecta idade. É ancião e merecedor de descanso, pensará quem
o vir sentado sob o limoeiro denso de folhagem no espaço frontal da sua vila, os utensílios de escrita sobre uma mesa larga, a
mão pendente, já comecei, fiz a minha declaração de intenções,
não me agrada o estilo, se bem que de acordo com o meu pensamento esteja o que escrevi, talvez tarefa em demasia para mim
seja esta a que me propus, decerto de forma mais clara e mais
justa relatariam outros os factos, outros mais merecedores de o
fazer, pois eu
só a minha alma de dor, pena, remorso coberta
mas escrever é determinação minha, em nome do justo que
no madeiro padeceu e morreu esta missão tomei, a missão de
dar testemunho do que vi e ouvi, do que me foi contado por
outros dignos de crédito, isto o declarei, confusamente o escrevi,
novamente Pôncio relê o que escreveu, já pelo menos dez vezes
o releu, aqui e ali o depurou, outro tom vai tomando o intróito,
menos repetitivo, menos intimista, menos desconexo, mais escorreita a linguagem. Pôncio tinha por intenção continuar, dar início à narração em si mesma, começou a alisar o rolo com as notas
ao lado do outro onde já o intróito, com muitas emendas, está
escrito; neste rolo deverá dar forma à narração ordenada dos
factos, mas como continuar não sabe, apesar de homem conhecedor de retórica, apesar das notas que ali estão, de a memória
até as dispensar, apesar daquilo a que hoje chamaríamos esboço
já estar alinhavado, passe a singeleza da expressão, apesar da sua
determinação, hesita, a mão pendente, os olhos ora no Tibre, nas
sete colinas, na terra escura, ora nos homens livres que ainda cuidam dos pomares e da vinha, os olhos de Pôncio neste cenário de
aurea mediocritas, como absorto tudo olha, assim também como
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ausente ouve o gorjeio de um pássaro, nada disto o aquieta, a tudo
algo alheio
a escrita suspensa
o pensamento de alguma forma também
um agasalho, senhor, vai-se a noite aproximando traiçoeira
Caio, o fiel e dedicado Caio, quase tão velho como Pôncio, antigo centurião em Cafarnaum, depois em Jerusalém, justamente
naquele dia estava presente, muito viu e ouviu e a Pôncio contou
sobre aquele dia e os que se seguiram e os anteriores e ainda sobre
factos respeitantes a Jesus de Nazaré por ele próprio vividos. Caio
que também deixou a vida pública, seguindo Pôncio no seu retiro
do mundo, a Pôncio acompanhando e servindo, servo por escolha
própria, respeitando os silêncios do seu senhor, intervindo só para
dizer um agasalho, senhor, ou para, quando Pôncio o chama, recordar o que está abrigado nos corações de ambos. Caio que decerto
expirará logo que o seu senhor expirar e assim não poderá dizer um
agasalho, senhor, como agora diz sem que Pôncio o ouça, pois tem
este os sentidos ausentes, o pensamento de alguma forma suspenso
apenas a alma,
de dor, pena, remorso coberta
tudo foi o que havia de ser, o meu poder abaixo de outro poder,
muito abaixo, as minhas mãos frouxas perante esse poder maior,
o meu poder reduzido às palavras que não proferi, outras queria
ter dito, vai, toma conta do teu reino, mas não era ele senhor de
reino algum, senão do da verdade,
que é a verdade?
afirmou-o, mas um poder maior, no entanto, fê-lo rei que no
madeiro tinha de morrer, esse desígnio muito acima do meu poder,
quem era, quem sou eu?
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talvez Pôncio se iniba de continuar a escrever por, no íntimo,
reconhecer a missão que para si tomou como mais alta do que a
deliberação de um homem, um homem ancião, uma vida de experiência e de leituras, senhor de cultura alargada, mas um homem
que sequer o destino de um justo pôde alterar
talvez Pôncio se iniba de continuar a escrever por, no íntimo,
reconhecer o seu projecto como algo de muito pessoal, tomou-o
em nome daquele homem, mas por si próprio o tomou, por uma
necessidade intrínseca de se esclarecer, coisa que, algo lhe diz, só
as palavras escritas facultam. Porém, razão mesquinha lhe parece
essa, indigna para tão nobre projecto empreender, pois de um
encargo nobre se trata, disso Pôncio está consciente; e assim se
queda alheio à escrita, com o que me propus escrever nada de pessoal devo procurar, ainda que me tenha sido outorgada esta missão talvez pela minha alma ainda de dor, pena e remorso coberta,
mas uma coisa é a razão, outra o propósito, e não me devem servir a mim as palavras que escreverei, mas a Jesus de Nazaré, rei dos
judeus, senhor da verdade
o que escrevi está escrito
devem as palavras dar testemunho da verdade.
O que aquele homem me disse registá-lo-ei. Que é a verdade?
A pergunta que fiz, que continuo a fazer. Que desde que primeiro
a fiz me inquieta. O que antes de o levarem me disse aquele
homem, os possíveis indícios que deixou, mas eu só com a minha
pergunta, um homem só perante si mesmo, talvez por isso não
acho palavras, não consigo escrever, embora seja imperioso fazê-lo.
A verdade. Extinguir-se-me-á o sopro vital sem que eu. Que tempo
me resta?, ainda não cheguei aonde me disse o Nazareno que
havia de chegar e já sou ancião, muito mais vivi do que a maioria
dos homens, a cabeça alva, dos membros a força a dissolver-se,
apenas a vontade de alcançar o que como promessa me chegou, um
tesouro junto aos meus pés enterrado, quem sabe, e desconheço
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eu que aqui está, certamente um sinal, e não o soube, não o sei,
interpretar
talvez procurando refúgio do mundo me tenha alheado de mim
do mundo, logo que pude, deliberadamente me afastei, passaram Tibério, Calígula e Cláudio e é imperador Nero, esqueceram-me, fiz-me esquecer; enquanto ainda na vida pública por
obrigação, o meu papel absolutamente passivo, o papel de quem
está não estando, ainda muitas injustiças vi, delas me apartei,
procurando não cometer mais nenhuma, se bem que nunca o
homem esteja apartado de cometer injustiças; foi meu cuidado,
porém, ser justo e compassivo depois do que naquele dia aconteceu, e logo que me foi possível aqui me enclausurei, do mundo me afastei, e de mim se esqueceu o mundo, por tal me senti
grato
Caio deita leve o manto sobre os ombros de Pôncio e afasta-se
silencioso, o silêncio do amo respeitando como sempre faz. É esta
a sua missão, servir Pôncio, o quanto servir se pode chamar a mais
exactamente acompanhar, para si tomou esta missão e de bom
grado a cumpre; e Pôncio, que, tal como antes, ausente de si se diria
estar, apenas sente o corpo aconchegado pelo calor do manto,
sempre as linhas entrecruzadas e ondeantes das suas divagações,
assim são sempre as divagações dos homens e assim estas em que
Pôncio se embrenhou por não ter conseguido dar continuidade
à escrita
mas talvez me tenha também esquecido de mim próprio quando
esqueci o mundo e o mundo me esqueceu, ou talvez apenas não
tenha sabido ouvir o murmúrio do meu coração, decifrar os sinais, tão aprisionado este coração na sua dor, pena, remorso, este
coração que ainda bate, não sei porquê; apenas tive poder para
fugir, aqui me enclausurei com estas notas que fui escrevendo e
que agora estão assim como suspensas, não sou capaz de dar forma à minha narrativa, a minha mente tolhida e sem saber como
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prosseguir, sem nada saber, sem saber porque não obtive resposta,
não obtenho
que é a verdade?
talvez Cláudia. Cláudia certamente. Cláudia sabe.
Cláudia, por outras duas mulheres ladeada, sobe o carreiro de
pedrinhas vermelhas, a estola simples sob o manto que lhe envolve
o corpo levemente curvado do esforço. Jóias não tem, salvo a
aliança no anelar esquerdo, pois todas vendeu e também outros
bens para refrigério dos deserdados da sorte, que na Roma antiga
não existiam instituições de solidariedade públicas ou privadas,
pelo menos delas não reza a história, só a bondade podia valer a
tais deserdados da sorte, ou vítimas da injustiça social, consoante
o ângulo pelo qual queiramos perspectivar a questão. E é esta a
missão de Cláudia, aos outros valer, e para a cumprir vendeu o
que pôde, pelo que sobe o carreiro despojada de jóias, coisa que
como privação não sente. Apenas preso numa trança o cabelo,
roçam-lho os últimos raios do Sol poente, fulvo parece ainda,
embora Cláudia não seja propriamente jovem, menos quinze
anos do que Pôncio, mas já uma conta razoável de anos, os quais
não se espelham no seu rosto sereno, apenas na curvatura levemente cansada do tronco. De Roma vem a pé, não quer liteira,
recusa-se, Pôncio insiste, só até à entrada da cidade, depois desces e sem que ninguém dê por ti segues, mas Cláudia recusa, o
meu caminho é a terra sob os meus pés, diz, a pé sai de casa pela
madrugada e a pé volta muitas vezes já o Sol se pôs. E nem sempre volta, não são poucas as vezes que Pôncio a espera em vão,
ficando ela pelas ínsulas ou em casa de alguém que a acolha em
reconhecimento do muito que faz por quem necessita, rara virtude em Roma. Pôncio fixa o olhar em Cláudia, no seu cabelo
fulvo, assim lhe parece, o coração em ternura ao ver a mulher aproximar-se com tanta serenidade, és o meu refrigério, Cláudia, pensa,
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