UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS INSTITUINTES VITORIA 2008 1 MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS INSTITUINTES Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Denise Meyrelles de Jesus. VITORIA 2008 2 Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) S111c Sá, Maria das Graças Carvalho Silva de, 1966Cartografando processos inclusivos na educação infantil em busca de movimentos instituintes / Maria das Graças Carvalho Silva de Sá. – 2008. 215 f. : il. Orientador: Denise Meyrelles de Jesus. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 1. Inclusão em educação. 2. Educação de crianças. 3. Autismo em crianças. I. Jesus, Denise Meyrelles de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título. CDU: 37 3 MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS INSTITUINTES Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Educação. Aprovada em 27 de novembro de 2008. COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Denise Meyrelles de Jesus Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora ________________________________________ Prof. Dr. Hiran Pinel Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Prof. Dr.ª Sonia Lopes Victor Universidade Federal do Espírito Santo ________________________________________ Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista Universidade Federal do Rio Grande do Sul _________________________________ Prof. Dr. Júlio Romero Ferreira 4 A Antonio que conheci na graduação, a Juliana que nasceu no final da especialização e a Natalia que chegou junto com o mestrado. A vocês mil perdões pela ausência e, principalmente, meu agradecimento por compreenderem que isto era apenas um momento numa caminhada longa na qual sempre estaremos juntos nos fortalecendo mutuamente. AMO MUITO VOCÊS! 5 AGRADECIMENTOS Agradecer é sempre algo muito bom, visto que pressupõe o fato de termos sido agraciado por alguém, em algum momento. Na atualidade, isso tem se tornado cada vez mais desafiador, pois nesta roda vida em que vivemos, nem sempre temos tempo para ajudar aqueles que nos rodeiam. Permitindo-me brincar com meu nome ao produzir este texto, senti-me literalmente agraciada e, por esse motivo, peço-lhes licença para deixar registrado o quanto algumas pessoas me ajudaram neste caminhada. A vocês que tanto colaboraram para este estudo muito obrigada, em especial: À minha (des)orientadora querida, Denise Meyrelles de Jesus, meu carinho, respeito e, principalmente, minha admiração por aceitar o desafio de transitar em outrosnovos mares, no intuito de me auxiliar nesta caminhada. Muito obrigada. Aos professores: Hiran Pinel, pelas contribuições precisas. A Sonia Lopes Victor, pelo inegável apoio e sensível contribuição. A Claudio Roberto Baptista, pelas inestimáveis ponderações que me ajudaram a tecer firmemente alguns nós neste texto e, finalmente, ao professor Júlio Romero Ferreira, pela carinhosa exceção num momento tão significativo de minha vida. Ao Programa de Pós-Graduação em Educação-UFES, pela oportunidade de realizar mais um estudo, agora de Doutoramento. 6 Aos meus colegas do PPGE/UFES, em especial da linha de pesquisa Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas: Agda, a amiga de todas as horas, Alex, Andressa, Edson, Eldimar, Inês, Igor, Josi, Lílian, Mariângela, Reginaldo, Wirlândia, Zinéia por partilharem comigo a busca utópica de um mundo mais inclusivo. As minhas irmãs/co-autoras/parceiras/incentivadoras, Ângela Carvalho Silva Cassol e Maria Luiza Silva Zanotelli, que, apesar de quase me enlouquecerem com tantos falas/orientações/debates/sugestões acerca da Psicanálise, foram ímpar na construção deste processo. Aos gestores, professores e funcionários do Centro Municipal de Educação Infantil Zenaide Genoveva Marcarini Calvalcanti, em especial, Aline, Jória, Kênia, Hellen e Luciana por me possibilitar dar visibilidade a tanto coisa boa que é produzidagestadainstituída nos chão das escolas. A Gabriel e a João Victor, por me permitirem compartilhar de pequenos/grandes momentos de suas respectivas vidas: vocês são e, sempre serão, muito especiais para mim !!! Aos meus amigos queridos, Alice, Erineusa, Kefren, Sílvia, Iguatemi, Fábio e Jeanine, companheiros que me fortaleceram nos momentos mais difíceis e não me deixaram desistir. A Alina que tanto me auxiliou na escrita “academicamentecorreta” deste texto. 7 RESUMO Trata de um estudo qualitativo no intuito de conhecer acerca dos processos educacionais que permeiam uma paisagem escolar infantil em relação aos movimentos instituintes/instituídos como inclusivos que ali se forjam, em busca de pistas que dêem visibilidades para se produzir coletivamente dispositivos que favoreçam os processos inclusivos dos que ali habitam. O fio condutor desta tessitura foi a busca pela inclusão de dois alunos autistas num Centro Municipal de Educação Infantil em Vitória, ES. As ferramentas teórico-epistemológicas utilizadas fundamentam-se nas contribuições dos estudos foucaultianos, psicanalíticos e nas considerações tecidas pelos estudos nos/dos/com os cotidianos, com vistas a ver/ ler/ouvir/sentir o mundo, tomando como referência o debate tecido por Linhares acerca dos processos de escolarização, vendo, no diálogo entre esses autores, uma interessante estratégia de pensar uma escola pública comprometida com uma formação que tome o direito à diversidade humana como uma premissa. Utiliza o método cartográfico, a partir de entrevistas semi-estruturadas, de observações livres e participantes, de diário de bordo e de registros fotográficos, objetivando contextualizar e analisar as relações que permearam a paisagem investigada e seus possíveis engendramentos com os processos inclusivos de ensino que ali se agenciavam. Outra intenção deste estudo foi compreender os processos de subjetivação ali instituídos, tendo como premissa: o lugar ocupado pela educação/educação inclusiva em suas respectivas concepções de mundo. Busca, também, potencializar dispositivos pedagógicos inclusivos, considerando os processos de subjetivação que ali se forjaram, bem como fomentar a formação continuada em contexto, para pensar coletivamente possibilidades pedagógicas inclusivas considerando os sujeitos envolvidos na/pela pesquisa. Argumenta sobre a relevância que se apresenta na/para a constituição da subjetividade humana, em especial para crianças ditas 8 com autismo e/ou psicoses infantis, a escuta e o olhar no sentido da presença e da aposta, de forma que os envolvidos no/com essas crianças ofereçam-lhes movimentos que ecoem em suas representações inconscientes no intuito de promover mudança da condição alienante de objeto para uma unidade denominada sujeito, já que, ao final desta experiência, percebeu o quanto esses movimentos disparados no/com/pela paisagem favoreceram um acreditar na possibilidade de criação como um caminho para a ressignificação de práticas hegemônicas e excludentes, na medida em que o contexto envolvido toma o trabalho colaborativo como fio condutor. Palavras-chave: Inclusão. Movimentos Instituintes. Educação Infantil. Autismo. Cotidiano. 9 ABSTRACT This is a qualitative study aiming at understanding the educational processes that permeate the children school environment in relation to institutive/instituted movements, considered inclusive, made there. The study searches for clues to allow us to collectively produce mechanisms that favor the inclusive processes of those living there. The guiding strand of this weave was the search for the inclusion of two students, who were said to be autistic, in an public Daycare Center in Vitória, ES. The theoretical-epistemological tools used were based on the contributions of Foucaultian and psychoanalytical studies and on the considerations weaved by the studies in/of/with the routines, aiming at seeing/reading/hearing/feeling the world. The study is supported on the debate raised by Linhares about the school processes, and it sees, in the dialogue between these authors, an interesting strategy for thinking a public school committed to an educational process based on the premise of the human right to diversity. It uses cartographic method, from semi-structured interviews, free and participatory observations, journals, and photographic records, aiming at contextualizing and analyzing the relations that permeated the investigated environment and their possible engendering with the inclusive processes that were taking place. Another aim of this study is to understand the subjectivation processes instituted therein, on the premise of the place occupied by education/inclusive education in its respective conceptions of world. It also intends to potentialize the inclusive pedagogical mechanisms, considering the subjectivation processes created therein, as well as to foment contextualized continuous teaching training, in order for us to think collectively about the inclusive pedagogical possibilities considering the subjects involved in/by the study. It argues about the relevance presented in/to the constitution of human subjectivity, especially for children who are said to be autistic or psychotic. It 10 is done in a way that the subjects involved with these children offer them movements that echo in their unconscious representations in order to promote changes in the alienating condition of object into a unit called subject. At the end of this experience, it was noticed how much these movements triggered by/in this environment favor a belief in the possibility of recreating a way to resignify the excluding and hegemonic practices, as the involved context uses collaborative work as a guiding strand. Key-words: Inclusion. Institutive movements. Children education. Autism. Routine. 11 RESUMEN Es un estudio cualitativo con el fin de aprender acerca de los procesos educativos que constituyen un paisaje de los niños en edad escolar en relación con los movimientos instituintes / establecido como incluyente forjar allí en busca de pistas que dan visibilidad a los dispositivos que producen en conjunto el apoyo que incluye los procesos los que viven allí. La idea central de esta trama es la búsqueda la inclusión de dos alumnos autistas en una sala del Centro de Educación Infantil en Vitória, ES. Las herramientas teóricos y epistemológicos utilizadas se basan en las contribuciones de Foucaultian estudios y consideraciones de los estudios psicoanalíticos en / de / con la vida cotidiana, para ver / leer / escuchar / sentir el mundo, tomando como referencia el tejido para el debate Linhares acerca de los procesos de escolarización, al ver en el diálogo entre estos autores, una interesante estrategia para pensar en una escuela pública comprometida con una formación que tenga el derecho a la diversidad humana como una premisa. Utiliza el método cartográfico, a partir de entrevistas semi-estructuradas, libre de los comentarios de los participantes y el cuaderno diario de pesca los registros y fotografías, para contextualizar y analizar las relaciones que impregna el paisaje investigado y sus posibles cruces con los procesos de la educación inclusiva hay agencia. Otra intención de este estudio fue comprender los procesos de subjetivación allí establecido, con la premisa: el lugar ocupado por la educación y la educación inclusiva en sus respectivas concepciones del mundo. Buscar también impulsar dispositivos inclusive la enseñanza, teniendo en cuenta los procesos de subjetivación que se forjan, y fomentar la educación continua en su contexto, para pensar colectivamente las oportunidades de educación inclusiva para las sujetos implicados en el / la búsqueda.Argumentó acerca de la pertinencia se presenta en / a la constitución de la subjetividad humana, especialmente para los niños con 12 autismo y / o niños psicóticos, de escuchar y buscar la presencia y la apuesta, a fin de que quienes implicados en / con estas los niños les ofrecen en sus movimientos que ecoem inconsciente representaciones con el fin de promover el cambio en la condición de objeto alienar a una unidad llamada el tema, desde el final de esta experiencia, entender cómo estos movimientos dispararon en / con / favorecido por un paisaje de creencias la posibilidad de la creación como una forma de restablecer las prácticas hegemónicas y excluyentes en el contexto que hace que el trabajo de colaboración que participan como un hilo conductor. Palabras clave: Inclusión. Instituintes movimientos. Educación Infantil. Autismo. Vida Cotidiana 13 LISTA DE FIGURAS Foto 1. Miguel em sala no início do ano..........................................................................60 Foto 2. Joana e Miguel ao final do estudo. ..................................................................67 Foto 3. Mateus em meu 1º dia de acompanhamento ...................................................69 Foto 4. Mateus e sua fixação com o som..... ................................................................71 Foto 5. Mateus chegando ao Parque da Vale ...............................................................78 Foto 6. Mateus vendo o freezer de picolés .................................................................78 Foto 7. Mateus em sala de aula......................................................................................105 Foto 8. Imagens de Miguel no pátio fazendo poses..................................................124 Foto 9. Imagens da escrita de Mateus........................................................................133 Foto 10. Crianças em sala à espera da hora de ir para casa....................................157 Foto 11. Cenas iniciais do cotidiano de Mateus...........................................................167 Foto 12. Mateus no refeitório........................................................................................167 Foto 13. Miguel realizando atividades no grupo no refeitório................................173 Foto 14. Miguel pintando com Joana.............................................................................173 14 SUMÁRIO 1 CONTEXTUALIZANDO O MERGULHO.................................................... 15 1.1 AS FERRAMENTAS TEÓRICO-CONCEITUAIS ..................................... 18 1.2 A ESCOLHA DA PAISAGEM ........................................................................ 31 1.2.1 Aprofundando o mergulho, dando foco à paisagem ............................ 32 1.3 INTENÇÕES DESSE MERGULHO............................................................... 41 1.4 DISPOSITIVOS INICIAIS.......................................................................... 43 2 AS PRATICAS PEDAGÓGICAS QUE BRILHAM NO CHÃO DAS ESCOLAS INSTITUINDO PISTAS POTENCIALIZADORAS DA INCLUSÃO ....................................................................................................... 49 2.1 OS ESTUDOS AJUDANDO A DO/COM/SOBRE DIALOGAR O COM COTIDIANO OS NOS MOVIMENTOS PEDAGÓGICOS CAPTURADOS.................................................................... 50 2.1.1 Ampliando o zoom: a percepção produzida acerca dos movimentos inclusivos capturados............................................................... 54 2.2 AS PRÁTICAS COTIDIANAS ATRAVESSANDO FRONTEIRAS AO ENCONTRO DE PROCESSOS INCLUSIVOS.................................... 93 3 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO: A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE HUMANA EM FRENTE AOS PROCESSOS DE INCLUSÃO EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL................................................................................. 100 3.1 TECENDO FIOS NAS MALHAS DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O MERGULHO NA TEORIA PSICANALÍTICA................ 102 15 3.1.1 Miguel e sua tessitura instituída............................................................... 103 3.1.2 As tramas tecidas com/por/para Mateus.............................................. 3.2 AUTISMO E PSICOSE INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 104 ACERCA DESSE FENÔMENO...................................................................... 106 3.3 O EFEITO FUNDANDOR DA PALAVRA/LINGUAGEM NA/PARA A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO.................................................................. 111 3.2.1.1 A palavra/linguagem ressignificando subjetividades .......................... 120 3.2.1.1.1 Re-direcionando o zoom para os movimentos disparados com/por/para Mateus ..................................................................................... 127 4 AS POLÍTICAS INCLUSIVAS E SUAS ARMADILHAS ÀS PRÁTICAS INCLUSIVAS............................................................................. 136 4.1 FOUCAULT E AS PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO HUMANA............ 138 4.1.1 O movimento de organização das turmas .............................................. 142 4.1.2 O momento das refeições: o que temos para comer hoje? ............. 151 4.1.3 A espera dos pais ao final do dia: a dor e a delícia da diferença ........................................................................................................... 156 4.2 INFÂNCIA, PRÁTICAS EDUCACIONAIS E PROCESSOS INCLUSIVOS ................................................................................................... 162 5 O LEGADO QUE FICOU: O DEVIR ÉTICO DE UMA EXPERIÊNCIA CONSCIENTEMENTE INACABADA .......................... 177 6 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 190 ANEXO A – Relato de experiência............................................................ 203 16 1 CONTEXTUALIZANDO O MERGULHO Este projeto de tese vislumbrou aprofundar questões que emergiram ao longo da pesquisa anterior de Mestrado, na qual busquei compreender como alunos caracterizados como “deficientes mentais” se percebiam no contexto escolar investigado, no que tange ao seu processo de escolarização. A conclusão a que cheguei, em decorrência deste estudo, pode ser expressa com as palavras de Silva (2003 p. 172-173), para quem, [...] muito mais doloroso que apresentar um diagnóstico patológico sobre 1 as pessoas com necessidades educativas especiais (nee) é perceber a forma como a sociedade considera essa condição, interagindo com aqueles/as que não se enquadram nos estereótipos de comportamento construídos hegemonicamente como ‘positivos’, de forma a condená-los a uma morte simbólica, excluindo deles/as qualquer possibilidade de reconhecimento de sua identidade singular. Ao final desta pesquisa, percebi que, apesar do cansaço e da alegria pela tarefa cumprida, havia algo que me inquietava em relação ao tema pesquisado, mas, naquele momento, não sabia muito bem o que se configurava. Afinal, acabava de defender minha dissertação de Mestrado num contexto particular muito delicado, visto que, ao longo desse processo naturalmente difícil, como costuma ser para todos nós, estava também envolvida com o nascimento de minha filha. Logo, sentimentos como o de culpa por relegar a um segundo plano um ser humano tão frágil, em um momento de sua vida tão significativo, misturavam-se a uma sensação inquietante de incompletude. Esses sentimentos, entrelaçados a um não saber como buscar nem o que buscar, levaram-me, inclusive, a desistir da primeira oportunidade real que tive de participar de uma seleção para o Doutorado, por não conseguir vislumbrar por qual caminho seguir. Sentia-me como o próprio Raul Seixas se definiu na música Ouro de Tolo (1973), ao assumir-se inquieto e insatisfeito com pequenas conquistas, enquanto muita coisa ainda urgia por ser feita: Eu devia estar contente Porque eu tenho um emprego 1 Necessidades educacionais especiais é uma expressão instituída na Modernidade para referir-se a grupos como “[...] sindrômicos; deficientes, psicopatas, surdos, cegos, GLS, os pouco inteligentes, entre outros” (VEIGA NETO, 2001, p. 105). 17 Sou um dito cidadão respeitável E ganho quatro mil cruzeiros por mês [...]Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso Por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa Eu devia estar contente Por ter conseguido tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado Que eu estou decepcionado Porque foi tão fácil conseguir E agora eu me pergunto: e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado Apesar de reconhecer que essas angústias afetam a todos nós – afinal, é isso que nos movimenta cotidianamente, ou seja, o desejo faltoso de uma completude impossível (FREUD, 1969) –, sentia-me angustiada, pois acreditava ser preciso retornar à pesquisa a fim de aprofundar questões que haviam sido tangenciadas na dissertação, mas que, por razões diversas, não foram suficientemente analisadas/discutidas/compreendidas. Enfim, não consegui dar conta delas naquele momento! E foi daí que emergiu, inicialmente, a idéia de promover um mergulho em busca de suprir algumas lacunas pendentes da pesquisa anterior, pois tinha a percepção de somente ter contextualizado naquele estudo uma parte do que venha a ser os desafios que permeiam a inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais nas paisagens escolares. Assim, concebia um estudo de Doutorado como uma possibilidade de maior aprofundamento sobre essa questão, todavia fazendo agora uso de outras ferramentas2 teórico-fiosóficas que me possibilitassem compreender melhor alguns movimentos que ali se engendravam, pois, como nos diz Eizirik (2003, p. 3): O conhecimento se constrói e se situa num campo de possibilidades que avança à medida que se amplia seu objeto, se alastra e se ramifica, buscando renovadas e variadas interfaces. Nesse movimento, o conhecimento se areja, se reorganiza, busca parcerias, cumplicidades, descobre novos campos, enfrenta seus limites e seus inimigos, que sempre são da ordem da rigidez, do emperramento, do congelamento. 2 Conceito adotado por Foucault ao se referir ao seu arsenal conceitual, por entender que eles se forjam e se moldam em num “laboratório da obra” (REVEL, 2005, p.8). 18 Por esse aspecto, apesar de já estar alinhavando uma idéia inicial de projeto, ainda não havia conseguido eleger os equipamentos necessários que me possibilitassem aprofundar tais lacunas, principalmente porque, segundo meu ponto de vista, estão atravessadas também por questões de ordem subjetiva, ousaria dizer até de ordem inconsciente.3 No entanto, uma viagem à cidade de Porto Alegre, RS, tornou-se significativa para mim quando, ao participar de um encontro regional acerca de Estudos Culturais4 em Educação, na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), tive a oportunidade de aprofundar questões acerca da contribuição de Michael Foucault, no que tange aos processos de sujeição humana e à atuação das instituições, em especial a escola, operando como um dispositivo de regulação das ações humana. Para o autor, a escola se utiliza, cotidianamente, dos mecanismos de controle e/ou de vigilância, das formas mais sutis e veladas, para engendrar subjetividades preconcebidas, tendo como base modelos hegemônicos de homem, mundo e sociedade. Retomando os Estudos Culturais/Foucault, nesse encontro, houve a oportunidade de perceber o quanto a cultura, aqui concebida como um campo de produções de significados, se encontra atravessada por múltiplos modos de vida pertencentes a diferentes grupos sociais e como, nesse jogo, se engendram relações de poder5 que legitimam supostos saberes6 em detrimento de outros. Em meu entendimento, esses dispositivos precisam ser analisados em sua constituição numa perspectiva micromacroesturtural, considerando a forma como a linguagem e as práticas discursivas operam nas teias das produções culturais de subjetividades humanas, com vistas a compreendermos os movimentos que permeiam nossa sociedade, com destaque para as paisagens escolares. 3 Para Freud, o inconsciente se constitui num campo de representação desconhecida estruturado na/pela linguagem onde habitam os impulsos humanos mais primitivos responsáveis pelas ações incontroláveis (ROUDINESCO, 2000). Já para Rondas (2004), o inconsciente é aquilo que escapa e falha aos humanos, seres compostos por signos, rompendo, de forma imprevisível, o curso lógico do pensamento e do comportamento humano pela via dos chistes, atos falhos, lapsos, sonhos, esquecimentos, entre outros. 4 Campo de teorização e investigação que busca questionar a compreensão elitista sobre a cultura pela crítica literária britânica (SILVA, 1999). 5 Para Foucault (1997), o poder é exercido ou praticado nas relações estratégicas entre os indivíduos cuja questão central se refere à conduta do outro, ou dos outros. 6 Nessa perspectiva teórica, o saber constitui-se num processo pelo qual o sujeito sofre uma modificação durante o trabalho da atividade de conhecimento (REVEL, 2005). 19 Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade, o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro [...] (FOUCAULT, apud GORE, 1994, p. 10). A partir de então, a dúvida e a culpa deram lugar a um desejo (FREUD, 1969) de atualizar alguns pressupostos teórico-filosóficos até então solidificados, levando-me a buscar, numa outra seleção para o Doutorado, o tão desejado mergulho apontado, no sentido apriorístico de conhecer acerca dos processos educacionais que permeiam uma paisagem escolar infantil em relação aos movimentos instituintes/instituídos como inclusivos7 que ali se forjam, em busca de pistas que nos dêem visibilidades para produzirmos coletivamente dispositivos que favoreçam os processos inclusivos dos que ali habitam, no sentido da escuta, do rigor, da criação e da luta contra o aprisionamento das diferenças que se instalam em/por nós a priori, uma vez que a “[...] diferença é justamente o que nos arranca de nós mesmos e nos faz devir outro” (ROLNIK, 1995, p. 255). 1.1 AS FERRAMENTAS TEÓRICO-CONCEITUAIS [...] muitas vezes um único campo de conhecimento torna-se insuficiente no trato de determinado fenômeno (KASSAR, 2005, comunicação oral). Para iniciar o mergulho, escolhi ferramentas pautadas primordialmente nas contribuições dos estudos foucaultianos, psicanálíticos e das considerações tecidas pelos estudos nos/dos/com os cotidianos com vistas a ver/ ler/ouvir/sentir o mundo, tomando como referência o debate tecido por Linhares, cujo respeito à forma como discutem a categoria do magistério tomei emprestado ao dissertar acerca dos processos de escolarização, vendo, no diálogo entre esses autores, uma interessante estratégia de se pensar uma escola pública comprometida com uma formação humana que tome o direito à diversidade humana como uma premissa, já que tais ferramentas se encontram atreladas a outro/novos modos de se pensar 7 Nosso entendimento acerca da educação inclusiva se apóia em Eizirik (2003), ao conceituar esse movimento como um processo qualitativo de inserção de aluno(a)s com necessidades educacionais especiais na rede comum de ensino, em todos os seu níveis. 20 esses espaçoslugares, tecendo fios únicos e, ao mesmo tempo, comuns, em cuja tecitura8 sempre haverá um fio ao qual se possibilitará tecer um novo bordado. Reconheço não ser fácil, em nossa sociedade permeada por uma concepção una de homem e de mundo, aceitar e até mesmo compreender outras possibilidades de ser/estar, quanto mais de pensar processos educacionais que assegurem, de fato, e não somente de direito, às pessoas com necessidades especiais o respeito à sua condição humana singular. Reporto-me, então, a Alves (2008), quando nos alerta que, para compreendermos a complexidade9 tecida nos processos de vida em nossa sociedade, é necessário bebermos de váriasoutras fontes no sentido da ampliação de lentes que nos auxiliem a captar um maior número de fluxos possíveis. Para tanto, busquei tecer nós com os estudos nos/dos/com os cotidianos, pela possibilidade que esse campo nos fornece para dialogar com outrasnovas formas de pensar os movimentos complexos e contraditórios que pulsam nas/das paisagens escolares. Outra relevante contribuição refere-se à preocupação que esse campo nos desperta para o debate acerca das tendências políticas da educação contemporânea e brasileira, e o seu intercruzar com as instituições escolares públicas, seus professores e seus movimentos de institucionalização, principalmente ao destacar a necessidade de promovermos uma metanálise acerca das práticas políticopedagógicas engendradas nessas paisagens, entrecruzando-as com/pelas experiências produzidas no/pelo/com/apesar do contexto, tendo como pano de fundo a busca por uma sociedade mais criativa e solidária, como nos dizem Alves e Garcia (2008, p. 9-10) Estamos convencidas de que a existência de uma escola de qualidade para os até agora excluídos, passa pela tomada da palavra pelas 8 Tecitura: De acordo com Piacentini ( LINGUA BRASIL, 2008, ACESSO EM 11 DE OUT DE 2008) essa palavra vem sendo comumente utilizada em ensaios, dissertações e teses, com uma grafia que gera uma certa polêmica, visto que tessitura com dois s significa: disposição de notas musicais, etc.” em detrimento do significado empregado que é de: "[...] entrelaçamento de fatos, idéias, etc., ou a maneira de urdir, tramar, engendrar, planejar a execução de algo". 9 Concebo complexidade, com base em Morin (2004), como uma teia com múltiplas e diversas possibilidades de se conceber um nó e não simplesmente como o contrário de algo simples e complicado. 21 professoras, historicamente impedidas de dizer a sua própria palavra, pois sempre apareceu alguém para falar por elas, sempre aparece alguém para lhes ‘ensinar’ como melhor ensinar, sempre aparece algum ‘iluminado’ para lhes dizer o que devem fazer, quando a como devem fazer. Muda a denominação, mas o espírito é sempre o mesmo – tutelar as professoras, impondo-lhes o que lhes parece (aos que se sentem iluminados) importante ser ensinado e a melhor forma de fazê-lo. Após o lançamento badalado de pacotes, que se sucedem no tempo, seguem-se muitos seminários, palestras, consultorias, livros e artigos publicados, pois, afinal, é preciso ‘capacitar as professoras’ para o desempenho do papel que lhes destinam os que no momento detêm o poder. E, também como sempre aconteceu, após o primeiro momento de euforia se segue o momento da desilusão – não está dando certo – e tudo continua como dantes. Pudera não.... pois. Como pode atuar competentemente quem é desqualificado em seu saber? Como responder ao ‘chamamento’ quem é aviltado mensalmente por um salário mais curto do que a extensão do mês? Como conciliar a contradição entre a recomendação de ‘partir da realidade do aluno’ e a sutil recomendação de seguir o ‘programa’ que desconhece a realidade dos mesmos e precisa ser cumprido? Como tender à recomendação de atuar disciplinarmente em uma parte do tempo de aula e, de repente, como num passe de mágico, deve assumir uma postura transdisciplinar nos chamados ‘temas transversais’? Mas, dentro de tudo isto, há os que atuam no cotidiano da escola e que lutam por transformá-la em um espaço/tempo de troca, de criação, de relações amorosas e solidárias, isto sim, anúncio de novos tempos. Nessa perspectiva, tomarei como base os estudos de Linhares (1999, 2001a, 2001b), ao refletir acerca das pesquisas em educação no País, que aponta a necessidade de compartilhar os conflitos e tensões que se instituem cotidianamente nas teias opressoras engendradas nos cenários educacionais vigentes, pois, mais do que reafirmar o senso comum, deve-se ousar aprender com/nos espaços sob neblina, como forma de ultrapassar os desafios e as incertezas que nos impõem a complexidade, que atravessam nossa vida, como nos diria Gonzaguinha (BUSCA LETRAS, acesso em 3 fev. 2008). E a vida? e a vida o que é diga lá, meu irmão? ela é batida de um coração? ela é uma doce ilusão? mas e a vida? ela é maravilha ou é sofrimento? ela é alegria ou lamento? o que é, o que é, meu irmão? [...] somos nós que fazemos a vida como der ou puder ou quiser. [...] Viver, e não ter a vergonha de ser feliz cantar (e cantar e cantar) a beleza de ser um eterno aprendiz [...] Para tanto, a autora sugere um investimento constante/cotidianamente (re)criador, cuja política, eticamente delimitada, não se canse de levantar a poeira e dar a volta 22 por cima, isto é, precisamos assumir uma postura instituinte. Termo tecido por Linhares (2001a, p. 166), ao se remeter a uma [...] política que não se acomoda com o poder hegemonicamente sustentado. Um poder que precisa ser criado, como um empenho por fazer-se e construir-se em devir permanente criador, solitário, ético. É, assim, no vamos construindo o caminho e o próprio caminhante. constituído e continuamente liberdade, num caminhar, que Assim, neste devir, aproximei-me também de alguns pressupostos foucaultianos na tentativa de buscar aporte para compreender e analisar como as relações de saber/poder, emergentes da/nas práticas sociais, operam como tecnologias das subjetivações, unas/plurais, instituídas em nossa cultura nos/pelos dispositivos reguladores de controle e vigilância do Estado. Para Foucault (1996b), o conhecimento é algo inventado nas/pelas práticas sociais, e, portanto, resultado dos instintos, efeito de superfície, de luta, algo singular e, ao mesmo tempo, coletivo e sempre da ordem da ideologia: [...] as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetivos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeito e de sujeito de conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma historia (FOUCAULT, 1996b, p. 8). Em meu entendimento, esta análise nos auxilia a compreender como o aspecto político, inerente aos processos de constituição das subjetividades, se encontra vinculado aos jogos de saber/poder, visto que: “A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece neste momento” (FOUCAULT, 2000, p. 292-293). Ao discutir os regimes de práticas, não concebidos apenas por uma forma histórica de fazer ou praticar, e sim como algo político, histórico e cultural, estou também analisando uma linha entre o dizer e o fazer, que se constitui em modos de pensamento por meio das lógicas, das estratégias, das evidências e da razão. Assim, ao analisar as formas fundamentais de saber/poder que permeiam as práticas discursivas a partir de suas próprias relações de força refletidas nas 23 diversas formas de sujeição humana, estou também indo ao encontro de um novo paradigma comprometido com pressupostos éticos, estéticos e políticos, no sentido de pensar a vida como uma obra de arte, constituindo, uma estética da existência (EIZIRICK, 1994). A opção por compreender essas relações reside na concepção de que o saber se constitui num produto da luta contra forças de opressão que geram mecanismos que consolidam a dominação. Assim, “[...] não existe verdade no sentido absoluto do termo como resultado de uma operação pura do intelecto” (COSTA, 2002, p. 100). Ela se institui, neste mundo, pela via das correlações de forças, sendo a ciência apenas uma das formas mais poderosas de saber. Nessas múltiplas/polifônicas relações de forças, os pensamentos encontram-se permeados por contextos que, direcionados para as paisagens escolares, aqui concebidas como um espaço de compartilhamento de experiências, atravessam os processos pedagógicos que ali se engendram, instituindo cotidianamente micropráticas de poder/saber. Foucault (1997) nos alerta para ao fato de que as instituições que operam no campo educacional, em especial nas modalidades iniciais, concebem a infância como um relevante dispositivo de regulação/interdição humana, consolidado pela via de políticas educacionais que agenciam os processos de ensino ali produzidos, tanto no sentido de potencializar aquele considerado “o mais puro/sadio dos indivíduos”, quanto de despotencializar o “dito anormal/impuro”, em virtude de o modelo preestabelecido hegemonicamente de sujeito não se encontrar aberto à diversidade. Para além dessas questões, identifiquei, nessas práticas, um atravessamento pelas relações de saber/poder que permeiam as práticas discursivas, que repercutem nos processos de ensino produzidos na/pela cultura, em especial nos processos educacionais de alunos ditos com nee, em virtude de o modelo preestabelecido hegemonicamente de sujeito/aluno/normal não se encontrar aberto à diversidade, 24 isto é, reafirma a cópia e desconsidera as potencialidades presentes nos simulacros (DELEUZE, 1974).10 Estamos diante de um novo-antigo sujeito, cuja identidade múltipla continua sendo “reformada” cotidianamente para/por nós mesmos, numa perspectiva burocratizante em nome da inclusão curricular. Dessa forma, “[...] re-uniformizamos o Outro sob a sombra de novas terminologias sem sujeito” (SKLIAR, 2002, p. 3). Nesse contexto, as possibilidades de inter-relação constituíam-se num exercício de poder, que se processava num plano ativo de força e de luta, produzindo resistências múltiplas que disparavam outros modos de ser/estar, principalmente quando pensamos na inclusão socioeducacional dos alunos/as com nee. Faz-se necessário, então, promover múltiplos mergulhos no sentido da compreensão acerca da complexidade que opera nas paisagens escolares pela via das relações estabelecidas, bem como compreender suas interfaces micromacropolíticas, visto que toda relação de poder implica um suposto saber, tanto no sentido do aprisionamento, quanto no sentido da libertação dos indivíduos (FOUCAULT,1975). Outro aspecto que despertou meu interesse foi compreender a constituição da subjetividade humana em frente aos processos de inclusão socioeducacional na Educação Infantil, tendo como elemento disparador de tais análises, o autismo e as psicoses infantis. Para dar suporte a tal debate, elegi como ferramenta os pressupostos psicanalíticos propostos por Freud e Lacan, bem como por autores que analisam os processos de inclusão com base nas contribuições psicanalíticas, pela possibilidade que esse campo de conhecimento nos oferece para analisar as posições dos sujeitos diante da incompletude que nos impõe o inconsciente humano, numa perspectiva histórica singular/coletiva, contextualizando-a num cotidiano atravessado por diversas outras 10 Em Deleuze (1998), simulacro refere-se a uma tentativa de recusa de qualquer forma de aprisionamento que nos impõem os modelos absolutos e hegemônicos de ser/estar no mundo. 25 subjetividades originadas numa sociedade cujas práticas de sujeição produzem pessoas com dificuldades em lidar com a diferença nas suas mais diversas manifestações, uma vez que esse encontro nos faz retornar a um possível desejo há muito interditado pela repressão. [...] se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso lingüístico estendeu das Heimlich [homely] (doméstico, familiar) para o seu oposto, das Unheimlich; pois este estranho não é nada de novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou deste através do processo de repressão (FREUD, 1976, p. 301). Minha expectativa era que os envolvidos nesse processo, ao analisarem as suas práticas discursivas, compreendessem um pouco melhor acerca da constituição da subjetividade humana, em especial sobre o debate que permeia o autismo e as psicoses infantis, de forma a ressignificá-lo em prol da existência humana, para que, a partir daí, fosse possível contextualizar suas inter-relações com os Outros11 e entender como essa inter-relação engendra dispositivos favorecedores ou não às produções educativas dos alunos, em especial, dos alunos ditos com nee/autistas. Birman (2001), corroborando essa afirmação, concebe a Psicanálise como um campo de saber sobre o psíquico que pode contribuir para os contextos educacionais, num processo de ensino/aprendizagem no qual a intersubjetividade seja uma premissa, de forma que, Nestes termos, a psicanálise e os demais campos de saberes sobre o psíquico se inscrevem de fato e de direito no campo da educação, sendo em torno dela que os operadores e engrenagens deste campo giram com suas práticas e seus propósitos, em última instância [...]. Isso porque a subjetividade em pauta se inscreve necessariamente numa polis nos registros éticos, estéticos e políticos além, evidentemente, do cognitivo (BIRMAN, 2001, p. 11-12, grifo do autor). Ao longo desse percurso teórico, podemos destacar também a tese de Nicacio (1999), intitulada O paradoxo do homem moderno: psicanálise e processo civilizatório, que, ao mapear o sistema de idéias e valores subjacentes à Psicanálise, pela via do estudo da teoria de Freud sobre a cultura, defende essa 11 O conceito de Grande Outro remete, na Psicanálise, à linguagem, à cultura, ou seja, ao lugar onde se estruturam as significações (RONDAS, 2004, p. 38). 26 teoria como uma forma particular de pensar o paradoxo do homem moderno, em relação à questão da interiorização da lei. Outra tese que também aprofunda tal debate é a de Menezes (2003): A psicologia e a psicanálise sob o exame crítico da primeira fase de Foucault, que promove uma investigação epistemológica no sentido de cartografar os encontros e os (des)encontros entre a Psicanálise e a teorização de Michael Foucault, com vistas a apontar não só seus limites, mas também, e principalmente, as possibilidades de estabelecermos um diálogo fértil e eterno entre eles, bem no sentido do que estou tentando desenvolver neste estudo. Por conseguinte, pode-se conceber a relação que Foucault estabelece com a Psicologia e com a Psicanálise sendo presidida por uma tensão. Mas sob a leitura aqui cometida, é graças a essa tensão que o diálogo entabulado pelo autor com esses saberes é fértil. Em todos os sentidos (e não em certo sentido), sua crítica jamais pretenderá dispensar a Psicologia e a Psicanálise após um uso que demonstre as suas mazelas, deficiências, debilidades. Ao contrário: o que ele deseja, como sustentado em toda a leitura aqui proposta, é manter um convívio no encalço da Psicologia e da Psicanálise, oferecendo para elas um lugar capital em toda a sua obra. O simples fato de tais saberes comparecerem de modo pontual em certos momentos, de insurgirem continuamente no interior de certos textos ou, ainda, de o pensamento de Freud ser perseguido de modo sistemático em tantos outros demonstra o quanto esse contato com a Psicologia e a Psicanálise fertiliza a imaginação inquieta do autor e o quanto esses saberes se constituem em oportunidades apaixonantes na construção de encruzilhadas promotoras de reflexões (MENEZES, 2003, p. 249). Ao final, o autor conclui, acerca desses (des)encontros que acometem essas teorizações, apontando que, apesar de as tensões provocadas por suas especificidades epistemológicas convergirem na tessitura de uma crítica sobre os modos de subjetivação humana presentes na complexa sociedade moderna, há uma fertilização neste diálogo, na medida em que os pressupostos foucaultianos promovem/ampliam o debate da Psicologia e da Psicanálise ao encontro de uma postura mais reflexiva e crítica do que dogmática, acerca da necessidade de se iluminar para poder reconhecer-se como um sujeito singular e, ao mesmo tempo, instituído na/pela coletividade. Ainda nessa perspectiva, Foucault (1996b, p. 9) chama a atenção para o fato de a Psicanálise ter sido pioneira no rompimento com a concepção absoluta de sujeito, ao encontro de alguém constituído na/pela história/cultura: “A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou de maneira mais fundamental a 27 prioridade um tanto sagrada conferida aos sujeitos, que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes”. Em Souza e Gallo (2002), ao discorrer sobre os limites/possibilidades/desafios de dialogarmos a Psicanálise de Freud e Lacan com as contribuições de Foucault, no que tange ao debate que perpassa a exclusão como efeito de mecanismos assimilatórios e, ao mesmo tempo, segregacionistas, tal opção teórico-conceitual justifica-se pela contribuição que cada um desses campos de conhecimento oferece para entendermos acerca dos processos de subjetivação/sujeição humana: Não se trata aqui de buscarmos pontos de contato entre duas abordagens que, mais apropriadamente, talvez possam ser representadas sob forma de paralelas-linhas de pensamento condenadas a jamais se encontrarem. Mas sim o exercício de uma primeira mirada que nos permita considerar por quais aspectos cada uma delas nos franqueia o entender da questão título, se tomadas na condição de retas singulares. Mais especificamente, como com base nelas poderíamos entender o (a)normal e o estranho (p.44). Assim, a opção por esses autores, em especial Foucault e Freud, refere-se primordialmente ao fato de que ambos, com os seus olhares ímpares, estudaram e atuaram sobre a psique humana, isto é, sobre a constituição dos sujeitos, pela via dos transtornos mentais e o seu atravessamento pela sexualidade. Isso se presentifica em Foucault, ao analisar como os “regimes de prática” instituídos na/pela sociedade moderna são perversos aos indivíduos, quando visam a disciplinar e/ou punir os corpos com as mais diferentes técnicas de sujeição; e em Freud, quando, ao estudar sobre a histeria humana, voltou-se para compreender como a cura pode ser operada pela fala, ou seja, pela interpretação de uma estrutura lingüística cujos significados se encontram deslocados no inconsciente. Ao direcionarmos tal debate para os contextos escolares, mais precisamente aos processos de inclusão social de crianças com nee, precisamos estar atentos aos diagnósticos pautados em bases científicas apenas, tendo em vista o fato de que, muitas vezes, uma situação de ”fracasso escolar” poderá estar atrelada a questões subjetivas que poderão gerar uma situação de inibição do conhecimento (SANTIAGO, 2000). Por esse aspecto, acredito que ambos apontam para uma mesma direção, no sentido de se observar como as práticas sociais engendram/instituem/produzem 28 subjetividades. Entretanto, para além das especificidades lingüísticas, Foucault discute esse engendramento de forma mais generalizada, tomando com foco de análise uma reflexão de ordem moral entre a loucura, a alienação e a autonomia, como ele mesmo intitula, isto é, contextualizando o fato de essas práticas produzirem novosoutros saberes que instituem sujeitos e, por conseqüência, sujeitos do conhecimento. No entanto, Foucault não privilegia refletir acerca de como esse processo se desenvolve individualmente em cada um de nós, o que, em meu entender, é muito bem contextualizado pela teoria freud-lacaniana, ao investigar as ações do inconsciente e do desejo nas ações humanas. Tema que foi reconhecido, inclusive, por Foucault, em seu livro A verdade e as formas jurídicas (2004, p. 10), quando afirma: “A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou de maneira mais fundamental a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito, que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes [...]. Ora, parece-me que a psicanálise pôs em questão, de maneira enfática, essa posição absoluta do sujeito”. Foucault, apesar de ter divergido de Freud no que tange ao Complexo de Édipo e ao inconsciente, que, para ele, não operavam no nível individual, mas no coletivo, reconhecia a Psicanálise como um campo teórico que reavaliou a concepção sagrada de sujeito estabelecida no pensamento hegemônico ocidental. Para o autor, [...] a posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente ao grande sistema da degenerescência: ela retomou o projeto de uma tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os racismos e eugenismos. [...] ela foi, até os anos 40, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversãohereditariedade-degenerecência (FOUCAULT, 2003a, p. 113). A grande questão de Foucault, em consonância com Deleuze e Guatari, acerca da teoria psicanalítica, reside no fato de eles questionarem a forma como o desejo edipiano se encontra articulado na/pela Psicanálise pela sociedade vigente, de modo muito semelhante a um “[...] pequeno drama, quase que burguês entre o pai, a mãe e o filho” (2005, p.10), em que o desejo se torna um instrumento de coação por parte dos psicanalistas para contê-lo, apesar de não desconsiderar a “[...] história interna 29 da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação [...]” (p.11), ou seja, Foucault não nega a Psicanálise, mas, sim, privilegia outro percurso para se compreender os assujeitamentos humanos. Ele, inclusive, assume que, apesar de não concordar totalmente com essa perspectiva, confessa sentir-se atraído em pesquisar acerca dessa estruturação, todavia num contexto mais coletivo, buscando compreender, nesse processo, a “[...] história de um poder, um poder político” (2005, p.30). Assim, acredito que a tentativa de diálogo com esses campos de conhecimento teve o objetivo de compreender que, apesar se de utilizarem de ferramentas próprias, eles analisam os processos produzidos nos/pelos mundos plurais/singulares, cujos fenômenos surgem deslocados, gerando imprevisíveis e significativos (des)encontros, isto é, ajudam a compreender como se estruturam os processos de individualização e de constituição do Eu, em cada um de nós, a partir de nossas histórias de vida, como nos diz Safatle (2008, p. 40): Talvez isso nos explique um pouco do forte interesse que o pensamento de Lacan ainda desperta e diversos projetos intelectuais da contemporaneidade. Pois talvez todos eles partilhem da crença de que, se quisermos forjar um dispositivo de pensamento capaz de forçar o aparecimento de uma práxis renovada, não devemos procurar atualizar regimes de humanismos, mas dar forma a nosso desconforto com um certo projeto antropológico de homem. Nesse sentido, Lacan pode nos ajudar a compreender como a modernidade foi também um espaço de uma outra concepção de humano, uma concepção que insiste na importância de experiência de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com o indeterminado para a formação de uma práxis emancipada . Essa opção significa, então, uma possibilidade de não só compreendermos os mecanismos de subjetivação por nós instituídos cotidianamente, como também de analisar o estranhamento que nos provoca o encontro com um possível estrangeiro, aquele que difere de nossa imagem e semelhança, para que, a partir de então, se possam instituir, nas mais diversas paisagens, em especial nas paisagens escolares, práticas mais favoráveis à nossa existência singular/coletiva, no sentido de vislumbrar espaços de liberdade que permitam emergir minhas pequenas revoltas e, por que não dizer, nos permitam pensar em práticas pedagógicas de bases mais inclusivas. 30 Certamente existiram algumas contradições e/ou limitações de tais ferramentas teórico-filosóficas, afinal, como nos provoca Brandão (2002), qual é a teoria que não se apresenta incompleta? Haja vista o fato de não existir campo de conhecimento capaz de responder acerca dos nós tecidos nas teias dos fenômenos sociais. A minha opção teórico-conceitual constitui-se, então, como uma hipótese a ser investigada ao longo deste estudo, isto é, pretendo valer-me dessas lentes para compreender os movimentos que se engendram nas paisagens escolares, até mesmo para identificar quais são as fissuras que porventura irão emergir ao final. Assim sendo, assumo os riscos das possíveis contradições que venham a emergir nesta produção, tendo em vista a necessidade acadêmica de uma coerência textual atrelada ao rigor cartesiano da indução, que desconsidera, muitas vezes, a complexidade e a provisoriedade que caracterizam nossas ações cotidianas, ignorando o fato de que somos sujeitos permeados por múltiplas subjetivações, em constantes transformações nem sempre coerentes e até mesmo bastante contraditórias, bem como de que somos constantemente atravessados, ao longo de nossa formação acadêmica e/ou humana, por pressupostos hegemônicos, em função dos quais a visão cristalizada de homem e de mundo foi/é sutilmente impregnada em nossa existência. Nesse sentido, reporto-me novamente a Brandão (2002, p. 49), quando discorre sobre “[...] os limites que a Especialização disciplinar impõe à complexidade das questões que emergem da educação enquanto prática social”, E reafirma que, mesmo sem desconsiderar a necessidade de rigor no âmbito das ciências, é preciso ampliar constantemente as nossas possibilidades de interlocução com áreas circunvizinhas, na medida em que a verdade opera na atualidade não mais num caráter permanente, mas, sim, como processo em constante devir. No entanto, com o desenrolar deste texto, foi-me possível compreender que a idéia então constituída sobre o mergulho não se limitava apenas a um simples aprofundamento de questões: o que se configurava de fato neste estudo era a possibilidade de analisar os múltiplos movimentos existentes nos oceanos, ora sendo impulsionada pelas correntes do instituído, ora promovendo instituintemente modificação nas marés das paisagens escolares. Afinal, as soluções para a 31 inclusão, cujo conceito se encontra num constante devir, não são facilmente atingidas; são complexas e, muitas vezes, contraditórias, podendo, inclusive, produzir outros múltiplos e imprevisíveis devires que impliquem mutações nas concepções sobre a vida e o humano em suas diversas manifestações. A minha movimentação teve como premissa, apesar de saber da provisoriedade desse ato, o acompanhamento dos processos que ali se agenciam com múltiplas outras conexões, produzindo, por conseqüência, novas/outras paisagens nas quais a diferença não seja vista como uma cópia ruim (DELEUZE, 1974), mas como uma outra forma de ser/estar produzida num contexto coletivo que não se deixa afetar pelo tempo, cuja análise acerca de nossa implicação ou, por que não dizer, do nosso atravessamento no/pelo outro se torne algo cotidiano. Para tanto, foi preciso desprender-me de verdades inquestionáveis que se encontravam presentes em minhas entranhas, para que pudesse estabelecer outras múltiplas conexões com as diversas teias que se engendraram em nossas ações num devir constante, cujos nós nem sempre nos levaram ao lugar inicialmente almejado. Afinal, “[...] todo texto, como o mundo, como o próprio homem é fluido, é um devir que nunca se aproxima ao ser, pois não existe ser, um movimento que nunca se aproxima à verdade, pois não existe verdade” [...] (LARROSA, 2004, p. 30). Este estudo não teve a pretensão de concluir nada, mas acompanhar os processos que ali se presentificaram (KASTRUP, 2007), possibilitando-me, assim, contribuir para a desconstrução de algumas categorizações fixas que permearam essas paisagens, impedindo de vir à tona múltiplos outros/novos movimentos que ali se forjaram, uma vez que não se encontravam hegemonicamente instituídos. O que se constituiu como significativo não foi somente a interpretação das idéias postas, ou o que se pensou a partir delas, mas o que com elas, contra elas ou a partir delas pudesse disparar forças que me levassem para além de mim mesma, cujo texto possibilitasse múltiplas interpretações, como afirma Larrosa (2004, p. 2021), remetendo-se à obra Nietzsche & a educação: 32 E o nome de Nietzsche na folha de rosto coloca seriamente a questão de que se é, realmente, um só homem aquele que se oculta sob tantas máscaras: o filósofo, o psicólogo, o moralista, o filólogo, o bufão, Dionízio, Zaratusta, o Anticristo... A singularidade do seu estilo é ser muitos estilos, como a singularidade de sua mensagem é ser muitas mensagens. E mais: a escrita de Nietzche está dirigida contra a ilusão de que um livro exige um estilo transparente, eficazmente ‘comunicativo’, uma personalidade única que controla seu sentido, e uma verdade transmitida que seria seu ‘conteúdo’. O estilo é, para Nietzche, uma forma múltipla para a expressão inexpressável, uma música, um gesto, um punho, um martelo; a personalidade é um sistema hierarquizado de forças; a verdade não é outra coisa senão a invenção que esqueceu o que é. Dessa forma, acredito que esta tessitura teórico-conceitual me possibilitou conhecer e potencializar, na paisagem investigada, os processos instituintes/instituídos como inclusivos que ali se engendraram, tendo sempre como eixo de meus movimentos uma perspectiva educacional comprometida com a ruptura dos muros existentes entre a experiência da vida e a escola, evidenciando movimentos que brilham no chão das escolas (LINHARES, 2001b). 1.2 A ESCOLHA DA PAISAGEM A paisagem investigada constituiu-se num Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) pertencente à rede municipal de ensino da cidade de Vitória, ES. Tomei, como ponto de partida, esse espaço educacional, em virtude de o meu objeto de investigação se pautar na busca pela compreensão das múltiplas formas de agenciamento das subjetividades humanas, considerando suas respectivas implicações nos processos de ensino dos indivíduos nos diferentes níveis, em especial de pessoas que apresentam nee: crianças com transtorno invasivo de desenvolvimento/autismo (TID). Na medida em que os processos de subjetivação são engendrados culturalmente na/pela relação com o/s outro/s, o fato de estar nesta paisagem me possibilitou acompanhar de perto a chegada dos indivíduos nos contextos sociais propriamente ditos, seus encontros e/ou desencontros com outras subjetividades que ali habitavam, a atuação das famílias diante desses processos e seus respectivos impactos na estruturação da subjetividade infantil, bem como o quanto as políticas públicas instituem processos de subjetivação humana. Logo, quanto antes 33 acompanhassem a gênese de tais movimentos, melhor seria a compreensão acerca de suas implicações e, também, me dariam pistas acerca dos possíveis fluxos a seguir, a fim de contribuir para processos inclusivos que ali se instituíam. Nesse sentido, apoiei-me em Heckert (2004), ao dissertar acerca dos motivos que a levaram a eleger os contextos públicos de educação como um campo de investigação, ao conceber, nessas paisagens, a personificação de nossa realidade vivida e sendo, por isso, necessário de ser destacada a fim de percebermos que, apesar da precariedade em que vivemos, muito coisa é produzida, mas, por questões óbvias, não são destacadas: “Não é a melancolia que alimenta e impulsiona este trabalho, tampouco o denuncismo. Ao contrário, é a possibilidade de vislumbrar criações nos restos, detritos e sucatas que povoam este espaço” (p.16). Buscarei, a seguir, contextualizar acerca da paisagem investigada no que tange à sua origem, localização, população e composição do corpo técnico-pedagógico, evidenciando alguns movimentos interessantes de se destacar neste processo. Fazse necessário reafirmar que os fatos narrados foram extraídos da experiência vividas por esta pesquisadora, visto que essa paisagem era também, no momento da pesquisa, o local em que minha filha mais nova estabelecia seus primeiros contatos com a educação formal. 1.2.1 Aprofundando o mergulho, dando foco à paisagem O Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) investigado era recém-inaugurado, tendo iniciando a gestão político-pedagógica em fevereiro de 2005. Sua construção deu-se num momento de transição política, isto é, foi construído no final de uma gestão e inaugurado efetivamente no início de outra, com posição partidária contrária à anterior. Esta mudança político-partidária, para além das questões ideológico-pedagógicas que atravessaram tal situação, como a escolha da nova Secretária de Educação e, por conseqüência, de toda a sua equipe, comprometeu significativamente o início do ano letivo naquela CMEI, visto que não houve uma preparação para se receber as 34 crianças de forma que, em fevereiro de 2005, ocorre a “abertura” de suas portas à comunidade sem nenhum material didático-pedagógico, tendo a escola que adiar o início das aulas em 15 dias, até que chegassem materiais básicos para que, efetivamente, se começasse o ano letivo. Outra questão com sérias implicações constituía-se na falta de uma identidade político-pedagógica legitimamente construída, em virtude de o Projeto PolíticoPedagógico ainda se encontrar em elaboração, apesar do início das aulas, bem como o processo de transição para a escolha da direção daquele CMEI, fato que destacarei a seguir. Assim, com abertura das portas à comunidade, era preciso instituir uma infraestrutura básica para que, a partir de então, fosse organizada internamente a escolha de seus gestores, isto é, a composição do Conselho de Escola, formado por docentes, funcionários e membros da comunidade, e também da direção. Logo, ao final de primeiro ano de funcionamento desse CMEI, foi realizada uma eleição cujos concorrentes diretos, dentre vários candidatos, eram uma professora, da própria creche e a outra candidata, também professora, todavia atuante na primeira série do Ensino Fundamental de uma escola próxima ao CMEI. Ao final, apesar dos esforços de grande parte dos docentes e dos funcionários na eleição de seu representante direto, vence, com uma pequena margem de votos, a candidata advinda da comunidade externa. Esse fato gerou conflitos internos, contribuindo, inclusive, em meu entender, para que a candidata derrotada pedisse remoção para outro CMEI ao final do ano letivo. Em relação à diretora eleita, esta, por sua vez, vivenciou uma gestão conflituosa, cujos enfrentamentos de resistência eram bem freqüentes, ocasionados tanto pela resistência inicial de alguns funcionários do CMEI, como, também, pelo fato de ela estar iniciando seu trabalho no campo de gestão, cujo contexto complexo e caótico/desordenado pulsava a todo o momento. Retomando o foco à paisagem investigada, a escola se localizava em num bairro de classe média urbana do município de Vitória, ES, cuja população apresenta uma 35 diversidade econômico-social-cultural bastante significativa, na medida em que congregava, nessa comunidade, pessoas das mais diversas classes sociais, abrangendo professores e estudantes, universitários e profissionais da própria rede municipal de ensino, pesquisadores, pessoas de classe média, classe baixa e uma número significativo de pessoas envolvidas com o tráfico e/ou com o consumo de drogas, o que influenciava diretamente no comportamento das crianças, na mediada em que muitas delas eram criadas por seus avós e/ou traziam para a sala de aula os impactos do contexto familiar vivido. Apesar de reconhecer que essa diversidade era bastante significativa para a formação humana dos que ali habitavam, não poderia deixar de citar o fato de que, no que tange ao envolvimento político-pedagógico entre comunidade interna e externa, havia conflitos velados, em virtude de uma parte da equipe desse CMEI, acreditar que a comunidade externa pretendia intervir, além de seus limites, na gestão pedagógica daquela creche. Esse entendimento se instituiu por uma conjunção de fatores, como a formação acadêmica de uma boa parcela dessa população, conforme já descrito, que habitava espaços que estimulavam à busca pela participação ativa na gestão daquele CMEI. Entretanto, muitas vezes, esta participação ocorria de forma muito incisiva. Outra questão a se destacar pautava-se no fato de, naquele momento, os docentes se encontrarem bastantes insatisfeitos com as condições político-estruturais vivenciadas, associando ao fato de acreditar que a diretora eleita tinha implicações com a comunidade externa, na medida em que esse grupo ajudou a elegê-la. Em relação ao quantitativo de alunos matriculados, o CMEI possuía em torno de 500 crianças nos turnos matutino e vespertino. Especificamente no turno vespertino, no qual se desenvolveu este estudo, havia 250 crianças. No geral, eram atendidas 15 crianças ditas com necessidades especiais, das quais três apresentavam laudos médicos fornecidos pela Associação de Pais e Amigos do Excepcional (APAE) de autismos. Do ponto de vista estrutural, o centro de educação infantil possuía 15 salas de aulas, com turmas organizadas do Maternal ao Grupo 6. Tinha uma sala de vídeo que 36 funcionava também como biblioteca, um refeitório, um pátio interno descoberto, uma quadra coberta para as aulas de Educação Física, uma quadra de areia descoberta, uma sala de professores, uma sala de atendimento pedagógico, uma secretaria, a sala da direção e uma cozinha industrial. No que tange aos recursos humanos, o CMEI contava, no período vespertino, com uma diretora, duas pedagogas, uma professora de apoio para crianças com nee, duas professores de Educação Física, 13 professores regentes de sala, seis estagiários de Pedagogia e, ainda, dois porteiros, duas secretárias, cinco auxiliares de serviços gerais e três cozinheiras. Todos os professores apresentavam graduação em Pedagogia, bem como havia especialistas e mestres no grupo, tanto de professores quanto da gestão político-pedagógica, isto é, a diretora possuía Mestrado em Literatura e a pedagoga, Especialização em Educação. Das 13 salas de aula, duas eram voltadas para crianças em torno de seis anos (Grupo 6), duas para crianças em torno de cinco anos (Grupo 5), duas para crianças em torno de quatro anos (Grupo 4), duas para crianças em torno de três anos (Grupo 3), duas para crianças em torno de dois anos (Maternal) e uma turma para crianças em torno de um ano (Berçário). Decidir nem sempre é algo fácil, principalmente quando envolvemos, num mesmo contexto, metas, afetos/desafetos, desejos suprimidos, entre outros, de forma que fiquei sempre dividida entre a razão e a emoção. Logo, resolvi deixar falar mais alto a minha implicação12 (BARBIER, 1985) pessoal, ou seja, dei vazão ao que eminentemente me afetava como pesquisadora, mesmo que, e/ou principalmente, pelo fato de esse sentimento estar entrelaçado a questões subjetivas, afinal, não é isto que nos movimenta à procura de um desejo faltoso: a busca incessante pelo Falo (FREUD, 1969) que nos foi instaurando ao nascer? Nesse contexto, a escolha da paisagem se deu em virtude de o CMEI investigado se constituir, no momento desta pesquisa, no local em que minha filha mais nova estudava, em cuja sala de aula havia uma criança, ali caracterizada como autista 12 Termo utilizado por René Barbier (2002) para definir um envolvimento singular/coletivo, consciente/inconsciente de práxis científica, considerando os aspectos históricos, filosóficos, familiares, libidinais, políticas, sociais entre tantos outros. 37 que apresentava também múltiplas deficiências (deficiência visual, deficiência auditiva, deficiência intelectual, dentre outras). Apesar de saber dos riscos dessa escolha (afinal qual é a escolha que não tem seus riscos?), resolvi assumir tal decisão na medida em que percebi, em relação a essa criança, o fato de ela ainda não se encontrar, de fato, incluída no grupo, ou seja, Priscila13 tinha um lugar físico garantido, mas, no âmbito simbólico, não havia sobre ela uma aposta de crescimento, isto é, não havia uma possibilidade de ela se constituir como um ser desejante (FREUD,1969). Essas impressões foram se fortalecendo em mim, quando, certa vez, minha filha me disse: “Ah, mãe, a Priscila parece doida, não escuta, não faz nada, só bate e puxa o meu cabelo!”. Essa fala me incomodou bastante, afinal, como poderia eu, mestre em Educação/Educação Especial, atualmente doutoranda, ter uma filha com essa concepção de mundo/sociedade e não fazer nenhum movimento que a impedisse de ver essa criança dessa forma? O que escapava dentro de minha casa que a levava a apresentar tal concepção sobre a diversidade humana? A partir de então, comecei a me inquietar e, conseqüentemente, a refletir sobre como seriam as percepções de seus colegas de sala, de sua professora, de todos/as naquele CMEI sobre Priscila? Teriam a mesma visão? Como ocorria o diaa-dia dessa criança em sala de aula? Como o grupo havia sido preparado para recebê-la? E a escola, em geral, como concebia a idéia de inclusão? Em meio a tantas questões, surgiram-me outras mais, por exemplo: será que deveria me manter alheia a esse problema pela minha implicação pessoal? Mas eu nunca acreditei em pesquisador neutro! Afinal, como ficava a minha responsabilidade social e ética como pesquisadora? Será que esse envolvimento poderia resvalar de forma nociva ao processo educacional de minha filha? Estaria eu buscando uma justificativa para realizar um mergulho no CMEI de minha filha apenas para me 13 Nome fictício. 38 aproximar dela? Tantas questões, tantas dúvidas, o que fazer? Eu precisava me movimentar para algum lugar, sair daquele imobilismo, só precisava de um empurrãzinho. Um dia ocorreu um movimento que me levou a “mergulhar de cabeça nesta paisagem”, desencadeado quando a turma se apresentou para a comunidade escolar com uma manifestação artística, na qual Priscila ficava, durante todo o tempo, sentada ao lado do grupo com movimentos estereotipados de balançar as mãos e o corpo, apresentado um olhar de expectadora a tudo que ocorria, como se não pertencesse àquele grupo, cercada pela estagiária para ali permanecer. Não, eu não podia ficar alheia a isso. Esse era o sinal para que eu efetuasse o meu primeiro mergulho! Inicialmente, meio sem coragem, procurarei a pedagoga Kely a fim de marcar um momento para conversarmos sobre Priscila, a turma e o CMEI. Percebi que, ao apontar os motivos solicitados para esse encontro, deixei Kely um pouco mexida, afinal, o que me levaria a solicitar uma reunião para falar sobre uma criança que não era a minha própria filha, para falar sobre outra criança com características tão específicas? No dia marcado, encontrei-me com Kely e percebi que ela apresentava reservas em relação à nossa conversa. Para tranqüilizá-la, disse-lhe que não estava ali para cobrar e nem julgar nada, mas para oferecer minha contribuição como um membro da comunidade escolar daquele CMEI e que, na condição de pesquisadora, me interessava pelas questões acerca da Diversidade Humana em nossa sociedade. Sendo assim, gostaria de fazer parte daquele grupo, pois estudava numa Universidade Pública custeada pela sociedade, de forma que me sentia implicada com aquela questão. Percebi que essa fala a tranqüilizou, inicialmente, de forma que, em seguida, procurei evidenciar o meu entendimento acerca dos processos de inclusão social dos indivíduos, vendo, nesse movimento, um inexorável processo de reconhecimento à singularidade humana una/plural. Reafirmei compreender as dificuldades que atravessam esses processos, haja vista as nossas concepções 39 apriorísticas e essencialistas de homem/mundo que refletiam diretamente em nossa percepção sobre a educação/educação inclusiva e que, por isso, precisavam ser repensadas ao se pretender uma sociedade menos dicotômica e discriminatória. Nossa conversa se desenrolou de forma tranqüila. Comentei sobre a minha futura tese de Doutorado e a possibilidade de utilizar aquele espaço como um campo de investigação. A partir de então, Kely me propôs vir ao grupo de professores/as falar um pouco sobre a minha concepção de inclusão socioeducacional. Sugeri, então, que iria, se o grupo assim desejasse, pois não gostaria de estar ali por uma imposição e sim por um desejo do grupo. Despedimo-nos acordando que o grupo seria consultado acerca dessa possibilidade para que pudéssemos dar prosseguimento à nossa participação. Passados alguns dias, Kely veio me procurar dizendo que o grupo concordou à unanimidade, apesar de algumas falas do tipo: “Uma coisa é a teoria, outra coisa é a prática!” “Se puder, não quero aluno com deficiência em minha sala de aula!” Ao longo de nossas conversas, identificamos, naquele ano, no CMEI, 17 alunos/as caracterizados como crianças com necessidades especiais por deficiência. No entanto, até pelo fato de esse espaço ser recém-inaugurado, ainda não havia uma proposta inclusiva estruturada no Projeto Político-Pedagógico. De acordo com a pedagoga, o que ela fazia até então era trabalhar essa temática com o grupo pela via da sensibilização, pois percebia muita resistência velada por parte de algumas pessoas do grupo. Assim sendo, definimos, como uma tática inicial, começar pela escuta do grupo para que, em seguida, juntas, elaborássemos alguns movimentos que favorecessem a nossa intenção acerca da inclusão socioeducacional daqueles alunos/as. Nosso primeiro encontro com o grupo teve como premissa o fato de estarmos nos conhecendo e, principalmente, a possibilidade de estabelecermos, ou não, laços de afinidades acerca da temática. Nesse aspecto, a discussão foi se delineado de forma que todos/as pudessem se colocar em frente à temática para que, a partir de então, delineássemos, coletivamente, um eixo norteador dos encontros seguintes. 40 Nesse sentido, após me apresentar, tentei explicitar minha concepção acerca de como se constitui o papel da academia nos processos de formação de professores, não me limitando a apresentar um receituário, mas buscando contribuir para uma autoformação em serviço, numa perspectiva reflexiva e crítica na e sobre a ação (SCHÖN, apud JESUS, 2002). Assim sendo, o grupo definiu que discutiríamos num segundo momento, acerca da síndrome de Down e do autismo e os processos de inclusão/exclusão que perpassam as paisagens escolares. O segundo e último encontro desse ano ocorreu um mês após o primeiro encontro no qual pude conversar um pouco com o grupo de professores sobre o que se constituía a síndrome de Down e as possibilidades pedagógicas de inclusão para essas crianças. Nesse momento, foi possível perceber o quanto a inclusão se apresentava para algumas professoras como um desafio intransponível, seja por falta de conhecimento específico emergindo em falas do tipo “[...] Essas crianças aprendem mesmo?”, seja pela dificuldade de algumas em lidar com a diversidade social, como quando uma professora se referiu à presença de uma criança caracterizada como autista em sua sala: “Não sou contra, mas, não sei lidar com estas crianças, pois sou muito afetuosa e por mais afeto que expressava para meu aluno ele não me respondia!”. A meu ver, essas falas remetiam a duas situações: se, por um lado, elas me chocavam em seu conteúdo, eu também sentia que o grupo estava depositando em mim uma confiança tal, que lhe permitia se abrir sem nenhum tipo de autocensura, fato de suma importância, ao se pensar sobre a construção coletiva de uma proposta instituinte de inclusão. Em paralelo a esses encontros, fui convidada pela professora de Priscila a ir à sua turma para realizar algumas atividades motoras de caráter lúdico, tendo como foco deste estudo a aproximação da família com a escola. Confesso que não sabia se ali estava como mãe ou como pesquisadora, talvez pelas duas condições. Na verdade, o que percebi, naquela situação, era como se a professora estivesse me “colocando em xeque” afinal, se estava ali para falar sobre essa questão, era preciso de fato 41 apresentar condições que legitimassem tal lugar, então, nada melhor que vivenciar uma situação real de práxis nesse contexto. Inicialmente, fiquei insegura em frente ao desafio, todavia “mergulhei de cabeça” nesse mar desconhecido e confesso que não esperava que tudo desse tão certo. O meu encontro com Priscila foi tão significativo que até a professora ficou surpresa. O que fiz? Nada de especial, apenas a acolhi, deixando-a me conhecer em sua curiosidade, de forma que Priscila me cheirou, me lambeu, sentou em meu colo, correu de mim. Enfim, tentei mostrar a ela que a considerava como um sujeito daquele grupo, cuja curiosidade acerca de mim era um fato e, a meu ver, isso fez a diferença. A partir daquele momento, percebi que havia estabelecido uma relação de confiança entre mim e a professora de Priscila. Isso era fundamental neste estudo, pois não gostaria que ela me aceitasse de forma pacífica, mas que realmente desejasse a minha presença ao seu lado. Entretanto, por motivos diversos tais como; as delimitações prévias de uma agenda de formação continuada em contexto, cujas datas de encontros não batiam com minha disponibilidade de tempo, não foi possível, naquele ano, dar prosseguimento aos encontros com o grupo e nem ao trabalho específico com a professora de Priscila, limitando-me a conversar sobre ela nos momentos informais, quando ia à escola na condição de mãe. O estudo só foi retomado no ano seguinte, mas com outro formato, pois Priscila havia mudado de turno e, em virtude do meu trabalho pessoal, não poderia acompanhá-la nessa nova turma. No entanto havia surgido um fato novo significativamente relevante para a continuidade da pesquisa, que foi a presença, em duas turmas distintas, de crianças com cinco anos de idade, aproximadamente, ali caracterizadas como autistas, sendo que, uma das professoras dessas crianças, era Joana a professora de Priscila no ano anterior. 42 Assim nos organizamos, inicialmente, de forma que eu, Kely, as professoras envolvidas e suas respectivas estagiárias encontrássemos, coletivamente, um dia por semana para realizarmos uma formação continuada em contexto, pela via de leituras, discussões e planejamentos acerca dos contextos vividos, bem como acompanhava, individualmente, cada criança uma vez na semana, em suas respectivas salas de aula, a fim de produzirmos, coletivamente, um corpus de conhecimento que contribuísse para a inclusão social das crianças envolvidas, com vistas a potencializar aquele grupo no que tange aos processos de inclusão socioeducacional de pessoas com nee. A partir desses movimentos, estruturamos, coletivamente, algumas demandas no/com o grupo, cujo delineamento será explicitado a seguir. Essas inquietações produziram-se em virtude de acreditarmos que, apesar dos avanços legais alcançados, no que se refere ao processo de inclusão socioeducacional dessas pessoas, tal perspectiva não acontece de fato. Os motivos que me levaram a tal afirmativa referem-se primordialmente ao entendimento de que a presença desses alunos nas paisagens escolares promove movimentos múltiplos e contraditórios nas pessoas que as vêem como estrangeiras nesse contexto. Já nos diz Caetano Veloso (BUSCA LETRAS, acesso em 3 fev. 2008): “[...] Narciso acha feio o que não é espelho”. 1.3 INTENÇÕES DESSE MERGULHO Para efetuar, inicialmente, este mergulho, guiei-me em correntes cujas marés se movimentaram em vários sentidos, de acordo com os fluxos que iam, cotidianamente, atravessando a paisagem num dado instante. Logo, as rotas abaixo delineadas não se apresentavam em ordem hierarquicamente organizada, muito menos numa lógica organizacional, em seqüência, em que uma rota se completa na outra. Elas se apresentavam simplesmente como estratégias de bordo aprioristicamente delimitadas, como movimentos disparadores de vários outros mergulhos, que foram ora seguidos, ora modificados com base nos movimentos engendrados na/com paisagem investigada. 43 Assim sendo, foi intenção deste estudo contextualizar e analisar as relações que permearam a paisagem investigada, cartografando seus possíveis engendramentos com os processos inclusivos de ensino que ali se agenciavam. Busquei, também, entender os processos de subjetivação ali instituídos, tendo como premissa: o lugar ocupado pela educação/educação inclusiva em suas respectivas concepções de mundo. Outro fluxo por mim seguido, e tão significativo quanto os anteriores, referiu-se ao fato de possibilitar um retorno mais efetivo em relação ao objeto de estudo, no sentido de potencializar dispositivos pedagógicos inclusivos, considerando os processos de subjetivação que ali se forjaram. O motivo para tal expectativa fundamentou-se em minha experiência na docência em Estágio Supervisionado que me possibilitou perceber o quanto a escola se encontra incomodada com alguns pesquisadores que utilizam seus saberes/fazeres como uma via de mão única, sem assumir de fato a responsabilidade social e a postura ética que pressupõe uma pesquisa, principalmente no âmbito educacional. Como diria Brandão (2002, p. 112 grifo nosso): Parece-me inquestionável que, pelo menos por duas vias, a academia desempenha (ou deveria desempenhar) o seu papel na construção da escola pública: pela formação de quadros profissionais para a escola e pela produção de conhecimentos sobre a escola, a educação (socialização) e os fatores que interagem com elas. Assim, apesar de não ter sido intenção limitar este mergulho, até porque estaria caindo numa contradição teórica de que não há debate acerca da complexidade, capaz de sustentar tal defesa, não gostaria de perder de vista o fato de que, como pesquisadora, é preciso assumir a responsabilidade em relação ao contexto investigado. Ou seja, a contrapartida do pesquisador, nesse momento, como diria Barbier (2002, p. 19), significa organizar-se no sentido de uma ação autônoma de múltiplas funções, uma ação não só pedagógica, não só política, mas também existencial, ao encontro de um cidadão “[...] preocupado em organizar a existência coletiva”. 44 Outro movimento ocorreu no sentido de fomentar a formação continuada em contexto, com vistas a pensarmos coletivamente possibilidades pedagógicas inclusivas considerando os sujeitos envolvidos na/pela pesquisa. No intuito de potencializar as produções ali instituídas, estimulei, também, a elaboração coletiva de um relato de experiência que discorreu sobre os avanços e desafios que atravessaram as práticas pedagógicas inclusivas ali experenciadas, cujo texto, em sua íntegra, se encontra no anexo A. Concordo com Lapassade (2005), quando afirma que o fazer coletivo é um interessante caminho para a valorização dialética de uma ação informada e implicada por sujeito e pesquisadores. 1.4 DISPOSITIVOS INICIAIS A opção pela cartografia, neste estudo, se deu numa busca incessante por conhecer os processos que se engendram na/pela paisagem investigada como inclusivos, a fim de captar as múltiplas “[...] formas de viver que ali se forjam” (BAPTISTA, 2005, p. 35), com vistas a aprender sobre a coexistência de processos que alteram incessantemente o curso das práticas educacionais, no sentido da potencialização de seus habitantes, em prol de pressupostos de liberdade cuja estética da existência preconize a diversidade humana. Como afirma Kastrup (2007, p.15), De saída, a idéia de desenvolver o método cartográfico para a utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc. Todavia, sua construção caso a caso não impede que se procure estabelecer algumas pistas que têm em vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experiência do cartógrafo. Para tanto, optei por um percurso analítico cuja dinamicidade alerta para os riscos que uma aproximação previamente delimitada pode oferecer, na medida em que o fluxo e a circularidade das produções de vida nos tornam construtos/construtores de uma trama originada em zonas fronteiriças, cujos entrelaçamentos são tecidos por fios tanto de rupturas quanto de estabilidades (BAPTISTA, 2005). 45 Em face da complexidade que permeou esta paisagem, busquei captar os micromacromovimentos pelos quais os sujeitos estabelecidos na/pela pesquisa interagiram socialmente, seus acidentes e mutações, considerando as múltiplas lógicas recursivas e imprevisíveis de produção de desejos, visíveis e/ou invisíveis. Processos estes, cujos agenciamentos dos corpos e os movimentos de intensidade produziram múltiplas criações de sentido num devir constante. Para tanto, tentei evitar a ocorrência de colisões e/ou um aumento exagerado nas marés, que me impedissem de transitar entrelugares que habitavam essa paisagem, sempre no sentido do acompanhamento e da valorização de suas mutações, pois: A cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estético – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação das paisagens. Paisagens psicossociais [...] acompanham e se fazem ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele espera-se basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias (ROLNIK, 1987, p. 15-16). Assim, pautei minha atenção no movimento colaborativo cuja premissa constante de aprendizado concentrado e aberto buscou rastrear em cada história que ali emergia a sua contramemória, tendo como eixo desses processos o conhecimento sobre as múltiplas e polifônicas produções que ali se instituíam, seus efeitos nos processos de subjetivação engendrados, os equipamentos produzidos como inclusivos no/pelo contexto e também o porquê dessa eleição. Enfim, privilegiei, neste rastreio, tudo que me foi possível para pousar de forma atenta às possibilidades de disparar dispositivos que engendrassem outrasnovas práticas ao encontro de uma nova estética que favorecesse os processos inclusivos que ali pulsavam. Todavia, retomava sempre Kastrup (2007, p.18), ao alertar para a imprevisibilidade que pressupõem esses processos: Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido, ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem de onde. [...] o importante é a localização de pistas, de signos de processualidades. Rastrear é também acompanhar mudanças de posição, 46 de velocidade, de aceleração e de ritmo [...]. Trata-se aí de uma atitude de concentração pelo problema e no problema. Para tanto, lancei mão, inicialmente, da produção de um diário de bordo que me favoreceu visualizar outros espaçoslugares do relevo, olhando-os incessantemente e de forma sensível, para capturar o que não conhecia, mas que já se encontrava ali, ou seja, as mudanças que forjam o seu “fazer-se cotidiano”, de maneira que os envolvidos nesse processo pudessem constantemente "[...] construir sua própria trajetória, sempre experimental, sempre aventureira" (BAREMBLITT, 1998, p. 59). Assim, meu empenho principal residiu, então, na captação da expressão, concebida aqui como linguagem que faz irromper as tensões e os conflitos presentes nas paisagens escolares, num desafio permanente de criação/recriação de sentidos imbricados em pressupostos éticos, estéticos e políticos, cujas pistas vislumbradas me impulsionassem para novos oceanos, onde os imperativos de liberdade, de justiça e de paz fossem uma premissa. Apoiei-me também nas observações, com vistas a captar os significados dos acontecimentos que insinuam as vidas dos que ali habitam em relação, principalmente, aos processos hegemônicos de sujeição constantemente forjados em movimentos em que as relações de saber/poder se fazem presentes, privilegiando, em minhas lentes, todas as possibilidades de movimentos que atravessaram os processos instituintes/instituídos como inclusivos, seja no contexto real dos ambientes educacionais, seja em situações informais nas quais as condições de não-vigilância me permitiram compreender melhor acerca dos saberes/fazeres possíveis/impossíveis. Outro equipamento por mim utilizado foi a entrevista semi-estruturada, apesar de reconhecer a complexidade desse instrumento, na medida em que entrevistadores e entrevistados se encontram numa intrincada “arena de significados”, cujos elementos discursivos são forjados com base no contexto, na situação e na escuta que caracterizam o momento da entrevista (SILVEIRA, 2002). Vislumbrei, também, respeitar o tempo individual/coletivo dos envolvidos para a aproximação cartográfica nos processos de toque e de pouso, já que, “O toque pode 47 levar tempo para acontecer e pode ter diferentes graus de intensidades. [...] possui múltiplas entradas e não segue um caminho unidirecional para chegar a um fim determinado” (KASTRUP, 2007, p.19). Assim sendo, tentei, num movimento constante e sensível de aproximação, ampliação e, também, distanciamento de um zoom, entrevistar todas as pessoas envolvidas neste estudo, em especial as responsáveis pelos alunos foco, bem como as professoras das turmas investigadas, no sentido de aprofundar conhecimentos acerca da relação entre a história delas e seu envolvimento com os múltiplos processos de construção subjetiva desses alunos. Nesse sentido, estava atenta para à escuta sobre mim e sobre os outros, num processo contínuo de análise, considerando a complexidade das relações sociais e tomando a vida dos atores que habitam as paisagens como uma premissa. Como diria Morin (apud BARBIER, 2002, p. 89), ao contextualizar a complexidade que permeia o ser/estar pesquisador coletivo: Ser sujeito é ser autônomo, ao mesmo tempo que depende. É ser alguém provisório, vacilante, inseguro, é ser quase tudo para si e quase nada para o universo. Desse modo a noção de autonomia emerge do bojo mesmo de um estado de dependência. A complexidade aceita a incerteza, o imprevisível, o não-saber e a contradição. Ela reconhece a solidariedade de tudo que está ligado. Dessa forma, é primordial que o pesquisador reconheça sua implicação “implexa” (JEAN-LUIS LE GRAND, apud BARBIER, 2002), isto é, se reconheça presente com todo o seu ser emocional, sensitivo, axiológico, promovendo a tríplice escuta-ação (científica, filosófica e mitopoética), [...] nada se pode conhecer do que nos interessa (o mundo afetivo) sem que sejamos parte integrante, ‘actantes’ na pesquisa, sem que estejamos verdadeiramente envolvidos pessoalmente pela experiência, na integralidade de nossa vida emocional, sensorial, imaginativa, racional (BARBIER, 2002, p. 70). Outra estratégia elencada, e bastante complexa de se engendrar no/pelo/com o contexto, foi estimular a formação continuada em contexto, no sentido das demandas teórico-metodológicas emersa no/pelo/com o grupo de professoras, em relação ao debate acerca da inclusão socioeducacional de alunos caracterizados como pessoas com nee/autismo, com vistas a oferecer subsídios teórico-conceituais 48 que possibilitem instituir coletivamente propostas pedagógicas de caráter inclusivo atreladas a pressupostos éticos, estéticos e políticos. A meu ver, esse movimento, mais do que propiciar um melhor entendimento acerca de algumas questões conceituais que se entrelaçam nos processos que ali se instituíam sobre a inclusão de crianças ditas autistas, permite-nos, principalmente, uma maior aproximação com as protagonistas envolvidas, pois, ao possibilitar uma reflexão colaborativa em relação aos desafios cotidianos que lhes impõem os processos educativos inclusivos, elas se sentiam mais confiantes para compreender a perspectiva da diversidade humana numa sociedade plural, em que a análise coletiva de sujeitos aprendentes é uma premissa para a instituição de novos saberes (JESUS, 2006). Para além dessas questões, essa estratégia facilitou também outras movimentações, na medida em que me possibilitou, ao longo do trabalho, um melhor conhecimento acerca dos sujeitos singulares/coletivos, principalmente a mim como pesquisadora, dadas as condições reais de me fazer conhecer ao grupo, em especial no que tange ao nosso entendimento sobre o complexo e desafiador processo de inclusão socioeducacional. Nesse aspecto, gostaria de problematizar o quanto me é desafiador ser/estar pesquisador colaborativo numa sociedade permeada por valores hegemônicos ditatoriais, pois, apesar de já ter apontado o fato de as escolas já não suportarem mais tanta invasão de pesquisadores/as apontando do alto de sua arrogância o certo/errado em relação às práticas educacionais, percebi que essa perspectiva despertou, inicialmente, nos envolvidos com este estudo, uma incerteza em relação à minha presença, em virtude de eu visar à potencialização das ações inclusivas pela via do coletivo, em detrimento de ações individualmente diretivas. Para finalizar, tentei buscar todos os equipamentos possíveis ao meu alcance, a fim de obter pistas que me levassem a compreender como se engendravam, naquela paisagem, as práticas educativas instituintes/instituídas como inclusivas, porquanto minha pretensão foi de produzir dados que possibilitassem uma atualização singular/coletiva acerca das múltiplas e polifônicas formas de pensar a diversidade 49 humana e sua relação com os movimentos engendrados no espaço escolar onde o espírito da sensibilidade e da criação se fazem presentes (ARDOÍNO, apud BARBIER, 2002). A seguir, apresentarei alguns recortes do que me foi possível captar acerca do cotidiano da/na/com/sobre a paisagem investigada, no que tange à constituição da subjetividade humana: seus encontros e desencontros com/na paisagem investigada, as práticas pedagógicas que brilham no chão das escolas, capturando fissuras potencializadoras dos processos de inclusão socioeducacional de duas crianças autistas e, também, como as políticas inclusivas instituídas forjaram fluxos instituintes. Em cada um desses recortes, tive como premissa captar os fluxos, as histórias, as contra-histórias, os meus erros/acertos, enfim, apresentarei o que me foi possível produzir no momento do mergulho, apesar de reconhecer os limites atravessadores à minha condição humana, contraditoriamente opressora, faltosa, ou seja, complexa. Afinal, nesses caminhos em que me aventurei, tenho a clareza de que se trata apenas de movimentos de tentativas de vida, cujos fluxos podem me levar a diversos espaços de interseção em que só temos como certeza a incerteza que nos guia. Sendo assim, Ando devagar porque já tive pressa E levo esse sorriso porque já chorei demais Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe Só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei.... [...] Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e tocando em frente Como um velho boiadeiro levando a boiada eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou, estrada eu sou Todo mundo ama a um dia, todo mundo chora Um dia a gente chega, no outro vai embora Cada um de nós compõe a sua história Cada ser em si carrega o dom de ser capaz De ser feliz (SATER; TEIXEIRA, 2001) 50 2 AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS QUE BRILHAM NO CHÃO DAS ESCOLAS INSTITUINDO PISTAS POTENCIALIZADORAS DA INCLUSÃO (LEONARDO DA VINCI, 1503-1507) [...] é necessário partir da ‘escola que somos’, com suas memórias de resistências, com as narrações dos saberes e fazeres dos seus trabalhadores e estudantes, para fabricar cotidianamente processos de significação que lhes facultem a legitimação de espaços sociais (LINHARES; HECKERT, 2005, p. 7) 51 Como forma de melhor situar este estudo, trarei, a seguir, o cotidiano da paisagem investigada, tendo como foco o contexto organizacional, no que tange ao entendimento produzido no/com grupo acerca da educação/educação inclusiva, problematizando as ações inclusivas experenciadas (PINEL, 2000), com destaque para os movimentos potencializadores, ou não, desses processos. Busco, também, discutir as práticas pedagógicas presentes em sala de aula, bem como algumas ações das principais protagonistas deste estudo, isto é, das professoras, das estagiárias e da pedagoga, considerando, primordialmente, seus fazeressaberes no que se refere à inclusão dos alunos foco. Faz-se necessário reafirmar que este movimento vislumbrou a captura de todas as formas de expressão inclusiva que ali eram possíveis de serem instituídas, sem perder de vista o fato de que este olhar é, reconhecidamente, singular, cujo contexto plural aponta diversas outras possibilidades de devir. Para ilustrar tal contexto, apoiei-me na tela Monalisa pintada por Da Vinci (1503-1507), cuja expressão da modelo permite a todos que a apreciam múltiplas interpretações, considerando as diferentes percepções de quem a contempla. 2.1 OS ESTUDOS DO/COM/SOBRE O COTIDIANO NOS AJUDANDO A DIALOGAR COM OS MOVIMENTOS PEDAGÓGICOS CAPTURADOS Para sustentar tais considerações, tomarei como base os estudos nos/dos/com os cotidianos, tendo como foco o debate acerca das múltiplas e polifônicas formas de se tecer conhecimento, considerando as complexas e contraditórias dinâmicas que são produzidas nos/pelos/com cotidianos (CERTEAU,1994) escolares, aqui concebidas como espaços privilegiadores de produção de conhecimento, “[...] a partir do rompimento de fronteiras disciplinares e da criação de redes de relações, de comunicação, de conhecimento e de significações” (ALVES; GARCIA, 2008, p.13). Nesse movimento, gostaria de iniciar esta reflexão, chamando a atenção para uma fala de Ferraço (2007), quando nos alerta para entender que os conflitos que pulsam 52 na/da escola emergem de uma crise socialmente paradigmática, cujos valores, éticos, políticos, institucionais, econômicos, entre outros, que ali se instituem, não dão conta dos movimentos da sociedade vigente. Outro ponto em que também concordo com Ferraço (2007) refere-se à possibilidade das produções acadêmico-científicas, ao suscitarem tais reflexões, privilegiarem a escuta dos protagonistas dessas cenas para que, a partir de então, junto com eles, se instituam outranova forma de gestão educacional cotidiana, estabelecendo pontes entre o conhecimento sistematizado e a realidade de cada paisagem. Nesse aspecto, vislumbro, numa expressão tecida por Linhares e Heckert (2005), denominada experiência instituinte, um interessante caminho a percorrer, visto que essa expressão representa uma ação política historicamente produzida, no sentido de uma outra educação e cultura, de forma a considerar a pluralidade ético-política que permeia nossa sociedade, em seus aspectos educacionais, escolares, políticos, econômicos, sociais e culturais. Acredito que essas experiências podem ajudar a ressignificar algumas paisagens escolares em prol de uma perspectiva educacional atrelada a pressupostos que se pretendam inclusivos, pelo compromisso que elas assumem no sentido de se constituírem em pontes representadas por tendências de interligação entre a universidade, a escola básica e os movimentos político-sociais, ético-estéticos e teóricos e também fortalecendo os protagonismos docentes. No entanto, Linhares e Heckert (2005) nos recomendam não colocar essas experiências em redomas, separando-as do que já se encontra instituído, visto que elas se movimentam num constante devir, ora em litígios, ora incorporadas ao que se está processando no contexto. Por sua vez, as experiências instituintes estão sempre em ‘devir’, pisando em um terreno movediço, sem certezas e comprovações da história, mas infiltrando-se nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e, assim, afirmar a outridade. Afinal, não podemos esquecer que, a despeito de profetas agourentos, a escola pode ser outra, como outra pode ser a sociedade, e as próprias políticas e racionalidades que nos organizam (LINHARES; HECKERT, 2005, p. 4). 53 Assim, diante da realidade complexa que habita as paisagens escolares, é preciso dar visibilidade às múltiplas práticas educacionais que ali se instituem, a fim de produzirmos coletivamente movimentos que fortaleçam ações de investimento na liberdade e na criação, com vistas a superar algumas perspectivas negativistas que, em detrimento das modificações ocorridas em nossa sociedade, ao longo dos tempos, vêm sofrendo mudanças muitas vezes direcionadas a uma cultura de guerra cujo estilo bélico e perverso nos pulveriza cada vez mais, já que, O medo, a desagregação, a violência, a exacerbação de particularismos, a fragmentação dos saberes, os avanços tecnológicos sob o comando de um capitalismo tardio e as agregações ao meio ambiente vêm – em ritmo acelerado – modificando a paisagem vital (LINHARES, 2002a, p. 103). No entanto, isso se torna desafiador quando, de forma leviana e equivocada, deslocamos os focos de discussão à procura de um “culpado” para o que está posto à realidade escolar, sem que se promova uma análise mais rigorosa acerca do contexto micromacropolítico que perpassa essas discussões. Em geral, encontramos sempre, na figura do professor, o artista ideal para exercer esse papel, ou seja, para ser o vilão dessas histórias, principalmente quando nos deparamos com profissionais massacrados por um capitalismo instalado, que sabota o nosso direito de sonhar profissionalidade com mais dignidade em detrimento de jornadas de trabalhos excessivas, apesar de seus vencimentos nem sempre serem suficientes para sobreviverem, quanto mais para se tornarem um professor/reflexivo de sua própria prática. Como nos diria Bueno (2006, informação verbal): “Como podemos cobrar de alguém que trabalha muitas vezes os três turnos que sejam reflexivos de sua própria prática! Em que horário? Ora bolas, o que eles desejam é poder dormir em paz!”. Para Linhares e Garcia (2001), é possível que este olhar culpabilizador, que atravessou/a as práticas educativas vigentes, tenha contribuído para transformar os contextos escolares, em paisagens que (re)afirmam o exercício do controle e da punição exacerbando personalidades autoritárias e controladoras, responsáveis pelo desânimo que acomete os protagonistas que habitam essas paisagens. Assim, ao pretendermos captar movimentos pedagógicos inclusivos num contexto escolar, precisamos, primordialmente, dialogar não só com os diversos campos 54 teórico-epistemológicos que nos ajudam a compreender este movimento em constante ebulição, mas, também e principalmente, com aqueles que atuam no/em contexto. Só assim, poderemos, realmente, conhecer de onde partem os seus saberesfazeres, suas reais condições de prática situada, suas referências e concepções acerca de suas produções. Devemos ter sempre em mente o fato de que a escola é um espaço constituído para produzir, junto com os seus habitantes, a sistematização das múltiplas formas culturais de saber, considerando o fato de que esse espaço é apenas um no qual a cultura letrada está inserida, mas não é o único existente, apesar da sua indiscutível relevância. Os estudos de Vilar (2003) vão ao encontro dessa perspectiva, quando, ao investigar os saberes subjacentes ao saberfazerdizer de professores da rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte, coloca em cena a necessidade de pesquisa da/sobre a prática como instância produtora de saberes tanto no cotidiano quanto na programação da formação docente. Outro estudo realizado nesse sentido foi o de Costa (2004) que, ao desenvolver sua dissertação pela via da pesquisa do cotidiano escolar, buscou discutir os caminhos por ela percorridos em sua prática pedagógica com os alunos classificados pela escola como “incapazes”. Suas considerações finais apontam que, ao assumir uma postura investigativa, ela, pesquisadora/educadora, teve maiores condições de ajudar seus alunos a acreditar em si mesmos, bem como de contribuir para que a escola olhasse para as possibilidades de aprendizagem dos que se encontram à margem dos processos pedagógicos, especialmente dos alunos das classes populares. Para tanto, reafirmo o pensamento de Linhares (2002a, p. 118), no sentido de que, A busca de alternativas para a educação e, mais particularmente, para as instituições de ensino e de formação de professores nos levou a compreender o quanto dependemos de nossa capacidade de interlocução com os mais variados campos de conhecimentos para projetar os processos de aprendizagem e ensino escolar [...]. 55 Em meu entender, a partir desses movimentos, poderemos iniciar uma outranova lógica de vida, em que o respeito e o reconhecimento à diversidade humana nos sejam uma premissa, apesar de reconhecer os desafios que essa perspectiva nos impõe, no que diz respeito a “[...] nos aproximar não só uns dos outros, mas nos apropriarmos das múltiplas conexões com a vida, decifrando-as sem perder o sentido da solidariedade” (LINHARES, 1999, p. 11). Na tentativa de estabelecer pontes entre as contribuições teórico/epistemológicas sistematizadas neste estudo e os movimentos captados acerca dos processos pedagógicos inclusivos, apresentarei, a seguir, alguns dos principais protagonistas deste estudo, dando visibilidade a seus fazeressaberes no contexto da sala de aula. Na continuidade, destacarei o processo de construção coletivo de um relato de experiência por compreender tal movimento com uma iniciativa instituinte que favoreceu os processos de inclusão socioeducacional ali instituídos. 2.1.1 Ampliando o zoom: a percepção produzida acerca dos movimentos inclusivos capturados Para iniciar tais reflexões, remeto-me a Oliveira (2007), ao dissertar sobre as armadilhas que nos impõe a tentação de utilizarmos os dados produzidos na/pela pesquisa como verdades absolutas nos moldes hegemônicos presentes na Modernidade. Segundo a autora, existe, no cotidiano das escolas, para além das práticas cristalizantes já tão evidenciadas, saberesfazeres e emoções que não apenas reproduzem movimentos, mas também os ressignificam, na medida em que são operados cotidianamente e, nesse sentido, é preciso muito cuidado ao realizar tais recortes. Corroborando essa questão, Ferraço (2007) nos provoca a refletir sobre os desafios presentes nas diversas tentativas da organização dos dados produzidos na/pela/com o cotidiano, na medida em que esse movimento sempre estará atrelado à possibilidade de engessamento de um movimento que é contínuo, ao nos questionar: Qual a legitimidade no uso de estruturas para falar de algo que é efêmero, incontrolável, caótico e imprevisível? Qual o sentido em extrair conceitos, 56 atribuir classificações, estabelecer relações hierárquicas, propor estruturas conceituais ao permanente devir cotidiano? (FERRAÇO, 2007, p. 77). Na tentativa de adequar nossas análises às metodologias academicamente legitimadas, pagamos um preço alto que, freqüentemente, repercute negativamente em nossas produções acadêmico-científicas. Em frente a essa realidade, Ferraço (2007, p.77), nos instiga a privilegiar “[...] pensar o cotidiano como redes de fazeressaberes tecidas pelos sujeitos cotidianos”, cuja delimitação de sujeito, ou melhor, protagonista desse enredo, envolve a todos que, de uma forma e/ou de outra, teceram nós, promovendo movimento nesse cotidiano. Outra possibilidade que o autor nos aponta se remete ao fato de que, ao se delimitar e narrar alguns trechos por nós capturados nas/pela investigação, estamos muitas vezes, em busca de nós mesmos, seja na condição de alunos, seja na de professores que somosfomos, isto é, retornamos a lugares que nunca abandonamos, numa tentativa de nos analisar, seja numa perspectiva Freudlacanaina, seja também na perspectiva foucaultiana de narrar sobre si, sempre a partir de nossa interação com o outro. Logo, precisamos estar vigilantes para tais questões, visto que, possivelmente, pela nossa condição humana de sujeito faltoso, em algum momento das reflexões apresentadas a seguir, poderemos sucumbir a essa tentação que não só interfere, mas também prejudica nossa compreensão acerca dos movimentos que lá emergiram. Para tanto, devemos ter, como premissa, o trabalho coletivo, reconhecendo, nos possíveis modos de perceber o mundo, suas convicções, fazeres saberes e “sentires” diversos daqueles que formam, a cada momento, as redes de subjetividades em que somos produto/produtor cotidianamente. O que evidenciarei a seguir serão apenas, [...] possíveis olhares/escutas/leituras/sentimentos a respeito da vida cotidiana das escolas pesquisadas, na busca por viabilizar, por meio do estímulo imagético, a emergência de realidades vivenciadas, ainda não narradas, de uma percepção e interpretação melhor da complexidade desses cotidianos e das possibilidades de nele encontrar algumas das tantas existências tornadas invisíveis pelo ‘olhar’ universalizante e generalizante da modernidade (OLIVEIRA, 2007, p. 61). 57 Direcionando o foco para o contexto das protagonistas que ali habitavam, reafirmo o fato de que as ações humanas nem sempre se movimentam numa perspectiva linear e progressiva. Ao encontro dessa fala, resgato Morin (1995), quando afirma que essas ações apresentam diversas interfaces, móveis, contraditórias, autobiográficas (todo conhecimento é autoconhecimento) e autopoiéticas (autoorganização contínua e não linear), cujas rupturas, continuidade/descontinuidade e dinamicidade atravessam os processos inclusivos que se instituem num constante devir. [...] todos os indivíduos, apresentem eles alguma deficiência ou não, expõem emoções e pensamentos que interagem com outras emoções e outros pensamentos, quando inseridos num grupo social. Conseqüentemente, esse grupo social (seja ele familiar, seja comunitário, seja qualquer outro) também se emociona, também pensa de forma singular e coletiva, construindo assim as suas redes sociais (SILVA, 2003, p. 50). Nesse sentido, ao organizar os dados produzidos na/pela pesquisa, optei por trazer, primeiramente, alguns dos principais protagonistas deste mergulho, com suas respectivas realizaçõespensamentosfalas situadas em contextos humanamente complexos e encarnados (NAJMANOVICH, 2001), a fim de compreendermos melhor de que ponto essas teias tecem seus nós. Na continuidade, problematizarei algumas práticas cotidianas e suas implicações para os movimentos instituintes que ali pulsavam. Gostaria de destacar que os elementos narrados foram constituídos não só pela percepção desta pesquisadora, a partir dos diários de bordo, mas também por algumas imagens14 captadas ao longo deste mergulho e, ainda, por uma narrativa pessoal elaborada pelas envolvidas neste estudo, quando lhes solicitei que fizessem um breve relato sobre o que acreditavam ser significativo dizer acerca de si, tendo como eixo norteador o processo de inclusão educacional de crianças com nee. a) A sala de aula da professora Joana e seus movimentos inclusivos possiveis O primeiro contexto apresentado será a sala de aula da professora Joana, regente de sala da Turma B do Grupo 5. Esta, atuava naquele CMEI desde de sua inauguração e, com relação à Educação Infantil, acumulava 16 anos de experiência. 14 Todas as imagens apresentam Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) 58 Sua participação neste estudo se deu em virtude de ela ter como aluno regular Miguel, uma criança de cinco anos de idade, ali caracterizada como autista, cuja apresentação mais detalhada se dará mais adiante. Minha relação com Joana iniciou-se no ano anterior, quando ela, então professora de minha filha, trocava algumas palavras comigo, ao longo das reuniões de pais ocorridas nesse ano, acerca do desafio que lhe apresentava a inclusão da aluna Priscila. Confesso que, ao saber, pela pedagoga Kely, que ela havia solicitado minha colaboração como pesquisadora, não imaginava a dimensão da experiência vivida, pois, conforme já discutido, não existe um modelo preestabelecido de ser/estar pesquisador colaborativo. Logo, fui compreendendo, ao longo do mergulho, o quanto é desafiador pensar os processos educativos numa perspectiva autopoética, como diria Meirieu (2002, p. 32): Não digo que tudo isso tenha sido fácil. Não digo que não tenha enfrentado um pouco de dificuldade [...] nem que não tenha me sentido mortificado(a) muitas vezes, criticando-me por não ter sabido reagir [...]. Digo simplesmente que compreendi um pouco melhor nessas situações [...] o que ocorreu no ato educativo. Joana era efetiva nesse CMEI, atuando com turmas do Grupo 5, cuja idade oscilava em torno de quatro a seis anos, desde o início de seu funcionamento no ano de 2005. Ela sempre trabalhou com a Educação Infantil, com crianças em vias de alfabetização. Perguntada pela escolha do segmento, ela disse ter uma maior identificação com esta faixa etária. Percebia Joana como uma pessoa um pouco reservada em suas falasaçõespensamentos, ficando mais a observar e refletir sobre tudo que ocorria ao seu redor, do que a se expor. Ela jamais criticava o comportamento de alguém; se não podia elogiar, preferia o silêncio à crítica. Sua relação em sala de aula com as crianças era tranqüila, apesar de Joana confidenciar-me saudades da turma do ano anterior em virtude da forma comprometida com que os alunos lidavam com as questões do conhecimento. Em meu entender, o grande desafio de Joana, e até mesmo da professora Ana, que traremos a seguir, remete ao fato de que as crianças deste ano apresentam-se com um grau de agitação um pouco além do que estamos acostumadas, o que 59 realmente nos é desafiador, quando pensamos numa realidade de 25 crianças para uma professora, tendo o direito a uma estagiária, apenas, se tiver em sala alunos com nee. No que tange à presença do aluno Miguel em sala de aula, Joana apresentava-se, inicialmente, receosa acerca de como lidar com ele, deixando-o bem à vontade em sala de aula, isto é, não sistematizava uma proposta pedagógica que o envolvesse com/nas questões de sala de aula e, nesse sentido, Miguel ficava muito pelos cantinhos da sala repetindo sempre os mesmo jogos, todavia, com o passar do tempo, ressignificamos essa condição, apesar dos desafios iniciais. A seguir, narro um dos momentos iniciais em sala de aula, registrado no diário de campo, que acredito ter sido delimitador, no que se refere à minha inserção no/com o grupo, Chego à escola juntamente com Miguel por volta das 13h15min. Ao chegar em sala, encontro as crianças sentadas fazendo uma atividade de escrita. Dirijo-me à professora perguntando se ela precisa de ajuda em relação ao grupo e, ela me pede que auxilie os pequenos na atividade. Confesso que fiquei incomodada com o fato de, na entrevista do dia anterior, a professora ter confirmado minhas suposição de que: “[...] como as professoras não sabiam o que fazer com as crianças autistas, acaba por deixá-las soltas na escola”. Neste sentido o fato de Miguel chegar e ficar brincando livremente, sem nenhuma proposta, saindo e entrando em sala quando bem desejava, indo, inclusive, para o pátio a brincar, enquanto as crianças faziam atividade me incomodava! Neste sentido, procuro a professora e converso com ela sugerindo que deveríamos ir introduzindo, aos poucos, algumas rotinas à Miguel, a fim de que ele pudesse ir se integrando, de fato, à escola, bem como deveríamos ir introduzindo aos poucos a noção de referência e de autoridade na sala de aula em relação a ela e à sua estagiária Sandra. Joana diz concordar com isto, pois, para ela se todos se encontram fazendo atividades na mesa ele também deveria estar e, não solto no pátio. Desço ao pátio na tentativa de trazê-lo para sala de aula com base no diálogo, no que não obtemos (eu e Sandra/estagiária) sucesso. Assim, numa atitude meio kamicassi, tomo Miguel no colo, brinco com ele simulando um avião, apesar dele não se mostrar muito satisfeito. Entro em sala com Miguel esbravejando, gritando e, para culminar, se joga no chão. Sandra sai de perto; Joana não se aproxima e eu, também em dúvida acerca da minha atitude, tento terminar o que comecei. Eis que, após inúmeras tentativas de conversar com Miguiel que está aos prontos, falo com ela novamente da seguinte forma: 60 Eu − Miguel olha para mim, você quer descer? (puxo-o para meu colo e, ele se senta e para de chorar) Miguel − Quero! Eu − Então vamos combinar como fazer isto tudo bem? Miguel − Tudo bem! Digo a Miguel que, antes de sair de sala, deve pedir a Joana e Sandra e que, quando elas o chamassem para subir, ele deveria atendê-las. Miguel vai até Sandra, que escuta tudo de longe, pede para descer e ela desce com ele. Confesso que me senti aliviada com a situação, pois, se tudo desse errado, aí é que perderia de vez a confiança tanto da professora quanto da estagiária. Passado um tempo, eles sobem e a turma está realizando um desenho na folha. Miguel fica brincando pela sala quando resolvemos trazê-lo à mesa (FOTO 1). Ele resiste um pouco, mas resolve desenhar na folha. Como que por provocação e/ou investigação, começa a desenhar de forma incisiva, riscando toda a mesa. Para não pressionar muito a professora e a estagiária, fico a observar de longe Sandra dizer para ele não fazer aquilo, pois iria ter que limpar a mesa. O que não se configurou. Miguel termina o desenho e vai, como todas as crianças, brincar com os jogos. Chega a hora do pátio. Todos arrumam os brinquedos e vão lavar as mãos para lanchar, menos Miguel que, agora não quer descer, pois tem um caminhão-cegonha juntando carros batidos fora do CEMEI e ele quer ficar a ver tudo pela janela, fascinado. Toda a turma está no refeitório, menos Miguel que, quando desce, não lancha, indo direto para o pátio. Converso com Joana que, “na minha esquizofrenia”, já demonstra estar incomodada comigo. Digo a ela sobre a importância de se instituir uma relação de autoridade com Miguel, no que Joana concorda afirmando que também acredita que ele deveria ficar no momento do lanche no refeitório. Chega o momento do pátio para todos onde, num calor infernal de 36º, todos soltam suas energias ao longo de 40 minutos e, onde Miguel brinca só nos brinquedos, sem problemas. Sua única obsessão é tentar ficar no telhado da casinha, coisa que, para mim, é um lugar perigoso, mas que, naquela gritaria, até eu gostaria de subir. Ao final do pátio, todos sobem para as salas, com exceção de Miguel e de Felipe. Joana sobe, deixando-os para trás. Sandra consegue trazer Miguel, mas ele fica pouco tempo em sala. Desço para ajudá-la, trago-o novamente e, quando chegamos à sala, ele não aceita que Sandra calce seus sapatos. Ele tenta sair, eu o pego no colo, levando-o para a janela onde fica observando os carros no caminhão-cegonha. Brinco com ele batendo minhas mãos uma contra a outra dizendo que os carros baterão. De repente, Miguel bate suas mãos e diz: − Bateu imitando-me. Digo a ele que iremos passear no dia seguinte e mostro, pela janela, um ônibus que irá nos levar ao parque da Vale do Rio Doce, no que ele me diz: − Eu quero passear! Ficamos, então, na janela até sua irmã vir buscá-lo (22-2-2007). 61 Foto 1. Miguel em sala no inicio do ano Tentando dialogar com esses fatos acima, acredito que, somente agora, ao narrar essa experiência vivida com o grupo e, especialmente, a forma com interagi com Joana, eu tenha tido possibilidades para entender o contexto que atravessou esse encontro, bem como pude atentar para o que Kastrup (2007) nos alerta, ao afirmar que o toque do cartógrafo pode ocorrer em diferentes tempos e intensidade. Nesse sentido, apesar de não ter sido minha intenção, reconheço que esse movimento produzido no intuito de dizer a Joana o quanto era possível investir/apostar em Miguel e em todo o grupo talvez tenha suscitando sentimentos que dificultaram minha inserção naquele contexto. Uma outra questão foi que, somente no final deste estudo, me foi possível compreender que a inserção do cartógrafo pode se dar por diversas entradas e que, para isso, devemos compreender e reconhecer o quanto a psique humana institui simbolicamente marcas inconscientes responsáveis por pulsões incontroláveis em nossas ações (LECHTE, 2003) Para tanto, trago uma narrativa feita por Joana acerca de si mesma, como forma de contextualizar melhor a discussão acima: 62 Prezada Graça, Em atendimento à sua solicitação segue breve relato sobre Eu, minha vida e coisas mais!!! Minha infância foi muito gratificante, pois vivia no interior de Afonso Cláudio, onde nasci e morei por muitos anos, juntamente com minha família. A escola onde estudei, ficava entre árvores e perto de um riacho. Na hora do recreio, merendávamos embaixo das árvores e comíamos frutas. Que saudade! Para chegar à escola, eu e meus irmãos caminhávamos bastante, subíamos e descíamos morros, que pareciam retas pequenas. As crianças não se cansam, são sonhadoras naturais, tanto cá como lá. Éramos felizes! a No lugar em que morava somente havia ensino até a 4 série e quando terminei esta série fiquei um bom tempo sem estudar. Depois meus pais mudaram para cidadezinha mais próxima e, então, retomei os estudos. a Estava com 16 anos, quando iniciei a 5 série. Meu pai não permitia que eu estudasse à noite. Desta forma, precisei enfrentar uma turma de crianças de 10 e 11 anos. Que desafio! Minha cabeça era muito diferente das crianças de minha sala. Foi nesse período que senti o peso da exclusão. Logicamente, eu não conhecia a palavra para definir aquela situação, mas hoje eu sei que fui bastante excluída. Todos queriam saber minha idade... Curiosos! A vontade de desistir era constante, mas não desisti, por isso hoje estou aqui. Yés !!!!! Terminei o ensino fundamental e acabou a batalha, quando cheguei ao magistério, já não havia mais diferença de idade, já que em minha turma havia adultos e até uma amiga casada com filhos grandes. Depois veio a faculdade, pós-graduação e tudo ficou tão natural e distante que parece que não foi comigo que tudo isso aconteceu... Hoje percebo como vivemos numa sociedade que exclui o idoso, o gordo, o negro... Sem falar nos portadores de necessidades especiais que pelo menos são vistos como os que precisam ser incluídos. Porém, as políticas públicas os querem dentro da escola, mas a maioria das instituições não têm condições de lhes proporcionar atendimentos necessários, pois falta espaço adequado, pessoas que, realmente, se comprometam com o trabalho e formação. Enfim, falta ação coletiva, em que pelo menos haja compreensão e solidariedade. Neste pensamento, tenho feito de minha prática uma luta diária para vencer meus desafios enquanto professora de educação infantil num contexto de inclusão. A falta de capacitação específica tenho combatido com amor e dedicação incondicional. Sou educadora. Tenho um compromisso comigo mesma e com a sociedade. Poderia ser melhor, menos penoso se houvesse por parte dos poderes estabelecidos um pouco mais de atenção para todos os envolvidos neste grande desafio, que é a inclusão. Seria muito bom, se houvesse menos discurso e mais ações práticas! Professora Joana Na busca de lerouvir as falas de Joana, gostaria de evidenciar o fato de ela ter experimentado logo cedo a condição de inclusão/exclusão por não se enquadrar numa condição “hegemonicamente” determinada como correta para pertencer a um grupo (FOUCAULT, 1975). Em meu entender, talvez essa experiência tenha inserido 63 marcas inconscientes em Joana, tornando-a mais sensível ao debate que envolve a inclusão social e a diversidade humana. Nesse aspecto, Freud (1969) nos diria que nossas experiências de vida tatuam marcas em nossa estrutura psíquica que levamos muito tempo para entender e, quem sabe, ressignificar de forma potencializadora e não imobilizante. Ainda para o autor, os processos psíquicos são regulados diretamente pelo prazer, e os humanos, ao se verem diante de uma tensão desprazerosa que se acumula, na tentativa de diminuir a tensão e evitar o desprazer vivido, desencadeiam processos psíquicos cujo curso muitas vezes transita por territórios obscuros e inacessíveis à vida psíquica: [...] somos obrigados a admitir que existe na psique uma forte tendência ao princípio de prazer, mas que certas outras forças ou circunstâncias se opõem a essa tendência, de modo que o resultado final nem sempre poderá corresponder à tendência ao prazer (FREUD, 2006, p. 137). Tentando estabelecer uma relação com a forma de serestar de Joana, reconheço que, provavelmente, esses fatos por ela narrados possam ter contribuído para tornála uma pessoa mais reticente em relação ao diferente/estrangeiro. Entretanto, gostaria de evidenciar que, apesar deste comportamento apresentado inicialmente, isso não a impedia de assumir a sua responsabilidade didático-pedagógica naquela paisagem, apesar da forma singular com que construía o seu processo de formação e que confesso: mexeu com a minha arrogância acadêmico-científica. Nesse sentido, conforme já dito, nossa convivência inicial foi desafiadora, pois, apesar de nossa aproximação ter ocorrido anteriormente, percebia que, para Joana, a minha presença em sala de aula era um incômodo. Conseqüentemente, com o passar do tempo, também me sentia desconfortável quando ia à sua sala. A sensação que tinha em era como se Joana desejasse evidenciar a minha condição de estrangeiro (SKLIAR, 2002), isto é, uma visita que chegou, mas que não fazia parte daquele contexto. Sentia-me tão angustiada que, muitas vezes, relutei em ir à sala da professora Joana conforme os relatos que se seguem registrados no diário de campo: 64 Em relação à Joana, percebo-a bastante distante de mim. É como se tentasse, de forma educada, me ignorar. Na verdade, não sei se sou eu quem ela tenta ignorar ou se somos eu e Miguel, pois a vejo bastante distante dele, mantendo uma respeitosa distância, como se não suportasse lidar com o contexto desafiador que envolve a sua inclusão naquela turma (10-4-2007). Reconheço o fato de essa ser uma percepção singular produzida coletivamente, pois, provavelmente, a minha forma de ser/estar também possa ter contribuído para tal, afinal a minha subjetividade consciente/inconsciente ia ora ao encontro, ora de encontro a outra subjetividade consciente/inconsciente ali presente. Nesse contexto, gostaria de chamar a atenção para a possibilidade de refletirmos acerca das múltiplas formas existentes de ser/estar pesquisador nos contextos coletivos, já que, na medida em que saí de cena efetivamente, isto é, deixei de freqüentar sistematicamente a sala da professora Joana a partir da segunda metade do ano, a seu pedido, em reunião de avaliação semestral em que ela, alegando o fato de minha presença em sua sala de aula desencadear nas outras crianças tentativas de chamar a minha atenção e, conseqüentemente, agitar mais a turma, percebi que nossa relação fluiu melhor, isto é, Joana passou a não esboçar desconforto com a minha presença, bem como passamos a trocar idéias com mais colaboração. Confesso que ponderei, inicialmente, alegando que vir quinzenalmente à sala poderia celebrar a minha condição de ser “estrangeira” ao grupo, todavia compreendi que essa era uma forma sutil e delicada de Joana me dizer o quanto eu a incomodava agindo daquela forma e, a partir de tudo que já discutimos anteriormente, não poderíamos deixar de reconhecer. Assim, a partir do momento em que sutilmente percebi o quanto as pessoas são atravessadas por múltiplas e contraditórias identidades, por nós tecidas nas redes de nossas inter-relações sociais, num processo contínuo e complexo no qual nos encontramos “[...] imersas em, constituídas por e submetidas a essa malha e, a um só tempo, ativamente [...]” (FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004, p. 23), as coisas começaram a se desenvolver melhor e, por incrível que pareça, apesar de ter me distanciado fisicamente de Miguel, passei, efetivamente, a instituir, junto com Joana, ações inclusivas voltadas para ele e o grupo. 65 A seguir, narro alguns relatos que reafirmam como os movimentos foram tecendo nós de base inclusivas, conforme registro no diário de campo: Episódio 1. A busca pelas teias dos movimentos inclusivos Chego à sala por volta de 13h15min e encontro as crianças brincando numa roda com a professora de mímica de animais. Miguel chega junto comigo, no entanto não participa da brincadeira. Em uma outra mesa encontram-se duas crianças terminando de fazer uma atividade no papel. Dirijo-me à roda e tento interagir com o grupo também fazendo uma mímica. Miguel é trazido pela estagiária Sandra à roda, fica por uns três minutos observando, atravessa a roda e sai sem brincar com as crianças, apesar de Joana tentar trazê-lo ao jogo. Nesse momento, ela vira-se para mim de forma decepcionada e diz: “Puxa vida, pensei que Miguel ia gostar dessa brincadeira!”. Em seguida, as crianças que estavam fazendo atividades terminam e se voltam para o grupo. Miguel, então, senta-se à mesa das crianças e fica olhando as atividades realizadas. Aproximo-me de Sandra e sugiro que ela ofereça a mesma atividade para Miguel. Ela o faz, todavia ele não interage com a atividade e sim fica a fazer ponta nos lápis por muito tempo. Quando todos se cansam da mímica, Joana pede a Sandra para contar a história do trocatroca às crianças. Ao longo do tempo, percebo Miguel que se encontra em uma mesa a fazer pontas, atento à história contada por Sandra. Chamo a sua atenção para que ela se volte também para Miguel, o que ela passa, então, a fazer. Ao final, Joana pede a todos que façam um desenho sobre a história, mas Miguel não se propõe a desenhar. Nesse momento, Joana pega uma revista em quadrinhos e mostra a Miguel que passa a folheá-la com bastante atenção. Joana tenta fazê-lo retornar à mesa para interagir com a atividade, mas ele foge. Ao se dirigir livre pela sala, Miguel se depara com uma revista passatempo da Mônica, personagem com que ele muito se identifica nos gibis. Ele, então, começa o olhar a revista. Imediatamente sugiro a Sandra que ofereça lápis e borracha para ver se ele se interessa pelas atividades, o que acontece de fato. Miguel começa a pintar as atividades e, em seguida, busca apagá-las. Aproximo-me de Sandra e comento com ela que acredito que essa possa ser uma pista em relação a Miguel, e ela me diz que Joana havia comprado alguns passatempos a fim de pensar atividades para toda a turma (19-5-2007). A partir da fala de Joana em relação à Miguel, percebi que, apesar da forma resistente com que me tratava, havia ali reais reflexos de nossos encontros de planejamentos, em especial do ocorrido no dia anterior. Nesse dia, busquei discutir com o grupo o princípio fundamental que perpassa o paradigma da inclusão, isto é, o entendimento de que é a sociedade quem deve se adaptar às reais condições das crianças com nee e, não elas a nós/escola. Com isso, era preciso estar atentos às múltiplas outras formas de se pensar os processos educacionais bem como às pistas que estas crianças nos apontavam: 66 Episódio 2. Tecendo os nós que sustentam esta teia Hoje realizamos uma reunião para avaliarmos nosso processo de formação em contexto. Começamos, então, com Joana fazendo uma interessante auto-reflexão acerca de como deveria ser pensado o trabalho colaborativo acerca da inclusão de crianças com nee, tendo em vista o que vem sendo praticado naquele CMEI. Nesse sentido, ela aponta que todos deveriam se unir em prol destas crianças, mas que isto não ocorre ali. Digo a ela que é preciso pensar num processo mais coletivo, afinal hoje as crianças estão sob a responsabilidade primordial delas, mas amanhã seguirão por outros caminhos, para além disto, provavelmente todos receberão um dia uma criança com nee assim [...]. Digo as duas que elas têm uma responsabilidade no sentido de apontar para as colegas que isto é possível, afinal não estamos fazendo juntas (20-6-2007). Episódio 3. Fortalecendo os nós Confesso que cheguei para a reunião com Joana insegura em relação à forma como ela iria me receber, porém, para minha surpresa, Joana estava bem receptiva, o que me deixou menos armada em relação a ela. Comecei a reunião lendo o registro feito sobre a conversa com a mãe de Miguel para um melhor entendimento acerca de como as coisas se dão no contexto familiar dele. Nesse registro, esta mãe destaca, inicialmente o fato de que, pela primeira vez, ela percebe que seu filho é realmente acolhido naquele CMEI. Percebo que Joana fica orgulhosa de minha fala e isso me leva a refletir que talvez a sua resistência em relação à minha presença em sua sala de aula talvez seja pelo fato de que, como acredita não estar dando conta de incluir Miguel em sala, o fato de eu estar ali poderia evidenciar isto para ela [...] (24-6-2008). A nossa conversa foi bastante interessante, tanto para nos aproximar como também para reafirmar o que pretendia no/com o mergulho, isto é, contribuir para os processos inclusivos que ali se instituíam, entendendo, nesse movimento, a possibilidade de desejar, potencialmente, aquele aluno com nee, considerando os campos de relações nos quais ele se encontra inserido, como nos diria Oliveira (2007, p. 49): A compreensão de que as formas de ver o mundo são desenvolvidas a partir das experiências sociais, embora quase lugar-comum nos discursos hegemônicos sobre a construção das subjetividades e identidades individuais e coletivas, infelizmente não se tem feito acompanhar do devido aprofundamento quando se trata de buscar compreender em que condições concretas de possibilidades se inscrevem os diferentes fazeres docentes e discentes nos cotidianos das diferentes e incontáveis escolas dos diferentes sistemas de ensino. Em que pese o discurso que, cada vez mais, busca evidenciar a aceitação/tolerância da existência de uma diversidade de ‘olhares’ sobre o mundo, ou de leituras de mundo, as políticas de educação e particularmente as de currículo insistem em negligenciar este dado, desenvolvendo propostas fechadas em generalizações fundamentadas no pensamento cientificista que restringe o conhecimento àquilo que, supostamente, é universal e formalmente explicitado e desenvolvido, num claro descompromisso com as 67 aprendizagens cotidianas e experiências de vida de educandos e professores. Em meu entender, isso se refletia nos saberesfazeres da Joana, pois Miguel já havia avançado da condição inicial dos cantinhos da sala de aula, para brigar, para fazer as matrizes que eram produzidas em sala (FOTO 2). Afinal, a minha função ali não era de atuar diretamente com Miguel, mas potencializar os protagonistas daquela paisagem: “Yes estávamos caminhando !!!!!”, como diria Joana. Foto 2. Joana e Miguel ao final do estudo. Nesse aspecto, gostaria de socializar um diálogo entre mim e a professora Joana, quando, certa vez, após não mais freqüentar sua sala semanalmente, sentamos para que eu lhe relatasse a conversa que tive com a mãe de Miguel. A partir desse relato, começamos a discutir a contribuição que a Psicanálise nos dá para entender o autismo e as psicoses infantis,15 com base em Freud e Lacan e a instauração do estádio do espelho16 ao evidenciar o quanto a relação mãe/filho é significativa para a construção das estruturas psíquicas das crianças. De acordo com as considerações feitas a esse respeito, Joana, inesperadamente, fez um relato pessoal acerca da sua relação inicial com seu primeiro filho na época de seu nascimento e dos possíveis impactos desta relação à estruturação subjetiva deste filho ao longo de sua vida. 15 Item a ser aprofundado melhor no próximo capítulo. 68 Analisando tal narrativa, apoiava-me em Freud (1969), ao dissertar sobre a estruturação da psique humana, e, também, no debate tecido por Oliveira (2007), acerca da concepção de que as formas de ver o mundo são desenvolvidas a partir das experiências sociais. Acredito que, provavelmente, a minha presença em sua sala de aula, apesar da intencionalidade colaborativa, a incomodava bastante, até porque, talvez como não percebi isso antes, eu tomava esse incômodo com algo pessoal. Entretanto, ao aceitar a proposta de distanciamento, apesar de não desistir da aposta, possa tê-la deixado mais segura em relação às minhas reais intenções. Isso me remete a duas questões significativas a serem analisadas: estaria eu agora realmente conquistado o lugar de colaboradora na percepção de Joana, ao confiarme um sentimento tão pessoal? Teria ela aberto, verdadeiramente, a porta de sua sala de aula para mim, ou será que fez esse movimento exatamente porque saí de cena? Infelizmente, essa conversa foi uma das últimas que tivemos em virtude não só da dinâmica do CMEI, como do tempo Cronos determinado pelas políticas de pesquisa no Brasil, ou seja, no momento em que a pesquisa disparou um outro, e bastante significativo movimento, como era final de ano e tinha prazo para o término da pesquisa, tive de me afastar. Todavia, retomo Oliveira (2007, p. 5), quando nos alerta que, ao tentarmos verlerouvir os diferentes modos de pulsam a vida cotidiana, precisamos considerar não somente os limites culturais e epistemológicos, mas também os limites emocionais, tendo em vista o fato de que “[...] a realidade é opaca, ou seja, que ela não é captável enquanto tal, mas só por meio dos indícios que conseguimos dela captar”. Nesse sentido, finalizo o debate acerca do contexto que permeou a sala de aula da professora Joana e seus possíveis movimentos inclusivos, apontando o fato de que a Psicanálise pode não só nos ajudar a captar tais indícios, como também nos auxilia na compreensão de que somos instituídos nos/com/pelos Outros, fato este a ser mais bem aprofundado no capítulo que se segue. Logo, ao pensarmos os 69 processos pedagógicos de base inclusiva, precisamos estar atentos para os efeitos que esse movimento instituiu: [...] o saber da psicanálise poderá inclinar o educador a transmitir a fazer aprender por meio de um ato educativo tal como ele é entendido pela psicanálise: como transmissão da demanda social além do desejo, como transmissão de marcas, como transmissão de estilos de obturação da falta no Outro (KUPFER, 2001, p.119). b) Os movimentos tecidos na/pela sala da professora Ana: os seus encontros/desencontros com a perspectiva inclusiva O segundo contexto apresentado refere-se à sala de aula da professora Ana, responsável pelo Grupo 5 A (FOTO 3). Sua participação neste estudo se deu em virtude do aluno Mateus, de cinco anos de idade, também caracterizado como autista, cujo olhar solicitando acolhimento e as constantes manifestações de afeto me conquistaram logo no primeiro momento em que o vi. Foto 3: Mateus em meu 1º dia de acompanhamento. Meu contacto com Ana também se iniciou no ano anterior, todavia de forma menos próxima do que com Joana, limitando-se a alguns encontros coletivos com o grupo de professoras desse CMEI, para conversarmos sobre os processos de inclusão socioeducacional de crianças com nee. Ao longo desses encontros, Ana, até então responsável por uma criança hemofílica e microcefálica, trazia-me suas angústias acerca desse processo. 70 Ana era movimento em pessoa, apresentando um comportamento impulsivo, bastante agitado, como se desejasse abraçar o mundo de uma só vez. Apesar das dificuldades que esse desejo lhe acarretava, essa inquietude não lhe permitia acomodar-se, buscando sempre um desafio a superar. Em meu entender, isso fez a diferença neste estudo, conforme os trechos narrados ao longo da pesquisa. Assim, para melhor compreender o universo que habitava o pensamento de Ana, trago, a seguir, sua narrativa, na qual buscou priorizar como se encontrou com a educação e a educação especial. Entrei no Curso de Pedagogia por acaso no ano de 1990, mas me apaixonei pela educação! Eu tinha uma professora que me dizia que seria uma ótima professora e eu afirmava: “Deus me livre!”. Entretanto, comecei a dar aulas em sala de reforço e gostei. Antes, fiz concurso para trabalhar na Ufes em Alegre na parte administrativa. Quando lá estava, fiquei sabendo da necessidade de professora para a Criarte. Fui lá, fiz a entrevista e logo afirmei não ter experiência, porém muita vontade de ser professora. Fui chamada, começando a atuar no Grupo 2 com crianças de dois anos. Confesso que fiquei meio apavorada, pois tinha que dar banho nas crianças dentro de um tanque. Em 1995, trabalhei no Grupo 3 e só aí me apaixonei pela educação! Em 2000, comecei na Prefeitura de Vitória na Educação Infantil, numa comunidade carente que me levou a repensar várias coisas como, por exemplo, a necessidade de não só educar estas crianças, mas também de cuidá-las, pela carência que estas crianças apresentavam. E, aí, cada vez que entrava em sala de aula, me apaixonava mais ainda. Há sete anos atrás, tive um aluno com síndrome de Down e, a partir de então, comecei a estudar sobre o tema. Aqui, no CMEI, foi o Luis Paulo que me aproximou destas crianças. Gosto do que faço, porém há dias em que chego cansada em casa. Outra coisa, toda vez que venho trabalhar chateada, quando chego aqui, fico alegre ao me deparar com as crianças. Interessante é destacar que, segundo a fala da pedagoga Kely, Ana foi quem mais demonstrou desejo por minha presença ao seu lado e isso foi se fortalecendo ao longo do ano. Sentia, por parte de Ana, uma ansiedade muito grande para que começássemos logo a pesquisa, porque, segundo sua própria fala: “Ela era alguém que queria resolver logo tudo”. Assim sendo, disse-me desejar me ter ao seu lado de segunda à sexta-feira, pois já havia, anteriormente, pedido ajuda a outros pesquisadores amigos seus, porém eles 71 não tinham condições, naquele momento, para ajudá-la e, apesar de saber que não existem receitas: “Sentia falta de alguém para apoiá-la em suas ações”. A relação entre Ana com as crianças era de muita cumplicidade, apesar de, em alguns momentos, ela se exceder nas ameaças que, pelo afeto que apresentava em relação à turma, não dava conta de “bancar”. Com Mateus isso não era diferente, todavia, ao longo do tempo e, a partir das nossas conversas no/com o grupo de estudos, buscamos instituir uma nova forma de lidar com essas questões, principalmente no que tange a rotinas mais definidas para Mateus, pois ele, em detrimento da sua condição, precisava conhecer/exercitar algumas regras coletivamente construídas acerca da convivência social, em virtude de algumas fixações que apresentava, como na imagem que segue (FOTO 4), que registra Mateus quando, sempre ao chegar à sala, escutava uma mesma música numa altura tamanha que quase nos enlouquecia. Foto 4: Mateus e sua fixação com o som. Em frente a esse contexto, o caminho percorrido, com vistas a dar visibilidades aos movimentos instituídos com/por aquele contexto, especialmente a inclusão socieducacional de Mateus, era colaborar com a formação pedagógica da professora Ana, no intuito de que esse movimento disparasse possibilidades de ações inclusivas voltadas não só para Mateus, mas, também, para todo o grupo que o envolvia. 72 Corroborando com Baptista (2005), a busca por disparar fluxos potencializadores à inclusão nos torna desafiadores, em virtude da dinâmica de produção de vida que pulsa a cada momento em nossos caminhos. Logo, precisamos estar atentos às zonas de fronteiras com suas possibilidades de rupturas, mas também de estabilidades. Assim sendo, um dos maiores desafios que identifiquei naquela paisagem em geral, porém, em maior evidência com Ana, refere-se ao fato de que, apesar da excelente receptividade e da cumplicidade pedagógica com que me relacionava com ela, sentia-me, em alguns momentos, pouco escutada, na medida em que muitas coisas planejadas, freqüentemente, não ocorriam, não só pela complexa e singular rotina de um CMEI com mais de 250 crianças/turno, mas, também, pela falta de sistematização como as coisas se desenvolviam. A seguir, narro um trecho extraído do diário de campo, em que busco evidenciar tal percepção: Neste dia, aproveitamos de fato nosso dia de planejamento. Foram 40min para leitura e discussão teórica e 50 min livres para o planejamento coletivo das professoras. Em seguida, discutirmos parte do texto: AUTISMO - SÍNDROME DE ASPERGER: ao longo da vida de Stephen Bauer(APSA.ORG.PT,1996, acesso em 9 de març 2007). Texto este selecionado pelo grupo anterior à minha chegada. Confesso que estou me situando neste cotidiano. Senti este encontro um pouco agitado demais para o meu gosto, pois, para além das múltiplas intervenções externas que ocorriam, havia também a presença de Mateus, e ele hoje se encontrava um pouco agitado, dificultando nossa organização inicial. No momento em que Mateus resolve sair da sala, chega uma outra professora com uma criança chorando sem parar, entrega a mesma para que a pedagoga Kely ficasse com ela, pois, segundo ela, estava difícil de segurar a turma com uma criança naquelas condições. Paramos tudo, Ana o acolheu dando uma folha para desenhar, a criança se calou e seguimos nosso planejamento. Apesar destes múltiplos movimentos, iniciei o encontro tentando problematizar o fato de que o ato educativo é um desafio que se impõe a todos nós e, neste sentido, nossas angústias não devem ser compreendidas como uma impossibilidade, mas, sim, como algo que, juntas, numa ação colaborativa, devemos enfrentar cotidianamente. Assim sendo, neste dia, discutimos conceitos, origem e manifestações comportamentais das diversas manifestações autistas, trazendo alguns exemplos reais de Mateus para a discussão, pois, até este dia, ainda não havia conhecido Miguel, em virtude dele não estar freqüentando as aulas, porém Joana se reportava a ele nos dando exemplos que achava pertinente. Apesar de não termos certezas de que estas crianças eram realmente autistas, este texto poderia nos dar base para refletir nossas ações em sala de aula. 73 A primeira barreira que tentei desmistificar foi a organicidade do autismo com uma questão delimitadora para a ação pedagógica. Discutimos também sobre alguns cuidados em relação ao trato com estas crianças, como a atenção à rotina, a preparação da criança quando houver necessidade da professora se ausentar ou mesmo nos futuros passeios. Problematizamos, também, a idéia da limitação cognitiva destas, a incidência desta síndrome em crianças do sexo masculino, entre outros. Ao discutirmos a necessidade de que todas as pessoas envolvidas com essas crianças deveriam estar juntas neste encontro, a professora Ana se queixou da ausência de sua auxiliar pelo fato dela ter que acompanhar Mateus no pátio neste momento. Assim, ao deixamos para completar a leitura do texto na próxima semana, pedimos à pedagoga que pensasse num horário coletivo em que todas as pessoas envolvidas pudessem participar deste grupo. Foi quando Kely se prontificou a ajudar, mas lembrou-me de que algumas professoras, no caso a de Educação Física e a de Artes, estavam com as crianças neste momento para que Joana e Ana pudessem planejar, de forma que eu deveria encontrá-las em outro momento que não aquele horário coletivo. Fiquei de procurá-las para marcarmos um horário. Começando pela professora de Educação Física, pois a de Artes acabava de chegar à escola e, a meu ver, precisava de um tempo maior para se situar. Combinamos também, de comunicar às respectivas famílias envolvidas sobre minha presença bem como pedir autorização para que eu pudesse registrar audiovisualmente suas ações para estudarmos coletivamente estratégias pedagógicas. Ao final, lembro-me que, ao discutir sobre o fato das pessoas autistas terem dificuldades em reconhecer-se como um sujeito, sugeri às professoras que levassem todos os seus alunos a expressar a imagem construída acerca de si, a partir da comparação entre as imagens delas ainda bebês, frente ao momento atual, com o intuito de não só promover um resgate coletivo acerca da história de vida de cada uma das crianças, mas, primordialmente, identificar em que medida Miguel e Mateus reagiriam. Elas gostaram da idéia e se organizaram para tal (22-2-2007) Ao direcionarmos tal movimento para a sala de aula da professora Ana, em relação à busca por incluir Mateus no/com o grupo, definimos que, primeiramente, buscaríamos investigar, junto com ele, qual era a percepção que Mateus tinha acerca de si e de sua identidade. Para tanto, utilizaríamos fotografias que reproduziam o seu cotidiano. Em seguida e, somente a partir de então, ampliaríamos tal apresentação às imagens de todos os colegas de sala, mas sempre a partir do interesse dele. Entretanto, Ana acabou por apresentar a Mateus todas as imagens trazidas pelas crianças de uma só vez. A meu ver, isso fez com que ele, de certa forma, não desse a menor importância às fotos, em virtude do excesso de informação que lhe acometeu simultaneamente e, nós, pela falta de persistência e sistematização, não conseguimos ressignificar a idéia, até porque, em meu entender, Ana se 74 desmotivou. Eu, talvez, por estar começando minha ação colaborativa, respeitei tal posição. Direcionando tal consideração para as ações de Ana, entendo que, em alguns momentos, isso comprometia, inclusive, a possibilidade de reavaliar o que ali tentávamos instituir como prática pedagógica inclusiva, sem contar com o fato de estarmos lidando com uma criança autista, cujos cuidados com a sistematização das ações se fazem necessários, em virtude de seu processo de subjetivação se encontrar por constituir (KUPFER, 2001). Aprofundando o debate e, ao mesmo tempo, buscando outras lentes para analisar essa questão, eu, apesar de a priori, não ter a intenção de, num exercício de poder, aprisionar e disciplinar os que ali estavam (FOUCAULT, 1975), confesso que me sentia incomodada com tal situação. Por este aspecto, entendo que os movimentos disparados junto/com Ana nem sempre eram planejados conforme os trechos que se seguem, extraídos do diário de campo, que evidenciam tal análise: Ao chegar à sala Ana me mostra um bilhete de uma mãe dizendo que seu filho não fez o dever de casa solicitado, em virtude de Mateus tê-lo prejudicado ao ouvir a história contada pela professora, impedindo-o de reproduzir a mesma na atividade encaminhada para casa. Finalizando, essa mãe sugere que tire Mateus de sala a fim de que Ana possa contar a história para as crianças sem as desagradáveis palmas de Mateus. Leio o bilhete e digo-lhe para ter calma, pois seria de se esperar que as crianças começassem a perceber Mateus. Digo-lhe também que devemos entender que a concepção sobre a inclusão desses pais não deve ser próxima do que defendemos, afinal, eles, provavelmente, não tiveram a oportunidade de conviver com pessoas com deficiência em seus momentos escolares. Lembro-lhe de que o fato de as crianças se “incomodarem” com a presença de Mateus poderia ser um fato positivo e, em seguida, pergunto-lhe se ela, alguma vez, já falou sobre ele com as crianças, em relação à sua forma de comunicação pela via das palmas. Para tranqüilizá-la, sugiro que talvez o problema do dever de casa nem seja de fato as palmas. Imediatamente, Ana junta o grupo para conversar sobre a forma “diferente” de Mateus se comunicar, apesar de ela falar mais do que as crianças, isto é, não deu espaço para que elas falassem e perguntassem o que pensam sobre ele. Assim sendo, Ana começa a conversa dizendo ao grupo que estou ali para fazer uma pesquisa de Doutorado e, nesse sentido, tenho como objetivo ajudá-la com o Mateus. Em seguida, fala para as crianças que ele bate palmas para se comunicar e por não saber que isso incomoda aos outros, logo será preciso dizer isso a ele. Como estou “literalmente” na rodinha, afinal Ana diz a todos que estou ali para ajudá-la com Mateus, proponho, meio que no susto, combinarmos um gesto a ser sempre repetido quando ele estiver batendo palmas muito forte. As crianças propõem colocarmos as mãos nos ouvidos e mostrar para ele a fim de que ele perceba a necessidade de parar. Pergunto- 75 lhes se esse gesto poderia ser utilizado também quando outras crianças estivessem fazendo barulho e todos concordam. Em seguida, Ana recomeça a reler o livro, lido na aula anterior. Enquanto isso, Mateus, apesar de não sair de sala (percebo que ele também está ficando mais tempo dentro de sala), fica rodando pela sala batendo palmas e beijando a mim, a Carla (a estagiária) e Ana. Percebo que, a partir de agora, toda vez que Mateus bate palmas ele fecha os olhos, como se já tivesse entendido o combinado, de forma a brincar conosco. Em um determinado momento, ele entra na rodinha e tenta interagir com Ana, de forma provocativa, colocando os pés no livro dela, que continua a contar a história, como se nada tivesse acontecendo. Mateus sai da roda e começa a andar pela sala de forma ansiosa, abraça Carla, beija-a e volta às palmas e a andar pela sala [...]. Enquanto essa situação permanece, Ana mostra ao grupo as atividades de casa feitas pelas crianças que trouxeram o dever de casa. Ao final, pergunta à criança cuja mãe se queixou se ela entendeu a atividade. A criança diz não ter entendido, Ana olha para mim e sugiro que pergunte às crianças quem quer explicar ao coleguinha o que é para ser feito. Vários falam, porém ele continua a dizer que não sabe o que é para fazer. Ana, meio sem paciência, diz para ele: “Então pede à sua mãe para desenhar o que é paz para ela!” [...] Eu e Ana seguimos para a sala da pedagoga para discutirmos acerca de minha presença como pesquisadora. Iniciamos discutindo o acontecido, pois, apesar dessa situação ter sido esclarecida, conversamos sobre a necessidade de planejarmos algumas ações para se discutir a presença de Mateus naquele contexto. Neste sentido, sugiro a ela dar um retorno à família desta criança, inclusive contando como procedeu em sala após o bilhete, bem como mostrando a dificuldade persistente da criança em relação à atividade. No que se refere a Mateus, combinamos de ela chamar essa mãe para maiores esclarecimentos, em relação à condução que estava tendo com ele na/com turma (13-42007). Antes de dar prosseguimento à narrativa, gostaria de ponderar o fato de que, apesar de reconhecer a dinamicidade que atravessa os cotidianos escolares, não podemos perder de vista o nosso foco em relação aos processos de ensino que ali se instituem sob o risco de nos perder nesse caminho. Entendo que isso ocorria com muita freqüência naquela paisagem, especialmente em relação à sala de aula da professora Ana. Nem mesmos as leituras, previamente escolhidas no/pelo grupo nos encontro de formação, eram lidas, conforme o relato que segue que dá continuidade à narrativa anterior: [...] Para não perder o foco, digo-lhe que sei que as mudanças não se dão da noite para o dia, mas, sim de forma gradual e constante e, com relação a Mateus, gostaria de saber como estava analisando a minha atuação como pesquisadora. Ela me disse que, se eu pudesse, gostaria que eu ficasse com ela todos os dias da semana, pois passava uma segurança que ela não sentia. Nesse sentido, aproveito para lhe dizer que, para ajudá-la ainda mais, deveríamos buscar apoio também na literatura e, nesse sentido, havia lido algumas coisas interessantes que gostaria de compartilhar com ela, mas não estava sentindo muito interesse por parte do grupo. Ana se desculpa em relação ao texto anterior, e afirma não ter gostado dele. 76 Digo que o mantive por ter sido indicação da Secretaria, porém fizemos um “pacto” para garantir nossos encontros de planejamento [...].Terminamos o planejamento e voltamos à sala. Lá chegando, pergunto a Ana o que vamos fazer. Ela, então, me responde que nossa conversa a deixou tão “light” que iria deixar as crianças livres. Ajudo-a com uns bilhetes no caderno e vamos para o lanche (13-4-2007). Ao me remeter a Linhares (1997, 2001a), ela nos lembra o quanto é fértil aos processos pedagógicos a coragem para ousar outrasnovas formas de se produzir conhecimento, bem como reconheço que muitos saberesfazeres que pulsam no cotidiano são preteridos em detrimento de conteúdos engessados que não estabelecem pontes entre o conhecimento culturalmente sistematizado e o conhecimento instituído em cada realidade escolar. Todavia não concebo o fato de deixar as crianças livres como uma estratégia promovedora de processos pedagógicos que acreditamos serem potencializadores. Buscando contextualizar um pouco mais, reconheço o fato de que, numa estratégia de sobrevivência, instituímos burlas/táticas (CERTEAU, 1994), conscientes, ou não, para a sistematização do cotidiano. Esses movimentos nos provocam a produzir outrasnovas formas de se tecer os nós que atravessam nossas vidas e, conseqüentemente, potencializam nossa capacidade de criação. Entretanto, faz-se necessário que nós, educadores, na tentativa de transpormos os abismos entre a escola real e a imaginária, reavaliemos cotidianamente nossas ações. Afinal, é preciso correr riscos, já que tudo o que fizermos terá sempre duas possibilidades: ou refundaremos à mesmice, isto é, utilizaremos a escola, única e exclusivamente, como um espaço de sujeição e regulação dos indivíduos, indo ao encontro do pressuposto fascista do capital, ou transgrediremos o que está posto, reinventando a cultura e a civilização, utilizando a educação num contexto plural, de forma a contribuir para reverter a situação a partir da autonomia, isto é, valorizando a transgressão em prol da libertação, ou, como nos diria Linhares (2001b, p. 20), assumindo “[...] a educação como depositária da esperança”, vendo na liberdade um permanente devir”. Assim sendo, defendo a premissa de que o professor não deve perder de vista o seu compromisso pedagógico com a formação de seus alunos, no sentido da autonomia e da responsabilidade com a vida, bem com o fato de que, para tanto, precisamos 77 reavaliar cotidianamente nossas ações, a fim de que estas não caminhem de encontro a esse objetivo no campo da educação e uma perspectiva inclusiva. Para além dessas questões, um outro desafio que nos apresentava refere-se aos conflitos vividos por Ana no/com o grupo em relação ao entendimento ali instituído, acerca da presença de Mateus em frente aos processos de inclusão socioeducacional. Como forma de evidenciar tal contexto, trago, a seguir, um recorte extraído do diário de campo, que destaca uma visita realizada ao parque da Vale do Rio Doce, em que nossas concepções sobre a inclusão, ações colaborativas, formação de alunos foram postas em xeque: Hoje as duas turmas do Grupo 5 que acompanho no CMEI combinaram um passeio ao parque de Vale do Rio Doce. Havia, por parte do grupo, certa ansiedade em relação ao comportamento tanto de Miguel quanto de Mateus, pois, apesar de termos o cuidado de avisá-los sobre o passeio, não sabíamos como eles se comportariam, principalmente porque em relação a Mateus, a professora de apoio Tina, não concordava com a ida dele ao passeio, alegando que ele não estava em condições de sair com o grupo. Por mais que não desejasse passar por cima de ninguém, não concordava com essa recomendação. Afinal como incluir excluindo? Bom! O passeio teve início e todas as crianças ficaram muito bem no ônibus. Fomos eu , Kely, Joana, Ana, Karla e Sandra. Chegamos à Vale sob um forte calor de final de verão (FOTO 5). Fomos recebidos por um funcionário bem treinado que tenta organizar o grupo à sua forma. Imagina você, naquele calor, pedir que todos fiquem em silêncio (+/- 50 crianças) e, em seguida, formem fila sem sair do lugar. Mateus até que tentou, chegando a entrar na fila, mas não agüenta tanto formatação e é aí que começa o nosso sufoco, pois ele solta-se da fila, dá de cara com uma cantina, acha um freezer aberto cheio de picolés (FOTO 6)! Ele tem uma compulsão por comida. Nem precisa dizer o sufoco que passamos: primeiro, ele fica muito desestruturado por não conseguir o picolé. A pedagoga nos pergunta o que está acontecendo e quando a explico ela nos diz: − Por que vocês não dão picolé a ele escondido? Digo a ela da necessidade de irmos incutindo, gradualmente, regras sociais de convivência, bem como o fato de todas as crianças ali também estarem na mesma condição e nem por isso elas teriam picolé. No entanto, Mateus não esquece, tenta a todo o momento pegar o picolé, até mesmo porque todas as atividades giram ao redor da cantina. Sinto tanto Ana quanto Carla um pouco desestruturadas neste momento. Tento ajudá-las, impedindo-as de, simultaneamente, ficarem com Mateus esquecendo o grupo. Crio um revezamento entre nós três de forma que duas ficam com ele e uma fica com a turma juntamente com a pedagoga. 78 A meu ver, todos se sentem culpados por não darem o picolé e eu sinto-me culpada e confusa por bancar tal situação! No momento do lanche das crianças, Mateus se esquece do picolé, chegando a pegar um pirulito de uma criança. Ana, como já estava exausta, pede desculpa à criança dizendo que, na próxima aula, irá levar um pirulito para ela. Acho uma bala no meu bolso e dou a ela. Após lanchar e brincar um pouco no parque Mateus tenta novamente o picolé e o distraímos levando-o ao balanço. Ao final da brincadeira, vamos embora exaustas! (30-3-2007). Foto 5. Mateus chegando ao Parque da Vale Foto 6. Mateus vendo o freezer de picolés. Ao analisar tal episódio, tomo por base as contribuições de Assumpção (1999), quando discute acerca dos estigmas, preconceitos e estereótipos que construímos em relação às pessoas com deficiência. Para a autora, em virtude de alguns (des)conhecimentos acerca das reais capacidades humanas dessas pessoas, produzimos generalizações indevidas que, simbolicamente, são muito mais incapacitantes do que a própria deficiência: 79 [...] um preconceito gera um estereótipo, que cristaliza o preconceito, que fortalece o estereótipo, que atualiza o preconceito [...]. Círculo vicioso levando ao infinito. Paralelamente o estigma (marca ou sinal) colabora com essa perpetuação (p. 40). Ao tecer os fios de tais contribuições com/nas teias tecidas na/pela/com a paisagem investigada, identifiquei alguns movimentos nesse relato que, em meu entender, não favorecem os processos de inclusão que almejamos. A começar pela sugestão da professora de laboratório pedagógico de que não levássemos Miguel e, principalmente, Mateus. Ora, corroborando o pensamento de Freud (1969), ao nos lembrar que a estruturação de nossa psique humana ocorre por meio da interação com o Outro, como socializá-los, segregando-os? Por mais que elas apresentassem dificuldades com mudanças de rotinas, era esse o nosso papel como educadoras: a formação dos indivíduos singulares em contextos plurais/adversos/contraditórios/ complexos! Como nos diria Linhares (2001a), é função da escola promover a interligação entre os saberes culturalmente sistematizados e os saberes instituídos na vida. Sabemos que isso é desafiador, como viver é um desafio constante! Para tanto, precisamos estar atentos para sentimentos que reafirmam a cultura da exclusão, tais como: pena, abandono, rejeição, negação, atenuação, superproteção, compensação e a simulação, pois, estejam eles disfarçados ou não, possibilitarão a percepção de que, quando, “preconceituosamente”, temos pena de alguém, e/ou, fazemos algo por ele, não lhe possibilitamos a vida (ASSUMPÇÃO, 1998). Nesse sentido, trazemos, a seguir, outras narrativas em que são evidenciadas essas tensões: [...] ao chegar à sala de Ana, ela me recebe com um grande abraço dizendo que serei responsável por ela estudar sobre Educação Especial e me agradece pelo texto sugerido: Saberes e práticas da inclusão (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2004), pois esse texto lhe ofereceu a dimensão desejada para cobrar a concepção de inclusão em que ela sempre acreditou. Em seguida, cumprimento as crianças e me deparo com Mateus correndo com sua mochila livremente, juntamente com as outras crianças, também bem agitadas. Falo com cada uma delas. Ana tenta conter a turma, mas, para variar, não consegue por não dar seguimento às suas marcações, isto é, briga com as crianças, porém, logo em seguida, deixa-as fazer o que querem. 80 Ana me solicita ajuda com Mateus, a fim de que ele pinte uma tela para a exposição que acontecerá na semana seguinte. Sinto-me um pouco perdida, afinal estava retornando ao grupo após 30 dias do recesso escolar. Pergunto-lhe como as coisas estavam sendo encaminhadas em relação às atividades com Mateus. Vejo que Ana também fica perdida. Sugiro, então, que, primeiro, ofereça uma folha para ver com irá se portar, porém Ana sugere (ou seja, só desejava o meu endosso!), que uma criança desenhasse para que ele, em seguida, pintasse o quadro. Carlos, então, faz o desenho e Ana me dá o quadro para que eu faça com que Mateus o pinte. Chamo-o para pintar, e ele se senta à mesa para começarmos, entretanto Ana não se contém e pega na mão dele e começa a pintar com ele. Sugiro deixá-lo conduzir a pintura, Ana atende, e Mateus resolve, então, não seguir as linhas do desenho, mas, sim, escrever o seu nome. Ao final, Ana me diz ficar sentida com a diferenciação que poderão fazer ao expor o que Mateus produziu em relação à produção dos colegas. Digo entendê-la, porém aponto que deveríamos ter planejado antes como realizar tal atividade, a fim de que as coisas não se desenvolvessem de forma tão atropelada. No mesmo momento, meio para que Mateus parasse de bater palmas, Ana oferece a ele um pincel grosso e uma folha mimeografada contendo alguns desenhos para que pinte livremente. Ao contrário da tela, Mateus pinta somente as figuras e vai trocando as folhas. Retomo a questão do planejamento com Ana afirmando que, se tivéssemos planejado antes, ou mesmo dado as folhas como sugeri inicialmente, poderíamos ter feito as coisas diferentes, por exemplo, ter dado um pincel mais grosso a ele. Ana, então, pega outra tela e refaz a atividade com Mateus, porém fica uma pergunta: Qual era a sua preocupação: mostrar a real condição de Mateus ou, em detrimento disso, ser também avaliada no/pelo grupo? [...]. No dia da exposição, Ana expõe tanto o que Mateus pintou com sua ajuda como também o que fez só (15-8-2007). Apesar de compreender o cuidado e o compromisso que Ana sempre apresentou em relação a Mateus e ao grupo, fico a me questionar se realmente estamos favorecendo a perspectiva inclusiva defendida neste estudo, quando não permitimos evidenciar as reais produções dessas crianças? O instituímos socioculturalmente por uma “produção adequada” no campo da Educação Infantil? Responder a essa complexa e contraditória questão exige também uma resposta na mesma configuração, haja vista o fato de concebermos os processos educacionais de base inclusiva tecidos em redes de significações15 produzidas na/pela história, e que se encontra diretamente vinculada ao ouvir, ao contar, ao inventar e reinventar histórias, entre outros, como nos diria Larrosa (apud BUJES, 2001, p. 4) 15 As redes de significações constituem um conjunto de elementos de ordem pessoal, relacional e contextual, atravessado na/pela cultura, pela ideologia e por relações de poder, cuja matriz se atualiza constantemente nos atravessamentos das relações cotidianas (FERREIRA, 2004). 81 Toda cultura deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em alguma das modalidades incluídas nesse repertório. [Portanto], em qualquer caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiência objetiva do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como sujeitos. Tentando me colocar no lugar de Ana, admito que apresentar a produção de Mateus para a comunidade também seria algo que me provocaria a refletir. Entretanto, sinto que, mais uma vez, se tivéssemos socializado essa questão no/com o grupo previamente, poderíamos pensar novasoutras formas que não o pedir a um colega que realizasse o desenho para ele. Logo, não poderia deixar de me remeter novamente a Linhares, quando nos alerta que a educação poética não tem regras nem garantias de sua realização, mas não se faz sem a participação do aprendente, aliada à sua vida, de forma coletivamente colaborativa. Entretanto, a autora afirma que a escola tem se afastado bastante dessa perspectiva ao se submeter aos estreitamentos dos “pacotes educacionais”, voltados a um dado perfil de aluno, desconsiderando temas relacionados com a vida. Uma escola que não seja hierárquica tende a ser includente. Mas includência não representa apenas colocar todo tipo de aluno na escola [...]. A includência da escola também se endereça a um outro tipo de ensino e de aprendizagem, que respeitem mais o que o estudante tem a oferecer para seu próprio processo escolar. A escola, além de ser inclusiva para todo tipo de raça, de cultura, e mesmo para os deficientes, deve incluir também os próprios professores e estudantes — suas histórias de vida, com suas relações de poder que se articula com sua classe social, preferências pessoais, entre tantas marcas (LINHARES, 2002a, p. 2). Apesar desses desafios, Certeau (1994) afirma que os caminhos para um projeto pedagógico promovedor à vida se inscrevem em zigzagues, cujos terrenos já se encontram há tempo muito habitados. Logo, nessas idas e vindas de ser/estar produtora de dados numa paisagem escolar, acredito ter aberto caminhos cujas “maneiras de fazer” instituíram práticas criadoras que favoreceram os processos de inclusão que ali se presentificaram. 82 No entanto, é preciso evidenciar que esses movimentos só ocorreram em virtude da colaboração que se instituiu entre mim, Ana e Carla e Kely, conforme os trechos que se seguem do diário de campo, cuja ordem de apresentação nos apontam que a perspectiva inclusiva, possível para aquele momento, foi se instituindo no/com/pelo grupo: Episódio 4. Tentativas/erros iniciais de ressignificar práticas pedagógicas Chego à sala, encontro as crianças brincando. Mateus está andando livremente pela sala, batendo palmas insistentemente. Ana está organizando um material. Quando a estagiária Carla chega, fala-me que no dia anterior, Mateus ficou um bom tempo fazendo uma atividade voltada para crianças de três anos, que se caracteriza por colar macarrão numa folha seguindo as linhas de seu nome. Como o percebo bastante agitando, batendo palmas, digo a Carla para tentarmos envolvê-lo numa atividade a fim de minimizar sua agitação. Ela, então, pega o material que Mateus produziu no dia anterior, oferece para pintar com tinta, pois essa é uma atividade apreciada por ele. Conforme acreditávamos, ele se acalma e fica a pintar o macarrão colado na folha. Algumas crianças, seduzidas pela atividade, juntam-se a ele para fazer a mesma coisa, momento em que Carla reconhece que todos gostariam de fazer a mesma atividade, porém como não tem material suficiente para todos, prioriza Mateus. Quando a atividade acaba, colamos as folhas no quadro, até mesmo para ver como ele reage ao ver seu material exposto. No entanto, essa idéia não surte nenhum efeito, de forma que Mateus volta a agitação com movimentos estereotipados e as palmas (20-4-2007). A denominação de tentativa/erro dada a essa narrativa não tem como foco a preocupação de delimitar, de forma dicotômica, a noção de certo ou errado. O que busquei evidenciar foi que, inicialmente, percorremos diversos caminhos, até encontrar algumas pistas que passaram a nortear nossas ações, conforme os trechos a seguir: Episódio 5. Tentativas de ressignificar práticas pedagógicas: eis que surge uma luz no fim do túnel Ao chegar à sala encontro todos já presentes, isto é, as crianças, Carla e a professora substituta Maria. Em relação à turma, vejo-os muito agitados como sempre e percebo que isto agita mais ainda Mateus. Como a professora substituta não propõe nada para Mateus, ele fica agitado, batendo palmas indiscriminadamente. Resolvo, então, buscar Carla a fim de propormos algo para ele. Ela, então, me dá uma folha e uns lápis e pincéis para oferecer a Mateus enquanto ela desce para conversar com a pedagoga. Eu me sento com ele que pega a minha mão e levando a folha como se me pedisse para escrever algo. Enquanto isto, a professora substituta está a orar com os alunos que parecem estar subindo pelas paredes de tanta 83 agitação! Como ela não sabe muito bem o que fazer, resolve pedir a eles que façam um desenho dizendo que vai escolher o mais bonito. Voltando a Mateus, percebo que ele deseja que eu escreva seu nome na folha. Quando termino a escrita, Mateus pega um lápis e fica a riscar em cima das letras escritas. Quando termina, volta-se para mim como se me pedisse para repetir o que escrevi. Faço isto para várias vezes na folha, viro-a, porém agora tento escrever outra coisa. Neste momento, Mateus interrompe minha mão e imagino ser porque ele não queria que eu escrevesse qualquer coisa e sim o seu próprio nome. Após escrever em toda a folha, Mateus começa a correr pela sala de aula e a bater palmas insistentemente. Pergunto a Carla se podemos propor outra coisa a fim de evitar esta situação que, a meu ver, ocorre quando ele se sente sem ter o que fazer na sala. Carla, então, sugere oferecer-lhe massa de modelar. Mateus aceita e começa a manuseá-la com interesse. As crianças terminam o desenho pedido pela professora e se aproximam de Mateus, para ver o que ele está a fazer. Meio que incorporando a questão da fruta, a professora substituta pergunta-nos se já está na hora das crianças descerem para lanchar a fruta, porém Carla a desaponta, quando diz que hoje é dia de maçã, logo não precisa descer. Ela então, deixa-os livre até a chegada da professora de Artes que atrasa dez minutos, levando mais dez minutos, para “organizar” as crianças em sala. Quando elas descem, Carla diz que vai ficar na sala com Mateus para terminar uns bilhetes e, depois, irá levá-lo à aula de Artes, pois a professora diz não conseguir ficar com Mateus sem a sua ajuda. Enquanto estamos a escrever os bilhetes, Mateus fica bem tranqüilo em sala com a massinha como nunca vi. Aproveito para conversar com Carla sobre Mateus, evidenciando o fato de que ele precisa ser estimulado constantemente para parar com o excesso de palmas, e que isto, para mim, é ansiedade. Digo também que, para além de termos um planejamento mais específico para as necessidades dele, devemos tentar manter os alunos menos agitados pois esta agitação prejudica a Mateus que também agita a turma formando aí uma bola de neve!. Ficamos nesta sala por, mais ou menos uns 30 minutos e Mateus ficou o tempo todo lá manuseando a massinha como se fosse outra criança, sem agito, sem palmas supertranqüilo. Terminamos o bilhete e descemos para o pátio ao encontro da professora de Artes. (11-5-2007) Para encerrar as reflexões suscitadas, apoio-me em Foucault (apud CERTEAU, 1994), ao se referir aos modos de proceder perante a criatividade cotidiana, quando nos lembra que, apesar das tentativas diciplinarizantes que nos impõem a vida cotidiana por meio de dispositivos minuciosos que tentam gerir nossa vida cotidiana a todo o momento, há possibilidade que nos permitem jogar com esses dispositivos, num movimento de contrapartida, em prol de uma novaoutra organização sociopolítica. 84 Acredito que um interessante fio a se percorrer se encontre atrelado às tramas tecidas pelas pesquisas colaborativas (JESUS, 2002), cujo entendimento sobre a responsabilidade do pesquisador, no contexto das práticas cotidianas, reafirma uma ação pedagógica fundamentada em movimentos de ação/reflexão/ação, privilegiando, nesse espaço, momentos de reflexão política com/na/sobre essa prática, construindo, assim, verdadeiros espaços de teoria em movimento (FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004; LINHARES; HECKERT, 2005) e isso também, e principalmente, se aplica aos processos de inclusão socioeducacional de crianças com nee. Assim sendo, problematizarei, a seguir, o contexto que envolve o ser/estar pedagogo nos CMEI’s do município investigado, buscando evidenciar o quanto nos é desafiador pensar práticas colaborativas em contextos que visam a tutelar nossas ações, pela via de dispositivos reguladores e nos instituem práticas subjetivantes nem sempre favoráveis a nós mesmos (ALVES; GARCIA, 2008; FOUCALT, 1997) c) O ser/estar pedagoga na Educação Infantil: a pedagoga Kely e os desafios vividos na busca por uma gestão pedagógica autônoma e, ao mesmo tempo, coletiva Dissertar acerca dos saberesfazeres que atravessaram as ações da pedagoga Kely é muito significativo, visto que é sempre muito bom falar de pessoas que chamamos, pedindo licença poética, de pessoas “do bem”. No entanto, essa postura humana, muitas vezes, trazia-lhe algumas implicações nem sempre favorecedoras à sua gestão, principalmente quando buscamos (re)organizar espaçostempos pedagógicos com vista a torná-los mais inclusivos. Assim sendo, trago uma narrativa feita por Kely, ao contextualizar seu processo de escolarização até a chegada aos bancos universitários, com vistas a possibilitarmos um maior entendimento acerca da ótica em que ela conduzia suas ações no/com o grupo investigado. Assim narra a pedagoga Kely: 85 A minha vida escolar teve início aos sete anos de idade, numa sala multisseriada, em uma escola rural, no interior da Bahia. Ingressei na primeira série com muita vontade de aprender a ler e escrever. E as primeiras palavras que li foram ‘Ivo viu a uva’. Lembro-me que adorava brincar. E brincava muito. Os brinquedos não eram muitos nem como os de hoje, mas a alegria e o prazer estavam presentes em todos os momentos. Entretanto, ao entrar na sala de aula acabava a ‘brincadeira’. Acredito que esta experiência tenha sido fundamental na escolha de minha profissão. Não tive dúvidas ao decidir ser professora/pedagoga. E, ao ingressar em um Centro Municipal de Educação Infantil, porque eu decidi trabalhar nessa faixa etária, tinha um ideal de escola pública de qualidade. Acredito que cheguei à escola com muitas dificuldades e, como muitas professoras também estavam iniciando na profissão, fomos aprendendo juntas. Durante alguns anos, vivenciei a experiência de trabalhar como pedagoga e como professora de turmas de séries iniciais. Esta experiência foi muito importante para mim, pois possibilitou a compreensão de que é necessária ao professor uma formação teórico/prática/reflexiva permanente e consistente. E isto não é nada fácil, pois exige profissionais envolvidos e comprometidos com a construção de uma escola que cumpra com o seu papel, que é o de favorecer a construção do conhecimento para todos, e que, ao mesmo tempo, promova experiências significativas para as crianças. Talvez por ter tido a oportunidade de vivenciar a ‘brincadeira’ em minha infância mesmo que tenha sido fora da escola, acredito que é uma grande oportunidade de a criança aprender pela própria experiência com a participação/mediação/envolvimento do professor. Nestes anos de atuação como pedagoga, uma questão que tem me desafiado muito é como construir/implementar um Projeto PolíticoPedagógico que tenha como meta uma prática inclusiva, buscando uma escola pública de qualidade que favoreça o acesso do conhecimento para todos. O papel do pedagogo é muito importante neste processo, pois cabe a ele articular questões, tais como: formação dos profissionais, construção e desenvolvimento do projeto curricular da escola, apoio no trabalho de sala de aula, ajudar na busca de resposta às dúvidas, inseguranças do grupo, etc. E acredito que chegará o dia em que todos, professores, funcionários e equipe técnica se tornarão cada vez mais responsáveis, coletivamente, pela construção e pelo resultado do trabalho de toda a instituição. Kely atuava com educação infantil há anos e, em relação à paisagem investigada, se encontrava no seu segundo ano na condição de pedagoga dos Grupos 4, 5 e 6. Meu relacionamento com a pedagoga Kely iniciou-se no ano anterior à pesquisa, ao longo do grupo de estudos desenvolvido com os professores desse CMEI, acerca da inclusão de crianças com nee. Logo de início, percebi que ser pedagoga nesse CMEI não era fácil, em virtude da sobrecarga de responsabilidade que a pedagoga recebia. Por diversas vezes, Kely precisava exercer mais de uma função, deixando de lado a sua principal responsabilidade, que era a gestão pedagógica, ou seja, ela 86 era coordenadora de disciplina, supervisora, diretora, enfermeira, dentre tantas outras funções. Em nossos encontros de planejamento, éramos, freqüentemente, interrompidas em virtude de alguma interferência externa e, por mais que nos escondêssemos, sempre vinha alguém para dizer e/ou pedir alguma coisa a Kely. Certo dia, criei coragem e disse-lhe que, a meu ver, isso comprometia sua real função naquele CMEI, no que ela me confessou num tom de desabafo: − Pois é eu poderia estar na sala junto com as professoras, porém isto, quase nunca acontece por estes motivos!. Kely era uma pessoa muito íntegra, paciente e, principalmente, humana. Acreditava no diálogo e, no fato de as pessoas se auto-implicarem nos processos educacionais como uma filosofia de vida. No entanto, isso não era nada fácil, considerando a realidade complexa e contraditória que ali pulsava, cujo contexto singular/plural produzia movimentos nada favorecedores aos processos de inclusão das crianças investigadas. Assim sendo, confesso ter ficado algumas vezes a questionar a forma singular de Kely para conduzir sua gestão pedagógica, em virtude de algumas situações delicadas por mim captadas, conforme o relato abaixo, extraído do diário de campo: [...] Retorno à escola por volta das 16h20min a fim de assistir a uma apresentação cênica sobre a vida de Candido Portinari, que foi representada pela turma do pré. Chego um pouco antes da apresentação e me encontro com Ana logo na chegada. Pergunto-lhe sobre a visita e ela me diz que foi tudo bem, mas, que ao chegar ao CMEI, eles se depararam com um carrinho de picolés e, em virtude disso, Mateus está incontrolável! Vou ao encontro dele e o vejo a chorar e a se bater, mas, a meu ver, está se acalmando. Combino com Carla de fingir que não o estamos vendo, porém ficamos observando como ele se comporta. Mateus sobe a rampa e se depara com uma turma que está descendo, ele abraça a professora dessa turma, como se estivesse pedindo a Margarida para ajudá-lo. Ela retribui o abraço e ficamos acompanhando junto com a turma, de longe. Ao chegarmos perto do local em que seria apresentada a peça, a professora Margarida se vira para nós e pede, de forma agressiva para retirá-lo de seus braços, apesar de que ele já havia se desvencilhado dela. Quando dizemos à professora que ele já se soltou, ela se volta de forma bem agressiva para a estagiária Carla e diz aos gritos: “Estou sozinha com 25 crianças e você fica aí conversando com uma mãe!” (referindo-se a mim). Carla responde de forma agressiva e o bate-boca se instaura. Tento intervir, pedindo licença para explicar o que aconteceu, quando Margarida vira sua fúria para mim dizendo: “Eu conheço o Mateus, não sou uma professora de dois anos, mas sim de 20 anos!”. 87 Vejo que o clima não está bom, não respondo, e ela se volta para Carla e começa a bater boca. Tento pedir calma a Carla. Em seguida, a professora Margarida vai à procura de Ana que, por estar longe de nós, nada sabe sobre o acontecido. Quando essa professora encontra-se com Ana, ela lhe diz que se ela não mandar Carla ficar nos seu lugar, ela iria bater nela. A peça de teatro começa, Ana se mostra revoltada com a situação, mas vira-se para mim e diz: “Eu fiquei calada para não perder a razão, como você me falou!”. Ao final, procuro Kely para explicar o que aconteceu, sugerindo uma reunião para esclarecermos o acontecido. Ela diz que prefere falar só com a professora Margarida no dia seguinte, todavia afirma em seguida, que não seria possível, em virtude de, nesse dia, se realizar um passeio com a turma. Ofereço-me para ir em seu lugar ao passeio e nos despedimos combinando, então, a reunião.[...] (155-2007) Como forma de não deixar as coisas se perderem no tempo, no dia seguinte à confusão, chego ao CMEI no horário combinado com Kely e a encontro logo no portão. Digo estar pronta para o passeio, a fim de deixá-la em condição de conversar com a professora Margarida que se desentendeu com Carla e Ana, no entanto ela diz que precisa ir ao passeio, afirmando que, na volta, conversará a sós com a professora, fato este que, infelizmente, acabou não acontecendo. Apesar de reconhecer que a condução pedagógica de Kely era bastante humana, haja vista o fato de sempre respeitar a nossa também condição complexa e, contraditoriamente, humana em constante mutação, acredito que, em alguns momentos esta forma de serestar pedagoga era mal interpretada por algumas pessoas e, abriam brechas para ações não muito favorecedoras ao desenvolvimento das crianças que ali habitavam. Nesse sentido, era necessário que Kely não perdesse de vista sua implicação e responsabilidade no gerenciamento pedagógico daquele CMEI. Logo, para que avançássemos em prol da inclusão almejada naquela paisagem, era preciso, em alguns momentos, “organizássemos a casa”, e isso, muitas vezes, escapava, visto que tinha sempre como premissa o respeito aos processos individuais de cada um. Apesar de compreender tal posicionamento, entendo que em alguns momentos, isso favorecia a algumas ações cuja perspectiva de mundo e de sociedade iam de encontro ao nosso entendimento acerca de uma educação inclusiva que se pensa ser una/plural. Neste sentido, acredito que apesar de Kely não corroborar com estas ações, as questões do cotidiano falavam mais alto, de forma que, estes 88 acontecimentos não eram problematizados no/com/pelo grupo, se repetindo com mais freqüência do que desejávamos. Nesse sentido, aprofundando mais o debate, uma outra situação bastante incômoda e, a meu ver, com implicações até mais significativas, refere-se à forma como a Direção Administrativa, conjuntamente com a pedagoga Kely, acaompanhavam a participação da professora Tina, responsável pelo apoio pedagógico nesse ano no CMEI, cujas ações serão contextualizadas no texto que se segue. Conforme dito, a professora Tina tinha, como função primordial, naquele CMEI, gerenciar ações em prol da inclusão de alunos ditos com nee, do ponto de vista pedagógico, atitudinal e/ou estratégico, todavia suas ações, pelo menos em relação aos sujeitos investigados, eram merecedoras de questionamentos que serão problematizadas a seguir. Para começar, Tina sempre retirava as crianças da sala de aula para realizar um atendimento especial, indo de encontro à perspectiva de inclusão preconizada pela própria Divisão de Educação Especial/SEME/PMV. Apesar de sempre se encontrar no CMEI, bem como ter disponibilidade para juntar-se ao grupo nos horários de planejamento coletivo, afinal atendia Mateus e Miguel semanalmente, ela, quase nunca, participava do grupo, até mesmo porque, freqüentemente, era substituída por outra professora, que, por sinal, se tornou muito mais presente à escola do que ela própria. Ao questionar Kely acerca da legalidade dessas ações, ela me disse nada poder fazer, pois Tina era subordinada à Divisão de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação (SEME). Conforme as transcrições do diário de campo delimitadas, e essa situação perdurou por todo o ano de 2007: Quando as professoras se vão, questiono Kely sobre mais uma ausência de Tina no encontro de planejamento coletivo. Ela tenta ponderar, mas reconhece que ela não está se esforçando para nos acompanhar. Pergunto-lhe se ela já conversou com Tina sobre o fato dela ficar atendendo Miguel e Mateus em separado no laboratório pedagógico, em detrimento de atendê-los na sala de aula, como é defendido pela SEME. 89 Kely me diz ter conversado com Tina, porém ela insiste em defender um atendimento em separado para eles. Digo-lhe que muitos estudos já discutiram o quanto isto é prejudicial a criança, porém reafirmo que a decisão é dela (27-6-2007). Infelizmente, esta situação se manteve por todo o segundo semestre letivo conforme os relatos abaixo: Chego à sala e encontro a professora de Educação Física conversando com a pedagoga Kely [...]. Em seguida, percebo que a substituta de Tina está na sala, isto é, ela mais uma vez, não virá á reunião. Kely apresenta-me à professora que, em seguida, justifica a ausência da Tina, em virtude dela estar viajando ao Sul do País, acompanhando alguns alunos da Apae, numa competição artístico-cultural. Todavia fica a seguinte dúvida: se ela sabia desta viagem há tempos, por que não nos avisou, quando confirmou a participação no encontro?(13-8-2007). Hoje nos reunimos para finalizar a leitura do texto “Saberes e Práticas da Inclusão”, iniciado no encontro anterior. A professora do laboratório pedagógico não participou, novamente, do encontro. Pergunto por ela e Kely me diz não tê-la visto no CMEI ainda, apesar de hoje ser um dia em que ela já deveria ter voltado de viagem. Faz 15 dias que ela não aparece no CMEI....!? (27-8-2007). Hoje, finalmente, conseguimos juntar todo o grupo para planejarmos ações voltadas para a inclusão de Miguel e Mateus. Todavia Kely precisou mandar chamar as professoras, pois elas não desciam para o grupo de estudos. Uma outra questão positiva foi a adesão de Tina ao grupo (EUREKA!!!). Na verdade, ela chegou à sala para se justificar da ausência na semana anterior bem como para dizer que talvez saísse do CMEI, pois sua nomeação para professora na SEME saiu no final de semana passada. Nesse sentido, ela deveria escolher entre assumir uma sala de aula e, conseqüentemente, deixar o CMEI, ou ficar lá, desde que a SEME garantisse sua vaga até o final do ano, coisa que, segundo ela, seria o ideal em virtude dela achar complicado ter de assumir uma turma assim, já quase no final do ano (39-2007). A partir de então, as coisas ficaram ainda piores visto que Tina desapareceu do CMEI: Chego por volta das 13h e fico, para variar, esperando a chegada dos participantes do grupo de estudos. Kely chega e me avisa que Joana não veio trabalhar hoje, logo só poderemos discutir com Ana, já que Tina “[...] desde a semana passada não dá notícias!”, fala de Kely. Comento achar isto muito complicado.... [...] Lembro a Ana que Tina ficou de ajudá-la neste trabalho, porém Ana diz que ela não a ajudou. Olho para Kely que afirma: “Estranho este comportamento dela, a gente para resolver um problema pessoal é orientado a fazer isto em horário alternado ao trabalho. Como é que ela falta sem dar a menor satisfação!” Digo-lhes que, se acharem pertinente, poderia ligar para a SEME a fim de saber o que está acontecendo quando fico sabendo que Tina, no início da semana anterior, procurou a chefe de Educação Especial da Seme a fim de pedir para ficar no CMEI. Ela disse-lhe ver possibilidades desde que Tina fosse lá entregar a sua documentação, o que ela não fez, de forma que orienta a escola a ligar para a casa dela a fim de saber por que não vem trabalhar (24-9-2007). No intuito de ouvir/entender e, quem sabe, ajudar de alguma forma a Tina, marquei com ela alguns encontros com vistas a trocarmos algumas idéias, mas ela faltou a 90 todos eles. Apesar dos “bolos” recebidos, fiz uma última tentativa, solicitando-lhe que me entregasse uma autonarrativa para que, pela via escrita, pudesse conhecêla melhor, porém ela não me entregou o texto. Então entendi o momento e respeitei sua posição. No entanto, gostaria de destacar o quanto essas ações, bem como a permissão para que elas ocorram, não instituem práticas educacionais inclusivas, ao contrário, reafirmam práticas segregadoras que há muito buscamos ressignificar ao receber alunos com nee, nos contextos educacionais. Neste aspecto, penso que tanto a SEME, quanto a Direção Administrativa, bem como a pedagoga Kely, de forma direta e/ou indireta, corroboraram com estas ações, na medida em que não dialogaram entre si, para acompanharem tal processo. Uma outra questão para dialogarmos remete-se, mais uma vez, ao lugar e a forma instituídos no/com o grupo acerca da formação continuada em contexto. Em meu entender, o excesso de atraso que nossos planejamentos sofriam, associado à falta de leitura dos textos escolhidos para serem lidos, apontavam a necessidade urgente de se refletir acerca dessas ações. Para tanto, apoio-me numa fala de Caparroz e Bracht (2007), ao dissertaram acerca do tempo e o lugar da didática no contexto das aulas de Educação Física, quando nos provocam a refletir sobre o quanto a prática pedagógica se encontra atrelada a uma ação ético-política em que o compromisso com a formação, inicial e continuada, é uma premissa: [...] o exercício da docência demanda do processo de formação (inicial e continuada) dos professores que este garanta a apropriação e (re)construção dos conhecimentos necessários para desenvolver a prática pedagógica com qualidade. A segurança com que a autoridade se move implica uma outra, a que se funda na sua competência. O professor que não leva a sério sua formação, que não estuda, que não se esforça para estar à altura de sua tarefa, não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe (CAPARROZ; BRACHT, 2007, p. 31). Tentando compreender tal situação, apoio-me num estudo de Dias (2003), ao analisar um possível mal-estar vinculado à condição de ser professor, quando ele não consegue autorizar-se nessa ação, produzindo, assim, um discurso melancólico que o imobiliza. De acordo com esse estudo, ao articular a escola, a educação e a sociedade, de forma a chamar a atenção para o modo como as transformações da 91 educação têm atingido a figura do professor nesse contexto, reafirma o fato de a escola apresentar-se ainda como um espaço promovedor de aspectos da sociedade hegemonicamente instituídos, embora seja ela passível de modificações, em virtude da existência de contradições inerentes à vida. O autor enfatiza a necessidade de o professor enxergar-se nessa dinâmica, para conseguir lidar com essas questões, pois acredita que o mal-estar que o acomete seja fruto tanto de conflitos pessoais relativos à sua subjetividade diante da ação educativa quanto das contradições produzidas na/pela sociedade. Dando continuidade, Linhares (2001a) nos alerta sobre os diversos espelhos produzidos sócio-historicamente nas/pelas escolas, ao refletirem imagens que muitas vezes nos (de)formam, ou seja, projetam sobre nós/acerca de nós imagens em que não nos reconhecemos. Tais imagens são fabricadas pelo espelho do Estado, quando impõe políticas educacionais que visam a refletir uma imagem fracassada dos professores, sem oferecer-lhes oportunidades de escuta ou mesmo possibilidades de mudança de rumo e, também, pelo espelho de pesquisadores negativistas, quando destacam um quadro pessimista do contexto educacional, deixando evidentes somente as dificuldades em detrimento das possibilidades que apresenta. Assim sendo, se desejamos pensar uma prática educacional inclusiva, não podemos nos furtar às nossas responsabilidades cotidianas, sob pena de nos tornar espelhos de nossa própria falta de compromisso. E, nesse sentido, apesar de não pretender buscar um culpado para algumas ações questionáveis naquela paisagem, destacarei, a seguir, conforme a notação do diário de campo, o quanto esse conjunto de fatores influenciava na lógica organizativa daquele CMEI: Dirijo-me, então, à sala de informática para organizar e formatar a introdução do texto, ficando lá por toda a tarde. Ao longo do período em que lá fiquei, pude observar algumas situações que gostaria de comentar antes de discutir sobre o texto propriamente dito, como o fato de que, enquanto lá estava, fui interrompida por Amélia(substituta de Tina), pois ela desejava ficar lá com uma criança. Ofereci para que ela lá trabalhasse, porém disse-me que poderia fazer a mesma coisa em outro lugar. Neste ponto, retomo a questão: Cadê Tina? Ultimamente tinha mais visto Amélia lá do que ela. Será que isso é recebido de forma natural pelas crianças que precisam desse serviço? 92 Outra coisa: por que o atendimento na sala de informática e não na sala de aula? Não era essa a política recomendada pela Divisão de Educação Especial do Município. [...] Outro fator a se comentar refere-se ao fato da sobrecarga sofrida pelos pedagogos nesse CMEI, haja vista o fato deles terem de ocupar mais de uma função, isto é, são coordenadores, supervisores, diretores, enfermeiro e, quando dá, são também pedagogos! Hoje, mais do que nunca, tive a certeza disso, pois, todas as vezes que Kely me procurava para ver o texto que estávamos organizando (e olha que estávamos “escondidas” na sala de informática), vinha alguém para dizer que tinha uma pessoa chorando querendo vê-la; uma criança que a mãe a havia impedido de ver, alguém pedia um quadro para ser exposto na apresentação, pedir de tudo e um pouco mais. Por fim, criei coragem e conversei com ela sobre este assunto visto que, a meu ver, isso comprometia sua real função naquele CMEI (12-9-2007). Em meu entender, esses exemplos produzem imagens (de)formadas sobre a vida, na medida em que desconsideram uma premissa maior que é a educação para o sujeito, em detrimento de uma ação descomprometida com princípios emancipatórios (SANTOS, 1999) que visam a educar o sujeito numa perspectiva ética, estética e política. Isso se configura, no caso de Tina, pela forma como conduzia suas ações didático-pedagógicas, reafirmando uma concepção nociva sobre a educação, cujos pressupostos desconsideravam princípios básicos como a relevância da afetividade, construída cotidianamente na/pelas relações sociais, em especial quando falamos de crianças com nee, em nosso caso, autistas, observando suas dificuldades de estabelecer laços sociais, associadas ao desconforto que lhes impõem as alterações das rotinas, que são desconsideradas por essa professora. Já em relação a Kely, entendo que, em virtude de ela se responsabilizar não só pela gestão pedagógica de sete turmas, mas, também, acumulando funções outras, como coordenadora de disciplina, auxiliar de direção, supervisora dos serviços terceirizados da cozinha, motorista, dentre outras, isso a impedia de exercer a sua principal função naquele espaço. Entendo que esta sobrecarga de funções prejudicava Kely, especialmente no que se refere ao acompanhamento pedagógico das práticas que ali se instituíam. Em meu entender, este contexto favorecia algumas praticas cuja falta de compromisso profissional era uma prática, conforme já relatado no caso da professora Tina. Em frente ao exposto, proponho como premissa a busca pelo envolvimento de todos nesse processo, no intuito de que compreendam essa dinâmica social, 93 considerando os conflitos que atravessam as implicações inconsciente de seus respectivos desejos, a fim de que se vislumbrem fissuras a serem preenchidas por caminhos que apontem a ressignificação do contexto da impossibilidade. Para tanto, precisamos operar no sentido de iluminar uma perspectiva educacional que renuncie aos modelos hegemonicamente cristalizados colocando em xeque tais pressupostos, em prol de possibilidades que operem em favor dos sujeitos/alunos nas suas mais diversas formas de se manifestar, sendo, por conseqüência, mais inclusivas. Nesse sentido, destacarei, no item que se segue, um movimento instituído no/pelo/com o grupo que, em meu entender, tece fios dessa perspectiva. 2.2 AS PRÁTICAS COTIDIANAS ATRAVESSANDO FRONTEIRAS AO ENCONTRO DE PROCESSOS INCLUSIVOS Buscando estabelecer pontes entre as considerações teórico-epistemológicas até aqui apresentadas em frente aos dados captados na/pela paisagem, percebo que, apesar da dinâmica singular que habitava aquele CMEI, tendo em vista o fato de algumas ações politicamente instituídas nem sempre se legitimarem de fato ou, num contexto mais nocivo ainda, tais ações dispararem movimentos diferentes e/ou contrários à sua intencionalidade inicial, gostaria de afirmar que, no contexto geral, o grupo se movimentou bastante na busca por um projeto inclusivo possível àquele momento. Ao me remeter ao contexto da paisagem investigada, percebia que tanto Joana, Ana quanto Kely, apesar de suas condições singulares, instituíram diferentes e interessantes práticas inclusivas, que acredito terem sido disparadas no/pelo grupo de formação, ao buscar trilhar caminhos pedagógicos inclusivos, considerando as crianças ditas autistas, pela via de ações coletivamente colaborativas, conforme alguns exemplos extraídos do diário de bordo apresentados a seguir: Episodio 6. Tecendo os primeiros fios Hoje, finalmente, terminamos de discutir o primeiro texto de nossa formação. Ufa! Apesar das intermináveis intervenções na sala, fomos firmes e não deixamos a peteca cair! A discussão foi interessante porque ao longo da leitura, tivemos condições de fazer algumas ponderações, tais como: 94 a necessidade de uma proposta de ação coletiva; a percepção que a criança tem acerca de quem interage com ela (no caso a professora); a influência do comportamento emocional do professor para/na criança; a importância da inserção lenta e gradual de regras sociais de convivência; a possibilidade de se oferecer atividades pedagógicas em outros espaços que não somente na sala de aula propriamente dita, buscando aí pistas que apontem por onde seguir; pensar estratégias pedagógicas baseadas no concreto; negociar sempre que possível, mesmo que seja para atender, a princípio, à intenção da criança; estimular os laços afetivos entre as crianças e, neste caso, explicar para o grupo sobre a condição desse aluno para que não haja uma interpretação de privilégio em relação à criança com autismos; atenção às alterações de humor (agitação, ansiedade, agressividades, entre outros) e, em caso do excesso, encaminhar a um especialista e, para finalizar, produzir um relatório o mais detalhado possível acerca de quem é essa criança. [...] Ao final, apresentei ao grupo as imagens de Miguel (o tempo só me permitiu mostrá-lo), pois defendia a idéia de que seu diagnóstico é discutível, apesar de saber que o nosso problema maior não é o diagnóstico em si, mas o que fazemos com ele. A minha intenção nessa ação era problematizar o fato dele só vir à escola três dias na semana, o que, a meu ver, era um equívoco, na medida em que ele nos mostra o quanto vem crescendo, mesmo nessas condições. Ao final das imagens, Kely virou-se e disse: “Graça, como as imagens são importantes para percebermos como as coisas estão se modificando né?” (18-4-2007). O destaque dado a esse episódio tem como premissa o fato de que, nós pesquisadores, ao primarmos por um entendimento de pesquisa, cuja ação seja pautada por pressupostos de colaboração, precisamos tomar os envolvidos neste estudo como sujeitos produtores de conhecimento. Entretanto, não podemos esquecer que isso se dá na/com/sobre a dimensão coletiva e contextualizada institucional e historicamente (PIMENTA, 2005). Logo, o tempo processual de tomada de conhecimento é muito singular, de forma que precisamos criar/propor/ousar várias formar para provocar os envolvidos a compreender e se envolver com esta proposta. No entanto, a partir do momento em que este movimento se dá, novos e múltiplos fluxos são disparados conforme os episódios que se seguem: Episódio 7. O movimento do/no grupo disparando novos movimentos [...] Tudo começou quando parei na porta de Ana para saber como Carla havia passado o final de semana após o incidente de sexta com a professora da sala ao lado. Carla me mostrou o roxo que ficou com a mordida de Mateus, dizendo ainda que, ao chegar em casa, chorou pra valer, pois ficou muito sentida com a forma como trataram Mateus. Neste instante, Ana chega agitada como sempre, pedindo-me ajuda na reunião que terá com a mãe de Mateus. Digo-lhe para contar comigo. Ela nos diz que teve de tomar remédios para dormir no final de semana de tão agitada que se encontrava e, como havia lido no texto de Baptista sobre a ação pedagógica de professor influenciando no comportamento das crianças autistas, sabia que isso poderia ter prejudicado Mateus bem como toda a turma na aula anterior, quando ele foi expulso da sala dos professores. 95 Para tranqüilizar, digo para não tomar as coisas somente para si, lembrando acerca de um livro lido por mim, neste final de semana, em que o autor discute o comportamento das crianças na educação infantil, de forma a ir alinhavando várias questões e o comportamento das crianças. Lembramo-nos da condição do pátio pequeno, cimentado, coisa, a meu ver, pouco favorecedora ao desenvolvimento das crianças, e que poderia também contribuir para tal agitação. Ana vira-se para mim e comenta o quanto precisamos ler para poder crescer profissionalmente. Em seguida, solicita-me o livro a fim de tratar disso com mais afinco, mas afirma que, após nossa conversa, tentará se conter para não perder a razão ao conversar sobre isto com a diretora. Fiquei de levar no final do horário o livro lido por mim sobre educação infantil denominado: A práxis na formação de educadores infantis (SOUZA; BORGES, 2002), sem compromisso, para ela ler, quando puder (22-5-2007) Para mim, ouvir essa fala de Ana era como fazer um gol ao final de uma partida que, inicialmente, não tinha começado bem! Afinal, despertar no/com o grupo, em especial com Ana, sobre a importância da formação continuada para a práxis pedagógica do professor era muito importante para mim. Por outro lado, o fato de Ana estar me procurando para, não só falar sobre sua formação, mas, também, de suas angústias e receios, me dava a certeza de que, de alguma forma, já havia conquistado a sua confiança e isso não se limitava a ela. Aos poucos fui percebendo que outras pessoas do grupo tomaram aquele espaço, coletivamente instituído, como um lugar em que pudessem falar sobre si, professor, mas também e, principalmente, sujeitos. Episódio 8 Os diversos outrosnovos caminhos percorridos no/com/pelo grupo Hoje, apesar de Ana e Tina não terem comparecido ao nosso encontro marcado para as 14h, o mesmo começou pontualmente às 14h30min com a presença de Joana, Sandra, Kely e Eu. Conseguimos sentar e discutir um pouco acerca da contribuição que a literatura pode fornecer à formação dos educadores/as, especialmente no que tange aos processos de inclusão socioeducacional de crianças que apresentam necessidades educacionais especiais. Iniciamos a discussão do capítulo do livro: ‘Autismo e Educação’, organizado por Cláudio Roberto Baptista e Cleonice Bosa, que apresenta um artigo, escrito por Hugo Bayer, que discute sobre o autismo infantil e os contextos pedagógicos, intitulado: “A criança com autismo: propostas de apoio cognitivo a partir da ‘teoria da mente”. Na verdade, ficamos apenas no parágrafo em que ele discute a dificuldade de representação mental dos autistas, em relação a relações socioafetivas, pois, a nosso ver, não se enquadra no perfil de Miguel. A meu ver, esse encontro foi bem proveitoso para o grupo, bem menos pela discussão teórica, mas por ter me dado condições para saber um pouco mais acerca do contexto de vida de kely e suas expectativas acadêmicas/profissionais já que, num dado momento da conversa, ela se permitiu falar que tem expectativa de fazer um mestrado em Educação, apesar de, em 98/99, ter sido preterida numa entrevista num situação que para ela não parecia clara. 96 [...] Para não desviar do tema no momento, disse a Joana e a Kely que o PPGE era um espaço voltado a pessoas como elas e, que nesse sentido, elas precisavam se organizar e sistematizar suas idéias e/ou intenções de pesquisa, colocando-me inteiramente à disposição delas para tal (6-6-2007). Outro interessante movimento a se destacar acerca da inclusão foi a construção coletiva de um texto (ANEXO A) intitulado: Experiências instituintes colaborativas forjando práticas inclusivas na educação infantil: um relato de experiência, que foi apresentado no seminário de dez anos do Núcleo de Educação Infantil (NEDI), no qual se buscou dissertar acerca das experiências instituintes colaborativas como possibilidade de inclusão de crianças com diagnósticos de autismo em turmas finais de um Centro Municipal de Educação Infantil, localizado no município de Vitória, no Estado do Espírito Santo. Apesar de reconhecer que, pela lógica liberal/capitalista em que vivemos, sempre nos sentimos em débito, achando que poderíamos ter feito muito mais do que produzimos coletivamente, concebo esses movimentos como uma interessante pista instituída no/pelo grupo, no intuito de minimizar algumas estratégias de resistência que se forjaram diante do aprisionamento que acomete algumas instituições escolares, uma vez que esse espaço se constitui como premissa maior na busca de imperativos de justiça, liberdade e paz, que nos tornam imbricados uns com os outros de forma a nos responsabilizar por uma história que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, apesar dos riscos/abismos que essa perspectiva nos impõe por trilhar caminhos múltiplos. Nesse sentido, articular coletivamente o tempo processual de cada um dos habitantes foi, para mim, reconhecidamente, um grande exercício, já que trabalhar na/com a diversidade exigiu-me uma movimentação constante, no sentido da humildade, da paciência, da busca pelo encantamento com/na formação, isto é, da reavaliação de paradigmas muitas vezes em mim cristalizadas, acerca do que se constitui ser/estar educador na atualidade. Os trechos apresentados a seguir, extraídos do diário de campo, visam a contextualizar como nos organizamos para produzir o texto apresentado nesse Seminário, considerando o fato de sermos pessoas cuja lógica de sistematização de ações era bastante díspar: Hoje irei ajudar ao grupo de professoras a escrever a experiência que estamos construindo coletivamente para apresentar no Seminário de Educação Infantil a ser realizado na UFES. Assim, logo que chego, sou avisada por Kely que todos irão participar da elaboração do texto. Joana e Kely 97 disseram até que já escreveram algumas linhas. Dirijo-me, então, à sala de informática para organizar e formatar o texto, ficando lá por toda a tarde [...]. Em relação ao texto, organizei-o de forma que eu o fundamentasse teoricamente e as professoras, estagiárias e pedagogas apresentassem suas impressões sobre a experiência vivida com a inclusão daqueles alunos/as e, todas juntas, construíssemos as (in)conclusões finais. Quando Kely leu a introdução disse que percebia o quanto precisamos estudar para podermos produzir um texto de forma academicamente correta. Percebi que Ana também se sentiu implicada, visto comentou: “É, como a gente precisa trabalhar a escrita, né?”. Disse às duas que a responsabilidade maior com a parte teórica do texto era minha, afinal, eu era a doutorando ali, né? Porém comentei também que estava me sentindo mal, pois desejava que elas se reconhecessem no texto, isto é, que o texto também tivesse a “cara delas” e que talvez, na ansiedade, eu tivesse exagerado no tom. Assim, combinamos que segunda-feira, organizaríamos juntas o texto para que ele tivesse, realmente, uma formação coletiva (12-9-2007). Hoje, conforme combinado, era o dia em que organizaríamos o texto coletivo para inscrevê-lo no evento sobre a Educação Infantil. Havíamos nos organizado de forma que cada uma digitaria sua parte do texto no final de semana a fim de juntas, hoje, editarmos o texto no formato solicitado pela organização do evento. Todavia, infelizmente, nenhuma delas conseguiu trabalhar seus respectivos textos. Confesso que, fiquei bastante chateada com esta postura visto que desejava muito que as cosias acontecessem e, neste sentido, não consegui disfarçar minha decepção! Kely ficou a me olhar e,inicialmente, não via outra saída se não desistir, afinal, já era segunda-feira: o único dia que o grupo teria para, juntas, sentar e discutir o texto. Para piorar, Ana e Joana desceram quase meia hora atrasadas, por voltas das 14h25min. Eu, bastante aborrecida, questionei, então, o grupo indagando se elas desejavam, mesmo, apresentar o trabalho? Kely respondeu que sim, porém devolve para mim a responsabilidade, perguntando-me se eu tenho uma idéia sobre o que fazermos? Digo ao grupo que não tenho, afinal, a minha sugestão era que elas já estivessem com o texto organizado, para que, juntas, o editássemos dando a “cara” do grupo e não somente a minha. Ana, apesar de reconhecer que nada fez, lembra-se de ter digitado a avaliação de Mateus em seu pendrive, de forma que isto poderia ser a sua parte no texto. Joana afirma que nem sabia que era para ter digitado o texto em casa, e Kely assume que não ter deu conta de fazer sua parte. Eu, então, digo ao grupo, não fazer sentido o texto ser feito só por mim, afinal não era esta a intenção, mas, sim, uma construção coletiva acerca da nossa experiência. Proponho ao grupo que, se elas garantissem a digitação de seus respectivos textos, entregando-o a mim até o final da tarde, eu poderia organizá-lo em casa, durante à noite, para que elas, dessem uma olhada no dia seguinte. Todas aceitam a sugestão e Ana passa a avaliação de Mateus para o meu Laptop, a fim de eu transpô-lo ao texto, enquanto Kely e Joana buscam alguém para digitar suas respectivas partes. Em casa, com mais calma, tento organizar o texto, porém tenho a idéia de passar para Kely a parte restante do texto, pois, penso que ele deveria ter outrasnovas caras. Até porque ela,desejava apresentá-lo, caso ele fosse aprovado. Então, ao retornar ao CMEI, entrego a Kely o CD com a parte do texto que trabalhei e sugiro a ela que insira sua parte e a de Joana no texto. Kely aceita meio que sem opção e combinamos de ver o texto no dia seguinte, porém, quando chego lá, ela, novamente, me diz que “não deu conta” de organizá-lo, mas promete fazê-lo ainda naquela tarde de terça-feira para o dia seguinte (17-9-2007). Chego ao CMEI para acompanhar a sala de Ana. Todavia, antes de subir, vou encontrar-me com Kely a fim de saber como ficou o texto. Lá chegando, recebo a boa noticia de que ela havia organizado o texto e que só faltava agora inscrevê-lo na Ufes. Como forma de fazer os ajustes, solicito, então, o texto, para fazer a verificação e percebo que o mesmo tem aproximadamente 17.000 caracteres, sendo que o limite é de 10.000. Assim, fico, ao longo da tarde, organizando-o de forma a atender ao limite sugerido. Imprimo o material, gravo no 98 CD, considerando que o programa do computador do CMEI é Linux, que é um programa diferente do Word e isso complica bastante todas as minhas tarefas (19-9-2007). No intuito de analisar esses trechos, retomo Oliveira (2003), ao pesquisar o processo de reprodução-transformação na escola, quando afirma que a noção de sujeito se constitui também pelas práticas institucionais e delas é constituinte, no entanto a realidade neoliberal perversa de apropriação da força de trabalho humano nos leva, muitas vezes, a buscar estratégias de sobrevivência que, ao invés de nos libertar a fim de que possamos, de fato, gozar do direito à vida, somos, com freqüência, capturados em armadilhas sutis e veladas que somente nos permitem refletir/reproduzir o que nos é determinado. Entretanto, para finalizar tais considerações, reporto-me ao fato de que a escola, como a vida, não se explica e sim se vive. Logo, no que tange à paisagem investigada, ousaria afirmar que, apesar de, ou em virtude daquele contexto, captei brilhantes imagens, por mim concebidas como experiências instituintes (LINHARES, 1997, 2000, 2001a), cujo ponto de partida é o conhecimento válido não somente para a ciência, mas, principalmente, para as singularidades presentes em nossas múltiplas formas de ser/estar no mundo. Nesse sentido, a autora nos convida a operar com a escola que somos, estabelecendo as possíveis conexões entre a vida e a sociedade ali engendradas, considerando suas interfaces econômicas, culturais, éticas, políticas, entre outras, sempre por meio da negociação, na qual a observação/reflexão/observação singular e coletiva constitua uma prática cotidiana significativa, que promova religações entre as diferentes esferas de atuação humana, a fim de ampliarmos nossas lentes para dar visibilidade às potências criadoras que ali existem. 99 3 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO:17 A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE HUMANA EM FRENTE AOS PROCESSOS DE INCLUSÃO EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Nós todos sabemos a importância que Lacan dá a esse tempo particular de reconhecimento pelo Outro da imagem especular, esse momento onde a criança se vira para o adulto que o carrega, que o segura, e onde ela lhe demanda por esse olhar confirmar isso que ela percebe no espelho como assunção de uma imagem de domínio ainda não adquirido (LAZNIK, 2004, p. 53). 17 Título inspirado num artigo de Marie-Christine Laznik (2004) . 100 Na tentativa de entender os processos de subjetivação instituídos na/pela paisagem investigada, seguirei os fluxos de Miguel e Mateus como foco de análise neste capítulo, a partir das contribuições das teorias psicanalíticas de Freud e Lacan. Esta movimentação visa compreender não só essa estruturação, mas também em que medida a sexualidade18 institui em nós processos de humanização, de ordem consciente e/ou inconsciente, que tanto podem nos aprisionar em sintomas/neuroses que nos adoecem no corpo e na alma, quanto nos libertar, ao possibilitar-nos interpretar seus significados, muitas vezes inconscientemente deslocados. As falas fundadoras que envolvem o sujeito são tudo aquilo que o constitui, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura inteira da comunidade, e o que não só o constitui como um símbolo, mas o constitui em seu ser. São leis da nomenclatura que determinam – até certo ponto – e canalizam as alianças a partir das quais os seres humanos copulam entre si e acabam criando, não apenas outros símbolos, mas também seres reais (LACAN, apud VASQUES, 2003, p. 48). A opção por este debate se fundamenta no fato de, algumas denominações dadas culturalmente às crianças ditas com nee, ao ecoarem nos contextos sociais, em especial nos CMEI’s, tornam-se estruturalmente nociva a estas crianças. As narrativas anteriores reafirmam tal concepção como quando, uma mãe acusa Mateus de ter prejudicado seu filho no entendimento de uma atividade escolar, o encaminhamento da professora Tina, para que não levássemos Miguel e Mateus ao parque da Vale do Rio Doce, ou mesmo, a fala da mãe de Mateus quando afirma que ele se encontra no seu dia de autista. Os estudos de Albuquerque (2001) reafirmam essa posição, ao colocar em discussão a Psicanálise como uma modalidade de saber, cuja especificidade, delimitada inicialmente por Freud, foi trilhada por concepções pautadas na tradição iluminista, com formulações baseadas no movimento romântico, como instrumento para se questionar a cultura, o modo de fazer ciência e os processos literários. Para a autora, a espinha dorsal do trabalho de Freud centra-se na concepção de uma 18 Para Freud, a sexualidade não se reduz a um ato genital orgânico, mas, sim, a um ato psíquico, que se refere a todas as formas de signos e símbolos de vida social e cultural (LECHTE, 2003; RONDAS, 2004). 101 subjetividade dividida, atravessada por conflitos e contradições irreconciliáveis, por afetações dissonantes, num permanente devir. Corroborando essa perspectiva, Vasques (2003) diz ser a educação um caminho nos múltiplos processos de inserção do indivíduo na sociedade, pela via do fornecimento de objetos do mundo simbólico que lhe permitam constituir-se como um sujeito inscrito em uma história singular/plural, cabendo, então, aos envolvidos nesses processos (educadores, pais, entre outros) oferecer elementos que possibilitem esse movimento. Assim sendo, tecerei considerações sobre a constituição do autismo no que tange ao conceito, terminologia, caracterização e principais representantes. Apoiar-me-ei, também, em algumas contribuições de Lacan, tendo como foco a constituição da subjetividade humana pela via da linguagem, simbolicamente construída na/pela cultura, considerando suas implicações na instauração das manifestações psicóticas e autistas e observando, também, como a noção psicanalítica de pulsão e a metáfora do estádio do espelho são delimitadoras nesse processo e o quanto um olhar de presença/aposta pode contribuir para ressignificar tal condição e, por conseqüência, favorecer os processos de inclusão socioeducacional das crianças focos deste estudo. 3.1 TECENDO FIOS NAS MALHAS DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O MERGULHO NA TEORIA PSICANALÍTICA A seguir, farei uma breve contextualização acerca de Miguel e de Mateus, no intuito de melhor compreendermos quem são estes sujeitos, considerando a paisagem em tela. 102 3.1.1 Miguel e sua tessitura instituída Miguel é uma criança de cinco anos pertencente à sala B do Grupo 5 do CMEI investigado. É aluno da professora Joana. Ele me foi apresentado como uma criança autista, com base no diagnóstico (discutiremos tal diagnóstico em capítulo mais adiante), da Apae/Vitória/ES, instituição a qual se encontrava vinculado no momento deste estudo. Sua freqüência ao CMEI era de três dias/semana, pois às segundas e quartas-feiras ele ia para a Apae, no mesmo horário de aula, a fim de ter um acompanhamento multidisciplinar. A escolha pelo horário foi, de acordo com a fala de sua mãe, em virtude de ele não conseguir acordar pela manhã. Segundo informações, Miguel era filho de pais separados e tem uma irmã por parte de mãe. No momento da pesquisa, seus pais se encontravam, além de separados, em conflitos bem delicados que interferiam significativamente em seu processo de desenvolvimento. Para sua mãe, Anelise, um dos motivos principais desse conflito residia no fato de o pai não aceitar a condição de seu filho, acusando-a de tê-lo mimado além da conta! Miguel estava há três anos naquele CMEI. Nos dois últimos anos, de acordo com os relatos de sua mãe e da pedagoga Kely, ficava pouco tempo em sala de aula propriamente dita optando pelo pátio ou, quando permanecia em sala, ficava sempre pelos cantinhos, evitando o grupo, jogava sempre os mesmos jogos: jogos da memória e de associação às formas. Conforme informações captadas em reunião com as professoras e a pedagoga, sua família demorou muito para levá-lo a uma avaliação mais detalhada acerca de sua condição, o que só se deu no final de 2006, comprometendo mais ainda seu desenvolvimento, no medida em que a inserção de Miguel em serviços multidisciplinares só se efetivou após esta avaliação. Em nossa primeira reunião coletiva, Joana me disse que Miguel falava somente algumas palavras, repetindo frases soltas (semelhantes ao desenho animado do Discovery Kids), reconhecia cores, formas geométricas, animais, figuras 103 semelhantes (mesmo com tamanhos diferentes), adorando jogos que tratavam desses temas. Em relação ao cotidiano escolar, Miguel, inicialmente, não se alimentava de nada que era oferecido, não sentava na rodinha, preferindo os cantos da sala e o pátio vazio, ficando sempre à parte em relação aos alunos/as, de forma a não interagir com os colegas, muito menos aceitava compartilhar os brinquedos. No horário do recreio, optava por ficar observando, a distância, tudo que ocorria, preferindo lugares altos com o corrimão da escada, janela ou telhado da casinha. Havia também momentos em que ele subia para sua sala ou ia para a sala de aula da professora Ana. 3.1.2 As tramas tecidas com/por/para Mateus Quando conheci Mateus, ele tinha cinco anos de idade e apresentava diagnóstico de autismo, de acordo com laudo do Instituto Veras/RJ. Ele era uma criança ativa, observadora e bastante carinhosa com as pessoas com quem se identificava. Mateus apresentava dificuldades para aceitar alguns limites e, nesses momentos, se auto-agredia fisicamente, bem como tentava morder a si e aos que procuravam contê-lo. Todavia, após acalmar-se, demonstrava uma profunda tristeza com o ocorrido. Sua comunicação limitava-se a alguns grunhidos, ocorrendo, principalmente, por meio da linguagem gestual e de rituais motores estereotipados, pela via excessiva de palmas que se acentuavam bastante quando se sentia ansioso e, quando contrariado, batia muito em sua cabeça. Outro fator que desejo destacar era uma insistência obsessiva na manutenção da rotina, por ele instaurada em relação à música, de forma que, todo dia, ao chegar à sala, sempre que podia, buscava o som, ligava-o bem alto numa mesma música, ficando a ouvi-la, se pudesse, por todo o dia, não permitindo a ninguém se aproximar do aparelho. 104 Quanto à sua produção, apresentava apenas rabiscos e, para produzir algo escrito, era preciso que pegassem em sua mão, apresentassem o local da atividade, para, em seguida, ele percorrer com os dedos a letra e depois rabiscava tudo por cima. Com o passar do tempo, Mateus foi descobrindo a escrita de seu nome conforme o relato que trarei mais adiante (FOTO 7) Foto 7. Mateus em sala de aula Com relação ao grupo, inicialmente aceitava apenas duas crianças da turma para interagir que, por coincidência, apresentavam traços físicos semelhantes aos dele, mas, com o passar do ano, ampliou esse leque, porém sempre focando crianças cujos traços eram semelhantes aos seus. Quanto aos professores, além de sua sala de aula, Mateus aceitava a professora de Artes, mas interagia com a de Educação Física do primeiro semestre. Segundo a fala da professora Ana: “Acho que é porque ela não tem muito contato físico com ele. Ela é ótima, mas é mais fechada e Mateus adora ser abraçado, Já com a professora de Artes, como ela pega, abraça e aperta, ele, Mateus, vai à aula!”. Mateus ficava pouco tempo em sala de aula e, quando lá estava, resistia em sentar na rodinha com o grupo e, quando o fazia, logo se levantava, preferindo ir para a rampa e/ou para o pátio. Na hora do recreio, não permanecia lá. Acreditávamos que, por apresentar uma acuidade auditiva muito desenvolvida, a agitação e o barulho do pátio o incomodavam. De acordo com falas de sua mãe, Mateus era capaz de captar a chegada de alguém pelo simples toque numa maçaneta de porta. 105 Sem sombra de dúvida, Mateus foi uma das crianças que mais sofreu preconceito ao longo dos momentos em que lá estive, inclusive por algumas professoras do CMEI que o viam como uma criança autista e, não como o aluno Mateus, principalmente por ele apresentar com mais evidências alguns movimentos que, socialmente, delegamos aos autistas. Para efeito melhor compreendermos tais considerações, retomaremos o debate que perpassa o autismo, a psicanálise e os processos educacionais, trazendo como pano de fundo algumas narrativas de uma experiência vivida acerca da inclusão socioeducaicional de duas crianças consideradas autistas num Centro Municipal de Educação Infantil na cidade de Vitória/ES, com vistas a potencializar dispositivos favorecedores aos processos inclusivos que ali se presentificaram. 3.2 AUTISMO E PSICOSE INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DESSE FENÔMENO A temática que perpassa as discussões sobre o autismo ainda nos é de profundo desconhecimento acadêmico, haja vista o fato de que tanto as ciências naturais quanto as ciências humanas ainda não chegaram a um acordo no que se refere à origem, evolução, avaliação e intervenção desse fenômeno. Entretanto, ambas as perspectivas coadunam com o entendimento da necessidade de uma equipe multidisciplinar para que possamos compreender a singularidade em que cada indivíduo que apresenta esse fenômeno nos impõe (AMY, 2001; BOSA, 2002). Ao direcionarmos tal discussão a paisagem investigada, o movimento de se conhecer/questionar/entender tal etiologia, se evidencio no desejo do grupo que me acolheu, visto que, antes mesmo de minha chegada ao grupo, já haviam eleito tal temática para balizar a formação continuada até então realizada. Com relação à sua evolução histórica, há registros de que, em 1906, o médico Plouller introduziu o adjetivo autista na literatura psiquiátrica, ao estudar pacientes esquizofrênicos em idade adulta com comportamentos de mutismo e indiferença. Em 106 1911, Eugen Bleuler, psiquiatra suíço, descreveu a síndrome da esquizofrenia, ao estudar o comportamento de um indivíduo que se apresentava “estando fora da realidade”, vivendo predominantemente sua vida interior. No entanto, o grande delimitador de fronteiras sobre o autismo, termo que é derivado do grego “autos” cujo, significado se remete ao conceito de si mesmo, ocorreu em 1943, quando um médico austríaco, radicado nos EUA, denominado Leo Kanner, dá evidência a essa terminologia, ao descrever um quadro específico de adoecimento infantil, e não mais do sintoma de esquizofrenia adulta, a partir de um estudo realizado com um grupo de 11 crianças gravemente lesadas com certas características comuns em relação à interação social, as quais identificaram uma inabilidade no relacionamento interpessoal, na aquisição e uso da linguagem, na manutenção de rotinas, porém sem comprometimentos maiores no campo motor e cognitivo (BOSA, 2002; KUPFER, 2001). Outra significativa contribuição para os estudos sobre o autismo deu-se a partir de1944, com Hans Asperger, também austríaco, que aprofundou questões iniciadas por Kanner no campo do comprometimento orgânico, da fixação do olhar, dos gestos, da fala e da atuação da família, ao descrever crianças bastante semelhantes. Direcionando nossas considerações para o campo conceitual, compreendemos o autismo como um fenômeno multidisciplinar caracterizado, primordialmente, por um conjunto de sintomas qualitativos que acomete as crianças, em geral, nos 30 primeiros meses de vida, no que tange à sua comunicação social, interatividade e comportamento, cuja incidência predominante se dá em meninos, na proporção de três a quatro vezes mais (AMY, 2001; BOSA, 2002; KUPFER, 2001; LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2004). A literatura aponta também outras características, como problemas nas áreas de comunicação e interação social e padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades factuais. Quanto ao isolamento em relação ao outro, predominantemente, mostra-se indiferente a qualquer tipo de contato físico. 107 Aprofundando um pouco mais, Leona Wing (FUNDO DE NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 1982, p. 20-21) classifica outros 13 sinais para caracterizar o autismo infantil, a partir de um estudo por ela realizado com 11 crianças com características de isolamento cujos comportamentos semelhantes eram: 1- Não respondem de forma adequada aos sons e, muitas vezes, são confundidos com surdos. 2- Não prestam atenção à linguagem falada. Aparentemente, não se dão conta de que tem significado. 3- Alguns não falam nunca. 4- Problemas articulatórios e com o tom de voz. 5- Não podem expressar por gestos seus desejos. 6- Usam o tato, olfato e paladar para explorar o mundo que os rodeia. 7- Não gostam do toque. 8- Apresentam pouca sensibilidade ao frio, calor ou dor. 9- Atitudes monotonamente repetitivas e necessidade de manter as coisas sempre iguais. 10- Boa relação com objetos que lhe interessam, podendo jogar com eles durante horas. 11- Todos tinham boas potencialidades cognitivas e fisionomia inteligente. 12- Fisicamente eram essencialmente normais. 13- Provêm de famílias bastante inteligentes. Conforme já defendido por Kanner, apesar de os estudos no campo da Epidemiologia apontar que 70% dos indivíduos com autismo apresentam deficiência intelectual (GILBERG, apud BOSA, 2002), não existem pesquisas suficientes que comprovem a associação do autismo à deficiência intelectual. Em meu entender, o que ocorre é um atraso no desenvolvimento humano em relação à aquisição de padrões culturalmente sistematizados, em virtude da dificuldade de interação social. Ao nos remetermos à terminologia do autismo, vários autores (BOSA, 2002; KUPFER, 2001; LEBOYER, 1995; RUBLESSCKI, 2004; VASQUES, 2003) reconhecem o quanto esse conhecimento é complexo e desafiador e se encontra em aberto, haja vista esse conceito atravessar diferentes classificações internacionais e, por conseqüência, diferentes concepções teórico-filosóficas acerca do desenvolvimento infantil, como afirma Amy (2001, p. 21): De cento e cinqüenta a duzentas publicações internacionais anuais testemunham igualmente este interesse, e as discussões em torno da classificação da síndrome autística deram lugar a debates apaixonados, opondo as diferentes teorias. Embora as classificações psiquiátrica internacional (CIM 10), americana (DSM III-R e IV) e a francesa (CFTMEA) partam todas da descrição sintomática de Kanner, elas não concluem de modo idêntico. A classificação francesa mantém o autismo dentro de uma perspectiva psiquiátrica da psicose infantil, enquanto a internacional e a 108 americana falam de ‘distúrbios invasivos de desenvolvimento’. Essas diferentes definições contribuem, elas também, para alimentar as discussões entre os profissionais de determinadas correntes educativas e da psicanálise. Em relação ao Brasil, adota-se a Classificação Internacional de Doenças (CID 10) publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que compreende o autismo como um Transtorno Invasivo de Desenvolvimento (TID) manifesto antes dos três anos de idade, caracterizado, de maneira geral, por problemas nas áreas de comunicação e interação social, bem como por padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades, que se manifestam, em geral, antes de três anos de nascimento. (AMY, 2001; BOSA, 2002; KUPFER, 2001; LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2004). De acordo com Araújo (2004), o National Center for Clinical Infant Program (NCCIP) propôs, em 1997, uma outra classificação, ainda não muito divulgada academicamente, que concebe tais transtornos com as mesmas dificuldades descritas nos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, porém destaca “[...] uma certa capacidade de manter relações afetuosas e interativas com seus cuidadores, lado a lado com um progresso razoável em seu desenvolvimento cognitivo” (p.45), denominados de “Transtornos Multissistêmicos do Desenvolvimento” que, quando identificados e tratados apropriadamente, permitem que as crianças que apresentam esse transtorno desenvolvam relações de afeto e proximidade com seus pares. No que tange às discussões que perpassam a etiologia do autismo e as psicoses infantis, como já citado, existem diferentes concepções teórico-filosóficas e, por conseqüência, diferentes concepções etiológicas que procurarei organizar para efeito de entendimento, em duas grandes correntes: as perspectivas organicistas pautadas nas ciências naturais que buscam sua gênese em fatores endógenos geneticamente determinados e, de outro lado, as perspectivas das ciências humanas que analisam esse fenômeno pelo viés comportamental. Todavia, nenhuma dessas perspectivas dá conta, sozinha, de responder às diversas questões que esse tema nos impõe, como aponta Araújo (2004, p.44): Apesar da descrição de Kanner ter identificado uma síndrome, as tentativas de um consenso em relação à compreensão de sua etiologia, tratamento e prevenção têm se mostrado impossíveis. As divergências não são 109 encontradas apenas por virem de diferentes saberes, como neurologia, psiquiatria, psicologia e psicanálise. Constata-se que além do fato de haver várias abordagens dentro de um mesmo saber, existem quadros muito variados, com múltiplos fatores convergindo para a determinação de cada um deles [...]. Assim, um único ponto de vista não consegue abarcar o tema, e tomar em consideração um lado da questão não elimina os outros. Considerar, por exemplo, fatores relativos à interação humana não exclui uma falha na condição física. Neste texto, tomarei como eixo norteador a segunda concepção etiológica, cujas interpretações se fundamentam nos estudos do comportamento humano, tendo na Psicanálise a sua grande representatividade, por acreditar que, indepedentemente das questões etiológicas, essa perspectiva possibilita compreender melhor a complexidade que atravessa esse fenômeno, ao refletir acerca da nossa condição de sujeitos faltosos19 inconscientemente inscritos na/pela cultura pela via do outro que nos serve, ao mesmo tempo, de suporte de si mesmo, como também de alteridade (CABASSU, 1997). Outra questão a se evidenciar é que, em momento algum, a Psicanálise nega a existência de possíveis alterações orgânicas que também podem promover um comportamento autista. O que está em jogo nessas considerações é uma tentativa de compreender essa estruturação para que, em seguida, possamos pensar saídas favorecedoras à inclusão social dessas crianças, como nos alerta Kupfer (2001, p. 51) “[...] de nada adiantará um organismo absolutamente são se não houver quem o introduza no mundo do humano, vale dizer, da linguagem”. Para tanto, faz-se necessário, compreender como se institui a constituição dos sujeitos na perspectiva psicanalítica freud-lacanaina, na busca por ressignificar algumas estruturas que se cristalizam de forma alienante, impedindo este sujeito de gozar do seu próprio desejo. 3.2.1 O efeito fundandor da palavra/linguagem na/para constituição do sujeito 19 Para Freud, o falo constitui uma representação psíquica inconsciente personificada pela falta do pênis tanto para os meninos quanto para as meninas. Sua instauração se dá pela via de uma operação de corte entre mãe e filho denominada Função Paterna, na qual aquele que ocupa esse lugar atua de forma simbólica, instaurando uma lei que interdita o incesto entre mãe e filho. Simbolicamente, acreditamos na premissa de que, ao consegui-lo, nos tornaremos sujeitos completos e não mais faltosos/castrados (RONDAS, 2004). 110 Ao analisar as principais produções acadêmico-científicas acerca da constituição do autismo e das psicoses infantis, considerando a perspectiva psicanalítica, identifiquei diferentes concepções e entendimentos acerca do conceito, diagnóstico e etiologia, visto que, também, não existe um consenso sobre o que se constitui por esse fenômeno. Especialmente em relação aos diagnósticos, algumas correntes psicanalistas acreditam que, para definirmos tal conceito, precisamos debater o entendimento construído acerca das estruturas humanas como mecanismos de defesa humana, pois segundo Kupfer (apud MARQUES; ARRUDA, 2007, p.116), “[...] a psicanálise entende o diagnóstico como o estabelecimento de algumas chaves de leitura orientadoras da ação terapêutica, e não como uma afirmação categórica e conclusiva a respeito do autismo infantil”. Nesse sentido, traremos alguns dos principais representantes deste debate, com vistas a retomar a discussão que atravessa os estudos da Psicanálise sobre a constituição dos sujeitos e a instauração dos comportamentos autistas e psicóticos, para que, em seguida, possamos compreender em que medida essas considerações podem nos ajudar a pensar os processos de inclusão socioeducacional de pessoas com nee, em especial de crianças autistas. Assim sendo, para além de Kanner, outras três significativas contribuições de base psicanalítica nos ajudam a pensar as discussões que perpassam o autismo, são os estudos de Bruno Bettelheim, ao relacionar a causa do autismo à indiferença da mãe. O debate tecido por Melaine Klein, considerada a criadora da Psicanálise com crianças, em especial no campo das psicoses, e as considerações de Donald Woods Winnicott, ao questionar a etiologia do autismo somente relacionada com questões de ordem fisiometabólica, por acreditar que o meio emocional que acomete os bebês, principalmente a interação mãe/filho, pode influenciar/refletir na forma como esse bebê se vê como um sujeito (AMY, 2001; ARAÚJO, 2004; COSTA, 2007; KUPFER, 2001; MARQUES; ARRUDA, 2007). No que tange a Bruno Bettelheim, a partir de 1944, ele produz interessantes contribuições a esta temática, tendo como eixo o autismo, a Psicanálise, o sofrimento humano e o isolamento autístico, tendo em vista o fato de ter ficado preso num campo de concentração no período de 1938-1939. Com base nos momentos de 111 isolamento e sofrimento que atravessavam sua vida e a de alguns prisioneiros, ele construiu a hipótese de que, [...] a criança encontra no isolamento autístico (como os prisioneiro de Dachau) o único recurso possível a uma experiência intolerável do mundo exterior, experiência negativa vivida muito precocemente em sua relação com a mãe e seu ambiente familiar (AMY, 2001, p. 35). A principal crítica à pesquisa de Bruno Bettelheim refere-se ao fato de que seus estudos abriram portas para teorias de extrema culpabilização dos pais, considerados os verdadeiros vilões do comportamento de seus filhos. Fato este polemizado pela própria Psicanálise, cujas diversas interpretações acerca dessa questão têm evidenciado a necessidade de se discutir com responsabilidade tal consideração, por reconhecer o quanto a presença familiar é fundamental nos processoS com crianças autistas. Outra precursora relevante nos estudos sobre o autismo é Melaine Klein que, no período entre 1932-1945, investigou acerca das emoções vividas pelos bebês ao nascer, tendo na alimentação o ponto disparador desses sentimentos numa interrelação em que esta criança se torna, ou não, um objeto de investimento libidinal desta mãe. Para Klein, é exatamente nesse momento que pode se instaurar uma estrutura autística (KUPFER, 2001; MARQUES; ARRUDA, 2007). Uma outra significativa contribuição de Melaine Klein, em relação à Psicanálise com crianças, refere-se à técnica de análise lúdica por ela criada, por considerar que, ao brincar, a criança traduz de forma simbólica todos os seus desejos e fantasias inconscientes (COSTA, 2007). Não poderia deixar de citar Winnicotti, cuja interpretação sobre o autismo nas crianças é concebida como fruto de imaturidade emocional que promove uma organização defensiva, que se instaura no início de sua vida, quando elas se vêem numa condição de desordem mental, promovendo a perda do sentido real e da capacidade de se relacionar com tudo que as cerca, dificultando o desenvolvimento das tarefas iniciais, promovendo agonia engendrada em virtude de falha na relação primitiva de identificação primária. 112 Especialmente no que se refere às psicoses, defendeu a tese do fracasso da relação mãe/filho como causa de tal distúrbio, todavia não desresponsabiliza o pai nesse processo, por acreditar que ele pode oferecer a essa mãe o apoio necessário a fim de que ela consiga restaurar a ordem subjetiva na vida de seu filho (ARAÚJO, 2004). Para além dessas considerações, uma outra questão a se problematizar refere-se ao fato de algumas correntes psicanalíticas situarem o autismo dentro de um quadro geral das psicoses infantis, todavia Jerusalinsky (apud KUPFER 2001) afirma que, atualmente, o autismo é compreendido com uma quarta estrutura associada às psicoses, neuroses e perversões. É interessante destacar que esse debate se inicia em Kanner, ao perceber que grande parte das crianças que investigou vinha de famílias extremamente inteligentes, cujas mães, coincidentemente, lhe pareciam frias e distantes. Todavia, em virtude do furor e protesto que essa idéia provocou, não houve o aprofundamento necessário à discussão. Para Kupfer (2001), o que se coloca em debate não são os sentimentos dessas mães, pois muitas apresentam profunda dedicação aos seus filhos, porém o que se procura problematizar diz respeito a uma função que muitas delas desconhecem exercer, ou mesmo não dão conta de exercer, pois são do campo do inconsciente. Não falamos de culpa, mas, sim, de responsabilidade, no sentido de oferecer à criança uma nova chance de se inserir no mundo da linguagem. Fato este que, com base nos dados produzidos na/pela paisagem, nos foi possível verificar nas ações das professoras envolvidas neste estudo. Entretanto, para melhor compreendermos tais considerações, retomarei Freud/Lacan, no que tange à constituição de subjetividade humana e suas implicações na instauração dos comportamentos autistas e psicóticos, para, em seguida, problematizarmos algumas situações por nós experenciadas acerca da inclusão socioeducacional das duas crianças ditas autistas no Centro de Educação Infantil. 113 De acordo com a teoria psicanalítica desenvolvida por Freud (1969), o homem não é o senhor de sua própria casa, uma vez que, nos processos de representação humana, ele se constitui de sujeitos divididos entre as estruturas que se encontram sob seu controle: a estrutura do consciente e as estruturas onde habitam os seus impulsos mais primitivos e que influenciam o comportamento humano de forma incontrolável − o inconsciente. Para a Psicanálise, portanto, somos sujeitos ignorantes de nossas próprias verdades, pensamentos e escolhas e nos constituímos cotidianamente em nossas inter-relações sociais, ou melhor, com/pelo Outro. O sujeito, em Psicanálise, é um sujeito vazio, descentrado, que sofre efeito do discurso do outro, de forma que as primeiras inscrições psíquicas que atuam nos bebês, no sentido da humanização, são inscritas por seus pais, que, por conseqüência, sofrem efeitos desses encontros e/ou desencontros, produzindo frutos futuros que, por sua vez, resultarão numa série de novas inscrições que se desdobrarão em novas conexões, a partir das primeiras inscrições, e cujas marcas poderão repercutir de forma singular nos processos de aprendizagem (KUPFER, 2001) Rozenthal (2003), ao analisar a Psicanálise pela via de uma definição do sujeito moderno, tal como ele foi concebido pelo pensamento das representações, vislumbrou contribuir para a busca de novas possibilidades de escuta dos indivíduos sobre si e sobre os outros. O autor reafirma que, somente após a admissão da autonomia da pulsão de morte com relação à sexualidade, é que os enunciados freudianos poderão viabilizar uma leitura capaz de valorizar a diferença singular dos sujeitos, possibilitando, assim, o entendimento dos processos de subjetivação. Para tanto, a relação com o outro poderá gerar um “campo paradoxal” facilitador dos processos de subjetivação, no qual a escuta clínica seria uma forma de minimizar o padecimento psíquico de nossos tempos. Como diria Lacan (apud GARCIA-ROZA, 1987, p. 147), “[...] o desejo do homem é o desejo do outro”, uma vez que este se realiza no plano imaginário, por referência ao outro ou à imagem e semelhança do outro, por exemplo, uma criança se forma a partir de seu espelhamento materno. 114 Ampliando o foco para o conceito de educar pela Psicanálise, Kupfer (2001) afirma ser esse o caminho para se inserir a criança na linguagem, potencializando-a para transmitir a demanda social aos sujeitos para além do desejo, constituindo, então, esse sujeito. Todavia, para que isso ocorra, é preciso que se instaure entre os envolvidos uma relação transferencial que abra portas para o mundo simbólico. Essa possibilidade de existência em um campo simbólico dá-se por uma inscrição num universo que escapa ao nosso controle, mas que nos marca profundamente em nosso inconsciente. Esse é o grande objeto de estudo da Psicanálise, uma vez que aí está a compreensão acerca do homem e de sua relação com o mundo. Qualquer evento/trauma que perpassa a vida dos indivíduos precisa considerar os seus significados retrospectivos no inconsciente, a fim de se compreenderem os possíveis deslocamentos desse inconsciente operando simbolicamente em uma outra instância, constituindo, assim, uma estrutura de significados denominada psique humana (LECHTE, 2003). De acordo com Kupfer (2001), as representações que se encontram deslocadas em nível inconsciente emergem a qualquer momento sob forma de uma força interna ao organismo, denominada de pulsão, cuja função seria a de restabelecer um estado anterior por motivos de forças externas. Ela se manifesta nas mais diferentes representações, pela via de sonhos, dos atos falhos, dos chistes, sob a forma de representações inconscientes, de sintomas, de repetições, entre outras. A pulsão se constitui de tensões psíquicas cuja energia vital, advinda do nosso psiquismo, engendra lutas que buscam utopicamente descarregar as tensões inconscientes de forma gradual e contínua, mas que nunca se esgotam. Por isso nos tornamos seres eternamente desejantes, que nunca nos satisfazemos por completo. Para Lacan (apud LAZNINIK, 2004), a busca por essa satisfação instaura um circuito pulsional, responsável pela nossa constituição como sujeito cujo percurso sempre retoma ao ponto de partida. Dando continuidade, Cassol (2008, no prelo) afirma que o circuito pulsional se instaura numa etapa bem inicial de nossas vidas, por volta de zero a seis meses de 115 nascido, período em que ainda não temos o domínio da linguagem, mas que nos marca para o resto de nossas vidas, em virtude de ser nessa etapa que o bebê se estrutura como sujeito desejante e falante. Todavia essa estrutura só se desenvolverá se o circuito pulsional e o estádio do espelho, desenvolvido dos seis meses a 18 meses, aproximadamente, se encontrarem respectivamente delimitados. Tomando a constituição do circuito pulsional como ponto de partida, entendo que a presença e a percepção desse circuito sempre será parcial, obedecendo a três formas: a ativa, em que o bebê age diretamente ao olhar do outro; a passiva, uma ação que se constitui passiva pela forma de atingir seu objetivo, mas também ativa; e a reflexiva, aqui compreendida como um “fazer-se” objeto de gozo do outro (CASSOL, 2008, no prelo). Assim, ao associarmos as demandas que emergem nesse circuito ao olhar e à voz do outro materno em relação a seus bebês, surgirá, ou não, uma demanda denominada estádio do espelho. Para Lacan (1983), essa metáfora, retirada do campo da ótica, representará o tempo de reconhecimento da imagem especular pelo outro, caracterizando-se pelo momento em que as mães instauram uma relação simbólica fundamental, cujo poder será decisivo para a estruturação psíquica dos filhos, visto que esse encontro irá oferecer aos bebês um sentimento de unidade, real e imaginário, que sustentará a base de sua relação com o mundo que o cerca. Nesse contexto, o estádio do espelho se inscreverá no momento em que a pessoa que exercer a função materna, ao receber seu bebê, pela primeira vez, projeta-lhe um olhar antecipadamente instaurado pelo desejo libidinal de aposta, tendo como movimento primordial a oferta do seio ao bebê e, conseqüentemente, quando esse bebê, numa tentativa de reafirmação da imagem que lhe é emanada, se vira em direção a esse olhar em busca do seio que lhe é ofertado, sempre acompanhado pelo olhar e pela voz da pessoa que exerce a função materna. Como afirma Cabassu (1997, p.29): Se nós retomamos o que Freud nos ensina sobre a experiência primordial de satisfação, sabemos que no momento da alimentação, o bebê absorve ao mesmo tempo em que o leite indispensável para a sobrevivência, um 116 conjunto complexo de sinais da presença materna, presença no sentido em que ela implica o desejo da mãe: seu olhar, sua voz, sua capacidade de reagir à postura do bebê atribuindo-lhe um sentido de entrar em comunicação com ele. De acordo com Lacan (1983), nesse interjogo de espelhamento mãe/bebê, é preciso que a mãe desvie seu olhar focado no bebê de para que ele consiga perceber o mundo que o cerca e, a partir de então, busque estabelecer uma interação com todo esse contexto. Caso isso não ocorra, poderá se instaurar uma condição de alienação tal que impeça o bebê de interagir com o mundo e, por conseqüência, favorecerá a constituição de estruturas autísticas, esquizofrênicas ou psicóticas, dificultando, assim, a sua inclusão social. Entretanto, é necessário que esta suposta mãe, primeiramente, deseje investir libidinalmente nesse bebê, todavia não se limite a ele, visto que o bebê só conseguirá estabelecer uma imagem de si e, conseqüentemente, sair da condição de alienação de si, a partir do que lhe é espelhado no/pelo outro. Para melhor compreender como a Psicanálise concebe esses fatores, apoiei-me em Lacan (1983) e em seus seguidores (CABASSU, 1997; KUPFER, 2001; LAZNINIK, 2004), ao discutirem as questões reais e imaginárias que habitam as estruturações humanas a partir da metáfora do estádio do espelho. Nesse sentido, existe a presença real de um vaso apoiado sob um suporte e exatamente embaixo desse vaso se encontra um ramo de flores fixado ao suporte. Em frente a esse suporte, há um espelho côncavo. Ao projetarmos as imagens do vaso e das flores para o espelho, o que veremos, de forma simbólica, é a idéia de um vaso contendo flores (FIGURA 1). Ao direcionarmos tal metáfora para a constituição dos sujeitos/bebês pela via do desejo do outro, podemos vislumbrar que a unidade real e imaginária de um bebê depende dessa condição de espelhamento. Condição esta fundamental para sua estruturação psíquica, como exemplifica Lazninik (2004, p. 43): [...] a imagem real, no caso essas flores que não estão lá e que parecem, todavia se encontrar dentro do próprio gargalo desse vaso. Alguém, um sujeito cujo olho estivesse convenientemente situado num cone formado 117 pela intersecção de duas retas que partem dos limites superiores e inferiores do espelho côncavo e que vêm se cruzar no lugar onde vemos formar a imagem real, na condição de estar situado a uma certa distancia deste conjunto formado pelo objeto real e essa imagem, veria os dois, como formando um todo, uma unidade. Eis a melhor representação que conheço para dar conta da complexidade que a constituição do corpo do bebê pode representar, a articulação entre sua simples realidade orgânica e o que eu chamo ‘olhar dos pais’ . Figura1. Metáfora do espelho pais’ FONTE: (LAZNINIK, 2004, p. 51-52). A partir do que foi posto acerca da constituição dos sujeitos promovendo comportamentos autistas e/ou psicóticos, fica claro que esse fenômeno, pelo viés psicanalítico, se constitui pela não instauração de um certo número de estruturas psíquicas que tem sua origem nos primeiros meses de vida dos bebês no momento em que se estabelece a função materna com essa criança. Poderíamos, então dar essa questão como algo da ordem da estrutura, logo irreversível. Portanto, deveríamos concordar com as posições segregadores que acreditam na impossibilidade de inclusão socioeducacional das crianças no ensino regular. Ledo engano. Acredito ser possível ajudar essas crianças a ressignificar tal estrutura, tendo a escola e seus representantes, em especial a figura do professor/a, uma importante função nesse processo. Em meu entender, os trechos que serão discutidos ao longo deste capítulo apontam essa direção, todavia Kupfer (2001) e Cunha (1990) nos chamam a atenção para a possibilidade de os professores poderem se apropriar do saber produzido pela Psicanálise nas suas relações com seus alunos, no sentido de potencializá-los. Para tanto, precisarão abrir mão de seus pressupostos hegemonicamente instituídos, 118 renunciando ao seu lugar narcísico e enganador de ideal-do-ego,20 que impede que esses alunos se tornem sujeitos de seus próprios conhecimentos. Afinal, esse lugar passa a ser concebido com características mágicas e fantasiosas aos olhos dos que desejam saber, supervalorizado de tal forma que os alunos chegam a amar seus professores mais do que a si mesmos, o que ameaça, assim, a sua existência. Para tanto, precisamos, primeiramente, defender como premissa, a necessidade de uma intervenção pedagógica que instaure, tanto nas crianças ditas com comportamentos autistas como também em seus respectivos familiares, estruturas que atuam em seus respectivos inconsciente. Todavia, não estou falando de qualquer intervenção, mas, sim, de um olhar que não se limita ao campo da visão; vai além, um lugar possível para essa criança, cuja escuta e olhar caminhem no sentido da presença, oferecendo-lhe palavras em torno desse berço, permeadas de uma aposta libidinal que ecoe nas representações maternas inconscientes e lhes permitam sair da condição de objeto para sujeito. Todavia, para que isso ocorra, Laznik (2004, p. 43) alerta no sentido de “[...] o que encontramos no espelho só se sustenta no que podemos reencontrar no olhar daqueles que nos amam”. Só assim, possibilitaremos a este bebê tornar-se um sujeito provido de um corpo instituído de uma unidade que lhe permita estabelecer relações com os seus pares, atuando, por conseqüência, em suas manifestações psicossomáticas, reconhecendo “[...] a importância da posição subjetiva do profissional que escuta e enuncia, pois em seu discurso haverá um impacto sobre a representação da criança no inconsciente materno, peça-mestra na construção do psiquismo dos sujeitos (CABASSU, 1997, p. 31)”. Nesse movimento, lançarei mão do poema de Ferreira Goulart denominado O espelho do guarda-roupa, quando nos convida a refletir sobre as múltiplas imagens por nós refletidas nos espelhos de nossas interações sociais. Espelho, espelho velho alumiando debaixo da vida Quantas manhãs e tardes diante da janela viste se acenderem e se apagarem quando eu já não estava lá? 20 Em Cunha (1990, p. 21), ideal-do-ego refere-se a uma instância intrapsíquica, resultado de identificações com os pais, substitutos e com ideais coletivos, que se transformam, em última análise, em um modelo interno a que o indivíduo procura conformar-se. 119 De noite na escuridão do quarto insinuavas que teu corpo era de água e te bebi sem o saber te bebi e te trago entalado de um ombro a outro dentro de mim e ameaças estalar? Estilhaçar-se com as tardes e as manhãs que naquele tempo atravessavam a rua e se precipitavam em teu abismo claro e raso. Espelho espelho velho e por trás do meu rosto o dia bracejava seus ramos verdes sua iluminada primavera Um homem com um espelho (feito um segundo esqueleto) embutido no corpo não pode bruscamente voltar-se para trás não pode juntar nada do chão e quando dorme é como um acrobata estendido sobre um relâmpago Um homem com um espelho enterrado no corpo na verdade não dorme: reflete um vôo Enfim, esse homem não pode falar alto demais porque os espelhos só guardam (em seu abismo) imagens sem barulho. Carregar um espelho é mais desconforto que desvantagem: a gente se fere nele e ele não nos devolve mais do que a paisagem Não nos devolve o que ele não reteve: os ventos nas copas o ladrar dos cães a conversa na sala Barulhos sem os quais não haveria tarde nem manhãs. 3.2.1.1 A palavra/linguagem ressignificando subjetividades Busco agora, contextualizar como alguns conceitos da perspectiva psicanalítica podem nos ajudar a olhar as experiências de escolarização de Miguel e Mateus tomando como ponto de partida o efeito fundador das palavras/linguagem, operando de forma significativa e promovedora para os processos de inclusão socioeducacional dessas duas crianças caracterizadas como autistas no Centro Municipal de Educação Infantil, na cidade de Vitória/ES, onde se deu este estudo. Para tanto destacarei situações vivenciadas com/pelas duas crianças, tentando analisar em que medida nossas ações, instituídas no decorrer deste estudo, favoreceram-nas no sentido de se tornarem um sujeito provido de uma unidade, saindo da condição alienante de objeto. Minha relação com Miguel foi se constituindo aos poucos. Inicialmente ele não permitia que eu me aproximasse. Ficava, inclusive, se escondendo de mim, quando eu tentava registrar o seu cotidiano. Todavia, com o passar do tempo e, na medida em que adquiriu confiança em mim, ou, como diria Laznik (2004. p. 55), “[...] 120 reconheceu em meu olhar o sentido da presença[...]”. Conforme evidenciam os trechos abaixo extraídos do diário de campo, Miguel passou não só a me procurar nas atividades em sala como também no recreio, como se buscasse em mim um apoio: Episódio 1. A espera pela voz da sereia 21 [...] Ao se dirigir livre pela sala, ele se depara com uma revista passatempo da Mônica, personagem com que ele muito se identifica nos gibis. Miguel pára e começa a olhar a revista. Imediatamente sugiro a Sandra que lhe ofereça lápis e borracha para ver se ele se interessa pelas atividades, o que acontece de fato. Miguel começa a pintar e, em seguida, busca apagá-las. Aproximo-me de Sandra e comento com ela que acredito que essa possa ser uma pista em relação ao seu processo inclusivo. [...] Quando Miguel perde o interesse pela atividade, ele passa a caminhar um pouco agoniado pela sala. Observo-o tentando pegar um jogo. Eu o ajudo e ele começa a brincar de desmontar todas as peças e guardá-las numa vasilha. Fico brincando de esconder algumas peças dele, deixando-o descobrir em qual das mãos ela está. Entretanto, Miguel não queria que ninguém pegasse as peças, inclusive eu. Num determinado momento, distraio-me, paro de brincar com Miguel e começo a olhar para a sala de forma evasiva. De repente, alguém pega na minha mão e percebo que é ele chamando minha atenção para brincar com ele. Volto a interagir com Miguel, porém, Joana chama todos para guardar seus brinquedos, lavar suas mãos e ir lanchar (20-4-2007). Analisando o episódio acima, observo que, a partir do momento em que se estabeleceu um olhar presencial entre mim e Miguel, as coisas se modificaram significativamente, visto que este movimento favoreceu-lhe sair da condição alienante de objeto para tornar-se sujeito do desejo do outro. Isso somente ocorreu porque Miguel pôde perceber nesse olhar o que Laznik (2004, p43) chama de “[...] olhar daqueles que nos amam [...]”, tanto que esses momentos foram se repetindo ao longo em outros, conforme o relato que se segue abaixo, a partir do diário de campo: Episódio 2. O reconhecimento da palavra/linguagem [...] hoje, no recreio, as crianças estavam “aprontando” alguma coisa com Miguel, pois de repente, ele saí correndo meio aflito lá do final do pátio, vindo em minha direção. Eu o acolho, tento saber o que aconteceu, mas ele nada me diz. Pego pela mão e vou até o grupo perguntar o que ocorreu, todos se dissipam e o que percebo é que as crianças deveriam tê-lo colocado no balanço mas ele, de alguma forma, caiu. O interessante é que Miguel, a partir de então, ficou o resto do tempo ao meu lado, como se desejasse que eu o 21 Título inspirado num artigo de Marie-Christine Laznik (2004). 121 protegesse, ficando a buscar contato com o meu corpo como um gatinho buscando carinho em seu pêlo (16-5-2007). Procurando compreender os motivos de tal encontro, acredito que Miguel identificou em mim um reconhecimento pessoal, ou melhor, o olhar que lançava para/sobre ele se encontrava embricado por afetos e emoções, cujas representações instauradas em nível inconsciente, provavelmente estavam implicadas àquela condição, como nos lembra Jean-Luis Le Grand (apud BARBIER, 2002), ao dissertar acerca da implicação “implexa” e o envolvimento do pesquisador na/pela pesquisa num contexto científico, filosófico e, também, mitopoético. É importante destacar que, para além das questões afetivas que se estabeleciam entre nós, ao me permitir conhecê-lo melhor, tive, então, condições concretas para pensar, juntamente com Joana, possibilidades pedagógicas inclusivas para Miguel, conforme os exemplos que se seguem, extraídos do diário de campo. Hoje foi um daqueles dias em que acreditamos que as coisas não vão mudar, porém, meio que de uma hora para outra, uma pequena gotícula de água cai e provoca uma tempestade, principalmente em minhas idéias.Tudo começa quando chego à sala de Joana e inicio mais um dia de observação coletiva. Como na semana passada, Miguel havia faltado na quinta-feira, meu dia para acompanhá-lo em sala. Havia 15 dias que não nos víamos e senti, logo de cara, que isso faria a diferença. Para não piorar a distância, fui me aproximando dele aos poucos, entretanto sentia que tinha uma finalidade ali que não era só ficar auxiliando Joana em coisas do cotidiano. Não que não valorize essas ações, porém, como diz Kastrup (2007), era preciso uma atenção aberta aos fluxos que ali se presentificavam, entretanto, buscava manter-me concentrada em meu foco, se é que isto é possível! Em um determinado momento, Joana me diz que precisava colocar em dia algumas atividades com as crianças, em virtude de tê-las deixando de lado por conta da apresentação da mostra cultural. Ela, então, distribui uma atividade de Matemática às crianças, explicando inicialmente como fazer. Percebo que Miguel, apesar de fingir estar lendo um livro, presta atenção à sua explicação. Quando todos começam a fazer, eu o chamo para sentar-se à mesa de Sandra que o ajuda com a atividade. Pela primeira vez, ele deixa que ela pegue em sua mão para realizar a tarefa. Chama minha atenção a forma indiferente com que Miguel pega no lápis, como se não tivesse nenhuma intimidade com o material. Em seguida, Joana pede às crianças que pintem a atividade. Miguel, apesar de todas as insistências minhas e de Sandra, se nega a fazê-lo. Assim, todos descem para comer a famosa fruta. [...] quando subimos, Joana dá a todas as crianças uma folha para que desenhem livremente. Tento atrair Miguel para o desenho, mas ele hoje está bem resistente. Deixo-o à 122 vontade e fico a observá-lo para tentar uma intervenção. Passeio pelas mesas até que todos terminam e começam a brincar na sala esperando a hora de descer para o lanche. Enquanto todos brincam, aproximo-me novamente dele e começo a brincar de localizar as letras, Miguel corresponde-me e ficamos a jogar por um tempo, entretanto, quando uma criança se aproxima para jogar também, ele se afasta e começa a andar pela sala. Numa última tentativa, pego a folha de Miguel, levo próximo onde ele está e pergunto se ele deseja escrever comigo. Como não responde, pego em sua mão e escrevo de forma cursiva seu nome. Surpreendentemente, Miguel permite e fica a observar a escrita. O que me chama a atenção é que, desta vez, ele apresenta uma pegada mais adequada de forma a segurar o lápis firmemente entre os dedos. Aproveito e pergunto qual palavra ele gostaria que eu escrevesse para ele com a sua mão. Miguel sugere A de armário, R de relógio, E de espelho e X de xícara. Escrevemos todas as palavras e ele fica a observar a folha, todavia mais uma vez, a criança que se aproximou de nós antes volta e, antes que eu tome alguma atitude, Miguel se afasta da mesa (31-5-2007). A impressão que me vinha nesses momentos era como se Miguel, de alguma forma, tivesse adormecido para o mundo, todavia se encontrava à beira de despertar desse sono, precisando apenas de uma voz doce e serena que o acordasse e o apresentasse à vida, como o canto de uma sereia que encanta a todos que a encontram. Na continuidade, narro como ele reagiu no dia em que Joana fez uma intervenção mais incisiva com ele, a me pedir, insistentemente, para fotografá-lo: Como percebeu que nada iria mudar, Miguel pára de chorar e começa a circular pelas mesas em busca de novas capas de jogos. Levo para ele uma capa de um jogo de animais e o chamo para ver o jogo na mesa com as crianças. Ele consegue montar o jogo com minha ajuda, coisa que as outras crianças não conseguem. A partir, daí ele fica a me pedir ajuda a todo o momento, até que Joana chama todos para guardar os jogos, pois é hora do lanche. Quando todas as crianças saem para o pátio, começo a observar Miguel de longe, a fim de registrar suas ações. Aproximo-me, mostro umas imagens que tenho dele em minha máquina e peço autorização para continuar a fotografá-lo. Ele reage positivamente e começa a fazer poses seguidamente (FOTO 8). Afasto-me um pouco para mostrar a Joana os registros feitos, quando Miguel vai atrás de mim e pede para eu continuar a fotografá-lo fazendo mil poses. Joana entra na brincadeira, sugerindo algumas fotos. Miguel agora pede para tirar fotos. Eu seguro a máquina de forma que ele tire uma foto de Joana, que, aliás, ficou muito boa. Em seguida, somos interrompidas pela pedagoga, avisando que uma criança não agüentou e urinou na calça. Dispersamo-nos para ajudá-la e, quando volto, vejo Miguel correndo atrás de algumas crianças no pátio a brincar, chegando a bater sua cabeça de encontro a uma delas. Tento ajudá-lo, mas ele, apesar de vir para o meu colo, não me permite tocá-lo. Chamo Joana que, depois de insistir muito com ele, consegue levá-lo ao banheiro para passar um pouco de água. O recreio termina e todos sobem à sala (12-4-2007). 123 Foto 8: Imagens de Miguel no pátio fazendo poses Nesse sentido, tento resgatar os motivos que me levaram aos estudos no campo da educação inclusiva, como forma de compreender o que me aproximava de Miguel no campo inconsciente. Retomo minha infância quando, por desconhecimento familiar e social, haja vista já termos passados algumas décadas deste período e, em detrimento de apresentar um quadro de movimentação intensa, buscavam, incessantemente, um diagnóstico para justificar/entender/compreender este meu comportamento. No entanto, nada se diagnosticava. Assim sendo, se instituíram mecanismos para regular tal condição a partir de práticas disciplinares e punitivas, como nos diria Foucualt (2004), ao discutir acerca do poder disciplinador e da regulação dos corpos pela via de uma série de regimes de práticas. Logo, ao pensar nos processos de inclusão socioeducacionais de crianças autistas, busco alertar para a necessidade de reconhecermos que esse processo somente ocorrerá se os envolvidos com essas crianças se sentirem, realmente, implicados com elas, independentemente dos motivos disparadores de tais implicações, visto que nosso inconsciente guarda segredos inconfessáveis. Entendo que só assim o olhar que emana presença emergirá em detrimento de olhares que emanam ausência e, por conseqüência, poderão ecoar nos lares das crianças. Autoras como Mrech (1999) e Machado (2004) afirmam que a grande contribuição da Psicanálise nesse debate não se daria, então, no âmbito da compreensão acerca 124 dos processos educacionais, mas, sim, no sentido de possibilitar a criação de rupturas à lógica escolar que revelam um novo posicionamento diante dos saberes simbolicamente instituídos, processos nos quais todos os envolvidos – alunos, professores, pais/mães, responsáveis, entre outros – não sejam vistos como meros objetos, mas, sim, como sujeitos singulares/plurais inscritos em uma cultura. Direcionando este debate para a nossa responsabilidade como pesquisadores, devemos ter, como premissa, que, ao nos sentirmos embricados com essa causa, precisamos buscar caminhos que promovam deslocamentos nas representações inconscientes dessa criança e, também, de todos os envolvidos com ela, professores, pedagogos, servidores de apoio, vigias e, também, de seus respectivos familiares. Nesse sentido, penso que Joana escutou esse eco, conforme os registros que se seguem extraídos do diário de campo: Episódio 3. Joana instituindo um olhar libidinal de aposta [...] Em relação a Miguel, percebo que, de certa forma, eu já provoquei algum movimento no contexto, pois, quando ele chegou à sala, ficou encantado com um determinado brinquedo que estava com o grupo, especialmente com a caixa que se encontra em mãos de uma criança. Miguel toma-a das mãos deste aluno que, imediatamente, pega de volta. Como as crianças entram literalmente em conflito Joana vira-se para mim e diz: “Acho que vou ter que guardar a caixa, Graça, senão ela vai rasgar não acha?”. Concordo imediatamente e, quando Joana vai guardar a caixa no armário, Miguel começa a gritar e a bater na porta insistentemente. Imediatamente Joana vira-se para mim e diz: “O problema de Miguel é que ele não gosta de ser contrariado!”. Fico contento por acreditar que, de alguma forma, ela está tentado intervir com Miguel (12-42007). Episódio 4 O olhar de Joana repercutindo nos movimento de Miguel [...] Lá chegando, fiquei muito feliz em ver Miguel envolvido com as crianças “rolando pelo chão”. Em conversas com Sandra, ela me disse que ele está sentando, fazendo as atividades de sala, tendo, inclusive, um dia que ele ficou muito bravo porque viu uma matriz sendo elaborada e queria por queria fazê-la. Foi preciso xerocá-la para que ele a fizesse. Nesse sentido, vejo que Miguel vem evoluindo significativamente, haja vista o fato dele, no início, só ficar nos cantinhos e se negar a sentar com/no grupo e agora estar brigando por atividades (19-10-2007) Episódio 5. O olhar de aposta da pesquisadora potencializando movimentos inclusivos 125 Ao sentar-me com Joana para avaliação, surpreendi-me com ela elogiando o grupo de estudos no sentido de seu crescimento acerca da temática, pois, anteriormente, com Priscila, ficava insegura acerca de como agir, mas agora não se sentia mais assim. Com relação à minha participação em sala, Joana, alegando que a turma muda seu comportamento quando lá estou, sugeriu que eu fosse à sala dela somente quinzenalmente, apesar de eu achar que assim eu realmente me tornaria uma estranha em sua sala. Para finalizar, ela reconheceu o quanto Miguel tornou-se mais próximo dela e do grupo, neste semestre, todavia reafirmou a necessidade de priorizarmos um planejamento mais inclusivo para o 2º semestre, ou seja, sistematizarmos ações mais concretas em relação ao processo pedagógico de Miguel (5-7-2007). Analisando as cenas acima, primeiramente gostaria de problematizar o excesso de matrizes que ali eram utilizadas, desconsiderando, em grande parte dos momentos, os temposprocessos individuais de cada criança, apesar de reconhecer que isso não é muito fácil ao pensarmos que temos 25 processos singulares pulsando ao nosso redor. Retomando a narrativa, reconheço que essas mudanças não se deram somente pela minha presença, entretanto o que percebo é que existem múltiplas/diferentes formas de ser/estar pesquisador e, com relação à Joana e Miguel, tenho certeza de que, para além da organização do/no grupo de estudos, o nosso olhar de aposta naqueles sujeitos, refiro-me a Miguel e a Joana, também os ajudou, e muito, nesse processo. Sua fala, na avaliação tanto de julho quanto de dezembro, evidencia isso ao destacar que, antes, mais precisamente com Priscila, ficava insegura acerca do que fazer, mas agora não sentia tanto insegurança em suas ações. A meu ver, essa é a verdadeira função do pesquisador colaborativo: potencializar/demandar os protagonistas sobre os seus saberes, conforme os trechos extraídos do diário de campo, apresentados abaixo: Hoje me sentei com Joana para a avaliação final sobre a minha presença ao seu lado, no que tange ao processo de inclusão de Miguel. Mais uma vez, ela afirmou que a minha participação foi fundamental para que ela tivesse a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a inclusão de crianças autistas. [...] para finalizar, tentei amarrar com ela alguns encaminhamentos em relação a Miguel, que tentaria viabilizar até o final do ano letivo. Do ponto de vista pedagógico, Joana disse não ter questões. O que gostaria que eu a ajudasse era no sentido de compreender o motivo de sua fala apresentar-se em alguns momentos um pouco robotizada. Combinamos, então, de nos reunirmos com os profissionais que atendem Miguel na Apae para melhor esclarecer esse item (22-11-2007). Finalizando minhas considerações acerca de Miguel, ao final do ano letivo, ele já se encontrava bastante diferente do início do ano, tendo, em sua socialização no/com o 126 grupo, o ponto forte de nossas conquistas. Sabemos que a socialização não é a única finalidade dos processos socioeducacionais inclusivos, no entanto foi essa a pista inicial que seguimos para que, conforme os relatos narrados, ao final do ano letivo, já encontrássemos Miguel rolando pelo chão com as crianças, brigando por matrizes, ou seja, produzindo no/com o grupo, considerando sua condição humana singular de sujeito culturalmente inscrito. 3.2.1.1.1 Re-direcionando o zoom para os movimentos disparados com/por/para Mateus Apesar de todas as situações adversas que perpassaram a vida de Mateus, naquele momento, o mesmo não sucumbia a condição alienante, buscando, a sua maneira, (re)existir naquela paisagem, conforme os trechos narrados a seguir: [...] encontro-me com Carla trazendo Mateus pelos braços extremamente agitado, se batendo e gritando bastante. Ao nos aproximarmos dela, ela nos mostra uma mordida que acabou de levar dele. Ana tenta contê-lo, mas ele a agride também e, em seguida, se autoagride, como se estivesse se punindo pelo ocorrido. Ofereço-me para ajudá-la, tentando manter a calma com a situação porque Mateus se mostrava muito agressivo. Dizemos a ele que não pode morder, mostramos o braço de Carla, ele se solta e sai agitado, se agredindo com tapas na cabeça. Tentamos segurá-lo, mas sugiro a Ana e a Carla para deixá-lo um pouco livre, de forma que nos voltamos para tentar entender o que aconteceu. Carla nos diz que, como todos os dias, por volta de 14h30min, Mateus sente fome, ela foi a cozinha para ele se alimentar (esse era o combinado no CMEI). No entanto, nesse dia, o biscoito que ele come estava na sala das professoras. Automaticamente, Mateus se dirigiu para lá e, quando Carla chega para acompanhá-lo, ouve uma professora falando da seguinte forma com ele: “Sai daqui, garoto, vai embora, saí!” Ela ficou chocada com essa fala e diz ao grupo que ele veio comer o biscoito da escola conforme o combinado. No entanto, as professoras dizem que, a partir do último planejamento coletivo, ficou proibido dar comida a ele, ou a qualquer outra criança ali, pois, se dessem a ele “todos poderiam comer também!”. Carla, então, tira Mateus de lá e sobe arrastando-o, porém, quando ele percebe que está chegando à sala sem se alimentar, no momento em que ela abre a porta, Mateus a morde, talvez como última possibilidade para comer. Ana fica enfurecida e quer tirar satisfação com a professora que destratou Mateus e Carla. Eu tento contê-la, dizendo-lhe para encaminhar isso à direção e à pedagoga, pessoas responsáveis para resolver essa situação, na medida em que iniciaram essa conversa com as professoras. Reforço dizendo a Ana para ela não se expor sozinha em frente ao grupo, 127 pois essa é uma questão do CMEI e não somente dela, afinal a criança é aluno da escola e não só dela. Ana desce desarvorada atrás da pedagoga e eu fico na sala tentando acalmar Carla, dizendo-lhe que essas coisas, apesar do constrangimento da situação, são interessantes de emergirem, pois abrem a guarda para o debate (24-4-2007). Apesar de reconhecer que o grupo deveria ter uma ação mais coletiva em relação à necessidade de Mateus compreender acerca de algumas regras sociais de convivência, isto é, ele não poderia entrar em qualquer lugar e comer tudo que visse pela frente, existem muitas formas de introduzir novas informações para ele e, a meu ver, essa não era a mais indicada. A esse respeito, trazemos à cena o lugar ocupado pelo professor na estruturação dos signos de seus alunos, já que encontros e/ou desencontros dão continuidade aos processos de espelhamento vividos por eles na infância, no sentido de se perceberem e/ou se valorizarem a partir da imagem que o professor reflete neles, apesar de reconhecer que alunos também são atravessados por uma subjetividade que muitas vezes lhes traz dificuldades. A idéia de que a pedagogia é uma questão de teoria, de doutrina, de que pode haver uma ciência da educação, se baseia na ilusão da possibilidade de domínio sobre os efeitos da relação do adulto com a criança. Quando o pedagogo imagina estar se dirigindo ao Eu da criança, o que está atingindo, sem sabê-lo, é seu inconsciente; e isto não ocorre pelo que passa do seu próprio inconsciente através de suas palavras (FREUD, apud CUNHA, 1990, p. 12). Segundo Cunha (1990), o que está em jogo nos processos educacionais, mais do que as tecnologias de ensino, são as possibilidades de envolvimentos intersubjetivos que ali se engendram e que se encontram atreladas aos desejos inconscientes dos seus atores e atrizes. Ao retomar o debate sobre os processos de ensino/aprendizagem que permeiam as paisagens escolares, no que tange às relações de saber/poder que ali se estruturam, em especial aos alunos que apresentam nee, vislumbrei, no lugar ocupado pelos professores, um importante laço nas teias que ligam o inconsciente à realidade vivida de seus alunos. Afinal, para além de utilizarem conteúdos e metodologias de ensino, entre outras estratégias, operam também no campo dos 128 afetos, dos desafetos e dos sentimentos ambíguos, num entrelaçamento de nós que tanto podem nunca desatar, quanto serem passíveis de formar laços de criação de vida. Para Freud (apud RONDAS, 2004), os professores são para as crianças os sucessores de seus pais. Está exatamente aí o grande nó dessa teia! Afinal, se, para Freud, é na relação com o outro que aprendemos a nos ver como sujeitos desejantes, então, após as inscrições iniciais produzidas na/pela família dos indivíduos, nós, professores, podemos não só reafirmar, mas também contribuir para ressignificar desejos tanto de apostas como de não-apostas, como nos relatos apresentados. Infelizmente essa não foi a única situação presenciada em que Mateus foi tratado dessa forma. Gostaria de destacar, também, as aulas de Educação Física, no 1º semestre do ano. A professora de Educação Física, Vanda, apresentava dificuldades para incluí-lo ao longo de suas aulas, pois, segundo ela: “Para mim, Mateus não está na minha aula! Ele já melhorou muito, mas ainda não fica como as outras crianças”. Ao ser questionada sobre o entendimento construído sobre inclusão socioeducacional, Vanda disse: Para mim, a inclusão não acontece aqui! A meu ver, nós é que temos de ser incluídos a estas crianças. Da forma como está, sou contra a presença de Priscila aqui no CMEI, pois ela faz o que quer e, como é agressiva, as crianças pequenas sofrem com isso! Outro dia ela deu um esbarrão na porta do berçário que, se tivesse alguma criança ali, não sei o que aconteceria! Outra coisa, a presença da estagiária não funciona, pois eles não têm preparo adequado para acompanhar tais crianças. Para mim, se cada um, no serviço público, conhecesse e cumprisse o seu papel, tudo seria diferente!. Reconheço que a realidade do Sistema Público de Ensino Municipal, como em todo o Brasil, é complexa, cujas tramas, que ali se instauram, apresentam vários nós cegos. Nesse contexto, é possível que alguns professores possam sentir-se sem condições para a construção de um projeto educacional inclusivo que reconheça a diversidade humana como uma condição de vida. Afinal, pensar os processos pedagógicos numa lógica plural exige uma gama de suporte didático-pedagógicos 129 que não se limita a um “método inclusivo”, mas, sim, é preciso que esses profissionais tenham, para além de um apoio pedagógico, a oportunidade de ser ouvidos em suas angústias e/ou dificuldades, como Vanda mesma nos clama no relato que se segue: Tenho dúvidas acerca do que fazer com as outras crianças enquanto estou com os alunos com nee. Talvez, se tivéssemos mais infra-estrutura específica (bolas coloridas, túneis etc.) a coisa poderia melhora. [...]. O fato de sermos obrigados a trabalhar 40 horas semanais nos CMEI, pois à tarde estou acabada. Tenho consciência que os alunos do turno vespertino perdem com isto, principalmente pelo fato de, no vespertino, ter muito mais crianças do que no matutino. Neste sentido penso que o fator tempo também é algo a ser discutido, afinal, o tempo do Berçário deveria ser diferente do tempo do Jardim II. Entretanto, pego carona na fala da própria professora quando diz: “Vejo também que a questão da subjetividade do professor interfere neste processo, ou seja, alguns tomam esta questão para si e aí a coisa anda!”. É preciso salientar que nada disso justificava o fato de essa professora, pelo menos, não tentar se aproximar de Mateus, bem como o fato de não compreender que a estagiária ali está para aprender junto com ela e não para assumir uma responsabilidade que é dela! Os motivos que me levam a evidenciar tal afirmativa apóiam-se no fato de que, no 2º semestre, pela lógica muito particular do Sistema Público Municipal de Ensino de Vitória/ES, chega ao CMEI um outro professor de Educação Física para ocupar a vaga da professora de Artes22 e, apesar da pouca, ou nenhuma formação pedagógica que ele tinha com esse segmento de ensino, em poucas semanas víamos que Mateus ia livremente para suas aulas, bem como buscando esse professor pelo pátio sempre que o via. Kupfer (2001), ao discorrer sobre a necessidade que têm as crianças autistas e psicóticas de freqüentar uma escolar regular, nos diz o quanto algumas escolas regulares apresentam como “[...] fabricantes dessa nova categoria de crianças, as 22 No ano em que este estudo foi realizado, existia no Sistema Público Municipal de Ensino de Vitória/ES, a figura do dinamizador, cuja função tanto pode ser ocupada pelo professor de Educação Física quanto pelo professor de Artes. 130 excluídas do sistema regular de ensino” (p. 86). Para a autora, apesar de reconhecer que essa não é uma tarefa fácil, bem como há necessidade de se analisar caso a caso, é preciso reavaliar tal condição, pois a escola pode favorecer a retomada de uma estruturação perdida: [...] a figura da escola vem a calhar porque a escola não é socialmente um depósito como o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar de trânsito. Além do mais, do ponto de vista da representação social, a escola é um instituição normal da sociedade, por onde circula, em certa proporção, a normalidade social. Portanto alguém que freqüenta a escola se sente geralmente mais reconhecido socialmente do que aquele que não freqüenta. É assim que muitos de nossos psicóticos púberes ou adolescentes reclamam que querem ir à escola como seus irmãos, precisamente porque isso funcionaria para eles como um signo de reconhecimento de serem capazes de circular, numa certa proporção, pela norma social. E efetivamente isso acaba tendo um efeito terapêutico (JERUSALINNSKY, apud KUPFER, 2001, p. 89). Assim sendo, é preciso redobrarmos o cuidado em relação aos discursos postos em circulação em virtude do poder de subjetivação que eles operam, com vistas a resguardarmos lugares sociais saudáveis para essas crianças, como Kupfer (2001, p. 92) mesma diz: “Afinal de contas, as crianças poderão ter sido preparadas para ir à escola, mas a escola pode não estar preparada para recebê-las”. Entretanto, apesar de todo esse contexto desfavorável, logo que cheguei à sala de Mateus, percebi algo diferente naquela paisagem, a começar pela postura desejante tanto de Ana (professora), quanto de Carla (estagiária) em relação a Mateus. Afinal, ambas haviam escolhido a turma por causa de Mateus e não apesar dele, ou seja, estava instaurado ali o desejo de uma aposta naquela criança e, a meu ver, isso fez a diferença. Direcionando o foco da análise para mim, a pesquisadora, não podia negar que aquela criança me fazia lembrar de alguém muito significativo em minha vida: um sobrinho e, também, afilhado, cujas semelhanças físicas e de nome me remetiam ao período em que mais nos aproximamos ao longo de nossas vidas. Acredito que esse olhar diferenciado fisgou, de alguma forma, Mateus. Certa vez, quando fui à sua casa entrevistar Marlene, sua mãe, sobre a percepção dela acerca do processo de inclusão de seu filho naquele CMEI, ocorreu uma coisa interessante 131 que nos surpreendeu, no momento em que Marlene estava a falar do quanto Mateus percebia e se ressentia dos olhares preconceituosos dirigidos a ele, Mateus chega a casa e, imediatamente, senta-se no meu colo. Essa identificação, em meu entender, favorecia na sua constituição da imagem de si pela via do empréstimo de meu corpo, conforme os relatos que se seguem abaixo, extraídos do diário de campo: [...] O grande achado deste dia refere-se a uma situação que sei que “marcou e marcará” profundamente minha pesquisa neste CMEI. Tudo começou quando chego à sala e vejo Ana distribuindo uma matriz para as crianças pedindo que, inicialmente, pintassem uma figura. Todos se encontram à mesa com o texto, exceto Mateus que, por conta disso, começa a rodar e a bater palmas desordenadamente. Pego uma folha e chamo-o para se sentar à mesa comigo. Ofereço-lhe a folha e digo a ele para pintá-la. Ele devolve o lápis a mim para que eu pinte o desenho para ele, porém devolvo-lhe também o lápis e reafirmo que é para ele pintar. Mateus, então, risca todo o desenho sem seguir as margens. Troco o lápis e ele continua a fazer o mesmo movimento até virar a folha para continuar os seus riscos. De repente, ele me devolve o lápis a fim de que eu escreva para ele. Escrevo o seu nome e, em seguida, ele passa o dedo em todas as letras para, a seguir, riscar por sobre o escrito. Como desejava avançar a essa condição que sempre se repetia, lembrei-me de sua mãe dizendo para mim que ela pontilhava algumas palavras para ele seguir os pontos. Escrevo, então, seu nome pontilhado e dou a ele o lápis. Ele traça corretamente o U e, em seguida, risca todo o nome. Comento com Carla, ela me diz que ele sempre faz isso. Penso comigo, então: “Talvez ele saiba escrever as letras de seu nome e não somente a letra A que sempre escrevia!”. Pego o lápis novamente, mas deixo minha mão bem leve para que ele a conduza, como se emprestasse a ele o meu corpo para que se representasse graficamente. Minhas suspeitas são confirmadas: ele conduz minha mão e escreve seu nome (FOTO 9). Fico surpresa e resolvo ir além. Dou a ele o lápis e ele escreve corretamente as letras MAT, construindo, a seguir, hipoteticamente, vários símbolos representando as letras de seu nome. Mostro a Carla e a Márcia (sua babá que veio buscá-lo) a escrita e repito a ação junto com Mateus que escreve novamente seu nome e não quer ir embora. Ele toca em minhas mãos como forma de me dizer que deseja continuar. Todavia, Márcia o leva para casa (24-5-2007). 132 Foto 9: Imagens da escrita de Mateus Tomo esse momento como bastante significativo neste estudo, pois pude perceber o quanto Mateus havia avançado. Afinal, antes, ele vivia pelos corredores e agora permanecia em sala e, mais do que isso, especialmente nesse momento, quando lá se encontrava, buscou, numa tentativa de auto-reconhecimento, pela via do papel e da escrita, em que a minha mão operou não só no sentido do empréstimo de meu corpo a Mateus, mas, principalmente, numa tentativa de quebra da condição de não alienação de si,23 se permitir a instauração de uma condição de demanda do Outro (KUPFER, 2001; LAZNIK, 2004). A partir de então, percebi que esse contexto transferencial instituiu efetivamente um ambiente pedagógico mais inclusivo, trazendo ao nosso encontro a mãe de Mateus, que tinha uma postura bem crítica em relação ao CMEI, afinal, segundo falas não só dela, mas também da professora Ana e da pedagoga Kely, Mateus estava lá há dois anos e, nesse período, havia sofrido bastante discriminação, pois uma das suas professoras anteriores teve dificuldades para incluí-lo, no passado, deixando-o sempre à margem das atividades em sala. 23 Na perspectiva psicanalítica, apesar de esse conceito etiológico ser polemizado por algumas correntes contrárias à Psicanálise, a instauração das manifestações de autismo ocorre, dentre outros fatores, pela não condição de alienação de si, que perpassa a criança nos primeiros anos de vida, em virtude de falha na função materna, ao apresentarem dificuldades para olhar essa criança num sentido de investimento libidinal de presença, impossibilitando aí a instauração de um desejo do Outro e, por conseqüência, inviabilizando a constituição de imagem de seu corpo (KUPFER, 2001; LAZNIK, 2004). 133 Gostaria de afirmar que, apesar e/ou por causa de tudo isso, ao final do ano, Mateus permanecia em sala por todo o tempo, sentava-se para assistir aos filmes, passou a compreender algumas regras sociais de convivência, por exemplo, esperar na fila para descer, atendia às orientações da professora e da estagiária, interagia com a maior parte das crianças, considerando suas afinidades, como todas as outras crianças. Em relação à escrita, ele escrevia seu nome em todos os lugares que podia, inclusive em sofás e paredes de casa. Aproveito para chamar a atenção sobre o valor tomado pela cultura na estruturação simbólica dessas crianças, destacando o fato de a linguagem oral e escrita vir a reboque da sua expressividade como sujeito, de forma que as artes, a educação física e todo o acervo cultural que se utiliza de ações simbólicas para se comunicar são significativos, sendo, por isso, imprescindíveis. Ao concluir tal apresentação, não poderia deixar de destacar o fato de que, seja pelos nossos erros, seja pelos nossos acertos, essa criança foi, aos poucos, instaurando uma estrutura sígnica de tal forma, pela via transferencial, que a despertou para a busca pelo saber/aprender, manifestando o desejo pela escrita, conforme os trechos narrados a seguir: [...] fui para a sala de Ana e, quando lá cheguei, tive uma grata surpresa, isto é, apesar de termos ficado sem nos ver por uns 15 dias, em virtude dos feriados, percebi que ela, efetivamente, seguiu as pistas que vislumbramos juntas e produziu muita coisa com Mateus desde a última vez em que estive em sua sala. Ana produziu um caderno para que ele tentasse escrever outras palavras para além do seu nome, sentou-se com ele em atividades de Matemática, fazendo-o relacionar e pintar objetos e nº correspondentes, entre outras coisas. De acordo com os relatos, a mãe de Mateus lhe escreveu contando da felicidade que ela está em vê-lo em casa colocando seu pai para escrever seu nome, dentre outros avanços, a todo o momento (15-6-2007). Diante desse contexto, a Psicanálise poderá, então, auxiliar a educação no sentido de pensar os processos pedagógicos, não como um percurso que psicanálise os que ali habitam, mas, sim, que lhes possibilite pensar para essas crianças, para além de uma metodologia de ensino hegemonicamente generalizada, a abertura ao inesperado, pela via da proposição de formas de ensino criativas e/ou alternativas que ofereçam condições reais para que tais crianças estruturem a sua psique 134 humana e, conseqüentemente, sua inserção social. No entanto, isso pode ocorrer por diferentes caminhos, logo, é preciso ampliar a nossa percepção para a diversidade a fim de captarmos tal movimento (CUNHA, 1990; KUPFER, 2001; RICKES, 2006). Vislumbro, no lugar ocupado pelos professores, um importante laço nas teias que ligam o inconsciente à realidade vivida de seus alunos. Afinal, para além de utilizarem conteúdos e metodologias de ensino, entre outras estratégias, operam também no campo dos afetos, dos desafetos e dos sentimentos ambíguos, num entrelaçamento de nós que tanto podem nunca desatar como ser passíveis de formar laços de criação de vida. Para Freud, os professores são para as crianças os sucessores de seus pais (FREUD, apud RONDAS, 2004). Está exatamente aí o grande nó dessa teia! Afinal, se, para Freud, é na relação com o outro que aprendemos a nos ver como sujeitos desejantes, então, após as inscrições iniciais produzidas na/pela família dos indivíduos, nós, professores, podemos não só reafirmar, mas também contribuir para ressignificar desejos tanto de apostas como de não-apostas. 135 4 AS POLÍTICAS DA/NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS ARMADILHAS ÀS PRÁTICAS INCLUSIVAS (DALI, 1940) [...] Crianças, embora existissem sempre, continuam em pauta para as definições de prioridade, de políticas públicas, de educação para cidadania, de cidade para a infância. Nossas crianças não precisam de praças e escolas só para elas; elas precisam da cidade que lhes garanta espaços e tempos carregados de dignidade respeito, ternura e aconchego, ‘porque é de infância que o mundo tem precisão’ (THIAGO DE MELLO, 1964, p.34) 136 Neste capítulo, problematizarei algumas micromacroações políticas captadas, em especial, no que se refere ao entendimento acerca da Educação/Educação Infantil em uma perspectiva inclusiva, tendo em vista o fato de que alguns modos de produção de ações24 instituídos no/pelo cotidiano escolar não favoreciam à perspectiva inclusiva defendida neste estudo. Assim sendo, evidenciarei, ao longo deste texto, alguns movimentos cotidianos, que gostaria de problematizar, no sentido de conhecer/questionar/entender de que lugar esses nós são tecidos para, em seguida, contextualizar suas implicações políticofilosóficas às subjetividades envolvidas e, também, por acreditar que estes movimentos não favoreciam aos processos de inclusão socioeducacional defendidos neste estudo, tomando como base a sugestão de Alves (2008, p.21) ao se referir sobre os movimentos necessários para se compreender os cotidianos escolares: Para aprender a ‘realidade’ da vida cotidiana, em qualquer dos espaçostempos em que ela se dá, é preciso estar atenta a tudo o que nela se passa, se acredita, se repete, se cria e se inova, ou não. Mas é preciso também reconhecer que isso não é fácil, pois o aprendidoensinado me leva, quase sempre, a esquemas bastante estruturados de observação e classificação e é com grande dificuldade que consigo sair da comodidade do que isto significa, inclusive a aceitação pelos chamados ‘meus pares’, para me colocar à disposição para o grande ‘mergulho’ na realidade. O interesse por problematizar tais aspectos parte da premissa de que essas microações forjam subjetividades nem sempre favorecedoras à vida, em especial quando pensamos a presença de crianças com nee consideradas autistas, cujo estigma que essa denominação carrega leva as pessoas a não apostar em quem o manifesta. Todavia, como são instituídos no/pelo/com o cotidiano, são passíveis de serem ressignificados com vistas ao favorecimento de políticas de base mais inclusivas. Para tanto, acredito ser necessário, inicialmente, reavaliarmos alguns princípios por nós concebidos como democráticos, sob a égide da busca pela inclusão socioeducacional, visto que o que nos iguala é, exatamente, a nossa condição de sermos sujeitos singulares/diferentes. 24 Termo utilizado por Oliveira (2008), ao se referir às produções de ações humanas em frente aos contextos vividos. 137 Para que a diversidade humana possa se fazer presente como um valor universal, a escola precisa assumir uma postura de desconstrutora das igualdades, incluindo a todos nas suas diferenças, indo ao encontro de cada um e de todos os alunos, buscando quebrar em si aquilo que suscita resistência (JESUS, 2002, p. 94, grifo meu). Nesse sentido, tomarei como fio condutor desta teia as bases teóricoepistemológicas tecidas por Michael Foucault, em especial, o seu debate acerca dos micromacro processos de subjetivação humana considerando suas discussões arqueológicas, genealógicas e éticas, quando articuladas a diferentes campos de saberes, para compreender a origem e os fatores que atravessaram os movimentos captados na/pela paisagem investigada, bem como em que medida tais saberes engendram subjetividades, pela via dos campos discursivos, cujos dispositivos tornam os envolvidos nesta teia sujeitos imersos em determinadas práticas discursivas. 4.1 FOUCAULT E AS PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO HUMANA Analisando essas três fases, tomando por base as considerações de Deleuze (apud VEIGA NETO, 2004). Cada uma dessas fases corresponde a uma pergunta fundamental elaborada por Foucault, seguida de uma respectiva metodologia. Estas são questões que nortearam seu pensamento: “O que posso saber?”, “O que posso fazer?” e “Quem sou eu?”. No entanto, Veiga-Neto (2004) chama a atenção para o fato de que a tentativa de periodizar e sistematizar teórico-metodologicamente as três fases da obra de Foucault apresenta inconsistências por diversos motivos. O principal deles é o fato de sua terceira fase, a ética, não apresentar um método novo. Para o autor, o entendimento de método adotado por Foucault não se coaduna com a perspectiva rígida da Modernidade, logo, é preciso ressaltar que essas fases não foram pensadas no sentido linear da superação de um pensamento em relação ao outro, mas, sim, pela via da ampliação de um entendimento em suas diversas formas de se manifestar, como eixos referenciais e aglutinadores de sua obra, como 138 o próprio Foucault (2004, p. 289) nos diz ao ser entrevistado acerca da “intencionalidade” de sua obra: Não creio que haja grande diferença entre esses livros e os precedentes. Quando escrevemos livros, desejamos que estes modifiquem inteiramente tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos percebemos inteiramente diferentes do que éramos no ponto de partida. Depois nos damos conta de que no fundo pouco nos modificamos. Talvez tenhamos mudado de perspectiva, girando em torno do problema, que é sempre o mesmo, isto é, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência. Para Costa (2005), seguir os fluxos da perpsectiva foucaultiana não é tarefa fácil e nem linear, visto que os ensinamentos de Foucault buscavam potencializar aos que almejavam se libertar das submissões presentes às diversas práticas disciplinares e reguladoras que atravessam nossas vidas, no intuido de, predominantemente, questionar tais regimes. Foucault, apesar de não ter desenvolvido estudos especificamente voltados à área educacional, apresenta produções teóricas que nos permitem redimensionar os estatutos da disciplina e da autonomia, ao analisar a forma como esses dispositivos operavam nas instituições escolares em busca de produzir uma subjetividade que se constituía disciplinadora, operando nesses processos mediante “pedagogias de ensino”, vistas como um significativo instrumento para estruturar as condutas humanas, na medida em que fornece um modelo para a organização social do século XVIII, tendo como foco de atuação a Economia, a Medicina e a Teoria Militar. Como forma de melhor compreender sua lógica do pensamento, no que se refere aos processos de subjetivação humana, apresentarei, a seguir, uma síntese de sua obra, subdividindo-a em três fases com base em critérios metodológicos e cronológicos, apesar de reconhecer que essa organização não ocorre linearmente; essas fases se interpenetram. Em sua obra, então, podemos encontrar três momentos de acordo com Foucault (1975, 1992b,1996, 2003): A Arqueologia, método de pesquisa filosófica utilizado até meados dos anos 70, por meio do qual se operava com diferentes dimensões de análises a fim de se compreender o discurso de determinada época. Sua ação pautava-se na descrição sobre a constituição desse campo, concebendo-o como rede de inter-relação de 139 diversos saberes que ali operam sobre os quais será preciso abrir espaço para a emergência do diversos discursos, como forma de instituir uma nova ordenação, tendo em vista o interesse por “[...] cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação [...]; mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas” (FOUCAULT, 1996, p. 60). Destacam-se, nesse momento, as obras: História da loucura (1975), A arqueologia do saber (1969), O nascimento da clínica (2003) e As palavras e as coisas (1992a) A Genealogia, conceito nietzschiano retomado por Foucault a partir de 1970, concebia a pesquisa histórica acerca da origem dos saberes, tendo em vista as condições externas a eles, à luz das preocupações atuais trabalhando em busca de restituir os acontecimentos na sua singularidade visto que esse conceito, [...] concerne à formação efetiva dos discursos, quer no interior dos limites do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das vezes, de um lado e de outro da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefação, mas também de agrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular (FOUCAULT, 1996, p. 65-66). Faz-se necessário reafirmar que esses dois conceitos não são somente complementares; eles se encontram interligados já que tanto as formas de seleção, adequação, reagrupamento, alteração ou exclusão submetem o discurso ao controle, como também esse discurso sofre interdição dos mecanismos e estratégias instituídos na/por essas relações, que emergem a partir dos dispositivos que se utilizam das práticas discursivas para agenciar os processos de subjetivação humana. Destacam-se, nesta fase, as seguintes obras: A ordem do discurso (1996a), História da sexualidade I - a vontade de saber (2003a) e Vigiar e punir (1975). A Ética se constitui em pressuposto que visa a compreender a maneira pela qual cada um constitui a si, suas respectivas práticas, em frente a um código moral de conduta, entendido como um jogo complexo de elementos que se auto-regulam e onde as resistências são possíveis e concebidas como formas de criação, por isto, (re)existências. Suas principais obras são; História da sexualidade II e III (2003b) e O cuidado de si (1985). 140 Nessa perspectiva, a subjetivação, processo pelo qual se constitui a experiência de si em Foucault (GALLO, 2006), estrutura-se cotidianamente por meio de redes tecidas na/pela história e encontra-se diretamente vinculada às práticas discursivas de ouvir, de contar, de inventar e reinventar histórias, entre outras. Toda cultura deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em alguma das modalidades incluídas nesse repertório. [Portanto] em qualquer caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiência objetiva do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como sujeitos (LARROSA, apud BUJES, 2001, p. 4). Analisando essas fases a partir de Foucault (2004), o que opera é apenas um novo olhar numa outra dimensão ou com outras ferramentas, mas nunca se esquecendo de sua questão central acerca da constituição do sujeito, concebendo-o como alguém que se constitui pela via das práticas de sujeição e/ou de libertação, tomando como base as regras sociais instituídas na/pela cultura. Assim, Foucault, ao traçar a sua genealogia da subjetivação, aponta diversas formas de relação do sujeito consigo mesmo, denominadas de “tecnologias do self”, que podem ser traduzidas em diferentes conjuntos de práticas, numa disciplina corporal que vai desde a obrigação de se auto-regular, presente em projetos que envolvam os cuidados com o próprio corpo, também em situações de punição, como nos atos religiosos de penitência, nas prisões, entre outras. Nesse sentido, tomando como base o debate que envolve a constituição do sujeito, pela via das práticas de sujeição e/ou de libertação, gostaria de narrar uma situação extremamente significativa que experenciei (PINEL, 2000), não só como pesquisadora, mas, e por que não dizer, principalmente como sujeito deste estudo, na condição de mãe/pesquisadora daquela comunidade cujos fluxos foram decisivos para disparar em mim o desejo por mergulhar literalmente nesta paisagem. A opção por este mergulho se fortaleceu a partir das considerações de Garcia, quando aborda o lugar ocupado pelos diversos tipos de sujeitos que emergem nas 141 pesquisas com/no/sobre o cotidiano, cujo movimento constante de reflexão sobre suas ações nos impulsiona à vida: A pesquisa para nós se dá pondo-nos em diálogos com o sujeito a ser pesquisado. Sujeito, não objeto. Sujeito que pesquisa (nós), sujeito que é pesquisado (as professoras), sujeitos ambos que, no processo de pesquisa, põem-se a pesquisar a sua própria prática e neste processo vão tecendo novos conhecimentos sobre o processo ensinoaprendizagem e sobre o processo de pesquisa [...](GARCIA, 2003, p. 13) . 4.1.1 O movimento de organização das turmas A narrativa em questão aborda a forma como as crianças eram organizadas nas turmas ao final de cada ano letivo, tendo em vista a criação de uma nova turma para o ano seguinte. Segue, então, abaixo, um relato pessoal acerca de como esse processo foi conduzido até o momento em que me afastei definitivamente desse CMEI: Tudo começou quando minha filha, ao final de seu primeiro ano de estudo naquele CMEI e, conseqüentemente, com o retorno das aulas no ano seguinte, queixou-se do fato de suas coleguinhas mais próximas não se encontrarem junto dela na mesma turma. A fim de obter maiores esclarecimentos, fui ao encontro da pedagoga Kely que me informou ser essa uma prática daquele CMEI referendada pelo colegiado de professores, com o intuito de, ao final do ano, trocar de turma indiscriminadamente todas as crianças como forma de minimizar alguns conflitos de comportamento que ali emergiam. Apesar de reconhecer o fato de, constantemente, termos necessidades de (re)ordenar nossas vidas, e, na escola, isso não seria diferente, penso que essas mudanças sempre deveriam operar num sentido proativo, isto é, para ajudar/potencializar alguma situação específica, e não ser um paliativo para questões que, a meu ver, são de outra ordem. Logo, fui ao encontro de Kely a fim de questionar o fato de as crianças não seguirem juntas numa mesma turma, já que percebia, nesse ato, uma certa “punição”, tanto para as crianças ditas “indisciplinadas” quanto para outras que se viam afastadas de seus pares. Queria entender bem o porquê de tal ruptura. Reafirmei que tais ações desconsideram a importância do afeto e das relações sociais no desenvolvimento infantil, sem falar nas crianças que apresentam nee, em especial, em nosso caso, as crianças autistas que, naturalmente, já apresentam uma predisposição a dificuldades de relacionamentos sociais bem como reagem, geralmente mal, a mudanças de rotinas. 142 Kely disse-me concordar com minhas ponderações, todavia afirmou ter sido voto vencido na reunião do colegiado, quando grande parte do grupo alegou que, dessa forma, todos receberiam o mesmo tratamento, sem privilégios. No entanto, ela garantiu que isso não mais se repetiria a partir daquele ano, em virtude das diversas queixas advindas das famílias de algumas crianças. Ao final do ano, apesar dos inúmeros encontros com Kely, em virtude da formação continuada que iniciamos naquele ano, bem como pelo fato de eu também estar atuando na comunidade para garantirmos a permanência efetiva dela, pois até então, trabalhava ali num regime de contrato, só fui saber que o grupo de professoras havia decidido misturar todas as crianças no próximo ano, novamente por meio da professora da minha filha, numa reunião de fechamento de ano letivo. Confesso não ter entendido nada, afinal, estava ali quase todos os dias e ninguém me disse nada! Não que tivesse alguma condição de permitir, ou não, alguma ação coletivamente referendada, todavia gostaria de ter tido, pelo menos, a oportunidade para defender um ponto de vista, antes da reunião que decidiu tal ação. Assim, apesar de saber que tal posição não se reverteria, fui procurar Kely, no intuito de expor minha indignação como membro de uma comunidade escolar que se pensa democrática, bem como solicitar ao colegiado uma oportunidade para defender a reavaliação desse posicionamento. Kely, então, disse-me que, novamente, foi voto vencido no grupo de professoras, mas que levaria minha solicitação ao grupo de professoras. No intuito de contextualizar essa narrativa, retomo Foucault (1975), ao nos instigar a refletir como os “regimes de práticas” atuam como tecnologias de subjetivação, formulando lógicas de pensamentos na determinação dos corpos dos indivíduos, analisando também como as instâncias microfísicas de governo operam no campo das ações dos indivíduos, num exercício sutil e constante atrelado a um suposto poder que se faz disciplinador pela legitimação de um saber nascido das práticas sociais de controle e de vigilância. O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que o submetem um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeitado o indivíduo disciplinar (FOUCAULT, 1975, p. 167). Assim sendo, reconheço o quanto nos é complexo (MORIN, 1995) e desafiador gestar políticas educacionais num contexto de 300 alunos, cujas realidades de vida são amplamente diversificadas. No entanto, nem sempre as alternativas que nos 143 parecem mais simples nos ajudam a “resolver” tais questões. Isto é, não será misturando as crianças ao final de cada ano, indiscriminadamente, ou mesmos mantendo todas rigidamente em suas respectivas turmas que iremos minimizar as tensões e os conflitos que acometem o cotidiano das salas de aula. Isso é apenas um paliativo que não opera no âmago da questão. Nesse sentido, concebo uma gestão político-pedagógica na/da Educação Infantil que não só busque produzir ações voltadas às práticas educacionais a partir do contexto, mas, também, e principalmente, para o contexto. Logo, ao misturar as crianças com vistas a minimizar as dificuldades que nos impõem a árdua tarefa de “conter” 2525 vidas que pulsam incessantemente, estamos, não só permitindo manter as salas de aula com esse quantitativo de alunos, mas, também, deslocamos o foco em questão, que deveria apontar as políticas de Educação e de Educação Infantil ao desconsiderar o quanto esse quantitativo de alunos é nocivo aos processos educacionais, na medida em que direcionamos a questão para o “comportamento difícil” de algumas crianças desse CMEI, responsabilizando-as, equivocadamente por essa condição. Em meu entender, essas práticas não só não atingem seu objetivo, como também instituem outras práticas subjetivantes que operam na contramão do que defendemos por um processo de educação que reconheça e favoreça a singularidade humana, para reafirmar, de forma sutil e velada, a condição de anormalidade das crianças que não se submetem às condições impostas. Logo, nada melhor do que nos utilizarmos da organização escolar como um aparelho regulador e punitivo aos que se afastam das normas “socialmente determinadas” por meio de “[...] corretivos e instrumentos de hierarquização dos desvios” (SINGER, 1997, p. 42), no caso da paisagem investigada, separando as crianças de seus pares ou recompensando aquelas que se submetem ao que é 25 Falo do quantitativo determinado àquele CMEI para o número de crianças em sala de aula nas turmas do Jardim I e II 144 determinado, oferecendo-lhes prêmios e honrarias – instrumentos de regulação, neste caso, a permanência com os pares. Dando continuidade à narrativa, apesar de ter disparado esse movimento, sentia que sozinha não daria conta de ressignificar tal situação, de forma que fui à busca da representante do segmento de pais no Conselho de Escola e relatei o ocorrido. Assim, foi-me sugerido que elaborasse um documento a ser apresentado na reunião desse Conselho, para que se discutisse tal situação. Esse documento deveria ser encaminhado ao Colegiado de Professores do CMEI. Assim sendo, redigi uma carta, na qual ponderava tal reavaliação, conforme se apresenta a seguir: Excelentíssima senhora diretora, professoras, funcionários/as responsáveis pelos/as alunos/as do CMEI Brilho de Luz e Solicito a ampliação do debate, no que tange à possibilidade de organização das turmas para o ano de 2007, já que me foi comunicado, em reunião com a professora de minha filha, e sendo em seguida confirmado pelas pedagogas do turno vespertino, que a formação atual das turmas não será mantida para o ano seguinte, em virtude de uma decisão tomada pelo grupo de professoras e funcionários dessa instituição, em assembléia anterior. Tenho ciência do quanto o ser educador/a no contexto público municipal atual tem sido algo muito complicado, haja vista as políticas públicas vigentes, em que dados quantitativos se sobrepõem a uma compreensão maior acerca do que se constitui por uma escola pública qualitativamente acessível a todos/as. [...] Caríssimas, tenho plena consciência de que 25 crianças, para uma professora em um CMEI, refletem uma visão liberal sobre educação no mínimo irresponsável. Agora, misturar todas as crianças, a cada ano, impedindo-as de fortalecerem sues laços afetivos, tão necessários a um momento singular em suas vidas, que representa o seu primeiro encontro com o contexto escolar, é muito prejudicial! Compreendo que, na vida, tudo se supera, mas tenho certeza de que, em uma concepção de educação pautada na formação de cidadãos críticos e capazes de transformar a sociedade, não há espaço para o enquadramento, principalmente quando concebemos que o ato de ler e escrever vai muito mais além de um gesto motor e, sim, celebra o momento de aceitação pela criança das ações educativas e, nesse sentido, temos, nós, da comunidade escolar, a obrigação de criar condições que favoreçam esse processo e não que o atropelem. Assim sendo, solicito a reconsideração acerca dessa decisão e me coloco em disponibilidade para, juntas, pensarmos condições que proporcionem um processo educacional libertador. Maria das Graças Carvalho Silva 145 Esse documento foi redigido num momento de extrema implicação pessoal, visto que acabara de saber que todo o movimento articulado com os três segmentos (pais, professores e funcionários) dessa comunidade escolar, ao longo do ano, havia sido desconsiderado por uma decisão, cuja representação, apesar de ter maioria quantitativa, havia representatividade de apenas dois dos três segmentos, ou seja, foi discutido entre os professores e funcionários, sem ao menos convidar um representantes do segmento de pais para participar de tal decisão. Assim sendo, em virtude de uma intervenção cirúrgica a que me submeti nos dias seguintes a esse fato, não pude avaliar as reais implicações desse movimento. Entretanto, para minha decepção, inicialmente, tal documento não surtiu o efeito desejado, ou seja, no ano seguinte, as crianças foram novamente separadas nas turmas, desconsiderando suas identificações pessoais e suas relações de afetos. Com vistas a analisar tal acontecimento, tomando como fio norteador a constituição do sujeito, compreendo que as subjetividades se esboçaram a partir de um discurso instituído por meio do regime de práticas, que toma nossos corpos como um objeto de reafirmação do poder suscetível a sucumbir às possíveis manipulações físicas e/ou psíquicas, com vistas a uma resposta desejada, mediante uma relação de docilidade-utilidade denominada disciplina (FOUCAULT 1995). Logo, aquela criança que não se enquadrar nas normas predeterminadas de ”bom’’ comportamento, precisa ser “regulada” a fim de ser passível ao convívio social, ou seja, separam-se os grupos “marginais” para que não tomem força no coletivo. Será preciso, então, instituir um modelo de sujeito que se autovigia, se auto-avalie e se narre ou se confesse capaz de se auto-escrutinar, se autoproblematizar para encontrar-se a si mesmo, isto é, fazendo um locus de pensamento e de ação, ou seja, a transformação da consciência de si. Nesse contexto, urge instituir regras como forma de operar uma história exterior de verdade, por onde o saber emerge de um suposto conhecimento que visa a homogeneizar-nos em “prol de nossa singularidade”. 146 [...] o conhecimento é ao mesmo tempo o que há de mais generalizante e de mais particular. O conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade. [...] o conhecimento é sempre um desconhecimento. [...] sempre algo que visa maldosa, insidiosa e agressivamente, indivíduos, coisas, situações. Só há conhecimento na medida em que, entre o homem e o que ele conhece, se estabelece, se trama algo como uma luta singular (NIETZSCHE, apud FOUCAULT, 1996b, p. 26). Dialogando tais considerações com o trecho narrado anteriormente, ao separarem as crianças indiscriminadamente no final do ano sob a égide da igualdade nas ações, o que se buscava legitimar, em meu entender, era a reafirmação de um poder punitivo e disciplinado, cuja concepção de infância e de educação ainda se encontrava fixada a pressupostos hegemônicos liberais, que concebem a infância/educação infantil como um excelente instrumento de regulação humana. Isso se confirmou quando obtive a seguinte resposta da pedagoga Kely: “O grupo resolveu manter a separação indiscriminada das crianças, por acreditar que assim elas dariam o mesmo tratamento a todas”. Mas quem disse que temos necessidades iguais? No entanto, este ano, ao direcionar as crianças para as turmas do ano seguinte, minha filha permaneceu junto ao seu grupo de colegas afins. Mais uma decepção, afinal, apesar de reconhecer que, na condição narcísica de mãe, sentia-me aliviada, o que estava em jogo naquele momento não era apenas uma questão pessoal, mas uma concepção de Educação/Educação Infantil e, principalmente, na perspectiva Inclusiva. A partir de então, fiquei a pensar: como ficaria Priscila, a criança autista que me chamou tanto a atenção inicial e todas as outras crianças com nee daquele CMEI? Como seria essa nova organização? E quanto às outras crianças, cujas famílias, por desconhecerem o poder subjetivante das práticas hegemônicas de assujeitamento, aceitaram isso “naturalmente”? Que implicações essa ação acarretaria aos processos de desenvolvimento infantil daquelas crianças? 147 Entretanto, apesar de ter perdido uma batalha, nunca desisti da guerra, de forma que, no ano seguinte, buscava, em todas as oportunidades obtidas, retomar tal debate trabalhando, inclusive, em nosso grupo de estudos, o texto de Michelli e Fischer (2007), intitulado: Infância na creche: um olhar inclusivo. Meu objetivo era analisar a prática da inclusão de crianças em instituições de Educação Infantil, buscando compreender o uso do termo "inclusão", a sua relação com o cuidado e a educação presentes no cotidiano de creches, instigando possíveis caminhos para uma pedagogia inclusiva e comprometida com o desenvolvimento infantil, conforme os trechos que se seguem extraídos do diário de campo. Nesse dia, sento-me com Ana e Kely e discuto com elas um texto que baixei na internet, denominado, Infância na creche. um olhar inclusivo, de Cláudia Regina Pinto Michelli e Julianne Fischer. Destaco os seguintes itens a serem debatidos: 1. Num determinado momento da permanência da criança na creche será inevitável o seu remanejamento, ou seja, a mudança de sua sala para outra devido a sua idade e também a demanda por vagas. Este remanejamento segundo os RCN's, precisa ser gradativo pois "as crianças pequenas [...] constroem vÍnculo afetivo com o adulto de referência, a base sobre A qual vão se sentir seguras para explorar o ambiente e se relacionar com novas pessoas". (REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL, apud FISCHER, 2003, p.3). 2. A mudança de sala quando não bem elaborada, pode soar para a criança como um desagrado, uma rejeição, algo que ela tenha feito e não foi bem sucedida ou aceita e por isso não a querem mais no grupo. Esta situação requer atenção específica dos educadores por se tratar de um momento onde ocorrerá a inclusão ou a exclusão. "É possível excluir pela forma como se olha, como se pensa, como se fala, como se age ou como se deixa de agir." (FISCHER, 2003, p.5). Uma nova sala, com novos educadores e crianças torna-se uma experiência que gera sentimentos diferentes na criança. Que sentimentos são esses? Como perceber e compreender esses sentimentos e de que maneira conduzir essa nova experiência? A criança, na nova turma pode transparecer insatisfação, medo, angústia, ansiedade. Muitas vezes chora, briga, faz birra. Prefere brincar isoladamente, retrai-se quando precisa interagir. As emoções [...] exprimem e fixam para o próprio sujeito, através do jogo de atitudes determinadas, certas disposições específicas de sua sensibilidade. Porém elas só serão o ponto de partida da consciência pessoal do sujeito por intermédio do grupo, no qual elas começam por fundi-lo e do qual receberá as fórmulas diferenciadas de ação e os instrumentos intelectuais, sem os quais lhe seria impossível efetuar as distinções e classificações necessárias ao 148 conhecimento das coisas e de si mesmo (WALLON, apud FISCHER, 2003, p.7). O remanejamento da criança para outra turma pode parecer para nós adultos algo normal, sem maiores complicações. Porém para a criança representa uma perda de algo significativo naquele momento, que são os colegas, o educador, os brinquedos, as brincadeiras, o próprio ambiente onde de certa maneira já estava adaptada lhe expressava conforto, segurança, acolhimento (FISCHER, 2003, p.7). Inicialmente, Ana e Kely ficaram em silêncio, ouvindo-me discutir cada trecho do texto. Ao final, ambas afirmaram que foram contrárias à decisão de separação das crianças, mas foram votos vencidos. Digo a elas, então, que perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. Nesse sentido, sugiro a Kely levar esse texto para o grupo de estudo dos professores e me proponho a participar, caso o grupo ache pertinente. Kely encerra o encontro afirmando ser uma boa idéia e promete sugerir ao grupo, todavia essa proposta nunca se concretizou, uma pena! (4-5-2008) Um outro fio que busquei tecer com o grupo foi no sentido de que a noção inicial de que as coisas caminham de forma caótica (PRIGOGINE, 1996) poderia nos impulsionar a interessantes movimentos de criação. Logo, a “agitação” que pulsava naquelas crianças deveria ser ressignificada num sentido mais coletivo, isto é, o excesso de brincadeiras de lutas que as crianças apresentavam poderia nos apontar questões de sexualidade que muitas vezes desconsideramos nesse segmento. Uma outra possibilidade, em relação à forma agressiva como eles se tratavam, nos provoca a pensar questões acerca dos afetos e das emoções na Educação Infantil. Entretanto, o que não podíamos perder de vista era o fato de que isso era apenas indícios que deveriam ser investigados e problematizados pedagogicamente, a partir deles e não sobre eles. Assim, apesar de compreender que tais mudanças levam diferentes tempos/modos para serem, de fato, instituídas no/pelo grupo, ao final do ano, fui informada por Kely que os professores haviam decidido em reunião que, no ano seguinte, não seria mais realizada tal prática com as crianças. Pegando carona na fala de Joana: “Yes, instituímos mais uma prática inclusiva!”. 149 Dialogando tais considerações com as imagens captadas no/pelo CMEI, apesar de reconhecer que noções, como liberdade, dignidade e respeito, são forjadas na/pela cultura, e que, portanto, apresentam-se num movimento constante, pode-se perceber/captar o quanto algumas micromacroações legais direcionadas à educação infantil, por mais que se encontrassem textualmente comprometidas com a transformação social, ainda operavam pela via de biopolíticas26 cujos agenciamentos velados, ou não, atuavam sobre corpos que ali habitavam. Em meu entendimento, alguns modos de práticas instituídas na/pela paisagem forjavam estratégias organizativas que reafirmavam o panoptismo,27 que se configuravam a partir de uma organização arquitetônico-funcional que impõe rotinas de horários, de disposição dos espaços, de determinação de padrão alimentar de organização dos grupos, entre outros. Nesse sentido, não poderia deixar de problematizar tais movimentos, por acreditar que, da forma como eles operavam, atendiam bem mais aos processos, sutis e velados, de disciplinarização e assujeitamento daquelas crianças (FOUCAULT, 1975), do que a uma simples possibilidade de organização do tempo/espaço. Uma outra questão a se destacar refere-se ao fato de que essas ações desconsideravam a necessidade de liberdade de movimento28 que pressupõe os processos de desenvolvimento humano infantil da descoberta da vida pela via do movimento, de forma crítica e transformadora, como preconizam os documentos oficias voltados para a Educação Infantil, em especial o Plano Nacional de Educação Infantil, ao conceber a criança [...] como criadora, capaz de estabelecer múltiplas relações, sujeitos de direito, um ser sócio-histórico produtor de cultura e nela inserido. Na construção desta concepção, as novas descobertas sobre a criança, trazidas por estudos realizados nas universidades e nos centros de pesquisa do Brasil 26 A perspectiva biopolítica representa a forma pela qual o poder vai operando na subjetividade humana, no intuito de governar não somente os indivíduos, mas tudo que o cerca, pela via das ações políticas em todas as áreas (REVEL, 2005). 27 O panóptico de Bentham era uma estrutura arquitetônica criada para as prisões no século XIX, na qual células individuais na periferia de um edifício circundavam uma torre central de forma que cada cela fosse observada por ela ao mesmo tempo, produzindo a sensação de vigília constante, de forma a assegurar o funcionamento do poder (FOUCAULT, 1975). 28 Aqui compreendido como uma linguagem culturalmente construída na/pela sociedade (SOARES et al., 1992) 150 e de outros países, tiveram um papel fundamental. Essa visão contribuiu para que fosse definida, também, uma nova função para as ações desenvolvidas com as crianças, envolvendo dois aspectos indissociáveis: educar e cuidar. Tendo esta função, o trabalho pedagógico visa atender às necessidades determinadas pela especificidade da faixa etária, superando a visão adultocêntrica em que a criança é concebida apenas como um vir a ser e, portanto, necessita ser ‘preparada para’ (BRASIL, 2006, p.8). Assim, no intuito de melhor compreender tais considerações, destacarei, a seguir, alguns desses modos, tomando como ponto de partida a forma como as refeições eram organizadas e oferecidas às crianças diariamente nesse CMEI, bem como apresentarei as táticas29 (CERTEAU, 1994) e/ou formas de (re)existencias (FOUCAULT, 1996) instituídas pelas crianças, professores, mães e, também, por mim, a pesquisadora, em frente a essa condição. 4.1.2 O momento das refeições: o que temos para comer hoje? De acordo com a rotina desse CMEI, as refeições eram oferecidas da seguinte forma para as crianças do turno vespertino: por volta das 13h30min, era servida, em sala de aula, uma fruta. Em torno de 14h15min, as crianças iam ao refeitório para lanchar outra fruta. A partir de então, para as crianças de até três anos era servido jantar às 16h e, para os maiores de quatro anos, era servido um lanche com bolos, pizzas, pães, dentre outros alimentos, também no refeitório, por volta das 15h20min. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, apesar de reconhecer a necessidade alimentar das crianças nesse período de desenvolvimento, em especial as de escolas públicas, muito tempo se levava nessas refeições. Façam as contas a partir de um relato extraído do diário de campo. [...] Hoje, no planejamento coletivo, fiz algumas considerações sobre a formação continuada, os planejamentos individuais/coletivos. Discutimos sobre minha ida ao planejamento de 5ª para divulgar o ciclo de debates e resolvi entrar no assunto do lanche/fruta a fim de contextualizar o quanto essa rotina alimentar interferia no tempo pedagógico das crianças em sala de aula: - 13h 15min: chegada das crianças ao CMEI; 29 Em Certeau (1994), táticas são compreendidas como um movimento que emerge “dentro do campo de ação do inimigo” ou, como nos diria Foucault (1996a), operam com práticas de (re)existência, sendo, portando, um momento de criação. 151 - 14h fruta (quando era servida a melancia ou a abacaxi, as crianças desciam para o refeitório visto que sujavam a sala de aula ao comerem tais frutas); - 15h 20min: lanche propriamente dito; - 16h 40min: voltam para sala do pátio/recreio. Digo ao grupo que, a meu ver, considerando o tempo que elas levam para se preparar para descer/subir às salas, sobra muito pouco tempo em sala de aula e, no meu entender, isto comprometia os processos pedagógicas das crianças envolvidas. É lógico que tentei falar com cuidado, mas fui sincera nesta conversa. Kely concordou comigo, porém disse que a questão da melancia e do abacaxi tem a ver com a necessidade de se ter um cardápio mais nutritivo e variado para as crianças. Eu, como devoradora de frutas, sugiro, então, outras frutas, que tenham um preço também acessível, mas que não dão tanto trabalho para comer. Ela me diz que sabe que tenho razão e vai tentar falar com a Diretora, visto que, no antigo CMEI em que trabalhou anteriormente, as crianças não desciam para a cantina e sim a fruta é que ia para a sala, porém, como o serviço é terceirizado, fica complicado trabalhar com profissionais da cozinha, pois eles dizem que ganham muito pouco pelo que trabalham e conclui: - Eu sei que a parte pedagógica é importante, mas a alimentação das crianças também é! Concordo com a fala de Kely, mas afirmo: - Você tem toda a razão, no entanto podemos pensar em caminhos que favoreçam esses dois lados não acha?! (4-5-2008) Segundo informações da pedagoga, a decisão de determinar lanche para as crianças maiores e jantar para as menores se deu em 2006, ocasionada por meio de uma pesquisa desenvolvida pelo Conselho de Escola destinada aos responsáveis por esses alunos. A maioria dos respondentes preferiu o lanche em detrimento ao jantar, apesar de alguns responsáveis não concordarem como o resultado final, pois defendiam o jantar para todos. Em relação ao cardápio, ele foi construído por uma equipe de nutricionistas da rede municipal, cuja sistematização buscava alternar os alimentos oferecidos com diversos nutrientes, de forma a favorecer uma refeição saudável e nutritiva a todos/as. No entanto, a meu ver, esse cardápio pecava, inicialmente, por ter sempre uma única opção de oferta, impossibilitando ao grupo de crianças o direito de escolha, até porque era proibido trazer lanche de casa, pois, segundo falas da direção do CMEI, essa era uma determinação da Secretaria Municipal de Educação, no intuito de minimizar as diferenças sociais e econômicas ali presentes. Assim, quem não gostava do que era oferecido ficava sem se alimentar. 152 Analisando tal condição, apoio-me nas ferramentas de Foucault (1987), entendendo que esta prática ainda opera numa perspectiva de assujeitamento, engendrando micromacropolíticas hegemônicas de reafirmação de força. Nessa lógica, “alguém”, que supostamente possui um “saber” legitimado cientificamente, sempre terá o poder de determinar as ações, neste caso, o cardápio, impondo, por conseqüência, hábitos alimentares sem favorecer a liberdade de escolha, visto que não havia, inicialmente, ao menos, mais de uma opção de alimentação. Assim sendo, aqueles que não se identificavam com o cardápio oferecido ficavam com fome e ainda eram vistos como um sujeito desviante pelo contexto, conforme fala de uma professora ao responder a uma criança, quando ponderava o tipo de fruta que lhe era oferecida: “Tem que comer o que tem, não tem essa de escolher, não!”. Buscando analisar tal fala numa perspectiva arqueológica e, também, ética, compreendo que essa afirmação que, inicialmente operava no intuito de “incentivar” a criança a se alimentar, ia ao encontro de práticas hegemônicas disciplinares de assujeitamento, já que opera com vistas à produção subjetiva dos indivíduos, na qual tudo deveria ser minimamente pensado, inclusive a interdição de um simples paladar. Para tanto, era preciso não só vigiar, mas também punir os desviantes, seja por meio dos regulamentos minimamente dispostos, seja pelo olhar regulador que dirige ao próximo, enfim, tudo em prol da administração singular das vidas humanas em busca de uma docilidade que produza a eficiência (FOUCAULT, 1996b). Assim sendo, em frente a essa realidade, algumas crianças sucumbem e comem o que está posto, outras ficam com fome, e estas, efetivamente, me preocupam, afinal, saem de casa por volta das 12h e só retornam às 18h; e outras, as que conseguem subverter tal lógica, trazem de casa lanche para comer escondido da professora. Fato este por mim presenciado diversas vezes. Certo dia, em sala, a observar um grupo de crianças, deparo-me com uma criança escondida embaixo da mesa comendo uma batata frita que havia trazido na mochila. Ela, imediatamente, faz sinal 153 para eu me silenciar, como se estivesse implorando para não ser delatada, instaurando aí uma subjetividade de culpa por transgredir uma regra “socialmente imposta” e, ao mesmo tempo, (re)existente, isto é, instituintemente criativa. Direcionando esse contexto para Miguel, este, quase sempre, não comia nada no CMEI por não apreciar o que lhe era oferecido, até que, numa reunião com sua mãe, Anelise, ela me disse que, quando era jantar, Miguel ainda comia, porém, quando essa refeição foi substituída pelo lanche, ele não mais se alimentou no CMEI. Eu, então, subvertendo a lógica presente, digo a ela para conversar com a pedagoga a fim de solicitar para Miguel o direito ao jantar, tendo em vista o fato de ser oferecido jantar para os pequenos às 16h, o que passou a acontecer a partir de então, mas somente para ele e não para o grupo. Em relação a Mateus, inicialmente, ele comia tudo o que lhe era oferecido. No entanto, ao final do segundo semestre, Mateus iniciou uma dieta que o impedia de ingerir alimentos a base de glúten. Ele não podia comer muitas coisas oferecidas no cardápio, de forma que ele também passou a trazer o lanche de casa. Todavia Mateus, também operando de forma (re)existente e criativa à sua dieta, “surrupiava” algumas guloseimas dos colegas que se encontravam “guardadas/escondidas” em suas respectivas mochilas. No que se refere às minhas movimentações em frente a esse modo da prática, vivi uma situação na condição de sujeito que pesquisa e, também, é pesquisado (GARCIA, 2003), cujo contexto disparou em mim implicações, conforme o relato extraído do diário de campo: Hoje, ao ir para o refeitório a fim de ajudar a professora Ana com o lanche das crianças, deparo-me com minha filha me pedindo ajuda, pois estava um calor insuportável, por volta de 37°, e o lanche oferecido era suco de maracujá com bolo. Ela dizia não gostar do bolo e, como em casa temos como hábito discutir sobre a importância de uma alimentação saudável, possibilitávamos sempre a ela, pelo menos, uma opção para escolha. Nesse sentido, penso que ela esperava de mim alguma solução, porém percebi que isso não era possível e aí ela começa a chorar, dizendo-me não querer comer aquele lanche. Não foi fácil! . Tenho consciência de que, nesse dia, havia dubiedade de sentimentos de minha filha em relação a mim, ou seja, era o primeiro momento em que ela me via próxima a ela numa situação desfavorável, 154 mas em absoluto, não poderia me utilizar dessa condição para se beneficiar. Para resolver pontualmente a questão do choro, procurei sua professora e perguntei-lhe se poderia conversar um pouco com minha filha, afinal era tudo muito recente para ela. A professora tranqüilizou-me dizendo que, nesta turma, havia quatro crianças filhas de funcionárias e que ela já estava acostumada a essa situação, só não gostava muito da postura de uma professora que sempre levava outro tipo de lanche para sua filha, apesar de isso ser proibido no CMEI. Assim sendo, conversei com minha filha acerca de minha condição e limitação de ação naquele momento, isto é, não tinha realmente outro tipo de lanche a oferecer, de forma que ela ficou com fome até a hora de irmos embora, quando lhe comprei pipocas no horário da saída. Assim sendo, adotei o seguinte encaminhamento: procurei a pedagoga e, na condição de mãe, relatei tal situação solicitando, ao menos, o oferecimento de bolachas como alternativa, o que foi prontamente atendido, apesar de reconhecer que isto não resolvia a situação posta.[....] A partir de então, até porque já haviam sido feitos questionamentos acerca dessa situação no CMEI, foram tomadas providências no sentido de sempre oferecer bolachas às crianças como alternativa, o que também não resolvia o problema, no sentido de instituir um hábito alimentar saudável e nutritivo, visto que as crianças passavam a comer as bolachas, ou seja, matamos a fome de algumas crianças, porém não instituímos práticas alimentares que acreditamos serem mais saudáveis. Buscando compreender tal narrativa, de acordo com Foucault (1996), os envolvidos nesses movimentos nem sempre têm noção sobre esse contexto, visto que o sistema prescritivo está explícito ou implicitamente dado nas práticas vigentes, constituindo por isso um sujeito moral, que age influenciado por um código de comportamento preestabelecido. No entanto, Marshall (1994) nos alerta para o fato de que esses processos se corporificam em nós na medida em que adotamos e aceitamos esses regimes. Assim sendo, compreendo que gerar políticas em um contexto tão diverso como este não é nada fácil. No entanto, ao nos remetermos ao que diz o art. 227 da nossa Constituição Federal (apud BRASIL, 1988), vislumbramos que ela, pelo menos de forma prescritiva, preconiza o pleno desenvolvimento da criança privilegiando um contexto pautado na liberdade, na dignidade e no respeito à sua condição de criação: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2006, p. 4). 155 Reconhecendo tal complexidade afinal, segundo informações colhidas, o valor gasto com cada refeição era de R$0,36 centavos (grifo nosso). Todavia, problematizo a seguinte questão: se estamos comprometidos com a formação de sujeitos autônomos e criticamente capazes de promover a transformação social num sentido mais humano a todos, não podemos perder de vista, ao longo de nossas ações pedagógicas, o exercício democrático do direito à escolha. Tomando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, no art. 59, como ponto de reflexão, ela nos preconiza uma organização dos sistemas de ensino, pautada na criação, na liberdade e na compreensão do caráter social das relações, considerando a capacidade humana de desenvolver valores de dignidade e cidadania, de respeitar esses pressupostos com vista a modificá-los na construção do processo social, de forma que [...] os sistemas de ensino devem assegurar aos alunos currículo, métodos, recursos e organização específicos para atender às suas necessidades; assegurando a terminalidade específica àqueles que não atingiram o nível exigido [...], em virtude de suas deficiências e a aceleração de estudos aos superdotados para conclusão do programa escolar (BRASIL, 1996, p.8), Assim sendo, seria interessante que aquele contexto investisse coletivamente na instituição de práticas pedagógicas que abordassem tal temática junto com as crianças. Como sugestão, o CMEI poderia estimular os professores ao desenvolvimento de um projeto pedagógico multidisciplinar junto/com seus alunos, de forma a permear o debate acerca da alimentação e da qualidade de vida dos indivíduos, tomando como foco o conhecimento acerca dos alimentos e suas funções no desenvolvimento de uma vida saudável. Como estratégias didáticometodológicas, poderiam brincar com a produção de alguns alimentos, levando as crianças a participar da construção coletiva de um cardápio de base nutritiva, que não perdesse de vista a singularidade daqueles indivíduos. 4.1.3 A espera dos pais ao final do dia: a dor e a delícia de ser diferente Outra prática que gostaria de destacar refere-se ao encaminhamento dado pelas professoras das turmas acompanhadas, no que tange ao momento compreendido entre o final do recreio e a hora de saída das crianças em direção às suas 156 respectivas casas. Momento este que, freqüentemente, se configurava no fato de as crianças, ao retornarem à sala, após o recreio, calçar seus sapatos, organizar suas mochilas e ficarem sentadas em fila abaixo do quadro por volta de 20min, à espera de seus responsáveis conforme imagem que se segue (FOTO 10). FOTO 10. Crianças em sala à espera da hora de ir para casa Reconheço o quanto é desafiador e corajoso para estas professoras ter de assumir sozinha uma turma na Educação Infantil com 25 crianças, No entanto penso que esse modo de prática era algo muito difícil para ser cumprido pelas crianças, principalmente após o recreio, quando a maioria subia para a sala de aula num crescente agitação. É interessante destacar que, em relação a Mateus e Miguel, essa regra não funcionava, já que o primeiro se safava, pois ia embora sempre por volta das 16h 30min, em virtude de um acordo feito anteriormente com sua família, pelo fato de que, a partir desse horário, “Ele ficava muito agitado’’ (fala de Ana). Fato este também passível de reflexão, haja vista defendermos, como princípio inclusivo, o fato de a escola adaptar-se às necessidades dos alunos e não o movimento contrário. Analisando tal ação, entendo que a escola deve ter autonomia para gestar suas políticas inclusivas e, nesse sentido, práticas como procurar inserir/adaptar 157 gradativamente, algumas crianças com agravos mais severos nos contextos educacionais regulares pode ser uma alternativa. Entretanto, isso não se aplicava à Mateus, haja vista o fato de ele já freqüentar aquele CMEI há mais de três anos. Em meu entender, essas ações operavam no campo da descriminação e em nada favoreciam o projeto inclusivo que defendemos no sentido de “[...] uma dimensão de direitos humanos e justiça social que pressupõe o acesso pleno e a participação de todos nas diferentes esferas da estrutura social, a garantia de liberdades e direitos iguais e o estabelecimento de princípios de eqüidade” (DUTRA; GRIBOSKI, 2006, p. 209). Retomando Foucault (1997), a sociedade moderna se constituiu numa civilização inquisitória que há séculos pratica, de forma cada vez mais complexa e sutil, a extração, o acúmulo e os deslocamentos do saber, nos quais ações, como exilar, compensar, expor, enclausurar, são opções de punição para os considerados delinqüentes (loucos, marginais, leprosos, etc.) que subvertem essa ordem. Por esse aspecto, limitar o tempo de permanência de uma criança na escola, considerando o fato de que todas as apresentações artístico-culturais ocorriam a partir das 16h30min, não me parecia favorecer a inclusão de Mateus, ao contrário, reafirma o paradigma tradicional da organização do sistema de educação que defende uma lógica segregada de educação, conforme afirmam Dutra e Griboski a seguir, A educação inclusiva orientada pelos princípios dos direitos humanos e pela proposta pedagógica de que todos podem aprender passa a contrapor o paradigma tradicional da organização do sistema educacional, que conduzia políticas especiais para pessoas com deficiência definidas no modelo de segregação e de integração, com ênfase na abordagem clínica. Seguindo a lógica de escolas especiais organizadas a partir da identificação da deficiência ou do encaminhamento desses alunos para classes especiais, essas políticas conduziram a espaços segregados, entendidos como seu lugar de destino, que acabam por discriminar e excluir alunos em razão de deficiências, desvantagens, dificuldades e atitudes. A partir dessa compreensão, os professores, na sua relação com a comunidade, podem identificar elementos que contribuam na elaboração de estratégias pedagógicas, favorecendo a intervenção no enfrentamento da exclusão educacional e social. Uma tarefa fundamental é organizar as escolas para a eliminação das barreiras, o fortalecimento das relações entre a escola e a família, o acesso aos serviços sociais da comunidade, o planejamento participativo, a troca de experiências no trabalho pedagógico e o 158 desenvolvimento de mecanismos de gestão que priorizem a inclusão educacional (2006, p. 212). Retomando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, art. 59 (apud MINITÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2008), o Decreto nº 6.094/2007 determina não só o “Compromisso de Todos pela Educação”, mas, também, visa a assegurar o acesso e a permanência do aluno cidadão no ensino regular, reconhecendo o direito ao atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos, com vista à implantação de uma política de inclusão educacional nas escolas públicas. Entretanto, quando analisamos os índices de distribuição de matrículas por etapa e nível de ensino do ano de 2006, identificamos que somente 16% dessa população se encontram na educação infantil e, nesse âmbito da educação infantil, as crianças com nee se concentram, prioritariamente, em escolas/classes especiais e poucas freqüentam turmas comuns regulares, o que vai de encontro aos princípios que defendem a convivência e a aprendizagem entre crianças, com ou sem deficiência, desde a infância, em classes “preferencialmente comuns”. Segundo o texto: O desenvolvimento de estudos no campo da educação e a defesa dos direitos humanos vêm modificando os conceitos, as legislações e as práticas pedagógicas e de gestão, promovendo a reestruturação do ensino regular e especial. Em 1994, com a Declaração de Salamanca se estabelece como princípio que as escolas do ensino regular devem educar todos os alunos, enfrentando a situação de exclusão escolar das crianças com deficiência, das que vivem nas ruas ou que trabalham, das superdotadas, em desvantagem social e das que apresentam diferenças lingüísticas, étnicas ou culturais. O conceito de necessidades educacionais especiais, que passa a ser amplamente disseminado, a partir dessa Declaração, ressalta a interação das características individuais dos alunos com o ambiente educacional e social, chamando a atenção do ensino regular para o desafio de atender as diferenças. No entanto, mesmo com essa perspectiva conceitual transformadora, as políticas educacionais implementadas não alcançaram o objetivo de levar a escola comum a assumir o desafio de atender as necessidades educacionais de todos os alunos (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2008, p.16, grifo nosso) Acredito que um dos motivos que acarreta tal dificuldade se pauta no fato de que, como diria Foucault (1975), para além da disseminação e da vigilância, ocorre também a classificação do comportamento humano com o objetivo de diagnosticar possíveis desvios, tendo na disciplina um significativo instrumento para obter o 159 denominado biopoder,30 com vistas à produção de indivíduos eficientes. Todavia, onde há poder também poderão surgir possíveis movimentos de (re)existências, isto é, outras/novas formas de agir em frente ao que está posto, visto que “[...] as relações de poder, não emanam de um ponto central ou de um núcleo único de soberania, e sim vão constantemente ‘de um ponto ao outro’ [...] constituem as estratégias anônimas” (DELEUZE, apud SINGER,1997, p. 45). Outro aspecto acerca das bioplolíticas de assujeitamento que nos operam são os estudos de Ratto (2004), que reafirmam tal consideração quando, ao discutir as questões disciplinares a partir dos registros existentes nos livros de ocorrências de uma escola pública de Curitiba, apontam que a lógica disciplinar que move esses registros é produzida socialmente e na/pela escola, sendo indissociável da lógica que a instituiu, que visa, por meio de uma lógica disciplinar, a controlar tudo o que ocorre num processo permanente de vigilância, de avaliação e de julgamento, entre outros. Para o autor, esses processos levam os alunos a ocupar uma posição constante de culpado, num movimento complexo de afirmação/negação/(re)afirmação desses registros, sejam eles reais, sejam simbólicos, de forma que todos os atores envolvidos ocupem o “banco dos réus”. Logo, as práticas pedagógicas, determinando o tempo de permanência de uma criança na escola ou mesmo legitimando uma prática corporal para se aguardar a chegada dos pais se fundamentam em técnicas particulares de governamentalidade, cujas regras e práticas atuam sobre os corpos, produzem regimes corporais políticos particulares, em que as relações de poder/saber, auto-impostas ou impostas pelo e/ou sobre os que ali habitam, perpassam esses processos. Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito do poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz; reforça, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo [...]. Não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro, contraposto (FOUCAULT, apud GORE, 1994, p. 15). 30 Biopoder: forma de poder dirigida à governamentalidade e a formas de dominação política (MARSHALL, 1994, p. 32). 160 Nesse aspecto, Bujes (2002), investigando a infância fabricada na/pela Modernidade, como uma diferença compreendida à luz de sua singularidade, aponta o quanto as ações públicas no Brasil instituem e reafirmam em suas políticas educacionais, em especial pela via do Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil/RCNEI, ações de “[...] governamentalidade como elemento indispensável para a Razão do Estado” (p.10). Ampliando tal reflexão para Miguel, este, usando e abusando de sua condição de “criança especial”, ignorava tal norma, ficando a perambular livremente pela sala enquanto seus colegas permaneciam sentados na parede à espera de alguém que os “libertassem”. Tomando os estudos de Linhares para analisar tal contexto, este processo de regulação torna a escola amplamente excludente aos seus pares e nos mostra o quanto ela não se encontra preparada para lidar com as particularidades da população que a compõe, até porque, em muitas dessas escolas, não encontramos nem mesmo os projetos hegemônicos que tanto criticamos destinados à elite na época em que surgiram, conforme nos afirma a autora: Os pobres entraram na escola e com eles ampliou-se o número de mulheres, de negros, de mestiços, de alunos especiais, de jovens, adultos e idosos. [...] até pouco tempo atrás o solo das escolas era regado pelos interesses das elites que cuidavam das escolas [...]. Dentro da escola pública não encontramos o velho projeto das elites nem dispomos de um projeto que articule de forma nova tantas experiências promissoras para facilitar nossa construção de futuro (LINHARES, 2001b, p. 25). Entretanto, para redefinir o que está posto, precisamos nos aproximar e entender a escola que existe e, a partir daí, pensar coletivamente em propostas includentes, que favoreçam à vida que pulsa no chão das escolas, pois “[...] não adianta generalizar e dizer que a escola não presta. Até porque não é verdade” (LINHARES, 20011, p. 19). No entanto, trago, a seguir, outrasnovas considerações que acredito serem pertinentes de se problematizar no âmbito da infância e dos processos de desenvolvimento infantil inclusivos, por conceber que, apesar das diversas práticas 161 inclusivas instituintes evidenciadas ao longo estudo, estas não favoreciam uma concepção de infância/educação infantil que reconheça o respeito à liberdade e à criação humana, como forma de (re)existir ao que se encontra instituído na/pela sociedade vigente. Para tanto, efetuaremos uma breve contextualização sobre a infância e os diferentes modos de interdição, para, na continuidade, narrar alguns fatos que gostaríamos de problematizar visto a forma como eles se encontravam instituídos no/pelo grupo. 4.2 INFÂNCIA, PRÁTICAS EDUCACIONAIS E PROCESSOS INCLUSIVOS De acordo com Müller e Redin (2007), ao dissertar sobre “As crianças, a infância e as práticas escolares”, a figura da criança sempre foi reconhecida em nossa sociedade ao longo dos tempos. Entretanto, o que vem sofrendo alterações consideráveis são as diversas representações que o conceito de infância vem ocupando nos processos de evolução humana de forma a receber, por conseqüência, diferentes tratamentos no que se refere à função social das crianças em nossa sociedade. Os estudos de Áries (1981) nos apontam que, historicamente falando, na Idade Média, a concepção de infância não era legítima, visto que as crianças eram concebidas como “adultos em miniaturas”. Logo, inexistiam políticas voltadas à proteção e aos cuidados delas, bem como ao reconhecimento às particularidades intrínsecas aos processos de desenvolvimento infantil. Assim sendo, sem os cuidados maternos ou da ama e ingressando na sociedade dos adultos a partir dos sete anos de idade, muitas delas não sobreviviam por muito tempo. Ainda de acordo com o autor, a gênese e a evolução do conceito de infância tomam força na Modernidade, tendo na família e na escola seus dois grandes pilares de 162 sustentação. Para Áries (1981), a forma como a infância foi se constituindo com o passar dos tempos sempre esteve atrelada a um contexto político e cultural. Nesse contexto, em detrimento dos anseios políticos e econômicos que atravessavam a sociedade naquele momento, cujos “avanços” tecnológicos que emergiram urgiam uma nova configuração social, a categoria de infância toma corpo, porém de forma interditada e, portanto, marginalizada econômica, social e politicamente, sob a égide dos adultos, seus responsáveis e tutores. Todavia não podemos deixar de considerar que os índices de mortalidade infantil reduzem significativamente. A ciência, então, torna-se uma aliada para se conhecer os processos de desenvolvimento infantil, cujo ideário acerca desse segmento, a partir de uma concepção socialmente construída, intitula a ciência um ser dependente e incompleto, justificando a sua condição de marginal, isto é, fora da margem, e submetido à interdição abusiva dos adultos. No intuito de se legitimar tal concepção de educação e de infância, ocorreram mudanças paradigmáticas na forma de se pensar e gestar a educação para esse segmento, de forma que a educação volta-se para a infância. Período este em que emergem diversas teorias com seus respectivos pensadores (ROUSSEAU; PESTALOZZI; KORCZAK apud, SINGER, 1997), cujos dispositivos presentes em suas propostas educacionais tinham como foco a formação dos futuros adultos em potências. Nesse contexto, Singer nos provoca a refletir: “A infância não é de fato conhecida porque se procura o adulto na criança e esquece-se de olhar pra ela como um ser que tem lugar na ordenação do mundo” (1997, p. 69), ou seja, a busca instituir práticas agenciadoras nos impediu/e de conceber a criança como um ser que possui um imenso poder de criação cultural e, por isso, precisa ser potencializado e não regulado. 163 Direcionando essas análises para os contextos escolares, Gallo (2006, p.187) aponta a escola como uma das instituições sociais de seqüestro e de assujeitamento humano: Sabemos que a ‘virada’ é marcada pelo predomínio da moral cristã, uma moral fundada na negação de si mesmo. É quando o individuo se nega, para chegar a Deus, que baixa a guarda e permite que se construam, cada vez mais intensamente, as ‘instituições sociais de seqüestro’, como a escola, o quartel, o hospital, que confinam o individuo e o disciplinam, num processo de subjetivação que é, sobretudo, assujeitamento. Para Foucault (apud BUJES, 2001), o poder disciplinador, ao atingir seu ápice na Modernidade, sob a égide da eficácia física e psíquica, em contrapartida à ideologia da renúncia tão bem disseminada na Idade Média, tinha como premissa determinar um conjunto de signos que permitisse certas asserções de verdades, no intuito de que a racionalidade assumisse o lugar até então ocupado por Deus, com vistas à produção de indivíduos subservientes ao poder. Por esse aspecto, caberia às instituições escolares produzir uma série de condições para a sua organização, a fim de satisfazer esse projeto, como a organização do espaço e do tempo e do currículo, os blocos disciplinares, os exames, as classificações e promoções dos alunos, a fim de se estabelecerem padrões de “normalidade” entre os corpos. Os exames escritos – diferentemente das grandes provas orais, nas quais os alunos tinham de demonstrar (provar...) sua competência – foram exatamente os instrumentos que colocaram em marcha tanto as técnicas de vigilância (permanentemente hierarquizadas) quanto as técnicas de julgamento normalizador. Os resultados disso são bem conhecidos: de anônimos, tornamo-nos indivíduos objetivados e submissos (VEIGA-NETO, 1994, p. 236). Logo, teriam poder aqueles que apresentassem um “suposto saber”, visto que, na concepção foucaultiana, esse saber se faz necessário politicamente ao contexto, já que o poder se encontra em todos os lugares, mas não é exclusividade de ninguém; ele, simplesmente, atravessa e é atravessado por todos nós. Nessa concepção, os poderes disciplinares tiveram sua gênese e fixação na Educação, por onde emana um modelo de indivíduo a ser seguido mundialmente, tendo, nas práticas pedagógicas, o elemento de conexão entre o poder e o saber. 164 De acordo com Gallo (2206, p.187): “Na escola moderna, os processos de formação foram constituídos como processos de subjetivação externa, heterônima, constituindo sujeitos para uma máquina social de produção e de reprodução”. Essas práticas apresentavam-se como um interessante alvo dos projetos de governamentalidade, pelas possibilidades existentes de se estabelecerem mecanismos para fixar um “modo de ser criança/indivíduo”, constituindo-se, assim, preocupação não somente do governo formal, mas também de inúmeras agências e instituições que têm como propósito tomá-la a seu cargo. As crianças modernas se constituíram como produto de um continuado e complexo processo de definição. São o resultado de uma ‘montagem’ no interior de um conjunto de práticas discursivas. O sujeito infantil, tal como conhecemos hoje, vai resultar de atividades que envolvam a linguagem, tais como: contar, listar, agrupar, chamar, dar ordens, cantar, contar, confessar, examinar, diagnosticar, fazer um relatório, planejar uma aula, montar um currículo, realizar uma pesquisa [...] (BUJES, 2001, p. 3). Ao direcionarmos essas considerações, com vistas a compreendermos os diferentes modos de pensar as práticas pedagógicas de base inclusivas, entendo ser necessário retomar a premissa de que esses movimentos urgem constantemente, por reflexão, no sentido de que aquilo que, a priori, definimos por um prática equivocada pode ser ressignificado no sentido de uma outranova forma de se configurar tais práticas. Um suposto “erro”, inicial pode nos apontar caminhos a partir da possibilidade de criação que se reestrutura por uma dimensão coletiva e solidária. Assim sendo, muitos estudos vêm sendo tecidos com vistas a subverter as tentativas hegemônicas de sujeição. Dentre eles, destaco o estudo de Dau (2003), ao procurar entender o funcionamento do poder/saber como uma técnica social de normalização e de limitação humana, ao defender que é pela via de um debate acerca das relações de poder/saber que o indivíduo fugirá ao assujeitamento normalizador, quando entender com profundidade e extensão o fato de essas relações nem sempre se encontrarem estáveis e harmônicas. Nesse sentido, é preciso contextualizar o fato de que o poder, aqui, não é somente concebido como algo negativo e/ou positivo, mas também é plural e onipresente e 165 se produz em todos os espaços microfísicos que habitam as lutas sociais a partir das próprias relações, gerando, constantemente, novas formas de se constituir. Quanto ao saber, este pode estar diretamente ligado ao poder, mas numa relação marcada pela instabilidade. Não podemos deixar de evidenciar que essas práticas se constituem em verdadeiras arenas de lutas, uma vez que o poder se liga a estratégias tanto de dominação quanto de (re)existência e, nesse aspecto, as crianças ditas especiais estão aí para nos instigar a produção de outrasnovas formas de se pensar os processos educacionais, num movimento complexo e não-linear, como matizes sem ponto de partida muito menos de chegada. Nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação, de registro, de acumulação, de deslocamento, que é em si mesmo uma forma de poder, e que está ligado, em sua existência e em seu funcionamento, às outras formas de poder. Nenhum poder, em compensação se exerce sem a extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber (FOUCAULT, 1997, p. 19). Por este viés, essas resistências são vistas como uma potência que nos constitui e que por isso não se produz como um desdobramento seguido a uma ação e, sim, tecidas nas práticas escolares cotidianas pelas quais se forjam múltiplos e imprevisíveis exercícios de luta, produtores de bifurcações capazes de desestabilizar os processos naturalizados que atravessam esses territórios. Os exercícios de resistência são cantos que atraem e inquietam, afastamnos das ordens e concepções naturalizadas. É uma abertura infinita que sinaliza que as formas são contingências, e não permanências eternas. Deste modo, ressaltamos que mesmo as formas já instituídas não são muros de concreto inatingíveis. Ao contrário, nestas formas há porosidades por onde os processos de resistência escorrem e muitas vezes as estilhaçam (HECKERT, 2004, p. 15). Na tentativa de enredar tais considerações com os fios tecidos nas/pelas/com as crianças que apresentavam alguma deficiência na paisagem investigada, pude perceber que estas, em frente ao que lhes era posto cotidianamente como condição de inserção socioeducacional, criavam novasoutras táticas de existência. Por esse aspecto, essas crianças nem sempre se submetiam a algumas normas de regulação como: permanecer em fila, sentar com “perninha de índio” nas rodinhas, 166 sentar-se à mesa sem uma proposta pedagógica, sair do pátio em direção à sala, permanecer lá, entre outras determinações, pois, como eram concebidas como seres “anormais”, isto é, sem condições de se submeterem às normas, era a elas imputado o direito à liberdade desse tipo de regulação, conforme os relatos que se seguem, extraídos do diário de campo: Chego à escola num calor infernal, vejo um grupo de crianças do berçário se refrescando num banho de mangueira e quem está lá? Mateus, todo prosa, junto ao grupo e na agitação, sem o menor problema, sendo, inclusive, fotografado junto às crianças da turma. Aproximome de Carla, que está a observar, e ela me diz que hoje ele não quis fazer nada em sala e, quando desceu para ir ao banheiro e viu a criançada se esbaldando na água, imediatamente, tira a roupa e se junta ao grupo. Brincamos, afirmando que, nessa hora, é ótimo ser autista, pois todas nós estávamos com vontade de estar em seu lugar, mas, como somos sujeitos socialmente adaptados, não fazíamos o mesmo. Que inveja! (21-3-2007) Uma outra situação que exemplifica tais práticas refere-se à rotina de recreio desse CMEI. Dessa forma, as crianças do Grupo 5 somente vão para o pátio no recreio, depois de lancharem e, mesmo assim, após a saída das crianças do Grupo 4. Entretanto, isso não era regra para Miguel. Em virtude de ele não aceitar o tipo de alimentação oferecida pela CMEI, ele descia e ia direto para o pátio, enquanto as outras crianças, mesmo as que também não se alimentavam como ele, ficavam à espera da hora de ir para o pátio. Em relação a Mateus, como forma de não se submeter à ordem, ele fugia constantemente, conforme imagens (11 e 12) que se seguem: FOTO 11. Buscando Mateus no pátio. 167 FOTO 12. Mateus pulando a cerca para ir para o pátio Ao analisar tal contexto, faz-se necessário que os envolvidos investiguem, promovam um exercício constante e coletivo de reavaliação acerca dos modos de organização ali instituídos, a fim de não privilegiar algumas práticas a égide da inclusão. Afinal, todas as crianças querem se levantar debaixo do quadro, muitas gostariam de jantar e, provavelmente, muitas desejariam tomar o banho que Mateus tomou naquele dia, por exemplo. Oliveira (2003), ao estudar acerca do processo de reprodução-transformação na escola, para além da teoria da reprodução, alerta para o fato de que o conceito de sujeito vem sendo constituído nas/pelas práticas institucionais e, a partir dessa classificação/categorização, normas sociais de comportamento nos são impostas como horários que visam a todo o momento regular nossas ações. Cortês (2004), analisando as relações de poder com base nos poderes disciplinares e nos seus mecanismos de controle do tempo, do espaço e dos corpos e, também, observando como as tecnologias políticas funcionam dentro de uma Escola Municipal em Arraial do Cabo, Rio de Janeiro, concebe a escola como uma fábrica de sujeitos que se utiliza de intensos e permanentes processos de sujeição, cujos resultados apontaram esse movimento como um alargador das fissuras no poder disciplinar e um potencializador de processos de subjetivação humana, produzindo, assim, as chamadas “zonas autônomas-temporárias”, vendo, nessas zonas uma 168 possibilidade de se reafirmar a estética da existência em que a liberdade possa ser vivida. Outro estudo que (re)afirma tal debate foi o de Oliveira (2001), que, ao realizar uma análise micropolítica acerca do fracasso escolar, tendo como elemento disparador as práticas que constroem e desconstroem os sujeitos/objetos, percorrendo algumas paisagens da aprendizagem em suas abordagens e explicações acerca do fracasso escolar, aponta que a sociedade disciplinar e a sociedade de controle desenham rostos que se encontram em permanente luta, que produzem movimentos de resistência visando à libertação, sempre num campo que se faz político. Nesse sentido, é preciso atenção ao fato de que o fracasso escolar, além de se constituir nas/pelas práticas cotidianas, pode produzir movimentos múltiplos, que caminham para além do fracasso/sucesso no sentido da construção de outras práticas. Assim sendo, precisamos desestabilizar as formas delineadas no viés da subjetivação/objetivação capitalística, inquietando os processos de aprendizagem, os aprendizes, a educação escolar, o professor, a infância, a escola entre outros entrelugares cujo devir constante busque outros encontros em outras possibilidades de vida. É opinião de Kupfer ao se reportar aos estudos de Patto (1990) que, A esmagadora maioria das crianças não é fracassada escolar porque tem problemas de dislexia, dislalia ou mesmo porque sofre de carência cultural. Elas se tornam fracassadas escolares a partir do modo como a escola aborda, ataca, nega e desqualifica o degrau, a diferença social, o desencontro de linguagens entre as crianças de extração pobre, de um lado, e a escola comprometida com outras extrações sociais, de outro (2001, p. 86). De acordo com Silva e Freitas (2006), quanto mais preconcebemos percepções e expectativas acerca das crianças e dos jovens, mais facilmente eles acionam “índices de fracasso”, “[...] como ‘componentes da prova’ da incompatibilidade previsível entre os que ‘fracassam’ e os signos de sucesso disponível no mercado de padrões palatáveis para a infância e a juventude” (p.18). Para os autores, esta condição de vulnerabilidade torna-se mais evidente em relação aos alunos que trazem consigo as “marcas” da diferença no que tange à etnia, à deficiência, à sexualidade, à classe social, entre outras. 169 Essa condição imagética lhes impõe uma regularidade socialmente concebida, recaindo um conjunto de prognósticos que interferem diretamente nas apostas acerca das potencialidades desses sujeitos, cujo estigma generalizado muitas vezes é reafirmado pela via dos diagnósticos clínicos, sob a seguinte égide: “[...] quando vejo um enxergo todos” (SILVA; FREITAS, 2006, p. 28). Sobre esse aspecto, gostaria de problematizar o quanto os diagnósticos e as categorizações, tão necessários e solicitados nas ciências naturais e na vida, em especial nas/pelas ciências médicas, operam de forma nociva quando pensamos nos processos de inclusão social de uma criança com nee, em especial as que apresentam um quadro de autismo, em virtude do peso que essa marca impõe a quem a carrega consigo. Constantemente me via atravessada por falas do tipo: − Será mesmo aqui o lugar deste menino? − Autista consegue aprender? − Hoje está no seu dia de autismo! Vejam os como isto era presente, conforme o relato que se segue, registrado no diário de campo: Hoje, ao chegar à sala, deparo-me com as crianças sentadas em círculo. Em seguida, chega Mateus junto de sua mãe e de seu irmão de três meses. Vou à porta recebê-los, perguntando se está tudo bem com ele, e que sua mãe me diz: “Hoje ele está no seu dia autista!”. Em seguida, tenta consertar dizendo que ele não está muito bem, ficando pelos cantos da casa, sem desejar muita conversa. Como hoje foi um dia complicado em virtude da greve de ônibus e como sua empregada não veio trabalhar, pergunto se não foi o fato de ela ter ficando sozinha sem empregada com as duas crianças, e a menor tem apenas três meses, que possa ter deixado Mateus um pouco enciumado. Nesse momento, percebo que todos estão ao redor do bebê, então resolvo ir ao encontro de Mateus que fica a brincar comigo, porém não por muito tempo. Sua mãe se vai e ficamos conversando coisas de rotina. Quando todos estão na roda, meio que de repente ele agride, sem mais nem menos, uma criança. Ana toma um susto, porém intervém com firmeza dizendo que isso não se deve fazer. Em seguida, Mateus tenta não só agredi-la como também passa a se auto-agredir, coisa que Ana não permite, chamando a sua atenção. As coisas aparentemente voltam à rotina e, enquanto estou a conversar com Carla dizendo que se, por um lado, acho interessante o fato de Mateus começar a tentar interagir com as crianças, mesmo que seja da sua forma, afirmo ser preciso que elas intervenham dizendo a ele que isso não está 170 correto, pois, a meu ver, essa é uma tentativa de ele se comunicar. Imediatamente, Mateus volta a agredir Ana que, no meio da roda, o segura e chama, mais uma vez, sua atenção com veemência. Mateus escuta tudo quieto e não sai do lugar. Ana toma-lhe a bola e diz que não vai deixá-lo com ela em virtude de seu comportamento. Ele insiste com Carla, pois sabe que ela cede mais. Eu a pressiono para não ceder, então ela diz que só Ana pode deixar apontando para ela, que não cede. Por volta das 14h, todos vão para a Educação Física, inclusive Mateus junto a Carla. Sigo com Ana para desmontar a exposição no hall de entrada. Ao nos dirigirmos para lá, encontramos Rafaela, a professora que sempre interrompia as discussões coletivas com Kely e a mesma que não conseguiu acolher Mateus no passado, pedindo ajuda a Ana para conter uma criança que, em virtude da separação de seus pais, está impossível, batendo em todos na sala, de forma que ela o deixou com Kely, pois foi à sala de informática com o resto da turma e não o levou como castigo pelo comportamento. Assim, deixo Ana com Kely e a criança e vou sozinha desmontar a exposição. Fico a desmontar tudo, quando chegam Kely, Ana e o aluno de Rafaela, a fim de me ajudar com o material. Recolhemos tudo e vamos para a sala de aula organizar o material junto das crianças. Ao final, todos descem mais uma vez para lanchar e ir para o recreio (28-8-2007). Gostaria de destacar, nessa situação, o fato de que, como Mateus carregava o estigma do autismo, qualquer manifestação sua atípica era, imediatamente, remetida à seu diagnóstico e não à sua condição momentaneamente singular. Essa afirmação se reforça quando, num certo dia, uma outra criança, dita normal, apresenta um comportamento semelhante e ninguém associa suas atitudes a um quadro de autismo. Nesse sentido, com relação à etiologia do autismo e da psicose infantil, conforme já abordado no capítulo anterior, autores (AMY, 2001; BOSA, 2002; KUPFER, 2001; LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2204; VASQUES, 2003) reconhecem o quanto esse conhecimento ainda se encontra em processo de estudos e pesquisas com relação a uma posicionamento mais efetivo acerca dessa questão. A partir do exposto, retomo a fala de Silva e Freitas (2006, p. 28), ao nos provocar: “[...] quando vejo um enxergo todos” para, na continuidade, retomar alguns acontecimentos experenciados na paisagem investigada e com vista a um desabafo: é preciso muito cuidado com esse diagnóstico! O “simples” fato de essa criança chegar ao CMEI com o diagnóstico de autismo já era suficiente para ela passar a ser vista como um autista, com todos os estigmas e preconceitos que esse nome carrega, e não como Miguel ou Mateus, uma criança com algumas “diferenças”, mas apenas uma criança. 171 Uma outra questão a se problematizar refere-se à forma como o município atuou em relação à condição de Miguel, pois, apesar de ele mesmo apresentar um comportamento mais sociável em relação a Mateus, até porque ele tinha a possibilidade da comunicação verbal, o seu diagnóstico de autismo era uma dúvida para nós, para o município e, também, para a Apae. De acordo com os registros escolares no CMEI, em seu primeiro prontuário advindo da Apae, havia o registro de uma hipótese de autismo. No entanto, Miguel não só era apontado como autista como também freqüentava regularmente a Apae, lugar destinado primordialmente a pessoas com deficiência mental, em virtude dos serviços multidisciplinares a ele oferecidos, aos quais seria, praticamente, impossível ele ter acesso pela via dos espaços públicos destinados à saúde, caso não freqüentasse tal instituição. Informação essa confirmada em reunião de avaliação acerca de Miguel, em que estiveram presentes, além de mim, de Kely e de Joana, duas representantes da Divisão de Educação Especial/SEME. Uma delas era a psicóloga que supervisionava várias crianças matriculadas em escolas municipais que se encontravam na Apae e, em nosso caso: Miguel. Ela não só confirmou minha hipótese de que Miguel não apresentava deficiência mental, como nos disse ser “[...] melhor deixá-lo, para o seu bem!”, em virtude da gama de serviços a ele disponível nessa instituição. A meu ver, esse era um preço muito caro que Miguel pagava para ter acesso a um serviço que deveria ser oferecido a ele, sem nenhum tipo de vinculação subjetiva, até mesmo porque, em virtude de todo um contexto economicamente desfavorável de vida, sua mãe se apegava com muita força à Apae, haja vista o fato de Miguel freqüentar mais a Apae do que a própria escola regular. Veja nossa conversa: Hoje preferi não seguir protocolos e sim deixar fluir a conversa livremente para ver como seria. Neste sentido, começo a reunião de forma ousada, dizendo não acreditar que Miguel seja autista. Sua mãe, Anelise, me pergunta por que penso assim e eu digo que muitas coisas que são atreladas aos autistas, como a dificuldade de interação social, a dificuldade de expressar afetos, entre outros, o que eu não via em seu filho. Meio por insegurança, sei lá, retomo o laudo da neurologista que afirma sobre Miguel uma hipótese de autismo. Imediatamente Anelise me interrompe, afirmando que esse laudo já foi revisto pela neurologista, pois ele foi usando pelo pai de Miguel numa audiência para afirmar que ele não tem nada. 172 Reitero a fala, então, afirmando que acredito que Miguel tenha alguma dificuldade de ordem emocional, porém tento chamar a atenção dessa mãe para o peso que um laudo de autismo pode representar na vida de seu filho em relação ao preconceito. Ela concorda comigo, mas diz, em seguida, que, a partir do momento em que passou a freqüentar a Apae, seu filho passou a falar e, conseqüentemente, a interagir melhor socialmente. [...] Anelise diz que, antes da Apae, ele só interagia com algumas pessoas, porém isto passou a se modificar nos últimos tempos. [...] Em seguida, mostro a ela as imagens que tenho de Miguel (FOTO 13, 14), sua evolução em relação a mim, à escola, aos colegas e a sua produção em sala. Ela fica encantada com as imagens, principalmente vendo-o na sala de aula interagindo com os colegas. Diz que, no ano passado, teve muitos conflitos com a professora que só ficava cobrando dela as dificuldades de seu filho, até que ela se cansou e foi reclamar com a pedagoga e, a partir daí, a professora melhorou um pouco. Entretanto, percebe que este ano as coisas se modificaram, porém não deixa de dizer que a Apae o ajudou, pois foi lá que ele aprendeu a falar e, por conseqüência, a interagir melhor no CMEI. Digo a ela que sabemos que Miguel, do ponto de vista cognitivo, não traz questões estando, inclusive, além de algumas crianças de sua turma, mas que nosso desafio no momento era poder dar uma continuidade ao que planejamos com ele em virtude de seu temperamento ser instável, dele vir poucas vezes à escola. Ouso dizer que a forma como ela decidiu para lidar com ele, fazendo trocas, ajuda-a, mas também a atrapalha e, por conseqüência, a nós também, pois ele só faz o que quer em sala de aula. Ela sorri, diz que não faz sempre, porém imagino que isso ocorra constantemente. É fácil criticar, mas como pensar outras formas? (19-9-2007) FOTO 13. Miguel realizando atividades no grupo. FOTO 14. Miguel pintando com Joana 173 A partir desse relato, penso que muitas questões precisam ser problematizadas em relação aos convênios entre o Sistema Público Municipal de Ensino e as instituições especiais, especificamente no caso das APAES, que são as seguintes: essa parceria ajuda ou atrapalha na medida em que são sistemas filosoficamente muito diferenciados? O que é apresentar resultados? Que resultados são esses? A escola não deveria estar preparada, tanto do ponto de vista estrutural, quanto do humano para atender a todos? Existe articulação entre o que se produz na escola e nas APAES acerca de uma mesma criança? Essa é uma responsabilidade única da Secretaria de Educação? E, para finalizar, que tipo de subjetividade instaura em um indivíduo a convivência em uma instituição segregada como a Apae? Reconheço que responder a tais pontuações exigiria, talvez, constituir uma outra/nova tese de Doutorado, todavia, para não ficar apenas na provocação, entendo que o caminho aqui delineado não favorece o reconhecimento à diversidade humana como uma condição de existência, mas, sim, opera como mais um elemento de controle e ajuste social. Nesse sentido, defendo uma concepção de educação que acredito ser uma interessante possibilidade para se relacionar com o saber de forma não capturada, pautada em princípios éticos de liberdade, alteridade e de criação, vendo nesses uma possibilidade de (re)existir a todas as tentativas de governamentalidade de nossas vidas, de ir ao encontro de indivíduos que possam, ao longo de sua existência social, analisar, questionar e atualizar as relações de poder que se encontram circunscritas a ele, vendo a resistência como uma possível corrente a ser percorrida no meio de muitos caminhos. Nessa direção, observo um paradoxo assim discutido: se o poder é diagramático, o saber emana como um arquivo que se atualiza constantemente e se redistribui nas instituições em busca de produzir as singularidades permitidas, de forma horizontal e vertical, mas sempre em torno de um eixo central. Entretanto, nesse processo sólido de produção de sujeição humana, sempre pode haver fissuras, conseqüências das combinações equivocadas das diversas relações de força implantadas nessa edificação, de forma a se reivindicar a vida como uma 174 possibilidade autônoma com o corpo, com a saúde. “[...] Quando o poder se torna biopoder, a resistência se torna o poder da vida, poder vital que não se deixa deter” (DELEUZE, apud SINGER, 1997, p. 47). Nesse movimento, devemos atentar para as múltiplas inter-relações que ali se estabelecem, a fim de nos apropriarmos das diversas possibilidades de conexões com a vida em que imperativos de solidariedade estejam presentes. Em meu entender, esse é o grande objetivo das experiências instituintes, tão bem delineadas nos escritos de Linhares (1997, 2000, 2001, 2002a), no sentido da produção coletiva de ações políticas instituídas na/pela/com a cultura, que caminham rumo a uma lógica mais inclusiva em prol da diversidade humana, numa perspectiva ética de respeito à vida, ao humano, em suas múltiplas dimensões, num constante devir. As experiências instituintes não se encontram sob nenhum tipo de redoma que as pudesse separar do que já está instituído. Pelo contrário, umas e outras estão sempre juntas e em litígios, buscando expandir-se, ou seja, penetrar no espaço e tempo histórico. Se as experiências instituintes procuram desdobrar-se em movimentos criadores e estremecer o que foi organizado pela história, o instituído também procura incorporar o que ainda está se processando, buscando institucionalizar, normatizar o instituinte (LINHARES; HECKERT, 2005, p. 3-4). Assim, as análises acerca das políticas de formação de professores devem estar entrelaçadas a tais eixos, com vistas a articular os movimentos instituintes que emergem no/com/pelo cotidiano escolar às tendências encontradas nos cursos de formação pedagógica, a fim de despertá-los para outros modos formas de aprender/ensinar como exercícios de cidadania que se renovam. Para tanto, os saberes necessitam se organizar coletivamente a fim de produzir soluções que não sejam universais, na medida em que devem atuar em diferentes espaços sociais, mas que precisam se entranhar em nossas diferenças e pluralidades a fim de operar contra as desigualdades postas, de forma que o debate acerca da diversidade humana, em especial no que tange ao reconhecimento de fato e de direito da condição cidadã, tangencie esta discussão. 175 Será preciso um exercício constante e sistemático de reavaliação acerca desse processo, movimento este que nos exige tanto condições macropolíticas favorecedoras à formação dos professores em contexto, quanto estes necessitam, num movimento micropolítico, compreender o quanto esse caminho lhe dará autonomia e independência em suas ações. Precisamos, então, instituir saídas, fabricadas na aliança com/nos múltiplos caminhos invisíveis que nos pedem passagem em vias que nos levam para além das modelizações, cujos saberes/fazeres inaugurem uma nova ética na qual a premissa para se compreender a incompletude com que se constitui o ser/estar na humanidade seja pautada na curiosidade pelo saber, em que a abertura à diferença seja o dispositivo inicial. Sabemos o quanto esse processo nos exige uma prática reflexiva constante acerca de nossas ações cotidianas, a fim de transformá-las em práticas de bases mais inclusivas. Assim sendo, é preciso que se legitime, nos processos de formação continuada em contexto, a reflexão da/sobre a ação (NOVOA, 2000), no sentido da micromacroanálise dos movimentos que ali habitam. Ao finalizar esta discussão, gostaria de me remeter a uma fala de Gallo (apud, FOUCAULT, 2006, p.188), quando nos provoca a ousar produzirmos outrasnovas formas de se pensar os processos de ensino/aprendizagem em que a possibilidade de criação seja o fio condutor desta teia: Se as instituições escolares modernas foram construídas como espaços de subjetivação pela sujeição, é nas práticas desviantes daqueles que escolhem correr os riscos de produzir experiências de liberdade no cotidiano da escola, inventando uma prática educativa que toma como princípio ético a estetização da existência, que reside a possibilidade de resistência e criação. Todavia isso nos desafia a abrirmos a guarda de nossas certezas, até então comodamente cristalizadas, para ousarmos viver intensa e colaborativamente a emoção que nos impõe pensarmos nossos modos de práticas a partir do imprevisível, do complexo e, por que não dizer, do caos (JESUS, 2006; ALVES; GARCIA, 2008; FERRAÇO, 2008; PRIGOGINE, 1996). 176 6. O LEGADO QUE FICOU: O DEVIR ÉTICO DE UMA EXPERIÊNCIA QUE SE INSTITUI COTIDIANAMENTE Todo o legado de Paulo Freire para educação em geral e, para a infância em particular, só poderá ser exercitado e expandido se for compartilhado como um investimento na liberdade. Uma liberdade que se conjuga com uma concepção de política que nos faz inapelavelmente entrelaçados uns com os outros e, portanto, interdependentes em nossas ações e reciprocamente responsáveis pelas nossas histórias e pelos rumos da própria civilização (LINHARES, 2002, p. 2). Na tentativa de amarrar alguns nós desta tessitura que se constituiu o estudo acerca dos processos educacionais que permeiam uma paisagem escolar infantil em relação aos movimentos instituintes/instituídos como inclusivos que ali se forjaram, confirmei a percepção inicial de que muitos movimentos foram disparados ao encontro dessa perspectiva, principalmente a partir do momento em que se instaurou no/pelo grupo um desejo potencializador em relação à inclusão das crianças ditas autistas, apesar de identificar que algumas micromacropolíticas educacionais instituídas não favoreciam esse movimento. Neste contexto, gostaria de reafirmar que, ao buscar analisar esta paisagem complexa e, muitas vezes, contraditória, não tive a pretensão de efetuar qualquer tipo de generalização. O que privilegiei foi compreender esse contexto, especialmente no que se refere aos processos de inclusão socioeducacional de duas crianças ditas autistas, com vistas a dar visibilidade aos movimentos intituintes inclusivos ali produzidos, no intuito de que outrosnovos movimentos possam ser disparados a partir destes, sem desconsiderar o fato de que essas paisagens se constituem de forma peculiar. Destarte, faz-se necessário que cada contexto institua, coletivamente, os nós de sua tessitura, considerando os possíveis fios a serem tecidos naquele momento, ao encontro de uma sociedade que tome a alteridade como premissa, em busca de um entendimento acerca da Educação e da Educação Infantil voltado à formação humana em suas diversas configurações. Para tanto, o compromisso docente deve se balizar na tomada de conhecimento acerca das diversas dimensões e processos 177 que perpassam a constituição humana, constituídas em diferentes concepções e olhares emanados do/pelo outro (MOLL, 2004). Entretanto, só poderemos ressignificar tais realidades, se ousarmos correr o risco de tecer tais fios a partir dos primeiros nós instaurados, num movimento dialético de reflexão/ação/reflexão, reconhecendo que, provavelmente, ao longo dessa teia teremos de assumir uma condição de incompletude, peculiar à humanidade, para, na continuidade, buscarmos, pela via da colaboração, desfazer alguns nós previamente realizados, com vista a uma tessitura favorecedora a vida em sua plenitude (MOLL, 2004; LINHARES, 2002). É difícil ser docente-educador em contacto diário com essas inquietações vindas dos próprios educandos e não perceber que a função social da escola passa por onde foi colocada a pedagogia desde suas origens: pela ousadia tensa e instigante de formar o ser na totalidade de sua condição humana. [...] Partir dessas sensibilidades é fundamental e é precondição para debater, pesquisar, avaliar e teorizar sobre esses ousados intentos de encontrar o lugar social e a cultura da escola e da docência na garantia do direito à formação plena dos educandos (MOLL, 2004, p.14). Assim sendo, assumo a dor e a delícia da opção realizada, por compreender que, com toda a certeza, ao eleger a cartografia como um dispositivo que me possibilitasse conhecer os processos de subjetivação que ali se instituíam (KASTRUP, 2007), devo ter caído em algumasmuitas armadilhas, na tentativa de pensar os processos de inclusão socioeducacional das crianças envolvidas, visto que esse dispositivo se constitui e, é constituído ao mesmo tempo que os movimentos de transformação das paisagens, num devir constante (ROLNIK, 1987). Nesses movimentos, defendo a premissa de não nos acomodar no instituído e, sim, instigar o instituinte a buscar, em suas múltiplas e polifônicas possibilidades de vir a ser, uma nova configuração, sem perder de vista a liberdade como forma de criação, priorizando o fazer coletivo, que se institui num campo ético e político. Por esse aspecto, na tentativa de compreender os diversos movimentos produzidos nas paisagens escolares, como forma de subverter a tal lógica, será preciso escutar as vozes dos que ali habitam, no intuito de obter pistas que apontem a ressignificação dessas práticas, pois “[...] mais do que perguntar a sujeitos ideais o 178 que puderam ceder deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos” (FOUCAULT, 1997, p. 71). Considero, então, como necessário, reafirmar a busca pela compreensão e possível potencialização de algumas resistências que emergiram nesses/desses processos, bem como a análise de seus possíveis efeitos nos indivíduos. No entanto, não me aprisionei nesses movimentos numa perspectiva cristalizante, instituindo modelos transgressores a serem seguidos. O que vislumbrei nestes movimentos de (re)existência foi uma tentativa de legitimar projetos inclusivos em prol de uma perspectiva educacional atrelada a pressupostos nos quais a ciência não acoberte o sujeito de forma pragmática e utilitária, mas que tenha como premissa um projeto que busque a vida como tendência criadora, tendo, por conseqüência, políticas educacionais mais inclusivas. Tomando emprestadas as contribuições de Foucault (2004) para analisar tal recorte, o que opera nesses movimentos, foi apenas um novo olhar numa outra dimensão ou com outras ferramentas, mas nunca esquecendo sua questão central acerca da constituição do sujeito, concebendo-o como alguém que se constitui pela via das práticas de sujeição e/ou de libertação, tomando como base as regras sociais instituídas na/pela cultura. Logo, cabe a nós, pesquisadores, instigar a reflexão e o debate acerca desses movimentos, como forma de desencadear a tessitura de diferentes fios a serem tecidos nas diversas redes de fazeressaberes tecidas por/com/entre os envolvidos. Foucault nos suscita ainda a explicitarmos, de forma velada ou não, a ideologia dominante, sem, necessariamente, utilizar a força como elemento de legitimação, com vistas a superarmos essa condição que nos é agenciada. Aprofundando esse debate, para Silveira e Furlan (2003), a corporeidade ocupa um lugar central na obra foucaultiana, numa perspectiva genealógica, biopolítica e histórica, cuja teia de ações se encontra atravessada por relações de forças e sobre as quais incidem regimes de verdades que podem tanto nos oprimir quanto nos 179 libertar, num movimento complexo no qual ocorre uma predominância da ambigüidade de um em relação ao outro. [...] o foco na corporeidade de cada indivíduo – com seus hábitos, instintos, pulsões, sentimentos, emoções, impulsos e vicissitudes – como ponto fundamental sobre o qual atua um emaranhado complexo de uma série de lutas e de confrontos inerentes a tais saberes, no processo de produção de poder (SILVEIRA; FURLAN, 2003, p. 2). Para os autores, o debate genealógico acerca do relevo histórico, por meio dos estudos da concepção de corporeidade atravessada, possibilitaria maior relevância ao corpo historicamente constituído, potencializando-o a tendências psicologizantes que desconsideram o indivíduo na/pela história, concebendo esse estudo como um saber cujo acesso privilegiado aos corpos através da “alma” se encontra em constante produção de significações, sentidos e subjetivações. Cabe, então, à Filosofia desconstruir a história do pensamento humano do seu modo habitual de interpretá-la, questionando a visão linear da verdade, bem como o sujeito construído pela ciência e, em contrapartida, buscar um movimento múltiplo e cheio de brechas, no qual a dimensão subjetiva torna-se revalorizada, isto é, tomando com premissa “o cuidado de si’, visto que o presente se encontra em um processo dialético constante e o passado precisa ser, cotidianamente, reavaliado. Por esse aspecto, concebo, no movimento disparado no/pelo grupo, ao elaborar um relato de experiência contextualizando como discorreu as tentativas de incluir os alunos em foco naquela paisagem, considerando os limites e possibilidades à perspectiva inclusiva vigente, um interessante passo no sentido de se evidenciar a necessidade de que somos capazes de instituir práticas inclusivas possíveis ao momento, todavia sem perder o foco acerca do que almejamos por Educação, por Educação Infantil e, por conseqüência, por Educação Inclusiva. Ao encontro dessa premissa, para além das considerações já tecidas no texto, gostaria de ampliar tais contribuições, propondo outrasnovas formas de se constituir algumas práticas educacionais captadas, no intuito de favorecer os movimentos inclusivos defendidos neste estudo, cuja idéia não se fundamenta em apontar soluções, mas, sim, colocar em suspensão algumas questões por conceber que, da 180 forma com se encontravam instituídas, eram merecedoras de reflexão com vistas a uma possível ressignificação. Nesses movimentos, uma questão a ser problematizada refere-se à formação continuada em contexto, em especial o planejamento semanal existente, por entender que esse momento deveria se organizar de forma que todos os envolvidos com a criança em foco, seja a professora de sala, seja a do laboratório pedagógico, seja a de Educação Física, Artes, seja a estagiária e as pedagogas, bem como toda a equipe multidisciplinar (psicólogas, fonoaudiólogas, terapeutas, entre outros) envolvida, tivesse garantido, sistematicamente, condições para, juntos, trocarem experiências sobre os possíveis caminhos pedagógicas a serem percorridos, tomando por base o que Jesus (2002, p.114), nos aponta acerca da instituição de uma “organização aprendente”: “[....] seus membros devem ser incentivados e mobilizados para a participação, a construção, o diálogo, a reflexão, a iniciativa e a experimentação”. Não podemos também deixar de evidencia as armadilhas que perpassam a parceria estabelecida entre a SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SEME) e as instituições especializadas, no caso, a APAE-Vitória/ES, quando articulada aos processos de inclusão socioeducacional das crianças com nee por autismo. Em meu entender, essa parceria precisa ser bem articulada, principalmente no que se refere ao entendimento construído em cada um desses espaços, acerca dos processos de desenvolvimento/aprendizagem como nos alertam Vasques e Baptista (2006, p.156), Os serviços em educação especial, no Brasil, têm sido prestados majoritariamente por organizações não-governamentais, por meio de escolas exclusivamente especiais. O encaminhamento para esses serviços baseia-se na concepção de que é necessário um lugar diferenciado, capaz de reunir condições “apropriadas” ao atendimento das deficiências/limitações do alunado. [...] o modelo clínico/médico orienta a estruturação e funcionamento desses serviços que, por estarem centrados nos défictis, têm como trabalho escolar a correção ou compensação das defasagens. [....] essa concepção decorre de uma visão inatista e determinista do desenvolvimento, na qual o aluno, por ser o portador de uma ‘falta’, é o único responsável por sua dificuldade. 181 Para além dessa questão, é preciso deixar claro quem é o aluno em potencial desses espaços, visto que, além das dificuldades de diálogo entre as equipes multidisciplinares envolvidas, a delimitação tipológica adotada para a população freqüentadora das APAES se pauta na deficiência intelectual o que, conforme já discutido, não deve ser diretamente vinculado aos transtornos invasivos de desenvolvimento - autismo. Um outro item a nos sensibilizar caminha no sentido de se propor uma análise cuidadosa acerca de como e por quem essas crianças serão acolhidas na/pelas diferentes paisagens existentes, em função das implicações que esse encontro pode operar nas subjetividades vigentes, em especial da criança, e, por conseqüência, atravessam os processos de ensinoaprendizagem31, haja vista o fato de tanto Miguel quanto Mateus, nos anos anteriores a este estudo, terem ficado literalmente “pelos cantinhos” do CMEI. Reconheço que a responsabilidade desse fato não se resume apenas a uma ação docente e, sim, reflete todo um contexto micromacroestrutural que, naquele momento, não favoreciam a inclusão socioeducacional daquelas crianças, todavia as narrativas apontadas ao longo deste texto nos apontam o quanto os olhares potencializadores disparados pelas envolvidas com este estudo operaram de outranova forma à vida das crianças apesar/com/no contexto. Nesse sentido, retomo Moll (2004, p.15), Esse intento de reeducar o olhar dos professores, dos alunos, das famílias, das políticas e das teorias educativas para a formação dos educando talvez seja a tarefa mais importante das pesquisas e das avaliações. Trata-se de reeducar o olhar das pesquisas e das teorizações. Tarefa nada fácil para cada de nós que olhamos a partir do nosso lugar profissional, cultural, teórico e político até os nossos valores. Para a autora, os processos de transformação das realidades escolares não se limitam a uma questão legal, visto que as mudanças não operam apenas no âmbito dos decretos, mas resultam de modificações estruturais na forma com que os Tome esse conceito como uma teia cujos fios são tecidos a partir do/sobre/apesar do meio, do acolhimento, de se sentir-se parte de, de ser olhado, da presença física ou simbólica, do reconhecimento ao nome entre outros fios simbolicamente estruturantes (MOLL, 2004). 31 182 protagonistas passam a perceber tais contextos. Para tanto, não podemos perder de vista a necessidade de despertar em nossos alunos, sejam eles com nee ou não, o desejo de aprender. Nesse sentido, não poderia deixar de dar visibilidade ao debate tecido na/pela perspectiva psicanalítica freud-lacanaina, em especial o seu entendimento acerca da constituição dos sujeitos. Dentre as várias contribuições que esta perspectiva nos oferece, destaco a noção de pulsão e a metáfora do estádio do espelho, por acreditar que são conceitos delimitadores para se pensar o poder subjetivante que nos impõe um olhar de presença/aposta em nossas vidas. Direcionando tais contribuições para pensarmos os processos de inclusão socioeducacional das crianças com nee por deficiência, em especial crianças autistas, vislumbramos, nas considerações de freud-lacanianas, um interessante fio a ser tecido nos contextos de formação de professores, no intuito de despertar para a necessidade de se compreender o quanto somos constituídos na/pela/apesar da cultura, aqui concebida como uma linguagem que nos inscreve socialmente uma marca singular, cuja instituição tanto pode nos libertar quanto aprisionar a vida. A meu ver, é exatamente essa é a pista que a Psicanálise nos põe a seguir, ao se buscar incluir não só crianças com nee, mas todos, cuja condição humana da diversidade nos atravessa, visto que este campo de conhecimento pode ser uma interessante aliado, como nos afirma Kupfer (2001, p. 116): A educação terapêutica foi concebida para fazer face aos desafios da clínica da psicose infantil. Uma leitura atenta de seus princípios fará, porém, pensar o seguinte: não deveriam ser esses os princípios para qualquer ação educativa? Não é à criação das bordas no real que os pais se dedicam quando se põem a transformar seu pequeno infans em um sujeito? Não é visando à construção de um sujeito da escrita que um professor deveria alfabetizar? Não é comemorando aniversários, festas juninas e ensinando as crianças as artes como ‘estilo de obturação da falta no outro’ que qualquer escola deveria organizar-se? Fazer educação não é, em resumo, o mesmo que fazer educação terapêutica? Então se é possível pensar em uma educação especial psicanaliticamente orientada, pode-se imaginar que haverá também espaço para uma educação psicanaliticamente orientada. Entretanto, sabemos que aceitar/acolher, enfim, desejar o outro não é um movimento que ocorre apenas por um ato legal e, sim, por ordem simbólica e 183 subjetiva. Os trechos narrados neste estudo evidenciam o quanto isso nos é desafiador, principalmente quando não estamos abertos à diversidade que pulsa incessantemente no chão das escolas. Assim sendo, a Psicanálise poderá nos auxiliar a compreender algumas questões pertinentes às subjetividades humanas em frente aos processos de ensinoaprendizagem que se engendram nas paisagens escolares, considerando, inclusive, o fato de os envolvidos nesses processos (professores, pedagogos, diretores, estagiários, entre outros) serem sujeitos incompletos, cujas pulsões inconscientes também os aprisionam, e imobilizam ao se depararem com situações “ameaçadoras”, por exemplo, a de um aluno que apresenta dificuldades em se inserir num modelo educacional preconcebido como uma criança com diagnóstico de autistas. Por esse aspecto, este campo de conhecimento pode operar como uma interessante ferramenta a ser socializada academicamente, na medida em que os envolvidos com esses alunos compreendam o quanto as subjetividades são constituídas em contextos diversos e, por diferentes caminhos, tempos e espaços. Entretanto, isso só ocorrerá se nós, os educadores, nos encontrarmos abertos à diversidade, visto que, como afirma Kupfer (2001, p.118): “[...] o saber da psicanálise poderá ser operativo para um educador se ele puder se apropriar desse saber”. Ao pensarmos coletivamente os processos educacionais numa perspectiva plural e ao mesmo tempo única, considerando não só o instituído, mas também e, principalmente, aquilo que escapa ao nosso desejo de completude, talvez tenhamos condições para compreender que, muito mais do que nos oferecer repostas, cabe à educação nos impulsionar aos enigmas que nos conduzem à vida, na medida em que “[...] nunca se ensina e nem se educa da mesma forma. O projeto educacional sempre se transforma, e nunca é o que foi anteriormente [...]. A educação é um constante processo de vir a ser. Algo da ordem do tosco, do incompleto”(MRECH, 2005, p. 29). Uma última questão que não poderíamos deixar de evidenciar vai ao encontro da necessidade de clamar por maiores investimentos no campo estrutural da educação, 184 visto que condições como 25 crianças para uma professora em sala de aula com “direito” a presença de uma estagiaria apenas às turmas que apresentam crianças com nee, a dupla função exercida pela pedagoga no sentido da gestão pedagógica e da coordenação das ações adiministrativo-cotidianas, a não integração entre os professores nos Centros Municipais de Educação Infantil, tanto internamente, quanto externamente, com as equipes multidisciplinares que atendem a essas crianças, bem como os salários vigentes destinados aos professores do magistério, levandoos a jornadas de trabalho exaustivas, representam um descaso irreparável à educação, cujos reflexos repercutem numa infância tutelada pela vulnerabilidade e pela invisibilidade, Vulnerável deixou de ser uma condição provisória na qual se está para se transformar na regularidade de um tipo social que se é, estando sob determinada circunstâncias [....]. Consolida-se uma situação que inviabiliza a muitos alunos e alunas a possibilidade de lograr realização como criança ou jovem (FREITAS, 2006, p.28). Para subverter a tal lógica, proponho um movimento que nos impulsionem a poetizar os saberes e a vida, ver além, vislumbrando, na cultura popular e juvenil das escolas, a poética, como forma de vida entre as contradições. Logo, devemos alçar vôo na busca por alicerces de ensinoaprendizagem, não no mando e nas obediências, mas na transformação do mundo, no acolhimento das diversidades e nas invenções, aproximando, assim, a escola da vida. Com forma de poetizar tal movimento, gostaria de me remeter a uma história de Rute Rocha; Quando a escola é de vidro (1994), por acreditar que sua narrativa nos convida a pensar o quanto é favorecedor aos processos educacionais vigentes a instauração de uma outranova forma de se instituir os movimentos pedagógicos, a partir das pistas que emanam no/do/pelo cotidiano. Esta é a sua história: Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito. Eu nem desconfiava que existissem lugares muito diferentes... Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chagava, logo, logo, eu tinha que me meter no vidro. É, no vidro! Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não! O vidro dependia da classe em que a gente estudava. 185 Se você estava no primeiro ano ganhava um vidro de um tamanho. Se você fosse do segundo ano seu vidro era um pouquinho maior. E assim, os vidros iam crescendo à medida em que você ia passando de ano. Se não passasse de ano era um horror. Você tinha que usar o mesmo vidro do ano passado. Coubesse ou não coubesse. Aliás nunca ninguém se preocupou em saber se a gente cabia nos vidros. E pra falar a verdade, ninguém cabia direito. Uns eram muito gordos, outros eram muito grandes, uns eram pequenos e ficavam afundados no vidro, nem assim era confortável. Os muitos altos de repente se esticavam e as tampas dos vidros saltavam longe, às vezes até batiam no professor. Ele ficava louco da vida e atarrachava a tampa com força, que era pra não sair mais. A gente não escutava direito o que os professores diziam, os professores não entendiam o que a gente falava... As meninas ganhavam uns vidros menores que os meninos. Ninguém queria saber se elas estavam crescendo depressa, se não cabia nos vidros, se respiravam direito... A gente só podia respirar direito na hora do recreio ou na aula de Educação Física. Mas aí a gente já estava desesperado, de tanto ficar preso e começava a correr, a gritar, a bater uns nos outros. As meninas, coitadas, nem tiravam os vidros no recreio. e na aula de Educação Física elas ficavam atrapalhadas, não estavam acostumadas a ficarem livres, não tinha jeito nenhum para Educação Física. Dizem, nem sei se é verdade, que muitas meninas usavam vidros até em casa. E alguns meninos também. Estes eram os mais tristes de todos. Nunca sabiam inventar brincadeiras, não davam risada á toa, uma tristeza! Se a gente reclamava? Alguns reclamavam. E então os grandes diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da vida. Uma professora, que eu tinha, dizia que ela sempre tinha usado vidro, até pra dormir, por isso que ela tinha boa postura. Uma vez um colega meu disse pra professora que existem lugares onde as escolas não usam vidro nenhum, e as crianças podem crescer a vontade. Então a professora respondeu que era mentira, que isso era conversa de comunistas. Ou até coisa pior... Tinha menino que tinha até de sair da escola porque não havia jeito de se acomodar nos vidros. E tinha uns que mesmo quando saíam dos vidros ficavam do mesmo jeitinho, meio encolhidos, como se estivessem tão acostumados que até estranhavam sair dos vidros. Mas uma vez, veio para minha escola um menino, que parece que era favelado, carente, essas coisas que as pessoas dizem pra não dizer que é pobre. Aí não tinha vidro pra botar esse menino. Então 186 os professores acharam que não fazia mal não, já que ele não pagava a escola mesmo... Então o Firuli, ele se chamava Firuli, começou a assistir às aulas sem estar dentro do vidro. O engraçado é que o Firuli desenhava melhor que qualquer um, o Firuli respondia perguntas mais depressa que os outros, o Firuli era muito mais engraçado... E os professores não gostavam nada disso... Afinal, o Firuli podia ser um mal exemplo pra nós... E nós morríamos de inveja dele, que ficava no bem-bom, de perna esticada, quando queria ele espreguiçava, e até mesmo que gozava a cara da gente que vivia preso. Então um dia um menino da minha classe falou que também não ia entrar no vidro. Dona Demência ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou tendo que se meter no vidro, como qualquer um. Mas no dia seguinte duas meninas resolveram que não iam entrar no vidro também: - Se o Firuli pode por que é que nós não podemos? Mas Dona Demência não era sopa. Deu um coque em cada uma, e lá se foram elas, cada uma pro seu vidro... Já no outro dia a coisa tinha engrossado. Já tinha oito meninos que não queriam saber de entrar nos vidros. Dona Demência perdeu a paciência e mandou chamar seu Hermenegildo que era o diretor lá da escola. Seu Hermenegildo chegou muito desconfiado: - Aposto que essa rebelião foi fomentada pelo Firuli. É um perigo esse tipo de gente aqui na escola. Um perigo! A gente não sabia o que é que queria dizer fomentada, mas entendeu muito bem que ele estava falando mal do Firuli. E seu Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar as meninas um por um e enfiar à força dentro dos vidros. Mas nós estávamos loucos para sair também, e pra cada um que ele conseguia enfiar dentro do vidro - já tinha dois fora. E todo mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele não pegar a gente, e na correria começamos a derrubar os vidros. E quebramos um vidro, depois quebramos outro e outro mais dona Demência já estava na janela gritando - SOCORRO! VÂNDALOS! BÁRBAROS!(pra ela bárbaro era xingação). Chamem o Bombeiro, o exército da Salvação, a Polícia Feminina... Os professores das outras classes mandaram cada um, um aluno para ver o que estava acontecendo. E quando os alunos voltaram e contaram a farra que estava na 6° série todo mundo ficou assanhado e começou a sair dos vidros. Na pressa de sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros começaram a cair e a quebrar. Foi um custo botar ordem na escola e o diretor achou melhor mandar todo mundo pra casa, que era pra pensar num castigo bem grande, pro dia seguinte. 187 Então eles descobriram que a maior parte dos vidros estava quebrada e que ia ficar muito caro comprar aquela vidraria tudo de novo. Então diante disso seu Hermenegildo pensou um pocadinho, e começou a contar pra todo mundo que em outros lugares tinha umas escolas que não usavam vidro nem nada, e que dava bem certo, as crianças gostavam muito mais. E que de agora em diante ia ser assim: nada de vidro, cada um podia se esticar um bocadinho, não precisava ficar duro nem nada, e que a escola agora ia se chamar Escola Experimental. Dona Demência, que apesar do nome não era louca nem nada, ainda disse timidamente: - Mas seu Hermenegildo, Escola Experimental não é bem isso... Seu Hermenegildo não se perturbou: - Não tem importância. Agente começa experimentando isso. Depois a gente experimenta outras coisas... E foi assim que na minha terra começaram a aparecer as Escolas Experimentais. Depois aconteceram muitas coisas, que um dia eu ainda vou contar... A opção por destacar tal narrativa vai ao encontro de um desejo por deixar, como legado deste estudo, o entendimento de que, apesar das micromacroações politicamente instituídas que nos assujeitam cotidianamente, pela via de diferentes dispositivos subjetivantes que nos aprisionam, inconscientemente, como sujeitos, podemos (re)existir a tais práticas. Para tanto, devemos tomar como base a premissa de que cada sujeito é singularmente constituído na/pela/com a cultura, logo, passível de ressignificação. Especificamente no que se refere aos processos de escolarização de crianças autistas, considerando os riscos que nos impõem qualquer tentativa de generalização deste debate, haja vista este campo se encontrar ainda em processo de construção (VASQUES; BAPTISTA, 2006), compreendo que a escola, quando pensada de forma multi/pluridisciplinar, pode favorecer a potencialização dos que ali habitam, deste de que tais movimentos sejam disparados por diferentes fios a serem tecidos, a partir das pistas que emanam dos/no/com envolvidos. 188 Nessa perspectiva, reconheço que devo ter cometido alguns/muitos equívocos, haja vista a condição humanamente faltosa que me atravessou/atravessa, ao tentar tecer fios instituintemnte inclusivos, a partir de campos de teorizações tão singulares para analisar os discursos ali produzidos, visto que estes são instituídos na/pela cultura (COSTA, 2005). No entanto, como apontam Rublescki e Baptista (2006, p.170), “Trata-se de diferentes campos que ‘entram em jogo’ para transformar e serem transformados, em uma discussão inter/transdisciplinar no contexto das práticas educacionais”. Assim, nesse movimento de instituir e, ao mesmo tempo ser instituída, busquei, neste rastreio (KASTRUP, 2007), captar os micromacromovimentos possíveis àquele momento singular experenciado por mim, no/com o grupo. Movimentos estes que se encontram em um devir constante, cujos limites e imprevisibilidades pertinentes, pulsam, incessantemente, em cada cotidiano escolar. Assim, apesar de e/ou em detrimento dessa condição, gostaria de rememorar os movimentos vividos na/com a paisagem, cujas lembranças de Miguel brigando por obter uma matriz, de Mateus riscando todas as mesas e paredes da sala a partir do momento em que aprendeu a escrever seu nome, de Ana, Kely e da diretora Mariana buscando ampliar suas respectivas formações pela via da pós-graduação, de Joana sorrindo para mim ao me encontrar, inesperadamente, depois que saí desse CMEI, das crianças permanecendo em suas respectivas turmas de um ano para o outro, do jantar oferecido a todas as crianças do turno vespertino, em detrimento do lanche, são movimentos que me permitem acreditar no poder subjetivante que um olhar de aposta e de criação pode operar, na medida em que o contexto envolvido toma o trabalho colaborativo como fio condutor. Pensando no que vivi e, principalmente, no que aprendi com essa experiência instituinte, resgato a letra da música “Aquarela”, de Toquinho (1978, acesso em 30 set. 2008), que Mateus tanto tocava em sala, para sugerir o risco à imprevisibilidade, ao desejo e à imaginação, em detrimento das práticas hegemônicas que tanto nos engessam e nos aprisionam. Nesse sentido, destaco a letra da música ao nos dizer: 189 Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu Vai voando contornando a imensa curva norte sul Vou com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul Pinto um barco a vela branco navegando é tanto céu e mar num beijo azul Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar Basta imaginar e ele está partindo sereno indo E se a gente quiser ele vai pousar [...] Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia enfim descolorirá. 190 6 REFERÊNCIAS 1 ALBUQUERQUE, A. B. Sobre o estilo de Freud. 2001. 215 f. 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A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Texto compilado por Daniele Wanderley . Tradução de Claudia Fernandes Rohenkol et al. Salvador, BA: Agalma, 2004 80 LECHTE, J. Cinqüenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. Tradução de Fabio Fernandes. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2003. 81 LEBOYER, M. Autismo Infantil: fatos e modelos. 2. ed. Campinas. SP: Papirus, 1995. 82 LINHARES, C. F. A escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio de Janeiro: Agir, 1997. 83 ______. Memórias e projetos nos percursos interdisciplinares e transdisciplinares. In: FAZENDA, I. (Org.). A virtude da força nas práticas interdisciplinares. Campinas: Papirus, 1999. v. 207, p. 15-34. 84 LINHARES, C. F. Educação e professores em tempo de armar e amar In: LINHARES, C. (Org.). Os professores e a reinvenção da escola. São Paulo: Cortez, 2001a. p. 9-16 85 ______. Professores entre reformas e reinvenções educacionais. In: LINHARES, C. (Org.). 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INTRODUÇÃO Esta experiência se desenvolveu num Centro Municipal de Educação Infantil, localizado no Município de Vitória no Estado do Espírito Santo cuja presença de 02 crianças com diagnóstico de autismo1 em salas diferenciadas, apresentava-se como um desafio aos processos de inclusão socioeducacional que ali se instituíam cotidianamente. O que disparou tal movimento foi o encontro entre as professoras, as estagiárias e as pedagogas das respectivas turmas e uma aluna em doutoramento do Programa de Pós Graduação e Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, cuja finalidade primordial da linha era de favorecer movimentos em prol de uma práxis significativa colaborativa, isto é fortalecer pontes entre o conhecimento culturalmente sistematizado e a experiência da vida dos/as alunos/as pela via da valorização das 1 Termo designado como transtorno invasivo do desenvolvimento com influencias nas habilidades sociais, comunicativas e demais habilidades (RODRIGUES, 2006). 204 experiências instituintes2 que brilham no chão das escolas passiveis de se afirmar outros processos de aprender/ensinar, como exercícios de autonomia que se renovam cotidianamente. Apoiaremo-nos teoricamente neste estudo, nas contribuições de Célia Linhares (1999, 2000, 2001, 2004 e 2005) aos discorrer sobre as experiências instituintes como uma interessante possibilidade de se pensar as paisagens escolares atreladas a imperativos de liberdade, justiça e paz, posto que estas experiências se constituem em pontes representadas por tendências de interligação entre a Universidade, a escola básica e os movimentos político-socias, ético-estéticos e teóricos que enfatizam a participação mais ampla possível aproximando assim, a escola da vida, como também fortalecendo os protagonismos docentes. Tínhamos como premissa a intenção de darmos visibilidades às múltiplas práticas educacionais inclusivas presentes no contexto investigado, a fim de se produzir coletivamente movimentos que fortalecessem ações emancipatórias (SANTOS, 2004) dos que ali coexistiam, pois compreendíamos a necessidade de se avançar as algumas perspectivas negativistas acerca do cotidiano escolar na medida em que estas apenas evidenciam o que já é sabido e, não contribuindo no sentido de se avançar a esta realidade. Concebemos ser este uma interessante via a se percorrer, no sentido de minimizarmos alguns estratégias de resistência que ali se engendram frente ao aprisionamento que acometem algumas instituições escolares, e que nos tornam embricados uns com os outros de forma a nos responsabilizar por uma história que é ao mesmo tempo individual e coletiva apesar dos riscos/abismos que este perspectiva nos impõe posto que se encontra em constante devir, “[...] pisando em um terreno movediço, sem certezas e comprovações da história, mas infiltrando-se nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e, assim, afirmar a outridade (LINHARES & HECKERT, 2005, p.04). 2 Segundo Linhares (2004) as experiências instituinte são ações que buscam ressignificar, realinhar a escola, dando lugar à diferença, ao mesmo tempo em que luta contra as desigualdades. 205 Para tanto, precisamos ter em mente o fato de que a escola é um espaço constituído para se mediar para os alunos/as a sistematização das múltiplas formas culturais de saber, na qual a cultura letrada está inserida, mas que apesar da sua indiscutível relevância, não é a única existente. Isto se torna ainda mais desafiador quando, de forma leviana e equivocada, deslocam os o foco da discussão em busca de encontrarmos um culpado para o que está posto à realidade escolar, sem promovermos uma análise radical3 acerca do contexto político, cultural e econômico que perpassam estas discussões. E, em geral, encontramos sempre na figura do professor/a o artista ideal para se exercer o papel do vilão destas histórias, principalmente quando nos deparamos com profissionais massacrados por um capitalismo fascista instalado que sabota nosso direito a sonhar profissionalidade com mais dignidade, constituindo assim com uma escola mais humana e acessível a todos/as. Outro fator a se discutir refere-se à necessidade de nos atentarmos para a escola que somos4, estabelecendo as possíveis conexões ali engendradas entre a vida e a sociedade, considerando suas interfaces econômicas, culturais, éticas, políticas e etc. Sempre pela via da negociação na qual a observação/reflexão/observação singular e coletiva, constitua-se numa prática cotidiana significativa onde se promovam religações entre as diferentes esferas de atuação humana a fim de ampliarmos nossas lentes no sentido de darmos visibilidades às potencias criadores que ali existem. E nesse sentido concordamos, mais uma vez, com Linhares ao atentar para o fato de que, A busca de alternativas para a educação e, mais particularmente, para as instituições de ensino e de formação de professores nos levou a compreender o quanto dependemos de nossa capacidade de interlocução com os mais variados campos de conhecimentos para projetar os processos de aprendizagem e ensino escolar [...] (2004, p.118). Precisamos ressiginificar as paisagens escolares numa perspectiva colaborativa, substituindo a cultura de guerra por uma cultura da paz apesar das possíveis armadilhas que esta perspectiva nos impõe no sentido de “[...] nos aproximar não só 3 4 No sentido de ir à raiz do problema. Linhares, (2004). 206 uns dos outros, mas nos apropriarmos das múltiplas conexões com a vida, decifrando-as sem perder o sentido da solidariedade (LINHARES, 1999, p.11)”. Neste aspecto é preciso que neste processo de aproximação com o contexto escolar real possamos atentar para as múltiplas inter-relações que ali se estabelecem, a fim de nos apropriar das diversas possibilidades de conexões com a vida onde imperativos de solidariedade estejam presentes, sendo este o grande objetivo das Experiências Instituintes tão bem delineadas nos escritos de Linhares (1997; 2000; 20012002), concebidas como ações políticas produzidas na/pela/com a cultura que caminham rumo a uma lógica mais inclusiva ao vislumbrar ressignificar a escola em prol da diversidade humana, numa perspectiva ética de respeito a vida, ao humano em suas múltiplas dimensões num constante devir. Faz-se necessário, organizar os saberes como forma de emancipação, provocando soluções que não são universais, posto que devem atuar em diferentes espaços sociais, mas que precisam entranhar em nossas diferenças e pluralidades contra as desigualdades postas. Precisamos também poetizar os saberes e a vida, ver além, vislumbrar na cultura popular e juvenil das escolas a poética como forma de vida entre as contradições. Logo, devemos alçar a busca por alicerce de ensinoaprendizagem não no mando e nas obediências, mas na transformação do mundo, no acolhimento das diversidades e nas invenções, aproximando assim, a escola da vida. Para tanto urge substituir a pressa de se separar erros de acertos por uma busca incessante por novas lógicas, a partir do que pode-se chamar de “erro”, desmistificando erros e acertos onde o erro poderá mostrar sabedoria, lógica, criação. Como forma de aprofundarmos o debate, iniciaremos a seguir uma reflexão acerca de uma experiência vivenciada pelo grupo de colaboradores deste estudo, ao longo do ano de 2007 desenvolvida num Centro Municipal de Educação Infantil pertencente ao Sistema Público de Ensino, localiza-se numa comunidade classe média do Município de Vitória/ES, cuja presença de duas crianças autistas, se apresentava para o grupo como um desafio ao projeto de inclusão socieducacional deste CMEI, tendo em vista o fato destes alunos apresentarem, ao longo dos anos 207 anteriores que ali estudaram, um comportamento de distanciamento em relação aos processos educacionais que ali se produziam. Frente a este contexto, nos organizamos num grupo em auto-formação colaborativa permanente, cuja premissa maior era de produzirmos dispositivos que nos auxiliassem com a inclusão destas crianças tendo como foco de formação continuada em contexto os princípios fundamentais para uma escola inclusiva bem como os conceitos, as características e as possibilidades de mediação pedagógica para a inclusão de crianças autistas. Assim sendo, apresentaremos a seguir como este processo se constituiu no/pelo contexto, bem como qual/s as possibilidades defendidas por nós, como favorecedoras aos processos de inclusão de crianças com necessidades educativas especiais, no que tange às crianças com diagnóstico de autismo. II. Vivenciando o desafio da inclusão de crianças com diagnóstico de autismo num Centro Municipal de Educação Infantil 2.1 Cena 01: A mediação da pedagoga forjando praticas inclusivas Desde o começo de 2007 temos refletido sobre o nosso papel enquanto educadoras no processo de inclusão de crianças com diagnóstico de autismo. As crianças autistas apresentam dificuldades com relação a comunicação e socialização e iniciamos o ano investindo em um trabalho coletivo de resgate dos valores de cooperação, solidariedade e de respeito ao outro (diversidade). Percebemos mudança no comportamento de todos os alunos. E os alunos que apresentam autismo estão em processo de inclusão em suas salas de aula. Entretanto ainda nos falta incluí-los no que é o principal objetivo da escola: o acesso ao processo de aprendizagem. Após o primeiro mês de aula as professoras observaram o grande interesse dos alunos pelas imagens das histórias em quadrinhos. Assim decidimos em planejamento por trabalhar com o projeto “A Turma da Mônica”. Várias atividades 208 foram planejadas para a classe como um todo, e tentamos não perder de vista a especificidade de cada criança, em especial as crianças autistas. Observamos grandes avanços, a aprendizagem está acontecendo em todos os aspectos. Percebo que o “olhar” das professoras para trabalhar a diversidade tem mudado a medida em que elas percebem a necessidade de uma observação criteriosa do cotidiano de sala de aula, vendo, também necessário o registro destas observações como ferramenta fundamental para a avaliação e o repensar a prática buscando a qualidade do trabalho neste Centro Municipal de Educação Infantil. Ressaltamos a importância da participação da família neste processo, pois pais e escola devem refletir juntos, sobre a inclusão dos alunos. Neste sentido organizamos encontros com professoras, mães, estagiárias e pesquisadora. Nestes momentos foram estabelecidos diálogos e trocas de experiências que se transformaram em momentos de aprendizado para todos nós. A presença dos alunos autistas no CMEI “ZGMC” se apresenta como um grande desafio para a equipe, pois compreendê-los exige observação constante, aprendizagens contínuas e, a cada dia surgem dúvidas e incertezas que nos instigam a buscar novos meios de ensinar e aprender. A escola tem um compromisso primordial e insubstituível: “[...] introduzir o aluno no mundo social, cultural e científico; e todo ser humano incondicionalmente tem direito a essa introdução” (MANTOAN, 2005, p. 7) Neste sentido é necessário repensar o nosso espaço, buscando proporcionar um ambiente acolhedor e seguro que favoreça a aprendizagem respeitando os ritmos individuais das crianças. Sendo necessário também, repensar as políticas públicas, como por exemplo, o número de alunos nas salas de aula, a valorização dos profissionais da educação, uma política séria de formação continuada para todos os profissionais, etc. Fica assim evidente que à medida que a escola avança o beneficio é de todos. 209 2.2 Cena 02: A sala de Pedro5 Pedro está evoluindo a cada dia em seu processo de construção de conhecimento. Conhece as letras e sabe dizer o nome de todas as letras do alfabeto, assim como a escrita correta de algumas palavras. Distingue algumas formas geométricas existentes em jogos presentes na sala de aula e, também, a contagem dos números na seqüência correta. Em relação à sua socialização, ele vem apresentando grandes avanços e se mostra receptivo aos colegas da sala, permitindo a aproximação em muitas brincadeiras e na maioria das vezes, ao brincar no pátio da escola, podemos observar um envolvimento com seus amigos. Dentro da sala de aula, Pedro resiste um pouco para se sentar na rodinha de histórias, prestando atenção somente em parte da história contada. Apresenta, também, resistência em fazer exercícios que envolvam a escrita ou até mesmo desenhos com giz de cera ou lápis de cor. As atividades realizadas foram à medida que Pedro apresentou vontade, de forma espontânea, em executar, pois quando não quer fazer não adianta insistir. 2.3 Cena 01: Os movimentos de Victor6 Ficamos na maior expectativa com a vinda do Victor, que começou a freqüentar a escola após o carnaval. Logo no primeiro dia apresentou-se muito agitado não querendo ficar na sala de aula, batia palmas insistentemente e, quando lá ficava, fixava-se num aparelho de tocar CD, repetindo sempre á mesma música num volume bem alto. Neste sentido, buscamos em nosso grupo de estudos, primeiramente entender quem era Victor, tanto do ponto de vista acadêmico acerca do autismo e suas particularidades como também e, a meu ver principalmente, quem ele era, suas preferências e desagrados a fim de que pudéssemos pensar num caminho para iniciar um processo pedagógico com Victor. 5 6 nome fictício nome fictício 210 Reconheço que este processo não nos tem sido fácil, entretanto, superada essa fase, Victor passou a compreender melhor as rotinas de sala e tem demonstrado alegria e prazer em estar no CMEI e, principalmente em sala de aula, haja vista o fato dele, ao chegar em sala, tira seu sapato, abre o nosso armário, pega o som, o porta CD e já percebemos que a hora de ouvir música é muito apreciada por ele, pois, se deixarmos passa horas, momentos mágicos ouvindo músicas, bem como demonstra facilidade em memorizar a faixa que se encontra suas músicas e a cor do CD. Na rodinha, já consegue, por alguns instantes com os demais colegas. No que tangem às atividades artísticas por ele desenvolvidas com atenção e entusiasmo podemos destacar: colagem, modelagem, desenho e pintura, também tem demonstrado interesse por montar quebra-cabeça. Quando pegamos o caderno para colar bilhetes ou atividades, ele logo pega a cola e nos ajuda a colar atividades e bilhetes no caderno dos colegas. Com relação ao projeto desenvolvido em sala de aula cujo foco era “A Turma da Mônica”, Victor demonstrou interesse em realizar algumas atividades desde que adaptadas às necessidades pessoais dele, principalmente àquelas relacionadas à colagem, na verdade, decidimos trabalhar com o Victor atividades que despertassem o verdadeiro interesse dele, voltado para ele, incentivando-o a realizar o que ele sabe fazer de melhor. No momento Victor já reconhece a letra inicial do seu nome em vários portadores de textos, e todo material oferecido a ele, primeiro ele se familiariza com os mesmos através do toque dos dedos. Quanto a escrita propriamente dita ele já consegue traçar algumas letras do seu nome, em alguns momentos com o auxílio de nossas mãos e em outros, consegue fazer sozinho. Quanto ao seu comportamento social apresenta ainda algumas dificuldades em aceitar certos comandos, ficando contrariado, principalmente quando a resposta era: “não pode”. No entanto apresenta-se como uma criança muito carinhosa com as pessoas de sua convivência, sendo muito solidário com seus colegas de sala e professoras. 211 Do início do semestre até o presente momento, já é perceptível que o Victor mudou bastante, está mais calmo e a cada dia que passa, temos juntos conseguido avanços significativos no que diz respeito ao desenvolvimento ensino-aprendizagem dele. III. ALGUMAS INCONCLUSÕES FINAIS ACERCA DESTA EXPERIENCIA No que se refere ao crescimento do grupo de diretamente envolvido com o projeto o que vislumbramos foi o quanto é produtivo e contributivo para nós, unirmos de forma colaborativa pessoas com saberes diferenciados que, apesar de estarem em mirantes diferentes, olham para o mesmo horizonte. Com relação ao processo vivenciado pelo grupo percebemos a necessidade de se ampliar no contexto, não só deste CMEI, mas também para toda a rede de Ensino Municipal a discussão que permeia a inclusão de crianças como necessidades educacionais especiais, tendo como foco seus limites/possibilidades que nos impõem à diversidade humana em sua complexidade. Para tanto, é preciso que se legitime cada vez mais políticas públicas eminentemente voltadas para inclusão onde se discuta, principalmente, o quantitativo de alunos/as em cada sala de aula. Neste sentido, precisamos nos atentar para a importância da formação continuada em contexto engendrando a compreensão acerca de uma ação pedagógico em que o professor/a se torne um pesquisar constante de suas ações re-inventando práticas novasoutras práticas em prol da emancipação. Ao finalizar este reflexão, não poderíamos deixar de nos remeter a Linhares (2004), quando nos convida a vivenciar de forma colaborativa, os movimentos que se engendram nas paisagens escolares em busca de se ressiginificar práticas mais justas e igualitárias, [...] não se trata de reinventar a escola isoladamente, mas, ao fazê-lo, contribuir para instituir um mundo de paz, pois já estamos exausto de ser palco e elenco de tantas guerras que se sofisticam e se globalizam (como a que se autoproclamam “contra o terror”, mas que o espelham, 212 sem cessar, por toda parte), com o sacrifício da vida, de muitas vidas com suas infinitas esperanças (p.129) III. REFERÊNCIAS 1. LINHARES, Célia; NUNES, Clarice. Trajetórias de magistério: memórias e lutas pela reivenção da escola pública. Rio de Janeiro: Quartet, 2000. 2. LINHARES, Célia Frazão et al.. Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 3. LINHARES, Célia Frazão, GARCIA, Regina Leite. Observando Jardins no chão de escolas. IN Simpósio Internacional Crise da Razão e Crise da Política na Formação Docente. Org. Célia Frazão Linhares e Regina Leite Garcia. Rio de Janeiro:Editora Agora da Ilha, 2001. 4. LINHARES, Célia (Org.). Os professores e a reinvenção da escola: Brasil e Espanha. São Paulo: Cortez, 2001. 5. ____________________ De uma cultura de Guerra para uma de paz e justiça social: movimentos instituintes em escolas públicas como processo de formação docen te. In: LINHARES, Célia Frazão; LEAL, Maria Cristina. Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. (p.103-130) 6. LINHARES, Célia; HECKERT, Ana Lúcia C. Girar o mundo, girando a escola e a formação de professores: movimentos instituintes nas escolas públicas. ANPED SUDESTE, 2005 7. RODRIGUES, R. de C.M.C. Interculturalidade com o universo autista(Síndrome de Asperger) e o estranhamento docente. Tese de Doutorado apresentado ao progama de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. 8. SANTOS, B. S. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: “um discurso sobre as ciências’’ revisitado”. São Paulo, Cortez, 2004. 204