506 A BATALHA DIANTE DAS MURALHAS DE ANTIÓQUIA Márcio Rosa da Cunha1 Rodrigo Lemos Simões2 RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar a dramática conquista de Antióquia pelos Cruzados, através da aproximação entre as visões das sociedades ocidentais e orientais durante a primeira cruzada no final do século XI. Abordará a origem da cidade, como também uma provável compreensão frente ao sentimento de pavor e medo dos francos ao chegarem às muralhas da cidadela. Tal consequência, fora o resultado do clamor do Papa Urbano II no seu sermão em Clermon, para que os cristãos do ocidente fossem libertar seus irmãos do oriente contra a ameaça dos infiéis muçulmanos; todos que partissem nesta missão seriam protegidos por Cristo. Este pequeno ensaio também apresentará uma breve síntese dos elementos materiais que originaram as Cruzadas para uma maior compreensão da adoção da causa pela nobreza medieval e, conclui com o enredo que permeia a batalha pela posse da cidade de Antióquia, demonstrando as dificuldades, os anseios e os medos daqueles que lutaram pela sua fé. Palavras-Chave: Antióquia; Cruzadas; Século XI; Papa; Muçulmanos; Cristo; Árabes e Fé. INTRODUÇÃO A mais de quinhentos anos atrás Maomé fundara as bases do Islã e, há quase dois mil anos, Jesus nascia em Belém. Tais fatos alicerçaram o conflito entre dois povos de fé inabalável, o choque entre a cruz e a lua crescente que culminou num banho de sangue cruel dentro do solo sagrado do Oriente. Mas, o que pretendo trazer nas próximas linhas, é que no final do século XI, a cidade de Antióquia foi palco de uma das mais incríveis batalhas entre Cruzados e Muçulmanos. Foi o conjunto entre o complexo processo da tomada de Antióquia pelos francos com as dificuldades enfrentadas pelo emir Yaghi Siyan, na tentativa de deter os franj do lado de fora das muralhas de sua cidadela. 1 Acadêmico do curso de Licenciatura em História da Universidade Luterana do Brasil campus Guaíba-RS; 2 Docente do curso de História da Universidade Luterana do Brasil campus Guaíba-RS e orientador deste trabalho; 507 Não é possível descrever este fato ocorrido na cidade comercial de Antióquia, antiga capital do reino de Selêucida, sem pelo menos trazer uma abordagem sobre alguns fatores materiais que provocaram as Cruzadas. Eles representaram uma espécie de saída ou de solução para os problemas enfrentados pelo sistema feudal europeu, no início de sua desestruturação em meados do século XI. Mesmo considerando-se que o feudalismo possa ter sido uma resposta espontânea da sociedade cristã ocidental à crise geral do setor mercantil da Antiguidade Clássica, ele inseriu na cristandade medieval tensões sociais, econômicas e políticas provocadas pela própria dinâmica de seu sistema. ORIGEM E DESCRIÇÃO DA CIDADE DE ANTIÓQUIA Situada próxima ao Rio Orontes, a cerca de vinte quilômetros do Mar Mediterrâneo a cidade de Antióquia foi fundada no ano de 300 a.C. pelo oficial macedônico Seleuco I da Síria. Rapidamente alcançou seu esplendor e quando integrou o Império Romano já era considerada a terceira maior cidade do mundo. Tornou-se sagrada para os cristãos, pois fora neste local que receberam pela primeira vez a denominação de “cristãos”, e lá o apóstolo Pedro fundara seu primeiro episcopado. Quando os viajantes e comerciantes se aproximavam da cidade, se deparavam com uma admirável, mas assombrosa paisagem, as muralhas da cidadela, compostas por mais de trezentas torres de proteção e que estavam espaçadas de modo que cada centímetro dos muros se encontrasse ao alcance das flechas dos defensores. Antióquia possuía casas e bazares que cobriam uma planície de quase cinco quilômetros de comprimento e situava-se entre o Orontes e o Monte Sílpio com suas encostas sendo constituídas por vilas e por palácios. Ao seu redor erguiam-se as imensas fortificações erigidas pelo Imperador Justiniano e que foram reparadas no século X com as mais avançadas tecnologias de bizâncio. No norte os muros elevavam-se sobre o terreno baixo e pantanoso ao longo do rio, a leste e a oeste acompanhavam os declives da montanha, ao sul corriam pela crista do espinhaço, transpondo com audácia a ravina por onde a torrente chamada Onópnicles penetrava na planície, passando por uma estreita porta traseira (o Portão de Ferro) e culminando na esplêndida cidadela há trezentos metros acima da cidade. No interior da cidade a água era abundante, havia jardins no mercado e algum pasto para os rebanhos. De fato, estava capacitada para abrigar e abastecer um exército inteiro durante um longo sítio, além de nenhuma tropa poder estacionar no terreno escarpado e agreste ao sul. 508 POR QUE OS FRANCOS PARTIRAM PARA O ORIENTE O ano é 1095, na França o Papa Urbano II seis meses após o concílio de Placência, convoca o concílio de Clermont, no qual dois cânones foram adotados: o da “Paz de Deus3” e o da indulgência plena4. Tais medidas se uniram ao sermão do Papa no final do concílio, que fora na presença de uma multidão de eclesiásticos e de leigos, descrevendo o sofrimento dos irmãos cristãos do oriente e exortando os cristãos da Europa Ocidental que deveriam cessar suas guerras fratricidas e seus ódios para, enfim, unir-se em um único desejo de libertação de seus irmãos orientais das terríveis garras dos inimigos de cristo, “tomar a cruz” e partir para Jerusálem; serem os “assinalados pela cruz” (cruce signati). As Cruzadas tornaram-se a partir de Clermont a fusão do espírito feudal com os preceitos cristãos, os cavaleiros serão os “soldados de cristo” (miles Christi). Os francos sentiam-se os eleitos, os defensores da Igreja, e com esta fé partiriam para Jerusalém, a Terra Prometida “onde emana leite e mel”. Os cruzados deixariam o espaço estreito e pobre do ocidente por uma recompensa e retribuição que lhes tornariam os verdadeiros herdeiros de Cristo, apesar, de que esta retribuição celeste não excluiria as vantagens que obteriam no território sagrado do Oriente. É neste contexto que elementos materiais oriundos do feudalismo inserem-se na origem desse fenômeno denominado de Cruzadas, a começar pela expansão demográfica que foi possível devido ao sistema econômico adotado. Ele amenizou a fraqueza populacional que o ocidente se encontrava graças ao maior isolamento entre suas regiões e a diminuição das epidemias que se afloravam com os intensos contatos comerciais junto ao oriente. O segundo elemento foi o fim das invasões estrangeiras e das grandes batalhas, no medievo tais batalhas ocorriam mais frequentemente entre algumas dezenas de cavaleiros, portanto as guerras feudais pouco afetaram o comportamento demográfico destas sociedades. Por fim, o último elemento foi a abundância de recursos naturais obtidos com o abandono de vastos territórios que constituíram assim, uma recuperação da fertilidade do solo recobrindo-o de florestas e pastagens naturais. O INICIO DA TOMADA DE ANTIÓQUIA PELOS SOLDADOS DE CRISTO No mês de Outubro de 1097 os Cruzados chegam às muralhas da cidade de Antióquia, após conquistarem a cidade de Nicéia, vencerem a épica batalha de Doriléia e de assumirem o 3 Não poderia haver guerra em dias santos, proteger os bens da Igreja e dos pobres dos efeitos da guerra; 4 A isenção da penitência imposta anteriormente para a concessão do perdão dos pecados e não a remissão pura e simples destes; 509 controle da cidade mercante de Edessa. No comando da vanguarda estava Boemundo5 com todos os cruzados às suas costas. O exército de Cristo instalou-se junto à face nordeste com Boemundo ocupando o setor de fronte ao Portão de São Paulo e Raimundo6 colocando-se diante do Portão do Cão, com Godofredo7 à sua direita em frente ao Portão do Duque. O emir Yaghi Siyan8 era vassalo de Redwan de Alepo e aliado de Dukak de Damasco e de Karbuka de Mossul, rivais de Redwan. Yaghi Siyan quando descobriu os planos dos Cruzados em rumar à Palestina, e que a tomada de sua fortaleza era o próximo passo, lembrou-se do fato de que os turcos somente conseguiram assumir o controle da cidade em 1085, por intermédio de um ato de traição, o que não seria muito difícil para os franj já que o emir detinha como súditos em sua maioria cristãos gregos, armênios e sírios. Durante duas semanas o emir de Antióquia preferiu não “importunar” seus inimigos, ele sabia que seu exército era pequeno para guarnecer seus muros por toda a extensão. Mas, seu ato lhe deu tempo, quase o suficiente para que o seu pedido de socorro para os outros governantes árabes fosse atendido, enviou seu filho Chams ad-Dawla até Dukak em Damasco, que se prontificou no auxílio. Também um emissário fora à corte de Karbuka, atebegue9 de Mossul (maior Príncipe da Alta Mesopotâmia), seguindo tais exemplos, exércitos também foram formados pelos sultões de Bagdá e da Pérsia em uma promessa de apoio. Esperava-se por parte dos sitiados um ataque imediato, no qual apenas um dos Cruzados apostava nesta ofensiva, era Raimundo que acreditava que Deus, que os protegera até ali, sem dúvida lhes concederia a vitória. Até poderia ter ocorrido pelo fato dos muçulmanos estarem descrentes com a probabilidade de defenderem-se do exército massivo dos franj, mas, graças ao poder político que Boemundo possuía entre os Cruzados o ataque não ocorrera. O Príncipe italiano percebeu os efeitos negativos que a grande fortaleza trouxera às tropas e pelo cansaço destas, propôs aguardar reforços, e que o auxílio chegaria com seu sobrinho Tancredo10 e com uma provável frota do Imperador Bizantino, detentora de admiráveis máquinas de cerco. Durante o início do cerco à cidade, estabeleceu-se uma linha de comunicação entre Cruzados e refugiados cristãos, assim como Yaghi Siyan estabeleceu esta comunicação com os cristãos sírios que preferiam estar sob o comando dos turcos do que sob o julgo de 5 Príncipe italiano da Calábria; 6 Príncipe francês de Toulouse; 7 Duque francês da Baixa Lorena; 8 Governador de Antióquia há dez anos, após a morte do sultão Suleimã ibn Kutulmush que capturou a cidade DE........ para os muçulmanos em 1085; 9 Significa “pai do príncipe”; 10 Príncipe francês da Galiléia; 510 bizantinos ou dos ocidentais. Através destes homens o emir soube da relutância de atacar dos franj e organizou incursões que assolavam grupos pequenos desgarrados do exército que saíam em busca de suprimentos. Em uma destas saídas chega uma mensagem informando que a missão de seu filho fora bem sucedida em Damasco. O REFORÇO DE DAMASCO E O CONTRA-ATAQUE CRISTÃO: Por volta do natal de 1097, um Conselho dos Príncipes Cruzados é organizado para decidir a ida de uma tropa chefiada por Boemundo e por Roberto11 que assaltaria e se apossaria de todas as provisões que encontrassem pelo caminho, já que os estoques de comida do acampamento e das áreas próximas estavam esgotados. A tropa subiu pelo vale de Orontes deixando o comando do cerco para Raimundo e para o bispo Ademar de Monteil12 por que Godofredo estava gravemente enfermo. Ao saber da partida cristã, Yaghi Siyan investe numa incursão contra os sitiadores, e graças à destreza em combate do líder Raimundo o exército cristão derrota os árabes empurrando-os para os portões. Apesar desta façanha, fora necessário recuar pela confusão causada por um cavaleiro cristão. Houve muitas baixas neste combate em ambos os lados. Boemundo e Roberto dirigiram-se para o sul sem a noção do ataque dos turcos da cidade, desconhecendo também que estariam na direção de uma grande força árabe comandada por Dukak de Damasco. O emir acompanhado pelo seu atabegue Toghtekin e pelo filho de Yaghi Siyan aliou-se a outro exército em Hama, e foi em Shaizar que souberam do exército de Cruzados. Avançaram sem hesitar na próxima manhã enfrentando Roberto que estava à frente de Boemundo. Este avistou o cerco que os muçulmanos infligiram ao Duque de Flandres e após separar um contingente, partiu com o restante de seu exército para salválos. Tal intervenção foi bem sucedida forçando os damascenos a retornarem para Hama e Damasco. Os líderes deste pequeno contingente de Cruzados verificaram que suas forças estavam fracas para seguirem adiante e, por isso, saquearam e incendiaram algumas aldeias, voltando ao cerco de Antióquia praticamente de mãos vazias. Depararam-se na volta com uma cena desesperadora, os homens no mais profundo abatimento. O ataque turco do dia 20 fora sucedido por um tremor de terra13 e por chuvas torrenciais. O fracasso da expedição de abastecimento significaria a inanição para muitos, em breve, um homem em cada sete morreria de fome. Os Cruzados conseguiram alguns 11 Duque de Flandres; 12 Bispo de Puy-em-Valey, nomeado em Clermont como o legado papal e chefe da expedição cruzada; 13 Antióquia situa-se entre duas placas tectônicas denominadas de arábica e de africana; 511 provimentos com os monges armênios das montanhas Amano e comprando também de comerciantes cristãos locais. Entre as maiores baixas encontravam-se os cavalos, reduzidos a apenas setecentos. Tais catástrofes para o exército culminaram em deserções e, uma delas, teve duplo sentido, isto é, em fevereiro de 1098, Tácito, o representante do imperador bizantino, retornou a Constantinopla, enfraquecendo e desonrando a expedição. A Cruzada estava agora livre de qualquer obrigação perante Aleixo, ou seja, Antióquia não precisava serlhe devolvida. Neste ínterim, Yaghi Siyan precisou reconhecer seu antigo soberano Redwan de Alepo (Damasco, Antióquia e Alepo estavam em guerras internas antes da chegada dos cristãos). Redwan parte em socorro de Antióquia com seu primo Soqmã e o seu sogro o emir de Hama. Os líderes Cruzados, sabendo da chegada do exército turco oriundo de Alepo prontificaram-se a se reunir na tenda de Ademar, chegando à conclusão que a cavalaria que contava com setecentos homens iria de encontro a Redwan e a infantaria ficaria no acampamento para rechaçar os turcos de Antióquia. Um contingente da cavalaria avançou sobre os turcos antes de seus arqueiros se prontificarem. Apesar da surpresa precisaram recuar atraindo o exército inimigo para o campo de batalha previamente escolhido. Os Cruzados foram com força total sobre os árabes de armas leves, estes recuaram em desordem espalhando confusão entre todo o contingente, resultando na vitória cristã que retornou imediatamente ao acampamento. A cavalaria conquistou uma vitória espetacular, mas, a infantaria estava perdendo terreno para as forças de Yaghi Siyan, com a chegada dos vitoriosos, os turcos recuaram novamente percebendo mais um fracasso de resgate. O CERCO TOTAL E A TOMADA DOS MUROS Em março, os sitiadores souberam da chegada de uma frota no porto de São Simão, Raimundo e Boemundo foram ao encontro angariar mais soldados e provisões. No retorno ao acampamento, estavam cheios de mantimentos e foram atacados por um destacamento da guarnição, fugiram e abandonaram a carga aos turcos. No cerco Godofredo recebe um ataque surpresa dos exércitos da cidadela, mas com o auxílio dos recém-chegados, Raimundo e Boemundo, conseguiram retroceder os turcos aos seus portões e também resgatar a carga, o que foi importante, graças a ela foi possível construir uma torre (batizada de La Mahomerie) e efetivar o cerco total a Antióquia, agora a fome irá se transferir de local já que os comerciantes optaram pela nova clientela. Tais êxitos seriam sem valia se Karbuka de Mossul, que reunia seu exército para o resgate, chegasse antes da tomada da cidade, isto porque, ele trazia consigo os sultões de Bagdá e da Pérsia, e os príncipes ortóquidas da Mesopotâmia. 512 O general de Mossul preocupou-se com sua retaguarda e no caminho à Antióquia sitiou por três semanas Edessa que estava sob o comando de Balduíno14. Enquanto Karbuka perdia seu tempo em Edessa, Boemundo firmou um contato com o capitão Firuz15. Deste trato surgiu à traição que o emir turco tanto se preocupava. Firuz enviou seu filho para dizer a Boemundo que reunisse suas tropas e fosse em direção a Karbuka, este caminho levaria a Torre das Duas Irmãs que estava sob seu comando. E falar que ao escurecer as tropas deveriam retornar em segredo aos muros a oeste e escalá-los, ele estaria os aguardando. Boemundo fez o que o capitão lhe havia pedido e reuniu-se com os demais príncipes Cruzados e contou-lhes a verdade. Todos deram seu leal apoio à causa quando Boemundo lhes disse: “Hoje, com a ajuda de Deus, Antióquia cairá em nossas mãos”. No meio da noite do dia 3 de junho, quase um ano após a chegada dos assinalados pela cruz à cidade, as tropas do príncipe italiano chegam às muralhas da Torre das Duas Irmãs e sobem cerca de sessenta homens na escada que os aguardava. Foi um número suficiente para tomar as duas torres e clamar aos cristãos de Antióquia que auxiliassem os Cruzados a tomar a cidade, abriram os portões de São Jorge e o grande portão da Ponte. Desta forma, os soldados de Deus invadem e tomam a cidade com o auxílio de armênios e gregos cristãos. Yaghi Siyan ao perceber a derrota fugiu com seu cavalo em direção às montanhas. Dezenas de cristãos morreram no massacre a “todos” os muçulmanos que não estavam refugiados com o filho do emir na grande cidadela. No raiar do dia, já não havia mais um turco sequer vivo em Antióquia, mesmo nas aldeias vizinhas e, tanto as casas cristãs, como as muçulmanas, foram saqueadas, os tesouros e armas foram espalhados ou destruídos, não se podia andar pelas ruas sem pisar nos cadáveres, todos em rápida putrefação sob o calor causticante do oriente. Mas, Antióquia era, mais uma vez, cristã. A VISÃO ÁRABE DURANTE A PERDA DE ANTIÓQUIA Quando o senhor de Antióquia, Yaghi Siyan, foi informado de que um grande exército do ocidente se aproximava, decidiu então expulsá-los, pois ele temeu um movimento de sedição por parte dos cristãos da cidade. Ele estava ciente de que o exército invasor reunido perante Antióquia jamais poderia entrar, a menos que contassem com uma cumplicidade no interior dos muros, pois a cidade não podeia ser tomada de assalto e nem mesmo ser 14 Irmão de Godofredo; 15 Armênio convertido ao islamismo que estava em desavenças com seu familiar Yaghi Siyan e era um fabricante de couraças encarregado da torre Duas Irmãs; 513 submetida a um bloqueio, graças à capacidade de proteção de suas muralhas e das reservas alimentícias em abundância. De todas as grandes cidades da Ásia árabe, Antióquia foi à última a cair sob os domínios dos turcos seldjúcidas em 1084, por isto, quando os Cruzados chegam, Yaghi Siyan está convencido de que se trata de uma tentativa de restauração da autoridade dos rum16 com a cumplicidade da população local de maioria cristã. Com este panorama, o emir toma decisões sem escrúpulos, expulsando os cristãos da cidade e tomando o controle total do racionamento do trigo, do óleo, do mel e inspeciona cotidianamente as fortificações punindo qualquer negligência. Tais medidas não serão o suficiente, frente ao cerco imposto pelos ocidentais, o emir envia seu filho Chams ad-Dawla “O Sol do Estado” aos dirigentes muçulmanos com uma mensagem de socorro, mas, para que um emir aceite o pedido deverá existir um interesse pessoal, para então invocar os grandes princípios. A Síria do século XI estava em plena Guerra dos Dois Irmãos. Redwan de Alepo lutava pelo poder contra o seu irmão mais novo, Dukak, rei de Damasco, que nutriam entre si um ódio tão grande que a ameaça dos francos não poderia abalar suas desavenças. Chams consegue o auxílio do rei de Damasco, apesar de que ele não estava contente em levar o seu exército rumo ao norte, ficando com sua retaguarda fraca frente a um possível ataque de seu irmão de Alepo. Durante o caminho, o soberano se mantém tenso e no dia 31 de dezembro ele se depara com uma guarnição dos franj. Como vimos anteriormente, ele encontrou a frota de Boemundo e de Roberto, ficando claro, que sua vontade não era socorrer Antióquia e por mais que seu exército fosse maior, ordenou a seus homens, depois de um dia de batalha, para retornarem a Damasco apesar das súplicas desesperadoras de Chams. AS ÚLTIMAS ESPERANÇAS DOS ÁRABES Em Antióquia chegam a Yaghi Siyan boas notícias de seus espiões, os francos estão morrendo, abatidos pela fome e pelas doenças, a maioria das montarias são abatidas para saciar a sede e a fome, a chuva cai sem cessar, justificando o nome de “mijona” dado à Antióquia pelos sírios, o acampamento está banhado em lama e a terra não para de tremer. O que se ouve na cidade são as orações dos franj ao se reunirem para invocar ao céu. Acreditavam serem vítimas de uma punição divina e, para acalmar a cólera do Senhor, expulsaram as prostitutas, fecharam-se as tabernas e o jogo de dados foi proibido. No inicio 16 Termo utilizado pelos árabes para designar os gregos (romanos), como também a bizantinos e sírios de rito grego. 514 de 1098 o emir é forçado a enviar, através de seu filho, um pedido de desculpas ao seu genro e rei de Alepo, ouvindo seus sarcasmos e implorando em nome do islã e de seus laços de parentesco que mande tropas em seu auxílio. Como os franj estão desesperados por provisões avançam cada vez mais perto das redondezas de Alepo, forçando o rei a enviar seu exército como uma forma de amenizar tal avanço do que propriamente para auxiliar seu sogro. A batalha que se segue também já foi comentada acima, mas, o fato marcante relatado pelos turcos foram às cabeças dos alepinos lançadas sobre a fortaleza como forma de troféus, o que veio a afirmar a carnificina deste embate que culminou em um silêncio horripilante dentro das muralhas da cidade. Yaghi Siyan sente o cerco ao redor da cidadela e após a fuga dos dois príncipes da Síria, sua última alternativa será pedir auxílio ao emir Karbuka da poderosa Mossul que está a duas semanas de viagem. O socorro é aceito e, da antiga Mesopotâmia, o grande exército muçulmano parte oferecendo um grande espetáculo deslumbrante com as inumeráveis cintilações de suas lanças e de seus estandartes negros sob o sol, os emblemas dos abássidas e dos seldjúcidas tremulam no interior de um mar de cavaleiros brancos. Também, como relatado anteriormente, este imenso exército não chegou a tempo em Antióquia, o erro de Karbuka sobre Edessa os atrasara e com o fato de Firuz, sobrou aos árabes testemunhar a cidade incendiada e o sangue escorrendo de suas entranhas. Era dos homens, mulheres e crianças que tentaram sem êxito fugir por suas ruelas lamacentas, mas os cavaleiros Cruzados os alcançavam sem esforço e cortavam-lhes as cabeças. Pouco a pouco, os gritos de horror silenciaram e foram substituídos pelas vozes bêbadas dos saqueadores francos, a fumaça elevou-se de muitas casas incendiadas e ao meio-dia um véu de luto envolveu a cidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS A batalha diante das muralhas de Antióquia foi surpreendente, o primeiro embate considerável e importantíssimo entre os dois povos no decorrer deste processo denominado como Cruzadas. No seu aspecto político-religioso demonstrou o poder que o Papa detinha sobre seus súditos, que aproveitaram a situação que a Europa se encontrava e a oportunidade criada pela Igreja Católica, para se lançarem ao solo sagrado do oriente, não apenas pelo “apelo” do Papa Urbano II, como também, por que a nobreza européia estava extasiada, sem terras, sem glórias e principalmente sem riquezas. Pela questão militar, trouxe-nos diversos aspectos como as guerras internas entre os sultões seldjúcidas, a desconhecida força turca com seus cavaleiros armados com arco, ou 515 seus arqueiros sentados que infligiram sobre seus inimigos uma chuva negra de flechas. Por outro lado, os muçulmanos não imaginavam que poderiam ser atacados por um enorme exército de seres dotados de armaduras pesadas e reluzentes, com uma fé também incalculável. Mas, se faz necessário, acima de tudo, evidenciar e refletir sobre o acontecimento de Antióquia e seus desdobramentos, questionar por que uma frota de cento e vinte mil soldados de Cristo partiu para Jerusalém e que quando chegou às muralhas desta cidade que continha não mais de sete mil guardas, sofrera baixas inimagináveis, forçando-os a romper com seus ideais de bons cristãos ao se alimentarem de sobras e de suas montarias durante o cerco, como também assar os espiões de Yaghi Siyan como forma de coerção a traidores; a saquear diversas aldeias e a chacinar sem escrúpulos homens, mulheres e crianças muçulmanas. Que territórios teriam sido dominados e arrasados por esta força dita ungida por Deus, que levou Ibn al-Qalanissi um célebre historiador árabe a fazer o seguinte relato perturbador: “A maioria dos franj pereceu. Se eles tivessem permanecido tão numerosos como quando chegaram, teriam ocupado todo o Islã”. Portanto, concluo este pequeno ensaio, satisfeito por relembrar um episódio marcante do medievo, não quis de forma alguma trazer fatos novos, esquecidos, ou formular alguma tese, já que precisaria de um número expressivamente maior de fontes primárias a pesquisar e que não poderia enquadrar em um pequeno ensaio. Mas, acredito ter feito um trabalho que humildemente honrou a memória de tantos que pereceram na defesa de suas crenças, de seus ideais e de suas vidas. E que através de pequenas frases de um poeta cego sírio que foi condenado em 1057, deixarei uma reflexão que serve para pensar na loucura denominada de Cruzadas. “Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos, Os que têm um cérebro, mas não têm religião, E aqueles que têm religião, mas não têm um cérebro” Abul-Ala al-Maari – Poeta Cego da Síria 516 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS RUNCIMAN, Steven. “História das Cruzadas”. Volume I. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2002. JUNIOR, Hilário Franco. “As Cruzadas”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. MORRISON, Cécile. “Cruzadas”. Porto Alegre: L&PM, 2009. MAALOUF, Amin. “As Cruzadas vistas pelos Árabes”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.