UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO Ver a educação BELÉM SEMESTRE Ver a educação, Belém, v. 4, n. 2, p. 1-109, jul./dez., 1998 Título e texto amparados pela Lei N° 5988, de 14 de dezembro de 1973 Copyright @ dos autores - 1998 Coordenação Editorial: Eunice Ferreira dos Santos Capa: Alberto Damasceno (concepção) Paulo Martins (criação e arte) Formatação: João Carlos Moraes/Lia Prado Periodicidade: Semestral Correspondência: Universidade Federal do Pará Centro de Educação Campus Universitário - Setor Profissional CEP: 66075-110 - Belém/P A Fax: (091) 211-1648 - Fone: (091) 211-1705 CATALOGAÇÃO: Biblioteca do Centro de Educação Ver a educação. V. 4, n.2 (jul./dez. 1998). - Belém: UFPA/ Centro de Educação, 1998 - Semestral. ISSN: 1413-1498 1. Educação - Periódicos CDD. 370.5 SUMÁRIO Colocando Questões ao Paradigma da Modernidade 5-36 Maria Tereza Soler Jorge Sílvia Nogueira Chaves Adair Mendes Nacarato Mudanças na Produção, Qualificação para o Trabalho e Reestruturação para o Ensino Médio 37-58 Paulo Corrêa Avaliação da Aprendizagem Escolar: uma proposta de ultrapassagem do autoritarismo na sala de aula 59-76 Eunice Léa de Moraes Maria Célia Conceição Maria de Nazaré Viana Racionalismo e Empirismo na Construção de Conhecimentos Biológicos 77-95 Sílvia Nogueira Chaves A Pedagogia de Deus: cristianismo militante e educação em Frei Betto (1969-1971) Humberto Cunha Ver a educação, Belém, v. 4, n. 2, p.1-109, jul./dez., 1998 97-109 Colocando Questões ao Paradigma da Modernidade Maria Tereza Soler Jorge Sílvia Nogueira Chaves Adair Mendes Nacarato 1 – INTRODUÇÃO Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. Partindo dessa tese, Boaventura Santos (1988) constrói seu percurso analítico sobre o momento atual da ciência. A crise paradigmática e o novo paradigma emergente, segundo o autor, são desencadeados tanto por fatores endógenos quanto exógenos à ciência. Fatores que se entrecruzam num emaranhado de relações, ora enfocados pela via econômico-social, ora pela epistemológicometodológica. Neste jogo de interdependências, o panorama da modernidade vem se alterando e junto com ele os pressupostos da ciência moderna. A crença na objetividade, na racionalidade universal, as dicotomias mentecorpo, homem-ambiente, natural-social que mobilizavam e orientavam a produção do conhecimento já não são suficientes para explicar a complexidade do universo. A escola, por sua vez, em consonância com tais pressupostos, vem sofrendo reflexos dessas transformações. A busca da unidade teoria-prática e o incentivo constante a práticas interdisciplinares sinalizam mudanças de rumo em ações e intenções pedagógicas. Razões essas que julgamos importantes para que nós professores localizemos elementos desencadeadores dessa tão anunciada pós-modernidade e vislumbremos seus possíveis desdobramentos no âmbito educacional. Contudo, pós-modernidade não é um termo de significado consensual, ao contrário, a polissemia que prevalece em tomo dessa denominação tem gerado inúmeras versões e compreensões das manifestações políticas, econômicas e sociais desse movimento no mundo contemporâneo (Jameson, 1996; Lyotard, 1990, Harvey, 1992). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 6 Tal diversidade nos levou à discussão, neste texto, sobre a idéia de pós-modernidade defendida por Boaventura de Souza Santos, dada a coerência de sua obra e, especialmente, a sua ampla aceitação e divulgação no meio educacional brasileiro1. Optamos, ainda, por centrar a análise nos aspectos teórico-sociais que possibilitaram a emergência e a crise da ciência moderna, sem perder de vista, entretanto, o cenário político e econômico que viabilizaram a consolidação e a universalização do modelo científico que, segundo Boaventura Santos, precipita-se num mar de perplexidades. Antes de delinearmos a crise da ciência moderna, julgamos necessário caracterizá-la, brevemente, desde o berço até à sua maturidade. Nessa perspectiva, nosso exercício reflexivo consistirá em mapear a trajetória da ciência moderna ao longo de sua história no ocidente, tomando como base três fases: a emergência do paradigma da modernidade e seu apogeu; a crise desse paradigma; e a emergência de uma nova ordem científica, a qual Boaventura Santos denomina de PósModernidade (por falta de melhor opção). Para tanto, na primeira unidade desse trabalho, discutiremos a instituição das bases teórico-metodológicas da ciência moderna até ao seu apogeu, alavancado pelo florescente capitalismo europeu. Em unidade subseqüente, abordaremos as condições teóricas e sociais que desencadearam a crise da modernidade e, em seguida, o prenúncio e as perspectivas da nova ordem emergente. 2 - BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA CIÊNCIA MODERNA A Renascença inaugura o início da idade moderna. E se na idade média as teses aristotélicas, assumidas pela escolástica, corroboravam o teocentrismo dominante, no renascimento a valorização do homem e de suas produções é a tônica. Ou seja, Na nova visão de mundo que veio substituir a medieval, o homem, no seu sentido mais genérico era a preocupação 1 Cf Santos (1988,1989,1994,1996). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 7 central. As relações Deus-homem, que eram enfatizadas pelo teocentrismo medieval, foram substituídas pelas relações entre o homem e a natureza. Isso significava, com relação ao conhecimento, a valorização da capacidade do homem de conhecer e transformar a realidade (Andrey, 1994, p. 170). Essa nova concepção liberta o homem das amarras teleológicas, isto é, da idéia de um mundo estruturado, estático, finito, hierarquicamente ordenado c exogenamente controlado. A humanidade já pode construir sua própria história, alterar o curso dos fatos e intervir na realidade. Tal mudança de perspectiva provoca alterações no eixo de gravidade do conhecimento, caracterizado pelo abandono de um saber contemplativo rumo ao pragmatismo. Neste contexto, o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes representam os grandes teóricos dessa nova visão de mundo no que tange ao seu modo de produção, isto é, ao método. Apesar de defenderem formas diferenciadas de acesso ao real, Bacon e Descartes têm em comum a crença numa realidade cognoscível e num conhecimento verdadeiro que só é acessível por meio de ação sistemática e metódica sobre o real. Enquanto Bacon acredita que a indução (observação corrigi da pela experimentação controlada) é o método adequado para alcançar o verdadeiro conhecimento, Descartes centra na razão sua conduta metódica. Confiantes na observação e na razão, Bacon e Descartes saem em busca de desvendar a ordem universal, na qual estão subjacentes todos os fenômenos da natureza. Contrário ao pensamento medieval que acreditava numa ordenação transcendental, a ciência renascentista está em busca de ordem e leis materiais expressas em caracteres matemáticos, tal como propugnava Galileu. Essa busca de regularidades mecânicas objetivava prever, controlar e transformar a natureza. Finalidades plenamente harmonizadas com o ideário capitalista emergente. Apesar dessa afinidade, a ciência moderna nasce paralela à nova ordem econômica capitalista. Contudo, a Revolução Industrial, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 8 notadamente a inglesa e a francesa, se encarrega de promover o enlace entre ciência e capital. Esse enlace desenvolveu-se ao longo do século XVIII e consolidou-se no século XIX. Neste período, especialmente na segunda metade do século XVIII, predominava o pensamento liberal profundamente marcado pela ascensão econômica e política da classe burguesa. As características fundamentais do período Iluminista eram a veneração pela ciência, o empirismo, o racionalismo, antitradicionalismo e otimismo utópico (Mondim, 1982). No âmbito social, três valores básicos compunham o ideário burguês: liberdade, individualismo e igualdade. A idéia de liberdade vinculava-se à defesa do livre comércio e da livre concorrência, até então contidos pela política mercantilista da monarquia contrária aos interesses burgueses de expansão econômica capitalista. O individualismo surgiu a reboque da noção de liberdade que pregava, também, a educação livre, suprimida da influência do clero e da monarquia. Vale ressaltar que o pensamento iluminista francês não desfrutava de consenso no que diz respeito a quem se destinava a educação livre. Voltaire e Rousseau, por exemplo, defendiam a educação apenas para a alta burguesia; já Diderot pregava a instrução para todos. A questão relativa ao que ensinar e para quem ensinar constituiu um ponto de divergência entre pensadores desse período. Alguns deles defendiam a idéia de diferentes tipos de educação para indivíduos de diferentes classes sociais, sendo que aqueles que pertencessem a classes sociais mais pobres deveriam receber menos 'instrução' e mais treinamento em atividades manuais (Andrey, 1994, p. 285) (destaque no original). Desta forma, podemos perceber que a noção de igualdade defendida no ideário burguês limitava-se aos seus concidadãos não se estendendo à massa. No tocante à educação, o pragmatismo inglês foi mais eficiente em atender aos interesses capitalistas. Nesse período na Inglaterra, a Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 9 escola primária objetivava preparar a classe operária para o trabalho. Entretanto, a Inglaterra livre de concorrentes externos à sua altura. decorrente de sua supremacia industrial, não estabelece uma política global para a ciência e a educação estatal, o que possibilita que a ciência se desenvolva, de forma empírica, no interior das fábricas para solucionar problemas de ordem prática e estreitamente relacionados à produção (Andrey, 1994). Alicerçando a vinculação ciência-produção, ainda, encontram-se a herança racionalista e empirista do século XVII. Contudo no século XVIII, longe de polarizarem o pensamento filosófico empirismo e racionalismo passam a ser uma questão de ênfases. Entretanto, se no cartesianismo clássico os sentidos são enganosos e só a razão é confiável, no iluminismo a razão não prescinde da observação e o inverso também é verdadeiro. Excetuando Berkeley que levava seu empirismo ao extremo do imaterialismo, os iluministas partilhavam a crença na conjugação entre razão e observação como elementos necessários para o desvendamento da realidade, atribuindo ora a uma, ora a outra, o papel central nesse processo, constituindo o que Löwy (1996) chama de fertilização recíproca. Apesar da relativização entre essas duas correntes teóricas, ainda predominavam e consolidavam-se como características essenciais da ciência os princípios da neutralidade, da objetividade ou da subjetividade abstrata2, da quantificação e do fracionamento metódico. Com essas características, a ciência moderna rompe com o senso comum que, mergulhado numa subjetividade contextual, encontra-se despreparado para apreender o real metódica e racionalmente. No campo das ciências naturais, as idéias de Galileu desenvolvem-se e seu método matemático é seguido não só na física quanto na química e na biologia. Na física, Isaac Newton desenvolve sua teoria sobre gravitação e movimento planetário baseado em estudos matemáticos que tinham como alicerce a noção de universo regido por leis mecânicas. 2 Note-se que ambas, objetividade e subjetividade abstrata, fundam-se na proposição de uma ciência universal garantida tanto pela imparcialidade da observação quanto por uma razão inerente ao homem e independente de contexto. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 10 A quantificação é introduzida na química por Lavoisier em seus estudos sobre o flogístico. Partindo de experimentos controlados sobre o processo de combustão de substâncias, Lavoisier consegue desmistificar a teoria do flogístico dando um grande passo para o futuro entendimento da natureza corpuscular da matéria. Além de grande relevância para a química, esse estudo e outros envolvendo processamento de metais foram de suma importância para o desenvolvimento da indústria metalúrgica da época, estreitando os laços entre a produção científica e a de bens de consumo (Vidal, 1986). Na biologia, o evolucionismo começa a ganhar adeptos, dentre eles: Lamarck, Buffon e Erasmus Darwin (avô de Charles Darwin). A idéia de mutabilidade das espécies vinha ao encontro dos anseios iluministas principalmente em dois aspectos: pautava-se na concepção de desenvolvimento da humanidade (progresso das espécies), em particular, casando-se perfeitamente com o otimismo da época. Além disso, consistia numa lei natural que negava o fixismo teológico da tradição clerical. É nessa efervescência cultural que se desenvolve a certeza de que o progresso da ciência traria respostas a muitos problemas da humanidade, dentre eles: a miséria e a morte. Contudo, os progressos advindos da ciência, longe de solucionarem o problema da miséria, vinculam-se ao sistema produtivo e ampliam as possibilidades de acúmulo e concentração de capital nas mãos de poucos. Nessa ciranda de interesses, a ciência vai cada vez mais distanciando-se da promessa de progresso global para dedicar-se à solução de problemas produtivos. Assim, no século XIX com a emergência do capitalismo liberal, explodem com grande violência as contradições do projeto de modernidade: entre a solidariedade e a identidade, entre a justiça e a autonomia, entre a igualdade e a liberdade (Santos, 1996, p. 80). Contradições que foram superadas na época, pela identificação das leis naturais com as sociais3. 3 Desde o século XVIII, a supremacia das ciências, especialmente as da natureza em relação a outras formas de pensamento encontra-se relativamente consolidada e os procedimentos adotados pelas ciências naturais passam a constituir o modelo hegemônico de acesso ao real. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 11 Na busca de um conhecimento legítimo (ou de legitimação dele), os teóricos do mundo social, dentre eles Condorcet e Saint-Simon, assumem o modelo das ciências naturais como a forma ideal de estudar a sociedade. Nesses termos, defendia-se a idéia de que a sociedade humana é regida por leis naturais, independentes da vontade e da ação humana, tal como a lei da gravidade ou do movimento da Terra em torno do Sol (Löwy, 1996, p. 36). O corolário dessa idéia pode ser encontrado no positivismo oitocentista de Comte. O casamento entre leis mecânicas e leis sociais veio legitimar as diferenças sociais como algo inerente à natureza e que o homem ou a sociedade não poderiam alterar. Esse determinismo natural, biológico, fortalecido pela Teoria da Seleção Natural de Darwin resolvia, assim, no plano teórico, as condições de um projeto de modernidade que tinha (tem) no acúmulo e centralização do capital seu verdadeiro determinismo: o econômico. O século XX traz o que Boaventura Santos (1996) chama de capitalismo organizado. Nele ocorre a transição da idéia de modernidade para a de modernismo. Esta última caracterizada, entre outras coisas, pela centralização e concentração do capital industrial, financeiro e comercial em cartéis e pela busca cada vez mais intensa da especialização funcional. No âmbito das ciências, o conhecimento é cada vez mais fragmentado. Tal fragmentação traduz-se num processo de especialização crescente nas diversas áreas do conhecimento, gerando alienação e descompromisso do cientista com o produto e uso de seu trabalho. Surge a figura do ignorante especializado que detém uma fatia mínima de conhecimento sobre o seu domínio, e que mergulhado num tecnicismo mecânico, tal qual o operário na linha de montagem, perde o controle e a dimensão da totalidade de seu ofício. Neste contexto, a ciência está cada vez mais a serviço do capital, transformando-se ela mesma no meio de produção e na mercadoria a ser consumida. Pululam nos meios de comunicação, nas lojas, nos supermercados, produtos autorizados pela comunidade científica que vão desde óleos comestíveis e cremes dentais até a móveis anatômicos e equipamentos eletrônicos. Neste jogo de sedução, cabe questionarmos: Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 12 quem é o produto que o consumidor quer adquirir: o equipamento ou o rótulo da ciência? Todavia, junto com a explosão de consumo, a promessa de progresso da modernidade trouxe em seu conjunto o mecanismo da exclusão. O capitalismo no afã de antecipar necessidades de consumo criou demandas que a massa já não tem condições econômicas nem intelectuais de absorver. Na ciência, as relações causa-efeito, os sistemas duais tão caros à modernidade, já não conseguem explicar nem a relatividade e a simultaneidade de Einstein, nem a incerteza de Heisenberg, nem a interatividade dos sistemas biológicos. 3 - A CRISE DO PARADIGMA DOMINANTE Vivemos em uma época de grandes mudanças e perplexidades. As novas tecnologias inseridas no mundo do trabalho estão provocando profundas transformações nos modos de produção, levando os estudiosos a dizerem que estamos vivendo a 3º revolução industrial. Ao mesmo tempo em que crescem as possibilidades de o homem ser liberado do trabalho mecânico, o desemprego aflige milhões de pessoas em todo o mundo; o capitalismo sob a égide do neoliberalismo atinge todos os rincões do planeta, se tomando, no plano econômico, a força hegemônica, principalmente após a queda do pretenso socialismo no Leste europeu; os meios de comunicação e os publicitários levam desejos de consumo padronizados às mais variadas partes do mundo, transformando, em poucos anos, culturas locais de tradição milenar; as mudanças nos valores de tempo e espaço levam-nos a assumir os mais variados papéis de um momento para o outro, fazendo da esquizofrenia a normalidade; ao mesmo tempo parecem estar em crise também as teorias que tentavam buscar uma coerência nas múltiplas manifestações presentes no mundo contemporâneo. Autores como Foucault, o mais importante precursor das hoje chamadas idéias pós-modernistas, e Lyotard negam a possibilidade de uma metalinguagem ou de uma metateoria mediante a qual as coisas possam ser explicadas e representadas. Ambos colocam as metanarrativas (esquemas interpretativos amplos como os produzidos Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 13 por Marx ou Freud) como necessariamente totalizantes. Lyotard define o pós-moderno como a "incredulidade diante das metanarrativas". Segundo este autor, os jogos de linguagem". ou seja, os vários discursos presentes no meio social são igualmente legítimos dentro de seus próprios contextos. "A atomização do social em redes flexíveis de jogos de linguagem sugere que cada um pode recorrer a um conjunto bem distinto de códigos, a depender da situação em que se encontrar (em casa, no trabalho, na igreja, na rua ou no bar, num enterro, etc.)" (Harvey, 1992, p.51). Essas perplexidades, em alguns momentos históricos, se traduzem em ações fundamentais para mudanças teóricas e sociais como foi o movimento estudantil de 68, e em outros momentos em paralisia frente ao poder do neoliberalismo econômico e da cultura de massas que nos subjuga. Qual o caráter da crise que estamos vivendo? Representa o nascer de uma nova organização da sociedade? Ou é o capitalismo em seu mais alto estágio de desenvolvimento? Numa tentativa de responder a tais questões, Boaventura Santos (1988, 1989, 1996) levanta as condições teóricas e as distingue das condições sociais sinalizadoras da crise do paradigma. Iniciaremos pela discussão das questões teórico-metodológicas. Ao analisar a complexidade da discussão sobre a ciência no mundo atual (pós 2º guerra mundial), Boaventura Santos evidencia sinais de uma profunda crise no modelo de racionalidade que subjaz à forma como a ciência moderna está constituída. Ele distingue as crises da ciência em dois tipos: crises de crescimento e crises de degenerescência. As crises de crescimento, para usar uma expressão de Kuhn (19 70: 182), têm lugar no nível da matriz disciplinar de um dado ramo da ciência, isto é, revelamse na insatisfação perante métodos um conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação na disciplina, insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que por vezes apenas pressentida, de alternativas viáveis (Santos, 1989, p. 17-18) (destaque no original). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 14 As crises desse tipo revelam o crescimento e vigor de uma dada disciplina das ciências e, por isto, dão ênfase à autonomia e ao grande valor da ciência entre outras formas de conhecimento. Os métodos e conceitos da disciplina em crise se tomam insuficientes para seu próprio crescimento. Se torna necessário o desenvolvimento de um novo arcabouço conceitual ou técnico, porém, ainda dentro da forma de conhecer o mundo predominante na época. A química após Lavoisier é um exemplo de deslocamento paradigmático dentro da própria química que não resultou em uma mudança na forma de interpretar o mundo como um todo. As crises de degenerescência são crises do paradigma, crises que atravessam todas as disciplinas, ainda que de modo desigual, e que atravessam a um nível mais profundo. Significam o pôr em causa a própria forma de inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e não apenas os instrumentos metodológicos e conceituais que lhe dão acesso. Nessas crises, que são de ocorrência rara, a reflexão epistemológica é a consciência teórica da precariedade das construções assentes no paradigma em crise e, por isso, tende a ser enviesada no sentido de considerar o conhecimento científico como uma prática de saber entre outras, e não necessariamente a melhor (Santos, ibid., p. 18). Das crises de degenerescência, emergem formas novas de conhecer e interpretar todo o real. Não são apenas ramos da ciência que se mostram em crise, é o modo de pensar sobre o mundo que sofre profundas alterações. Não é fácil determinar se num dado período histórico a crise da ciência é de crescimento ou de degenerescência, a não ser de forma retrospectiva das conseqüências das mudanças provocadas pelo novo paradigma. Desta forma, hoje podemos perceber que Galileu Galilei e Newton foram os precursores de um novo modo de conhecer e pensar sobre o universo e, por isto, são os representantes de uma mudança paradigmática conseqüente de uma crise de degenerescência. Qual o tipo de crise que estamos vivendo? Não há convergência de opiniões entre filósofos e cientistas. Alguns sequer aceitam a palavra crise para Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 15 caracterizar o momento científico atual. Boaventura desenvolverá em seus trabalhos os argumentos para defender o ponto de vista de que vivemos em uma fase de crise de degenerescência, a qual determina, inclusive, o tipo de reflexão epistemológica hoje privilegiada. Para ele, "a crise da ciência é, assim, também a crise da epistemologia" (Santos, ibid. p.l9). Para caracterizar o tipo de crise em que vivemos coloca: (...) defenderei nesta seção: primeiro, que essa crise é não só profunda como irreversível; segundo, que estamos a viver num período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará; terceiro, que os sinais nos permitem tão só esperar acerca do paradigma que emergirá deste período revolucionário, mas que, desde já se pode afirmar com segurança que colapsarão as distinções básicas em que assenta o paradigma dominante (...) (Santos, ibid., p.54). Os motivos e condições que mostram a degenerescência do paradigma dominante e a emergência da necessidade de um novo paradigma são vários, fundamentalmente conseqüências do grande avanço do conhecimento científico propiciado pelo paradigma dominante. O aprofundamento do conhecimento colocou em cheque os seus próprios limites, tanto em termos estruturais (possibilidades de conhecer cada vez com mais exatidão) quanto em termos filosóficos e sociais (para onde está nos levando esse tipo de conhecimento?). Boaventura aponta quatro condições teórico-metodológicas que evidenciam a crise do paradigma dominante. A primeira condição teórica é: Einstein "constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna" (Santos, 1988, p. 54) com suas proposições a respeito da relatividade simultaneidade. Einstein demonstra que a simultaneidade de acontecimentos ocorridos no mesmo lugar é diferente da simultaneidade de acontecimentos distantes, principalmente se esses acontecimentos estão separados por distâncias astronômicas. (...) Não podemos comparar o tempo em dois lugares diferentes sem enviar de um outro um sinal cuja passagem, por sua vez, levará tempo. Em resultado disto, Einstein mostrou que não há um 'agora' universal; existe Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 16 apenas um 'aqui e agora' para cada observa-dor (.). Na Física Relativista de Einstein, o tempo não é, pois, uma conseqüência estrita do conceito universal antes e depois. Acontecimentos em espaços próximos, podem aparecer em determinada ordem a um observador, podem aparecer a outro numa ordem oposta. (Bronowski, 1977, p.62) A partir da Teoria da Relatividade, o tempo e espaço absolutos de Newton, pilares dos fundamentos da ciência moderna, deixam de existir; também é colocada em dúvida a idéia de causa, um dos alicerces do conhecimento moderno. Para que um acontecimento seja considerado causa, ele deve anteceder à sua conseqüência. Como o antes e o depois passam a relativos, a concepção de causa e efeito deixa de ser independente do observador, isto é, absoluta. A segunda condição teórica para a crise da ciência moderna aparece com a Mecânica Quântica. Um dos postulados básicos da mecânica quântica formulado por Heisenberg e Bohr conhecido como Princípio da Incerteza de Heisenberg é que não é possível medir ou observar um objeto sem interferir nele "não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra" (Heisenberg, apud Santos, 1987, p. 55). Ou seja, o objeto depois de observado não é mais o mesmo que antes da observação. A ciência moderna, essencialmente cartesiana, defendia a separação sujeito/objeto do conhecimento como essencial à obtenção do verdadeiro conhecimento. O Princípio da Incerteza mostra que essa distinção é bem mais complexa do que formulada nos termos cartesianos e que o conhecimento exato não é possível, sendo portanto as leis da física apenas probabilísticas. Ou seja, a visão Newtoniana deixa de ser viável, uma vez que os fenômenos da natureza não funcionam como os mecanismos de um relógio, com uma exatidão que independe dos olhos do observador não podendo ser dissecados para estudo e previstos em suas conseqüências. A terceira condição teórica questiona o rigor dos meios formais em que as ciências "exatas" se expressam: o rigor da matemática. Uma das grandes preocupações dos matemáticos no final do séc. XIX e início do século XX foi a fundamentação da ciência matemática. Uma das Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 17 correntes que buscou essa fundamentação teórica para a área foi O formalismo, escola criada por volta de 1910 pelo matemático alemão David Hilbert. Uma das tentativas básicas do formalismo foi a criação de "uma técnica matemática por meio da qual se poderia demonstrar que a matemática está livre de contradições" (Snapper, p. 85). Para Hilbert, "se o pensamento matemático é defeituoso, onde acharemos verdade e certeza?" (apud, Davis & Hersh, p. 387). Uma das principais teses de Hilbert, baseada no rigor do séc. XIX, era a de que é possível provar que os axiomas da aritmética são consistentes - que um número finito de passos lógicos baseados neles nunca pode levar a resultados contraditórios. No entanto, Kurt Gödel, jovem matemático austríaco, mostrou que dentro de um sistema rígido podem ser formuladas proposições que são indecidíveis ou indemonstráveis dentro dos axiomas do sistema, ou seja, dentro do sistema existem certos enunciados precisos que não podem ser provados ou negados. Logo, não se pode ter certeza de que os axiomas da aritmética não levarão a contradições. Embora não exista nenhuma prova de Gödel numa linguagem apropriada a não especialistas, sabe-se que ela representou o abalo da escola de Hilbert. O artigo de Gödel, tratando da 'completude, decibilidade e consistência abriu um período de crise nas questões dos fundamentos matemáticos - o rigor matemático estava em questionamento. A quarta condição teórica da crise do paradigma da ciência moderna é constituída pelo avanço do conhecimento nos campos da microfísica, da química e da biologia nos últimos vinte anos. Novos pressupostos estabelecidos pelos avanços nessas disciplinas questionam em profundidade as concepções de matéria e natureza herdadas da física clássica. "Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade. criatividade e o acidente" (Santos, ibid., p.56). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 18 A reflexão sobre essas condições, propiciadas pelo desenvolvimento da ciência dentro do paradigma atualmente dominante, trouxe problemas para a reflexão epistemológica cuja solução não pode ser encontrada dentro do próprio paradigma que os originou. Entre esses problemas, Boaventura destaca dois como principais: os conceitos de lei e causalidade e o "aviltamento" da natureza pela ciência moderna. Os conceitos de lei e causalidade tão caros à ciência moderna são colocados sob questão pelas novas teorias científicas. Desde Galileu - e principalmente depois que Newton estabeleceu grandes leis que regem os movimentos tanto dos objetos na Terra quanto dos grandes corpos celestes - a ciência tem se configurado principalmente como a procura de regularidades e estabelecimento das relações de causa e efeito. A partir do momento em que a concepção mecanicista de que a natureza funciona regularmente como os mecanismos de um relógio, independentemente de seus observadores, deixa de ter o vigor dos últimos 200 anos. Fundamentar o conhecimento na procura de leis e causas dos fenômenos passa a ser algo problemático. A natureza é extremamente complexa, viva e mutante. Num mesmo fenômeno intervêm múltiplos fatores. Para a procura de leis gerais e regulares, a ciência tem tido, como método de trabalho, a necessidade de isolar o objeto ou o fenômeno estudado apenas nos aspectos que interessam ao observador, em geral, quantificando-os e traduzindo-os para a linguagem matemática. Desta forma, a ciência moderna tem transformado a natureza numa caricatura pobre e previsível. Nas palavras de Boaventura: "o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma a natureza num autômato, ou, como diz Prigogine, num interlocutor terrivelmente estúpido" (1988, p.58). Este é o segundo grande tema que emerge da crise da racionalidade científica predominante e que tem pautado a reflexão epistemológica atual. O fato desses dilemas teórico-metodológicos estarem presentes nas reflexões de grande parte dos cientistas - ao lado do crescente questionamento tanto por parte da comunidade científica quanto da sociedade como um todo - sobre os atuais compromissos da ciência com os centros de poder industrial e econômico, é sinal de que a crise da Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 19 ciência não poderá ser resolvida dentro da ordem conceitual, social e econômica hoje vigentes. Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciência moderna trouxe enormes modificações conceituais e meto do lógicas sobre a forma de compreender a realidade, sua inserção nos aspectos sociais, econômicos e culturais da sociedade do século XX provocou conseqüências tão profundas que as próprias teorias sociais que procuravam explicar o desenvolvimento das sociedades modernas se encontram no momento frente a grandes perplexidades. Embora os teóricos tenham grandes divergências sobre o que caracteriza o pós-moderno, é comum entre eles apontar como um ponto de inflexão nos rumos do pensamento sobre a modernidade o espanto frente à barbárie demonstrada por povos "civilizados", durante a 2º Guerra Mundial. "Os gritos dos assassinados (sob o domínio nazista e stalinista) ecoaram a pouca distância das universidades: o sadismo aconteceu a uma quadra dos teatros e museus. (...) Sabemos agora que uma pessoa pode ler Goethe ou Ri/Ice à noite, que pode tocar Bach e Schubert e cumprir a rotina de trabalho de Auschitwz pela manhã (Steiner, 1988, p. 15). Nesse episódio recente da história da humanidade, pode-se dizer que a cultura, o conhecimento, a ciência e o desenvolvimento das forças produtivas longe de cumprirem com os ideais da modernidade (ou foram conseqüências desses próprios ideais?) transformaram a razão nas formas mais puras de irracionalismo. Nas palavras de alguns estudiosos da condição pós-moderna: Boaventura Santos escreve que: (...) não resta dúvida de que o que a ciência ganhou em rigor nos últimos quarenta ou cinqüenta anos perdeu em capacidade de auto-regulação (...) quanto às aplicações (da ciência), as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram um sinal trágico, a princípio visto como acidental e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ecológica e o perigo do holocausto nuclear cada vez mais visto como manifestação de um modo de produção da ciência inclinado a transformar acidentes em ocorrências sistemáticas (1987, p.59). Nas palavras de Lyotard: Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 20 O meu argumento é o de que o projeto moderno (da realização da universalidade) não foi abandonado e esquecido, mas destruido, 'liquidado '. Há diversas formas de destruição, diversos nomes que a simboli-zam, 'Auschwitz' pode ser considerado como um nome paradigmático para o 'inacabamento' trágico da modernidade. (...) Em 'Auschwitz' foi fisicamente destruido um soberano moderno: todo um povo. E o crime que inaugura a pós-modernidade, crime de lesasoberania, já não regicídio, mas populicídio (distinto de etnocídios) (1993, p. 32-33). David Harvey ao explicitar a crise das idéias modernas: O século XX - com seus campos de concentração e esquadrões da morte, seu militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua experiência de Hiroshima e Nagasaki - certamente deitou por terra esse otimismo (do Iluminismo). Pior ainda, há a suspeita de que o projeto do iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca de emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana. (u) Saber se o projeto do iluminismo estava ou não fadado desde o começo a nos mergulhar num mundo kajkiano, se tinha ou não de levar a Auschwitz e Hiroshima (.) são questões cruciais (1992, p. 23-24). Decorridos 50 anos do final da 2º grande guerra, podemos constatar que o espanto frente ao irracionalismo, à barbaridade e à conivência não se transformou em exemplo a pedir novos rumos de desenvolvimento possíveis de evitar novas tragédias. Ao contrário, o perigo de uma catástrofe nuclear capaz da destruição do planeta esteve presente até há pouco tempo. Seu abrandamento com o final da guerrafria não significa estarmos de todo livres desse risco. Assistimos, nestes poucos anos que faltam para o fim do milênio, a realidades bem distantes dos ideais de fraternidade, progresso, felicidade e justiça, tão caros ao Iluminismo. Convivemos com o avanço dos particularismos nacionalistas e religiosos traduzidos em Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 21 guerras cruentas. Fome e miséria absolutas convivendo com padrões de consumo sofisticados. Proliferação dos misticismos como formas de sobrevivência num mundo desencantado. Individualismo exacerbado ao lado da perda quase total da personalidade individual. A falta de ética expressa na ética da vantagem pessoal. A contínua violação dos direitos humanos, por exemplo, no Brasil, o extermínio dos pobres no campo ou nas prisões das grandes cidades; nos Estados Unidos, a discriminação de negros e latinos; na Europa, o fascismo contra os trabalhadores imigrantes. Boaventura inicia seu livro "Pela mão de Alice" descrevendo um quadro sucinto do momento que vivemos: (...) a década de oitenta é sem dúvida uma década para esquecer. No seu decurso aprofundou-se, nos países centrais, a crise do Estado Providência que já vinha da década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades sociais e os processos de exclusão social (30% dos americanos estão excluídos de qualquer esquema de segurança social) de tal modo que estes países assumiram algumas características que pareciam típicas dos países periféricos. Daí o falar-se do terceiro mundo interior. Nos países periféricos agravamento das condições sociais, já de si tão precárias, foi brutal. A dívida externa, desvalorização internacional dos produtos que colocam no mercado mundial e decréscimo da ajuda externa, levou alguns destes países ao colapso. Na década de oitenta, morreram de fome na África mais pessoas que em todas as décadas anteriores do século. Se as assimetrias sociais aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram ainda mais entre o conjunto dos países do Norte e o conjunto dos países do Sul. Esta situação que alguns festejaram ou toleraram como a dor necessária do parto de uma ordem econômica finalmente natural e verdadeira, isto é, neoliberal, foi denunciada por outros como uma desordem selvática a necessitar ser substituída por uma nova ordem econômica internacional (Santos, 1994, p.19). Para Boaventura Santos, ao mesmo tempo em que a modernidade cumpriu em excesso algumas de suas promessas - desenvolvimento Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 22 enorme da ciência e tecnologia; ampliação da mercadorização da vida; integração do planeta todo na economia capitalista mundial; racionalização de praticamente todas as instâncias da vida do indivíduo - não terá condições de realizar as suas promessas de emancipação. E isso em conseqüência do atrelamento da modernidade ao desenvolvimento capitalista: suas possibilidades foram reduzidas às possibilidades do capitalismo. O progresso da humanidade passou a ser concebido como acumulação capitalista e a natureza e o homem se transformaram em meros fatores de produção. A crise na realidade desencadeia a crise nas formas tradicionais de interpretação dessa realidade: "a rapidez e a intensidade com que tudo tem acontecido se, por um lado, torna a realidade hiper real, por outro lado, trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem capacidade para surpreender ou empolgar. Uma realidade assim torna-se fácil de teorizar, tão fácil que a banalidade do referente quase nos faz crer que a teoria é a própria realidade com outro nome, isto é, que a teoria se auto-realiza" (Santos, ibid., p.20). Boaventura ao nos apresentar os desafios colocados pela crise das teorias, mostra a necessidade de "criatividade teórica", "proximidade critica" e "envolvimento livre" como posturas para pensarmos as saídas possíveis e utópicas. Apresenta 5 desafios denominando-os: "perplexidades produtivas". . A primeira perplexidade: ao mesmo tempo em que os problemas mais cruciais das agendas políticas, tanto intra quanto inter países e continentes, são de natureza econômica, a teoria e a análise sociológica dos últimos anos tem valorizado o político, o cultural e o simbólico, isto é, "têm vindo a desvalorizar os modos de produção em detrimento dos modos de vida" (Santos, ibid., p.21). Essa tendência se reflete na desvalorização do marxismo como perspectiva de análise e aponta para importantes questões levantadas por Boaventura: "será esta contradição não apenas aparente, mas também real? E se assim for, estaremos a falhar o alvo analítico e a cavar a nossa própria marginalidade? Ou será, pelo Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 23 contrário, que estes diferentes fatores e conceitos e as distinções em que assentam(economia, política, cultura), .todas legadas pelo século XIX, estão hoje superados e exigem uma reconstrução teórica radical? E nesse caso, como fazê-la? " (Santos, ibid, p. 21) A segunda perplexidade consiste no confronto entre nossos pontos de vista ao analisarmos os problemas sociais, ainda muito centrados na idéia de Estado e Nação, e a enorme transnacionalização e intemacionalização da economia, das formas de comunicação e informação, da propagação planetária de símbolos e valores culturais e inclusive de pessoas como trabalhadores migrantes entre os vários países. Frente a esse quadro Boaventura questiona: "Será então o Estado nacional uma unidade de análise em vias de extinção ou, pelo contrário, é hoje mais central do que nunca, ainda que sob a forma ardilosa da sua descentralização? Quais são as responsabilidades especificas da sociologia, uma disciplina que floresceu com o intervencionismo social do Estado? Será que o intervencionismo social do Estado vai assumir nos próximos anos a forma de intervencionismo não estatal? Será que o Estado vai criar a sociedade civil à sua imagem e semelhança? Será que a sociologia é parte da armadilha ou parte do mecanismo que a permite desarmar?" (Santos, ibid, p. 22). A terceira perplexidade: ao mesmo tempo em que as teorias sociais têm, nestes últimos dez anos, privilegiado o indivíduo e sua vida privada, seus modos e estilos de vida, sua biografia e trajetória pessoais, isto é, o micro em detrimento do macro, na sociedade capitalista avançada nunca o indivíduo foi tão despersonalizado. Sua vida íntima, suas práticas sexuais, seus movimentos e opiniões nunca foram tão devassados. Seus gostos e escolhas hoje são completamente padronizados. Frente a isso: "Será que é só aparente essa contradição? Será que a distinção indivíduo-sociedade é outro legado oitocentista de que nos devemos libertar? Será que pelo contrário, nos libertamos cedo demais do conceito de alienação? Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 24 Como fazer vingar a preocupação tradicional da sociologia com a participação e a criatividade sociais numa situação em que toda a espontaneidade do minuto um se transforma. no minuto dois, em artefato mediático ou mercantil de si mesma?" (Santos, ibid., p. 22) A quarta perplexidade surge em função da contradição (aparente?) entre a vitória da "democracia" como credo a ser defendido nas mais variadas partes do mundo - marcado pelo fim de grande parte das ditaduras, pela queda da idéia de "ditadura do proletariado" e pela postura que instituições internacionais de concessão de créditos têm tomado no sentido de atrelar a ajuda financeira à vigência de regimes democráticos - e a crise vivida pela própria legitimação da democracia: ausência de vontade de participação, apatia frente à atuação dos órgãos de representação democrática, descrença em relação aos poderes constituídos. Ao mesmo tempo, liberalismo econômico e democracia não têm tido uma boa convivência histórica. Então nestes tempos de neoliberalismo: "Será que o triunfo da democracia, que liquidou o conflito Leste-Oeste, se articula com o triunfo do neoliberalismo de que resultará o agravamento do conflito Norte-Sul? Será que estes dois triunfos conjuntos vão criar novos conflitos Norte-Sul tanto dentro do Norte como do Sul? Como vamos analisar as sociedades que são o Sul do Norte (por exemplo, Portugal) ou o Norte do Sul (por exemplo, o Brasil)?" (Santos, ibid., p. 23). A quinta perplexidade apresentada por Boaventura Santos propõe uma reflexão sobre um movimento aparentemente paradoxal: ao mesmo tempo em que se intensificam as relações sociais transnacionais e globais, ultrapassando fronteiras quase sempre fundadas na idéia de território nacional, com seus costumes, língua, história e ideologia, assiste-se à revitalização de identidades fundadas na identificação com as raízes territoriais (reais ou mesmo simbólicas). As identidades regionais e locais são enfatizadas mesmo, e principalmente, por grupos de indivíduos vivendo fora de seus países: fundamentalistas islâmicos em Paris, Sihks em Londres. Este movimento também apresenta outras Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 25 contradições: a desterritorialização de indústrias, mercadorias e costumes aumentam a liberdade de escolhas daqueles que têm a iniciativa dos processos transnacionais - os executivos das grandes indústrias, os agentes do mercado financeiro, o cientista que participa de congressos, o turista - o que não implica, muito ao contrário, em maiores possibilidades de liberdade para os que sofrem esse movimento como um processo compulsório, isto é, os refugiados, os emigrantes à procura de empregos., os índios e camponeses deslocados de seus territórios nativos. Frente a isso: "Será que esta dialética de territorialização/ desterritorialização faz esquecer as velhas opressões? E será que a velha opressão e classe - de que a sociologia internacional corre o risco de se esquecer prematuramente -, porque transnacionalizável, faz esquecer, ela própria, a presença ou até o agrava-mento de velhas e novas opressões locais, de origem sexual, racial ou étnica?" (Santos, ibid. p. 24). Esse painel das condições de crise, longe de nos levar a uma postura de imobilismo pessimista, é propício à reflexão sobre a conformação de um novo paradigma a uma nova sociedade. Para Boaventura: "(..) uma oportunidade única para a criatividade teórica e para a transgressão metodológica e epistemológica" que será "(..) desperdiçada se a liberdade criada pela ausência dos dogmas teóricospolíticos for asfixiada pelos sempre velhos e sempre novos dogmas institucionais-fácticos" (Santos ibid., p. 21). 4 - O PARADIGMA EMERGENTE Boaventura Santos prescreve um novo paradigma que ele denomina Paradigma prudente para uma vida decente e reconhece que não deixa de ser uma especulação e produto de uma síntese pessoal, de imaginação sociológica. É uma especulação por estar se falando do futuro e uma síntese pessoal pois outras sínteses são possíveis, sob outros pontos de vista. É um paradigma que reflete um momento de transição - a relação entre o moderno e o pós-moderno que é uma relação de contradições, em que não há ruptura total do moderno e nem continuidade linear. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 26 O novo paradigma não pode ser apenas científico; precisa também ser social. Ele é anunciado através de quatro teses. 4.1 - Tese 1: Todo Conhecimento Científico-Natural é Científico Social O conhecimento do paradigma emergente tende a romper com a dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais. Essa ruptura se evidencia pelas recentes discussões no campo da física e da biologia sobre as distinções entre orgânico/inorgânico, seres vivos/matéria inerte e humano/não-humano. As novas teorias, de vocação holística, tentam superar as inconsistências entre a mecânica quântica e a teoria da relatividade de Einstein, introduzem na matéria os conceitos de historicidade e de processo, de liberdade, de autodeterminação e até de consciência que antes o homem e a mulher tinham reservado para si" (Santos, 1988, p. 6). Conceitos como: 'dimensão psíquica da natureza' (Bateson); 'consciência da natureza' (G. Chew); 'inconsciente coletivo' (Jung); 'interações locais e não locais na física das partículas, a partir da idéia de sincronicidade jungiana' (Capra); 'teoria da ordem implicada, que concebe a consciência e a matéria interdependentes e ligadas sem nexo de causalidade' (D. Bohm) revelam um relativo colapso das distinções dicotômicas dominantes na modernidade. Para Boaventura Santos, não é suficiente apenas a tendência de superação entre ciências naturais e sociais, mas sobretudo refletir sobre o sentido e conteúdo dessa superação e sob que égide ficará o novo paradigma: sob a égide das ciências naturais ou a das ciências sociais. Estas reflexões apontam sinais ambíguos para o futuro. De um lado, há os que postulam a emergência de um novo naturalismo centrado no privilegiamento dos pressupostos biológicos do comportamento humano (1988, p. 61), ficando a superação da dicotomia ciências naturais/sociais sob a égide das ciências naturais. Contra esta posição, pode-se objetar que, levando em consideração a concepção do paradigma da modernidade, as ciências naturais só vêem do futuro aquilo em que ele repete o presente (1988, p. 62). Entretanto, o autor chama a uma reflexão mais profunda sobre o conteúdo dos últimos progressos das ciências naturais, principalmente no conceito de matéria, em que se vê o uso de conceitos, teorias, metáforas e analogias das Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 27 ciências sociais. Os modelos explicativos das ciências sociais têm-se enraizado, principalmente, no campo teórico da biologia. Além disso, percebemos que algumas dessas teorias formuladas no campo das ciências naturais têm sido aplicadas em teorias sociais. Por exemplo, Peter Allen aplica a teoria das estruturas dissipativas aos processos econômicos e à evolução das cidades e das regiões. Há pois uma interdependência das duas áreas. Para os que postulam que a superação da dicotomia ciências naturais/sociais fique sob a égide das ciências sociais, deve-se levar em consideração, na opinião de Boaventura Santos, que a constituição das ciências sociais ocorreu sob duas vertentes: uma vinculada à epistemologia e à metodologia do positivismo e outra de vocação antipositivista, mais pujante que a primeira, pois vem de uma reflexão filosófica complexa, fenomenológica, interacionista, mito-simbólica, hermenêutica, mas que traz subjacente uma visão mecanicista da natureza. Esta segunda vertente é a mais indicativa de ser ela o modelo das ciências sociais no momento de transição para a pós-modernidade. Embora ela carregue uma visão de homem contraposta à visão de natureza, já ultrapassada, os seus elos com o passado são menos fortes do que com o futuro. Devemos analisar o sentido global da revolução científica. Os obstáculos até então apontados para a cientificidade das ciências sociais, causa do seu atraso em relação às ciências naturais e o seu caráter préparadigmático, segundo Kuhn, devem, na opinião de Boaventura Santos, serem revistos. Mesmo porque, o que era apontado como causa do atraso das ciências sociais é hoje a causa do grande avanço nas ciências naturais. Percebemos uma revalorização nos estudos humanísticos, entretanto, a própria humanidade deverá ser transformada. Esta concepção humanística é que, provavelmente, colocará as ciências sociais como a catalisadora da fusão das duas ciências, colocando também a natureza no centro da pessoa, passando-se a entender a natureza como sendo humana. Esse novo paradigma emergente se constituirá de algumas categorias matriciais, consideradas como categorias de inteligibilidade universais: a analogia textual (objeto de estudo da filologia), a lúdica, a Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 28 dramática e a biográfica. O mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou ainda como autobiografia (Santos, 1988, p. 63). 4.2 - Tese 2: Todo Conhecimento é Local e Total Uma das características mais marcantes da modemidade foi a especialização do conhecimento, gerando a parcelização, a disciplinarização e o reducionismo arbitrário do mesmo. Embora os seus efeitos já tenham sido reconhecidos, as medidas propostas para corrigi-los não têm obtido sucesso uma vez que não é possível encontrar soluções dentro do próprio paradigma dominante, pois este é o principal problema e do qual decorrem os demais. No paradigma emergente, o conhecimento é total e também local. A fragmentação do conhecimento não é mais disciplinar, é temática: comunidades concretas, com projetos de vida locais, geram temas que permitem que os conhecimentos progridam ao encontro uns dos outros, na busca de novas e variadas interfaces Este conhecimento é total porque reconstitui os projetos cognitivos locais salientando-lhes a sua exemplaridade, e por essa via transforma-os em pensamento total ilustrado (Santos, 1988, p.66). A ciência emergente além de anal6gica é tradutora, pois incentiva as novas teorias desenvolvidas localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, podendo ser usados fora do contexto (Santos, 1988, p. 66). Trata-se de um conhecimento concebido através da imaginação e generalizado através da qualidade e exemplaridade. Trata-se da reconstrução de racionalidades locais, adequadas às necessidades locais, conscientes da irracionalidade global, mas também conscientes que só podem combatê-la localmente. Quanto mais global for o problema, mais locais e mais multiplicamente locais devem ser as soluções (Santos, 1996, p. 111). A metodologia subjacente ao paradigma emergente é caracterizada por uma transgressão metodológica: é um conhecimento sobre as condições de possibilidade de ação humana, num espaço e tempo locais. Há pois uma pluralidade de métodos e a inovação científica consiste em aplicar tais métodos fora do seu habitat natural. Não existe mais um estilo unidimensional de fácil identificação, mas a presença de vários estilos se interpenetrando. As interações e Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 29 intertextualidades organizadas em tomo de projetos locais serão uma das características do conhecimento pós-moderno. O conhecimento pósmoderno privilegia o próximo e não o real; é um conhecimento que aspira à oralidade, à comunicação face-a-face, é situacional e contextual. Trata-se de um localismo relativamente desterritorializado e, neste sentido, é também um localismo internacionalista (Santos, 1996, p. 105). 4.3 - Tese: Todo Conhecimento é Autoconhecimento Uma das principais características da ciência moderna foi a distinção sujeito/objeto. Se nas ciências naturais essa distinção foi mais pacífica pois um conhecimento objetivo não poderia ter interferência de valores, o mesmo não ocorreu nas ciências sociais. Na antropologia, a grande distância empírica entre o sujeito - o antropólogo, o europeu civilizado - e o objeto de pesquisa - o povo primitivo, o selvagem - teve de ser encurtada pelo uso de metodologias que permitiam uma maior proximidade entre ambos: a etnografia e a observação participante. Na sociologia, esse distanciamento que não existia anteriormente - era o europeu estudando seus concidadãos - passou a ser uma exigência com o uso de metodologias como: inquérito sociológico, análise documental e entrevista estruturada. Este status quo metodológico das ciências sociais bem como a distância social entre antropologia e sociologia foram questionados e transformados - uma passou a se utilizar dos métodos da outra, buscando o rompimento da dicotomia sujeito/objeto. Nas ciências naturais, ocorre a primeira ruptura dessa dicotomia com a física quântica - o ato e o produto do conhecimento são inseparáveis - e essa discussão estará presente nos avanços da microfísica, da astrofísica e da biologia. Podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 30 de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação (Santos, 1988, p. 67) No paradigma emergente, a ciência tem um caráter autobiográfico e auto-referenciável. A chave para o entendimento do mundo está numa ciência contemplativa, mais do que ativa, marcada pela incerteza do conhecimento. A criação científica aproxima-se da criação literária ou artística - a dimensão ativa da transformação do real (o escultor a trabalhar a pedra) será subordinada à contemplação do resultado (a obra de arte); o discurso científico aproxima-se do da crítica literária - que atualmente ganha nova dimensão, pois não há mais a supremacia do autor ou do crítico, mas uma batalha entre dois sujeitos, um é a tradução do outro; ambos criadores de textos, lhas escritos em linguagens distintas. O conhecimento científico no paradigma emergente é ressubjetivado; há um movimento no sentido de maior personalização no trabalho científico. 4.4 - Tese 4: Todo Conhecimento Científico Visa a Constituir-se num Novo Senso Comum A ciência pós-moderna tentando romper com a racional idade científica da modernidade sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional (Santos, 1988, p. 70). Ao dialogar com outras formas de conhecimento, Boaventura Santos resgata o senso comum como sendo uma forma de conhecimento que, se interpenetrado pelo conhecimento científico, pode ser a origem de uma nova racionalidade da pós-modernidade. Para que isto ocorra, deverá haver uma inversão da ruptura epistemológica, ou seja, enquanto na modernidade. a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum (Santos, 1989, p.70). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 31 Para se ter uma melhor compreensão desta tese de Boaventura Santos, faz-se necessário explicitar como ele analisa o senso comum e o que considera inversão de ruptura. O conceito filosófico de senso comum surge no século XVIII, representando o embate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do regime vigente e, por ser burguês, tinha uma dupla implicação: senso médio e senso universal. Mas, por estar ligado à ascensão da burguesia, tão logo essa classe assume o poder, o conceito filosófico de senso comum é desvalorizado, passando a significar conhecimento superficial e ilusório. E, segundo Boaventura Santos, é contra esse senso comum que surgem as ciências sociais no século XIX. Para as ciências naturais, ele não representava nenhum problema pois foi, desde o início, recusado. O mesmo não aconteceu com as ciências sociais que sempre tiveram com o senso comum uma relação complexa e ambígua, pois, por um lado, correntes como a fenomenologia, ernometodologia e o interacionismo simbólico não propunham ou não achavam desejável a ruptura com ele; por outro lado, as correntes dominantes favoráveis à ruptura tinham sobre o senso comum concepções diferentes, salientando ora a sua positividade, ora a sua negatividade. Além disso, é usual uma teoria sociológica erguida contra ele ser considerada, pela posterior, senso comum ainda não elaborado. Outro conceito importante da filosofia - ruptura epistemológica foi introduzido por Gaston Bachelard para explicar a descontinuidade no conhecimento científico. Quando os conceitos, procedimentos e instrumentos existentes não são adequados ou não explicam o que está sendo estudado, está-se, de acordo com Bachelard, diante de um obstáculo epistemológico' e, para superá-lo, há necessidade de uma ruptura epistemológica. Esta ruptura conduz à elaboração de novas teorias e métodos que influenciam o conhecimento existente. Um dos obstáculos epistemológicos para Bachelard é o senso comum. A ciência se opõe absolutamente à opinião (apud Santos, 1989, p. 31). É preciso romper com toda forma de conhecimento que seja vulgar, espontânea e de experiência imediata; somente com a ruptura é que será possível o conhecimento científico, racional e válido. Para Boaventura Santos, a ruptura epistemológica bachelardiana interpreta fielmente o modelo de racionalidade do paradigma Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 32 dominante, representando o máximo de consciência possível do paradigma da ciência moderna (Santos, 1989, p. 35). No entanto, esta ruptura só é compreensível dentro desse paradigma, pois ele se coloca contra o senso comum e pressupõe uma única forma de conhecimento válido que dicotomiza sujeito/objeto, teoria/prática, ciência/ética e reduz o universo a elementos observáveis e quantificáveis. A partir da sua leitura de crise dentro do paradigma dominante, Boaventura Santos afirma que o processo histórico da crise final do paradigma da ciência moderna iniciou-se já e iniciou-se pela crise da epistemologia que melhor dá conta do paradigma: a epistemologia bachelardiana. (Santos, 1989, p. 36). Desta forma, o autor concebe um reencontro da ciência com o senso comum e anuncia: uma vez feita a ruptura epistemo lógica, o ato epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica (Santos, 1989, p. 36). Não tem sentido opor senso comum e ciência, pois: "O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjazlhe uma visão do mundo assente na ação e no principio da criatividade e da responsabilidades individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder cotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade" (Santos, apud Santos, 1989, p. 40). Percebemos, assim, que para Boaventura Santos, o senso comum tem características positivas e pode se constituir em elemento de Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 33 emancipação. Desta forma, simplesmente romper com a epistemologia bachelardiana significa deixá-lo como estava antes dela. Daí a proposta de dupla ruptura, pois esta visará à transformação tanto do senso comum quanto da ciência. Com essa dupla transformação pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência prudente, ou melhor, uma nova configuração do saber que se aproxima da phronesis aristotélica, ou seja, um saber prático que dá sentido e orientação à existência e cria o hábito de decidir bem (Santos, 1989, p. 41). O senso comum interpretado pelo conhecimento científico pode estar na base de uma nova racionalidade, a qual não despreza a tecnologia produzida pelo conhecimento mas que dela se apropria para traduzir-se em sabedoria, em melhoria de vida. A nova configuração do saber é, assim, a garantia do desejo e o desejo da garantia de que o desenvolvimento tecnológico contribua para o aprofundamento da competência cognitiva e comunicativa e, assim, se transforme num saber prático e nos ajude a dar sentido e autenticidade à nossa existência (Santos, 1989, p. 42). O paradigma proposto por Boaventura Santos aponta sinais para o futuro. O caos instaurado pela modernidade, longe de ser negativo, revela-se num horizonte amplo de possibilidades que se concretizarão pelas miniracionalidades locais, pelas lutas protagonizadas por grupos sociais congregados, pela busca de subjetividade, da identidade e da multiculturalidade. 5 - SOBRE A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS Embora a crise da modernidade e conseqüentemente, os presságios da pós-modernidade aqui delineados não sejam de plena aceitação entre os teóricos, é fato que este final de século tem apontado para uma série de transformações de ordem científica, política, econômica e social. E a escola na condição de espaço social não tem passado incólume a tais transformações, especialmente porque o Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Maria Tereza Soler Jorge et al. 34 modelo de ciência ora em crise tem fornecido ao longo da história dessa instituição, categorias centrais que deram origem às várias versões da teoria e das práticas educacionais (Giroux, 1993, p. 42). Nesse sentido, as questões discutidas ao longo do texto são importantes passos que nós professores devemos dar rumo à (re) construção de práticas educacionais mais alinhadas com este novo contexto social. Especialmente nós professores de ciências, uma vez que a ciência moderna penetrou e norteou a educação científica de nosso século. A crença num conhecimento construído a partir de cuidadosas observações da natureza; conhecimento neutro em relação a interesses sociais e destinado a eliminar outras formas de conhecimento menos verdadeiro”, apesar de tão questionado por muitos cientistas e filósofos, nestas últimas décadas, ainda persiste no ensino escolar de ciências. Que dilemas e desafios o novo modelo impõe ao ensino de ciências? Que novos rumos curriculares, metodológicos sugere? Que visão de homem, ambiente e sociedade propõe? Estas são questões que devem constituir a pauta de discussão sobre o futuro da educação em ciências, se quisermos romper com o modelo de ciência moderna. Nesta perspectiva, enquanto professores de Ciências, podemos sintetizar nossos desafios de como: • superar visões mecanicistas de mundo em prol de abordagens mais globais, integrais; • romper com a clássica dicotomia natural social ao discutir problemas ambientais; • abordar fenômenos como processos e não como relações causais; • valorizar conhecimentos locais, grupais, sem perder de vista a articulação com sistemas mais amplos de compreensão do mundo e, por fim; • construir um ensino que propicie ao aluno/cidadão compreender a "linguagem" da ciência e munido desse instrumental possa avaliar e posicionar-se diante de problemas éticos advindos da utilização e apropriação de conhecimentos científicos. Julgamos, portanto, essencial que reflexões sobre o rumo da ciência e, conseqüentemente, do destino da própria humanidade, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.5-36, jul./dez., 1998 Colocando questões ao paradigma da modernidade 35 questões intrínsecas à educação em ciências estejam presentes nas discussões de todas as pessoas, considerando que o ensino de ciência é um canal privilegiado para socializar esse debate. Para isto, é indispensável que tais questões sejam contempladas nos procedimentos metodológicos adotados no ensino fundamental e médio de ciências e, principalmente, nos cursos de formação de professores, se não quisermos permanecer meros espectadores na definição de políticas norteadoras para a educação em ciências e, sobretudo, se quisermos participar da construção de uma ciência prudente para uma vida decente (Santos, 1988, p. 60). BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ANDERY, M.A. et al. Para compreender a ciência. 5. ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1994. BOYER, Carl B. 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(David Harvey) 1 – INTRODUÇÃO As tendências recentes do processo de trabalho engendradas pela reestruturação produtiva em que nos encontramos atualmente seduzidos a cedermos ao apelo de inserção comandado pelos países econômica e tecnicamente hegemônicos - representam um grande desafio não somente ao campo das iniciativas econômicas e do imperativo mercado lógico que as dinamizam, mas principalmente às políticas públicas sociais, pois estas vêm sendo concebidas como iniciativas que prospectam solucionar os problemas e iniqüidades geradas com a economia de mercado. * Professor de História da Educação/Centro de Educação da Universidade Federal do Pará. Especialista em Educação e Problemas Regionais. Mestre em Educação: Supervisão e Currículo (PUC-SP). Doutorando em Educação: Currículo (PUC-SP). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 38 No conjunto dessas discussões, situa-se o sistema educacional elemento que se tomou bastante problemático e complexo em termos da função social que deve cumprir, enquanto parte integrante do processo de modernização tecnológica. Processo demandado aos países cuja expansão econômica se encontra obstruída por falta de modelos ajustáveis de desenvolvimento dinâmico capazes de tomá-la flexível e mundialmente competitiva. Historicamente, o Estado brasileiro tem interpretado a idéia de desenvolvimento como princípio fundamental através do qual seria possível instituir a "sociedade ideal", onde os indivíduos, submetidos aos refinamentos tecnológicos, impulsionariam o funcionamento ordenado e harmônico da mesma. Contudo, a satisfação desse imperativo conduziu muitos pensadores modernos, como Augusto Comte, a tecerem verdadeiras apologias a respeito das técnicas de controle do mundo natural, em cujos princípios e leis se consubstanciariam as atitudes morais da humanidade. Esta alicerçada sob a lógica da ordem social apresentada como eixo potencializador de progresso e bem-estar social. Nessa corrida desenfreada em busca de maior elevação tecnológica, os projetos de desenvolvimento dos países que desejassem ascender na escala econômica precisavam, igualmente, espelhar-se nos padrões utilizados por aquelas sociedades onde o progresso se tomara uma realidade. Por isso, a política brasileira de desenvolvimento foi sendo desencadeada de forma submissa e dependente em relação àqueles países cuja expansão científica já se encontrava bem mais consolidada, com status e legitimidade em porções mundiais. Foi com esse afã que se passou a utilizar medidas visando à integração do modelo de desenvolvimento brasileiro aos mesmos parâmetros que presidiam a tessitura dos mercados internacionais. As rupturas no interior do sistema produtivo nacional, portanto, impulsionaram profundas e complexas modificações na maneira de se conceber a organização escolar, bem como a função que a mesma seria designada a preencher em cada momento histórico concreto e em consonância com políticas públicas específicas. Ao analisar a trajetória histórica da república brasileira, Kawamura (1990, p. 36) diz que a dependência científica e tecnológica reflete todo um conjunto de relações sociais e políticas que necessitam ser compreendidas a partir do contexto onde elas foram produzidas. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 39 Conforme o entendimento elaborado pela referida autora, "tanto a educação quanto a ciência e tecnologia compreendem processos culturais estreitamente conectados ao processo produtivo e aos interesses políticos". Nessa perspectiva, este estudo será direcionado para a análise da relação existente entre a estrutura curricular e a função social do sistema de ensino no mundo contemporâneo, examinando-se as transformações do processo produtivo e a qualificação do trabalhador como elementos de referência auxiliares na compreensão da direção que o Estado brasileiro tenta atribuir à educação, no momento atual, em especial às políticas relativas ao ensino médio, onde a questão do vínculo entre educação e trabalho adquire patamares críticos diante da nova dinâmica circunscrita pelo capital. 2 - MUDANÇAS NA PRODUÇÃO E EXPANSÃO DA ECONOMIA DE MERCADO ...O movimento mais flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efémero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo. (David Harvey) O paradigma fordista de "produção em massa para um consumo de massa", que passou a ser esboçado na Europa a partir de 1914 e predominou hegerilônico até 1973, era marcado pela rigidez e racionalização do processo de trabalho cujo objetivo consistia, em última instância, "na solução dos males a que o capitalismo estava exposto". Os fundamentos dessa política de controle e gerência do trabalho estavam assentados na "separação entre gerência, concepção, controle e execução". Dentro de tal perspectiva, o Estado foi requisitado a incorporar como obrigações essenciais as seguintes linhas mestras: Controlar ciclos econômicos, fornecer um forte complemento ao salário social com gastos de seguridade social, assistência médica, educação, habitação etc., o poder estatal era exercido direta ou indiretamente sobre os acordos salariais e os direitos dos trabalhadores na produção e as Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 40 reformas de intervencionismo estatal variavam muito entre os países capitalistas avançados (Harvey, 1992, p. 121). Portanto, ao lado da produção em larga escala, o Estado deveria ter uma economia fortemente regulamentada que fosse capaz de compatibilizar o aumento da produtividade com crescimento econômico e bem-estar social. Assim, não restam dúvidas quanto ao fato de que "o progresso internacional do fordismo significou a formação de mercados de massa globais e a absorção da massa da população mundial fora do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo de capitalismo" (Ibid, p. 131). Sob a luz dos pressupostos norteadores da matriz fordista, os países ávidos pela superação do atraso e estagnação econômica na qual estavam envoltos foram, igualmente, encampados como espaços econômicos e culturais "carentes" de um processo produtivo fundamentado em bases tecnológicas que, uma vez adquiridas, permitiriam a superação da crise política e consolidariam a estabilidade social. Os países que cederam a esse apelo desenvolvimentista foram submetidos a processos produtivos cujas relações de trabalho voltavamse para a acumulação de capitais. No que se refere à realidade brasileira, o modelo de produção fordista impulsionou o surgimento de uma economia baseada não mais no padrão agrário-exportador existente desde o período colonial, mas na substituição das importações advindas com o processo de expansão industrial, executado pelos governos populistas que buscavam atingir a soberania nacional mediante reestruturação do seu modelo produtivo. A introdução de novas tecnologias como instrumentos imprescindíveis à resolução da crise econômica e social trouxe de volta o debate acerca das finalidades para as quais o sistema escolar deve estar dirigido. Com isto, questiona-se a função da educação e a contribuição que a mesma poderá oferecer tendo em vista a implementação de um modelo produtivo de base flexível que possa romper com a cultura de produção rígida instituída pelo paradigma fordista. Analisando "a transformação político-econômica do capitalismo do final do século XX", Harvey elenca uma série de considerações no Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 41 intuito de mostrar que a rigidez no controle produtivo constitui-se herança maléfica, fruto do fordismo, que tem impedido a plena realização do capitalismo e, enquanto tal, precisa ser substituída por uma proposta de aceleração diversificada do setor produtivo. Desta maneira, emerge a proposta de acumulação flexível, não apenas como resposta ao processo rígido de trabalho, mas também como uma iniciativa que busca minimizar o poder reivindicatório dos movimentos sindicais que se consolidaram durante o modelo anterior. Esta nova proposta, conforme entende esse autor, "é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo". Ele ressalta ainda que: "A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego 'estrutural', rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos de salários reais e o retrocesso de poder sindical - uma das colunas políticas do modelo fordista" (Ibid, p. 140). A defesa desse padrão produtivo, portanto, coincide com a nova fase vivida pelo capitalismo que procura na flexibilidade do mercado as possibilidades de contornar suas crises. Dentro do cenário construí¬do a partir da acumulação flexível, é preciso ressaltar ainda a idéia se¬gundo a qual Harvey considera que: O mais interessante na atual situação é a maneira como o capitalismo está se tornando cada vez mais organizado através da dispersão. da mobilidade geográfica e das respostas flexíveis nos mercados de trabalho, nos processos de trabalho e nos mercados de consumo, tudo isso acompanhado por pesadas doses de inovação tecnológica, de produto institucional (Ibid, p. 150-1). As estratégias inovadoras apresentadas na atual dinâmica de que se reveste o sistema capitalista precisam de solo fértil para tomarem-se viçosas, e os países localizados nos níveis periféricos do mercado mundial - como o caso da América Latina, em particular - passam a ser Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 42 percebidos como alvos privilegiados das políticas econômicas e sociais que lhes são endereçadas. No caso específico da realidade brasileira, o estabelecimento do golpe militar, a partir de 1964, representou uma resposta aos percalços causados pela política populista, a qual pretendia superar os conflitos vividos em seu interior através do incremento da produção sob base industrial nacionalista. O regime autoritário procurou estabelecer a internacionalização da economia brasileira e se empenhou para impor a rigidez no que se refere às relações políticas internas, mas flexibilizou as regras econômicas a fim de permitir o ingresso de capital externo como critério indispensável para alcançar o estágio da modernização produtiva. É nessa medida que o modelo de acumulação flexível, ao oferecer capital financeiro, tecnológico e cultural como eixo do desenvolvimento, interpõe-se como princípio estratégico norteador do processo de trabalho de novo tipo, fixado a partir de tecnologias refinadas e poupadoras de mão-de-obra. Este processo impõe ao trabalhador uma formação fundamentada em conteúdos gerais que permitam seu treinamento para o exercício de funções polivalentes. Daí, porque, o sistema educacional é acionado para responder a tais solicitações emanadas do setor empresarial. Assim, a reestruturação do processo produtivo proposta pela acumulação flexível precisa ser compreendida como uma das metamorfoses que o mundo do trabalho enfrenta no intuito de viabilizar a permanência e recomposição do capitalismo, enquanto modelo perfeito de regulação econômica e social. Não significa, portanto, a transformação qualitativa de seus fundamentos. Como se pode perceber, o sistema capitalista revela-se profundamente dinâmico e em sintonia com as condições históricas que plasmam a existência humana. Este ponto se revela ainda mais intrigante, especialmente quando Harvey destaca algumas características essenciais que permeiam o modo capitalista de produção e ajudam a conferir-lhe hegemonia, quais sejam: a) O capitalismo é orientado para o crescimento, pois só através deste os lucros podem ser garantidos e a acumulação do capital. sustentada; b) o crescimento sempre se baseia na diferença Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 43 entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria; c) o capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico e isso ajuda na modificação da dinâmica da luta de classes (Ibid, p. 166-9). Os elementos até aqui apresentados revelam que a cultura capitalista prioriza o conhecimento e o saber, sobretudo o tecnológico, como matéria emblemática a partir da qual se edifica sua racionalidade produtiva. Sua máxima consiste no fato de que "todo saber deve estar revestido de utilidades práticas e instrumentais". Sendo assim, a política de formação dos recursos humanos jamais é postergada, pois o êxito nos objetivos de acumulação dependem da qualificação/ requalificação dos indivíduos que ocuparão os postos de trabalho. Neste sentido, aumentam as exigências por maior escolarização e o Estado é chamado a repensar sua política educacional, a fim de poder ajustá-la às prerrogativas postas atualmente em curso sob a inspiração do modelo de acumulação flexível. Deste modo, face às dificuldades encontradas no processo de trabalho, o discurso da qualificação do trabalhador assume proporções significativas e a responsabilidade pela inoperância do sistema produtivo é concebida como conseqüência de três fatores básicos: a) ineficiência técnica dos meios de produção; b) rigidez na formação do sujeito trabalhador; c) inadequação do sistema educacional ao processo de expansão econômica. Estes fatores em conjunto são assumidos pelo novo modelo produtivo como elementos centrais do processo de desenvolvimento socioeconômico, daí porque precisam estar direcionados para um mesmo fim. Neste contexto, deve-se desencadear o rompimento com o processo produtivo e com as estruturas educacionais tradicionais que sustentam a sociedade, objetivando tomá-la dinâmica e competitiva no mercado internacional. 3 - A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHADOR À LUZ DO MODELO DE ACUMULAÇÃO FLEXÍNEL As constantes crises vivenciadas hoje no processo de trabalho impõem para o capitalismo a necessidade de repensar os canais legitimadores que auxiliam na reprodução de seu ideário - e a escola é Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 44 um deles. As sociedades que pretendem firmar-se como espaços economicamente equilibrados são conclamadas a formular estratégias políticas que lhes permitam acompanhar o processo de globalização econômica. Este fato, contudo, exige que o Estado redefina suas metas assim como a destinação social de seu sistema educacional. O modelo de acumulação flexível procura romper as fronteiras econômicas e culturais que ainda vicejam nos países subdesenvolvidos. Para tanto, institui as categorias de qualidade, produtividade, competitividade e equidade social como diretrizes norteadoras de sua estratégia de ação. É com base em tais elementos que a formação profissional precisa estar sedimentada a fim de poder integrar os trabalhadores - aqueles que, devido ao aperfeiçoamento tecnológico, conseguirem permanecer em seus postos de serviço - ao setor produtivo. No que concerne ao uso da mão-de-obra, a idéia de flexibilidade assume uma dupla conotação: a primeira se refere à flexibilidade quantitativa, destinada ao enxugamento do quadro de pessoal da empresa; a outra vertente diz respeito à flexibilidade funcional, voltada para os indivíduos que permanecem empregados e que implica na polivalência de funções dos trabalhadores que melhor se inseriram nas novas formas de organizar a produção (Baltar, Proni, 1996, p. 111-2). Portanto, o surgimento de novas tecnologias e seu uso como potencializadoras de acúmulo de capitais aos países que as dominam afetam profundamente as relações de trabalho, especialmente na realidade de países em fase de desenvolvimento. No entendimento dos autores citados, este fenômeno tem ligação direta com a questão da relação entre ocupação e escolaridade, chegando às seguintes conclusões: ... qualquer que seja o grau de instrução, a chance de ser desligado do emprego diminui conforme aumenta o tempo de serviço na firma. Mas, a redução é tanto maior quanto menor o grau de instrução. Ou seja, o empregado com baixo nível de escolaridade tem alta probabilidade de perder o emprego e acumular tempo de serviço na firma. Contudo, os que conseguem preservar o vínculo empregatício têm, progressivamente, maiores chances de permanecer no, mesmo estabelecimento, e essa probabilidade tende a se Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 45 igualar à dos empregados com maiores níveis de instrução (Ibid, p. 125). No caso específico do Brasil, a idéia de flexibilização vem sendo incorporada de modo contraditório. Os trabalhadores com baixa escolaridade são submetidos a freqüentes mobilidades no âmbito da ocupação formal e percebem uma base salarial relativamente pequena, dado o nível de instrução em que se encontram. Isto indica que o processo de inovação tecnológica vem acompanhado de uma forte dose de exclusão social daqueles indivíduos limitados em seu saber, e cujas oportunidades educacionais lhes têm sido histórica e sistematicamente negadas ou concedidas em doses homeopáticas. Parece estar claro que os objetivos a que se propõe o modelo de produção flexível consistem em alcançar "maior e melhor produção com um quadro funcional menor e melhor preparado". Isto quer dizer que o nível de exigência qualificacional é aumentado em sentido vertical, provocando redefinições nas estruturas das relações de trabalho, as quais passam a requerer novas habilidades do trabalhador quanto ao desempenho de suas funções. Diante destas exigências, o perfil do trabalhador ganha uma nova dimensão que não se limita ao preparo específico para a execução de tarefas previamente estabelecidas. Para os "homens de negócio" que tentam contemporizar suas atividades empresariais com os desafios da economia globalizada, toma-se necessário "um trabalhador com uma nova qualificação que, face à reestruturação econômica sob nova base técnica, lhes possibilite efetivar a reconversão tecnológica que os torne competitivos no embate da concorrência intercapitalista" (Frigotto, 1995, p. 38). A concretização desse projeto precisa estar em sintonia com a estrutura atual do processo produtivo marcado pela idéia de flexibilização, em que a qualificação do trabalhador assume outra dimensão:"Não basta, pois, que o trabalhador de 'novo tipo' seja capaz de identificar e de resolver os problemas e os imprevistos, mas de resolvê-los em equipe." Portanto, os critérios para obtenção de produtividade e competitividade demandam a construção de uma nova imagem ideal do trabalhador e as características básicas que passam a defini-lo são: "boa formação geral, atento, leal, responsável, com capacidade de perceber um fenômeno em processo, não dominando, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 46 porém, os fundamentos científicos-intelectuais subjacentes às diferentes técnicas produtivas modernas" (Pinto apud Frigotto, 1995, p. 53). Como se pode notar, o perfil do novo operário padrão, delineado com base nos princípios requeridos pelo atual modelo de produção, tenta conferir ao trabalhador auto-satisfação, abnegação e contentamento para desempenhar bem suas funções no intuito de elevar os índices de produtividade empresarial. Neste ritmo que passa a marcar a disciplina do trabalho, "flexibilidade, versatilidade. liderança, princípios de moral, orientação global, hora de decisão, comunicação, habilidade de discernir, equilíbrio físico-emocional..." (Frigotto, 1995, p. 54) são componentes fundamentais que necessitam ser incorporados na formação desses indivíduos. Isto cria sérias implicações à estrutura organizacional que constitui o funcionamento da escola brasileira. A ausência de sintonia entre os objetivos educacionais e as metas empresariais tem conduzido os representantes deste último setor a interferir no sistema escolar brasileiro de modo a adequá-lo à esfera produtiva. Na compreensão dos grupos empresariais à frente desse movimento em favor do atrelamento da educação à lógica do mercado, os distúrbios, aos quais se encontra submetida a indústria brasileira, somente serão superados a partir de uma correspondência entre o mundo da escola e a realidade da empresa. No entanto, a satisfação destes interesses implica a realização de reformas educacionais que possam consolidar essas aproximações. 4 - A REFORMA CURRICULAR ATUALMENTE EM MARCHA: O Paradoxo da Profissionalização no Ensino Médio A década de 70 marcou um período de grandes debates que puseram em dúvida a funcionalidade do sistema de ensino brasileiro em vigor naquele momento. As modificações tangenciadas para o campo educacional tentavam imputar-lhe um rumo diferenciado respaldado na idéia de profissionalização compulsória, de modo que esta fosse capaz de incrementar o potencial de produtividade do setor industrial como um dos requisitos fundamentais para o ingresso do país numa economia internacionalizada. Desde então, a questão do ensino médio vem sendo considerada como um ponto bastante delicado, cuja finalidade está marcada por duas posições emblemáticas que tentam dar-lhe configuração específica, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 47 quais sejam: a primeira delas considera-o como uma fase intermediária de contato e assimilação do patrimônio cultural, cujo objetivo consiste em encaminhar os indivíduos para o ingresso nas universidades - nesta fase a educação desempenha uma função humanística voltada para a reprodução da sociedade dominante. Uma outra ver tente pensa esse nível de ensino como um momento de preparação dos cidadãos para que os mesmos sejam direcionados ao mercado de trabalho. Segundo os representantes deste último grupo, a educação passa a ser concebida como potencializadora de desenvolvimento econômico e social, por isto suas funções precisam estar plenamente adequadas às questões técnicas e operacionais que permitam uma qualificação eficiente dos sujeitos que dela participam. Muito embora os governos populistas, que se sucederam no Brasil durante os anos 30 a 64, tivessem desenvolvido tentativas no sentido de vincular o sistema educacional aos objetivos empresariais, a atribuição desse segundo olhar sobre educação somente atingiu legi¬timidade a partir do momento em que o golpe militar de 1964 permitiu maior interferência e representatividade política aos setores empresariais que vêem, na educação, o caminho para o progresso econômico. Ao refletir sobre o projeto social montado pelos governos militares, Maria Inêz de Souza considera que eles pretenderam construílo em sintonia com os interesses econômicos internacionais. Assim, no entendimento do novo grupo político articulado no poder, um enfoque especial é dado à educação pois as necessidades educacionais são olhadas em função apenas da funcionalidade econômica, limitando o seu atendimento às características do esquema produtivo dá país... O enfoque econômico fez com que a educação fosse considerada, pois, como indústria de prestação de serviços (Souza, 1981, p. 114-5). Dentro dessa nova configuração, a educação não era considerada única e exclusivamente como um elemento fundamental na difusão do arcabouço cultural da humanidade. E ela, deveria igualmente cumprir uma função de integração e segurança nacional, haja vista que a Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 48 absorção da demanda educacional no mercado de trabalho começou a ser um fator preocupante. Assim, no que se refere à interferência empresarial na estrutura e funcionamento do ensino, a autora ressalta que nessa época: A maior critica que se fez foi em relação ao ensino médio, considerado na época como um dos fatores de imobilidade social e rigidez dos estratos da sociedade nacional, um entrave à estratégia global de desenvolvimento por não atender às necessidades reais do País apenas satisfazia a uma clientela privilegiada socialmente e não ao mercado econômico (Ibid, p. 117). As mudanças no eixo condutor político em nível mundial e local, portanto, abriram espaços para que fosse repensada a política educacional no país sob os auspícios da política econômica. A materialização de tais metas foi buscada na adoção da ciência e tecnologia como fontes essenciais, em cujos parâmetros se alicerçaria o desenvolvimento nacional. Este fato acabou por impulsionar a necessidade de se operar modificações nos componentes curriculares, a fim de tomar mais dinâmico o processo educacional no intuito de assegurar a viabilidade do mercado. As reformas universitárias (Lei no 5.540/68) e a do ensino de 1° e 2° graus (Lei n° 5.692/71) constituíram-se exímios exemplos da preocupação que o Estado passou a ter em relação à concepção de um currículo voltado para a satisfação das demandas requeridas pelo processo de expansão capitalista. A introdução da ciência e tecnologia, enquanto mediadoras das relações econômicas e culturais, criou limites à predominância de tendência humanista como paradigma norteador do projeto educacional instituído na fase pós-64. Este ponto revela que o currículo é um produto histórico marcado por relações de gênero e poder, porque ele incorpora as manifestações feitas pela sociedade e as traduz sob a forma de disciplinas, atitudes morais, comportamento social, valores ideológicos, o tipo de saber que precisa ser absorvido, etc. Ele é dotado de componentes ideológicos que podem permitir a manutenção da hegemonia de determinado grupo social, mas está embebido de componentes transformadores posto que é Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 49 síntese de múltiplas determinações marcadas por antagonismos. Ao pretender identificar qual o tipo de relação que se estabelece entre currículo e poder, Michael Apple é enfático ao mostrar que: ... o currículo não existe como um fato isolado. Ao invés, ele adquire formas sociais particulares que corporificam certos interesses que são eles próprios os resultados de lutas contínuas dentro e entre os grupos dominantes e subordinados. Ele não é resultado de algum processo abstrato, mas é o resultado dos conflitos, acordos e alianças de movimentos e grupos sociais determinados (Apple, 1989, p. 47). Portanto, O currículo consiste num produto cultural que visa difundir valores e práticas através das quais se possa implementar certo ideal de sociedade. Ele está entrecortado por interesses conflitantes e isto lhe confere um caráter discriminatório, à medida que se entretece com a luta de classes e as questões de gênero. Ele funciona como uma espécie de contrato social no qual os indivíduos recebem as credenciais que lhes possibilitam integrar o conjunto da sociedade. Todavia, entre a formalidade preestabelecida em seu interior e sua funcionalidade existe um grande hiato, pois o momento em que esta última se realiza está marcado por relações tácitas imprevistas quanto à elaboração do currículo. A política educacional veiculada atualmente traz à tona mais uma vez a necessidade de se repensar o ensino médio. Isto conduz a novas reflexões acerca do modo como se constituirá o currículo e a que interesses procurará ele atender. A funcionalidade e a vinculação desse nível de ensino ao mercado de trabalho são concebidas como maneiras possíveis de se superar as crises pelas quais passam os setores produtivos em escala mundial. Ao perpassar a estrutura e o funcionamento do sistema educacional brasileiro, a rigidez, a especialização e a fragmentação das atividades propugnadas pelo fordismo deixaram marcas indeléveis na formação daqueles sujeitos que foram submetidos a essa dinâmica. Quanto mais limitado em seu saber, melhor seria a capacidade do trabalhador para executar tarefas no interior de empresas, fábricas e instituições burocráticas. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 50 O debate atual, contudo, está marcado por uma preocupação encetada na direção da formação geral do indivíduo, de modo que possa adquirir habilidades básicas mais flexíveis e se tome treinável à ocupação de funções diferenciadas no sistema produtivo. Com isto, o ensino médio é convocado a reconceptualizar-se tendo em vista atender aos novos patamares qualificacionais suscitados pela globalização econômica. Segundo as recomendações feitas pelos participantes do Seminário sobre Educação Fundamental e Competitividade Empresarial, as atuais diretrizes educacionais defendem a necessidade de "considerar a educação não só sob o prisma da competitividade empresarial, mas principalmente como instrumento indispensável para a cidadania e o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas, com o propósito de constituir uma escola pública de qualidade" (Silva Filho, 1994, p. 90-1). É a partir da óptica empresarial que vêm se articulando as mudanças ensejadas para o campo educacional. A proposta de criação de novos parâmetros curriculares para nortear o processo educativo surge como expressão dessas demandas, as quais não se limitam a interesses locais, mas incorporam-se ao ajustamento global desencadeado pelo bloco daqueles países considerados desenvolvidos. Inserido nesse debate, e em consonância com a concepção de produção emergente, o ensino médio deverá responder satisfatoriamente aos atuais desafios da competitividade econômica. Mas para isto, necessita redimensionar seus objetivos, pois a Nação brasileira está em risco de exclusão econômica devido ao atraso cultural e à existência de um sistema escolar extemporâneo. 4.1 - Políticas Públicas para o Ensino Médio: as novas tendências em curso No debate promovido durante a realização da 19ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (1996), a palestra proferida por Acácia Zeneida Kuenzer pôs em evidência o que se pode chamar de "o estado da arte" em relação ao Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 51 quadro vivenciado na atualidade pelo "ensino médio no contexto das políticas públicas de educação no Brasil". Na introdução que faz nesse documento, ela diz que o ensino médio continua "sem identidade", e que sua história no Brasil "é a história do enfrentamento da tensão entre educação geral e educação especifica" (Kuenzer, 1996, p.I-2). Para compreender a nova definição que será atribuída ao ensino médio, Kuenzer procura extrair da proposta educacional defendida por Darcy Ribeiro e do Projeto de Lei 1603/96, proposto pela Secretaria de Educação Média e Tecnológica ligada ao MEC, os elementos fundamentais que balizam a sua estruturação. Ela nos informa que o PL 1603/96 nasceu de discussões do Ministério da Educação juntamente com o Ministério do Trabalho, e dispõe sobre educação profissional tendo em vista a criação de um Sistema Nacional de Educação Profissional. O PL se apresenta como uma resposta formal do Estado com o objetivo de possibilitar "a integração da economia brasileira à globalização e às decorrentes demandas de formação de um trabalhador de novo tipo" (Ibid). Por meio da Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional (SEFOR), o Ministério do Trabalho busca aplicar uma política que dê conta de ''promover a consolidação da estabilidade econômica do país e a construção do desenvolvimento sustentado, tendo por base a equidade social". No entanto, a realização desse projeto implica a superação de alguns desafios básicos do tipo: 1)integrar a política de educação profissional à política pública de emprego, trabalho e renda voltados para o desenvolvimento sustentado; 2) definir com precisão o foco de educação profissional, de modo a caracterizar-se como atividade com início, meio e fim, sobre a premissa da empregabilidade entendida não como simples capacidade de obter emprego, mas de manter-se em um mercado de trabalho em constante mutação (Ibid, p.5). No conjunto da nova política de formação profissional, o Ministério do Trabalho passa a ser Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 52 "responsável pela articulação da política de emprego, trabalho e educação profissional no país, a ser expressa em um programa integrado de qualificação e requalificação, com objetivos bem definidos, tendo como clientela privilegiada os desempregados e os excluídos" (Ibid., p.6). A incorporação dessa demanda requer que se repense o significado e função do ensino médio o qual, ainda, "constitui-se uma oferta seletiva com finalidades propedêuticas". Tendo em vista o registro desses pontos críticos, o MEC se oferece para dirigir o "processo de redefinição do ensino médio, buscando definir as modalidades de educação acadêmica e profissional, através de um modelo flexível, rever os currículos, redefinindo as funções da União, do Estado, dos Municípios e do Setor Produtivo". Para resolver o problema político-pedagógico das Escolas Técnicas e Centros Federais de Educação Tecnológica, foram lançadas duas propostas direcionadas para: a) a retirada da formação acadêmica da educação tecnológica, criando duas redes no âmbito do ensino médio: uma de educação acadêmica e outra de escolas e instituições voltadas para a educação tecnológica em caráter complementar, privilegiando a criação de centros de educação profissional para cursos concomitantes ou posteriores, criando-se os pós secundários; b) a superação da distinção entre educação geral e especial, através de uma base comum nacional modulada, porém dirigida a áreas de conhecimento complementadas por educação técnica estruturada ou modular; a estruturada obedece à seriação, de modo a assegurar as bases científicas, instrumentais e tecnológicas; a modular seria constituída por uma oferta de módulos (conjunto de disciplinas) que dariam formação profissional em partes orgânicas que, no todo, formariam o técnico (Ibid, p. 9). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 53 No que se refere à reestruturação curricular, a gestão da rede federal de educação tecnológica propõe-se operacionalizar a "separação da parte profissional da parte acadêmica". Segundo o entendimento estabelecido por Kuenzer, as redefinições em curso se coadunam com a "idéia de equidade, como demanda de justiça social com eficiência econômica". Fato este que, na opinião da autora, reduz o papel do Estado a assegurar condições, através de financiamento, apenas para os setores geralmente excluídos, como as minorias étnicas, pobres e mulheres, com efeito corretivo para tornar pobres e ricos igualmente competitivos, desde que assegurada a sua competência, uma vez que o tratamento universal significa desperdício de recursos, pois nem todos têm a competência acadêmica necessária para a continuidade dos estudos (Ibid, p.15). Na configuração assumida pela proposta de formação profissional idealizada pelo Ministério da Educação junto com o Ministério do Trabalho, deve existir uma política de "estímulo à participação dos empresários na gestão da escola como forma de adequar os currículos". Ao lado dessas medidas, há que se acrescentar o "fomento da oferta privada, para complementar a ação do Estado e como meio de controlar os custos do aumento das matrículas nos estabelecimentos púbicos" (Ibid, p.18). As análises feitas por Acácia Kuenzer revelam que o MEC, com formulação das atuais políticas públicas voltadas para o ensino médio brasileiro, adota uma postura de contenção da demanda com relação à continuidade dos estudos a partir de um conceito elitista de competência, propondo a educação profissional como forma de assistencialismo e compensação para os pobres e desvalidos da sorte, que, incapazes de estudar, têm que aprender a trabalhar (Ibid, p. 20-1). Tendo em vista atingir esses propósitos é que o Projeto de Lei 1603/96 define que a educação profissional deve estar Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 54 "voltada prioritariamente para aqueles trabalhadores adultos desescolarizados, desempregados ou excluídos do mercado de trabalho". Ela passa a ser "elemento essencial para o próprio resgate da cidadania no processo de democratização da sociedade", por meio do oferecimento de uma modalidade de educação ao trabalhador "barata, aligeirada e ineficaz" (Ibid, p. 25). Face à constatação da dependência do Brasil em relação aos atuais princípios neoliberais postos em ação pelo Banco Mundial, Kuenzer considera que "o país não tem um Plano Nacional com políticas sociais e produtivas que defina como e sob que condições participa desta etapa de desenvolvimento que, como as anteriores, não é necessariamente irreversível" (Ibid, p. 26). Segundo estudo realizado pela pesquisadora, as medidas indicadas pelo PL 1603/96 provocarão a "separação das vertentes técnica e acadêmica", e recolocarão a "dualidade estrutural, criando inclusive duas redes, reguladas por legislações equivalentes: a LDB e a da Educação Profissional” (Ibid, p.26). Os elementos absorvidos dessas reflexões mostram as diferentes mediações que perpassam a definição de um "parâmetro curricular" e indicam que a produção deste é fruto das contradições e ambigüidades conformadoras do sistema social. Neste sentido, o significado que vem sendo pensado para o ensino médio revela-se uma opção retrógrada e caduca, pois ao primar pela segmentação entre formação geral e específica através de "sistemas paralelos de educação", coloca-se na contramão da história, oferecendo-se mesmo como resistência ao novo modelo de produção flexível que ao mesmo tempo procura justificar. Assim, o dilema sobre a identidade ideal da qual deverá se revestir o ensino médio permanece como uma questão intrigante e desafiadora. O debate não se exaure com as atuais medidas que intentam tomá-lo um meio eficaz na contenção da demanda escolarizada dirigida para o acesso aos cursos de nível superior e na formação técnica profissional dos desvalidos e desprovidos de sorte, excluídos do sistema escolar formal. Isto para poder incorporar esta demanda como força produtiva no mercado de trabalho competitivo. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 55 A oferta de uma organização escolar desse tipo pode ser pensada, então, sob o prisma da regulação social do contingente de indivíduos em idade escolar que precisa ser absorvido na estrutura educacional, sob pena de aumentar o fosso entre formação profissional e as possibilidades de ingresso no mercado de trabalho. 4.2 - O Ensino Médio Face à Retórica da Qualidade A questão da funcionalidade e adequação do sistema educacional ao jogo proposto pela lógica produtiva, que tenta redefinir um novo estágio à acumulação de capital, vem assumindo espaço privilegiado nos foros de debates que apontam para a necessidade de se constituírem políticas públicas capazes de atender aos atuais reclames emanados da iniciativa privada. Dentro destas preocupações, o sentido da educação passa a ser questionado devido ao distanciamento em que esta se encontra frente ao processo de produção. O aceleramento do processo tecnológico tem exigido, por parte dos países subdesenvolvidos, o delineamento de mudanças significativas não apenas em relação às formas de organização produtiva requeridas para os setores empresariais de modo a manter-se competindo no mercado, mas igualmente há um aumento na demanda de qualificação do sujeito trabalhador. Fato este que remete à compreensão da estrutura educacional e do papel que a mesma deverá assumir diante da atual tendência. Um dos pontos vitais em tomo do qual vem se configurando o debate sobre a relação entre educação e trabalho cruza-se com o discurso difundido pela óptica da qualidade total. Este discurso visa a atingir maior eficiência na produção, mediante investimento na formação do trabalhador de novo tipo. O aumento nos critérios qualificacionais exigidos para o trabalhador indica a necessidade de a escola brasileira passar a marcar um encontro com sua própria época. Em conformidade com os fundamentos do atual modelo produtivo, essa contemporaneidade, todavia, deve se fazer através da lógica implícita nas diretrizes demarcadas pela qualidade total, transposta para o campo educacional a partir de dois vetores complementares: Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 56 o deslocamento do problema da democratização ao da qualidade e a transferência dos conteúdos que caracterizam a discussão sobre a qualidade no campo produtivo-empresarial para o campo das políticas educacionais e para a análise dos processos pedagógicos (Gentili, 1995, p. 116). A assimilação deste discurso pelo sistema educacional caracteriza-se como a única saída possível para os graves problemas que assolam a organização escolar brasileira. Dentro de tal perspectiva, as diferentes instituições responsáveis pela educação devem investir-se do espírito da competitividade empresarial pela qual, apenas, os melhores produtos passam a ser imediatamente absorvidos na estrutura ocupacional devido à qualidade de seus serviços e à disponibilidade de recursos necessários para adquiri-los. Os Parâmetros Curriculares atualmente delineados para o sistema educacional brasileiro guardam estreitas relações com o processo de reconversão produtiva mundial. As novas políticas públicas hoje desenvolvidas pelo Ministério da Educação e Cultura já evidenciam essa tendência, à medida que o referido Órgão procura definir um programa de educação tecnológica voltado para a formação e especialização de técnicos de nível médio. Estes devem ter um mínimo de educação geral e o máximo de domínio das técnicas específicas necessárias à eficiência na produção. Dada a incongruência para a implementação de um modelo de desenvolvimento flexível, o ensino médio emerge como uma das modalidades educativas responsáveis pelo grandioso "mal-estar da modernidade". É imperioso, pois, adaptá-lo ao sistema produtivo atribuindo outra concepção à sua estrutura e funcionalidade. O ensino médio ascende novamente como o pivô dos debates acerca do eixo condutor a ser dado ao projeto educacional do país. É para ele também que as iniciativas empresariais têm sido direcionadas com o objetivo de redimir o capitalismo dos males provocados por um sistema escolar ineficaz e de qualidade duvidosa. Assim, à luz das atuais mudanças requeridas pelo modelo de acumulação produtiva, vincular a educação ao mercado de trabalho revela-se como a condição fundamental para evitar que a nação brasileira seja excluída do processo de globalização econômica em curso. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Mudanças na produção, qualificação para... 57 Não obstante as críticas ensaiadas pelos empresários em relação à funcionalidade do sistema escolar brasileiro, é preciso dar conta de que as políticas públicas voltadas para o atendimento educacional, no nível de ensino médio, ainda continuam a representar sérios desafios que não se restringem apenas à questão de sua identidade ou vinculação ao mercado de trabalho, mas refere-se igualmente à qualidade de sua oferta por parte do poder público. Portanto, segundo a óptica da globalização signatária da qualidade total, a inviabilidade do sistema educacional brasileiro e sua extemporaneidade, face aos atuais desafios do momento, podem tomar o Brasil "uma nação em risco" de ser suplantada pelo progresso. Neste sentido, as reformas curriculares passam a ganhar maior ênfase, pois é a partir das mudanças no interior do currículo nacional que se espera forjar um sistema escolar de qualidade e eficiente, cujos princípios não devem destoar da lógica empresarial. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Paulo Corrêa 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, Michael W. Currículo e poder. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 46-47, jul/dez, 1989. BALTAR, Paulo E. de A. & PRONI, Marcelo W. Sobre o regime do trabalho no Brasil: rotatividade da mão-de-obra, emprego formal e estrutura social. In: Crise e trabalho no Brasil. São Paulo: Scritta, 1996, p. 109-50. BRUNO, Lúcia (org.). Educação e trabalho no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Atlas, 1996. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In: Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995, p. 31-92. GENTILI, Pablo A. A. 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Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.37-58, jul./dez., 1998 Avaliação da Aprendizagem Escolar: uma proposta de ultrapassagem do autoritarismo na sala de aula Eunice Léa de Moraes* Maria Célia Conceição** Maria de Nazaré Viana*** mas neste caso como em qualquer outro o que é errado também é acreditar que, pelo fato de não podermos fazer tudo, não podemos nem somos obrigados afazer. Anthony Flew Pensar Direito (Ou, será que eu quero sinceramente estar certo?) 1 – INTRODUÇÃO A escolha do tema "Avaliação da Aprendizagem Escolar: uma proposta de ultrapassagem do autoritarismo na sala de aula" deve-se à constatação de que a avaliação da aprendizagem é, sem dúvida, uma das maiores dificuldades com que se depara o professor, no processo instrucional. A atividade docente, muitas vezes, fica sem respostas claras a perguntas como "O que avaliar?", "Para que avaliar?", "Como avaliar?" e "Quando avaliar?". A avaliação como uma atividade histórica própria do homem, na qual ele tem que optar ou escolher para uma tomada de decisão, remete os educadores a uma preocupação: a avaliação escolar. * Socióloga. Professora do Centro de Educação da UFPA /Pesquisadora Associada do NAEA/UFPA ** Socióloga. Técnica da SEDUC *** Socióloga. Técnica da SECULT Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 60 Aliado a estas questões, está o fato de que o conceito avaliação ainda é muito controvertido entre os educadores e se constitui uma das maiores dificuldades encontradas por professores e alunos. Entendemos que o "modelo social", no qual estamos inseridos, tem grande influência sobre as concepções de avaliação. Geralmente, tudo isto é referenciado por uma visão muito tradicional de avaliação, em que a aprendizagem é quantificada e mensurada através de instrumentos convencionais: provas, testes e outros do gênero. Neste sentido, A avaliação sempre pressupõe uma relação de poder (admissão. sanção seleção, exclusão, etc) cujas regras ou critérios são, em geral, utilizados como elementos de legitimidade das atividades ou decisões avaliativas. A objetividade de uma avaliação é relacionada à aplicação racional de um critério que, sempre, possui algum caráter arbitrário. A negação desses fatores e a objetividade absoluta das avaliações pertencem ao antigo ideário positivista (Thiollent, 1984, p. 49). Para se imprimir uma postura crítica sobre avaliação, é necessário que sejam explicitados, qualitativamente, os critérios utilizados e elucidadas as suas implicações nas relações de poder no seio das instituições, sem perder de vista que essas relações, no nível micro da sala de aula, professor/aluno, dentro dos limites da escola, como se pretende estudá-las, não se dão de modo isolado e simples, mas refletem relações complexas da sociedade, originadas da própria estrutura de classes numa formação social onde predominam as relações de dominação/subordinação e o papel desempenhado pelo Estado não pode ser simplificado ou omitido. Outros aspectos da avaliação que despertaram interesse para este estudo foram os seus fatores de seletividade e discriminação, características que permeiam o sistema educacional. A política educacional, no conjunto das políticas governamentais, é discriminada inclusive na pequena parcela orçamentária que a União destina à educação. Há, ainda, que considerar o desrespeito à Constituição no que se refere ao ensino gratuito para todos e ao direito do homem à Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 61 educação. Na prática, um grande contingente da população escolarizável não tem acesso à escola ou, se tem, é expulsa nas primeiras séries do 1º grau. Zaia Brandão, ao analisar evasão e repetência no Brasil, no período de 1974/78, diz que no Brasil, para o período considerado, de cada 1000 crianças que iniciam a primeira série, apenas 438 chegam à segunda, 352 à terceira, 297 à quarta e apenas 294 à quinta. Poder-se ia estimar que, dessas 1.000 crianças iniciais, apenas 180 chegariam a concluir o 1º grau (Brandão, 1983, p. 22). Nos limites do nosso estudo, examinaremos uma proposta de avaliação entendida como um processo dinâmico e representativo, com critérios estabelecidos a partir do consenso entre professor/aluno e na medida em que a avaliação escolar tem uma função dialética, crítica e conscientizadora, na qual a experiência vivida por todos os agentes envolvidos no sistema de ensino deve ser considerada. Para que a avaliação escolar "... assuma o seu verdadeiro papel de instrumento dialético de diagnóstico para o crescimento, ela terá que se situar e estar a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com a transformação social e não com a sua conversão" (Luckesi, 1984, p. 14-15). Neste sentido, pretende-se suscitar, em nível micro, uma reflexão/ação sobre a prática educacional da avaliação na aprendizagem. 2 - AVALIAÇÃO: Um Pouco da História A avaliação, enquanto atividade histórica do homem, tem uma longa história. Em educação, a sua história é mais recente. A avaliação dos resultados da escolaridade, do currículo e do planejamento desenvolvidos pela Escola surgiu como idéia nos Estados Unidos, na década de 30, e parece ter sido uma forma de reação à atribuição aleatória de notas como medida do trabalho escolar. Esta avaliação parte de uma filosofia de educação que focaliza o aluno não apenas como um conjunto de habilidades e conhecimentos, ou seja, o aluno não é apenas um conjunto de informações. A partir daí, os objetivos educacionais foram ampliados e os rígidos ''testes objetivos" foram perdendo sua força e razão de ser. A estimativa do trabalho pelos educadores foi acrescida de preocupações com outros atributos, como: "atitudes, interesses, ideai8, formas de pensar e de trabalhar, a Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 62 adaptação pessoal e social tanto dos professores como dos alunos" (Martins, 1980, p. 85). Posteriormente, vários projetos foram desenvolvidos dentro do mesmo enfoque, sendo que o objetivo não era apenas medir resultados, mas obter melhores informações sobre outros aspectos que interferiam, prejudicavam ou melhoravam o rendimento escolar. Dentre os maiores projetos sobre o assunto, Martins (1980) faz referência ao Projeto "O Estudo de Oito Anos", patrocinado pela Associação de Educação Progressiva. O autor considera que esse projeto introduziu novas idéias instrumentais e técnicas de avaliação. Após a II Guerra Mundial, os estudos sobre avaliação educacional foram dirigidos para pesquisa "cuja orientação era permitir maior envolvimento do pessoal que trabalha nas escolas, com a finalidade de melhorar, também, dessa forma, o processo de avaliação educacional" (Ibidem). No Brasil, a partir das Reformas Universitárias e das de 1º e 2º graus, na década de 70, a avaliação vem sendo alvo de discussões, desde que a qualidade do ensino passou a ser questionada. A grande maioria das abordagens feitas é baseada em enfoques teóricos dentro de um pedagogismo autoritário, sem haver um questionamento profundo sobre a finalidade dos mecanismos empregados e os resultados dessas avaliações. 3 - OS NÍVEIS DA AVALIAÇÃO Segundo Bemadete Gatti (1977, p. 41), "dentro de contexto educacional, existem vários níveis de avaliação educacional: avaliação em nível de sistema, em nível de programas educacionais, em nível de pesquisa educacional e em nível de acompanhamento do professor em sala de aula". Como bem expressa Thiollent (1984, p. 48), "no contexto educacional, a avaliação é uma dimensão permanentemente presente, tanto em nível individual (alunos, professores) quanto em Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 63 nível coletivo (escolas, sistemas pedagógicos, etc). A escolha e a justificativa dos critérios de avaliação são geralmente relacionadas a objetivos práticos: seleção, reformas, etc". O problema da avaliação pauta-se no pressuposto de que ela se dá numa relação de poder (admissão, sanção, seleção, etc). E um dos níveis em que essa relação é mais conflitante é o acompanhamento do professor em sala de aula, onde a relação se manifesta de forma autoritária e subalterna, consecutivamente, sem reciprocidade dialética. Fundamentalmente, por trás da avaliação autoritária estão as relações autoritárias: professor-aluno, professor-povo, aluno-povo. Segundo Nidelcoff, professor-povo se caracteriza por ter uma prática avaliativa em que os fatores sociais do rendimento escolar são levados em conta; avalia como um educador, não como um transmissor de informação; interessa-se pelos alunos enquanto pessoas e não enquanto "intelectos", valorizando as suas atitudes, dedicação e res¬ponsabilidade. Para a autora, a memorização não é o mais importante na aferição, mas a capacidade crítica e explicativa do aluno; o estímulo à superação das dificuldades e ao desenvolvimento do espírito de autocrítica substituem os instrumentos de avaliação que causam temor. Neste sentido, o aluno e o grupo são conduzidos a uma perspectiva de auto-avaliação. Paulo Freire quanto a esta posição afirma que, "a educação problematizadora se faz, assim, num esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham". Dá-se num exercício de criticidade, pois a auto crítica está associada à auto-avaliação; a como pensar sobre si mesmo, numa relação que envolve os outros e o mundo. Duas realidades se colocam em tensão: manter um alto nível de rendimento, ou baixar o nível de exigências a um rendimento médio do grupo. Aí, os professores e alunos se vêem diante do problema da promoção de série. Nesta perspectiva, acredita-se que o mais importante, em nível do 1º grau, é reter, o mais possível, a criança na escola para que ela aprenda o máximo que puder e até onde puder, nesses anos, respeitando o seu ritmo e as suas possibilidades. Segundo Althusser (1977), Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 64 "é através da aprendizagem de alguns saberes práticos (savoir-faire), envolvidos na inculcação massiva da ideologia da c/asse dominante, que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, isto é, relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados". A relação pedagógica autoritária que acontece em sala de aula entre professor e aluno não é uma relação especificamente escolástica. Essa relação se passa em toda a sociedade de modo geral e nos indivíduos quando se relacionam com outros indivíduos, sejam eles de classe dominada ou dominante, desde que haja uma relação de hegemonia. Verifica-se que a avaliação, que objetiva acompanhar o processo de aprendizagem escolar durante esse processo, serve tanto para planejamento e re-planejamento da atividade de professores e alunos quanto para aferição de graus. Atendendo a esta finalidade, perpassam variáveis que interferem no ponto fundamental da questão avaliativa: a tomada de decisão. É no âmbito desta tomada de decisão que, geralmente, a autoridade do professor se reveste de autoritarismo, numa explícita demonstração de poder, impedindo que a relação se dê numa perspectiva dialógica e recíproca. A prática da avaliação escolar, dentro do modelo liberal conservador, terá que, obrigatoriamente, ser autoritária, pois que esse caráter pertence à essência dessa perspectiva de sociedade, que exige controle e enquadramento dos indivíduos nos parâmetros previamente estabelecidos de equilíbrio social, seja pela utilização de coações explícitas, seja pelos meios sub-reptícios das diversas modalidades de propaganda ideológica (Luckesi, 1984, p. 5). A avaliação educacional, dentro desse enfoque, é um instrumento disciplinador do comportamento cognitivo, afetivo e social do educando na escola. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 65 Por outro lado, a educação não responde aos anseios da população numa sociedade em que a desigualdade parte da base, ou seja, das relações de produção do modelo capitalista ao qual está subordinada. A educação, a escola e os processos educacionais observados na sociedade, longe de se constituírem fatos universais, são uma criação histórica da sociedade burguesa e cumprem funções determinadas por sua criação. Está presente, nesse caso, a questão do significado político da problemática educacional, ou seja, é radicalmente prioritário, em relação às questões didático-pedagógicas, discutir o significado da educação no contexto da vida social concreta, uma vez que a educação deve ser o agente da vida social e política da nação. Assim, todo projeto educacional é, necessariamente, um projeto político, e não há como evitá-lo. A prática da avaliação é autoritária e reflete a característica do contexto em que se situa. A vida social, econômica, política e cultural do país guarda um ranço do autoritarismo que envolve a nação, com mais vigor, nesses últimos 20 anos. Assim, a educação e as práticas educativas escolares são caracterizadas por apresentarem processos distanciados da realidade, passivos e autocráticos. Neste contexto, situase a avaliação da aprendizagem escolar, tendo presentes as variáveis da relação educativa: o ritual pedagógico, a autoridade do professor e o poder. Em uma perspectiva educacional transformadora, o conhecimento humano acumulado se transforma constantemente dentro de uma vivência histórica e evolutiva, à medida que as experiências vivenciadas em sala de aula surgem de um consenso dialógico entre professores e alunos. Desse modo, se o ensino é significativo, a avaliação escolar, por sua vez, deixará de ser autoritária, seletiva, hierárquica, individual, competitiva e baseada apenas em critérios quantitativos, "terá que ser democrática e a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com a transformação da sociedade, a favor do ser humano, de todos os seres humanos, igualmente" (Luckesi, 1984, p. 6). Enfim, a avaliação escolar deve conter em sua essência a transformação das relações humanas, permitindo que todos os agentes diretamente envolvidos no processo educativo se modifiquem. Deve haver crescimento através da formação da consciência critica, ou seja, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 66 "um levantamento dos erros cometidos. das formas de enfrentá-los. sendo um modo eficiente de melhorar os métodos empregados. Uma avaliação dinâmica, portanto. não teria somente a função da verificação da aprendizagem cada aula estará significando um aprendizado e sua avaliação constante" (Laterza, 1980, p.68) Desse modo, a avaliação de simples estimativa passaria a ser, antes de tudo, diagnóstica, representativa, contínua e estaria voltada, principalmente, para os aspectos qualitativos da aprendizagem enquanto auto educadora e conscientizadora. Estes tipos de avaliação se inserem numa pedagogia libertadora, dentro de um modelo social transformador. "Com a função diagnóstica, a avaliação constitui-se num momento dialético do processo de avançar no desenvolvimento da ação, do crescimento para a autonomia, do crescimento para a competência, etc." (Luckesi, 1984, p. 8). A avaliação assim entendida é aquela em que se pergunta e sabe-se para que servirão as respostas; não é definitiva, uma vez que o homem e a educação são inacabados. Dá-se sempre de forma provisória; é dinâmica e serve como parada para pensar a prática e retomar a ela; auxilia o avanço e o crescimento. O educando é reconhecido como um sujeito humano histórico. A avaliação se tomará instrumento de identificação de novos rumos, visto que detecta e localiza possibilidades de encontrar caminhos novos; auxilia o educando a encontrar a sua autonomia, garantindo-lhe relações de reciprocidade em lugar de subalternidade. Ressalte-se que a auto-avaliação é condição primordial para a avaliação diagnóstica. A avaliação é representativa e tem um significado de globalidade. Abrange uma multiplicidade de variáveis, de situações, envolvendo todos os agentes do processo educativo, ou seja, avaliação: • professor-aluno; • aluno-professor; • aluno-aluno; • professor-professor; • da escola e suas condições físicas, administrativas e pedagógicas; ou, ainda, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 67 • auto-avaliação; • avaliações individuais; • avaliações em grupo. 4 - O PENSAMENTO DE ALGUNS EDUCADORES SOBRE AVALIAÇÃO A educação e a escolarização não são práticas neutras. São instituições ideologicamente utilizadas para manter e conservar a estrutura social dominante de modo que os homens tenham de reproduzir a sua vida material, os seus valores, a sua visão de mundo e de homem. Tratando-se de uma sociedade como a brasileira, essas instituições reforçam a permanência do modo de produzir moldes capitalistas e, conseqüentemente, a prática educativa reforça esse tipo de sociedade. Neste sentido, a "avaliação educacional em geral e a avaliação em "especial são meios e não fins em si mesmos, estando, desse modo, delimitadas pela teoria e pela prática que às circunstancializaram" (Luckesi, 1984, p. 1). Quer dizer que a prática pedagógica traduz um modelo teórico do mundo e da educação e não é realizada gratuitamente. Ela serve a esse modelo. Cabe romper esse limite e colocá-la a serviço de uma pedagogia que entenda a educação como mecanismo de transformação social, como mediadora que, em conjunto com outras práticas sociais, pode contribuir para esta transformação. Um outro aspecto muito importante que se liga à questão da avaliação se expressa no trinômio: disciplina, autoridade e liberdade. Paulo Freire e Sérgio Guimarães situam bem esta problemática ao afirmarem "... a disciplina é absolutamente fundamental, mas, desde que ela seja a expressão de uma relação harmoniosa entre pólos contraditórios, que são a autoridade e a liberdade" (1984, p. 18). Talvez esta "harmonia", na prática, se expresse por um confronto respeitoso de pessoas diferentes, cada qual consciente de seus limites, seu poder, suas necessidades e sua liberdade. Se há conflito, ele é também "uma forma de sociabilidade", como diz Marilena Chauí. Diante de uma escola que homogeneiza a heterogeneidade de seu alunado, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 68 "... a injustiça do sistema de avaliação é: são crianças diferentes; o ritmo de aprendizagem é diferente; a bagagem de cada criança é diferente; e, no entanto, na hora da avaliação, são colocadas todas diante de uma mesma régua, de uma mesma prova, e aí o que vale é o desempenho em relação a essa prova" (Freire e Guimarães, 1982, p. 27). Não se atenta, dessa forma, para a classe social dos alunos, para suas experiências de vida, para o seu ritmo e tempo de aprendizagem. "Um outro aspecto nesse jogo injusto no processo de avaliação e no processo de aprovação e reprovação que a escola faz, da promoção, como chamam, de uma série para outra, é todo o problema da linguagem" (Ibidem, p. 30). visto que há grande diferença entre a Língua Portuguesa falada em casa e a linguagem oficial presa às regras gramaticais, confrontada com um tipo de vocabulário que corresponde à prática da classe social dominante e não, por exemplo, à prática de linguagem do menino e da menina oriundos da zona periférica das cidades e dos grupos sociais menos favorecidos. Isto é, na escola, fala-se através dos conceitos e do concreto pela abstração, sem relacioná-los com a realidade da vida cotidiana, embora as crianças de zonas periféricas e de camadas dominadas tenham uma linguagem concreta da vida. Para Bernstein (apud Magalhães, 1970), a importância da linguagem para a socialização tem manifestação na origem socioeconômica. Com á hipótese do déficit lingüístico, utiliza como abordagem o código da fala, estando ligado à noção de estrutura social. Divide a sociedade em duas classes sociais e cada uma delas falando o seu código correspondente, embora essa noção de código lingüístico também seja definida por critérios psicológicos supondo que uma deficiência lingüística implica em deficiência cognitiva. Então, a estrutura social dá origem à comunicação através do modo de falar que, por sua vez, permite o acesso a privilégios sociais àqueles que usam o "código elaborado" (linguagem "oficial/classe média)" enquanto àqueles que usam o "código restrito" (classe operária) são vetados esses privilégios. Assim, a desigualdade social é explicada Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 69 pela característica da fala. Segundo Bernstein (apud Magalhães, 1970), o aperfeiçoamento da fala poderia compensar essa desigualdade social. Mas, a escola usa como critério de avaliação o domínio da linguagem abstrata e não o da linguagem concreta. A questão da classe social é mostrada. Cabe, então, uma discussão com os educandos a respeito dos critérios de avaliação. No que se refere ao mecanismo de controle e de conformizar os alunos, são utilizados mecanismos de avaliação. Isto fica espelhado quando Wagner Rossi (1978, p. 126) afirma: A forma mais elaborada de controle sobre eventuais "disfunções" da escola a um tempo perfeitamente adequada à administração burocrática (nacional e legal), e revelando-se enganosamente "técnica", "objetiva" de modo a parecer justa e democrática, encontra-se na extensão dos programas e técnicas de avaliação do desempenho dos professores, cursos e escolas, no âmbito educacional. A avaliação formal, na escola, sempre foi instrumento de controle utilizado pela pedagogia tradicional para conformizar o aluno. Segundo Magda Soares, grande parte da bibliografia educacional considera a avaliação como "científica", "neutra" e rigorosamente "técnica", servindo para minimizar a situação escolar estabelecida socialmente a uma relação objetiva entre o educando e o conhecimento, e com isso encobre outros fatores que agem na referida relação. A avaliação é dissimuladora e mistificadora, porque ao invés de medir, como propala os méritos dos alunos, na realidade, mede o processo de socialização. Apesar de enfocar sempre uma coerência entre a avaliação e as condições culturais do educando, suas funções sociais exercidas no sistema educacional apresentam mecanismos de seleção, escolhendo uns e rejeitando outros, através de um processo de eliminação que escamoteia a relação com a hierarquia social, com sua suposta objetividade. Nega uns por não acompanhar todos. Para Carlos Rodrigues Brandão (1984), a avaliação tem a função de legitimar e efetivar a "ordem hierárquica do trabalho". Na verdade, a avaliação serve de controle e legitimação do poder. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 70 Michel Jean-Marie Thiollent (1984, p. 49) considera que a avaliação é toda "forma de raciocínio", desde que haja uma comparação de um fato em relação a regras, critérios pré-estabelecidos e selecionados entre aqueles possíveis de ser aplicados. Toda avaliação teria que conter aspectos qualitativos e quantitativos agrupados. Nos aspectos qualitativos há história, contexto, relação mutuamente crítica. À avaliação, sempre, antecede uma relação de poder, pois os critérios estabelecidos são legitimadores das decisões avaliativas. Estes critérios são sempre arbitrários se ignoram que no ser humano, em geral, há o ser humano aqui e agora. Uma postura crítica, em matéria de avaliação, exige que sejam qualitativamente explicitados os critérios utilizados e desvendadas as suas implicações ao nível das relações de poder no seio da interação e das instituições. Na avaliação há um padrão único e independente de uma definição institucional ou de uma concepção do saber (Ibidem): Pedro Demo (1984) considera a avaliação como uma das etapas do planejamento e de execução de políticas. Na realidade, a avaliação é um componente do processo, porque toda proposta teórica e prática resulta de avaliações. Como etapa, a avaliação não pode ser isolada da relação entre meios, fins, diferenças sociais e pessoais, teoria, prática. Considera, ainda, avaliação como meio de controle do que foi planejado com o que está sendo executado e que, na maioria das vezes, há divergência entre teoria e prática. Um outro problema da avaliação é ser feita apenas pelos planejadores e executores; a "clientela" alvo não participa da avaliação. Com isso, aparecem dados distorcidos nos relatórios, falseando a situação real. Num posicionamento crítico, surge a avaliação participativa, em que os interessados participam, pois são os "necessitados que entendem de suas necessidades". O ponto fundamental é que a clientela a ser beneficiada avalie o que se pretende fazer com ela. Por maiores que sejam os problemas, é necessário que a clientela participe de todas as fases do processo. Um critério básico da avaliação participativa é a "autopromoção" no sentido de autogestão e "co-gestão" da comunidade envolvida. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 71 Bárbara Freitag (1984), ao analisar o desenvolvimento histórico brasileiro, aponta o fato de a educação ter passado por um processo de valorização constante, como uma força estratégica para a consolidação do capitalismo no país. Essa valorização é, muitas vezes, confundida com a democratização do ensino. Na realidade, acontece o que Zaia Brandão e outros autores (1983), em um estudo exaustivo, no período de cinco anos, sobre evasão e repetência no Brasil (1º grau), tratam a respeito da seletividade social dentro da escola afirmando que "a democratização do acesso não é garantia de democratização do ensino". O tipo de avaliação que os professores trabalham nas escolas evidencia uma formação específica. Além disto, o uso exacerbado de poder perpassa em todas as relações que as pessoas mantêm em nível global, significando que há uma rede de dispositivos no sistema capitalista, da qual nada ou ninguém escapa, que é o poder. No sistema educacional, ele existe e é mais perceptível na relação professor/aluno dentro da sala de aula. Michel Foucault (1979), estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas minuciosas sobre o surgimento da violência nas prisões, evidenciou a existência de formas de exercícios de poder que não emanam diretamente do Estado, embora estejam a ele articuladas e que são indispensáveis para sua sustentação e atuação eficaz. O autor distingue cinco operações responsáveis pela seletividade escolar: "relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípios de uma regra a seguir... medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida "valorizadora", a coração de uma conformidade a realizar" (ibidem). Ou seja, uma avaliação hierarquizada que enfatiza as qualidades e defeitos, as competências e incompetências, castigo e recompensa. Enfim, classificador que determina os "bons" e "maus" alunos do sistema educacional. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 72 Se no campo educacional fossem levantadas as inúmeras situações de evasão, reprovação e repetência, é bem provável que muitas delas estivessem ligadas direta ou indiretamente a problemas avaliativos. Pois a rigorosidade e arbitrariedade com que os instrumentos quantitativos são aplicados na escola contribuem para que muitos alunos se afastem ou tropecem nas "armadilhas" daqueles que se dizem "professores". 5 – CONCLUSÕES Este quadro teórico é uma crítica à Teoria da Educação Autoritária. De autor a autor; repassa a linha teórica de que a educação e a avaliação estão centradas em uma relação de sujeitos (sujeito aluno, sujeito mestre, sujeitos todos os atores da escola). Tal relação, na prática, supõe que, ao educar, o educador se educa e, ao ser educado, o educando educa também. Desse modo, a avaliação se toma mútua e permanente, sem hora marcada, sem cartas marcadas; todos são avaliadores, auto-avaliadores, avaliados. Daí, espera-se um ponto de vista teórico que ilumine a prática avaliativa e suas conseqüências. Supondo-se que um dos componentes dos problemas de exclusão dos alunos é a avaliação escolar autoritária e que tal exclusão se relaciona com uma teoria de educação, na qual a evasão é um subproduto da avaliação autoritária, então podemos formular o seguinte esquema da relação: 1. Teoria da Educação Autoritária (TEA) 2. Teoria da Educação Não Autoritária (TEÑA) Avaliação Autoritária (AA) Avaliação Não Autoritária (AÑA) Evasão Autoritária (EA) Não Evasão Não Autoritária (EÑA) Na primeira situação, as relações educativas ocorrem assim: Professor Aluno Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 73 O professor avalia o aluno usando todo poder. Existe um julgamento de uma pessoa, para promover ("premiar") ou reprovar ("punir"). Neste caso, a avaliação é extrema, aparente, parcial e definitiva, limitando-se à sala de aula, através do uso dos instrumentos tradicionais de mensuração. Deste modo, a evasão autoritária é medida (estatisticamente) apenas no aspecto quantitativo; somente o aluno é responsabilizado pelo fracasso escolar; não é considerado o contexto socioeconômico, político, histórico e cultural e as relações educacionais com o "soberano" mestre. Na segunda situação, as relações educativas se apresentam assim: Professor: Aluno O poder da avaliação passa a ser dividido entre o professor e o aluno numa relação dialética de decisões, podendo aparecer vários julgamentos, tanto do professor que também avalia, (é avaliado, se autoavalia) quanto do aluno (que se auto-avalia, avalia, é avaliado) num processo contínuo, recíproco, externo e interno, ultrapassando a ação e os agentes da sala de aula. A evasão não autoritária, sem deixar de considerar os aspectos quantitativos, se detém, com mais cuidado, nos aspectos qualitativos, atentando para variáveis que interferem na relação educativa e na tomada de decisão que diz respeito ao autoritarismo e ao poder do professor, bem como ao medo e à submissão dos alunos ao processo de admissão, sanção, seleção e expulsão.. Assim, a avaliação perde o seu caráter definitivo, assumindo um caráter provisório porque não considera os excluídos como definitivos, como irrecuperáveis, e a escola toma-se também um pólo de atração e não só de repulsão. A prática educativa reconstruí da considera variáveis como: práticas não rotineiras, renovação de recursos materiais e humanos e processos avaliativos. Isto implica uma reconstrução inovadora da escola, recentrada nas relações entre seres humanos que crescem juntos, ou seja, o aluno aprende com quem tem o papel de mestre e vice-versa. Os papéis são atribuídos ou adquiridos e a história das pessoas que interagem é mais que os seus papéis: é uma história coletiva que não cresce sem a biografia de cada ser humano. Tal biografia internalizadora (ou história pessoal) é processada pela teia das decisões, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Eunice Léa de Moraes, et al. 74 dos projetos, das utopias da existência das pessoas - a idade jovem ou adulta não elimina a sede de auto-afirmação e de dignidade, embora muitas vezes estas sejam espoliadas pelos controles institucionais ligados à exclusão e à punição (Michel Foucault, 1977). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: [s.e.], 1977. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pensar a prática: escritos de viagem e estudos sobre a educação. São Paulo: Loyola, 1984. ________. Avaliação. participação: anotações sobre um ritual de fim de período. São Paulo: Cottez, 1984 (Cadernos CEDES, 12). BRANDÃO, Zaia et alii. 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Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.59-76, jul./dez., 1998 Avaliação da aprendizagem escolar: uma proposta... 75 FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982 (Biblioteca de Filosofia e História das Ciências). ______ Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. 4 ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984 (Coleção Educação Contemporânea). _______. Elementos para crítica da questão da especificidade da educação. Curso-Educação: poder e política, 1984. (mimeo). GARCIA, Walter E. Inovação educacional. no Brasil: problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1980 (Coleção Educação Contemporânea). GATII, Bernadete A. A avaliação em sala de aula. São Paulo: Secretaria de Estado de Educação - CENP - DRHU, 1990. (xerox). GOFFMAN, Erving. Estigam: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, p. 158, 1978. 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Nesse período, podemos encontrar, por exemplo, a polarização de critérios de verdade, ora centrados na razão individual, como o modelo socrático; ora na sociedade, na perspectiva sofismática, ou ainda, na razão e na percepção de Platão e Aristóteles, respectivamente. Neste embate, o método de produção de conhecimento emerge como fator determinante na demarcação entre ciência e senso comum. Para alguns filósofos, dentre eles, Francis Bacon e René Descartes, a veracidade do conhecimento está radicada em seu modo de produção, isto é, no método. Assim, a ciência identifica-se univocamente com a ação metódica. 1 Professora Assistente II do Depto de Métodos, Técnica e Orientação da Educação do Centro de Educação da UFPA. Mestre e Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 78 Estas questões de cunho filosófico que têm atravessado toda a história da humanidade, e que até hoje ocupam lugar de destaque entre epistemólogos do mundo todo, parecem não ter penetrado no meio escolar. Nos cursos de formação científica2, não encontram guarida discussões epistemologicas acerca da natureza do conhecimento biológico produzido e acumulado ao longo dos séculos3. A esta altura um atento leitor poderia questionar: para o cientista é imprescindível conhecer filosofia? Estabelecer reflexões com idéias já ultrapassadas pela ciência? Possivelmente qualquer profissional que tenha passado pelos cursos de formação científica, nos quais esse tipo de abordagem não esteve presente, responderia, igualmente, não para as duas perguntas. Neste caso, cabe ainda outra questão: por que, então, escrever sobre aspectos teóricos-metodológicos da construção do conhecimento? Por que investir tempo em rastrear conceitos biológicos há muito abandonados? Respostas a estas questões não são tão objetivas quanto as primeiras. Porém, explicando o ponto de vista, tem-se que a filosofia e a história da ciência, de certo, não se constituem "equipamentos operacionais" do cientista, o que representa dizer que em situações de laboratórios, por exemplo, conhecimentos históricos ou filosóficos desempenham papéis limitados. Mas quem disse que ciência só se faz em laboratórios? Mais que operador de equipamentos, o cientista deve ser um intelectual de sua área de conhecimento e que faz opções filosóficas, políticas e sociais antes de submeter-se aos "fatos". Contudo, só podemos optar se conhecermos as opções, caso contrário apenas seguiremos rituais dogmaticamente ensinados tidos como única forma de produção de saber. Para compreender a ciência hoje, torna-se necessário recuperar sua história, reconhecer em 2 Apesar de entender a abrangência deste termo, no presente trabalho ele será utilizado para referir-se exclusivamente aos cursos de formação na área das ciências naturais. 3 Refiro-me às discussões no âmbito dos Cursos dos quais tenho participado dos dois lados da mesa, ou seja, aluna e professora. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 79 sua historicidade as raízes que originam e determinam o movimento que hoje lhe é peculiar, e mais, buscar neste movimento a construção da própria história-reconhecer a ciência como construção que é infinita e que pode ser direcionada a partir do conhecimento de seus determinantes; compreender a ciência em sua própria história implica, assim, a possibilidade de compreendê-la hoje e a possibilidade de dar uma direção à construção de seu futuro (Andery, 1994, p.437). Nesta perspectiva, a história e a filosofia jogam papéis cruciais. É por meio da história da produção do conhecimento científico que vamos "beber na fonte" das opções filosóficas que marcam a construção da biologia de hoje. É o abandono do vitalismo e a opção pelo mecanicismo clássico que, a priori, desencadeiam o entendimento da vida nos níveis celular e molecular, por exemplo. É a história que nos permite conhecer a ciência como construção, no lugar de descoberta; como conflito de idéias, contradições, no lugar de consensos e superações, desmistificando-a e revelando-a como produção ideológica, humana. Este é o propósito deste exercício reflexivo, sem a pretensão, contudo, de reconstituir uma história da biologia, muito menos da filosofia clássica. Trata-se, unicamente, de perceber os reflexos de dois sistemas filosóficos, Empirismo e Racionalismo, na construção de alguns conceitos biológicos. Com esta finalidade, é feita uma abordagem sobre os postulados básicos desses sistemas, a partir das com concepções de seus "genitores": Francis Bacon e René Descartes, respectivamente. Na unidade seguinte, o desafio está em compreender a penetração destas duas concepções na elaboração do conhecimento biológico com algumas incursões na história da biologia. Por fim, uma breve reflexão sobre a relevância de se abordar a história e a filosofia da ciência no ensino de ciências. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 80 2 - DA OBSERVAÇÃO À RAZÃO: A Emergência da Ciência Modema4 Francis Bacon e René Descartet são herdeiros de um movimento intelectual, o Renascimento, que redimensionou e redirecionou a história da humanidade. Este período caracterizado pela riqueza e multiplicidade de idéias acerca da relação homem-naturezaconhecimento encontra, nestes personagens, dois grandes teóricos que com suas formas distintas de perceber tal relação acabam por instituir, juntamente com Galileu, as bases metodológicas da ciência moderna. Bacon e Descartes são os genitores da ciência moderna no que tange ao seu modo de produção, isto é, ao método. E como nos diz Andery (1994, p. 438) é por meio da "análise dos métodos que originam as explicações cientificas que podemos desvendar as exigências com as quais a ciência se defrontou, as possibilidades de soluções que se entreviam e os rumos efetivamente trilhados pelo empreendimento cientifico" que compreenderemos a ciência hoje. Nesta perspectiva, vale a pena mergulhar no movimento das idéias passadas que contribuíram para constituição das concepções atuais. A Renascença inaugura o início da idade moderna. Se na idade média as teses aristotélicas, assumidas pela escolástica, corroboravam o teocentrismo dominante, no Renascimento a valorização do homem e de suas produções é a tônica. 4 Quando me propus a revisitar as idéias filosóficas emergentes no século XVII, mais especialmente aquelas postuladas por Bacon e Descartes, uma questão teimava sobrepor-se às minhas reflexões - parafraseando Freire-Maia (1988), questionava-me: Vale a pena ler Bacon e Descartes ainda hoje? Como julguei que esta poderia ser uma questão também para o leitor, decidi explicitá-la no texto objetivando elucidar o percurso interpretativo que me levou a esta empreitada. Newton Freire-Maia se propõe questão semelhante em relação ao Naturalista Charles Darwin, cujas idéias sobre evolução dos seres vivos são consideradas, em parte, ultrapassadas pelos evolucionistas atuais. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 81 Na nova visão de inundo que veio substituir a medieval, o homem no seu sentido mais genérico era a preocupação central. As relações Deushomem que eram enfatizadas pelo teocentrismo medieval foram substituídas pelas relações entre homem e natureza. Isto significava, com relação ao conhecimento, a valorização da capacidade do homem de conhecer e transformar a realidade (Andery, op. cit., p. 170). Esta nova concepção liberta o homem das amarras teleológicas, da idéia de um mundo estruturado, estático, finito, hierarquicamente ordenado e "exogenamente" controlado. A humanidade já pode construir sua própria história, alterar o curso dos fatos e intervir na realidade. Tal mudança de perspectiva provoca alterações no "eixo da gravidade do conhecimento" e se caracteriza pelo abandono de um saber contemplativo rumo ao pragmatismo. É com o intuito de se produzir uma ciência eminentemente prática, que permita ao homem adquirir controle perfeito sobre a natureza, que Francis Bacon propõe seu método científico (Mondin, 1981). Francis Bacon, cidadão inglês, nascido em 1561, foi claramente influenciado pelo momento político e social de seu tempo. Numa Inglaterra em incipiente processo de industrialização, a proposição de uma ciência prática vinha ao encontro das necessidades do capitalismo emergente. "Saber é poder" dizia Bacon. E "saber verdadeiramente é saber pelas causas". Esta última asserção é uma crítica explícita ao aristotelismo que, segundo Bacon, subordinava a experiência à verificação das causas, à dedução silogística. Como alternativa metodológica, Bacon sugere a indução para obtenção do conhecimento. Nesta perspectiva, dizia que é preciso interpretar a natureza e não antecipá-la como prega a conduta dedutiva. Para interpretar a natureza, é necessário realizar inúmeros experimentos ordenados, de onde os axiomas seriam extraídos (Andery, 1991). Bacon propõe, então, uma série de procedimentos metodológicos que conduzirão ao verdadeiro conhecimento. Contudo, antes de lançar-se à busca da verdade, o homem deveria corrigir algumas tendências que poderiam acarretar equívocos na Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 82 produção do conhecimento. Estas tendências foram descritas por Bacon sob a figura de quatro ídolos: da tribo, da caverna, do foro e do teatro. Os ídolos da tribo seriam as falhas inerentes à própria natureza humana, tanto dos sentidos quanto do intelecto. Falhas estas facil¬mente corrigíveis pela experimentação (Andery, op. cit.) Os ídolos da caverna representam o que na linguagem atual costumamos chamar "óculos conceituais": são todas as pré-concepções oriundas das leituras, hábitos e história de vida do pesquisador. No terceiro tipo de ídolos, o do foro, Bacon chama a atenção para as distorções que o uso da linguagem pode acarretar na produção do conhecimento. As palavras muitas vezes representam limites às concepções, uma vez que pensamos sobre as coisas a partir das palavras de que dispomos para expressá-las (Andery, op. cit.). As palavras podem, ainda, representar obstáculos por terem caráter polissêmico, ou seja, os múltiplos sentidos vinculados à determinada palavra podem levar a leituras, a interpretações equivocadas dos fatos e, conseqüentemente, à produção de um falso conhecimento. Finalmente, os ídolos do teatro que academicamente costuma": mos chamar de referencial teórico. Tais ídolos poderiam guiar as observações destituindo-as de seu caráter factual, limitando a objetividade desejável na elaboração do saber. A natureza dos obstáculos epistemológicos, os quais Bacon denominou "ídolos", revela que o método baconiano tinha por: intenção, a neutralidade; percurso, a indução; conduta, a descrição objetiva; critério de verdade, a sensação corrigida pela experimentação controlada; e por finalidade, o conhecimento verdadeiro e prático. Vale ressaltar que apesar de defender uma ciência prática, Bacon não faz apologia ao ultilitarismo. Neste aspecto, deixa claro que os experimentos lucíferos (os que iluminam questões teóricas) são tão importantes quanto os frutíferos (que têm aplicabilidade imediata) na descoberta das causas e dos axiomas (Novum Organum, I afor. 99). Os grandes méritos de Bacon estão numa proposição de uma ciência prática no lugar de contemplativa; na sistematização da ciência de um método próprio para as ciências experimentais e, sobretudo, na Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 83 crença da capacidade humana de produzir ciência. Uma ciência reveladora5 do real (Mondin, 1981). É a ênfase na experimentação como forma de obtenção de conhecimento verdadeiro que o filia ao empirismo clássico que, juntamente com o racionalismo cartesiano, constitui a base metodológica da ciência moderna. A outra "asa" para que a ciência moderna alçasse vôo foi arquitetada por René Descartes, filósofo francês, nascido em 1596, e fiel herdeiro do pensamento renascentista. A valorização do homem como ser pensante capaz de produzir conhecimentos verdadeiros e úteis perpassa toda sua obra, sobretudo, como nos diz Fateaud, em seu prefácio ao "Discurso do Método". Mais que herdeiro do Renascimento, Descartes foi contemporâneo de uma prodigiosa revolução científica, da qual (eu acrescentaria) foi também um de seus artífices. Assim como Bacon, Descartes acreditava na possibilidade de se conhecer a realidade e de se chegar a verdades. Entretanto, contrariamente a Bacon, afirmava que essas capacidades somente seriam alcançadas, em sua plenitude, pelo uso da razão pois os sentidos são enganosos. Razão essa inerente a todos os homens, diferindo apenas no modo de cada um conduzi-la, pois: bom senso ou razão, é por natureza igual em todos os homens; e portanto a diversidade de opiniões não decorre de uns serem mais razoáveis que os outros, mas somente de que conduz)mos nossos pensamentos por diversas vias e não consideramos as mesmas coisas" (Discurso do Método, 1). Desta forma, para se construir um conhecimento verdadeiro, no entender de Descartes, é essencial saber conduzir o pensamento por meio de um método, que por sua vez está calcado na razão. Tal qual Bacon, Descartes contrapõe-se à tradição contemplativa da escolástica e sobre isto diz: 5 A palavra 'reveladora' busca retratar a concepção baconiana de que o homem por meio do conhecimento não constrói a realidade, apenas a revela. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 84 ... é possível chegar a conhecimento muito úteis à vida, e que ao invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática, mediante a qual, conhecemos a força e as ações do jogo, da água, do ar, dos astros dos céus e de todos os corpos nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de nossos artesão poderíamos empregadas do mesmo modo em todos os usos a que são adequados e assim nos tonamos com que senhores e professores da natureza (Discursos do Método, XI). Para conhecer e conseqüentemente dominar a natureza, descarte opta pelo método dedutivo justificando sua opção do seguinte termo. A experiência das coisas e falaz, ao passado que a dedução, isto é, assim simples ilação de uma coisa de outra pode certamente ser omitida, se não for percebida, mas não pode ser mal feita por um intelecto que tenha alguma capacidade de raciocínio (...) na verdade os enganos que pode acontecer aos homens, não aos animais, não procedem nunca da ilação má, mais unicamente de serem supostas certa experiência pouco compreendida ou serem emitidos juízos e refletidos e sem fundamento (In: Mondim, 1981, p. 66). Além de aponta um método dedutivo como apropriado ao desvendamento da verdade, descartes propõem preceitos metodológicos com esta finalidade. Estes consistem em quatro etapas, denominadas por seus comentadores: Intuição, analise, síntese numeração. A intuição propõe que nunca devemos aceita alguma coisa como verdadeira sem a que há conheçamos evidentemente como tal, o que só é possível se fragmentamos um problema em tantas partes menores quanto possível o que se constitui no momento da analise. Após a decomposição do problema em parte menor, e preciso ordena essas parte da simples a mais complexa a fim de pode entendêlas em síntese. Por ultimo, devemos fazer numerações tão complexas e revisão tão gerais que se tenha certeza de nada omiti (Discuso do Método, II). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 85 Se para o empirismo a experimentação é o instrumento de análise, para o racionalismo cartesiano a matemática, especialmente a geometria, é o instrumento por excelência. Os dois últimos preceitos enunciados deixam entrever essa opção. "Assim, a busca de idéias claras e distintas6 tem por modelo não o raciocínio lógico, mas o matemático (Andery. 1994, p. 201). Nesta perspectiva, Descartes exclui da ciência todo o conhecimento não acessível por meio de tratamento matemático. Sensações não matematizáveis como cor, odor, som, jamais assumiriam o estatuto de dado científico. Ao passo que comprimento, largura, espessura, propriedades mensuráveis da matéria e o movimento (excluindo-se a noção de tempo) constituem-se elementos concretos apreensíveis pela razão. Interessante notar que apesar de Galileu estar mais estreitamente ligado a Bacon na construção de uma ciência indutiva, é na idéia de que o universo está escrito em linguagem matemática defen¬dida por Galileu que Descartes encontra a grande fonte de um método dedutivo. O que permite perceber que a produção do saber está longe da linearidade. Não há adesões ou rejeições verdadeiramente integrais; é no jogo das contradições que emergem novas idéias sendo, portanto, "o velho" constitutivo "do novo". A crença num mundo regido por leis universais escritas em linguagem matemática revela a concepção mecanicista de Descartes. (...) a noção aristotélica de um universo finalista, hierarquizado, em que cada coisa tem sua função e seu lugar, e onde a terra é o centro, é destruída por Descartes, que põe em seu lugar extensão sem limite e sem fim ou matérias sem fim nem limites... (Koyré In: Andrey, op. cit.; p. 203). Se na idade média o universo estava submetido a leis divinas, a partir do Renascimento o mundo passa a ser controlado por leis 6 A clareza e a distinção das idéias eram tidas por Descartes como critérios de verdade. Para obter maiores detalhes sobre essa questão, ver Mondim, B. Curso de Filosofia. São Paulo: Edições Paulinas, v. 2, 1981. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 86 mecânicas. Nesta perspectiva, o finalismo aristotélico é substituído pela noção de mecanismo. A questão relativa à idéia de um universo regido por leis mecânicas é: esta concepção não cai nas malhas do determinismo tanto quanto a visão aristotélica? Pois até a própria mecânica encontra-se no limite do possível, do tangível, do imanente. Em que medida esta concepção, também; não cerceia a possibilidade de uma história construída, no lugar de uma, apenas, executada? Respostas a estas questões emergem no século XIX com o redirecionamento do conhecimento proposto pelas teorias materialistas. Importa lembrar que o mecanicismo encontrou ressonância tanto no pensamento racionalista quanto no empirista. Thomas Hobbes, empirista inglês, é um clássico exemplo de adesão ao mecanicismo. Entretanto, diferentemente de Descartes, Hobbes estendia o mecanicismo a consciência humana. Para Hobbes, "até mesmo a consciência, ou a alma, humana, teria sua origem no movimento de minúsculas particulas cerebrais" (Gaardner, 1995, p. 249). Contudo, Descartes estabelecia nítida distinção entre as forças que atuavam sobre o corpo e a alma. Para ele, o homem é um ser dual. Sobre o corpo, que é a extensão, atuam as leis universais do movimento, mas a "alma é uma substância, cuja essência ou natureza é pensar e que para existir no necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que é (u.) inteiramente distinta do corpo" (Discurso do Método, IV). Não estando submetida, portanto, às leis materiais. Contraditoriamente, esta máxima cartesiana pode ser vislumbrada posteriormente na concepção vitaliza que juntamente com a mecanicista irão polarizar as discussões sobre a natureza da matéria viva, no século XVIII7. Como podemos perceber, apesar das evidentes distinções entre as propostas metodológicas de Bacon (empirista) e Descartes (racionalista), é a crença numa realidade cognoscível e apreensível pela experimentação ou pela razão embutida nestas duas formas de conceber 7 A contradição não está na filiação de Descartes ao mecanicismo no que diz respeito aos fenômenos físicos, mas ao vitalismo quando se trata da matéria viva. Contradição que se esclarece no dualismo alma/corpo proposto pelo cartesianismo. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 87 o mundo, que possibilita inicialmente a construção de um conhecimento sistematizado sobre os fenômenos naturais e sociais que constituem a história da humanidade. Em síntese, é a capacidade humana dê conhecer o real que permite a emergência da ciência moderna. Dentro da qual, a Biologia. 3 - DA RAZÃO À EXPERIMENTAÇÃO: A construção de Conhecimentos Biológicos A Biologia se estabelece como ciência, com objetivos e procedimentos de investigação próprios somente no século XIX. Entretanto, isto não quer dizer que a vida enquanto fenômeno não tenha sido alvo de especulações anteriores. Na Grécia antiga, por exemplo, encontramos inúmeros estudiosos dos processos vitais. Dentre eles, Anaximandro (610-545 a.C.) interessado na origem dos seres vivos; Empédocles (510-450 a.c.) tido com um dos precursores da Ecologia; Alcméon de Crotona (aprox. 500 a.C.) e Hipócrates (459-337 a.C.) que se ocuparam da anatomia e da fisiologia; Aristóteles (384-322 a.C.) que se dedicou em várias obras (história dos animais, as partes dos animais, a geração dos animais) ao estudo dos seres vivos (Théodorides, 1984). Contudo, é a partir do Renascimento com o crescente deslindamento entre ciência e religião que surge a possibilidade de se entender a vida em bases materiais. É a compreensão dos processos vitais por meio de suas propriedades intrínsecas, libertos de concepções transcendentais, que viabiliza o estudo da matéria viva. Todavia, esta transformação não se dá de forma linear nem absoluta. Apesar de ter-se afastado das concepções transcendentais de vida, a biologia ainda se depara com análises mecanicistas, reducionistas dos processos vitais, pois, contrariamente ao que freqüentemente se imagina a biologia não é uma ciência unificada. A heterogeneidade dos objetos, a diversidade dos interesses, a variedade das técnicas tudo isto contribui para multiplicar as disciplinas (Jacob, 1993, p. 14). Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 88 Em função desta heterogeneidade, é possível encontrar-se múltiplas tendências metodológicas na trajetória da construção do conhecimento biológico. Entretanto, esta incursão na história da Biologia limita-se à análise de algumas disciplinas biológicas, buscando perceber em seus métodos de produção traços das concepções empiristas e racionalistas tratadas na unidade anterior. A fisiologia é uma das disciplinas da Biologia em que as opções teórico-metodológicas são bastante evidentes em sua trajetória de construção. Assim, vamos encontrar, até meados do século XIX, análises fisiológicas de cunho dedutivista. Isto porque até este período o estudo dos processos vitais estava fortemente vinculado a descrições anatômicas das estruturas orgânicas. Radl (1988, p. 72) nos conta que "Os fisiólogos alemães daquele tempo deduziam em grande parte suas teorias fisiológicas da anatomia, convencidos de o conhecimento da construção do corpo era suficiente para compreender sua atividade. Tal conduta revela a concepção de causalidade presente neste tipo de análise. Causalidade, não no sentido amplo de causa primordial determinante e teleológica, mas de relação causa-efeito na qual o conhecimento é produzido a partir dos efeitos de onde as causas são deduzidas. Até a primeira metade do século XIX, as técnicas de vivissecção não eram utilizadas nos estudos anátomo-fisiológicos; elas foram difundidas posteriormente pelo fisiólogo Claudc-Bernard. Isto significa que naquele tipo de estudo os organismos eram examinados mortos, o que impossibilitava análises "in vivo" dos processos fisiológicos, e por este motivo eram deduzidos das características morfológicas dos órgãos. Assim, o motivo ou causa do coração ser oco e ligado a pequenos canais (vasos), por exemplo, residia no fato deste órgão prestar-se à função de armazenar sangue e despejá-lo nos vasos. Estes, por sua vez, conduziriam aquele fluido às mais longínquas partes do corpo. Vale mencionar' que este mesmo raciocínio (dedutivo) foi empregado por Descartes na descrição da pequena circulação ainda no século XVII (Discurso do Método, V). Aliados à concepção racionalista, podemos notar traços mecanicistas e antropocentristas neste processo de dedução. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 89 Mecanicista porque o nexo de causalidade evoca a noção de mecanismo e da qual a vida resulta da somatória do funcionamento das engrenagens. Antropocentrista, uma vez que nesta concepção os processos naturais obedecem à mesma ordem dos construtos humanos, em que cada coisa é planejada e construída para desempenhar determinada função. A concepção racionalista pode ser encontrada, também, nos estudos morfológicos sobre animais e vegetais no início do século XIX. Neste período, os serem eram descritos segundo os padrões geométricos e baseados na quantificação de caracteres morfológicos. Alguns autores, como "o zoólogo alemão H. G. Bronn, buscaram normas geométricas na organização do organismo" (Rald, 1988, p. 22). Nees V. Esenbeck, botânico alemão, dedicou-se em sua obra "Doutrina morfológica geral da natureza" a reduzir as formas orgânicas, especialmente os vegetais, a esquemas fundamentalmente geométricos (Ibidem, p. 225). O que é essa tendência, se não a concepção de que a natureza obedece à ordem universal escrita em linguagem matemática, defendida por Galileu e apropriada pelo racionalismo cartesiano? A Embriologia do século XVIII é outra área da Biologia na qual se percebe traços das concepções empirista e racionalistas, sendo que esta última penetra, na Biologia, pela vertente do vitalismo. No campo da Embriologia, a polêmica instala-se entre as concepções "Préformistas" e "Epigenesista". Segundo o Preformismo, teoria defendida por Marcello Malpighi, Charles Bonnet e Albrecht Von Haller, os seres vivos já estariam formados no interior do óvulo ou do esperma humano restando à fecundação apenas a função de desencadear o processo de maturação do indivíduo. Esta teoria de caráter vitalista proclamava ser "no dizer de seu eminente porta-voz (Charles Bonnet) o maior triunfo da razão sobre os sentidos" (Gould, 1987, p. 201). Isto porque, contrariamente aos Preformistas, os Epigenesistas acreditavam que a complexidade da forma adulta dos seres desenvolve-se gradualmente no embrião, não estando, portanto, pré-determinado no ovo, uma vez que suas observações evidenciavam não haver nenhum "homúnculo" preformado Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 90 no interior do zigoto. Esta polêmica subjaz à adoção de diferentes métodos de abordar o objeto de investigação. Os preformistas haviam realizado observações tão acuradas sobre o desenvolvimento embrionário quanto os epigenesistas. Estes, entretanto, não as interpretavam literalmente como aqueles. Neste tocante, os preforrnistas "... insistiam em investigar 'o que havia por detrás das aparências', Diziam que as manifestações visuais do desenvolvimento eram enganosas" (Gould, op. cit., p. 202). Estas formas de conceber o desenvolvimento embrionário dos seres revelam duas claras filiações filosóficas. O Epigenesismo filia-se ao Empirismo/indutivismo porque defende a supremacia dos sentidos no processo de observação; o Preformismo ao Racionalismo/ dedutivismo por sustentar que as aparências são enganosas e podem obscurecer a razão. Sobre isto Bonnet escreve: Não conte o tempo em que os seres organizados começam a existir pelo tempo em que começam a ficar visíveis; e não restrinja a natureza segundo os estreitos limites de nossos sentidos e instrumentos" (Ibidem, p. 202). A polêmica vai gradativamente assumindo novos contornos a partir da proposição da teoria celular, no século XIX, e a elucidação das bases genéticas da hereditariedade, no século XX. Todavia, apesar da "história oficial" contida nos livros didáticos de Biologia apresentar os Preformistas como os derrotados e os Epigenesistas como os heróis, a idéia de que a complexidade não pode surgir da matéria-prima informe - tem de haver algo que regule o desenvolvimento no interior do ovo, defendida pelos primeiros - está correta. O equívoco dos preformistas foi atribuir às 'possíveis' estruturas preformadas a função reguladora do desenvolvimento, quando hoje entendemos que tal função é exercida pelo material genético armazenado nas células em forma de código. Tal análise permite-nos refletir sobre a complexidade dos processos de produção do conhecimento, evidenciando que a ciência não se constrói sob os auspícios do consenso (nem tampouco brota da cabeça de alguns iluminados), ao contrário, As mudanças que ocorrem nas teorias não são simples resultados derivados de novas descobertas, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 91 mas um trabalho de imaginação criativa influenciado por forças contemporâneas sociais e políticas. Não devemos julgar o passado através das lentes anacrônicas de nossas convicções aclamando como heróis cientistas que julgamos certos, mediante critérios que não têm nada a ver com as preocupações deles (Ibidem, p. 199). A partir da segunda metade do século XIX, o indutivismo, já amplamente utilizado pela física, passa a fazer parte, mais efetivamente, do roteiro de estudo dos processos vitais. A publicação de duas obras de filosofia marcam a transição da, então, História Natural dedutivista para a Biologia indutivista. A primeira delas é o Curso de Filosofia Positiva, de August Comte, publicada na França em 1830, na qual o autor adere ao indutivismo baconiano dizendo que "Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidente e incontestável, se for aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência" (In: Ardery, 1994, p. 386). A segunda obra é de J.St.Mill cujo título é Sistema de lógica dedutiva e indutiva, publicada em Londres em 1843, na qual Mill defende, em oposição à Filosofia Naturalistas8, o conhecimento produzido a partir do entendimento das causas geradoras dos fenômenos. No campo da Biologia, particularmente na fisiologia, essa transição é marcada pela difusão das idéias do fisiplogista francês Claude Bernard que propugna uma Biologia experimental, ativa, em que o experimentador possa intervir, alterar condições, analisar e controlar variáveis. Por fim, a intervenção no lugar da descrição (Jacob, 1983,. p. 188). 8 Segundo Radl (1988), a Filosofia Naturalista tinha convicção no poder da razão sobre a natureza. Devendo, portanto, os fenômenos naturais serem estudados sobre bases racionalistas. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 92 Segundo Delouya (1994), foi Claude Bernard quem preparou as bases da biologia moderna, no plano experimental e filosófico, ao distinguir entre a vida (biológica) e os mecanismos nela operantes, tornando a biologia uma disciplina ciência. Na Inglaterra, Charles Darwin, em consonância com o movimento econômico-social de um capitalismo em franco desenvolvimento, propõe a teoria da "seleção natural”9. Se essa teoria fortalece o que há de mais perverso no mundo social, isto é, a legitimação das diferenças sociais como inerentes à capacidade de adaptação dos indivíduos, para a biologia ela representa em última análise a possibilidade de um mundo mutável, onde os seres, especialmente o homem, não estão submetidos a leis mecânicas, mas em interação com o mundo natural. Ao propor a seleção natural como fator evolutivo, Darwin introduz a noção de contingência no campo dos fenômenos naturais, resignificando as relações de causa-efeito tão debatidas por empiristas e racionalistas. Efeitos não revelam causas, nem tampouco causas explicam efeitos. Nesta nova perspectiva, é no âmbito das interações entre os elementos envolvidos nos processos naturais que os fenômenos são compreendidos. Interessante perceber que apesar de Darwin ter adotado por conduta metodológica a indução, revelada em suas inúmeras anotações sobre os fenômenos naturais e insinuada pela epígrafe, 'assinada' por Bacon, de sua mais famosa obra (Origem das espécies), parece ter sido a partir de deduções extraídas de princípios propostos em teorias préexistentes que ele encontrou inspiração para elaborar sua Lei da Seleção Natural10. Esta breve passagem por alguns momentos da história da Biologia revelam que as "idéias antigas" podem nos ensinar muito da ciência atual. Sobretudo podem contribuir para a desmistificação da ciência como forma neutra e positiva de construção do saber. 9 Consultar BIZZO, N.M. O que é darwinismo. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. Isso, a meu ver, demonstra que não há um modelo único e eficiente de produção do saber e que a ciência é resultante de um misto de criatividade, reflexão, observação, dedução e, sobretudo imaginação. 10 Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 93 4 - ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS A Filosofia e a História da Ciência têm passado ao largo das salas de aulas dos cursos de graduação em Biologia. A situação não é diferente no ensino de ciências, no âmbito de 1º e 2º graus. Em ambos os casos, o conhecimento científico tem sido tratado de forma factual, a histórica e fragmentada. Os aspectos históricos evocados são apresentados de forma linear - é comum encontramos nos livros didáticos de ciência, por exemplo, uma história de superação de idéias, isenta de conflitos, neutra, descolada do contexto político-social no qual um dado conhecimento foi produzido. Uma história de tolos e heróis como nos diz Gould (1987). Nesta perspectiva, é freqüente encontramos na história do evolucionismo, por exemplo, Lamarck apresentado como o grande derrotado, o tolo que propôs idéias absurdas acerca da hereditariedade a lei do uso e do desuso e a transmissão dos caracteres adquiridos. Darwin, ao contrário, é o herói, o descobridor por excelência que dedicou sua vida à causa científica. Contudo, a história, não a factual mas a processual, nos mostra que grande parte das idéias propostas por Lamarck, incluindo as citadas, foram encampadas e utilizadas nas teorias darwinistas (Freire-Maia, 1982). Ainda sobre o evolucionismo, a "história oficial", contida nos livros didáticos, apresenta o mutacionismo de Hugo De Vries como tendo emergido em complementação ao selecionismo proposto por Darwin, omitindo que o conflito entre tais idéias perdurou por quase meio século até ao advento da Teoria Sintética (Chaves, 1993). Este tipo de abordagem, em que o conhecimento é divulgado envolto numa aura de neutralidade, favorece a elaboração, por parte dos estudantes, de concepções místicas e míticas relativas ao conhecimento científico, o que pode desencadear, sobretudo, afastamento da carreira científica no processo de escolha profissional ou, ainda, grandes desilusões11. Afastamento, porque numa ciência produzida por "heróis" 11 Como as que presenciei em meus alunos do curso de Biologia, na graduação/UFPA. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Sílvia Nogueira Chaves 94 não há lugar para "pessoas comuns". Desilusões, porque a carreira científica nada tem a ver com a imagem fantasiosa que é veiculada nos livros didáticos. Neste aspecto, a história e a filosofia da ciência poderiam contribuir para desmistificar a imagem da ciência e dos cientistas. Além disto, algumas pesquisas têm enfocado a contribuição pedagógica da filosofia e história da ciência no processo de elaboração conceitual de conteúdos científicos pelos estudantes (Kinnerar, 1991; Stinner and Williams, 1993; Duveen and Solomom, 1994; Jesen and Finley, 1995). Tal contribuição diz respeito, entre outras coisas, à facilitação da aprendizagem de determinados conceitos desencadeada pela identificação das dificuldades encontradas pelos alunos com aquelas que se deparam os cientistas, no processo de produção do conhecimento, e a forma como foram superadas. Isto, contudo, não pressupõe uma identificação direta dos obstáculos epistemológicos enfrentados pelos cientistas com as dificuldades pedagógicas dos estudantes, mas apenas uma analogia possível de finalidade educativa. No entanto, enfatizamos que para utilizar filosofia e história da ciência em sala de aula, na perspectiva aqui defendida, é essencial que no processo de formação do profissional do ensino tal perspectiva seja contemplada. Tarefa que cabe a nós, professores universitários, discutir, a fim de que, no lugar de "heróis", possamos formar profissionais competentes. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ANDERY, Maria Amália. et al. Para compreender a ciência. 53 ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1994. BACON, Francis. Novum ornanum. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores). CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 Racionalismo e empirismo na construção de... 95 CHAVES, S. N. Evolução das idéias e idéias de evolução: a evolução dos seres vivos na ótica de alunos e professor de Biologia do ensino secundário. Campinas: Faculdade de Educação UNICAMP, 1993 (Dissertação de mestrado). DELOUY A, D. A Filosofia da Biologia à luz da biologia molecular. Cad. Hist. Fil. Cio Campinas, série 3, 4, n. 1, p. 51-59, 1994. DESCARTES, R. O Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989. DUVEEN, J., and SOLOMON, J. The great Evolution trivial: use of role play in classrom. Journal of Research in Science Teaching v. 31, n. 5,p. 575-582, 1994. FREIRE-MAIA, Newton. Do darwinismo de Darwin ao darwinismo moderno. Ciência e Cultura. São Paulo, V. 34, nº 2, p. 147-150, 1982. _________. Teoria de evolução: de Darwin à teoria sintética. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. GAARDER, J. O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. GOULD, S. J. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1987. JACOB, E. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Rio de Janeiro: Graal, 1983. JENSEN, A. And FINLEY. N. F. Teaching Evolution using historical arguments in a conceptual change strategy. Science Education: 79 (2) 147-166, 1995. KINNEAR, F. J. Using an Historical perspective to enrich the teaching of linkage in genetics. Science Education v. 79, nº 2, p. 124-166, 1995. MONDIN, B. Curso de Filosofia, v. 2, São Paulo: Edições Paulinas, 1983. RADL, E. M. História de Ias teorias biológicas. V. 2, Madri: Alianza Editorial, 1988. STINNER. A. and WILLIAMS, H. Conceptual change, history, and science stories. lnterchange. v. 24, nº 1 e 2, p. 87-103, 1993. THÉODORIDES, J. História da Biologia. Lisboa: Edições 70, 1984. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.77-95, jul./dez., 1998 A Pedagogia de Deus: cristianismo militante e educação em Frei Betto (1969-1971) Humberto Cunha 1 – INTRODUÇÃO Frei Betto, jornalista, escritor, teólogo e líder católico, nas duas últimas décadas, vêm repercutindo na educação nacional, por sua atuação como educador popular junto a lideranças sindicais, comunitárias e religiosas e, também, pela influência que exerce sobre ordens religiosas, quase sempre proprietárias de estabelecimentos de ensino. Este trabalho versa sobre o livro de Frei Betto, Das Catacumbas: cartas da prisão (1969-1971), procurando sistematizar as falas deste pensador a respeito de Educação. Frei Betto tem uma obra da ordem de três dezenas de livros. Opto por Das Catacumbas, como fulcro deste trabalho, por ser este o seu primeiro livro publicado no Brasil, agregando cartas escritas, no cárcere, a parentes, amigos e religiosos. Estas cartas versam sobre assuntos gerais, nos quais é possível descobrir uma preocupação com a educação. A metodologia utilizada para a pesquisa das idéias educacionais no livro investigado devo-a a Manacorda (1990). Esta comunicação, todavia, tem amplitude mais restrita que a feita por Manacorda sobre as idéias educacionais de Gramsci. Limito-me a listar momentos, nas cartas de Frei Betto, em que a temática Educação está presente, de modo explícito ou não. A partir desta listagem, organizo um inventário, com base no qual abstraio as idéias educacionais que estou denominando Pedagogia de Deus. Não posso dizer que realizo a exegese das idéias do autor acerca da educação. Simplesmente, lanço um olhar em direção a. Que outros olhares nos tragam outras falas! Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 2 - INVENTÁRIO DO TEMA EDUCAÇÃO EM FREI BETTO (1969-1971) 10000 Educação na sociedade civil 10100 Papel educativo da solidariedade 10200 Comunidade e educação 10300 Equipe 10400 Viagem - aquisição cultural 10500 Ação pedagógica do teatro 10600 Condições materiais para o estudo 10700 Cinema como recurso pedagógico 20000 Educação na prisão 20100 Cartas da prisão como pedagogia 20200 Vida na prisão 20300 Ócio 20400 Disciplina 20500 Trabalho 20600 Estudo 20700 Esporte 20800 Vida Coletiva 20900 Solidão 21000 Prisão educa ou degrada? 21100 Educação na prisão: elevação intelectual 30000 Educação da criança 30100 Objetivo e circunstâncias da educação infantil 30200 Educação e formação de valores burgueses 10300 Redimensionando valores da educação 30400 Como se ensina a história oficial 30500 História infantil como pedagogia 40000 Pedagogia de Deus 40100 Deus age na história 40200 Educação como princípio e ação do cristão 40300 Imitação do Mestre 40400 Educação e vida religiosa 40500 Papel da Igreja no passado 40600 Educação e assistencialismo 40700 Capital e escolas cristãs Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 98 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 99 3 - BETTO - EDUCADOR CRISTÃO MILITANTE Um Deus que age na história, deixando o exemplo; um homem que executa o plano de Deus, transferindo ao restante da humanidade o exemplo do Mestre. Podemos resumir desta forma a proposta pedagógica de Frei Betto. Como todo resumo, este, que apresento, corre o risco de empobrecer o pensamento que lhe serve de matriz. Advirto, portanto, para o seu caráter: simples ponto de partida de uma aventura maior; de resgate de idéias educacionais dispersas ao longo de vários textos escritos por Frei Betto sem a intenção de falar de Educação. O ponto de partida: há, em Frei Betto, uma pedagogia de Deus. Um Deus que exige dos seus fiéis que o imitem, portanto, cabe ao cristão agir como fermento na massa, copiando a pedagogia de Deus para que todo ser humano seja capaz de perceber os desígnios do Criador, o plano de Deus. A educação é, para o cristão, princípio e ação. Em Frei Betto o cristão é um educador. A imitação de Cristo indica o caminho da pobreza, da humildade, do sofrimento entendido como entrega pessoal a uma vida de luta para melhorar a situação do pobre, retirá-lo do sofrimento desnecessário e provocado pela ganância de alguns homens - os burgueses. Ser pobre, sofrer pelo Cristo, não tem em Betto um sentido piegas. Aliás, ele alerta para os perigos da religião enquanto alienação (Frei Betto, 1978, p. 128130). Se não existisse burguesia, se uns não se colocassem em superioridade sobre outros, o sofrimento desnecessário desapareceria. Ocorre que a Igreja, que seria a forma coletiva da imitação de Cristo, desviou-se do caminho do Mestre, sentou-se demais à mesa dos ricos, lava os pés dos pobres apenas por ritual. Que desafio esta atitude, esta história, coloca aos cristãos? É o que Frei Betto tenta responder. Uma forma privilegiada de resposta é a dedicação à vida religiosa, embora não apareça em Betto qualquer concessão aos não religiosos. O cristão não religioso não é cristão de meio-expediente, apenas o religioso o é de forma especial. Aqui, de novo, é preciso distinguir o sentido dos termos: Frei Betto defende uma vida religiosa dinâmica, que mude conforme a geografia e caminhe com a história. Seu ideal é um mundo onde todos serão religiosos e todos serão seres comuns. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 100 Nada mais de claustros e de fobias. O ideal, ele o diz, não é o real hoje. É Utopia. Não haverá necessidade de votos, a própria exigência da vida comunitária e do trabalho fará com que assim seja. Isso contribuirá para a revalorização do sacramento do engajamento cristão, o Crisma. Eliminada a estratificação social, dentro da Igreja perderá o sentido tudo aquilo que se assemelha a uma casta ou classe. Será então o fim da instituição religiosa na Igreja. Haverá tão somente os cristãos reunidos em volta do seu bispo. Toda a comunidade cristã em nada diferirá do resto da comunidade humana, senão no testemunho da ressurreição do Senhor. Viverá e trabalhará com os demais homens, sem que nada os separe, exceto a consciência de servir pelo nome de Jesus. A Igreja existirá no seio do mundo e o mundo será consagrado pela presença da Igreja (Frei Beno, op.cit.,p.174). É preciso, então, uma fase de transição. Começar a tirar a Igreja dos palácios, fazê-la freqüentar as prisões, evangelizar os prostíbulos, tirar os religiosos dos conventos, celebrar na pequena comunidade, fugir dos rituais estandardizados da conveniência. Se cabe ao cristão viabilizar a Pedagogia de Deus, para Betto o melhor caminho não é a propriedade de colégios, embora a profissão de professor lhe pareça adequada para realização do sacramento da educação. Educação que tem sido assistencialista - mata a fome do pobre cada dia, mas não lhe ensina o caminho da despensa. Uma edu¬cação que é preciso romper. Buscar uma nova educação, que liberte, que dê ao pobre a condição de saber porque. é pobre e o sentido de organização para a ruptura: A Igreja mantém uma infinidade de obras assistenciais: colégios, hospitais, creches... [...] E na medida em que essas obras (ou o gesto altruísta do rico da Sardenha) aliviarem o sofrimento de alguns pobres, estarão, ao mesmo tempo, colaborando para que surjam outros tantos Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 101 pobres. É um círculo vicioso que só pode ser perfurado pela raiz, ou seja, pela alteração das relações de produção existentes na sociedade: (Ibidem, p. 53). Como realizar uma educação libertadora, permanecendo proprietários de enormes estabelecimentos de educação que vivem o dilema de capitalizar-se ou sucumbir? Este o segundo enigma que Frei Betto faz a Esfinge pronunciar. A bibliografia especializada dirá que somos um país de capitalismo tardio, produto de colonização, com um forte patriarcalismo não apenas econômico, mas cultural e político; de tradição religiosa e educacional jesuítica, tomista e' bacharelesca (Alencar; 1985; Campos; 1968; Dowbor, 1982; Faoro, 1984; Fernandes, 1981;.Giles, 1987). As palavras de Frei Betto parecem soar de um outro mundo, um mundo de escândalo. Beto percebe-o e é pedagogo com os pedagogos. Explica, a cada carta, a sua posição. Mostra que o Papa está de acordo com ela; que os superiores da sua Ordem também; que o arcebispo da sua jurisdição o apóia e o visita. Betto pratica a Pedagogia de Deus, primeiro, com os de casa. Frei Betto opina sobre a educação das crianças da sua família e em geral. Prega a educação na fé, a qual se fará mais pelo exemplo e pela palavra que pelo ritual. O sacramento deve ser vivido e não instrumentalizado. Primeira comunhão? Só se a- criança pedir. Preparar para viver no mundo, não ter medo das circunstâncias que a vida oferece. Educar nos valores da solidariedade que vê no outro a figura de Cristo e é capaz de despir-se, até do essencial, para que uma situação de injustiça não permaneça. Educar é sugerir o olhar da criança em direção ao futuro e não trazer-lhe o passado como peso morto. A história segue, mas, como se ensina a História oficial!? Frei Betto sugere aos pais, aos irmãos, aos religiosos, um know how de Educação. Vai além, escreve às crianças e lhes conta pequenas histórias. Histórias moralistas? Talvez, mas, com competência. Historinhas nas quais a mensagem transparece pela via de um estilo bem cuidado e de uma linguagem simples, sem ser vulgar nem redutor de conteúdos. Suas histórias infantis são de uma riqueza simbólica, no âmbito da mitologia cristã e dos ideais e valores da humanidade. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 102 No dia em que você nasceu, houve uma reunião no céu. O Senhor convocou os anjos para escolher aquele que deveria acompanhá-lo ao longo da vida. Os anjos compareceram em grande número. Embora quase "todos já tivessem uma ocupação definida, nada impedia que qualquer um fosse substituído em sua tarefa, desde que houvesse uma justificativa convincente. Ultimamente, os caos. de substituição eram freqüentes, pois certas tarefas pareciam demasiado difíceis para os fiéis servidores de Deus. O Senhor anunciou que uma menina nascera cercada de amor e que, a ela, seriam concedidos muitos dons - restava destacar um anjo que cultivasse, com carinho, toda a beleza e a bondade que haviam sido depositadas no coração da menina [...]. O Senhor consultou suas anotações e verificou que não havia mais nenhum anjo escrito como candidato. Diante dos dois primeiros, os outros haviam retirado seus nomes. Ia dar por encerrada a sessão, quando um anjo muito popular levantou o braço e pediu a palavra. Era o Anjo do Amor: - Pela longa experiência que trago através dos séculos, posso assegurar que é impossível haver paz e liberdade, se não houver amor. Os problemas do mundo só encontrarão solução quando a paz, a liberdade e o amor estiverem unidos. É preciso que trabalhemos juntos. Ofereço-me também para levar amor à Juliana. No dia em que você nasceu, Juliana, os três anjos, como os reis magos, apresentaram-se em sua casa. No céu, o Senhor acendeu mais uma estrela (Ibidem, p.153-154). Betto, quando trata da Infância, parece estar tratando da sua própria infância: relata os valores burgueses adquiridos por uma formação infantil que ele valoriza, mas redimensiona. E é nesta nova dimensão que ele estabelece a sua proposta educacional para as novas gerações. Proposta educacional que não é diferente daquela da Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 103 sociedade em geral. Em Frei Betto, não há dicotomia entre fé e política, assim como a construção do mundo ideal da criança tem de guardar coerência com o que se espera dela na vida adulta. Betto reconhece que existem não-cristãos e que eles têm o direito de existir, mas acredita que o mundo do cristão não tem de ser diferente do mundo de todos os homens. O Reino de Deus é aqui, se constrói aqui, na comunhão de cristãos e não-cristãos. O diálogo cristãomarxista adquire um estatuto de centralidade no seu discurso acerca da construção do Reino. Esta centralidade foi percebida, anos depois, no livro Fidel e a Religião (Frei Betto, 1985), embora já perpassasse o conjunto das cartas ora sob análise. Para Frei Betto, o Reino de Deus não terá Estado; será de sociedade civil emergida do contingenciamento histórico da luta de classes e da herança cultural do egoísmo: Nada disso, porém, interessa à minha vocação cristã. A história não se faz de aparências, mas de opções. É preciso escolher e é impossível agradar aos dois lados.[..] Sei o quanto é difícil viver de futuro. Os que vivem do passado e querem a todo custo preservar o presente (como se isso fosse possível), tudo fazem para nos destruir. [...] Há que ser coerente e corajoso, engajado na linha do futuro, pois é lá que se situam as promessas de Deus. (Ibidem, p. 41). Essa caminhada é a atitude do cristão. Jesus veio anunciar-nos o Reino de justiça e paz. Cada um participa, à sua maneira, conforme os talentos recebidos, da busca e da edificação desse Reino. Ele não se edificará fora da história: ele é o próprio desfecho final da história. Por isso, a nossa caminhada-para-o-Reino só pode ocorrer dentro dos acontecimentos históricos. Evitá-los é cair no fatalismo e negar a promessa divina. É anular o anúncio da ressurreição. (Ibidem, p. 41). Inserido na história, Cristo a transcende. E é nesse ponto que a liberdade do cristão se completa. A encarnação é seguida da ressurreição. Por isso, falamos aos nossos companheiros que, enquanto houver um homem oprimido, seremos sempre Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 104 subversivos. Nosso compromisso não é com esta forma de governo, com aquelas relações de trabalho ou com tal ideologia. É com a pessoa humana, cuja dignidade conhecemos na medida mesmo em que nós ela é negada. (Ibidem, p. 43). A pedagogia só tem sentido se preparar os seres humanos para a construção de uma humanidade feliz. Em que condições a sociedade civil opressa e opressiva se educa para humanidade feliz, liberta, amorosa? Em Frei Betto, há na pedagogia da liberdade um lugar ontológico para a solidariedade, a qual vem da vida e da reflexão sobre a prática na comunidade, no trabalho em equipe. Não são comunidades desligadas do mundo, estas não existem, senão no idealismo de alguns. Por isto, são atingidas pela força do cinema, pela dramaticidade do teatro, etc. Viajar, conhecer outros povos, outras culturas, intercambiar, eis um meio seguro de conhecer pessoas humanas, recolher elementos para o conhecimento da pessoa humana. O estudo tem de ser feito na vida e também nos livros. Quanto a estes, não. se deve abandoná-los sob o pretexto da falta de condições adequadas para lê-los e refletir. Contudo, é preciso buscar as melhores condições materiais para que a aprendizagem se dê com maior produtividade. Há nas cartas bettianas uma visão de vivência religiosa inculturada. Estamos na América Latina, locus de uma dominação colonial que a Igreja ajudou a perpetrar. É preciso remar na direção oposta, contrariar esse eurocentrismo (Gonzáles e Velasco, 1992): Às vezes, eu penso que a Igreja tem uma enorme capacidade de perdoar e absolver as situações históricas, mas uma flagrante incapacidade de promovê-las, de incentivá-las ou de evitá-las quando vêm estigmatizadas pelo mal (Frei Betto, 1978, p. 138). O juridicismo penetrou de tal forma na Igreja latina, que as normas passaram a determinar a vida das pessoas e não o contrário, como deve ser. [...] De fato, tanto o Estado quanto a Igreja tiveram, na América Latina, forte influência do Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 105 código civil de Napoleão e das normas emanadas das instituições européias. Isto por um motivo muito simples: nós fomos colonizados pelos europeus e não pudemos repetir a experiência dos gregos que impuseram sua cultura aos romanos que os dominaram. Os europeus não nos trouxeram “a" civilização, mas de fato nos impuseram a sua civilização (Ibidem, p. 154-155). A Igreja deve definitivamente abandonar os privilégios que ela recebeu da sociedade. Tornarse uma Igreja pobre uma Igreja dos pobres e, sobretudo, uma Igreja de pobres. Os ricos que quiserem ingressar nela, deverão necessariamente passar pelo fundo da agulha (Ibidem, p. 161). Frei Betto escreve da prisão. Por que escreve? Certamente por necessidade sentimental e pela convicção religiosa de que a família é o núcleo formador e a âncora do espírito. Mas, suas cartas vão além. São o verbo do profeta. Pretendem educar, têm destinação pedagógica. Ao recomendar a leitura de São Paulo (Ibidem, p. 171), imita o Mestre imitando o servo do Mestre. As cartas de Frei Betto são cartas pedagógicas, instrumentos da Pedagogia de Deus. Consciência pedagógica que recupera da Igreja dos anos 70 a semente da Ação Católica dos anos 60: Mas não é sobre culinária que eu quero lhe falar hoje. Como as notícias da prisão resultam de nossas experiências e reflexões, devo dizer que hoje pensei muito nesse meio ano de cadeia já vivido (Ibidem, p. 62). Fiquei muito feliz em receber a sua carta. Você está escrevendo muito bem e com uma letra ótima. O negócio é esse: faça sempre ditado e cópia, Você conhece a história 'do rei que fez um concurso para saber quem era capaz de descrever com menos letras possíveis as maravilhas do universo? (Ibidem, p. 85). Nada como ter fé no Espírito Santo. Muito boa a nova diretoria da CNBB. Acabou-se o primado do cardinalato. A direção deixou de ser um cargo de Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 106 autoridade, para ser uma tarefa executiva. Creio que a década de 70 será decisiva para a Igreja no Brasil. A impressão que tenho é que, só agora, começamos a colher os frutos das sementes lançadas pela Ação Católica, da década de 60. Mas ainda são frutos tenros, tímidos, de uma árvore que, por vezes, balança ao sabor dos ventos (Ibidem, p. 131). Betto reflete sobre a indagação que tantos já fizeram, que a imprensa e os parlamentos têm de debater com freqüência - a prisão recupera e educa? Não, é o seu parecer, a prisão se destina a destruir o ser humano, isolar e definhar a sua personalidade. Mas, a prisão pode ser mais um momento de auto-educação, se o preso já traz em si o germe da liberdade e pretende desenvolvê-lo. Seus princípios se fortalecerão, seus valores serão checados. Irá para o lixo o que não corresponder à realidade. o prisioneiro é um ser humano e deve lutar pela sua dignidade. Como contribuição aos demais, realizar ações educativas (cursos, debates) que visem a elevar o nível intelectual dos presos, evitada a manutenção de situações de dominação por monopólio do saber. Uma vez estive a 5300 metros de altitude. Não vi neve, tudo era gelo puro. Faltaram-me oxigênio e agasalhos próprios. Inexperiente, tomei uma dose de uísque puro. Meu coração começou a bater tão forte, que tive a impressão de que ele ia saltar pela boca. Desci dos Andes, junto ao lago Titicaca, na carroceria de uma velha camioneta saculejante direto para uma bomba de oxigênio. Hoje, vivo a experiência inversa. Aqui há oxigênio, mas nenhuma ventilação. A cela possui duas grades de ferro cobertas por um alambrado. Ao meio da porta maciça, há uma abertura gradeada. O resto é o oxigênio que trazemos em nós, uma força que nos coloca acima dessa situação de opressão e permite-nos enfrentála com coragem. Muitas pessoas que nos visitam se perguntam se seriam capazes de suportar a prisão. De fato, Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 107 temos visto aqui dentro casos de profunda depressão e até mesmo de loucura. Durante a madrugada, o presídio é o retrato do inferno. Gritos, batuques, cantos desesperados ecoam pelo pavilhão como explosões de corações amargurados. Esta é a manifestação habitual dos presos comuns, com quem estamos misturados. Os presos políticos têm mais resistência. É uma enorme solidariedade. Ninguém está só entre nós (Ibidem, p. 125-126). Fugir do ócio, da elocubração sobre o dia da saída; construir sua liberdade interior; autodisciplinar-se pela prática do Yoga, de ginásticas, de esportes; trabalhar para passar o tempo, para manter o próprio sustento, para sustentar famílias de companheiros presos; fazer o próprio alimento, lavar o chão, a própria louça; participar dos trabalhos coletivos; ter vida coletiva; estudar, debater com os companheiros; combinar a vida coletiva com momentos de solidão, para refletir e meditar; se em isolamento prolongado, conversar alto, planejar algo prático e realizá-lo mentalmente, para fugir da loucura e da inação; saber negociar com a direção dos presídios, mas nunca aceitar qualquer imposição que lhe venha retirar a dignidade de pessoa humana. Certamente, na visão de Frei Betto, o prisioneiro não hiberna nem cai num limbo: irá vivo para o Inferno ou constituirá em meio ao sofrimento o seu Paraíso. Frei Betto, o das cartas da prisão, não é um cristão e educador e militante. Ele é um cristão educador militante. Acompanhá-lo em sua jornada de autoconstrução pelos presídios da ditadura militar é uma bela aventura. Pode-se discordar dele, mas é um excelente companheiro de viagem: Contudo, o mais dramático, desafiador e curioso, não é que os cristãos vivam fora do clima da Páscoa, mas sim que muitos não-cristãos vivam dentro desse clima, mesmo sem crerem em qualquer perspectiva, além do momento de consumarem suas vidas, num sacrifício a que estão dispostos. Sem dúvida, essas pessoas não agem fora da influência da graça. Cada dia cresce o Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 Humberto Cunha 108 número delas. Vivem a Palavra de Deus, sem nela crer. Meditando nessa relação cruz-ressurreição, procuramos viver aqui a nossa Semana Santa, e nos preparamos para a Páscoa. A prisão dá um sentido todo especial à nossa vida litúrgica. Coloca-nos em contato direto com a paixão de Cristo, pois nos faz participantes dela. E leva-nos a acreditar ainda mais na realidade da Páscoa (Ibidem, 1978, p. 142). BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ALENCAR, Francisco. História da sociedade brasileira: 2° grau. 2 ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo e neotomismo no Brasil. São Paulo: Grijalbo: Edusp, 1968. CORBISIER, Roland. Filosofia e crítica radical. .São Paulo: Duas Cidades. 1976. DOWBOR. Ladislas. A Formação do capitalismo dependente no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 6 ed. Porto Alegre: Globo, 1984. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. FREI BETTO. Das catacumbas: cartas da prisão, 1969-1971. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. _________ Fidel e a religião. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. _________ Fome de pão e de beleza. São Paulo: Siciliano, 1986. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 A pedagogia de Deus: cristianismo militante... 109 GILES, Thomas Ransom. História da educação. São Paulo: EPU, 1987. GONZALES, Feman E., VELASCO, Maria Victoria Gregory de. Hispanización y evangelización en el nuevo mundo: Evangelización o conquista espiritual? In: Revi~ta Universidad de Medellín, n.58. Medellín: Universidad de Medellín, 1992. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1978. KREUTZ, Lúcio. A concepção tradicional e crítica em filosofia da educação. Viçosa: UFV, 1988. MANA CORDA. Mario A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. VITA, Luis Washington. Panorama da filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1969. Ver a educação, Belém, v.4, n.2, p.97-109, jul./dez., 1998 ORIENTAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS Os textos encaminhados para publicação1na Revista Ver a Educação serão submetidos a uma preparação editorial, podendo ser reapresentados aos autores para que os adaptem às seguintes orientações: 1 - o texto deve: a) versar sobre temas educacionais ou áreas afins; b) enquadrar-se nas seguintes categorias: artigos originais ou de revisão, notas técnicas, resenhas críticas, resumos de dissertações e de teses, comunicações, palestras; c) conter até vinte (20) páginas digitadas em espaço 1,5 e tipologia TNR; cópia impressa em papel A4 e disquete gravado no programa Word 7.0; d) conter nome da instituição, Centro ou departamento, título do trabalho; identificação do autor: nome, dados curriculares, endereço e telefone. 2 - As figuras: desenhos, gráficos, mapas, etc., com respectiva legenda, devem ser apresentadas em original ou em papel vegetal, indicando-se no texto o lugar onde deverão ser incluídas. 3 - Para as fotografias deve ser observado, no mínimo, o tamanho 6x9 4 - As citações bibliográficas - tanto no corpo do texto quanto em lista no final do texto - devem obedecer à NBR 6023 da ABNT. 5 - O texto deve ser precedido de um resumo (em português e versão em língua estrangeira), obedecendo ao máximo de 150 palavras para o relato de pesquisa e de 100 para os demais tipos de texto. Consultar a NB-88 - jul.l87 para a elaboração de resumos. OBS.: a) Após contato com os autores e dirimidas as dúvidas, considerar-se-á fechada a matéria não se admitindo acréscimos que não constem dos originais. b) Os textos devem ser encaminhados para: Universidade Federal do Pará Centro de Educação - Campos Universitário - Setor Profissional - CEP 66075-110 – Belém/PA. COMISSÃO EDITORIAL DO CENTRO DE EDUCAÇÃO Ver a educação, Belém, v.4, n.1, p.105-119, jan./jun., 1998