CONTA-ME
COMO FOI
1ª Série
Episódio 001
“O Novo Fugitivo”
Março 1968
Adaptação e Guião:
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CENA 001/00. PÓS GENÉRICO / IMAGENS DE ARQUIVO
VIDEO: Sequência rápida das seguintes imagens de arquivo dos anos 60:
Pessoas na rua; eléctrico; polícia sinaleiro; Salazar; berçário de maternidade;
aglomerado de estudantes, soldados a embarcar para o Ultramar.
FUNDE PARA –
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CENA 001/01. EXT. – RUA LOPES / VARANDA SALA – NOITE. DIA 01
Carlos
Movimento na Rua Lopes. Pessoas que passam. Dois carros e uma mota parados. A
mota do Lugar da Fruta sai. Movimento de Grua até CARLOS que está á janela por
detrás dos vidros da sala e, com um ar pensativo, observa a luz azulada de uma
televisão que vem de uma casa em frente à sua.
AUDIO: Voz do narrador
(Carlos em Adulto recorda a sua infância 38 anos antes)
NARRADOR (OFF)
Em 1968 eu tinha oito anos. Às vezes as pessoas
esquecem que o ano de 68 foi o princípio da
mudança mas foi… pelo menos para mim.
A verdade é que em 1968 eu nem reparava nas
coisas importantes que mudavam à minha volta…
Tinha outras preocupações. Preocupava-me, por
exemplo, com o destino do Fugitivo e preocupavame a ideia de que alguém pudesse passar a vida
inteira a fugir quando toda a gente sabia que
estava inocente.
INSERT VIDEO / P.V. CARLOS:
Imagem de DOIS VIZINHOS de CARLOS sentados na sua sala a ver o Genérico de
“O Fugitivo” na Televisão.
CORTA PARA –
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CENA 001/001 A. INT. – CASA LOPES / VARANDA SALA – NOITE. DIA 01
Carlos, António, Margarida, Hermínia, Toni
Travelling desde a cara de Carlos até ao interior da casa. Estamos numa sala
comum de uma casa modesta onde os vestígios de um tempo antigo (ex. a rádio
deve ser um aparelho grande e antigo que trouxeram da província e que está
pousado num móvel da sala) se misturam com alguns pormenores de modernidade
(por exemplo, um candeeiro dos anos 60).
NARRADOR (OFF)
Também me preocupava a televisão que o meu
pai tinha acabado de comprar e que não
sabíamos se chegaria a tempo de vermos o
festival da canção.
CORTA PARA –
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CENA 001/01B. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 01
Carlos, António, Margarida, Hermínia, Tóni
ANTÓNIO, com uma expressão séria e concentrada, acaba de ligar o rádio e sentase no cadeirão junto ao sofá a folhear um jornal.
INSERT AUDIO:
Na rádio ouve-se, baixo, uma música:
“Sol de Inverno”, de Nóbrega e Sousa e Jerónimo Bragança, por Simone de Oliveira
ANTÓNIO acende um cigarro e deixa-se ficar com ar pensativo a fumar, em mangas
de camisa e chinelos enquanto folheia o primeiro número do jornal “A Capital. “
NARRADOR (OFF)
O que preocupava o meu pai era que houvesse
sempre trabalho e saúde…
MARGARIDA (sempre agradável e atraente) entra na sala com uma pilha de 6
pratos e uma toalha. Põe a toalha na mesa e depois distribui os pratos enquanto o
Narrador fala dela, depois sai da sala. (voltará a entrar várias vezes para pôr a
mesa)
NARRADOR (OFF)
… E o que preocupava a minha mãe era que
houvesse sempre saúde e trabalho.
Quanto a isso, a minha avó tomava o partido dos
dois…
HERMÍNIA (avó de Carlos, de olhar vivo e doce) está sentada no sofá e faz crochet
sem olhar para ninguém. MARGARIDA sai da sala.
NARRADOR (OFF)
Era uma mulher de poucas palavras e não dava
ponto sem nó. Na altura…
MARGARIDA entra com copos e talheres que dispõe na mesa. Depois volta a sair.
NARRADOR (OFF)
... Eu não sabia o que isso queria dizer mas sabia
que a minha avó tinha deixado a aldeia para viver
connosco em Lisboa onde podia passar os dias a
ajudar a minha mãe e passar as noites a dar
pontos intermináveis de crochet.
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ANTÓNIO pousa o jornal sobre os joelhos e ouve o noticiário.
MARGARIDA acaba de pôr a mesa (água, pão e vinho) e sai. Entra TÓNI (cabelo
comprido para a época, e um colarinho largo e aberto). TÓNI vem a cantar Mrs.
Robinson de Paul Simon e Art Garfunkel.
TÓNI (cantando)
Here is to you Mrs. Robinson
Jesus loves you more than you will know,
Oh, Oh, Oh
God bless you, please Mrs…
ANTÓNIO lança-lhe um olhar fulminante, dando-lhe a entender que quer ouvir o
noticiário. TÓNI encolhe os ombros e cala-se. Senta-se numa ponta do sofá e ajeita
a gola da camisa.
NARRADOR (OFF)
Voltando aos interesses de cada um, o meu irmão
Tóni preocupava-se com três coisas: a música, as
raparigas e a acne juvenil.
Nesse momento MARGARIDA entra com uma panela de sopa a fumegar.
MARGARIDA
A comida está na mesa.
CARLOS continua a olhar pela janela e a ver a televisão dos vizinhos, enquanto a
família se senta à mesa.
MARGARIDA (para CARLOS)
Carlos!... Carlos!... Carlos, anda para a mesa.
CARLOS senta-se à mesa e observa tudo à sua volta.
NARRADOR (OFF)
Quando não tínhamos televisão conversávamos à
mesa… ou melhor, o meu pai falava e nós
ouvíamos.
ANTÓNIO
E a miúda? Não vem para a mesa?
MARGARIDA
Deve estar a chegar mas nós vamos comendo
que a sopa fria não tem graça nenhuma.
MARGARIDA serve a sopa a todos enquanto ao fundo ouvimos o noticiário na rádio.
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ANTÓNIO (mal humorado)
Eu gostava de saber porque é que nunca nos
sentamos juntos à mesa. Será assim tão difícil
chegar a casa a horas decentes?
MARGARIDA (repreendendo Tóni)
Toni, tira os cotovelos de cima da mesa,
ANTÓNIO (resmunga em tom de lei)
Muito bem: quem não está, não janta!
Ninguém responde mas ficam TODOS com um ar enfiado.
CORTA PARA –
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CENA 001/02. INT. – PRÉDIO LOPES / ESCADA – NOITE. DIA 01
Isabel e Rui
ISABEL, vestida de uma forma moderna na época e com a saia acima do joelho, dá
um último beijo a RUI e depois empurra-o para fora do prédio. Ajeita o cabelo e sobe
as escadas a correr. Deixa cair as chaves e pára a meio das escadas para as
apanhar. Apanha-as, olha para o relógio e continua a correr escada acima.
Enquanto sobe as escadas começamos a ouvir o narrador.
NARRADOR (OFF)
A “miúda” era a minha irmã mais velha, a Isabel…
Passava a vida a despedir-se do namorado ao
fundo das escadas e eu nunca percebi…
CORTA PARA –
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CENA 001/03. INT. - PRÉDIO LOPES / PATAMAR – NOITE. DIA 01
Isabel
Antes de entrar em casa, ISABEL pára no patamar para puxar a saia para baixo
(disfarçando o facto de ter a saia acima dos joelhos). Dá um jeito ao cabelo e só
depois entra em casa.
NARRADOR (continuação)
… Porque é que se despediam tanto se afinal de
contas se viam todos os dias.
CORTA PARA –
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CENA 001/04. INT. - CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 01
Carlos, António, Margarida, Hermínia, Tóni e Isabel
A FAMÍLIA continua a jantar. Estão já no prato (guisado)
ISABEL entra na sala um pouco afogueada e senta-se.
ISABEL
Olá! Atrasei-me um bocadinho, desculpem…
ANTÓNIO
Não peças desculpa, o que seria de estranhar era
se chegasses a horas.
ISABEL não responde e põe o guardanapo sobre os joelhos.
MARGARIDA vai para servir ISABEL mas ANTÓNIO impede-a
ANTÓNIO (impedindo-a)
Ah…
(irónico e irritado)
O que é que aconteceu à tua saia? Voltou a
encolher?
MARGARIDA intervém para evitar conflitos
MARGARIDA
É a moda, António.
ANTÓNIO (irritado)
“É a moda, António…”
HERMÍNIA fala, sem levantar os olhos do prato. ISABEL serve-se.
HERMÍNIA
Há modas e modos.
ISABEL
Ai vó!... Não comece, por favor!
MARGARIDA decide mudar de assunto para aliviar o ambiente.
MARGARIDA
Então e a televisão? Quando é que vem o
aparelho novo?
ANTÓNIO
Daqui a dois ou três dias, não tinham nenhuma
para entrega imediata…
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CARLOS
Como é a nossa televisão, pai? É grande?
ISABEL (OFF)
(imitando o irmão)
É grande?
ANTÓNIO
É, é grande e linda. Tem um ecrã todo cinzento,
Abaulada (faz o gesto) …. Assim para o
abaulado…
Depois tem os botões todos à direita… e é muito
pesada! Era a mais moderna que tinham na loja…
até tem UHF.
ISABEL (entusiasmada)
A sério?
ANTÓNIO
Pois claro, não tarda nada vem aí o segundo
canal… Eu não ia comprar um aparelho coxo.
CARLOS
O que é um aparelho coxo, pai?
TODOS riem.
CARLOS encolhe os ombros.
ANTÓNIO
Sempre quero é ver quando é que colocam a
antena.
HERMÍNIA (ligeiramente rezingona)
Vocês assim não se governam: uma televisão,
uma antena… deve ter custado um dinheirão.
MARGARIDA
Ó minha mãe!
HERMÍNIA
O que é que eu disse? Essas coisas são caras!
Onde é que vocês vão buscar o dinheiro?
MARGARIDA
Vamos pagar a prestações.
HERMÍNIA
Eu não digo que vocês não se sabem governar?!
As pessoas honestas só compram as coisas
quando têm dinheiro no bolso.
MARGARIDA
Mas a vida não está fácil, mãe.
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HERMÍNIA
Por isso mesmo: sem nos metermos em luxos é
chapa ganha, chapa gasta… e vocês ainda se
vão
pôr
a
comprar
uma
televisão?!
Francamente…
Ao ouvir a avó ISABEL e TÓNI entreolham-se cúmplices e sorriem.
ANTÓNIO faz-lhes sinal para que não contrariem a avó porque é tempo perdido.
TÓNI tem um ataque de riso mas contem-se e ri em silêncio de forma descontrolada.
ANTÓNIO (irritado)
O que foi, Tóni? Queres repetir a graça para nos
rirmos todos?
ANTÓNIO
Estás a rir-te de quê, Toni? Não queres partilhar
connosco para a gente se rir também?
TÓNI faz sinal de que não quer contar nada e continua a rir para dentro.
ANTÓNIO
Pára de rir, homem. Pareces um gaiato.
Voltas a rir-te assim levas uma lamparina, dás um
peão.
De repente TÓNI levanta-se e vai ver o jornal.
ANTÓNIO
Estás a ver o exemplo que estás a dar ao teu
irmão, hã? Estás a rir de quê? De mim, da tua
mãe, da tua avó?...
Fazes o favor, voltas a sentar-te?
TÓNI
Mas eu quero ler o jornal, pai.
ANTÓNIO
Lês quando acabares de comer!
TÓNI (pousa o jornal no sofá e senta-se)
É que hoje houve uma manifestação?
ANTÓNIO (desagradado)
Mau!
TÓNI
E toda a gente tinha aquele jornal.
ANTÓNIO (alarmado)
Estás a falar de quê?
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MARGARIDA (em tom de drama)
Ó filho, o teu pai já não te disse para não te
meteres em política.
TÓNI (para ANTÓNIO)
Eu não me meti em política. Só disse que hoje
houve uma manifestação Aquilo estava tudo em
alvoroço ali ao pé da embaixada na Duque de
Loulé… E toda a gente tinha aquele jornal…
MARGARIDA (muito assustada)
Qual embaixada?
ANTÓNIO
A Embaixada da América, Guida. A Embaixada da
América é na Duque de Loulé.
TÓNI
É a Embaixada dos Estados Unidos.
ANTÓNIO
É a mesma coisa, rapaz…
HERMÍNIA (levando a mão ao peito)
Ó filho! Tu não te metas em trabalhos senão
ainda te mandam para Angola.
MARGARIDA (alarmada)
Mas ele ia só a passar, não ias, Tóni?
TÓNI
Ia a passar. Quem estava de fora não sabia se eu
estava a passar ou estava no meio da confusão…
Aquilo era tanta gente…
HERMÍNIA
E o que é que eles queriam, filho?
TÓNI
Sei lá! Estavam a gritar contra os americanos e
contra a guerra do Vietname.
CARLOS
O que é o Vietname?
ANTÓNIO (decidido)
Pronto! Acabou a conversa! Não te aconteceu
nada, pois não?
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Ouvimos novamente o NARRADOR
NARRADOR (OFF)
Esta era a minha família em 1968. Quando me
lembro desse tempo até me parece que tudo se
passou com outras pessoas e noutro país. E não
se passaram muitos anos mas mudámos todos
tanto em tão pouco tempo que a minha própria
família se tornou irreconhecível.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO.
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CENA 001/05. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO – TARDE. DIA 02
Carlos, Luís, D. Rosa, Marinho e 2 Colegas Carlos
Em cima do motor do camião abandonado estão duas caixas de madeira com uma
risca azul (veremos mais tarde que são para um peditório da igreja a favor das
vítimas das cheias de 67). Sentado ao volante do camião está CARLOS e ao seu
lado está LUÍS (muito magrinho e com óculos). Os dois estão muito concentrados e
fazem tanta força com os punhos fechados e os braços dobrados que os músculos
da cara quase os obrigam a fechar os olhos. Estão vermelhos de tanta força que
fazem.
NARRADOR (OFF)
O Luís estava muitas vezes doente e era míope
mas era também o meu melhor amigo. Alinhava
sempre comigo e éramos os mais traquinas da
aula. Nesse ano de 1968 descobrimos um truque
que nos ia transformar em super-homens. Era
preciso fazer crescer os músculos o que nos
parecia fácil e se tudo corresse bem, a partir
daquele dia ninguém se atreveria a contrariar-nos.
Os DOIS continuam a fazer força com os punhos fechados e os braços dobrados.
LUÍS é o primeiro a desistir e a respirar fundo.
CARLOS respira também e apalpa um dos braços.
CARLOS
Já cresceu. Olha!
LUÍS apalpa o músculo do braço de CARLOS
LUÍS
Não noto nada. A mim parece-me que está igual.
CARLOS
É que isto vai muito devagarinho. Só daqui a duas
semanas é que se nota. Não te lembras do que
estava escrito na revista?
LUÍS
O quê?
CARLOS
Dizia “o volume dos músculos desenvolve-se
progressivamente”…
LUÍS
Eu não sei o que quer dizer progressivamente.
CARLOS
Quer dizer devagarinho…
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Nesse momento LUÍS olha pela janela: vai a passar uma senhora com uma alcofa
de palha onde leva compras de mercearia. Da alcofa saem folhas de couve.
LUÍS (para CARLOS)
Vai ali a dona Rosa, achas que ela dá para o
peditório?
CARLOS
Não! Essa é muito forreta nem sequer dá nada no
pão por deus!
Nesse momento MARINHO sobe para o camião com um ar muito chateado.
CARLOS
O que foi? Estás cá com uma cara!
MARINHO (chateado)
O padre diz que eu não posso fazer o peditório.
CARLOS
Porquê?
MARINHO
Diz que as caixas estão todas ocupadas… mas
eu não acredito, estavam quatro em cima da
mesa da sacristia.
LUÍS
Se calhar são dele.
MARINHO
Para que é que ele quer quatro caixas se só tem
duas mãos? E depois de me dizer que não me
dava nenhuma caixa começou a dizer coisas
sobre a minha mãe.
CARLOS
O que é que ele disse?
MARINHO
Disse que nunca tinha visto a minha mãe na
missa e que ela se calhar não temia a Deus.
LUÍS
O que é que isso quer dizer?
MARINHO
Sei lá! Que culpa é que eu tenho se a minha mãe
não gosta de ir á missa?
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Indignado, MARINHO está quase a chorar e dá um pontapé na porta do camião.
MARINHO
Pior para ele. Se não posso pedir para as cheias
também não peço para as obras da igreja. Ele vai
ver!
LUÍS
Não fiques triste, podes vir connosco. Eu até te
empresto a minha caixa.
MARINHO
Não quero. Quero uma caixa só para mim, pronto!
MARINHO não se contém e começa a chorar disfarçadamente.
Os outros não sabem o que fazer para o consolar.
CARLOS tem uma ideia para o animar.
CARLOS
Queres aprender a fazer músculos?
(arregaça a camisa para lhe mostrar o músculo do
braço) Olha! Olha! O meu já está muito maior.
MARINHO (amuado)
Não me interessa!
MARINHO tira cromos do bolso e começa a vê-los de costas para os amigos
enquanto vai limpando as lágrimas.
MARINHO (entre dentes, pensando no padre)
Estúpido! Ele vai ver!
CARLOS
Tens p’rá troca?
MARINHO
Tenho.
CARLOS tira um molho de cromos do bolso.
CARLOS
Falta-me o Águas. Tens?
MARINHO
Tenho dois mas não sei se troco porque é dos
mais difíceis.
CARLOS
Meu amigo, dou-te um Coluna.
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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARINHO (incrédulo)
Um Coluna?... Está bem.
Procuram os respectivos cromos nos seus molhos e efectuam a troca.
MARINHO
Adeus! Vou para casa brincar com os meus
carrinhos.
MARINHO desce do camião e afasta-se. CARLOS e LUÍS olham enquanto se
afasta. MARINHO dá um pontapé numa pedra, descarregando assim toda a sua
revolta perante a injustiça de não poder participar no peditório.
NARRADOR (OFF)
A tristeza que pairava sobre o Marinho devia-se
apenas ao facto de ser filho de mãe solteira. Essa
verdade simples alimentava no bairro os piores
pensamentos sobre a minha vizinha e as mais
duras injustiças sobre o meu amigo…
Havia quem olhasse a mãe dele de lado e se
afastasse ligeiramente, como se temesse o
contágio. Mas eu não tinha medo e ao tornar-me
amigo do MARINHO tornei-me amigo do melhor
jogador de caricas de todos os tempos.
LUÍS
O padre Antunes não lhe dá a caixa porque a mãe
dele é prostituta e as prostitutas não acreditam
em Deus.
CARLOS
Estás parvo! Tu já ouviste falar das “mulheres de
vida fácil”?
LUÍS
Não.
CARLOS
Bem me parecia. As “mulheres de vida fácil” é que
não acreditam em Deus são e a mãe do Marinho
não tem uma vida fácil.
LUÍS
Como é que sabes?
CARLOS
Porque sei. Não tem marido, tem de ir trabalhar
todos os dias e ainda tem de cozinhar e de lavar a
roupa …
Achas que isso é fácil?
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INSERT AUDIO:
Ouvimos aproximar-se o som de caixas de peditório cheias, a chocalhar.
Vemos DOIS COLEGAS de Carlos a passar e a abanar as suas duas caixas com
listas azuis para lhes fazer pirraça. CARLOS e LUÍS olham na sua direcção, fazemlhes caretas e depois entreolham-se desolados.
LUÍS
Devem ter para aí uns cinquenta escudos cada
um.
CARLOS
Não têm nada. Aquilo são caricas a fingir que são
moedas. Anda! Vamos.
Saem os dois do camião. Afastam-se abanando as suas caixas que só têm uma
moeda cada. Enquanto se afastam ouvimos o narrador.
NARRADOR (OFF)
A minha vontade naquele dia era dar uma tareia
àqueles rapazes e ficar-lhes com as moedas
todas. Só não o fiz porque o padre Antunes era
mais do que um simples padre… era um homem
que impunha respeito, um homem antigo… Era
tão antigo que eu até o imaginava a puxar as
orelhas ao menino Jesus.
FIM DE CENA –
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CENA 001/06. INT. – IGREJA /SACRISTIA – TARDE. DIA 02
Padre Antunes, Mestre-de-obras, Nono e Luísa
A Sacristia serve também de escritório do padre. Tem um móvel pesado onde
pendura os paramentos, uma pequena cristaleira onde guarda cálices, copos e uma
garrafa de vidro com vinho abafado. Há também uma pequena secretária onde o
Padre Antunes costuma sentar-se para receber as pessoas que o procuram.
O PADRE ANTUNES está sentado à secretária.
Observa um orçamento e discute com um mestre-de-obras que está sentado à sua
frente.
PADRE ANTUNES
Instalação sonora, 6.500 escudos. Isto não pode
ser, você quer-me cobrar seis contos e
quinhentos em meia-dúzia de fios?
MESTRE-DE-OBRAS
Ó Senhor Padre, O Senhor Padre sabe que são
muitos metros. E não são só os fios. É os
altifalantes, é as tomadas, é as bananas…
PADRE ANTUNES (interrompendo-o)
Bananas?
MESTRE-DE-OBRAS
Sim, bananas. São as peças que encaixam nos
altifalantes, sem bananas não se consegue
ampliar a voz.
PADRE ANTUNES
Não tarda nada cancelo os altifalantes… nem que
fique afónico.
MESTRE-DE-OBRAS
É, e depois dá a missa como? Com gestos…
O PADRE ANTUNES volta a olhar para o orçamento
PADRE ANTUNES (fingindo-se surpreendido)
De onde é que saíram estes 20 contos e
trezentos?
MESTRE-DE-OBRAS
(fazendo um gesto de quem já está farto da
regatice do padre)
O senhor padre sabe muito bem de onde é que
saíram esses 20 contos e trezentos…
É a
argamassa, a tinta, a colocação dos andaimes, a
mão-de-obra…. Olhe, as telhas… O Senhor
Padre sabe muito bem que o tecto não está em
condições… Ó Senhor Padre, eu estou a levar-lhe
praticamente o preço de custo…
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PADRE ANTUNES
Preço do custo?!
MESTRE-DE-OBRAS
Bom… Eu gosto que os meus clientes fiquem
satisfeitos: abato-lhe os 300 mil reis, pronto… E
não se fala mais nisso…
PADRE ANTUNES
Que raio de desconto é esse? Se é para fazer
desconto abate-se 10%.
MESTRE-DE-OBRAS (irritado)
O senhor padre quer arruinar-me?
PADRE ANTUNES
Não me respondas rapaz, isso não é coisa de
bom cristão.
MESTRE-DE-OBRAS
Se eu não responder a sua igreja leva-me à
falência.
PADRE ANTUNES
A minha igreja? A minha igreja… Quem é que tu
pensas que eu sou, o Papa?
MESTRE-DE-OBRAS
Bom… eu faço-lhe um desconto de (hesita)…
cinco por cento e não se fala mais nisso.
Ó Senhor Padre eu tenho família, mulher, filhos…
PADRE ANTUNES (interrompendo-o)
Está bem, está bem! Não vale a pena chorar.
Negócio fechado!
Nesse momento DUAS RAPARIGAS da idade de Carlos (NONO e LUISA) entram
na sacristia. O PADRE olha para elas sem saber o que querem.
PADRE ANTUNES
O que foi agora, criaturas de Deus? O que é que
vocês estão aqui a fazer?
LUÍSA
O senhor padre mandou-nos vir a esta hora para
nos dar as caixas do peditório.
PADRE ANTUNES
Ah sim, o peditório… (pensa) Qual peditório? O
das cheias ou o das obras da igreja?
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As RAPARIGAS não respondem e encolhem os ombros.
O PADRE chega para o pé de si 4 caixas de madeira, duas têm uma risca branca e
as outras têm uma risca azul clara.
PADRE ANTUNES
Branco ou azul?
NONO
Azul.
O PADRE pensa na resposta e dá-lhes as caixas com risca branca.
PADRE ANTUNES
Levam as brancas que é para pedir para as obras
da igreja. (colocando as caixas) Toma…
AS RAPARIGAS, satisfeitas, viram-se e dirigem-se para a porta.
PADRE ANTUNES (chamando-as)
Onde é que as meninas vão agora?
As RAPARIGAS entreolham-se, espantadas.
NONO
Vamos para a rua fazer o peditório.
PADRE ANTUNES
E porque é que não começam já aqui? Este
senhor que é tão simpático também há-de querer
participar, contribuir para as obras da igreja.
MESTRE-DE-OBRAS (espantado)
Estou a ver que o senhor padre me quer levar à
falência! Bom… Eu não sei se tenho dinheiro,
vamos lá a ver…
PADRE ANTUNES
Não me diga que está tão pobrezinho que não
pode dar Vinte cinco tostões a cada uma?
MESTRE-DE-OBRAS (levando a mão ao bolso e
dando uma moeda a cada rapariga)
Vamos ver, não sei.
Vinte cinco Tostões a uma… e… Vinte cinco
tostões a outra.
O MESTRE-DE-OBRAS olha para o PADRE. As RAPARIGAS começam a
chocalhar as caixas como quem pede mais dinheiro. O PADRE sorri e faz um gesto
para o MESTRE-DE-OBRAS, convidando-o, sem dizer nada, a olhar para elas e a
dar-lhes mais dinheiro. O MESTRE-DE-OBRAS tira mais duas moedas de 5 tostões
do bolso e coloca-as nas caixas.
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MESTRE-DE-OBRAS
Pronto Mais cinco tostões a uma … e cinco
tostões a outra… Ó Senhor Padre, são Três
Escudos!!!
NONÔ e LUISA
Deus lhe pague!
MESTRE-DE-OBRAS (entre-dentes)
Espero bem que sim
AS RAPARIGAS saem. O PADRE tira da cristaleira a garrafa de vidro branco (com
vinho aparentemente da Madeira) e dois cálices, dizendo:
PADRE ANTUNES
Deus lhe pague!...
Hoje começou a pagar a entrada no Céu.
MESTRE-DE-OBRAS (conformado)
Pois comecei, comecei, Senhor Padre…
PADRE ANTUNES
Vai tomar um abafado para abafar as suas
mágoas
O PADRE serve o vinho e dá um gole lento e satisfeito. Ao mesmo tempo, o
MESTRE-DE-OBRAS, resignado, abana a cabeça e limpa o suor da testa com um
lenço de pano escuro que tira do bolso das calças.
FIM DE CENA –
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CENA 001/07. EXT. – RUA LOPES / RUA – TARDE. DIA 02
Carlos, Luís, Menina Emília, Camões, Transeuntes
CARLOS e LUÍS estão a caminhar na rua onde moram. Vemos que a rua tem
comércio de ambos os lados: um lugar de hortaliça, um café (de Fánan), uma janela
aberta onde uma senhora apanha malhas, um cabeleireiro e um quiosque carregado
de jornais, revistas, pastilhas pirata, chiclettes, tabaco, foto novelas e revistas de
banda desenhada. Nos escassos espaços vazios há cartazes dos cantores da época
(Artur Garcia, António Calvário, etc.) e (se possível) um calendário com uma imagem
piegas, aberto na folha de Fevereiro. Ao passarem junto à janela da MENINA
EMÍLIA (a senhora das malhas), ela levanta o olhar da máquina de apanhar malhas
e fala-lhes.
LUÍS e CARLOS
Boa tarde, menina Emília.
MENINA EMÍLIA (simpática)
Boa tarde rapazes!
CARLOS (abanando a caixa do peditório)
Dê um tostãozinho para as vítimas das cheias.
MENINA EMÍLIA
Já dei aos vossos colegas.
CARLOS
Mas a nós não deu.
MENINA EMÍLIA (sorrindo e pondo uma moeda
em cada caixa)
Ai, mau… Então vá lá…
Cinco tostões para cada um. O que é que se diz?
CARLOS (reclamando)
Só cinco tostões?
MENINA EMÍLIA (repreendendo-os)
Mau! Então, é assim que se agradece?
CARLOS e LUÍS
Obrigado, menina Emília.
CARLOS e LUÍS afastam-se
MENINA EMÍLIA continua a apanhar malhas.
CARLOS e LUÍS abordam todas as pessoas com quem se cruzam, abanando as
caixas mas não os ouvimos porque passamos a ver agora o que se passa no
quiosque. CAMÕES está a pendurar foto novelas no quiosque. Enquanto trabalha
vai ouvindo a radionovela que está a começar na rádio.
24
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
NARRADOR (OFF)
Naquela época os bairros ainda tinham
personagens típicas como a menina Emília que
apanhava malhas nas meias de senhora e o
Camões que vendia cromos, pastilhas, livros aos
quadradinhos, e jornais. O Camões era um livrepensador: passava os dias a ouvir a radionovela e
para ele o dia 5 de Outubro era mais importante
do que o Natal e no 28 de Maio vestia de luto…
As pessoas diziam que quando era novo a
namorada o tinha deixado em pleno altar e que
desde então o Camões tinha ficado louco… mas
nunca ninguém se atreveu a confirmar este rumor.
INSERT AUDIO:
RADIONOVELA no Rádio de Camões.
CARLOS e LUÍS aproximam-se do quiosque e vendo CAMÕES distraído,
concentrado e choroso a ouvir a novela, põem-se a imitar o que ouvem e a fazer
troça com gestos teatrais e exagerados.
CARLOS
Gostas de mim?... Gostas ou não gostas?
Amas-me?
LUÍS
Sim, sim. Mas gosto mais do Camões...
CAMÕES repara neles e mostra-se indignado.
ELES riem em tom de troça.
CAMÕES (repreendendo-os)
Então, meninos? Vamos lá a ter respeito: o
respeitinho é uma coisa muito bonita!
CARLOS e LUÍS riem e fazem gestos afectados ainda para troçar de Camões.
Rindo, começam a correr rua abaixo.
FIM DE CENA –
25
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/08. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO – TARDE. DIA 02
Isabel, Náni, Clara, Senhora 1 e Senhora 2 (Carlos e Luís)
ISABEL e NÁNI, de bata, estão a um canto do cabeleireiro a cochichar. No salão
duas senhoras lêem revistas (“Modas e Bordados” e a “Plateia”) com a cabeça
dentro dos secadores de pé e CLARA que está a arrumar instrumentos de
cabeleireira.
INSERT AUDIO:
Ouve-se uma música na rádio.
NÁNI tem um envelope na mão.
ISABEL
Tens a certeza que é seguro?
NÁNI
Tenho a certeza absoluta.
ISABEL aponta para o envelope.
ISABEL
E tens as instruções?
NÁNI
Tenho mas como estavam em francês não trouxe.
ISABEL
E não é perigoso?
NÁNI
Não é nada perigoso. Achas que na farmácia
vendem coisas perigosas? Já te disse que no
estrangeiro toda a gente toma isto.
Uns murros na montra do cabeleireiro interrompem a conversa: ISABEL e NÁNI
olham para a montra e vêm CARLOS e LUÍS, a dar murros e a abanar as caixas do
peditório como que sugerindo-lhes que colaborem. ISABEL põe o envelope
rapidamente no bolso da bata e dirige-se à porta para falar com CARLOS e LUÍS.
CORTA PARA –
26
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/09. EXT. – RUA LOPES / PORTA CABELEIREIRO – TARDE. DIA 02
Carlos, Luís Isabel e Náni
ISABEL sai do cabeleireiro e fala com eles. NÁNI sai atrás dela com um portamoedas na mão.
ISABEL
Que barulheira é esta? O que é que vocês
querem?
CARLOS (agitando a caixa)
Um tostãozinho para as vítimas das cheias.
ISABEL
Vão-se embora! Vão bater a outra porta, vá!
NÁNI tira do porta-moedas várias moedas de 2 tostões e põe-as nas caixas.
NÁNI
Só tenho moedas de dois tostões.
NÁNI põe duas moedas nas caixas.
ISABEL
Então, o que é que se diz, meninos?
CARLOS (estendendo a caixa na direcção de
NÁNI)
Quem dá tudo o que tem a mais não é obrigado.
NÁNI sorri e põe as moedas todas que tem dentro das caixas.
ISABEL (repreendendo-o)
Mau, mau… E agora o que é que se diz?
CARLOS e LUÍS
Obrigado, Náni.
NÁNI (sorrindo e fazendo uma festa na cabeça de
CARLOS)
De nada.
NÁNI entra no cabeleireiro seguida de ISABEL e ouve-se uma moeda cair no chão.
LUÍS apanha a moeda.
LUÍS
Vinte cinco tostões?! A tua irmã deixou cair vinte
cinco tostões.
CARLOS
Devia ter o bolso roto. Dá cá.
27
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
LUÍS
Não lhe vamos devolver a moeda?
CARLOS
Claro que não: se a deixou cair no chão é porque
Deus queria que ela desse para o peditório e
como não deu...
LUÍS vai pôr a moeda na Caixa de Carlos mas CARLOS impede-o.
CARLOS
Espera! Primeiro vamos às compras e o que
sobrar é que é para a caixa.
LUÍS dá a moeda a CARLOS e os dois saem a correr pela rua, só voltam a parar
novamente no quiosque de Camões.
FIM DE CENA –
28
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/10. EXT. – RUA LOPES / QUIOSQUE CAMÕES – TARDE. DIA 02
Carlos, Luís, e Camões
INSERT AUDIO:
RADIONOVELA muito alto (Simplesmente Maria ou outra, preferencialmente de
Fevereiro/Março de 1968)
CAMÕES está absorto na novela, que ouve muito alto e nem se apercebe da
presença dos dois rapazes. LUIS e CARLOS aproveitam a distracção de CAMÕES
para folhearem livros de banda desenhada.
LUÍS
O Camões ainda não deu para o peditório. Porque
é que não lhe pedimos?
CARLOS
Não vale a pena. Não vês que está hipnotizado?
LUÍS observa atentamente CAMÕES e encolhe os ombros.
LUÍS
O que é que vamos comprar?
CARLOS
Eu quero uma pirata. E tu?
LUÍS (dando-lhe dois tostões)
Também quero uma pirata… das pequeninas.
CAMÕES
Já voltaram? O que é que querem agora?
CARLOS (pondo os 25 tostões na banca)
Duas pastilhas pirata… das pequenas.
CAMÕES dá-lhe as pastilhas e recebe o dinheiro e faz o troco (de quatro tostões),
sem sequer olhar para as crianças. Continua a ouvir a novela. LUÍS e CARLOS
ficam a olhar para ele, que resmunga com uma das personagens da novela.
INSERT AUDIO: MULHER e HOMEM NA RÁDIO (OFF,)
CAMÕES (em resposta à novela)
Eu sabia. As mulheres são todas iguais!
(convicto, para CARLOS e LUÍS)
Fazem-se muito meigas, muito prendadas… mas
mal voltamos as costas… zás! Traição.
CARLOS e LUÍS sacodem vigorosamente as caixas.
CARLOS
Dê uma moedinha para as cheias.
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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CAMÕES
Toca a andar… eu já dei para esse peditório.
CARLOS
E para as obras da igreja?
CAMÕES
Não dei, nem dou… andor, andor…
CARLOS e LUÍS afastam-se.
CAMÕES (levantando a voz para eles o ouvirem)
E nunca se casem, estão a ouvir? …
CARLOS e LUÍS param para ouvir este conselho
LUÍS
O que é que foi?
CAMÕES
Não se casem!
CARLOS
Vamos embora! Temos muito que andar.
CARLOS e LUÍS afastam-se a correr, viram a esquina e desaparecem.
FIM DE CENA –
30
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/11. INT. TIPOGRAFIA RAMIRES / SALA MÁQUINAS – TARDE. DIA 02
Carlos, Luís, António, Eng. Ramires e 4 Operários
CARLOS e LUÍS entram na tipografia onde António trabalha. ANTÓNIO (de bata
cinzenta ou azul escura e mangas de alpaca pretas), está a falar com um funcionário
da tipografia também de bata e não vê as DUAS CRIANÇAS que estão especadas a
olhar para ele. Junto da máquina estão dois FUNCIONÁRIOS com as batas sujas de
tinta preta.
NARRADOR (OFF)
O meu pai passava os dias a trabalhar. De manhã
ia a correr para o autocarro e do autocarro para o
ministério das finanças onde trabalhava. Quase
sempre arranjava tempo para ir almoçar a casa
mas assim que saía do emprego ia a correr para a
tipografia até ser hora de jantar. Não tinha tempo
para nada e ainda por cima não podia comentar
com os colegas o que fazia depois das cinco. Foi
a pensar nele que decidi que não queria crescer
nem ser adulto: os adultos passam a vida toda a
correr de um lado para o outro e a trabalhar.
Finalmente ANTÓNIO vê CARLOS à entrada da tipografia e dirige-se a ele.
ANTÓNIO
O que é que vocês estão aqui a fazer?
CARLOS (abanando a caixa)
Viemos pedir umas moedinhas para o peditório.
ANTÓNIO
Não peças a quem não pode, filho…
CARLOS
Dê lá, pai… é só uma moeda.
CARLOS e LUÍS abanam as caixas, insistindo para que lhes dê alguma coisa.
Nesse momento entra o ENGENHEIRO (com um ar autoritário, um bigode fininho e
vestindo um fato escuro).
ENG. RAMIRES (sorrindo)
Hoje temos visitas, António?
ANTÓNIO
São os miúdos, vieram fazer um peditório, senhor
Engenheiro.
CARLOS
É para as vítimas das cheias…
LUÍS
Mas ninguém nos dá nada… e temos poucas
moedas.
31
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
O ENGENHEIRO leva a mão ao bolso e tira duas moedas de cinco escudos.
ENG. RAMIRES
(ostentando o seu poder económico)
Pois então passam a ter poucas mas boas. Cinco
escudos para cada um… Chega?
ANTÓNIO
Por favor, senhor Engenheiro, não lhes dê mais
nada.
CARLOS e LUÍS estão encantados com aquela “fortuna” e observam o
ENGENHEIRO que entretanto se pôs a olhar para os FUNCIONÁRIOS.
ENG. RAMIRES
Vá, então!?... Então?!... Vamos lá a praticar o
bem. Quem é que dá uma moeda aos rapazes?
OS FUNCIONÁRIOS entreolham-se sem vontade de contribuir. O ENGENHEIRO
curva-se para falar às crianças em segredo mas levanta a voz para se assegurar
que é ouvido por todos.
ENG. RAMIRES
Isto é gente ingrata que não acredita em Deus.
CARLOS e LUÍS fazem um sorriso amarelo, revelador de que não perceberam o
comentário. ANTÓNIO leva a mão ao bolso das calças e tira duas moedas.
ANTÓNIO (pondo uma moeda em cada caixa)
E agora vão-se embora. Não macem mais o
senhor Engenheiro.
ENG. RAMIRES
(para os empregados com ar crítico)
Mais ninguém quer participar num acto de
caridade?
ANTÓNIO (para os colegas, sem entusiasmo mas
incentivando-os para os proteger)
Então, João… Gregório… Roberto… não custa
nada dar cinco tostões aos miúdos.
Os FUNCIONÁRIOS seguem o exemplo de ANTÓNIO pondo todos uma moeda em
cada caixa. CARLOS e LUÍS observam o movimento dos FUNCIONÁRIOS que
depositam a sua contribuição com um ar contrariado.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
32
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/12. INT. – IGREJA / MISSA – MANHÃ. DIA 03
Padre Antunes, António, Margarida, Hermínia, Carlos, Isabel, Toni, Luís, Fánan,
Camões, Vitória, Menina Emília, Paroquianos
INSERT AUDIO: Música de igreja em órgão.
Plano fechado de uma cesta de esmolas que vai passando pelos fiéis. Vemos só a
cesta e as mãos dos fiéis que vão depositando moedas. Quando o plano abre
vemos a FAMÍLIA LOPES vestindo os seus fatos domingueiros, todos sentados lado
a lado. CARLOS sorri para LUÍS que está a passar a cesta e quando passa por eles
CARLOS estica-se para dizer um segredo a LUÍS mas MARGARIDA dá-lhe uma
palmada num braço com ar de raspanete e CARLOS endireita-se.
PADRE ANTUNES
Meus irmãos, as ofertas e oferendas são
momentos de glória, são momentos de comunhão
em Cristo, uma bênção: dá quem ama o próximo
e quem teme a Deus…
O PADRE ANTUNES continua a falar mas já não o ouvimos.
NARRADOR (OFF)
O Padre Antunes tinha três obsessões: a luxúria,
as ovelhas tresmalhadas e o Futebol Clube do
Porto. Na altura eu julgava que luxúria era a vida
dos ricos que viviam em palácios luxuosos e que
as ovelhas tresmalhadas eram aquelas que
nasciam com três manchas pretas nas costas e
que por isso a sua lã não servia para nada.
Quanto ao Futebol Clube do Porto só sabia que
costumava perder e isso irritava-me. Eu não era
do Porto mas torcia para que não sofresse
grandes goleadas porque quando isso acontecia,
o Padre Antunes oferecia-nos o mais duro dos
seus sermões: o sermão dos quatro caminhos.
O PADRE ANTUNES continua a falar sem que o oiçamos.
CARLOS debruça-se para sorrir a LUÍS que já está sentado duas filas atrás com a
sua família. MARGARIDA puxa CARLOS, obrigando-o a ficar direito.
HERMÍNIA e outras senhoras mais idosas têm a cabeça coberta com véus pretos.
33
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
PADRE ANTUNES
…”Um cruzamento com quatro caminhos, mas
quando chega a hora de escolher só temos duas
hipóteses: o caminho do bem e o caminho do mal.
Há sempre um caminho fácil e tentador que leva à
perdição e outro mais duro, coberto de espinhos.
Este é o caminho do sacrifício que nos leva à
redenção e à vida eterna. Meus irmãos, neste
caminho de salvação não há lugar para bailaricos,
guedelhudos, modas… não há nenhuma dessas
perdições com que os jovens de hoje se sentem
tentados.
ANTÓNIO e MARGARIDA olham com um ar reprovador para ISABEL que puxa a
saia para baixo, de forma a ficar com os joelhos tapados.
PADRE ANTUNES
Mas a verdade, meus filhos, a verdade é que a
juventude já não tem bons exemplos no lar. E
porquê? Porque os seus pais estão obcecados
com a galinha dos ovos de ouro … preocupados
com os bens materiais: automóveis, frigoríficos,
máquinas de lavar, televisores…
Vitoriosa, HERMÍNIA olha com um ar reprovador para MARGARIDA e ANTÓNIO
que estão “enfiados”.
PADRE ANTUNES
Vede bem, meus filhos, vede bem qual dos
caminhos quereis seguir…
INSERT AUDIO: Órgão da igreja
O PADRE ANTUNES continua a discursar mas já não o ouvimos (só se ouve o
órgão).
HERMÍNIA sente-se vitoriosa.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
34
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/13. INT. – ESCOLA / SALA DE AULA – MANHÃ. DIA 04
Carlos, Luís, Marinho, Professor e 20Alunos
O PROFESSOR BRAGA está junto ao quadro, de pé a explicar qualquer coisa que
não ouvimos para uma turma de 20 ALUNOS.
CARLOS e LUÍS estão sentados na última fila e fingem estar com atenção mas de
vez em quando murmuram disfarçadamente e escrevem no caderno.
PROF. BRAGA
Foi no ano de 1640 que os portugueses
demonstraram toda a sua valentia…
NARRADOR (OFF)
O Professor Rui Braga nunca pensava nos bens
materiais nem na luxúria nem nas ovelhas com
três manchas. A única coisa que o preocupava
era a ameaça espanhola e o que mais o
entusiasmava era lembrar o dia em que um grupo
de corajosos portugueses atirara um homem pela
janela fora para acabar de vez com a dinastia
Filipina.
PROF. BRAGA (escrevendo no quadro a data)
Nunca esqueçam esta data!!!
1 de Dezembro de 1640,.(…)
O PROFESSOR continua a dar a aula e CARLOS e LUÍS sussurram
disfarçadamente.
LUÍS
H-2, H-3, H-4
Com cara de “contratempo”, CARLOS aponta no caderno.
CARLOS
H-2, 3 e 4, água. E-8, E-9 e F-9.
LUÍS
Água.
PROF. BRAGA
(E não pensem que foi fácil)
… Foram três reinados sob o jugo espanhol, três
longos reinados à espera do melhor momento
para restaurarmos a nossa independência e dar
início à dinastia de Bragança…
(sublinha) À Dinastia de Bragança.
35
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
LUÍS e CARLOS continuam a jogar à batalha naval.
LUÍS
H-5, H-6, H-7
Continuam a jogar.
PROF. BRAGA
(Tudo começou quando D. Sebastião)
… Morreu na Batalha de Alcácer Quibir.
Portugal nessa altura ficou sem rei e o trono
português ficou sem sucessor. Deu-se aquilo a
que se chama uma crise sucessória (sublinha)
Crise sucessória… E que permitiu aos Espanhóis
tomarem conta da nossa pátria.
CARLOS (furioso
secretária)
Fomos ao fundo.
e
dando
um
murro
na
CARLOS faz um ar comprometido por ter dado um murro na secretária e pensa que
foi apanhado a jogar.
PROF. BRAGA
(agradavelmente surpreendido com o comentário
de Carlos)
Muito bem, Carlos, boa metáfora.
CARLOS
Boa quê, senhor professor?
PROF. BRAGA
Boa metáfora, boa comparação, boa ideia. Pode
dizer-se que o domínio espanhol nos levou ao
fundo, porque íamos perdendo a nossa
identidade, mas soubemos emergir e correr com
eles de uma vez por todas.
CARLOS e LUÍS entreolham-se aliviados.
PROF. BRAGA
Meninos, de pé! Sempre quero ver se se lembram
do Hino da Restauração.
TODOS se levantam e começam a cantar o Hino da Restauração.
O PROFESSOR faz de Maestro
36
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
TODOS
Portugueses celebremos
O dia da redenção
Em que valentes guerreiros
Nos deram livre a Nação…aram com ardor.
(…)
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
37
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/14. INT. – PRÉDIO LOPES / ESCADA – NOITE. DIA 04
Isabel, Rui, Carlos
INSERT AUDIO:
Som de chuva a cair.
FUNDO MUSICAL:
Duo Ouro Negro interpreta
" Trem das Onze", de Adoniran Barbosa.
Está a chover muito. ISABEL e RUI, ainda molhados da chuva, beijam-se à entrada
do prédio, escondidos no vão da escada. CARLOS entra, encharcado, no prédio,
acende a luz e começa a subir as escadas sem os ver. Umas risadinhas de
namorados levam CARLOS a voltar para trás e a espreitar para o vão da escada: vê
ISABEL e RUI a beijarem-se e fica um pouco a observá-los enquanto ouvimos o
narrador.
NARRADOR (OFF)
Os dias iam passando quase iguais, até a minha
irmã e o namorado continuavam a despedir-se ao
fundo das escadas. Ele chamava-se Rui e
trabalhava nos Armazéns do Grandela. Eu não
gostava dele porque estava sempre a falar de
dinheiro e acho que a minha irmã também não
gostava mas aturava-o porque eram namorados e
naquela época era muito difícil trocar de
namorado.
CARLOS aproxima-se deles e abana a caixa do peditório.
ISABEL e RUI assustam-se.
ISABEL(Grita)
Aiii!!! O que é que é que tu estás aqui a fazer,
todo encharcado? Por onde é que tu andaste?
CARLOS
Estive na rua a fazer o peditório.
RUI tenta aproximar-se de CARLOS, sempre pensando que assim será mais fácil
ver-se livre dele:
RUI
E quanto é que conseguiste?
CARLOS (encolhendo os ombros)
Não sei! Pouco!
38
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
RUI tira umas moedas do bolso e põe na caixa.
RUI
Toma… também quero contribuir.
CARLOS olha-o com cepticismo.
CARLOS
Só isso? Tu és um forreta não és?
ISABEL (dando-lhe um carolo e repreendendo-o)
Mal criado… Então o Rui está a tentar contribuir e
tu sais-te com uma dessas… Vai já para casa,
piolho!
CARLOS dirige-se para a escada e antes de subir ameaça:
CARLOS
Está bem, vou e digo ao pai que vocês estão aqui
a dar beijinhos na boca.
RUI
Anda cá, Carlos… anda cá, toma.
ISABEL e RUI entreolham-se. CARLOS aproxima-se. RUI tira mais moedas do
bolso e mete-as na caixa uma a uma. Vitorioso,
CARLOS sobe as escadas devagar, sempre a espirrar.
CARLOS (OFF)
Atchim… Atchim…
FUNDO MUSICAL: (volta a ouvir-se “Trem das Onze”)
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
39
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/15. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – NOITE. DIA 04
Carlos, Margarida e Hermínia
CARLOS está deitado e não pára de tossir. Junto à cama de Tóni, a parede está
coberta de pequenos posters (Cliff Richard, os Beatles). Há também uma estante
com livros e uma secretária. MARGARIDA baixa o mercúrio de um termómetro com
safanões secos. HERMÍNIA olha para CARLOS preocupada. Na mesa-de-cabeceira
de CARLOS está a caixa do peditório.
MARGARIDA (pondo a mão na testa de
CARLOS)
Ó filho, como é que foste ficar tanto tempo na rua
com aquela chuvada?
CARLOS
É que ainda tenho pouco dinheiro na caixa e os
outros têm todos mais do que eu.
MARGARIDA
Ó querido e então? Como é que tu podes agora
querer que sejam todos caridosos.
CARLOS
Mas, ó mãe…
MARGARIDA (interrompe-o)
Ó filho, levanta lá o braço e está caladinho que a
mãe tem que te pôr o termómetro.
(põe-lhe o termómetro)
Agora baixas o braço e ficas cinco minutos
quietinho, está bem?...
CARLOS tosse novamente
HERMÍNIA
No meu tempo isso tratava-se com ventosas.
MARGARIDA
Ó mãe, que horror! Que coisa horrível.
HERMÍNIA (indignada)
É o melhor que há para as pneumonias.
MARGARIDA
Mas o miúdo não tem pneumonia e além disso já
não se usam essas porcarias, hoje em dia…
HERMÍNIA
Porcarias? Era do melhor! Eu pus-te muitas vezes
meia dúzia de ventosas. Tu nunca te queixaste.
40
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARGARIDA suspira com impaciência e põe a mão na testa de CARLOS
CARLOS
Dói-me a cabeça.
MARGARIDA (sentindo-lhe a testa)
Ó querido…
(para Hermínia)
Ó minha mãe este miúdo está a arder em febre.
Vá-me lá buscar o Dorigripe, se faz favor.
Enquanto ouvimos o narrador assistimos ao seguinte: HERMÍNIA não se mexe,
MARGARIDA argumenta e gesticula sem que oiçamos o que diz e HERMÍNIA sai do
quarto para ir buscar o remédio.
NARRADOR (OFF)
A minha avó não acreditava em comprimidos.
Para ela tudo se curava com bicarbonato, folhas
de eucalipto, rodelas de batata, chás de ervas e,
em casos muito graves, ventosas. Se fosse hoje
não faltaria quem lhe chamasse naturista mas
naquela altura chamavam-lhe antiquada. É que
em 1968 as pessoas ainda acreditavam na
ciência e no progresso.
FIM DE CENA –
41
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/16. INT. – CASA LOPES / CASA DE BANHO – NOITE. DIA 04
Hermínia
HERMÍNIA abre o armário / espelho da casa de banho e não vê comprimidos.
HERMÍNIA (levantando um pouco a voz para ser
ouvida no outro quarto)
Não encontro os comprimidos.
MARGARIDA (OFF)
Veja no quarto da Isabel… pode ser que lá
estejam. É um tubo.
HERMÍNIA
Está bem.
HERMÍNIA fecha o armário e sai.
FIM DE CENA –
42
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/17. INT. – PRÉDIO LOPES / ESCADA – NOITE. DIA 04
2 Carregadores, Vitória, D. Rosa
DOIS HOMENS carregando uma grande caixa de cartão acabam de se cruzar com
VITÓRIA e a D. ROSA e sobem as escadas.
AS MULHERES olham para trás, vendo-os subir carregados e fazem uma cara de
espanto antes de continuar a descer. A VIZINHA 1 faz um esgar de ligeira crítica.
Continuam a descer as escadas e param no último degrau para comentar.
D. ROSA
(invejosa)
A vizinha viu isto? Um televisor…
VITÓRIA
E dos grandes.
D. ROSA
Viu o que estava escrito? António Manuel
Marques Lopes.
VITÓRIA
Ah, pois…. É o genro da dona Hermínia
D. ROSA
Vão ter que fazer muitas calças para pagar uma
coisa destas.
FIM DE CENA –
43
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/18. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – NOITE. DIA 04
Carlos, Margarida e Hermínia
HERMÍNIA entra no quarto com um tubo metálico de Dorigripe numa mão e um copo
de água na outra.
HERMÍNIA
Tinhas razão, estavam no quarto da Isabel. Como
é que ele está?
MARGARIDA
Tem 39 e meio. Temos de chamar o doutor
Almeida
HERMÍNIA
Então, damos-lhe o comprimido ou não?
MARGARIDA
Damos, com certeza… mal não lhe há-de fazer...
HERMÍNIA (dando um comprimido a CARLOS)
Vá lá filho, põe na boca e engole. Toma lá, vá…
MARGARIDA (guardando o termómetro)
Tens que beber a água toda para empurrar o
comprimido para baixo. Mais, mais, mais…
CARLOS obedece e depois tapa-se com o cobertor.
HERMÍNIA
Pois, filho, vá… Mais um bocadinho. Agasalha-te
bem… agora vais ter que suar muito, querido…
Vá lá…
INSERT AUDIO: Campainha da porta
HERMÍNIA (dirigindo-se para a porta)
Eu vou lá.
HERMÍNIA sai do quarto.
CARLOS
Tenho arrepios!
MARGARIDA
Ó filho, eu só espero que a tua avó não tenha
razão e que tu não me estejas mesmo com uma
pneumonia.
CARLOS
Porquê? Estou muito doente?
44
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARGARIDA
Não… mas agora não te podes mexer. Tens que
ficar aí quietinho a ver se isso te passa depressa.
CARLOS
É tão difícil ficar quietinho.
MARGARIDA sorri.
HERMÍNIA aparece à porta do quarto.
HERMÍNIA (da porta)
São os rapazes da televisão… Trazem uma caixa
tão grande que quase não entra na porta.
MARGARIDA
Está bem, eu vou lá mãe..
CARLOS dá um salto e fica em pé em cima da cama.
CARLOS (entusiasmado)
Vamos ver, vamos ver.
MARGARIDA
Onde é que tu vais? Tu não sais daqui! Tu ficas
na cama muito quietinho até chegar o médico!
MARGARIDA sai do quarto e HERMÍNIA entra e senta-se na cama de CARLOS
CARLOS
Eu quero ver a televisão!
HERMÍNIA
Eu fico aqui contigo. Olha, tivesses pensado nisso
antes. Nunca ouviste dizer que quem anda à
chuva molha-se?
CARLOS
Nem era preciso ouvir dizer… é tão evidente!
CARLOS faz-lhe uma careta e cruza os braços por cima dos cobertores, amuado.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
45
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/19. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL – NOITE. DIA 04
António e Margarida
ANTÓNIO e MARGARIDA estão deitados. ANTÓNIO está de lado, de costas para
ela e olhos fechados mas MARGARIDA, deitada de barriga para cima, tem os olhos
bem abertos.
MARGARIDA
António, e se nós fossemos ver a televisão?
ANTÓNIO (ensonado)
A esta hora?
MARGARIDA
Anda lá, … é tão linda…
ANTÓNIO (virando-se para ela)
Mas ainda nem sequer conseguiram ligar a
antena, não vamos conseguir ver nada.
MARGARIDA (sorrindo com um ar ingénuo)
Mas podemos ver só o aparelho… (dá-lhe um
pequeno encontrão no ombro)
ANTÓNIO (ri)
MARGARIDA
Anda…
FIM DE CENA –
46
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/20. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – NOITE. DIA 04
CARLOS
Na penumbra, CARLOS levanta-se com muito cuidado. Calça silenciosamente os
chinelos e pega numa lanterna pousada em cima da estante. Acende a lanterna e
sai do quarto, pé ante pé.
NARRADOR (OFF)
Nessa noite, entre a febre que me fazia ferver por
fora e a televisão que me punha a ferver por
dentro, não consegui pregar olho.
CORTA PARA –
47
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/21. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 04
Carlos, Isabel, Tóni, Margarida e António
Iluminando o caminho com a lanterna, CARLOS entra silenciosamente na sala,
fecha a porta atrás e aproxima-se da televisão. Para seu espanto vê ISABEL e TÓNI
no sofá em frente à televisão ligada, onde apenas se vê chuva. CARLOS senta-se
no meio deles e os TRÊS sorriem e olham para o ecrã. MARGARIDA e ANTÓNIO
abrem silenciosamente a porta e apercebem-se que a televisão está ligada. Em
silêncio entreolham-se interrogativos até que vêem os filhos a olhar para a televisão.
Sorriem, felizes e recuam para não serem apanhados. Ouvimos o narrador enquanto
vemos a família iluminada pela “chuva” da televisão.
NARRADOR (OFF)
Tudo aquilo me parecia um sonho. Agora já podia
ir para a escola e falar com os meus amigos do
que tínhamos visto na televisão. Já podia seguir
de perto as aventuras do Fugitivo… até podia ver
o festival da canção!
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
48
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/22. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – TARDE. DIA 05
Margarida, Hermínia e Isabel
MARGARIDA (de bata) está sentada junto à máquina de costura e tem uma pilha de
calças de fazenda no colo, observa-as atentamente uma a uma e vai fazendo uma
pilha de calças ao seu lado, em cima de uma cadeira. Em cima da máquina está um
embrulho de papel azul aberto e com vários fechos-éclair da cor das calças. Sentada
no sofá, está HERMÍNIA (de bata) que remata fios das calças e vai fazendo mais
uma pilha ao seu lado. ISABEL está sentada numa cadeira e ajuda também,
pregando botões na cintura das calças. A um canto da sala está a televisão
apagada. Num móvel da sala, em cima de um naperon, está o aparelho de rádio
(anos 40/50, relativamente grande).
INSERT AUDIO:
Programa de Rádio conselhos femininos
MULHER (OFF, NA RÁDIO)
E a nossa ouvinte escreveu o seguinte.
“O meu filho foi viver para o Porto há mais de dez
anos e está sempre a convidar-me para deixar a
terra e ir viver com eles…. Mas tenho medo de
me tornar um empecilho e além disso, se eu
deixar a minha casinha perco a minha
independência.”
HERMÍNIA
Tem toda a razão. Se eu tivesse pensado melhor
também não tinha vindo viver para cá.
ISABEL
A avó não está melhor aqui do que na terra?
HERMÍNIA
Chiu… Deixa-me ouvir.
MULHER (OFF, NA RÁDIO)
Eu não tenho nada contra a minha nora, gosto
dela como se fosse minha filha.
HERMÍNIA
Eu também não tenho nada contra o António.
MARGARIDA
Ai, minha mãe… Não diga uma coisa dessas.
Daqui a um bocado está a dizer que é um
empecilho…
HERMÍNIA faz um gesto afirmativo com a cabeça
49
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MULHER (OFF, NA RÁDIO) (lendo)
“Não sei que faça e por isso é que lhe peço o seu
conselho. Obrigada e que Deus a acompanhe.
São os desejos de uma viúva preocupada.”
(aconselhando) Faz muito bem em ficar em sua
casa, minha querida amiga. Diga ao seu filho
que…
ISABEL (sobrepondo-se)
Esta mulher não acerta uma!
HERMÍNIA
Não digas uma coisa dessas. É uma pessoa tão
sensata…
MULHER (OFF, NA RÁDIO)
A vida é como é. Mesmo que o seu filho a queira
levar e que os seus netos lhe peçam para ir, não
há nada como a nossa casinha para nos
sentirmos em paz.
HERMÍNIA
A solidão é uma coisa muito dura.
MARGARIDA
Quem a ouvisse pensava que estava sozinha.
HERMÍNIA
E não estou?
MARGARIDA (abanando a cabeça)
Não, a minha mãe tem-me a mim, tem o António,
tem os seus netos. Não lhe chega?
MULHER (OFF, NA RÁDIO)
Até Amanhã se Deus quiser.
MARGARIDA
Ai que bom, ainda bem que acabou o programa!
ISABEL
Também digo.
MARGARIDA (para ISABEL, desligando a rádio)
Ó Isabel… Sabes o que me apetecia agora? Era
ver um bocadinho de televisão.
HERMÍNIA
Para quê? Dizem que as pessoas que têm
televisão deixam de conversar umas com as
outras.
50
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
ISABEL
Que disparate!
HERMÍNIA
É verdade. As pessoas deixam de falar porque só
ligam à televisão. É o que ouvi dizer!
MARGARIDA
Isso cá em casa não há perigo de acontecer.
Vocês são todos umas gralhas.
ISABEL ri.
HERMÍNIA
Pois eu nem penso olhar para este aparelho.
Vocês podem ver os programas que quiserem
que eu nem olho. Isso é uma invenção do
mafarrico, é o que é?
MARGARIDA
Quem disse uma coisa dessas, minha mãe?
HERMÍNIA
O quê?
MARGARIDA
Que a televisão é uma invenção do diabo?
HERMÍNIA
O padre Antunes. Achas pouco?
MARGARIDA e ISABEL entreolham-se críticas e ignoram o comentário.
ISABEL
Só não percebo porque é que ainda não vieram
pôr a antena. Assim não se pode ver nada.
HERMÍNIA
Também digo. Está aqui este mono a atravancar
a sala e para quê?... Para nada!
MARGARIDA
Porque o homem ainda não pôde… Ele é muito
amigo do António… Vem quando puder, quando
tiver uma folga.
HERMÍNIA
Isso é muito bonito é, sim senhor… mas se ele
não vier até amanhã, não podemos ver o festival.
ISABEL
E eu não vejo o Carlos Mendes que vai ganhar,
de certeza.
51
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
HERMÍNIA
Quem é esse, filha?
Não contes com isso, Bélinha! Era preciso que
cantasse melhor do que a Tonicha…
MARGARIDA
(concordando com a mãe)
Por acaso também acho.! Esse yéyé ainda tem de
aprender muito para ganhar à Tonicha.
HERMÍNIA
Olha… Eu estou preocupada é com o menino. O
médico nunca mais vem…
MARGARIDA
Ó mãe, há-de estar a chegar. Deu-lhe o
comprimido?
HERMÍNIA
Dei-lhe um de manhã e outro ao lanche.
MARGARIDA (para ISABEL, repreendendo)
Olha lá, tu tens que ter mais cuidado. Ontem a tua
avó deu a volta à casa para encontrar os
comprimidos… Quer dizer… Quando mexes
numa coisa depois voltas a pô-la no lugar.
ISABEL
Mas eu nem sei de que é que estão a falar.
MARGARIDA
Dos Dorigripe. A tua avó deu a volta a casa
completamente… Aquilo tudo do avesso e afinal
estavam no teu quarto.
HERMÍNIA
Na gaveta!
ISABEL fica alarmada mas disfarça.
INSERT AUDIO: Campainha da porta.
MARGARIDA (levantando-se e tirando o avental)
Deve ser o médico.
HERMÍNIA levanta-se também e, sem tirar o avental, acompanha MARGARIDA.
HERMÍNIA
Deve, deve. Deve, filha.
As duas saem da sala e a expressão preocupada de ISABEL acentua-se.
FIM DE CENA –
52
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/23. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 05
Carlos, Margarida, Hermínia, Dr. Almeida e Isabel
CARLOS está deitado, rodeado de “livros aos quadradinhos” e de brinquedos.
MARGARIDA e HERMÍNIA estão de pé à espera do comentário do médico. O
médico (DOUTOR ALMEIDA) tira o termómetro do braço de CARLOS e lê a
temperatura.
O DOUTOR ALMEIDA ausculta CARLOS.
MARGARIDA
E depois nós demos-lhe o Dorigripe para baixar a
febre, mas não baixou… .
DOUTOR ALMEIDA (para CARLOS)
Bom… Deita a língua de fora.
CARLOS deita a língua de fora e o DOUTOR ALMEIDA pressiona-a com uma
espátula de madeira para lhe ver a garganta. ISABEL entra no quarto.
MARGARIDA
Ele ontem tinha a garganta muito vermelha,
senhor doutor.
DOUTOR ALMEIDA
E quantos comprimidos lhe deram?
HERMÍNIA
Dei-lhe um ontem, hoje um de manhã e outro há
bocadinho, com o lanche.
DOUTOR
ALMEIDA
(para
MARGARIDA,
preenchendo uma receita na mesa de cabeceira)
Os comprimidos não estariam fora do prazo?
MARGARIDA
Eu penso que não doutor.
DOUTOR ALMEIDA
(dá a receita a MARGARIDA)
Bom… Dêem-lhe isto de oito em oito horas…
MARGARIDA
De oito em oito horas…
Muito obrigada, senhor doutor.
DOUTOR ALMEIDA
E cuidado com o prazo do Dorigripe.
É preciso ter muito cuidado com essas coisas!
53
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARGARIDA
Pois claro… Ó mãe, vá lá buscar o tubo do
Dorigripe para ver se aquilo está no prazo ou não.
ISABEL tem uma expressão preocupada e comprometida.
HERMÍNIA (tirando o tubo do bolso do avental)
Não é preciso. Eu tenho aqui o tubo. (para o
médico) Ó Doutor, quer ver o Dorigripe?
O DOUTOR ALMEIDA abre o tubo e deixa cair dois comprimidos pequenos na
palma da mão. Observa-os. ISABEL está “à beira de um ataque de nervos”
DOUTOR ALMEIDA
Sim, sim… (incrédulo) Mas vocês deram isto à
criança?
MARGARIDA
Não devíamos? Não diga que estão mesmo
estragados.
DOUTOR ALMEIDA
Não, minha senhora. Não estão estragados. (para
Margarida)Venha cá, fora Preciso de falar
consigo. Venha cá, por favor.
HERMÍNIA
(repreendendo CARLOS que entretanto se deixou
ficar fora da cama)
Já para dentro da cama.
MARGARIDA, preocupada, segue o médico até ao corredor. Fecham a porta do
quarto. ISABEL está em pânico, HERMÍNIA não percebe nada.
CORTA PARA –
54
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/24. INT. – CASA LOPES / CORREDOR – TARDE. DIA 05
Margarida e doutor Almeida
Assim que saem do quarto, MARGARIDA olha para o médico muito assustada.
MARGARIDA
Doutor, diga-me a verdade!
O que é que se passa? Ele está mesmo muito
mal, não é?
DOUTOR ALMEIDA (exibindo o frasco)
Não. O que se passa, minha senhora, é que estes
comprimidos que estão aqui dentro são
anticonceptivos.
MARGARIDA (pegando no frasco para observar o
rótulo)
São anti quê?
DOUTOR ALMEIDA
Anticonceptivos. São pílulas. São pílulas para não
engravidar.
MARGARIDA (incrédulo)
Mas…
MARGARIDA faz uma cara estranha; entre espantada e escandalizada. Abre o
frasco e tira dois comprimidos que observa com atenção, guarda-os novamente e
fecha o frasco.
MARGARIDA imediatamente percebe que tem de disfarçar e fingir-se “apanhada”.
O DOUTOR ALMEIDA abana a cabeça.
CORTA PARA –
55
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/25. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 05
Isabel, Carlos e Hermínia
ISABEL, entreabre a porta e espreita, tentando ouvir a conversa.
CORTA PARA –
56
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/26. INT. – CASA LOPES / CORREDOR – TARDE. DIA 05
Margarida, Dr. Almeida
(Cont. 0001/ 24)
DOUTOR ALMEIDA
A senhora devia
medicamentos.
guardar
melhor
esses
MARGARIDA
Tem toda a razão, mas sabe o que é…
DOUTOR ALMEIDA
Eu sei, eu sei… Mas a senhora não pode deixar
esses medicamentos à solta pela casa…. Não
sei… Digo eu…
Sem dizer mais nada, o DOUTOR ALMEIDA volta a entrar no quarto dos rapazes,
seguido por MARGARIDA.
CORTA PARA –
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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/27. INT. – CASA LOPES/QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 05
Carlos, Margarida, Hermínia, Isabel e Dr. Almeida
MARGARIDA não sabe o que dizer, ISABEL tenta disfarçar mas MARGARIDA
olha-a de lado, disfarçadamente. HERMÍNIA e CARLOS não percebem o que se
está a passar. O DOUTOR ALMEIDA está cada vez mais severo.
HERMÍNIA (temendo o que o médico possa dizer)
Afinal o que é que se passa?
MARGARIDA
Não se passa nada, minha mãe….
MARGARIDA lança um olhar “fulminante” a ISABEL que, atrapalhada, baixa o olhar.
MARGARIDA (só para ISABEL num tom baixo e
indignado)
Temos de ter uma conversa muito séria.
DOUTOR ALMEIDA
Parece-me que os comprimidos não lhe fizeram
mal mas tenho de o observar melhor.
HERMÍNIA
Afinal o que é que o medicamento tem?
(para MARGARIDA)
Eu bem digo que não gosto destas coisas… cá
por mim tinha-lhe posto umas ventosas.
MARGARIDA está cada vez mais nervosa.
MARGARIDA (para o MÉDICO, assustada)
Senhor doutor, não lhe cairá o cabelo?... Será que
pode ter uma doença má?
HERMÍNIA
O meu menino tem uma doença má, senhor
doutor?
DOUTOR ALMEIDA
Não minha senhora, aqui ninguém tem cancro…
Ao ouvir a palavra “Cancro”, Hermínia benze-se.
MARGARIDA
Valha-me Deus, mas… E se lhe cai o cabelo,
doutor?
Alarmado, CARLOS puxa o cabelo para ver se cai.
58
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
DOUTOR ALMEIDA (em tom de crítica)
Que grande diagnóstico…Só falta dizer que o
rapaz vai ficar estéril!
CARLOS
O que é estéril?
Ninguém lhe responde e CARLOS insiste.
CARLOS (insiste, irritado)
O que é estéril?
DOUTOR ALMEIDA
Estéril é uma pessoa que não pode ter filhos…
mas descansa que ainda te falta muito tempo
para lá chegar.
HERMÍNIA
Ó senhor, doutor. Só um bocadinho. Achas que o
menino tem que ir para o hospital, senhor doutor?
HERMÍNIA, MARGARIDA e ISABEL continuam a falar com o DOUTOR ALMEIDA
mas não os ouvimos. CARLOS olha à sua volta, assustado, enquanto ouvimos o
narrador.
NARRADOR (OFF)
Eu julgava que estava constipado por ter andado
à chuva e afinal tinha um cancro, ia ficar careca e
não podia ter filhos. E tudo por causa de uns
comprimidos fora de prazo.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
59
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/28. INT. – CASA LOPES / CASA DE BANHO – NOITE. DIA 05
Margarida, Isabel
ISABEL e MARGARIDA, ambas de roupão e com rolos na cabeça, discutem.
MARGARIDA (exibindo o tubo de comprimidos)
Quem é que te deu esta porcaria?
ISABEL (atrapalhada)
Foi uma amiga minha que arranjou.
MARGARIDA
Arranjou como?
ISABEL
Ai mãe, sei lá! Trouxeram-lhe de Paris.
MARGARIDA (num crescendo de irritação)
Trouxeram-lhe de Paris? … Mas o quê?... Como
se fosse um perfume?!... Que bonito! Eu aposto
que foi a Náni que se meteu nisto. Aposto! Foi ou
não foi, diz lá?! Foi ou não foi a Náni que te deu
esta porcaria?!...
ISABEL (disfarça)
Não é preciso gritar, mãe…
MARGARIDA (falando alto)
Ai achas que não é preciso gritar? Achas que
não? O teu pai sabe disto, dá-te uma sova. Eu sei
que ele nunca te tocou com um dedo, mas desta
vez isto é um caso muito mais sério.
ISABEL (aflita)
A mãe não lhe vai contar, pois não?! Por favor
mãezinha!
MARGARIDA
Sabes porque é que eu não vou? Porque eu nem
sei o que hei-de dizer ao teu pai… Que a menina
dele, que o anjinho dele… Que afinal, é igual a
essas desmazeladas, a essas ordinárias que
tomam estes comprimidos…. Estes anti…
ISABEL
Anticonceptivos.
MARGARIDA
Exactamente!
60
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
ISABEL
Mas eu não tomei nenhum. Não tomei nem um,
mãe…
MARGARIDA
Eu nem quero ouvir isso, Maria Isabel!... Eu nem
quero saber os pormenores…
Como é que me tu me foste fazer uma coisa
destas, filha?
ISABEL
Mas o que é que eu fiz?
MARGARIDA (nervosa)
Já não vais casar. Eu já percebi que tu não vais
casar: Tu estás estragada… e agora quem é que
te vai querer? … Além de solteira tu agora podes
estar doente porque estes comprimidos, estas
porcarias…. Isto dá tumor. Eu nem gosto de dizer
isto mas tenho de dizer… Tumor, cancro.
ISABEL
Mãe, que disparate! Se fizessem cancro não se
vendiam na farmácia.
MARGARIDA
Tu achas que sabes tudo mas não sabes. Porque
estes comprimidos dão tumor, tumor no útero. Eu
sei isto sabes porquê? Porque li numa revista e,
além disso, foi assim que morreu a dona Inês do
3º Esquerdo. Não foi operada a tempo e morreu…
Coitada!
CORTA PARA –
61
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/29. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – NOITE. DIA 05
Carlos e Tóni
TÓNI dorme profundamente. CARLOS está sentado na cama, de olhos
esbugalhados e assustado: muito atento às vozes que vêm da casa de banho.
Para além de assustado tem um ar triste.
NARRADOR (OFF)
Nunca soube se os vizinhos tinham ouvido a
conversa mas eu ouvi tudo. Naquela noite fiquei a
saber que a minha irmã também tinha tomado os
comprimidos, que também tinha cancro e que
para se salvar tinha de ser operada em Londres.
A mim ninguém me falou em operações por isso
percebi logo que o meu caso era mais grave e
que não havia nada a fazer: eu ia morrer sem ver
o José Cid no Festival e sem saber como acabava
o Fugitivo. Era muito desgosto para um dia só!
MARGARIDA(OFF)
Tu não me mandas calar, ouviste?
FIM DE CENA –
62
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/30. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL – NOITE. DIA 05
Isabel, Margarida
Sobre a cama, ISABEL chora em silêncio. A porta abre-se e MARGARIDA entra,
ainda de roupão e de rolos. ISABEL finge-se adormecida.
MARGARIDA
Isabel!... Filha… Estás acordada?
ISABEL não responde. Continua de costas para a mãe e finge dormir. MARGARIDA
senta-se na cama e faz uma festa no cabelo de ISABEL.
MARGARIDA
Ó filha, tu tens de perceber que quando eu falo
assim contigo, mesmo quando te ralho, é para o
teu bem…
Sem se virar, ISABEL pega na mão da mãe.
ISABEL
Eu sei mãe.
MARGARIDA
Se tu queres que eu te ajude nalguma coisa tu
também não me podes mentir, filha…
ISABEL (soltando a mão da mãe e sentando-se
na cama)
Mas eu nunca lhe menti, mãe.
MARGARIDA (passando da doçura à irritação)
Como é que podes dizer uma coisa dessas?
Então tu não me disseste que tomavas aquela
coisa? Nem sequer me contaste que tinhas certas
coisas com o…
ISABEL
Não contei, nem havia nada para contar. Porque
eu nunca tomei a pílula nem nunca fiz nada disso
que a mãe está a pensar.
MARGARIDA (espantada)
Não?
ISABEL
Não, mãe. Nunca.
MARGARIDA
Isso quer dizer que tu nunca…
ISABEL abana a cabeça.
MARGARIDA
Nem sequer tomaste os comprimidos, filha?
63
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
ISABEL
Claro que não, mãe.
MARGARIDA (suspira de alívio)
Ainda bem, filha! Graças a Deus. Mas então
porque é que tu os tens?
ISABEL (atrapalhada)
Para nada… Para o caso de…
MARGARIDA
Para o caso de quê?
ISABEL (atrapalhada)
Porque eu estava a pensar que…
MARGARIDA
Estavas a pensar o quê?
ISABEL concentra-se para explicar com calma e clareza, embora ela própria não
saiba a resposta.
ISABEL
Ó mãe… imagine que tem vinte anos e que…
MARGARIDA (interrompendo)
Onde é que já vão os meus vinte anos, filha?!
ISABEL
Imagine que é a sua idade agora, e que está em
1968 e acabou de conhecer o pai.
MARGARIDA (divertida)
Havia de ser bonito: o teu pai de cabelo comprido.
Com uma camisa às flores.
MARGARIDA, cada vez mais divertida, levanta-se e transforma o roupão numa minisaia, segurando-o com as mãos.
MARGARIDA
Ou então, eu de mini-saia! Olha, eu até devia
ficar bonita porque eu tinha uma bela perna. Mas
também na altura não se podia mostrar nada, por
isso…
ISABEL
É isso que eu estou a dizer… No seu tempo as
coisas eram diferentes, mas agora… As coisas
estão a mudar.
64
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARGARIDA (pensativa)
Eu sei, filha… Também não é preciso ter muitos
estudos para perceber que está tudo a mudar.
MARGARIDA e ISABEL deixam-se ficar caladas por momentos, pensam.
MARGARIDA interrompe o silêncio.
MARGARIDA (olhando-a, com um ar um pouco
tímido)
Sabes uma coisa, filha? Eu custa-me falar destas
coisas contigo. Não é que não queira mas…
quando eu tinha a tua idade eu não falava assim
com a tua avó… Nem assim nem de maneira
nenhuma, porque a gente não falava de nada. Por
isso eu tenho um bocadinho de vergonha,
percebes?
ISABEL
Claro que percebo! Mas eu gostava que nós
falássemos mais.
MARGARIDA sorri e faz uma festa na cara de ISABEL.
MARGARIDA
E eu também gostava muito! Eu não sei se vou
ser capaz mas palavra de honra que era o que eu
gostava.
ISABEL e MARGARIDA abraçam-se
MARGARIDA (retoma o assunto que a preocupa)
Ó Isabel… Tu juras mesmo que nunca…
ISABEL
Ó mãe!
MARGARIDA
Está bem! Pronto! Desculpa, filha… Eu acredito
em ti.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
65
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/31. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 06
Carlos e Luís
No dia seguinte, CARLOS continua deitado. Luís está a fazer-lhe companhia.
Em cima da cama de Carlos estão espalhados livros dos 5, os números 1, 2 e 3 da
revista pisca-pisca e alguns brinquedos.
LUÍS
Tens a certeza de que vais morrer?
CARLOS acena afirmativamente com um ar dramático.
LUÍS
Mas já não tens febre nem nada.
CARLOS
Pois não, mas tenho um cancro no útero.
LUÍS
No útero? O que é isso?
CARLOS
Não sei. (apontando para a estante) Vamos ver
no dicionário.
CORTA PARA –
66
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/32. EXT. – CASA LOPES / VARANDA SALA – TARDE. DIA 06
Hermínia, Margarida, António (Renato OFF)
(dia 4 de Março de 1968 – dia do Festival RTP da canção)
ANTÓNIO, um pouco debruçado na varanda e olhando na direcção do telhado,
segura um fio e fala alto. HERMÍNIA e MARGARIDA, à porta da varanda, observam
António com os braços meio levantados como se estivessem a preparar-se para o
segurar caso se desequilibre.
HERMÍNIA
Margarida, diz-lhe que ele saia daí antes que se
desgrace.
MARGARIDA (para ANTÓNIO)
António… tu não me caias lá abaixo!
ANTÓNIO
Renato! Posso puxar o fio?
RENATO (OFF)
Puxa!... E liga onde eu te disse!
CORTA PARA –
67
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/31A. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 06
Carlos e Luís
LUÍS vai buscar o dicionário e dá-o a CARLOS. Sentam-se os dois na cama a
folhear o dicionário para descobrir o que é o útero.
CARLOS
Útero… órgão feminino em que se gera o feto dos
mamíferos. É oco e destina-se a servir de
receptáculo ao ovo.
LUÍS
Mas os mamíferos não põem ovos.
CARLOS
Se calhar não põem porque os ovos dos
mamíferos ficam no útero. É o que diz aqui.
LUÍS
É incrível! E o que é que acontece à casca?
CARLOS
Sei lá! Deve sair no cocó.
CORTA PARA –
68
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/32A. INT. – CASA LOPES /SALA COMUM – TARDE. DIA 06
Hermínia, Margarida, Renato, António, Toni e Isabel
ANTÓNIO puxa o cabo coaxial da antena, onde já está uma ficha ligada na ponta e
entra em casa. Liga o cabo à televisão. Liga a televisão.
HERMÍNIA e MARGARIDA têm o olhar preso ao ecrã.
INSERT AUDIO: som de “chuva” na televisão.
HERMÍNIA (rezingona)
Tanta despesa para isto!
ANTÓNIO
Calma, calma… se calhar
também têm de aquecer.
estes
aparelhos
MARGARIDA (entusiasmada a olhar para a
televisão)
Olha, olha! Estou a ver duas pessoas… ou é só
uma?... Que esquisito?
ANTÓNIO
Tem calma, o Renato está a mexer na antena, a
ver se captamos alguma coisa.
CORTA PARA –
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CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/31B. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES – TARDE. DIA 06
Carlos e Luís
LUÍS ri tapando a boca. CARLOS olha-o sem se rir.
LUÍS (retomando o ar sério)
Não sabia que tu tinhas útero…
CARLOS (muito sério)
Mas tenho… e ainda por cima não posso ter
filhos.
LUÍS
Pudera! Quem põe ovos tem pintainhos, não tem
filhos!
CARLOS
Não é por isso. É porque o cancro no útero faz
com que eu seja estéril… e estéril é uma pessoa
que não pode ter filhos.
LUÍS
E agora?
CARLOS
Não sei. (encolhe os ombros)
CARLOS e LUÍS ficam pensativos
NARRADOR (OFF)
Sabia, sim… Tinha um plano digno do Dr. Kimble
mas não queria dizer a ninguém o que ia fazer.
Nesse momento esqueci por completo o peditório
das cheias, o peditório da igreja, os problemas do
MARINHO e até o festival da canção. Esqueci
tudo, o meu problema era o primeiro assunto sério
da minha vida.
FIM DE CENA –
70
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/32b. INT. – CASA LOPES /SALA COMUM – TARDE. DIA 06
Hermínia, Margarida, Renato, António, Toni e Isabel
INSERT AUDIO: Som de procura de sintonia.
O som vai-se alterando, às vezes parece sintonizado e depois perde-se. Finalmente
estabiliza.
INSERT AUDIO:
Programa do dia do festival à tarde
ANTÓNIO (vitorioso, olhando para a imagem e
depois para elas)
E agora, hem?! Que bela imagem!
HERMÍNIA (curiosa)
Quem é aquela flausina que está dentro do
aparelho?
MARGARIDA (encantada)
Não sei mãe… mas tem um vestido tão bonito.
ANTÓNIO (na varanda, falando para o telhado)
Já está, Renato, não mexas mais! (para Hermínia
e Margarida) Bom, eu tenho de ir para a
tipografia. Já me atrasei muito com isto da antena.
MARGARIDA
Está bem, querido. Mas não venhas tarde, Ainda
vens para ver o festival não vens?
ANTÓNIO
Venho pois. O Engenheiro também quer ver.
HERMÍNIA (alarmada)
O Engenheiro vem cá ver o festival?
ANTÓNIO (rindo)
Não, dona Hermínia… o Engenheiro vê o Festival
na casa dele e nós vemos no nosso aparelho…
HERMÍNIA (resmungona mas sem tirar os olhos
da televisão)
Sempre quero ver se o conseguem pagar.
Sorrindo, satisfeito, ANTÓNIO dá um beijo a MARGARIDA mas antes de sair, dá
uma olhada na televisão. TÓNI entra na sala e aproxima-se da televisão,
entusiasmado.
71
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
ANTÓNIO
Foi uma bela compra! (repara que MARGARIDA e
HERMÍNIA estão muito perto da televisão)
Sentem-se, não se deve ver televisão muito perto,
faz mal aos olhos.
RENATO entra.
RENATO
Então… Vê-se bem?
HERMÍNIA (encantada com a televisão)
Vê-se e ouve-se que é uma maravilha.
MARGARIDA (recuando e sentando-se no sofá)
Vá mãe. Sente-se aqui porque diz que temos de
estar a três metros e meio do aparelho para não
queimarmos a vista... (para TONI) Senta aqui,
filho…
HERMÍNIA
(sentando-se
MARGARIDA, no sofá)
Que conversa é essa?
ao
lado
de
MARGARIDA
Foi uma coisa que eu li numa revista Temos de
estar a três metros e meio… É o ideal.
TÓNI senta-se a ver a televisão.
RENATO e ANTÓNIO estão fixados no ecrã.
INSERT AUDIO: anúncio de TV (escolher)
ANTÓNIO
Tenho de ir, Renato. Pago-te um copo no Fánan.
logo à noite
RENATO (para MARGARIDA e HERMÍNIA)
Não desliguem o aparelho… Deixem-no aquecer
bem… Adeus, boa tarde!
Com o olhar preso à imagem e um enorme sorriso nos lábios, TÓNI, MARGARIDA e
HERMÍNIA nem respondem a RENATO.
ISABEL, com uma folha de papel na mão, entra na sala quando ANTÓNIO e
RENATO estão a sair, dá-lhes passagem e depois de ouvir a porta da rua fechar,
fala, muito nervosa.
72
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
ISABEL (nervosa)
Mãe… venha cá!
MARGARIDA (entusiasmada com a televisão)
Ó filha, já viste? Já ligaram o aparelho.
ISABEL
Isso agora não interessa. Venha cá, se faz favor.
MARGARIDA
Que bicho te mordeu, filha? Não vês que estamos
a ver televisão?
ISABEL (mostrando a folha de papel e falando
baixo)
Mãe!... É o Carlos,. Venha cá!
MARGARIDA (levantando-se, sem que os outros
se tenham apercebido)
O que é que foi agora?
ISABEL leva MARGARIDA para fora da sala.
FIM DE CENA –
73
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/33. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL – TARDE. DIA 06
Margarida e Isabel
Em cima da cama de ISABEL está a caixa do peditório com a ranhura alargada por
uma faca da cozinha. Sobre a colcha estão muitas moedas e duas notas de vinte
escudos e a colecção de selos/caderneta dos correios (poupanças de Carlos)
MARGARIDA (Sentada na cama, com um ar
desesperado)
Mas ele fugiu como? Para onde é que ele fugiu?
ISABEL
Não diz, mãe. (lendo a carta) “Eu sei que o
dinheiro do peditório não chega para a operação
que a Isabel tem de fazer em Londres
MARGARIDA (interrompendo)
Tu estás a ver o que fizeste?
ISABEL (continua a ler)
… Por isso deixo também a minha caderneta dos
selos que já tem 50 escudos”.
MARGARIDA (desesperada)
Coitadinho do miúdo! Ai, valha-me Deus!
ISABEL (continua a ler)
Não se preocupem comigo. Vou-me embora
porque sei que o meu cancro já não tem cura e
tenho poucos dias de vida. (ISABEL pára de ler e
chora).Ó, Mãe, a culpa é minha.
MARGARIDA prepara-se para ralhar a ISABEL mas contem-se.
MARGARIDA
Não digas isso! Tu não tens culpa das confusões
que o teu irmão faz… Ele tem uma imaginação
que nunca mais acaba. Sabes de quem é a
culpa? Livros aos quadradinhos!
ISABEL
Tudo isto é por causa dos comprimidos!... Então a
avó não via que aquilo não era Dorigripe?
MARGARIDA
A tua avó sabe lá! A tua avó nunca tomou um
comprimido na vida!
ISABEL (aflita)
O que é que fazemos agora?
74
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
MARGARIDA
Sabes o que é que vamos fazer? Tu vais chamar
o teu irmão e vamos procurar o Carlitos antes que
anoiteça.
ISABEL
Mas, ó mãe…
MARGARIDA
Não digas nada. Vais esconder aquela caixa, vais
esconder esta carta para não afligir a tua avó. E
depois vamos dar uma volta ao bairro que ele
deve estar por perto.
ISABEL e MARGARIDA saem do quarto, apressadas.
FIM DE CENA –
75
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/35. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO –TARDE. DIA 06
Carlos, Luís e MARINHO
CARLOS, LUÍS e MARINHO estão na cabine do camião abandonado.
Junto a Carlos está a sua pasta da escola.
MARINHO
Que mal é que tem? O Robin dos Bosques
também roubava.
CARLOS
Eu sei mas uma coisa é roubar os ricos e outra é
roubar os padres. É muito mau uma pessoa saber
que vai morrer em pecado mortal.
LUÍS
Mas tu tens a certeza que vais morrer?
CARLOS
Tenho a certeza absoluta. Até me está a cair o
cabelo como aos velhotes. Olha.
CARLOS inclina a cabeça para mostrar o cabelo.
MARINHO observa com atenção e puxa-lhe ligeiramente o cabelo.
MARINHO
Eu acho que estás na mesma, não estás careca.
CARLOS
Não estou careca mas vou ficar.
LUÍS puxa-lhe o cabelo com força
CARLOS
Auuuu!!!!
LUÍS
Estás a ver como não cai? O teu cabelo está
agarrado à cabeça, como o meu.
CARLOS (para LUÍS, coçando a zona da cabeça
que lhe doeu)
Tu não percebes nada disto.
MARINHO
E o que é que interessa? Se vais morrer não
importa se tens cabelo.
LUÍS
Pois é. E o que é que vais fazer agora?
76
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CARLOS
Vou fugir para muito longe. Vou andar de um lado
para o outro sem parar… assim a polícia nunca
me encontra.
LUÍS e MARINHO olham-se, com admiração pelo amigo.
MARINHO
Como o fugitivo?
CARLOS faz um ar grave e acena afirmativamente com a cabeça.
MARINHO
E onde é que vais dormir?
CARLOS
Hoje durmo aqui… amanhã ainda não sei.
LUÍS
E o que é que comes? Podes morrer de fome!
CARLOS
Não…
CARLOS abre a pasta e vira-a. Caem sobre o assento duas carcaças, duas latas de
atum, um bocado de pão, meio chouriço, um abre-latas e um rolo de papel higiénico.
LUÍS (rindo)
Para que é que tu queres o papel higiénico?
CARLOS
Para que é que tu achas?
CARLOS olha para dentro da mala e ainda tira uma garrafa de Laranjina C e uma
cenoura.
LUÍS
O pior de tudo é que assim já não vais ver o José
Cid no Festival.
CARLOS
Que azar! Logo agora que já se pode ver
televisão em minha casa é que eu havia de ficar
estéril e com cancrono útero.
Os TRÊS ficam por momentos em silêncio, tentando compreender os caprichos do
destino.
LUÍS
Tenho de ir para casa.
MARINHO (para CARLOS)
Se quiseres posso ficar mais um bocadinho aqui
contigo.
77
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CARLOS
Não é preciso, obrigado. Podes ir.
MARINHO e LUÍS preparam-se para descer do camião.
CARLOS
Espera, Mário, espera.
CARLOS põe a mão na pasta da escola e tira uma caderneta de cromos de futebol .
CARLOS (Dando a caderneta a MARINHO)
Toma isto. É para ti.
MARINHO (emocionado com o presente)
Mas e tu…
CARLOS (interrompe-o)
Acaba a colecção por mim… está bem?
MARINHO olha para a caderneta com um ar triste LUÍS leva uma mão ao bolso e
tira um canivete suíço.
LUÍS
E isto é para ti. Se precisares de caçar ou de abrir
uma garrafa…tens aí tudo: um garfo, uma fca e
um abre-latas.
CARLOS (entusiasmado com o presente)
Obrigado.
LUÍS
A tua mãe depois devolve-me quando tu
morreres. Se precisares de lutar com a polícia
podes puxar do canivete.
MARINHO
Não te rendas, Carlos, nunca te rendas.
CARLOS olha para o canivete.
LUÍS
Agora tenho mesmo de ir para casa. Amanhã
quando acordar venho aqui ter contigo.
CARLOS
Digam à minha mãe que gosto muito dela… e ao
meu pai, e à minha irmã… e digam ao Tóni. Ah…
E não se esqueçam da minha avó. Digam
também à minha avó,
78
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
LUÍS e MARINHO descem definitivamente do camião e começam a afastar-se.
CARLOS chama-os.
CARLOS
Olhem, olhem!
LUÍS e MARINHO viram-se.
CARLOS
Não digam a ninguém onde é que eu estou. Têm
de jurar.
LUÍS e MARINHO beijam o polegar num pacto secreto de silêncio.
Depois viram-se novamente e retomam o caminho a correr.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
79
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/36. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06
Hermínia, Margarida, Toni e Isabel
Na televisão passa um anúncio cantado. HERMÍNIA, única espectadora na sala
canta animadamente a canção. Margarida, Toni e Isabel passam para os quartos,
vindos da rua, sem ela perceber.
INSERT VÍDEO: Anúncio cantado da época. (escolher)
HERMÍNIA
(Acompanha o anúncio, cantarolando)
CORTA PARA –
80
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/37. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL – NOITE. DIA 06
Margarida, Toni e Isabel
INSERT AUDIO: ao fundo ouve-se a canção do anúncio que vem da sala.
MARGARIDA e ISABEL entram muito nervosas, ainda com os casacos que levaram
à rua. TÓNI entra atrás delas e tenta acalmá-las.
TÓNI
Podemos avisar a polícia e…
ISABEL (interrompe-o)
E depois o pai ficava a saber tudo. Não pode ser.
TÓNI
A confusão que tu armaste com a porcaria das
pílulas.
MARGARIDA (nervosa)
Se calhar perdeu-se… Pois se não está em casa
do Luís não está na rua… onde é que pode estar?
Perdeu-se!
TÓNI
Não perdeu nada. Deve estar por aí a fazer
disparates… Quando lhe der a fome vai ver se ele
não aparece!
MARGARIDA
Valha-me Deus… É que já está a ficar noite.
(lembra-se de uma coisa) Ele não estará em casa
do Marinho?
TÓNI (dirigindo-se à porta do quarto)
Eu vou lá ver.
MARGARIDA (alarmada, saindo ela do quarto)
Não, não, não …
ISABEL
Porquê?
MARGARIDA
Porque eu não quero que vás aquela casa. Eu
vou ligar, é para isso que servem os telefones.
FIM DE CENA –
81
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/38. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO – NOITE. DIA 06
Carlos
CARLOS prepara-se para passar ali a noite. Iluminado por uma lanterna, põe a
pasta de maneira a servir de almofada e tapa-se com o casaco como se fosse um
cobertor. Depois abre o número 3 do “pisca-pisca” e começa a ler. Sem deixar de ler,
estende a mão para o tablier e pega numa tablete de chocolate. Dá uma dentada.
FIM DE CENA –
82
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/39. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM – NOITE. DIA 06
Margarida, Hermínia
MARGARIDA marca um número de telefone.
Espera que atendam mas está ocupado.
INSERT AUDIO: som de linha telefónica ocupada.
MARGARIDA
Que maçada. Isto está sempre impedido.
(desliga)
INSERT VÍDEO: Imagens da Viagem de Américo Tomás em África
HERMÍNIA está fixada na televisão
LOCUTOR (OFF)
O Chefe de Estado regressou no passado dia 21
de Fevereiro da sua viagem ao Ultramar. “ É de
acentuar a maneira como a população nativa
acorreu a saudar o Chefe de Estado e como as
autoridades
tradicionais
quiseram
afirmar
igualmente a sua presença pública, a quem
afirmaram o seu respeito e manifestaram o seu
apoio.”
MARGARIDA continua junto ao telefone, nervosa.
HERMÍNIA
Olha que lindo! Ninguém diria que há guerra em
África! (repara que MARGARIDA vai pegar no
telefone) Estás a ligar para quem?
MARGARIDA
Eu?... Para ninguém, mãe.
HERMÍNIA
Mau Maria, tu estás a esconder-me alguma
coisa?
MARGARIDA
Não. Estou só a tentar ligar ao António mas está
sempre impedido.
HERMÍNIA volta a concentrar-se na televisão que continua a dar imagens de
Américo Tomás em África. MARGARIDA volta a marcar o número no telefone e sai
com o telefone para o hall e fecha a porta. HERMÍNIA está tão concentrada na
televisão que nem repara nesta movimentação.
FIM DE CENA –
83
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/40. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO – NOITE. DIA 06
Camões e Carlos
CAMÕES atravessa o descampado a caminho de casa. Apoiado na sua bengala,
percebe-se que CAMÕES está cansado e vai a falar sozinho sem percebermos bem
o que diz.
CAMÕES
Pois com certeza… E se ela me aparecesse em
casa? Eu não sei o que havia de fazer… mas
tinha de ser duro, implacável.
CAMÕES aproxima-se da zona onde está o camião.
CARLOS, Alheio à proximidade de CAMÕES, continua a ler a sua revista de
quadradinhos e a comer o seu chocolate. De repente ouve a voz de CAMÕES
CAMÕES (OFF)
Quem é que está aí?
Ao ouvir CAMÕES, CARLOS fica muito quieto, com a revista a tremer nas mãos e
não responde. Mas esquece-se de apagar a lanterna.
CAMÕES (OFF)
Quem é que está aí?
CARLOS apaga a lanterna e continua quieto. Sustém a respiração.
CAMÕES
Não te faças desentendido que eu sei que está aí
alguém. Vá… Vem à janela!
CARLOS começa a mexer-se muito devagar para espreitar pela janela.
Quando vê que é CAMÕES fala-lhe.
CARLOS
Olá, senhor Camões.
CAMÕES
Olá…. Então pode-se saber porque é que estás aí
a esta hora?
CAMÕES avança um pouco para ficar mais próximo de CARLOS.
CARLOS
Estou a ler… a minha mãe hoje deixou-me ficar a
brincar até mais tarde.
CAMÕES
Desembucha, rapaz… essa mentirola eu não
engulo. Porque é que estás aqui?
84
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CARLOS hesita mas acaba por falar.
CARLOS
É que eu não posso ter filhos…
CAMÕES
Não me digas?!
CARLOS
Nem filhos nem filhas.
CAMÕES
Ora aí está um grande problema. E tu tens
namorada?
CARLOS
Não.
CAMÕES
Pois… Quando tiveres ela vai apanhar um
desgosto.
CARLOS
Isso não vai acontecer porque entretanto eu
morro. Já tenho poucos dias de vida.
CAMÕES
Olha… Que disparate esse...
CARLOS
Não é disparate, é verdade. Estou tão mal do
útero que já nem vale a pena ser operado.
CAMÕES (controlando o riso)
O teu problema é o útero?
CARLOS
É.
CAMÕES
E vieste para o camião para morrer?
CARLOS não responde e os seus olhos parecem estar a ponto de se encher de
lágrimas.
CAMÕES
Ai rapaz, rapaz! Se cada vez que temos um
problema nos metêssemos dentro de um camião
para morrer… Não havia camiões em Portugal
que chegassem para tanta gente…
CARLOS
Mas eu estou muito triste.
85
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CAMÕES (brincando com a situação)
Pois… Mas devias estar alegre, sabes porquê?
Porque se não tiveres filhos também não tens
problemas… a verdade é essa.
CARLOS
O senhor Camões também é estéril?
CAMÕES
Tu achas-me com cara de estéril?
CARLOS
Mais ou menos.
CAMÕES
Mau, mau!... Que a conversa já está a dar para o
torto.
CARLOS
Mas o senhor Camões não é casado eu pensei…
CAMÕES
Mas pensaste mal. Eu vou-te explicar uma coisa:
As mulheres são muito espertas. Passam a vida a
dizer que querem ser bem tratadas e amadas e
sei lá mais o quê… mas quando um homem se
apaixona a sério elas assustam-se e fogem.
Percebes isto?
CARLOS
Não percebo nada.
CAMÕES
Nem eu… nunca percebi as mulheres.
CARLOS
Mas a minha avó é fácil de perceber. Vocês até
podiam ser namorados…
CAMÕES
Tu estás tonto, rapaz? Tu julgas que eu não tenho
mais nada que fazer do que senão arranjar
namoradas com a minha idade?
CARLOS
Mas ela é simpática e foi só uma ideia para
resolver o seu problema
86
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CAMÕES
Está bem, obrigado. Esquece o meu problema e
vamos mas é falar sobre os teus. Pode ser?
CARLOS
Está bem.
FIM DE CENA –
87
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/41. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL – NOITE. DIA 06
Margarida, Toni e Isabel
MARGARIDA entra, angustiada no quarto de ISABEL
MARGARIDA
Já liguei!... A mãe do Marinho diz que ele hoje
não foi lá. O Marinho também não o viu… O que é
que havemos de fazer? O teu pai está quase a
chegar!... (pensa)
Espera! Já sei: Vais ligar para o café e diz ao teu
pai que se deixe estar lá com os amigos… Inventa
qualquer coisa, diz-lhe que o jantar está atrasado.
ISABEL
O pai vai achar isso muito esquisito.
MARGARIDA
Não interessa, seja o que Deus quiser!
É a única hipótese que nós temos agora para
ganhar tempo. Vá, vai!...
ISABEL sai do quarto apressada para ligar ao pai.
FIM DE CENA –
88
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
Os CLIENTES estão a beber cervejas com tremoços, sentados nas mesas.
ANTÓNIO e RENATO estão de pé, ao balcão. FÁNAN está atrás do balcão mas a
conversar com eles.
ANTÓNIO
Quem é que tu achas que vai ganhar?
RENATO
O José Cid.
ANTÓNIO
Não gostas da Tonicha?
RENATO
Gosto mas o José Cid é mais moderno.
FÁNAN
Então, moderno por moderno, vai ganhar o Carlos
Mendes…
RENATO (para Fánan)
Tu estás maluco…
ANTÓNIO
Não sei… o Fánan é capaz de ter razão.
RENATO
Enquanto existir o Salazar os yéyés não ganham
nada, amigo.
FÁNAN
Fala baixo!... Não quero conversas dessas aqui
no meu estabelecimento, já vos disse!
RENATO
Tu és muito exagerado! Eu até estou a elogiar a
ordem e os bons costumes, eu não gosto dessa
malta nova. Não gosto, não gosto!
FÁNAN
Então está bem.
Que ganhe o melhor e acabou.
ANTÓNIO
Vamos mas é para casa. Quanto é que eu te
devo, Fánan?
89
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
INSERT AUDIO: O telefone toca.
FÁNAN atende o telefone
FÁNAN
Estou? (…) Olá, Isabel (…) Sim, está, está! Eu
vou chamar…(para ANTÓNIO) É para ti.
ANTÓNIO (estranhando)
Quem é?
FÁNAN
É a tua filha! (para ISABEL) Adeus….
ANTÓNIO pega no telefone e fala, ligeiramente alarmado.
ANTÓNIO
Olá, filha! Passa-se alguma coisa?
CORTA PARA –
90
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43. INT. – CASA LOPES/HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
ISABEL esticou o fio do telefone para falar do hall com a porta da sala fechada.
ISABEL
Olá, pai. A mãe diz que pai pode ficar aí mais um
bocadinho. que o jantar está atrasado.
CORTA PARA –
91
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 A. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42)
ANTÓNIO (estranhando)
À tarde pede-me para chegar cedo por causa do
Festival e agora quer que eu me demore?
CORTA PARA –
92
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 A. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
(CONT. 001/43)
ISABEL
Não sei, pai… só estou a transmitir o que a mãe
me disse.
CORTA PARA –
93
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 B. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 A)
ANTÓNIO (desconfiado)
Passa-se alguma coisa aí em casa?
CORTA PARA –
94
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 B. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
ISABEL
O que é que se há-de passar, pai? Que coisa!...
CORTA PARA –
95
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 C. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 B)
ANTÓNIO
Chama a tua mãe. Eu quero falar com ela!
CORTA PARA –
96
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 C. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel, Hermínia
(CONT. 001/43 C)
Curiosa, HERMÍNIA aparece no Hall e fica a ouvir a conversa. ISABEL baixa o tom
de voz.
ISABEL
A mãe não pode vir ao telefone.
CORTA PARA –
97
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 D. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 C)
ANTÓNIO (desconfiado)
Mau, mau… Isto cheira-me a esturro… Não pode
vir ao telefone porquê?
CORTA PARA –
98
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 D. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel, Hermínia
(CONT. 001/43 C)
ISABEL (mente)
Está na casa de banho.
HERMÍNIA volta para a sala.
CORTA PARA –
99
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 E. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 D)
ANTÓNIO
Ah! E tens a certeza que está tudo bem?
CORTA PARA –
100
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 E. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
(CONT. 001/43 D)
ISABEL
Claro que está pai. Até logo.
CORTA PARA –
101
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 F. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 E)
ANTÓNIO
Já agora, então… Pago mais um copo aqui ao
Renato.
CORTA PARA –
102
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 F. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
(CONT. 001/43 E)
ISABEL (aliviada)
O pai é que sabe.
CORTA PARA –
103
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 G. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 F)
ANTÓNIO (rindo para RENATO)
Se não fosse ele, não víamos o Festival em casa.
CORTA PARA –
104
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 G. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
(CONT. 001/43 F)
ISABEL
É verdade! … Até logo.
CORTA PARA –
105
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/42 H. INT. – CAFÉ FANÁN / BAR – NOITE. DIA 06
António, Renato, Fánan e Clientes
(CONT. 001/42 G)
ANTÓNIO
Espera aí, espera aí … A que horas é que a tua
mãe põe o jantar na mesa?
CORTA PARA –
106
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/43 H. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Isabel
(CONT. 001/43 F)
ISABEL
Daqui a uma hora, mais ou menos.
ISABEL desliga o telefone aliviada
CORTA PARA –
107
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/44. INT. – CASA LOPES / CORREDOR – NOITE. DIA 06
Isabel, Toni e Margarida
INSERT AUDIO:
Ao fundo ouve-se o som da televisão
(escolher um programa do dia do festival – 4 de Março)
INSERT AUDIO: Som da campainha da porta.
MARGARIDA, ISABEL e TÓNI saem do quarto de ISABEL nervosos, para abrir a
porta.
CORTA PARA –
108
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/45. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Margarida, Tóni e Isabel, Marinho e Ilda
INSERT AUDIO: Ao fundo continua a ouvir-se a televisão
MARGARIDA abre a porta e vê MARINHO e ILDA (atraente e vistosa: do género
provocante mas contida, sem exageros). Trouxe MARINHO até ali por uma orelha e
MARINHO está esticado na direcção da mão da mãe, como se estivesse em bicos
dos pés para não lhe doer tanto. MARINHO tem uma expressão de dor e ILDA tem
na mão a caderneta de cromos da bola de CARLOS (o mesmo da cena 001/35)
MARINHO
Au! Au!
ILDA
Cala-te!
MARGARIDA
O que é que se passa?
ILDA
Já vamos descobrir.
(dando mais um puxão de orelhas a MARINHO)
Desembucha. Onde é que está o Carlitos?
MARINHO
Au! Não sei!
ILDA
Quem é que te deu isto?
MARINHO
Ninguém! Encontrei na rua!
MARGARIDA pega no Álbum e abre-o na primeira página
MARGARIDA
Cá está! Carlos Manuel Marques Lopes.
(para MARINHO)Mas isto é do Carlitos!
MARINHO
Pois é! Tem o nome dele.
MARGARIDA
E onde é que ele te deu isto?
MARINHO encolhe os ombros como quem não sabe a resposta mas ILDA puxa-lhe
novamente a orelha.
109
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MARINHO
Não posso dizer! Eu jurei!
ILDA dá um carolo a MARINHO
ILDA
Que miúdos! (para Margarida) Desculpe vir cá
abaixo incomodar mas esta criança só me dá
trabalhos e acaba de me dizer que o seu filho vai
ficar sem cabelo porque está estéril e tem cancro
no útero.
ILDA dá mais um puxão de orelhas a MARINHO
MARINHO
Auuuuuu!
FIM DE CENA –
110
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CENA 001/46. INT. – PRÉDIO LOPES / ESCADA – NOITE. DIA 06
António e Marinho (off)
ANTÓNIO entra no prédio e ouve os gritos de MARINHO. Não sabe o que se passa
e faz uma cara de espanto e horror.
MARINHO (OFF)
Au, Au…. Aiiiiiiiiiii…………….
FIM DE CENA –
111
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CENA 001/47. INT. – PRÉDIO LOPES / PATAMAR – NOITE. DIA 06
Margarida, Isabel, Tóni, Marinho, António e Ilda
(CONT. 0001/45)
ANTÓNIO chega junto à porta de casa mas não chega a ouvir o que MARINHO
disse.
ANTÓNIO
Boa noite, boa noite! O que é que se passa aqui?
Os gritos ouvem-se na rua!
MARINHO faz um ar muito enfiado e olha para o chão.
ISABEL
Pai?! Venha cá que eu explico-lhe. Venha cá!
ISABEL puxa ANTÓNIO por um braço e leva-o para o quarto dele.
FIM DE CENA –
112
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CENA 001/48. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL – NOITE. DIA 06
António e Isabel
ISABEL
Parece que o Marinho sofre dos nervos. E quando
se assusta com alguma coisa começa a gritar
parece que o estão a matar. É horrível, coitado!
ANTÓNIO
O que esse miúdo está a precisar é de um bom
par de açoites.
ISABEL
A mãe dele diz que já experimentou tudo… Mas o
pior não é isso.
ANTÓNIO
O que é que pode ser pior? Ter uma criança para
aí aos berros por tudo e por nada?
ISABEL
Por isso é que ligámos para o café para o pai não
vir tão cedo.
ANTÓNIO
Mau! Agora é que já não estou a perceber!
ISABEL
Parece que o Mário tem medo de si.
ANTÓNIO
De mim?
ISABEL acena afirmativamente.
CORTA PARA –
113
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CENA 001/49. INT. – CASA LOPES/HALL – NOITE. DIA 06
Margarida, Tóni, Isabel, Ilda e Marinho
INSERT AUDIO: ao fundo ouve-se a televisão.
ILDA (ameaçadora)
Ou contas tudo de uma vez por todas ou
arranco-te a orelha.
CORTA PARA –
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CENA 001/48A INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL – NOITE. DIA 06
António e Isabel
ANTÓNIO
Porque é que não levam o miúdo ao médico?
ISABEL
Já levaram…(hesita) Já levaram… o médico diz
que ele tem crises.
ANTÓNIO
Crises?
ISABEL (inventando)
Está carente e como não tem pai faz o que pode
para chamar a atenção da mãe.
ANTÓNIO (corrige-a)
Faz o que pode e o que não pode!
ISABEL
Coitado! O mais importante agora é não ir lá para
ele não o ver.
ANTÓNIO
E logo havia de ter medo de mim… eu até
simpatizo bastante com ele… por acaso eu até te
vou dizer uma coisa: Eu gosto muito desse miúdo,
eu tenho pena dele!
ISABEL
Não ligue que isto passa. O pai deixe-se estar
aqui, aproveite para descansar um bocadinho até
eles se irem embora.
ANTÓNIO (deitando-se em cima da cama, com os
braços cruzados atrás da cabeça)
É capaz de ser boa ideia. Devia ser assim todos
os dias…
ISABEL sai do quarto
FIM DE CENA –
115
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CENA 001/49A. INT. – CASA LOPES/HALL – NOITE. DIA 06
Margarida, Tóni, Isabel, Ilda e Marinho
MARINHO
A irmã do Carlos tem cancro no útero mas vai ser
operada e o Carlos está mais doente do que ela e
já não pode ser operado.
ILDA
Que conversa é esta? (para ISABEL)
Tu tens alguma doença má?
MARGARIDA
Que disparate! A Isabel não está doente!
ILDA puxa a orelha novamente
MARINHO
Auuuu!
MARGARIDA
Deixe estar… Deixe estar… eles têm muita
imaginação… E depois começam a fazer aquelas
confusões…
CORTA PARA –
116
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CENA 001/50. EXT. – RUA LOPES / PORTA PRÉDIO – NOITE. DIA 06
Camões
CAMÕES aproxima-se do prédio, olha na direcção da varanda e começa a chamar.
CAMÕES
Antóóónio! Antóóónioooo…
CORTA PARA –
117
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CENA 001/49B. INT. – CASA LOPES/HALL – NOITE. DIA 06
Margarida, Toni, Isabel, Ilda e Marinho
ILDA
Eu por mim não saio daqui enquanto ele não me
disser onde está o Carlitos.
MARINHO
Auuu!!!
FIM DE CENA –
118
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/50A. EXT. – RUA LOPES / PORTA PRÉDIO – NOITE. DIA 06
Camões
CAMÕES continua a chamar.
CAMÕES
Antóóónio! Antóóónioooo…
CORTA PARA –
119
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CENA 001/51. INT. – CASA LOPES/ SALA COMUM – NOITE. DIA 06
Hermínia
HERMÍNIA desliga a televisão e abre a porta da varanda para ver o que se passa.
CORTA PARA –
120
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CENA 001/52. EXT. – RUA LOPES / VARANDA SALA – NOITE. DIA 06
Hermínia e Camões
HERMÍNIA
Que gritos são esses. O senhor não sabe tocar à
campainha, senhor Camões?
CAMÕES
Boa noite, dona Hermínia, o António?
HERMÍNIA
Ainda não chegou!
CAMÕES
É para dizer que está no camião!
HERMÍNIA (sem perceber nada)
O meu genro está no camião?
CAMÕES
O miúdo… O miúdo é que está no camião.
HERMÍNIA
Eu não percebo! O senhor não quer subir?
CAMÕES
Muito obrigado, D. Hermínia mas, com o devido
respeito, a senhora não é o meu género!... Boa
noite.
Sem dizer mais nada, Camões afasta-se e HERMÍNIA vai para dentro.
HERMÍNIA (resmunga ao entrar em casa)
O miúdo está no camião e eu não sou o género
do senhor Camões… este homem cada vez está
pior!
FIM DE CENA –
121
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CENA 001/53. INT. – CASA LOPES / HALL – NOITE. DIA 06
Margarida, Tóni, Isabel, Marinho, Ilda, Hermínia
ILDA
Qual foi a última vez que tu o viste?
MARINHO faz um ar pensativo mas não responde.
HERMÍNIA passa no hall.
HERMÍNIA
Está tudo doido. O senhor Camões em vez de
bater à porta fez-me ir à varanda para falar.
MARGARIDA
O que é que ele quer, mãe?
HERMÍNIA
Sei lá… Diz que está um miúdo no camião e que
eu não sou o género dele… está doido!
TÓNI (percebendo onde está Carlos)
Como é que não me lembrei disto?! Eu vou lá
buscá-lo. (sai a correr pela escada abaixo)
HERMÍNIA
Mas ele vai buscar quem? Isto está tudo muito
esquisito e eu sou sempre a última a saber as
coisas nesta casa.
FIM DE CENA –
122
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CENA 001/54. – CHROMA-KEY / SONHO DE CARLOS – DIA 00
Montagem: Carlos integrado num filme, TÓNI (OFF)
INSERT AUDIO: Música
LOCUTOR (OFF)
O nome: Carlos Lopes
O destino: Longe, fugir do mundo que sempre
conheceu e ir morrer longe.
A ironia: Carlos Lopes tem cancro no útero.
Tomou os comprimidos errados.
A sua sina: Ser a versão portuguesa do inocente
Dr. Richard Kimble.
Ele é “O NOVO FUGITIVO”.
FUNDE C/
123
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CENA 001/55. INT. – CASA LOPES/QUARTO CASAL – NOITE. DIA 06
Margarida e António
ANTÓNIO está deitado com os braços cruzados atrás da cabeça.
ANTÓNIO
Tão pequenino e com crises… E logo havia de ter
medo de mim que simpatizo tanto com ele.
MARGARIDA
Coitadinho!
ANTÓNIO
Já se foram embora?
MARGARIDA
Já.
ANTÓNIO (enjeitando-se para se levantar)
Vamos ver o festival?
MARGARIDA (insinuante)
Não, espera. Espera. Nós também nunca
estamos sozinhos… (Riem) e eles estão
distraídos com a televisão e tu hoje estás tão
distinto … estás mais elegante…
ANTÓNIO (olha para a sua roupa)
Achas?
ANTÓNIO abraça-a e beija-a. Caem sobre as almofadas.
MARGARIDA (rindo e endireitando-se)
Ó homem, espera…. Tem calma!
Riem e beijam-se.
ANTÓNIO
Vai lá ver se estão todos distraídos.
MARGARIDA
(levantando-se e ajeitando o cabelo)
Está bem, eu vou… mas tu não saias daqui.
FIM DE CENA –
124
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/56. INT. – DESCAMPADO / CAMIÃO – NOITE. DIA 06
Tóni e Carlos
TÓNI conversa com CARLOS, sentado ao seu lado dentro do camião
TÓNI
Tu não tens nada disso, só estavas com febre
porque tinhas gripe… Mais nada…
CARLOS
E a Isabel?
TÓNI
Vamos ter uma conversa de adultos. Então é
assim…
TÓNI abana a cabeça e começa a dar-lhe uma explicação que já não ouvimos
porque passamos a ouvir a voz do narrador. CARLOS faz expressões de espanto
enquanto ouve TÓNI.
NARRADOR (OFF)
Nessa noite o meu irmão começou a revelar-me
os insondáveis mistérios da natureza feminina. No
fundo foi a primeira vez que alguém me explicou
coisas de sexo mas eu, em vez de me interessar
pelo assunto, achei tudo muito esquisito e muito
perigoso.
CARLOS
Já começou o festival?
TÓNI (olhando para o relógio)
Olha deve estar a começar… Se formos a correr
ainda apanhamos a primeira música.
CARLOS e TÓNI saem do camião a correr.
FIM DE CENA –
125
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/57. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL – NOITE. DIA 06
Margarida e António
ANTÓNIO ainda está deitado. MARGARIDA aparece à porta do quarto.
MARGARIDA (sorrindo)
Anda lá, filho… Que o jantar está quase pronto e
o Festival está a começar.
ANTÓNIO (insinuante)
E eu a pensar que tinhas um plano melhor do que
ver o festival.
MARGARIDA
E tenho… mas para mais logo.
ANTÓNIO (suspira, conformado)
Ai. Ai! Que vida tão dura!
MARGARIDA sorri, lança-lhe um beijo e sai, fechando a porta atrás de si.
FIM DE CENA –
PASSAGEM DE TEMPO
126
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/58. INT. – CASA LOPES/SALA COMUM – NOITE. DIA 06
Margarida, António, Hermínia, Tóni, Isabel e Carlos
INSERT AUDIO: Festival RTP da canção 1968 (última actuação)
A FAMÍLIA já jantou e estão sentados no sofá diante da televisão. Carlos está
sentado no chão, de pernas cruzadas.
NARRADOR (OFF)
Até me custava a acreditar na sorte que tive
nessa noite: descobri que não ia morrer, jantámos
ovos estrelados com batatas fritas e o meu pai
não tinha percebido nada sobre a minha fuga. Era
tudo bom!
ISABEL (para TÓNI)
Vamos ganhar, vamos ganhar!
ANTÓNIO
A canção da Tonicha é a mais bonita.
CARLOS
O melhor de todos é o José Cid.
HERMÍNIA
Sim senhora, nesta casa há para todos os gostos.
ISABEL e TÓNI batem palmas ao ouvir um distrito a votar em Carlos Mendes.
Por solidariedade CARLOS também bate palmas.
CARLOS
Se ganhar o vosso também não me importo. Não
é, Tóni?
TÓNI (sorri)
Tu é que sabes.
MARGARIDA (muito feliz)
Está a ver, mãezinha? É ou não é bom termos
televisão?
HERMÍNIA (interessada na televisão)
Shiu! Deixa-me ouvir.
127
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
STOCK SHOT
LOCUTOR (OFF)
…. Obrigado Distrito de Viseu. Está concluída a
votação.
E a grande vencedora do Quinto Grande Prémio
TV da Canção Portuguesa é… “Verão”
Interpretada por Carlos Mendes.
ISABEL, TÓNI e CARLOS levantam-se eufóricos a bater palmas.
ISABEL, TÓNI e CARLOS
Ganhámos, ganhámos
ANTÓNIO
É injusto.
INSERT VIDEO: CARLOS MENDES começa a repetir a canção.
ISABEL faz ANTÓNIO levantar-se e obriga-o a dançar com ela. TÓNI faz o mesmo
a MARGARIDA. CARLOS observa-os e decide dançar com a avó.
NARRADOR (OFF)
Agora cada um veste como quer e dança como
quer… mas naquela época nem toda a gente
aceitava a novidade e um cantor yéyé,
desconjuntado a dar vivas ao Verão não parecia
ter hipóteses de ganhar o festival… mas ganhou!
Continua a ouvir-se a canção e a FAMÍLIA continua divertida a dançar.
NARRADOR (OFF)
O meu pai nunca soube da minha fuga nem dos
comprimidos da Isabel e a minha avó fez-me uma
ou duas perguntas sobre o camião mas eu nunca
lhe contei nada. Durante uns tempos, a minha
mãe ficava nervosa quando a minha irmã saía
com o Rui mas foi-lhe passando e acabou por
esquecer.
Eu
continuei
a
crescer
“progressivamente”, como os meus músculos, e
sem perceber que naquele ano estava a acabar
um mundo antigo e a começar um mundo novo.
FUNDE C/
128
CONTA-ME_COMO FOI_EPISÓDIO_pp001.doc
CENA 001/99. FICHA TÉCNICA / IMAGENS DE ARQUIVO
VÍDEO:
À semelhança do que acontece no original, a FICHA TÉCNICA é precedida e
acompanhada por uma montagem de IMAGENS DE ARQUIVO.
Neste Episódio devem ver-se todos os concorrentes do festival desse ano em
plena actuação (Simone, Nicolau Breyner; João Maria Tudela; Tonicha; António
Calvário; Mirene; Carlos Mendes) a montagem destas imagens deve terminar com
CARLOS MENDES a actuar (primeiro em Lisboa e depois em Londres)
AUDIO: Sobre todas estas imagens e a ficha técnica deve ouvir-se sempre a mesma
versão da canção Verão, por Carlos Mendes
FIM DO EPISÓDIO
129
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