AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E JURÍDICAS NA FAMÍLIA NO SÉCULO XXI Ana Cláudia S. Scalquette* *Advogada. Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro Efetivo da Comissão de Biotecnologia e Estudos sobre a Vida da OAB/SP e Titular da Cadeira de n. 68 da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Sumário: 1. Início das transformações jurídicas na Família: uma abordagem constitucional. 2. Fotografia da Família na atualidade: destaque para os principais desafios. 3. A Família rumo ao século XXII. Referências. 97 // Revista da Faculdade de Direito // número 2 // segundo semestre de 2014 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette A mulher era considerada colaboradora do marido, detentor absoluto do poder sobre a família e sobre os filhos, conhecido como pátrio poder. 1. INÍCIO DAS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICAS NA FAMÍLIA: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL N ão há como iniciar qualquer abordagem sobre a família contemporânea sem ressaltar a importância que a Constituição Federal de 1988 tem para o direito de família. Pode-se, sem exageros, afirmar que o direito de família é dividido em duas fases: uma anterior à promulgação do texto constitucional de 1988 e outra depois de sua vigência. Os fatores determinantes para tal afirmação são, predominantemente, os dois princípios constitucionais que revolucionaram a interpretação dos dispositivos legais relativos à família e, por que não dizer, da própria vida em sociedade, ou seja, a igualdade jurídica de todos os filhos e a igualdade jurídica entre os cônjuges, fruto do tratamento isonômico de gêneros. Vivíamos, até então, em uma sociedade que privilegiava o filho legítimo em detrimento daquele classificado como ilegítimo, maldosamente chamado de bastardo. A igualdade, reconhecida constitucionalmente, portanto, veio para proibir quaisquer espécies de designações discriminatórias quanto aos filhos - havidos ou não da relação matrimonial - e garantir a isonomia entre homens e mulheres – maridos e esposas. Porém o texto constitucional foi além. Reconheceu como entidade familiar a família monoparental1 – formada por um só dos pais com a prole – e, de forma audaciosa para a época, também reconheceu expressamente como entidade familiar a união estável, união classificada por muitas décadas como concubinária, relação tida por libertina. Note-se que, até então, todas as pessoas, ainda que solteiras, que se casavam apenas em cerimônia religiosa ou que passavam a viver uma vida em comum com alguém não faziam jus a qualquer proteção do direito de família, que se atinha apenas ao casamento civil. Com a abertura constitucional dissolveu-se o gargalo de exclusão protetiva que se construiu de forma preconceituosa com famílias não matrimoniais, estendendo-se a tutela do direito de família a esses novos núcleos familiares. A abertura constitucional, porém, exigia detalhamento legal que viria anos mais tarde com as Leis 8.971/94 e 9.278/96 que disciplinaram os direitos das pessoas que viviam em uniões estáveis. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 98 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette Observe-se que as referidas leis entraram em vigor seis e oito anos após a Constituição Federal de 1988, fato que gerou inúmeras complicações pela falta de disciplina legal específica para as uniões estáveis por quase uma década. As próprias leis em comento, é de se ressaltar, também acabaram por trazer alguma confusão, especialmente quanto às exigências de tempo de relacionamento e desimpedimento das partes envolvidas nas uniões, requisitos para que fossem concedidos os direitos nelas previstos. Embora tenha havido acertos e desacertos ao longo dos anos em matéria de previsão legislativa, é inconteste o avanço que se iniciou com as previsões constitucionais, fato que possibilitou novas aberturas, outras interpretações doutrinárias e jurisprudenciais do conceito de família, ensejando a atual, e por vezes polêmica, concepção que se tem da família na contemporaneidade. 2. FOTOGRAFIA DA FAMÍLIA NA ATUALIDADE: DESTAQUE PARA OS PRINCIPAIS DESAFIOS Para analisarmos a família contemporânea e alguns de seus desafios no âmbito legislativo e social, fazemos, inicialmente, uma reflexão sobre o papel dos tribunais em matéria complexas, ou em casos classificados como de difícil solução. Muitos dos temas afeitos ao direito de família foram, são e serão sempre polêmicos, pois acabam por afetar não só convicções pessoais e morais, mas também religiosas de toda a sociedade, o que os eleva à categoria de assunto de interesse nacional, pautando, muitas vezes, debates políticos, mormente em época de campanhas eleitorais. Se pensarmos na possibilidade de dissolubilidade do casamento permitida pela a Emenda Constitucional n. 9/77, na aprovação da Lei do Divórcio - Lei n. 6.515/77 - e no reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988 teremos alguns exemplos de alterações legislativas que movimentaram não só o mundo jurídico, mas toda a sociedade. Embora atualmente a discussão tenha pairado sobre outras matérias, o fato é que a polêmica continua a ser vivenciada no âmbito jurídico, político e social, como se pôde evidenciar com o julgamento do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de reconhecimento das uniões homoafetivas como uniões estáveis. Por muitos anos, parte da doutrina expôs o argumento de que as uniões homoafetivas “possuem o mesmo elemento valorativamente protegido nas uniões heteroafetivas, que é o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública”2, portanto, merecendo a proteção integral do direito de família. Em maio de 2011, a questão foi definitivamente julgada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal3 que, ao acompanharem o voto do Ministro relator Ayres Britto, entenderam que se deveria dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impedisse o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, afirmando que o artigo 3.º, inciso IV, da Constituição Federal veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça e cor e que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colidiria com esse mandamento constitucional. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 99 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette Após a posição firmada na Suprema Corte, a matéria alcançou o Superior Tribunal de Justiça que entendeu pela possibilidade de conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento4. Na sequência, algumas Corregedorias5, por provimentos, passaram a permitir o casamento civil de pessoas do mesmo sexo, prática que culminou na Resolução n. 1756 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, de 14 de maio de 2013, que, em seu artigo 1.º prevê: É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Pois bem, como se pode depreender dos fatos acima, o início do reconhecimento da possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo foi dado pelo poder judiciário, situação absolutamente comum em questões polêmicas envolvendo o direito de família, seja pela dificuldade que representam os temas a serem discutidos no Congresso Nacional, seja pela morosidade da pauta do processo legislativo que não acompanha o ritmo das mudanças sociais no âmbito familiar. A questão a ser destacada em matéria de direito de família é o fato de que, em um primeiro momento, os entendimentos são firmados pelo judiciário, criando-se os precedentes que, por seu turno, acabam sendo o norte para outras questões fáticas semelhantes, situação que demonstra a inversão do sistema de civil law para common law7. As uniões homoafetivas, porém, não são as únicas que têm pautado as discussões acerca do retrato da família contemporânea. Desde agosto de 2012, por força de escritura pública lavrada em cartório de notas na cidade de Tupã, no interior do Estado de São Paulo, a família poliamorosa passou a ser tema recorrente em discussões jurídicas e acadêmicas. A escritura feita por três pessoas que declararam viver em união estável ensejou debates sobre monogamia, fidelidade e estabilidade conjugal. Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “o poliamor ou poliamorismo, teoria psicológica que começa a descortinar-se para o Direito, admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem-se e aceitam-se uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta”8. A nosso ver, se pensarmos nessa relação múltipla e aberta e entendermos que a autonomia da vontade deverá superar qualquer determinação legal que convencione a monogamia, como se depreende do dever expresso de fidelidade – previsto no artigo 1.566, I do Código Civil -, devemos também idealizar um sistema coerente sobre, por exemplo, o dever de mútua assistência entre os envolvidos e seu desdobro em alimentos, sobre a presunção de paternidade e maternidade, que passaria a ser, também, plúrima, dentre outros inúmeros efeitos dessa não tão nova relação na esfera social, mas ultra-moderna relação no âmbito jurídico, chamada de relação poliamorosa. Enfim, se, para muitos, estas reflexões já ultrapassaram o limite do conceito progressista de família, não podemos deixar de esclarecer que há muito mais a ser analisado. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 100 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette A realidade que envolve os transexuais, por exemplo, que passam por cirurgia de readequação de sexo e conseguem judicialmente a alteração de seus assentos de nascimento está longe de ser pacífica no âmbito do direito de família. Algumas indagações podem esboçar a complexidade da questão. Há que se estabelecer, por exemplo, se poderá se impor obrigação legal para o transexual revelar sua origem biológica ao se relacionar com alguém? Caso seja afirmativa a resposta, qual seria o momento? Pode o Estado autorizar a alteração de assento de nascimento e depois permitir a anulação de casamento por erro essencial quanto à pessoa do cônjuge pelo fato de não ter sido revelada a identidade sexual de uma das partes? Não seria um contrasenso? Essas são perguntas ainda sem respostas que demandam um debate aberto e sensato pela sociedade, a fim de que seja estabelecida a tutela oportuna para todos os envolvidos. Roberto Senise Lisboa, ao analisar a família moderna conclui que “a família não se resume mais ao casamento e à prevalência dos poderes e direitos do chefe da família sobre os demais integrantes. A maior dinamicidade das atividades do homem, da mulher e dos filhos confere um novo papel social a cada um desses agentes” 9. deríamos deixar de analisar a questão da reprodução humana assistida. Cumpre destacar que as técnicas de reprodução humana assistida são terapêuticas e podem auxiliar pessoas que sofrem de esterilidade ou infertilidade11. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária estima em 120 o número de clínicas existentes no país, mas apresenta como cadastradas no SisEmbrio – Sistema Nacional de Produção de Embriões - apenas 9312. Com esse dado já podemos notar que quase 25% das clínicas funcionam sem qualquer fiscalização por parte dos órgãos governamentais, mas o problema é bem maior do que o da falta de fiscalização. As técnicas de reprodução humana por fertilização in vitro são utilizadas no mundo desde 1978 e no Brasil desde 198413, mas somente com o Código Civil de 2002 é que os filhos gerados com o emprego dessas técnicas foram reconhecidos como filhos por presunção. Vejamos: Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo O autor conclui que “o direito matrimonial, o direito parental e o direito assistencial, assim, devem se fixar no princípio da solidariedade das relações familiares”10, princípio que, a nosso ver, ao lado da afetividade, vem pautando as relações familiares hodiernamente. que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Por fim, nessa fotografia da família na atualidade não po- // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 101 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette Como se pode depreender da leitura do artigo acima, os filhos havidos das técnicas reprodutivas, leia-se - inseminação ou fecundação – são filhos por presunção, contudo, a tutela legal da filiação havida com a utilização de técnicas de reprodução humana se encerra com este artigo, ou seja, não há qualquer previsão legislativa quanto aos efeitos jurídicos do uso e aplicação das técnicas médicas, tanto no aspecto da relação médico-paciente, quanto sob a ótica dos direitos dos filhos no âmbito das relações civis, familiares e sucessórias. Questões como as que envolvem o controle na utilização de material genético de doador, para que sejam evitados futuros casamentos entre pessoas biologicamente próximas, como irmãos, por exemplo, é uma das tantas polêmicas que cercam o tema. A possibilidade - ou não - da utilização do útero de terceira para a gestação de embrião também carece de disciplina legal, sendo permitida, atualmente, apenas por Resolução Médica emanada do Conselho Federal de Medicina – Resolução n. 2013/201314, que estabelece diretrizes éticas a serem seguidas pela classe médica. O destino a ser dado aos mais de 180 mil embriões15 criopreservados também não foi determinado por lei, matéria que, anos atrás, foi discutida em audiência pública no Supremo Tribunal Federal em julgamento que questionava a constitucionalidade do artigo 5.º da Lei de Biossegurança – Lei 11.105/2005 que permite o envio de embriões inviáveis ou viáveis, congelados há mais de 3 (três) anos e com a autorização dos genitores, para pesquisas com células tronco embrionárias. Embora a tese da inconstitucionalidade tenha sido derrotada e a possibilidade de pesquisa com embriões excedentários da fertilização in vitro tenha sido confirmada, o destino dos embriões congelados após a data da entrada em vigor da referida lei ainda é uma questão em aberto, pois o envio para pesquisa somente foi permitido para embriões congelados na data da publicação da lei, ou seja, no ano de 2005. Não há, portanto, permissão legal para que sejam enviados à pesquisa os embriões congelados após essa data. O sigilo do doador versus o direito à identidade genética do filho nascido com utilização de material genético de terceiros e os direitos sucessórios dos filhos nascidos post mortem são outros dois exemplos de situações também ainda não disciplinadas. Abordamos na obra Estatuto da Reprodução Assistidade problemas a serem solucionados em matéria de reprodução humana. Por força dessa pesquisa fomos convidados pela Comissão de Biotecnologia e Estudos sobre a Vida da OAB/SP, sob a Presidência do Professor Doutor Rui Geraldo Camargo Viana, a elaborar um anteprojeto de lei que pudesse ser apresentado à sociedade em consulta pública e, posteriormente, submetido ao Congresso Nacional. 16dezenas O Anteprojeto do Estatuto da Reprodução Assistida, aprovado por unanimidade pela referida Comissão, foi disponibilizado para consulta pública por mais de 180 (cento e oitenta dias) no site da OAB/SP e, após inúmeras contribuições, foi apresentado ao Congresso Nacional pelo Deputado Eleuses Paiva – PSD/SP - PL 4.89217, em 19 de dezembro de 2012 - onde, atualmente, está aguardando análise // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 102 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. O fato a ser destacado ao final dessa análise da família contemporânea perpassa, neste momento, pela responsabilidade do Estado quanto à efetivação de tutelas legais específicas a fim de pacificar as relações familiares e sociais, não apenas em tema de reprodução humana assistida, mas também para todas as outras situações que foram por nós destacadas. Álvaro Villaça Azevedo, ao analisar o dever de proteção do Estado, assim conclui: a maior missão do Estado é a de preservar o organismo familial sobre que repousam suas bases. Cada família que se desprotege, cada família que se vê despojada, a ponto de insegurar-se quanto à sua própria preservação, causa, ou pelo menos deve causar, ao Estado um sentimento de res- 3. A FAMÍLIA RUMO AO SÉCULO XXII O que esperar, após tudo o que foi analisado, da família rumo ao século XXII? Começa-se a nomear a família moderna como família mosaico ou família caleidoscópio, pois, atualmente, as famílias são formadas por filhos de diversos casamentos que passam a conviver como se irmãos fossem pela união de seus pais, por relações que são criadas pela convivência amorosa, chamada de sócio-afetiva, dentre tantas outras possibilidades. Vislumbramos que teremos, com mais frequência, situações de multiparentalidade, ou seja, de filhos com mais de uma mãe ou mais de um pai, como forma de reconhecimento de que a realidade deve sobrepor-se a estigmas jurídicos seculares que, até então, perduraram, mas que começam a dar sinais de relativização. ponsabilidade, fazendo-o despertar a uma realidade, que clama por uma recuperação. O dever de proteção geral aos indivíduos cabe ao mesmo Estado, que deve intervir, sempre, para coibir os excessos, para impedir a colisão de in- A abertura jurídica para esses casos já pode ser verificada no Artigo 1.593 do CC: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. teresses, acentuando a salvaguarda dos coletivos mais do que dos particulares, para limitar uma liberdade de ação, para que ela não fira a alheia, ainda mais quando for letal esse ferimento de quebra de uma estrutura de que dependem todos.18 O dever do Estado, portanto, não deve existir apenas para que as relações familiares de uma ou algumas famílias sejam pacificadas, mas, sobretudo, para que seja garantida a harmonização da estrutura social que depende de suas células-base, ou seja, as famílias. O termo outra origem traz a abertura legal para o reconhecimento de que a antiga família que costumávamos ver nos porta-retratos, formada por pai-mãe e filhos poderá ainda existir, mas compartilhando espaço com outras não tão tradicionais, mas plenas de significado se as entendermos como núcleos familiares afetivos. Nesse sentido, Rolf Madaleno traz outros exemplos que ressaltam o peso factual e jurídico do afeto nas relações familiares: // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 103 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette a maior prova da importância do afeto nas relações humanas está na igualdade da filiação (art. 1.596, CC), na maternidade e paternidade socioafetivas e nos vínculos de adoção, como consagra esse valor supremo ao admitir outra GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. origem de filiação distinta da consanguínea (art. 1.593, CC), ou ainda através da inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V, CC); na comunhão plena de vida, só viável en- LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, v.5: direito de família e sucessões. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. quanto presente o afeto, ao lado da solidariedade, valores fundantes cuja soma consolida a unidade familiar, base da sociedade a merecer prioritária proteção LÔBO, Paulo: Famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. constitucional.19 Completa nosso raciocínio as considerações de Paulo Nader que, ao analisar as influências que sofreram as famílias, reflete que “o progresso jurídico, diz a experiência, exige a mudança de certos paradigmas, que fundamentam a legislação distanciada dos anseios sociais. Não há como se eternizar os velhos paradigmas diante de um mundo novo, pleno de desafios e de expectativas geradas pela ciência e tecnologia”20. Diante da diversidade das situações acima, reprise-se – famílias homoafetivas, poliamorosas, envolvendo transexuais, decorrentes de reprodução humana assistida, concluímos que não mais podemos nos atrelar a conceitos rígidos que definam parâmetros legais específicos para núcleos familiares, devendo ser levados em consideração aspectos mais humanísticos e subjetivos como a solidariedade e o afeto – razão primeira e maior da vida familiar. REFERÊNCIAS MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, v.5: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2010. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva, SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. Análise Contemporânea da Tutela dos Casos Difíceis: o precedente no direito brasileiro. In 60 Desafios do Direito: Direito na Sociedade Contemporânea. Coordenadores Ana Cláudia Silva Scalquette e José Francisco Siqueira Neto. São Paulo: Atlas: 2013. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 104 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette Notas 1. Paulo Lôbo relembra que a família monoparental “pode ter causa em ato de vontade ou de desejo pessoal, que é o caso padrão da mãe solteira, ou em variadas situações circunstanciais, a saber, viuvez, separação de fato, divórcio, concubinato, adoção de filho por apenas uma pessoa”. Famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.88. 2. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008, p. 224. 3. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>. Acesso em 12 de setembro de 2014. Decisão proferida em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República, no dia 22 de julho de 2009, e pelo Governador do Rio de Janeiro – Sérgio Cabral -, em 27 de fevereiro de 2008. 4. Decisão da 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ – REsp. 1183378/RS. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp ?livre=casamento+entre+pessoas+do+mesmo+sexo&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=2> . Acesso em 12 de setembro de 2014. 5. Por exemplo, a Corregedoria do Tribunal de Justiça de Alagoas, pelo provimento n. 40/2011 da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Alagoas – CGJ/TJAL, autorizou o processamento de pedido de casamento entre pessoas do mesmo sexo perante as serventias extrajudiciais. Disponível em: <http://www.tjal.jus.br/corregedoria/?pag=provAno>. Acesso em 12 de setembro de 2014. No mesmo sentido, a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme artigo 88 CGJ/TJSP n. 41/2012, determinou que aplicar-se-á ao casamento ou a conversão de união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo as normas disciplinadas nesta seção. Provimento disponível em: <http://www.arpensp.org.br/principal/index. cfm?tipo_layout=SISTEMA&url=noticia_mostrar.cfm&id=17387>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 6. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 7. Cf. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva; SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. Análise Contemporânea da Tutela dos Casos Difíceis: o precedente no direito brasileiro. In 60 Desafios do Direito: Direito na Sociedade Contemporânea. Coordenadores Ana Cláudia Silva Scalquette e José Francisco Siqueira Neto. São Paulo: Atlas: 2013, p. 45. 8. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 465. 9. LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, v.5: direito de família e sucessões. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 11-12. 10. Ibidem, p. 12. 11. Esterilidade indica a incapacidade de se iniciar uma gravidez e infertilidade é a incapacidade de ter filhos vivos e em condição de sobreviver. 12. Segundo dados disponíveis no site do Portal ANVISA. Acesso em 12 de setembro de 2014. <http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/ce47db004464c8c28cfbed6f58f405d3/7_relatorio+%282%29.pdf?MOD=AJPERES>. 13. Cf. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 21-22. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 105 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // As transformações sociais e jurídicas na família no século xxi // Ana Cláudia S. Scalquette 14. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 15. Dados obtidos nos 7 (sete) relatórios da SisEmbrio, publicados pela ANVISA, disponíveis em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/anvisa/ home/sanguetecidoorgaos/!ut/p/c4/04_SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os3hnd0cPE3MfAwN3f1dLA0__IEvLUE9DYwMDc_2CbEdFAPf30UY!/?1dmy&u rile=wcm%3Apath%3A/anvisa+portal/anvisa/inicio/sangue+tecidos+e+orgaos/publicacao+sangue+tecidos+e+orgaos/relatorios+sisembrio+-+sistema +nacional+de+producao+de+embrioes+1>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 16. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. 17. Vide <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=564022>. Acesso em 12 de setembro de 2014. 18. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 213. 19. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 65. 20. NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, v.5: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 17. 106 // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014