EDUCAÇÃO E CIDADANIA:
um processo de ressocialização de alcoolistas
Carla de Oliveira Pacheco*
RESUMO
Este artigo tem por base a dissertação de mestrado apresentada por mim cujo
título é (Re)Educação para a cidadania: um estudo de alcoolistas e grupos de autoajuda.
Como objetivo aponta uma abordagem sobre a problemática da educação desvendando
pontos da intimidade dos Alcoólicos Anônimos (AA) no processo de ressocialização, como
forma de educação para a cidadania.
PALAVRAS-CHAVE
Educação – Alcoolismo – ressocialização – Cidadania
O foco deste estudo esta no processo educativo, de reconstrução do cidadão na
recuperação de alcoolistas no interior dos grupos de Alcoólicos Anônimos (AA). Busco
contribuir com informações sobre valores deste grupo específico. Valores estes
estruturados a partir de sua realidade social, procurando reconstruir parte das trajetórias
de vida destes indivíduos, conhecer seus projetos e saber como funcionam seus
mecanismos ajustadores ao mundo.
A partir dos motivos que os levam a buscar a recuperação, busco apreender como
esta ocorre, captando a reconstrução de suas identidade de gênero e de cidadãos de
forma a contribuir para a discussão mais ampla e teórica da educação enquanto
formação do indivíduo nas relações sociais.
Embora no Brasil, já tenha havido um número enorme de pesquisas sobre
educação, estas têm se limitado, na grande maioria, às escolas. Da forma que entendo
educação é mister pensar os processos educativos não restritos àquelas, mas também
nas relações sociais, como construção de sujeitos.
*
Socióloga, Mestre em Educação/ PPG Educação – UFRGS. Professora de Sociologia EMEM Emílio
Meyer/Smed - PMPA
Numa sociedade como a atual, onde a crise econômica e a violência estão cada
vez
mais
presentes,
populações, e com
o
e
convivem
enorme
com
o
crescimento
desenvolvimento
da
urbanização,
técnico-científico, a
das
humanidade
necessitou inventar novas formas de convivência social, pois esta nova ordem interfere
sobremaneira nas relações sociais. Assim, aumentam os números de grupos urbanos
com identidades específicas e os espaços de formação do sujeito se dão em todas estas
instâncias.
É pensando este mundo social brasileiro que reflito a educação no seu sentido
mais amplo. O conceito de educação, segundo Ferreira (1986) tem sua origem no latim educatione‚ que é o processo de desenvolvimento da capacidade do ser humano em
geral, visando melhor integração social e individual.
Eizirik (1990) ao pensar tal conceito propõe uma transformação:
"ao invés de responder à ideia de fornecer, dar, ensinar ("educare", do
latim), passássemos a entendê-lo como "educere„ (latim), ou seja, conduzir
o aluno além dele mesmo, numa construção da qual ele seja seu próprio
artífice, e o professor, aquele que lhe fornece os elementos necessários.
Permitindo dessa forma "a re-apropriação, por parte de cada um, de sua
vida, de seu ensino, de seu trabalho.” (Eizirik, 1990, p.32)
Esta transformação só é possível com uma ampliação do olhar, entendendo
educação como processo que implicaria, sem dúvida, relação. Desta forma muito mais
que escolarizar está a educação para o exercício da cidadania, ou para a vida em relação.
Faz-se importante desde ja distinguir o conceito de educação de escolarização,
este último entendido como uma instância do primeiro, como coloca Gonzales Arroyo
(1989). Este autor em seu estudo sobre o direito do trabalhador à educação, salienta:
"A redução da educação à escola enquanto "locus„ legítimo do único saber
legitimo não pode interessar às classes trabalhadoras, pois esses
reducionismo faz parte de um processo social mais amplo de negação do
saber, da educação e da cultura, produzidos enquanto práxis das classes
sociais ou enquanto fazer humano das classes em luta.” (Gonzales Arroyo,
1989, p.82)
Esta distinção e temporário afastamento da escola ou do ensino formal como
forma de educação não significa uma desvalorização. Pelo
contrario, acredito que
entender a educação em seu sentido mais amplo é fundamental para pensar nosso papel
enquanto professores.
O SUJEITO E A BEBIDA
É em uma sociedade capitalista moderna, sob influência da mídia eletrônica, da
robótica e dos discursos televisivos, que se forma o sujeito, sujeitado de muitas formas,
tendo não só que sobreviver mas ser bem sucedido dentro desta cultura da conquista, da
competição. Na busca desta territorialização1 há a exigência de "ser - ser alguém, ser
bem sucedido - assim este "ser implica "ter - ter bens, ganhar, conquistar. Desta forma o
indivíduo cria mitos passando pelo rito do uso de drogas e dopa-se desterritorializando-se
e, magicamente, constituindo uma viagem até o "ser":
"Existe uma estreita correlação entre esta obsessão de ganhar, de ser bem
sucedido, de ser alguém, e o consumo em massa de psicotrópicos, porque
uma cultura da conquista é necessariamente uma cultura da ansiedade”.
(Ehrenberg, 1989, p.37) (traduzido por mim)
São nas relações que se produzem ou reproduzem as praticas - relações de
gênero, de classe, de raça, ou de forma abrangente nas relações de poder - através de
jogos
dialéticos
de
acomodação
e
resistência
dos
sujeitos
aos
modelos
institucionalizados.
Pensar que a utilização de drogas ocorre unicamente por problemas pessoais do
sujeito, ou como algo isolado, é no mínimo ingenuidade, pois este é um fato
sociocultural. A bebida, em nossa sociedade, faz parte da socialização do indivíduo,
muitas vezes funcionando como um componente no ritual de passagem na iniciação
ao mundo adulto.
Baseando-me em Turner (1974) utilizei o termo ritual a
seguinte
forma:
“processos que acompanham uma mudança de um estado social a outro. O qual possui
as seguintes características: a "separação", o momento de afastar-se do “estado inicial” a
"margem ou limen", momento intermediário em que o sujeito não possui atributos nem do
estado passado nem do futuro” e a "agregação", quando se efetiva a mudança de
estado social.
1
Conceito utilizado Sueli Rolnik e Felix Guattari (1986) que se referem aos espaços construídos onde o
sujeito transita com certa segurança.
Paul Willis (1991), em seu estudo "Aprendendo a ser Trabalhador", identifica a
importância simbólica da bebida entre seus pesquisados:
"Além do fato de produzir um efeito ‘legal’, a bebida é adotada abertamente
porque é o sinal mais veemente passado aos cê-dê-efes e aos professores
de que os rapazes se distanciam da escola e tem uma presença num
modo alternativo, superior e mais maduro de vida social. (Willis, 1991,
p.33)
Isto pode também ser claramente percebido nos depoimentos dos pesquisados2:
“eu bebia mais por esporte pra aparecer a mesma coisa que o cigarro
(pausa) achava bonito e tal”. (C)
“Eu comecei a beber assim como todo mundo nas festinhas com os
amigos, pra chegar nas gurias.” (S)
Neste sentido a importância de pertencer faz com que certas regras sejam
cumpridas, como neste caso o beber. Mas esta atitude não se restringe a isso, fazendo
parte também da construção da identidade masculina o “ficar de porre”.
“...a gente fazia até um espécie de um concurso né‚, uma competição pra
ver quem é que seria carregado pra casa né, cada fim-de-semana tinha
um que era carregado pra casa pelos amigos.” (L)
O “ficar de porre” não tem sentido se feito isoladamente, visto que é um momento
grupal, e portanto de domínio da esfera pública, um ato simbólico que equivale a marcar
uma posição social de “macho”, se caracterizando como um privilégio masculino. Pois
para a mulher é proibida a invasão deste espaço, passando a ser mal vista, a ela fica
reservado o espaço do “ficar alegre”. Aqui desde ja se coloca uma distinção de gênero.
Ainda que a pratica de consumo de álcool não se restrinja ao grupo masculino, percebese que este grupo tem esta como de seu domínio, sendo associada sempre ao domínio
da rua, da força, da virilidade:
“...um dia fiz uma aposta com um colega que eu conseguiria beber 24
cubas (pausa) e eu fui macho e como fui macho, bebi todas elas...” (c)
2
Os depoimentos dos pesquisados estão respeitando a oralidade de cada um. Para preservar o anonimato
não será colocado nomes as letras são escolhas aleatórias que só se repetem para o mesmo depoente.
A classificação das bebidas em fortes e fracas, também, caracteriza os epaços de
segregação de gênero, pois as bebidas fortes são bebidas de homens que tem força para
resistir a elas.
Por outro lado quando uma bebida tem o status de fraca, ela é considerada
“bebida pra mulherzinha”, e consequentemente não é “bebida pra macho”.
As questões de gênero colocadas neste estudo são feitas baseadas no conceito
de Scott (1990), qual seja:
“O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental
entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o
gênero é um
primeiro modo de dar significado às relações de
poder."(Scott, 1990, p.14)
MOMENTO RITUAL
A premissa fundamental na qual este grupo se baseia é que o alcoolismo seja
uma doença onde o doente teria uma compulsão à continuar bebendo, derivando daí
sua orientação, e a necessidade de evitar a primeira dose.
As reuniões são encontros extremamente ritualizados, no sentido de caracterizar
um momento de ruptura com o cotidiano, ao mesmo tempo que apresentam aspectos
solenes, configurando-se enquanto um rito de passagem.
Todas as regras, horários, momentos de início com apresentação e realização da
oração são extremamente respeitados por todos os membros do grupo.
No rito de início das reuniões o coordenador do grupo apresenta a irmandade da
seguinte forma:
“Alcoólicos Anônimos é uma irmandade de homens e mulheres que
compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu
problema comum e ajudar os outros a se recuperar do alcoolismo.”
O conceito de "irmandade", que é como se identificam os grupos de AA, pode ser
entendido como o estabelecimento de uma consanguinidade fictícia, um elo de ligação
que vai Além da amizade ou da solidariedade, implicando desta forma um
comprometimento familiar.
As reuniões funcionam sempre com depoimentos, desabafos e compartilhamento
de experiências, invariavelmente destrutivas com o álcool.
Este é um espaço disciplinarmente3 vigiado para que o êxito de seus objetivos seja
alcançado.
No grupo há uma vigilância explícita com a limpeza do corpo, estabelecendo uma
técnica de higiene e cuidados com o corpo. Aparecendo a dualidade limpeza/sujeira como
uma das maneiras de demarcar a presença da saúde ou da doença.
O corpo é uma das formas de caracterizar a saúde ou a doença, o alcoolismo é
detectado não só pela aparente sujeira, mas também no "vermelhão do rosto ou na
distinção de gordura e inchaço”.
Este momento ritualizado de se assumirem como doentes e do processo de
socialização no interior destes grupos pode ser visto como um momento de reeducar-se
para a vida, no sentido de busca de modificações e reinserção social.
Uma das premissas fundamentais no funcionamento destes grupos, segundo seu
texto básico, Alcoólicos Anônimos (1976), é ter fé e acreditar em alguma forma de
existência do “poder superior”, “Deus” ou ainda numa “experiência espiritual”.
O caráter mágico-religioso desse é marcado não só pelo culto ao “poder
superior” e da oração, mas também no poder que a reunião tem sobre seus integrantes,
pois segundo relatos “só vindo sempre nas reuniões é que se consegue evitar a primeira
dose”. Infere-se que este ritual possui o poder mágico de manter seus membros longe do
“profano”, do que representa a loucura, a criminalidade ou a morte (o álcool).
Outra forma, ainda‚ é o dizer-se e o dizer a verdade, o confessar-se para seus
iguais, como forma de alívio, de tirar de si tudo que não se quer mais; e essa é a base de
funcionamento destes grupos. A confissão‚ não é só nesses grupos, mas na sociedade
como um todo, uma técnica muito valorizada para produzir verdade.
A escolha do coordenador é uma forma clara de educar para a cidadania, na
medida em que é feito através do voto direto e secreto, comprometendo-os com a
gestão que dura três meses. A candidatura na maioria da vezes segue o critério de
vontade, associado ao tempo de abstinências que deve ser de no mínimo três meses. Se
não houver candidato, é feita uma tentativa de negociação entre os mais antigos, para
3
utilizo o conceito de disciplina segundo Foucault, 1988, p.12
que se forme uma candidatura. Se esta se frustrar, a gestão é renovada até que haja
alguém que se disponha a substituir.
O SUJEITO, A EDUCAÇÃO E A CIDADANIA
Inicialmente cabe colocar como penso e onde me filio para refletir a construção do
sujeito. Não pretendo entrar na discussão da diversidade de concepções que circundam
a categoria "sujeito", e sim pensar este sujeito, submetido às regras e normas sociais
da sociedade contemporânea, processo esse que se inicia no momento do nascimento
do ser humano, quando ele adquire um nome.
Segundo Foucault (1990b) constituição dos seres humanos em sujeitos se dá de
três modos:
"Primero están los modos de investigación que tratan de otorgarse a
símismos el estatus de ciência.(..) En la segunda parte de mí obra,
estudié la objetivacion del sujeito en lo que llamaré las ‘prácticas
divisorias'.(...) Finalmente, he querido estudiar es mi trabajo actual el
modo en que un ser humano se convierte a sí mismo o a símisma en
sujeto.” (Foucault, 1990b,p.3)
Em outras palavras, o sujeito constituído nas práticas sociais e imerso nas
diferentes e complexas relações de poder e regimes
de saber. Portanto, estudar o
sujeito inserido nas inúmeras e diferentes relações sociais implica pensar a construção
ou reconstrução da identidade destes sujeitos. Consequentemente a identidade de
cidadão passa necessariamente por estas vias.
É importante ressaltar que a dualidade identidade individual e identidade social,
justifica-se apenas para efeito de entendimento, pois estão extremamente interligadas e
inexistiriam de forma isolada.
No caso dos alcoolistas esta reconstrução se dá na busca de encontrar "outra
maneira de viver que não beber, mas lutar contra a bebida". (Fainzang, 1992, p.5)4. Esta
autora
estuda
um
grupo de "antigos bebedores” que se diferenciam em muitos
preceitos dos Alcoólicos Anônimos, mesmo assim posso traçar um paralelo no que se
refere ›…construção de uma "nova identidade” dos sujeitos, sendo que esta construção
4
Fainzang, (1992) neste artigo, faz um estudo antropológico de um grupo de "antigos bebedores”
buscando entender o sentido da abstinência como princípio organizador de um modo de vida.
se estrutura numa relação com o álcool. Ou seja, essa identidade se constrói em função
da abstinência e consequente afastamento da bebida.
Ao pensar esse processo de "reconstrução", refiro sempre os seus depoimentos,
que buscam a mudança de estado social de "não serem nada" ou de “serem pior que um
animal" passando a ser “alguém" buscando o reconhecimento de si e dos outros.
Pensar a educação no atual contexto nacional, onde presenciamos a cada dia que
passa uma concretização da democracia, leva-nos a refletir a ampliação do debate
sobre o resgate da cidadania.
Cidadania não é só uma questão jurídico-política. Ela é uma questão de
identidade social, e a identidade social do brasileiro passa pela necessidade de
reconhecimento. E acrescentaria como coloca Da Matta (1991) que é uma questão de
"identidade social de caráter nivelador e igualitário".
Mas o fato é que se percebe, no atual contexto da sociedade brasileira, a
construção de uma cidadania bastante dissociada de sua origem conceitual. Isto a
partir deste descrédito.
Essa cidadania às avessas, ou "outorgada", "passiva", ou ainda "dilacerada", abre
espaço para a existência do não-cidadão, do marginal. Pois, se o cidadão é aquele que
pode ser reconhecido pela diferença, consequentemente os outros serão os nãocidadãos.
É na
busca do direito ao exercício de uma
cidadania,
em oposição à
marginalidade, o não-cidadão, que vejo a reivindicação dos sujeitos dessa pesquisa,
quando recorrem aos grupos de autoajuda para a reinserção social. E esta reinserção
passa pela necessidade de reconhecimento do outro e de si; no trabalho, na família ou
entre seus companheiros, e de Deus, como aparece na fala que segue. Mas cabe
ressaltar que este "reconhecimento” está em ser igual, ser "normal":
"... eu não voltei a trabalhar mas já estou né, encaminhado pra trabalhar
(pausa) também eu aprontei no meu serviço só podia perder né agora
Deus me ajudou e eu
consegui limpar minha barra e j› estou né,
consegui cartas de referência e tal né como eu esculhambei no
serviço (pausa) agora eu consegui cartas de referências, agora eu
tenho condições de chegar e apresentar numa empresa né... e a minha
família,
pra
ela antes eu era um bêbado, e agora não, não sou
considerado um bêbado, isso é bom, a confiança, isso é muito importante
né...” (M)
Assim o resgate do ser cidadão se dá em buscar estratégias de mudança,
vinculado ao contexto social onde este sujeito está inserido, ou busca se reinserir,
família, trabalho, etc. Espaços estes que concretizam esta mudança, uma vez
conquistados:
"eu quero né, dar continuidade ao meu tratamento né, porque através
dele né, que eu vi que eu vou conseguir ter uma vida
melhor,
conseguir (pausa), conseguir sim, (pausa) casar né, ter alguém, ter
alguém ter filhos né, constituir uma família né, que hoje eu tenho certos
princípios né, eu (pausa) eu tenho a minha religião né, que eu não quero
abandona, quero estar próximo de Deus e tal, então (pausa) eu quero uma
vida mais tranquila, hoje eu posso não estar trabalhando, posso estar
desempregado, posso estar dependendo da minha família, mas não tem
confusão, não tem briga, não tem mais isso aí... (M)
É nessa
mudança concretizada e
nestes
espaços reconquistados que a
(re)construção deste indivíduo enquanto sujeito socialmente aceito se efetiva.
O itinerário da "cura está intimamente relacionado com o meio social, uma vez
que esta se concretizaria com a reinserção do indivíduo no trabalho, família, etc, que
nada mais é que a ressocialização/ reeducação, destes indivíduo e consequente
afastamento do álcool.
Aqui cabe retomar a noção de processo ritual, como mudança de um estado
social para outro; onde o grupo aparece como fase liminar na transição para a efetiva
ressocialização, e portanto é no cotidiano desse processo que se realiza a reeducação
para a cidadania nas formas disciplinares existentes nesse, na hierarquia a ser
respeitada, na necessidade de cumprimento dos 12 passos (programa individual), ou
ainda no exercícios do voto - na escolha do coordenador. Esse momento educativo pode
ser observado na fala que segue:
O AA te mostra assim, que mesmo nas piores, mesmo nas piores
situações, mesmo nas piores coisas, à vista dos outros que, o alcoólatra é
na rua ou mesmo jogado num canto am embaixo de um viaduto, que as
pessoas mesmo neste estado tem um sonho ainda de, de modificar tudo
isso, viver uma outra vida né, então o AA eu acho que é o órgão principal
nisso, que mostra que as pessoas podem
estar naquele estado
deplorável que estão, mas que ainda tem condições, se realmente
quiserem, de viver uma outra vida (H)
Noutra fala podemos perceber o “limite trágico” entre a vida e a morte cultural
representado pelo ato de beber:
“... sempre bebendo, mas am foi tanto que eu não vivia mais, ameu já era
mendigo, ameu vivia mendigando, ficava nas praças (pausa) eu perdi os
documentos varias vezes e tive que tira tudo de novo pra arrumar emprego,
se tinha biscate eu fazia, se não tinha eu "achacava", mas eu “achacava”
nesses lugares mais fino assim, procurava tomar um banho no rio, me
arrumar, lavar minha roupa e ia nesses lugares e sempre arrumava pra
cachaça...” (A)
A perda dos documentos pode representar uma espécie de morte simbólica do
cidadão, visto que estes foram os últimos vínculos com a sociedade, uma vez que
ja haviam perdido a casa, a família, o trabalho e com esses uma série de direitos. Podese ver que as ideias que perpassam os discursos estão em íntima relação umas com as
outras.
Honra e virilidade neste novo discurso estão condicionada à passividade, visto que
“estar na ativa” significa “beber” e consequentemente “perder”, “sofrer” ou “morrer”.
O “sair da ativa” (parar de beber) leva-os consequentemente a uma possível
“passividade”, mas essa necessita de “coragem”, “determinação” e “força de vontade”.
Assim o buscar ser ativo na vida requer ser passivo na “doença”, aceitando-a e “colocar a
cabeça no lugar”.
Esta passividade esta ligada à capacidade de driblar a morte, posto que o “estar
na ativa só pode levar a quatro caminhos: sarjeta, presídio, manicômio ou morte”. Isso
significa em última analise privações de “ser”.
Como esta colocado em um dos depoimentos:
"o álcool destrói uma pessoa, destrói mesmo, chega, chega assim, não,
como é que eu vou te explicar, chega a um animal né, você não raciocina
mais, você odeia a todo mundo, aquela prepotência sem limite... então é
isso, isso é o alcoolismo... eu ia matando mesmo a minha esposa, a
pessoa se transforma, se transforma mesmo, se transforma num animal
irracional, eu não sei não. Eu não agrediria uma flor (ri) quanto mais uma
pessoa, muda o comportamento totalmente mesmo, sabe como é o álcool
ele não atinge, não atinge o estomago ele vai pro cérebro né‚, então ele
vai direto pro cérebro. Em
2 ou 3 min, ele muda totalmente o
comportamento da pessoa, por isso que muitos praticam crimes, roubam,
tudo é feito da droga e do álcool né... É tudo semelhante, em mim e nos
outros, tudo a mesma coisa, ele leva pra sarjeta em pouco tempo, hospício,
presídio, loucura, ele ia me levando a loucura, se continuasse bebendo, eu
te contei né, que passei uma noite toda bebendo, era louco, fechava a
porta do quarto, tinha alucinações, berrava, berrava muito, um louco.” (A)
Pode-se observar, portanto, que os grupos de autoajuda trabalham com um
universo simbólico muito mais próximo da população, revelando suas significações, pois o
funcionamento deste é totalmente gerido por seus membros.
Ao mesmo tempo que negam a autoridade “terrena” - o médico, entregam-se à
autoridade "divina” - Deus, esperando que algo exterior a eles lhes restabeleça a
"ordem” da vida. Mas a "ajuda divina” se concretiza somente se a iniciativa de mudança
partir deles e com “sinceridade de intenções”, portanto condicionadas a suas “forças de
vontade”. Desta forma na sua busca da “cura”, passam por um processo doloroso, difícil,
onde somente a vontade de viver plenamente suporta o desespero de abandonar a
bebida.
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