Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Universidade Técnica de Lisboa Sandra Maria Cristino Nogueira A RELAÇÃO DA GUERRA NA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DOS PAPUAS DAS ALTAS MONTANHAS DA NOVA-GUINÉ Cadeira: Sistemas Políticos e Jurídicos Tradicionais Professora: Mestre Celeste Quintino 4º ano de Antropologia LX 1995 1 ÍNDICE INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 2 1. Tema e Enquadramento Teórico ...................................................................................... 2 1.1. Objecto de Estudo ..................................................................................................... 10 1.2. Metodologia ................................................................................................................. 12 Parte I - A ACTIVIDADE ECONÓMICA DOS PAPUAS ................................................... 14 1. A Agricultura nas Terras Altas da Nova Guiné ................................................................ 14 1.1. Uma agricultura planificada ........................................................................................ 16 2. A Importância da Criação de Porcos .............................................................................. 21 2.1. Os festivais e os porcos ............................................................................................ 23 Parte II - ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA ............................................................ 27 3. Família e Parentesco ...................................................................................................... 27 3.1. A terra e o território ..................................................................................................... 32 4. As Manifestações de Poder na Organização Social ...................................................... 34 4.1. O poder político do Big Man ....................................................................................... 39 4.1.1. A relação entre o Big Man e os potlachs .............................................................. 41 Parte III - A GUERRA COMO FACTOR DE COESÃO ................................................... 44 5. Relações Intertribais - a Guerra ...................................................................................... 44 5.1. Os conflitos intergrupais e intertribais nas Terras Altas da Nova Guiné ................... 47 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 50 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 54 2 INTRODUÇÃO «A inexistência do estado nas sociedades primitivas não é um defeito, porque elas são a meninice da humanidade (...).» Pierre Clastres 1977 Tema e Enquadramento Teórico O estudo que nos propusemos realizar insere-se no âmbito da cadeira semestral Sistemas Políticos e Jurídicos Tradicionais. Um dos aspectos a ter em conta num projecto de investigação é que o tema seja exequível, realista e possa ser investigado no tempo disponível. Daí que o tema escolhido seja restricto, tendo a nossa atenção centralizado-se exclusivamente num sistema político. Primeiramente julgamos ser importante definir o que se entende por sistema político tradicional. Um sistema político é um conjunto lógico de instituições e móbiles que asseguram o funcionamento da estrutura de autoridade (Merton, citado por Birou, 1988: 283). Esta noção de sistema político, segundo P. Skalnik, surge na antropologia através dos autores britânicos, nomeadamente os da corrente funcionalista - estuda a parte pelo todo -, que dá origem a duas novas especializações dentro da ciência antropológica: a antropologia política e a antropologia jurídica, que inicialmente se encontravam muito próximas, mas que a dada altura se individualizam e se autonomizam, tornando-se por conseguinte mais objectivas e precisas. 3 A publicação em 1940 da obra de Evans- Pritchard e Meyer Fortes, African Political Systems, deu a oportunidade de melhor se entenderem e analisarem os fenómenos políticos e suas funções no seio das sociedades tradicionais. "O sistema político é entendido como uma parte do sistema social graças ao qual a totalidade que ele constitui pode funcionar em situação de equilíbrio interno e externo." (Skalnik, 1991:583) Portanto, a ideia de que as chamadas sociedades exóticas não têm qualquer espécie de estrutura ou organização política foi desde logo refutada pela antropologia. A antropologia acaba por demonstrar que há uma enorme variabilidade de sistemas políticos e jurídicos e que estas sociedades não funcionam de forma anárquica. A única diferença é que existem alguns conceitos que não poderão ser aplicados a todas as sociedades tradicionais, como é o caso de Estado. O contributo da antropologia torna-se por isso, extremamente importante para o conhecimento das sociedades sem estado. Trata-se de uma nova forma de encarar o fenómeno político. "A premissa erudita (...), de que a organização política pressuporia a existência do Estado (...) trata-se de um preconceito (...). A antropologia refuta tal pressuposto porque ele não toma em consideração toda a realidade etnográfica. (...) a actividade política (...), se traduz na participação ordenada dos membros de uma sociedade nas actividades colectivas necessárias para manter viva e desenvolvida uma comunidade." (Bernardi,1989:95). Esta nova dimensão da Antropologia é importante, na medida em que lhe abre novos horizontes e proporciona-lhe a hipótese de melhor entender as inúmeras dimensões da vida humana em comunidade. Jeans Copans é da opinião de que o fenómeno colonial "(...) vai impôr novos ramos do saber antropológico: a política colonial (1920-1940) conduz a uma procura do político para dele se servir (...). A antropologia política permite redescobrir o passado real da sociedade em mutação." (Copans,1971:93). Ao longo do crescimento e desenvolvimento da Antropologia, muitos são os autores que embora não sendo antropólogos dão o seu contributo para a sistematização desta ciência. Um dos primeiros contributos para o conhecimento do fenómeno político em outras sociedades distantes das ocidentais, foi sem dúvida a literatura de viagens. 4 Os relatos de viagens são posteriormente também a base de trabalho para Montesquieu no Século XVIII, em que se dá conta da diversidade dos modos de governação e faz uma primeira tentativa de sistematização do fenómeno político, através da criação de uma tipologia. As ideias surgem no seu trabalho, O Espírito das Leis. Contudo, apesar de serem extremamente importantes, inicialmente estes relatos prejudicaram a compreensão do fenómeno político nas sociedades de tradição oral, devido à sua visão demasiado etnocêntrica. Durante o século XIX, as primeiras abordagens do político são desenvolvidas por Maine e Morgan e dão conta de que as sociedades com uma organização assente no parentesco se opõem às sociedades baseadas na territorialidade, para além de defenderem que todas elas passam pelos mesmos estádios evolutivos. A partir da segunda década do século XX, surgem os primeiros politólogos, e esta fase é marcada com o trabalho de Robert Lowie, The Origin ofState. Nesta obra ele refere como surgem o Estado nas sociedades ocidentais e faz também referência à origem do mesmo nas sociedades tradicionais. Na década de 30, com as grandes pesquisas de campo, começa-se a delimitar o campo de estudo da antropologia política e já na década de 40 o início do desenvolvimento deste ramo da antropologia é marcado com a obra de Pritchard e Fortes African Political Systems, estudo este não só importante do ponto de vista etnográfico, como igualmente ao nível da teorização, isto é, dando uma indesmentível importância ao sistema de crenças no ordenamento político, bem como os sistemas de parentesco das sociedades africanas estudadas. Estes antropólogos distinguem então dois tipos de sociedades: 1. Sociedades com autoridade centralizada 1978 Sociedades sem autoridade centralizada. Como funcionalistas que são, o político é definido pelas funções que tem dentro de um determinado território. Neste caso, salientam a questão da força organizada em ambos os tipos de sociedades, ou seja, enquanto nas sociedades de poder centralizado a força organizada funciona com o acordo dos súbditos dos reis para fazer funcionar o sistema político, no segundo tipo de sociedades, a soberania não reside ou não está centralizada num só indivíduo ou num determinado grupo. A soberania é portanto difusa. 5 Ainda dentro da corrente Funcionalista, na década de 60 outros estudos teóricos levam mais longe a reflexão acerca da actividade política, nomeadamente G. A. Almond que na sua obra The Politics of Developing Areas, define o sistema político como detentor das funções de integração e de adptação "(...) mediante o recurso, ou a ameaça de recurso, à utilização legítima da coacção física ." (Balandier; 1967:38). Esta questão da força física já tinha sido anteriormente defendida também por Radcliffe-Brown, nomeadamente no que diz respeito à guerra, a par de outros elementos igualmente primordiais nos sistemas políticos africanos. Southall também durante a década de 60, vem demonstrar de que forma a dinâmica segmentária se reflecte no fenómeno político. Para este autor toda a actividade política é segmentária. Por isso contrapõe dois tipos de sistemas políticos, dentro dos estados tradicionais: 1979 Estado Unitário; 1980 Estado Segmentário. No estado unitário, a sua estrutura é do tipo hierárquica, em que os indivíduos que detêm autoridade é por direito próprio, ou seja, o indivíduo só pode ter autoridade se pertencer a uma linhagem superior . Neste caso, "(...) os poderes estão nitidamente diferenciados, consoante o nível em que se situam, e de que o poder situado no vértice exerce uma dominação incontestável.” (op. cit., 145). No caso do tipo segmentário, a sua estrutura é piramidal, havendo "(...) poderes homólogos que se repetem aos diversos níveis (...); as suas relações continuam a ser semelhantes às que ligam os segmentos entre si no seio de uma sociedade clânica (...); o sistema global surge muitas vezes mais centralizado no plano ritual do que no plano da acção política." (ibid.) Neste segundo caso, a autoridade central deriva de uma delegação consensual por parte dos elementos constitutivos. O facto de algumas sociedades humanas serem designadas como sociedades sem estado, não implica obrigatóriamente que sejam acéfalas, ou seja, sem qualquer tipo de chefia. Esta ideia de que as sociedades acéfalas não têm chefias é incorrecta. O que estas sociedades 6 não possuem são chefes de poder centralizado, o que implica que os chefes existentes têm uma posição "(...) quase sempre a de o primeiro entre iguais." (Bernardi;1989:102). Ao falarmos em chefia, surge-nos de imediato a ideia de poder . O poder é sempre uma forma de intervir socialmente, implica obediência, submissão, respeito, por vezes até veneração, prestígio social ou económico. Quem tem poder, geralmente tem capacidade de decisão. Pensamos que no domínio antropológico, esta é a vertente mais importante, isto é, quem tem a chefia, tem também a responsabilidade de agir sobre os outros indivíduos da comunidade, conduzindo-a através de acções ponderadas e concertadas, com o objectivo de manter a tão desejada ordem social, sem recorrer indiscriminadamente ao uso da força física. De salientar que esta é uma realidade mais visível nas sociedades estatizadas do que nas sociedades tradicionais. Mas existe outra realidade que é necessário ter em conta e que passa pela necessidade de cada sociedade se proteger contra os ataques exteriores, reforçando desta forma - e sómente em alguns casos -, os seus limites territoriais e reforçando simultâneamente a coesão entre todos os elementos do grupo. "O cuidado de manter a unidade do grupo face às eventuais ameaças exteriores fazem do sistema político uma instância de controle do emprego da força." (Skalník,1991:583) Todas as sociedades possuem uma estrutura política, por muito simples que seja. Para que uma sociedade possa existir, progredir, é imprescindível que possua uma organização política, caso contrário a vida em comunidade e as relações entre os indivíduos dessa mesma sociedade não seriam possíveis. Aliás Radcliffe-Brown, avança com o pressuposto de que todas as sociedades têm um sistema político que actua dentro de uma estrutura territorial e que apesar de todas as sociedades terem um sistema político, nem todas têm uma forma de governo. Esta ideia assenta no facto de apenas nas sociedades com estado é que existem governos, caracterizados por uma autoridade centralizada e por um determinado território. A questão territorial é importante para Radcliffe-Brown mas não funciona sómente como fundamento da organização política, mas também de todas as outras formas de organização social. (1940: 8) 7 Esta posição é compartilhada por Balandier que embora considere que o território faz parte da esfera política, não se deve analisar um sistema político tendo sómente como fundamento o território. Este autor propõe outra tipologia, baseada nos ordenamentos políticos da igualdade e nos ordenamentos políticos da desigualdade. É claro que definir as fronteiras que podem delimitar um sistema político, é uma tarefa difícil e bastante controversa, dado não haver consenso entre os diversos autores e cada um deles centra a sua atenção em diferentes aspectos. A questão é, saber o que se entende por domínio político, não esquecendo que este possui diversos elementos, como: ♦ Poder; ♦ Coacção; ♦ Território; ♦ Legitimidade e autoridade; Georges Balandier diz que Weber "(...) caracteriza a actividade política, para além do recurso legítimo à força, pelo facto de ela se desenrolar no seio de um território com fronteiras definidas; ela instaura assim uma nítida separação a partir do interior e do exterior e orienta de maneira significativa os comportamentos." (Balandier;1967:37) As duas grandes áreas de estudo da Antropologia Política dizem respeito às instituições e práticas que asseguram o governo e aos sistemas de pensamento e símbolos que se encontram na base das instituições e práticas, como por exemplo, a forma como as sociedades pensam sobre as suas próprias instituições. Por isso mesmo, julgamos ser também oportuno falarmos aqui do que se entende por sociedades arcaicas, primitivas, ou tradicionais. A posição, visão e enculturação etnocêntrica do mundo ocidental, encarou desde sempre as outras sociedades como menos evoluídas, desprovidas de cultura e referiam-se aos seus indivíduos como selvagens ou bárbaros, não sendo estes muitas vezes considerados seres humanos, e, quando o eram, teriam de ser obrigatóriamente estúpidos. Portanto, o termo primitivo tinha sempre um sentido depreciativo e surge na segunda metade do século XIX com 8 a corrente evolucionista. Os selvagens, os bárbaros, passam a ser conhecidos como os primitivos. Estes, encontravam-se no mais baixo grau da evolução humana e por isso eram considerados como pessoas sem inteligência. Posteriormente, os antropólogos através das pesquisas de campo, vêm demonstrar que todas estas sociedades não são atrasadas, que possuem regras de convivência social e que não são de forma alguma privadas de cultura. Claude Lévi-Strauss afirma que "essas sociedades são tão primitivas como as nossas." (Llobera,1979:9) O que ressalta desta afirmação é que as sociedades não são estáticas, elas encontram-se em constante movimento e por isso vão sofrendo mutações, algumas mais acelaradas e por conseguinte mais visíveis, outras menos acelaradas e por isso menos perceptíveis. É claro, que as sociedades que sempre estiveram em contacto com outras, com um mundo exterior ao seu, depressa sofreram mudanças e conseguiram uma maior evolução técnica, o que lhes confere um estatuto de sociedades mais evoluídas ou desenvolvidas. Outras sociedades que por diversas razões permaneceram durante muito mais tempo isoladas do contacto com o exterior das suas próprias fronteiras, não tiveram necessidade de proceder desenfreadamente a uma constante evolução técnica, que posteriormente pudesse até fugir ao controle dos seus próprios indivíduos. Nestas sociedades menos evoluídas técnicamente, o importante é a preservação e a protecção da sua autenticidade, do seu passado, sempre baseado na experiência empírica. Podemos ainda clarificar mais esta ideia, dizendo que não existem sociedades menos evoluídas. Existem indivíduos que por uma série de circunstâncias, vivem em comunidade de uma forma diferente da nossa. Hoje, estes termos são refutados pela antropologia e quando são usados devem ter-se em mente certas reservas, porque de facto é necessário designar estas sociedades de alguma forma, uma vez que são tão diferentes da nossa. Contudo, o mais importante é designá-las de forma não depreciativa, denunciando claramente o nosso etnocentrismo. Daí ter a ciência antropológica substituído o conceito de sociedades 9 primitivas, por outros eufemismos, como sociedades simples, sociedades sem escrita ou de tradição oral, sociedades tradicionais, etc. Para além disso estas sociedades - cuja maioria dos indivíduos do ocidente, consideram de terceiro mundo -, podem dar uma lição de vida ao mundo industrializado, vulgarmente conhecido por evoluído . Lévi-Strauss em dada altura disse que: "O estudo dessas sociedades ensina-nos que, para os humanos, há muitas maneiras de viver em comunidade. Que a forma que nós escolhemos não é a única válida ou simplesmente possível (...). (...) Estas sociedades conseguiram um determinado número de coisas que nós ignoramos ou que já não sabemos fazer: como transmitir, sem brusquidão nem choques, a cultura ao longo das gerações, e principalmente viver em boa relação com o meio natural." (op. cit:100) E quanto à relação do homem com o meio natural, cada vez mais o fosso entre o ser humano e a natureza é maior. À medida que o conhecimento humano se vai desenvolvendo, crescendo, tornando as sociedades cada vez mais evoluídas técnicamente, maior é a distância entre o homem e as suas origens, ou seja, a natureza. As sociedades ditas arcaicas sempre souberam viver em equilíbrio com o meio natural, porque esta é a única realidade que permite a sua sobrevivência e principalmente, porque essa relação se baseia no respeito e na veneração que os indivíduos têm por tudo aquilo que os rodeia. 10 a. Objecto de Estudo A pesquisa centra-se nos Papuas da Nova-Guiné, nomeadamente naqueles que vivem nas Terras Altas, devido à maior facilidade na obtenção de informação bibliográfica e também devido ao facto de toda a sua estrutura política, social, económica e religiosa ser totalmente diferente dos restantes Papuas que habitam a ilha continental, como os restantes Papuas insulares. Como já anteriormente foi referido, devido à escassez de tempo, o estudo centrarse-á principalmente na organização política dos papuas das terras altas na Papuásia, nomeadamente com o objectivo de entender como é que a guerra se encaixa dentro da organização política dos papuas. Daí que o problema de pesquisa seja: Relação da Guerra na organização política dos Papuas das Altas Montanhas da Nova Guiné. Contudo, antes de avançarmos com a pesquisa, parece-nos importante saber quem são os Papuas? Sabe-se que as colonizações na Oceânia foram acontecendo por diversas fases a partir do continente asiático. Enquanto na Àsia essas colonizações foram feitas por via terrestre, quanto à Oceânia é altamente improvável que tal tenha acontecido, não restando dúvidas de que essa passagem foi feita por via marítima. Os primeiros grupos humanos chegaram à Austrália e à Nova Guiné há cerca de um ou dois milhões de anos, numa altura em que o mar provavelmente atingíu níveis mais baixos, espalhando-se posteriormente para as outras ilhas circundantes. Físicamente, "(...) os aborígenes australianos e os povos montanheses da Nova Guiné são os principais representantes básicos do grupo" (Ferrús e Bardaji; 1986: 226), ou seja, os primeiros povoadores oceânicos são os antepassados directos destes actuais australóides . Nesta primeira fase de povoadores destaca-se o tipo "(...) Murray ou ainoide, pela sua semelhança com os ainos do japão, ainda subsistem no golfo da Carpentaria, na Austrália e nas costas Norte e Sul da Nova Guiné; e um tipo negróide oceânico que se teria estabelecido em parte da Nova Guiné e na península do cabo de Yorque, na Austrália". (ibid) A miscigenação entre estes dois grupos deu origem a povos mestiços que se espalharam por 11 toda a Melanésia. Estes primeiros grupos eram caçadores-recolectores, praticando igualmente a pesca. As restantes zonas melanésias que não foram colonizadas neste primeiro período, foram mais tarde - cerca de 5 mil anos atrás -, colonizadas por povos papuas. Daí que a maioria das línguas faladas nas ilhas melanésias pertençam à família papua. A segunda fase do povoamento desta região data de há cerca de seis mil anos e incidiu nas zonas ainda não povoadas, como a Micronésia e a Polinésia e ainda algumas ilhas da Melanésia. A Nova Guiné, tal como a Austrália permaneceram fora desta segunda vaga de colonizadores, porque já se encontravam povoadas. Os austronésios - povos colonizadores da segunda fase -, eram básicamente horticultores, cultivando o inhame, taro, cana-de-açucar e até arroz e domesticaram galinhas, cães e porcos. O nome Papua vem do malaio Pupawa, que significa crespo, contudo foi por nós observado que esta derivação não é consensual dado que Godelier diz que "(...) o termo Papua vem do português e designa os cabelos crespos dos indígenas". (1991:513) A Nova-Guiné pertence ao arquipélago oceânico designado por Melanésia. Fig. 1 12 Esta designação deriva das suas características etnográficas, uma vez que Melanésia significa ilhas dos negros. Físicamente as populações montanhesas da Nova Guiné são algo diferentes das restantes, não se sabendo se devido a uma adaptação ao meio ou a uma variação genética. Muito provávelmente, o facto de estes povos terem de sobreviver em zonas com mais de quatro mil metros de altitude exigiu-lhes diversas adaptações somáticas, caso contrário não teriam sobrevivido. Por isso, os povos que habitam as zonas altas do centro da Nova Guiné, são de estatura baixa -cerca de 1,40 m -, grande pilosidade corporal, pele muito negra, cabelo crespo, nariz platirrínio ealgum prognatismo alveolar e fronte fugidia. São de tipo pigméu, daí que sejam designados como pigméus melanésios. Fig. 2 Concluíndo, os indivíduos de habitam no litoral, possuem uma pele mais clara enquanto os de pele mais escura ocupam o interior das ilhas. Contudo, há quem defenda que estas distinções físicas entre os povos desta ilha não têm base científica e actualmente prefere-se classificar os grupos segundo a natureza das línguas que falam, ou seja, esta diversificação é feita do ponto de vista cultural. Assim, existem os povos de "(...) línguas não austranésias, cujas mais antigas populações são provavelmente originárias do sul da China (...)" (Godelier;1991:513) e que se encontram na parte ocidental da Melanésia, isto é, na Nova Guiné, Nova Bretanha e 13 ilhas Salomão, sendo conhecidas como línguas papuas. Entretanto, as línguas austranésias assemelham-se às da família malaio-polinésia e que são faladas em parte da Melanésia e da Polinésia. Quanto ao problema de pesquisa sabe-se que a guerra foi sempre uma actividade muito praticada por estes povos da Nova Guiné. Alguns antropólogos são da opinião de que a guerra foi pouco frequente até ao aparecimento das Cidades Estado. Outros, defendem que esta tornou-se mais mortífera com o desenvolvimento da agricultura e com a consequente sedentarização dos povos. É pois importante, tentar entender com que finalidade praticam estes povos a actividade guerreira, isto é, se pela necessidade de de conquistar novos territórios, estabelecer a coesão entre os grupos ou eventualmente para regular o aumento populacional . 1.2. Metodologia No que diz respeito à metodologia, ela é sempre importante em qualquer trabalho de investigação, já que dela depende a fiabilidade do próprio estudo. Neste caso concreto, a metodologia aplicada resume-se à pesquisa bibliográfica, dado não nos ser possível estendê-la também para o terreno. O acesso ás fontes documentais não foi difícil, uma vez que a Melanésia foi durante muito tempo "alvo" do interesse e da curiosidade dos antropólogos anglo saxónicos , alemães e até franceses o que proporcionou uma vasta bibliografia sobre esta região, nomeadamente acerca dos Papuas. Recorremos por isso, ao que vulgarmente se designa em ciências sociais por fontes secundárias, isto é, fontes constituídas por documentos escritos tratados pelos seus autores, como por exemplo, livros e artigos de revistas específicamente antropológicos . 14 Quanto à orgânica do estudo, este reparte-se por três partes principais: 1977 A primeira parte será toda ela dedicada à actividade económica dos Papuas, ou seja, a agricultura como base da economia comunitária, bem como a relação desta com a criação de porcos que funciona como actividade complementar à primeira, mas que não deixa de ter grandes implicações em toda a dinâmica da organização social e política. 1978 A segunda parte relaciona-se a organização social com a organização política, tentando entender como se atinge o poder na Nova Guiné, como se transmite, como se legitima, relacionando tudo isto com a figura carismática e sobejamente conhecida do big man. 1979 Por último, a terceira parte é inteiramente dedicada à guerra, às suas origens, aos porquês da sua existência, nomeadamente nas sociedades tradicionais e ao significado da guerra nos povos montanheses da Nova Guiné, bem como a relação da guerra com o poder político. A pesquisa terminará com a conclusão, anexos e a bibliografia. 15 PARTE I A ACTIVIDADE ECONÓMICA DOS PAPUAS 1. A Agricultura nas Terras Altas da Nova-Guiné Segundo provas arqueológicas, sabe-se que a actividade agrícola aparece pela primeira vez há cerca de 9 000 anos nas terras altas do centro da Nova Guiné. Este facto faz da Nova Guiné um dos mais antigos centros agrícolas do Mundo, ao lado do Crescente Fértil do Médio Oriente. Os primeiros produtos agrícolas foram provavelmente o taro, as bananas e a canade-açucar. (1983: 160) A batata-doce é um dos alimentos mais consumidos por estes povos e calcula-se ter sido introduzida há cerca de 400 anos, provavelmente pelos espanhóis. Fig. 3 – Plantação batata-doce (Dani) A este tubérculo deve-se não só a distribuição populacional nas montanhas, como também o seu crescimento demográfico. Não seria possível às sociedades Dani e Chimbú suportarem tão elevada densidade populacional, se não existissem recursos alimentares suficientes. A agricultura praticada pelos povos das Terras Altas é do tipo hortícola, sendo conhecida também por outra característica: a itenerância. A área escolhida é limpa através do sistema de 16 queimadas - o que provoca a erosão dos solos, obrigando a que os grupos mudem de lugar quando pretendem novas terras férteis e propícias à prática agrícola. Através deste sistema de queimada, as populações conseguem retirar somente uma ou duas colheitas no máximo, abandonando posteriormente aquele local por vários anos. No local deixado em pousio, surge depois uma segunda mata, que quando está bem desenvolvida e quando os terrenos estão férteis, as populações regressam e voltam novamente a limpá-la e a instalar aí as suas hortas. Deste modo, as comunidades adquirem terra arável, por um período que varia de 20 a 50 anos. Toda a terra arável é utilizada para cultivo, enquanto que as terras mais inacessíveis e pouco férteis nunca são cultivadas. Existe portanto à partida uma escolha do local a ser plantado. Contudo a área a ser cultivada é de igual modo escolhida mediante alguns critérios como: • Acessibilidade; • Conveniência; • Fertilidade do solo. Fig. 4 Para além disso, existem zonas - em que valas de drenagem podem ser construídas -, onde se pratica uma agricultura de tipo policultural, cujos produtos produzidos são: 17 • Taro; • Milho; • Bananas; • Batata-doce; • Cana-de-açucar; • Cenouras, etc. Existe por conseguinte, uma junção de produtos tradicionais - como o taro e a cana-de-açucar -, com outros trazidos de outras regiões - como a batata-doce e o milho -. Portanto, apesar da itenerância e de outras formas de produzir alimentos - como a criação de porcos ou a caça destes -, a agricultura é uma prática permanente e intensiva, até porque o cultivo da batata-doce, exige muitos cuidados por parte dos agricultores. Por ser uma prática intensiva, exige por isso mais trabalho e dedicação, mas em contrapartida obtem-se uma maior produção, ou seja, maiores recursos alimentares. E se maiores são os recursos, maior será também a densidade populacional bem como os potlachs. 1.1. Uma agricultura planificada Apesar de as sociedades papuas serem consideradas sociedades simples, no que diz respeito à sua organização social, o facto é que apesar do seu semi-nomadismo, os trabalhos agrícolas estão devidamente planificados e distribuídos por ambos os sexos. Este sucesso agrícola que permite o crescimento populacional da comunidade e a realização de ricos potlachs depende de diversos factores: 1 . Tecnologia usada : Os inputs de qualquer actividade humana podem ser medidos das mais variadas formas, tendo em conta igualmente diversos elementos. Neste caso, entre outros elementos, um aumento produtivo na agricultura passa sem dúvida pela tecnologia material usada na prática da actividade. Até à chegada dos europeus, estas sociedades montanhosas da Nova Guiné, não conheciam o ferro e por isso os instrumentos agrícolas utilizados eram de pedra polida - com grande nível qualitativo -, nomeadamente em trabalhos mais pesados. Existia até uma especialização ao 18 nível das ferramentas agrícolas, dado que a cada uma delas era destinada uma actividade específica. Posteriormente os machados de pedra são substituídos pelos de ferro, introduzidos pelos colonos. Paula Brown na sua obra Highland Peoples of New Guinea, refere que testes de tempo executados em alguns agricultores que utilizavam ambos os instrumentos revelaram que o tempo que o machado de pedra levava a cortar uma árvore era quatro vezes superior ao machado de aço. (1979 : 72) 2 . Energia dispendida : Nestas sociedades, o trabalho é comunitário, com tarefas desenvolvidas manualmente. Tal como as ferramentas, a energia humana dispendida, bem como o tempo gasto na execução de certas tarefas são de igual modo de extraordinária importância para o incremento produtivo. Quanto às energias dispendidas, sabe-se que quanto maior é o esforço, maiores são também as necessidades calóricas dos indivíduos. Há ainda que ter em conta que diferentes colheitas e diferentes técnicas requerem igualmente práticas laborais muito diversas. Esta prática da chamada jardinagem possui algumas fases que passam pelo (...) fabrico e reparação das ferramentas, limpeza das terras, trabalho das terras, plantação, colheita, carregamento e preparação dos alimentos. Por vezes, esta análise pode incluír ainda actividades subsidiárias como a recolecção, a construção de cercas e a busca de água. (Brown, 1979 : 71) Portanto o trabalho necessário para produzir a quantidade suficiente de alimentos para sustentar um indivíduo varia de tarefa para tarefa e da tecnologia nela utilizada. No entanto, é importante ter em mente que durante a preparação das terras, os porcos para além de comerem as pequenas ervas e/ou raízes que vão ficando nos terrenos, acabam por fertilizar também essas mesmas terras. Por isso, aos indivíduos são poupados os esforços e o tempo que seria necessário para que estas duas tarefas fossem executadas. Pensamos que o mais importante é dispender a menor energia e tempo possível, por forma a que os indivíduos fiquem com mais tempo disponível para outras actividades, sem que isso condicione o aumento da produção. 19 3 . Relação homem/ambiente: Tal como foi já referenciado anteriormente, a relação das sociedades tradicionais com o meio envolvente é ainda muito próxima e por conseguinte muito íntima. O Homem espera tudo da Natureza e por isso respeita-a, venera-a, apesar da acção dominadora que o primeiro sempre e inevitávelmente tem sobre o segundo. No caso dos Papuas, o exemplo dado anteriormente acerca da fertilização das terras com a ajuda dos excrementos dos porcos é um dos inúmeros exemplos. Há também a fertilização através do sistema de queimadas, apesar de este apresentar alguns problemas ambientais como: a erosão dos solos passados dois ou três anos e o inevitável decréscimo produtivo, como também (...) o problema da regeneração florestal que pode demorar entre 10 a 20 anos. (Harris, 1993 : 214) 4 .Divisão sexual do trabalho: Todas as tarefas agrícolas estão devidamente distribuídas e divididas entre os homens e as mulheres. Tal como acontece com muitas outras sociedades tradicionais, a actividade agrícola é maioritáriamente uma responsabilidade feminina. Os homens papuas desbravam a terra, procedem ao derrube florestal e fazem as queimadas. Após a execução destes quintais ou pequenas hortas os homens plantam cana-de-açucar e bananas. As mulheres fazem trabalhos menos violentos fisícamente, como lavrar a terra, limpá-la das ervas daninhas e plantam alguns vegetais e tubérculos como o taro e a batatadoce e cabe-lhes também a responsabilidade da selecção das variedades de culturas a serem plantadas. Existem por vezes produtos que são cultivados por ambos os sexos nomeadamente as culturas mais recentes -, como é o caso do inhame, mandioca e milho. Estas hortas são devidamente protegidas com cercas - em geral de madeira - em todo o seu redor, para evitar que os porcos destruam as culturas. Os porcos alimentam-se durante o dia na floresta e à noite as mulheres atraem-nos para os seus locais de recolhimento, dando-lhes batata-doce à mão.1 O trabalho das cercas é também uma actividade masculina. 1 Ver a este propósito o próximo capítulo, onde se descreve a importância dos porcos na dieta humana, como também nos rituais e na estrutura social e política destas comunidades Papuas. 20 Para além da prática agrícola existem outras tarefas de complemento à dieta diária, como a caça na floresta e a recolecção de frutos silvestres e outros produtos cedidos pela natureza. A primeira tarefa é realizada pelos homens e a segunda pelas mulheres e crianças. 5. Intensificação das práticas agrícolas e o equilíbrio ecológico : É evidente que tradicionalmente, estas comunidades papuas viviam dentro deste sistema semi nómada, praticando uma agricultura de sobrevivência, marcada pela itenerância. Contudo, a chegada dos europeus aquele território e o contacto dos nativos com o exterior, começou por provocar diversas mudanças na forma de vida das populações.2 Tradicionalmente, os indivíduos viviam em aldeolas compostas por cem a duzentos e cinquenta pessoas, sendo a densidade demográfica de cerca de 4 indivíduos por km 2, nomeadamente na periferia das zonas montanhosas. Com a soberania do território - parte oriental -, por parte do governo australiano em inícios do século XX e com o crescimento dos efectivos populacionais, a vida das aldeias sedentarizou-se bastante mais e a pressão sobre os recursos naturais aumentou significativamente. Ainda existem grandes manchas florestais que são usadas na caça e na recolecção, mas não são consideradas boas áreas para a fixação das populações, nem para a prática agrícola. É portanto questionável se uma grande população pode sobreviver neste sistema ecológico de subsistência, onde chuvas intensas, solos pobres e terrenos irregulares limitam a terra arável. (Brown, 1979 : 35) A análise que podemos fazer desta situação, é que com a sedentarização dos indivíduos, e o aumento demográfico, a pressão sobre os solos - não muito férteis -, aumenta muito, dado que a vida das aldeias sedentárias passa a depender cada vez mais da actividade hortícola. Assim sendo, os recursos selvagens escasseiam - dado que cada vez mais se derrubam florestas para conquistar novos solos aráveis -, enquanto que a terra declina visívelmente em produtividade. Enquanto que anteriormente as concentrações populacionais eram temporárias, 2 De salientar que estas mudanças foram lentas, nomeadamente nas zonas montanhosas, onde a acessibilidade era bastante mais difícil e o isolamento dos povos que aí habitavam uma constante. Este facto, originou que os costumes e as tradições destas populações, não sofressem as agressões vindas do exterior de forma tão acentuada., como as populações que habitavam as zonas litorais e aquelas que se situavam na periferia das montanhas. 21 posteriormente essa forma foi alterada e as comunidades são agora para além de maiores, mais permanentes. Corre-se aqui o risco de desregular o tão importante equilíbrio ecológico. Antes da colonização pelo governo australiano a fixação na área periférica das montanhas estava integrada com um móbil ecológico de subsistência e concentrações ocasionais para comércio e cerimónias. Os recursos alimentares normais não podiam suportar grupos maiores permanentes. (Ibid, 36) Antes da intervenção australiana este equilíbrio entre as populações e os recursos disponíveis estava perfeitamente controlado e as comunidades regiam-se sempre por este princípio, porque o seu desrespeito colocaria em causa toda a sobrevivência da comunidade. Estas medidas australianas visavam sobretudo o controlo da actividade guerreira - tão importante nestas sociedades da Nova-Guiné, tal como poderá ser constatado posteriormente na parte III deste estudo -, que em muitos casos tinha por objectivo a conquista de novas terras. Contudo, apesar destes problemas, a adaptação à nova realidade dá origem ao aparecimento de novas técnicas de cultivo e de nutrição dos solos, por forma a aumentar a produtividade. Daí que tenham estabelecido um controlo da água, como forma de aumentar a produção agrícola, controlo esse feito através da drenagem das águas, técnica esta adaptada apenas a certas culturas e a determinados terrenos, como é o caso do taro - provavelmente o percussor da batata-doce na Nova Guiné -, que requere melhores condições de crescimento, principalmente em locais onde a água exista em alguma abundância. Como as batatas-doces requerem menos cuidados e terrenos mais secos, estas são plantadas em pequenos outeiros, de maneira a que a rega seja mais fácil. Para além disso, desenvolveram-se técnicas especializadas por exemplo no cultivo da batatadoce em que se tinha em conta não só a facilidade de rega, como também a erosão dos solos e até a temperatura, dado que os povos montanheses têm de ter sempre em conta a variação das condições climatéricas quando planeiam o seu trabalho agrícola, já que existem períodos de intensas e prolongadas chuvas, outros de grandes secas e muito frio. Ainda no que diz respeito à batata-doce, este tubérculo pode ser cultivado em qualquer altura e adquire a sua 22 plena maturidade entre os cinco e os nove meses. Daí que este seja dos produtos hortícolas mais consumidos na região. Desta forma podemos resumir o anteriormente dito, subdividindo as diversas medidas de intensificação da produção agrícola, da seguinte maneira: 5.1. Cercas: que podem ser em madeira, caniços ou metal e cujo objectivo é definir os limites da horta e proteger os terrenos da invasão animal. 5.2. Pousio : com a rotação de culturas e a plantação da Casuarina (que fornece nitrogéneo, enriquecendo o solo). 5.3. Preparação da terra : com o corte das árvores, arbustos e ervas; o amanho da terra e a execução de pequenos regos ou valas, são alguns dos procedimentos tomados. 5.4. Controlo da erosão : através da construção de socalcos, drenagens e selecção de sementes. 5.5. Controlo da água : com a construção de regos e do desvio do curso das águas e também através do aproveitamento das águas pluviais, em zonas onde os níveis de pluviosidade são mais baixos. 5.6. Fertilização : uma das estratégias é o uso de matérias vegetais, como a mistura de palha húmida, folhas, com a finalidade de proteger as raízes das árvores recém plantadas; a utilização dos excrementos dos porcos e a aplicação de cinzas. 5.7. Cuidados com as colheitas : selecção de plantas, as mondas, rotação das culturas (...), control dos parasitas (...) e a transplantação. (Brown, 1979 : 77) A produtividade da horta depende também da fertilização da terra pelo porco, assim como o movimento destes sobre o solo, acaba por revoltá-lo e amaciá-lo. O mais importante aqui, é não esquecer que existe uma relação equilibrada entre o uso da terra para os porcos e o uso da mesma para a actividade hortícula. No entanto, as hortas são o principal recurso alimentar destes povos, uma vez que os porcos são mortos apenas quando existe uma celebração. 23 2. A Importância da Criação de Porcos O porco é o mais importante e o maior animal consumido na Nova-Guiné. Outras espécies de animais como cavalos e gado foram introduzidos nesta região muito recentemente, sendo por isso raros. Os dados arqueológicos indicam que este animal foi introduzido nesta região como animal doméstico, através da Ásia e Indonésia, há milhares de anos atrás. O porco não é por conseguinte, um animal oriundo desta ilha. Estes, encontram-se nas florestas e nos prados que circundam as hortas e as evidências arqueológicas sugerem que os porcos talvez se tenham tornado selvagens por passarem a estar “entregues a si próprios” no interior das florestas. Os porcos selvagens são caçados em todas as florestas e os jovens machos são na sua maioria castrados, o que origina que as porcas acassalem frequentemente com javalis nas áreas circundantes e não só, havendo posteriormente o cuidado por parte dos habitantes das montanhas em trazer as crias para junto de si, por forma a constituírem o stock doméstico. Contudo, apesar da contante miscigenação entre estes animais, o resultado não é muito promissor, dado que a taxa de sobrevivência dos pequenos porcos é baixa. As fêmeas dos suínos são geralmente mantidas para reprodução e só são abatidas quando há necessidade de redução do número de efectivos. Por vezes, os porcos selvagens podem ser caçados sem um propósito concreto, o que nunca acontece com os domésticos, ou seja, a matança de um porco nas montanhas altas da NovaGuiné é sempre motivo de importantes celebrações. As populações desta zona debatem-se com um factor limitativo, que é a falta de proteína animal, daí que o porco, embora bastante apreciado, não seja um animal consumido diáriamente, não fazendo portanto parte da dieta comum. Os animais selvagens capturados, são geralmente jovens, sendo posteriormente domesticados pelas populações - tarefa esta que compete às mulheres -, através da alimentação, ou seja, estes permanecem nas áreas humanizadas porque lhes são fornecidos à mão batata-doce e sago, que ao que parece são os seus alimentos preferidos. Desta forma, os porcos tornam-se dependentes de quem lhes fornece esses alimentos. Durante o dia 24 alimentam-se em locais abertos, onde praticam uma dieta omnívora - ingerindo ervas insectos, répteis, tubérculos, etc. - havendo sempre o cuidado de estes não entrarem para as hortas que estão vedadas com cercas, e, à noite a sua alimentação é fornecida pelo homem e pernoitam numa secção da casa criada para o efeito. A propósito da criação de porcos é também importante frisar-se aqui, que há uma forma diferente de encarar este recurso alimentar, entre os povos que habitam o centro interior das montanhas e os povos que habitam as áreas montanhosas periféricas. Nas áreas marginais, os porcos são caçados mediante as necessidades humanas e por isso não existe práticamente o hábito de se guardarem os porcos para serem ingeridos numa determinada festa. Quando se realiza a celebração, captura-se o animal na floresta. Não existe portanto, a domesticação. Nas zonas centrais, a densidade populacional é maior e devido à criação das clareiras florestais, o que acontece é que a floresta fica mais distante da aldeia, para além de que com o abate das árvores os recursos animais na área esgotam-se. Daí a necessidade de se criarem porcos, resolvendo assim o problema da escassez de carne. Nestas zonas, chega a existir quase tantos porcos como pessoas e quando os povos se preparam para uma festa, os suínos são engordados através do aumento da ingestão de batata-doce, isto é, torna-se bastante mais frequente o acto de as mulheres alimentarem os animais. Portanto, quando os porcos começam a competir com os indivíduos, ao nível alimentar, ou melhor, quando o esforço e o tempo dispendido para alimentar os porcos é idêntico ao das pessoas, é altura de se proceder à matança ritual, porque as populações não podem ficar dependentes, nem colocar em perigo a sua sobrevivência, pelo excessivo número de porcos criados. É o que acontece com os Tsembaga Maring, que atingido este ponto, diminuem o efectivo de porcos realizando uma festa. Essas festas estão, provavelmente, relacionadas com o ciclo de reflorestação dos campos agricultados, e com a situação de guerra, envolvendo períodos de paz, entre os Tsembaga Maring e os seus vizinhos.” (Batalha : 36) Os porcos domésticos fazem parte do património individual de uma família e por isso cada família tem de criar os seus próprios suínos, por forma a fazer face a determinadas obrigações sociais, quer ao nível meramente participativo, ou quer pretendendo aumentar o 25 prestígio da comunidade. Como os porcos são um elemento de prestígio, estes por vezes são roubados e isso dá origem a conflitos por vezes entre elementos do mesmo clã. Para além disso, os porcos são também uma importante moeda de troca, dado que como os papuas não conhecem os cereais, nem as suas vantagens de conservação e armazenamento, a criação de porcos é a única possibilidade de constituírem alguns excedentes para troca, já que os tubérculos não se conservam por muito tempo. 2.1. Os festivais e os porcos É importante haver uma coordenação entre o indivíduo, a família e a terra e que estes três elementos por sua vez, estejam adaptados às fases do ciclo cerimonial dos porcos. A adaptação ecológica das Terras Altas, os valores culturais e as actividades sociais culminam com as práticas cerimoniais. A riqueza é demonstrada através da produção e da dádiva, não só dos produtos agrícolas como também dos porcos (...). (Brown, 1979 : 215) Por exemplo, os Chimbu, (...) encaram os festivais dos porcos (...), como o seu maior acontecimento, a base da sua reputação junto das outras tribos. (Ibid) Tal como foi já referenciado anteriormente a criação de porcos é aumentada quando se aproxima a data de um acontecimento importante para o clã e a carne é distribuída em cerimoniais como a iniciação masculina ou o casamento. Contudo, segundo a opinião de Paula Brown, estes festivais organizados pelos povos montanheses da parte oriental da NovaGuiné para além de serem muito mais pequenos que os dos povos centrais das montanhas, acontecem também com muito menos frequência. Sabe-se que os Kamano - que habitam a parte oriental das montanhas -, (...) realizam festivais em ciclos que podem ser de três ou mais anos, cerimónias estas que correspondem à iniciação dos rapazes (...). Temáticas como a fertilidade, o crescimento das culturas e os porcos, honram os espíritos criadores e os antepassados, para além de que a dominância masculina é sempre expressa neste tipo de acontecimentos. (...) Os festivais de porcos para um clã ou para um grupo maior são 26 requerem esforços combinados de diversas aldeias que actuam em representação do parente3 perante as outras regiões ou aldeias. (Brown, 1979 : 222-223) Estes festivais são ainda importantes, porque durante a sua realização há um clima de paz e serenidade entre diversas aldeias, embora o espírito competitivo intergrupal e a preparação dos jovens para a guerra esteja sempre envolvido nestes cerimoniais. Apesar da serenidade, é primordial não se descurar um dos mais importantes componentes da formação e afirmação masculina no seu meio socio-cultural : a actividade guerreira. Por exemplo as festas Siane acompanham sempre a iniciação. (Ibid) Os grandes festivais de porcos são mantidos após a iniciação mas também servem para indemnizar aliados das subtribos vizinhas e reconhecer o status do líder (...). (Ibid) Estas cerimónias funcionam não só como uma afirmação e consolidação do poder político, mas também como uma altura de tréguas e de dádiva para com os outros. Os Chimbu durante a sua cerimónia de matança dos porcos - conhecida por bugla gende - realizam-na não só em honra de uma só tribo (...), mas para os parentes ou para as pessoas que lhe são aparentadas e amigos em todas as tribos. (Op. Cit. 224) Este tipo de festas também acontece após uma importante batalha e através da qual se comemora a vitória. Como a actividade guerreira tem por base as alianças, quando se pretende comemorar uma vitória a festa decorre na aldeia do líder da aliança. Isto implica que todas as pessoas aliadas se juntem, conjuntamente com os seus convidados, o que pode variar entre as 5 000 e as 8 000 pessoas, cozinhem os porcos, afastem os espíritos, e que os animais mais gordos sejam reservados para certas pessoas como o líder do grupo inimigo, os guerreiros mortos, outros mortos e familiares. As pernas, costelas e outras partes do porco são distribuídas. Esta fase da cerimónia é especialmente dirigida à compensação pela guerra e para além disso evoca a superioridade militar do líder da aliança estabelecida. (Ibid) 3 O que isto significa é que um festival envolve não só a pessoa que o organiza - o Big-Man, como também todos os seus parentes. A realização destes cerimoniais é portanto um esforço conjugado entre todos, por forma a que o estatuto da pessoa mais importante do clã se mantenha ou se possível cresça. Quanto maior é o prestígio do Big-Man, mais importante é para os seus familiares mostrarem que detêm com ele laços de parentesco, sejam eles por consanguinidade ou por afinidade. 27 Resumindo, sempre que se organizam festivais é ao Big-Man que cabe a tarefa de liderar a produção de porcos, mas é evidente que ele só o consegue encorajando os seus amigos e companheiros a fornecer porcos. A correspondência a este apelo não só contribui para a manutenção dos indivíduos envolvidos, como garante também a reputação de todo o grupo. A preparação para uma grande festa requer um esforço coordenado de muitas famílias e pode envolver a intensificação agrícola e um aumento do cultivo das batatas doces, fazendo desta forma uma certa pressão sobre a terra arável da comunidade. No entanto, toda esta intensificação tem vida curta; quando a festa acaba apenas as pessoas e alguns pequenos porcos precisam de ser alimentados através das hortas da comunidade. Também há uma certa partilha extra, ou seja, os porcos são postos nas terras de parentes de outras comunidades que não estão a planear uma festa. (Op. Cit. 92) Assim sendo, as festas dos porcos nas Terras Altas da Nova-Guiné, fazem parte de todo um sistema ecológico, económico, social, político e religioso no qual a produção doméstica, as relações interpessoais e intergrupais, o comércio, e o sucesso estão interrelacionados. Muitas destas cerimónias estão ligadas com os ritos de fertilidade, com a solidariedade do grupo e com a ascensão social individual. Nestes acontecimentos, a quantidade de porcos e de outros bens para distribuir em festas e para consumir são ambos indicadores do sucesso na produção de vegetais e de porcos e apelam aos espíritos para uma fertilidade continuada. Tanto a intensificação do cultivo da batata doce e os grandes festivais de porcos são parte de um complexo económico com comunidades concentradas e planeamento de grupo. Quando se celebram grandes festivais, uma grande quantidade de carne de porco pode ser consumida de uma só vez e pouca ou nenhuma antes e depois. Actualmente (...), mais propriamente, nos últimos dez a quinze anos, foi introduzido gado nas festas, tal como produtos usados para venda e para troca. (Op. Cit. 93-94) 28 Parte II ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA 3. Família e Parentesco Na maior parte das sociedades primitivas,4 o parentesco, baseado no reconhecimento social dos laços de consanguinidade e de afinidade, é o elemento fundamental da estrutura social. (Llobera, 1979 : 54) Ao falarmos da organização social da sociedade papua, não podemos deixar de ter em conta que a família é a sua principal estrutura, sendo deste modo também a sua organização política baseado no parentesco. Como parentesco Marvin Harris defende que se trata de uma forma de relações interpessoais culturalmente reconhecidas e em que os indivíduos estão relacionados uns com os outros por laços de descendência ou casamento. (1993 : 484) Este grupo tem um sistema de descendência unilinear, baseado na crença de que todos descendem de um ancestral masculino comum, sendo portanto todo o grupo descendente do mesmo fundador. Podemos pois, classificar este tipo de descendência como agnática. Quanto mais largo é o parentesco agnático reconhecido, mais para trás se traça a descendência (...). (Fortes e Evans-Pritchard, 1981 : 490) Trata-se de uma sociedade de descendência patrilinear, daí que a qualidade de membro do grupo, a sua continuidade, direitos obrigações e até a solidariedade, derivem e girem em redor (...) (Brown, 1979 : 144), desta característica. Esta ideia une os indivíduos ao longo das gerações (...). (Ibid) O (...) tabu do incesto (...) (Llobera, 1979 : 52) é um dos (...) mecanismos que tornou possível formar uma rede de ajuda mútua, de modo que os laços de aliança e as relações económicas saíram reforçados. (Ibid) Por conseguinte, isto significa que os papuas são exogâmicos, com residência patrilocal - a mulher vem residir na casa do pai do marido ou numa casa perto da 29 dele, ficando a dois ou três dias de distância a pé do seu clã - e em alguns casos praticam a poligenia, principalmente o Big-Man. A família é sustentada não só pela consanguinidade, como também pelos laços de parentesco, que se estabalecem a partir destas alianças. Estes grupos estão organizados em linhagens, denominando-se antropológicamente por sociedades linhagistas. Como podemos definir uma sociedade de linhagens? As linhagens baseiam-se nos homens que, situados num mesmo quadro genealógico, estão ligados unilinearmente a um mesmo e único tronco. Segundo o número das gerações em causa (profundidade genealógica), a sua extensão varia, tal como o número dos elementos (ou “segmentos”) que as compõem. (Balandier, 1987 : 61) Trata-se portanto de uma linhagem agnática extensa, na qual todos os membros são parentes uns dos outros por consanguinidade. (Fortes e Evans-Pritchard, 1981: 419) Estruturalmente, estas sociedades designam-se por segmentárias. Aliás esta ideia da segmentação - uma origem comum na fundação de todas as tribos (...), com a passagem para muitas gerações seguintes e sucessivas divisões em segmentos -, é uma imagem bastante elucidativa para a continuidade social dos grupos. (Brown, 1979: 184) Mas como se processa essa divisão segmentária? Os grupos crescem através somente dos nascimentos dos homens, dos seus casamentos, da adopção e da aceitação no grupo de jovens parentes que sejam próximos, como filhos do líder do clã. (Ibid) Então um homem com poder, como o big man, pode fundar um novo grupo com as suas esposas e dependentes com o mínimo de cinco e o máximo de dez segmentos de gerações vindouras. Todas as relações interpessoais e intergrupais - incluindo as manifestações rituais e os estados de guerra -, na maioria dos povos montanheses, são baseadas nessa crença de um único tronco comum a todos. A solidariedade masculina e a unidade do clã são reforçados pelas crenças que dizem respeito às diferenças sexuais, iniciação masculina e os cultos. 4 Sublinhado nosso, dado que antropológicamente, não é correcto designar as sociedades tradicionais como sociedades primitivas. 30 (Brown,1979:144) Por vezes, os clãs vizinhos juntam-se para festas ocasionais e para actividades comerciais. Nas áreas periféricas das montanhas, onde a população é menos escassa, encontram-se unidades familiares com cerca de 100 indivíduos ou menos, enquanto que nas zonas centrais do interior, existem clãs com 500 ou mais pessoas. Apesar da família nuclear ser um importante alicerce da sociedade papua, o facto é que esta não funciona da mesma forma como a sociedade ocidental a conhece. A mãe, filhas e rapazinhos dormem numa casa e formam um grupo familiar coeso. (Brown, 1979 : 146) Aliás a relação da mãe com as crianças é muito valorizada e de grande responsabilidade, já que às mulheres cabe-lhes a preocupação directa de alimentarem os seus filhos. Para além disso, enquanto bebés, as crianças nunca são deixadas muito tempo com outras pessoas, incluindo aqui também o seu progenitor. Mesmo durante as tarefas agrícolas específicamente femininas, as crianças encontram-se sempre junto das suas progenitoras. Por vezes quando uma criança fica orfã de mãe, outra mulher e respectivo marido podem adoptá-la, sendo considerada não só como filha do casal que a tomou a seu cargo, como é igualmente considerada irmã dos filhos legítimos do casal. A partir desse momento, esta criança fica sujeita aos direitos e deveres do clã a que pertence, sendo encarada também como descendente do fundador e podendo ascender tal como os outros a cargos de poder. De qualquer forma, apesar da família ser a unidade básica da sociedade papua, a verdade é que ela não pode ser demasiado extensa. Dado que toda a responsabilidade de sustento das crianças recai sobre as mulheres, nunca podendo estas deixarem de cumprir as suas obrigações domésticas, por vezes as mulheres recorrem ao infanticídio e no caso de serem gémeos, tradicionalmente chegou-se a sufocar as duas crianças, logo após o parto. (Ibid) Esta seria também uma forma de controlar o crescimento demográfico, que caso contrário colocaria em risco toda a comunidade, já que mais bocas para alimentar, significa maior pressão sobre a terra arável e finalmente constantes conquistas territoriais. É preciso não 31 esquecer que o número de porcos criados teria de ser maior e isso significaria grande sobrecarga para a actividade agrícola, dado que do ponto de vista alimentar os porcos em determinada altura competem com os indivíduos - nomeadamente perto da época dos festivais -, porque a sua dieta passa a ser complementada durante o dia com a administração directa de batatas-doces, tal como foi já referenciado na primeira parte deste estudo. É de igual modo importante salientar que os nascimentos são espaçados, devido a um longo período de amamentação, à proibição de os casais se relacionarem sexualmente e ainda à abstinência sexual para os homens às vezes por motivos rituais. Estas regras são respeitadas, não só porque conscientemente, os indivíduos sabem o risco de um crescimento demográfico desmedido, mas principalmente porque consideram que as proibições sexuais (...) visam a protecção das suas vidas contra perigos místicos. (Ibid) Portanto, é como se o desrespeito por estas normas lhes acarretassem determinadas fatalidades como represália. Há aqui a crença em algo sobrenatural, mais forte que a vontade humana e que por isso convém cumprir, o que revela sinal de respeito. No entanto, já em 1976, Paula Brown constatou que estas práticas estavam em franco decrescimento, principalmente quando se tornou comum a atribuição de um subsídio alimentar para as crianças, sendo agora os nascimentos menos espaçados. O divórcio é muito mal aceite pelos Papuas, mas quando isso acontece, a mulher é expulsa do clã do marido, permanecendo os filhos com o pai. Aliás, assim que nascem, as crianças são automáticamente membros pertencentes ao clã ou tribo do seu pai. (Op. Cit. 185) Depois de focarmos a importância da mulher no sustento das crianças muito pequenas e do facto de esta conjuntamente com os filhos pequenos e as filhas formarem um grupo muito coeso, o pai e os rapazes mais velhos da família nuclear geralmente pernoitam com outros homens na casa dos homens. (Op. Cit. 144) Como cada um dos elementos da família tem tarefas diárias definidas, consoante sejam, homens, mulheres, adolescentes ou crianças, o que origina que os 32 assuntos importantes que dizem respeito à família só sejam discutidos durante as refeições à tarde, que geralmente são tomadas em casa da mulher, na presença do marido e dos filhos. Resumindo o anteriormente dito, a ideia de patrilinealidade e da descendência comum é como já se víu o que une o grupo, ou seja, o grupo sustem-se através das relações masculinas. Contudo, apesar deste ideal, a realidade nem sempre se processa desta forma, ou seja, a descendência não é sempre baseada na consanguinidade, às vezes é-o por afinidade. Apesar de o modelo, definir a descendência de pai para filho, isso não significa que na prática todas as relações que se estabelecem dentro do clã são genealógicas. Por exemplo, quando os orfãos são adoptados por outros homens , isto não trai de forma alguma o modelo estabelecido, pelo contrário, acaba por se encaixar nele. O nascimento é o principal, mas não o único meio de um indivíduo tornar-se membro de um grupo. Estes povos montanheses preocupam-se mais com o comportamento que esperam que o parente chegado venha a ter, do que propriamente com a assumir das relações de sangue. Esta atitude vai um pouco de encontro aquilo que muitas vezes ouvimos dizer na sociedade ocidental, de que “pais não são os que geram, são os que criam e dão amor”. No entanto existem excepções, e entre os Mae Enga - também eles montanheses -, o factor genealógico tem muito mais importância do que nos outros grupos. O mais importante a reter aqui, é que os povos das altas montanhas da Nova-Guiné, referemse sempre a (...) um único pai, uma única linha, uma família, um nome (...) tendo tudo a ideia de unilinearidade e continuidade. (Op. Cit. 149) Contudo, actualmente a expansão contínua das linhagens é já rara e difícil, devido a diversos factores como as migrações, a adopção, o divórcio, a morte, a guerra e também o recrutamento de indivíduos por parte do big man, que quebram a continuidade da descendência. (Op. Cit. 185-186) 3.1. A terra e o território 33 Depois do que foi já dito no capítulo anterior são os homens que têm direito às heranças, embora nas obras consultadas não se tenha explicitado claramente se é ao primogénito que cabem os bens da família. Os rapazes herdam a terra do pai, mas sempre dentro do território do clã. Contudo, não sendo a sociedade papua, uma sociedade rica do ponto de vista económico, julgamos que será o filho mais velho o herdeiro e “gestor”, do pedaço de terra cultivado, da casa, de alguns porcos e de mais alguns objectos pessoais, como o vestuário, os ornamentos e as ferramentas. Os baldios e os produtos que daí derivam, são pertença da comunidade, bem como a terra dos antepassados e as florestas. Por vezes os bens que são raros causam conflitos entre os grupos, principalmente as árvores de fruto e as nogueiras. Existem portanto, quer direitos individuais, quer direitos comunais, que por todos são reconhecidos. Nos territórios mais extensos e com recursos considerados valiosos - caça e água por exemplo -, são constantemente vigiados, evitando que os inimigos penetrem nessa mesma área. Contudo, esta vigilância é muito rara em zonas do território onde não existam ou não abundem estes recursos. É evidente que os grupos não são todos da mesma dimensão e por conseguinte não ocupam áreas territoriais também elas com a mesma dimensão. Aliás a questão territorial é muito importante para os grupos das terras altas, já que sendo o território propriedade da comunidade, é através dele que os grupos se autonomizam, crescem, progridem e se mantêm. Mas não é através do território que os grupos se tornam mais ou menos unidos. Um clã nem sempre é um grupo independente: de facto, muitas vezes diversos clãs, com dimensões também elas variadas, acabam por se juntar e formar uma maior unidade política. (...) Um ou mais clãs que possam ter migrado (...), não necessitam de estarem sempre territorialmente ligados (Brown, 1979 : 189), já que os laços que unem os diversos grupos transcendem as questões territoriais, ou seja, liga-os não só um ancestral comum e por conseguinte laços de parentesco, como também laços de afinidade, já que quando um ancestral comum e uma descendência patrilinear estão no seu limite acredita-se que o clã 34 original cresceu tanto que é necessário dividi-lo em diversos outros clãs, sendo que o maior grupo pode ser denominado de grande clã ou de fratria. Por vezes o maior grupo é exogâmico, mas frequentemente os indivíduos que constituem os clãs casam dentro da própria frátria. (Ibid) Estes casos são uma excepção, uma vez que a maioria dos grupos das terras altas praticam a exogamia. Os grupos exogâmicos, juntam-se diversas vezes para agirem directamente na defesa dos seus interesses - que obviamente são comuns -, nomeadamente no que respeita a actos de defesa contra o inimigo, cerimonias, etc. Na maioria dos casos os seus membros estão ligados por laços de consanguinidade ou afinidade. Esta união para a defesa dos seus interesses e visando a cooperação política, ritual, militar ou festiva é importante na medida em que reforça a amizade entre as populações e estimula a solidariedade dentro do grupo por forma a defender o território contra os estranhos. A guerra funciona assim como uma forma de poder. O poder de defesa, o poder de agressão. 4. As Manifestações de Poder na Organização Social Os povos montanheses que habitam as terras altas da Nova Guiné, vivem num regime económico caracterizado pela economia de subsistência, o que tal como indica o termo não permite a existência de uma riqueza financeira. A riqueza acumulada toma a forma de artigos de consumo e amenidades, ou é utilizada para sustentar os dependentes adicionais. Desta forma tende a dissipar-se rápidamente e não dá lugar a divisões de classe permanentes. (Fortes e al, 1981: 37) Nestas sociedades, a produção é orientada pelas necessidades e não pelo lucro. (Godelier, 1971: 170) (...)As funções políticas não trazem consigo privilégios económicos, ainda que a posse de riqueza mais avultada do que a média possa ser um critério para as qualidades ou status requeridos para a liderança política, porque nestas sociedades economicamente homogéneas, 35 igualitárias e segmentárias a obtenção de riqueza depende de qualidades pessoais excepcionais de realizações (...). (Fortes e al, 1981: 38) Não podemos falar de poder, sem que este nos lembre liderança, força física, prestígio, riqueza, dons oratórios, etc. O poder remete-nos também de imediato para a esfera política, e este é uma parte de um todo mais vasto e englobante: o social. Se o poder se consubstancia com as sociedades estatizadas, estratificadas, que dizer então de uma sociedade melanésica, como a dos papuas? A sociedade destes povos é caracterizada e classificada como uma sociedade sem Estado, acéfala ou ainda como uma (...) anarquia ordenada. (Bernardi, 1989 : 102) Dizem-se sociedades acéfalas porque normalmente as sociedades sem Estado são também sociedades sem chefes (...). Na realidade não faltam chefes às sociedades acéfalas; o que elas não têm é chefes monárquicos, de poder centralizado. A posição dos seus chefes é quase sempre a de “o primeiro entre iguais”. (Ibid) Contudo, apesar da sociedade papua não possuír a dimensão de Estado, isso não significa que ela não detenha poder político. Jeans Copans cita Balandier e diz que o poder político é inerente a qualquer sociedade. (Copans, 1971: 102) Neste caso específico, a sociedade papua possui elementos explícitamente políticos como as diferenciações sociais assentes na diferenciação sexual, de certa forma nas classes etárias - embora de forma pouco acentuada -, na actividade guerreira e principalmente na capacidade de gerar riqueza e posteriormente na capacidade de ser generoso, isto é, quanto mais se dá, mais prestígio se obtém e por conseguinte mais fácil é atingir o poder. De facto não existe uma estratificação social, mas existe claramente uma distinção social. Sò que neste caso a posição social “superior”, quanto a nós visa sempre o aspecto social, dado que a actividade mercantil com o objectivo lucrativo não se encaixa nesta sociedade. Um objecto precioso nas sociedades primitivas, assume duas funções principais: a de mercadoria e a de prestígio. É evidente que (...) a segunda é dominante, porque se enraíza e toma sentido nas exigências das estruturas dominantes da organização social primitiva, ou seja nas estruturas do parentesco e do poder. (Godelier, 1971: 184) 36 Numa sociedade com estas características, não é possível o aparecimento do Estado, porque para que tal aconteça, há que haver primeiramente uma estratificação social evidente, que permita à classe dominante exercer domínio sobre os outros. Há claramente uma dicotomia entre dominante/dominado. Esta característica é por isso precedente ao aparecimento do aparelho estatal. As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque o Estado é impossível entre elas. (Clastres, 1979: 198) Este autor acrescenta ainda que o facto as sociedades técnicamente menos avançadas não tem condições para o aparecimento do Estado, dado que não existe nela uma figura reinante, que seja encarada como a lei e a quem se deva obedecer, como aconteceu com outras culturas. No seio das comunidades Papuas o poder é difuso, não é hereditário, sendo por essa razão momentâneo. À partida todos os homens têm a mesma oportunidade de chegarem a líderes, isto é, chegarem a big man. No entanto, a estes são sempre reconhecidas e apreciadas determinadas características como: um bom guerreiro, bons dons oratórios, eventualmente bom caçador, grande capacidade de trabalho - principalmente no que diz respeito à criação de porcos, que entre estes povos é o bem mais precioso -, para além de ser generoso. Este sistema igualitário, de satisfação das necessidades, que impede a acumulação de riquezas, não permite que o big man seja autoritário. Assim sendo, o chefe não detém o poder em toda a amplitude do termo, porque o chefe não é um chefe de Estado, a sua figura não implica lei, por isso as suas funções não se podem traduzir em autoridade. Daí que apesar de o Estado não existir nesta sociedade, existe (...) a sua possibilidade que a sociedade se esforça, precisamente, por afastar. (Gauchet, 1977: 73) Não aceitando que o big man tenha um poder coercivo e ao qual se deva obedecer, a sociedade papua está precisamente a proteger-se contra ao aparecimento da “máquina estatal”. Mas, Marcel Gauchet vai mais longe e afirma que apesar da não existência do Estado nas sociedades de tradicão oral, existe nelas o embrião do Estado, a origem do próprio Estado. Como ? 37 Através da forma como todo o espaço social está organizado e ainda através da (...) divisão política. (Ibid). A principal função do líder na Nova Guiné, é a de estabelecer a coesão social, mediar ou (...) resolver os conflitos que podem surgir entre indivíduos (...), ele não dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, senão do prestígio que lhe é reconhecido pela sociedade. Mas prestígio não significa poder (...) e os meios que o chefe detém para cumprir a sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra. (Clastres, 1979: 199-200) Uma das características mais determinantes para a paz social é o poder de persuasão do líder junto da sua comunidade, caso contrário, se essa característica faltar, a mesma pode entrar em conflito e a partir daí o prestígio do líder é questionado já que ele não consegue cumprir o que os outros esperam dele. (...) se nas sociedades com Estado a palavra é o direito do poder, nas sociedades sem Estado, pelo contrário, a palavra é o dever do poder. (...) Não se trata aqui do gosto (...) pelos belos discursos (...). Não é a estética que está aqui em questão, mas a política. (...) Que diz o chefe? O que é uma palavra de chefe? É, antes de mais um acto ritualizado. (Op. Cit. 151) No entanto, apesar destas opiniões, outros autores definem poder como (...) a capacidade de actuar efectivamente sobre as pessoas e sobre as coisas, recorrendo a uma gama de meios que vai da persuasão até à coacção. (Smith - citado por Balandier, 1987: 45) Neste sentido, concordamos com a posição de Smith e achamos que o poder pode revestir-se de múltiplos aspectos, não sendo determinante o aspecto da coacção ou da violência física. No caso dos Papuas, o líder é respeitado, precisamente pelo facto de ser um elemento que promove a paz e a coesão de todo o grupo, acumulando ainda a particularidade de ser generoso e proceder portanto à dádiva. Deste modo, a principal função do poder é lutar contra a desarmonia e contra a desordem. Mas o poder se por um lado acentua a coesão interna do grupo, por outro (...) reforça-se sob a pressão dos perigos exteriores - reais e/ou supostos. (Balandier, 1987: 46) Daí que o líder na 38 Nova Guiné, deverá também ser um bom guerreiro, embora esta não seja uma característica determinante, para a sua ascensão a Big Man. Para além de todas estas dimensões do poder, não podemos esquecer que a componente religiosa nas sociedades tradicionais é sempre importante. Em qualquer sociedade, nunca o poder político é completamente dessacralizado; (...) a relação com o sagrado impõem-se com uma espécie de evidência. Discreto ou aparente, o sagrado está sempre presente no seio do poder. (Balandier, 1987: 48) No caso dos papuas, a iniciação masculina é sempre um momento muito importante para estas populações e como para esta cerimónia se realiza uma grande festa com as tradicionais matanças de porcos. Nesta festa um animal tem de ser sacrificado e apresentado aos ancestrais, sendo posteriormente distribuído por todos ou simplesmente queimado. Quando realiza estas festas, o Big Man nunca pode descurar a componente sacralizada da mesma. Contudo, os maiores ritos são os que estão ligados ao culto dos antepassados, havendo sempre uma associação à floresta, ao templo da aldeia e ao taro. Trata-se pois de um culto comunitário e os seus líderes são precisamente os homens mais velhos - esta é outra forma de diferenciação social -, que conduzem toda a actividade ritual. Mas porque razão são os homens mais velhos os líderes do culto e não o Big Man? Precisamente pelo facto de que os mais velhos têm mais experiência e detêm maior número de conhecimentos, cabendo-lhes pois a tarefa de transmitir o conhecimento sagrado, dado que se estes homens morrem sem o fazerem, a perda é irreparável. E mesmo que o façam, a sua morte ou a morte de um guerreiro é sempre uma grande perda para a comunidade que pode não encontrar um sucessor. E o isolamento destas comunidades em zonas montanhosas origina uma difícil recuperação destas perdas. Estas actividades rituais são encaradas como uma medida de prosperidade da própria comunidade, reforçando assim a confiança em si mesmo e nas relações com os povos vizinhos. Geralmente estas pessoas são designadas por pequenos chefes e estes acabam por ser uma espécie de autoridade oficial da aldeia à qual todos os indivíduos estão sujeitos enquanto membros do grupo. A sucessão deste cargo pode ser feita por descendência, ou tal 39 como está a ser referido, pode recaír por costume no elemento mais velho do grupo. Este pequeno chefe compartilha o seu poder com o big man, que consegue alcançar mais poder que o próprio chefe da aldeia, através do sistema de reciprocidade. O pequeno chefe geralmente é porta-voz das cerimónias comunitárias, incluindo as sagradas, mas à parte disto, tem pouca influência e nenhum previlégio. A este homem estão de igual modo ligadas as tarefas que dizem respeito à actividade agrícola, como a calendarização dos trabalhos nas culturas, bem como a repartição das parcelas pelas famílias. Depois de tudo o que foi frisado para trás, podemos concluír este capítulo aceitando a opinião de Balandier, quando afirma que ao poder está também associado um atributo muito importante: a ambiguidade. Na medida em que se apoia numa desigualdade social mais ou menos acentuada, na medida em que garante previlégios aos seus detentores, está sempre sujeito à contestação, ainda que em graus variáveis. (1987: 50) No caso específico dos povos montanheses da Nova Guiné, veneram-no e respeitam-no, se o líder fôr generoso, promover a paz e a ordem arbitrando de forma eficaz os problemas evitando que a comunidade entre em conflitos, mas não o aceitam se ele tentar ser de facto chefe e se se colocar num plano superior perante os indivíduos do seu clã, abusando assim do seu cargo. 4.1. O poder político do Big Man Um pouco por toda a Melanésia a reciprocidade e a redistribuição funcionam como o mecanismo de “arranque” para a chefia dos chamados grandes homens. O Big Man é o líder (...) que triunfou sobre os seus rivais, adquirindo influência prestígio e riqueza. (Brown, 1979: 194) Estes homens geralmente possuem dependentes a trabalhar sob a sua direcção e orientação. Esse grupo de seguidores pode pertencer à sua linha genealógica ou não e por isso são muito diversificados como por exemplo podem ser os irmãos das mulheres, sogros, maridos das 40 irmãs, isto é, os parentes por afinidade que saíram da sua área residencial e que usam a terra que pertence ao Big Man. Esse grupo de seguidores os grandes homens conseguem, através, do dom da palavra. A vantagem é que quanto mais dependentes o Big Man possuír, maior será a sua produtividade agrícola e maior será a sua criação de porcos que é um dos bens mais preciosos entre os papuas. Isto não significa que o grande homem não trabalhe como qualquer outro. O seu principal objectivo é proceder à redistribuição em manifestações públicas de desperdício e ostentação. Geralmente o big man tem diversas esposas que não só trabalham na actividade agrícola, como são as responsáveis pela criação dos porcos. Assim, quanto mais porcos criarem, mais rico será o seu marido e por isso mais prestígio obterá. Elas contribuem com porcos para a dádiva e para a troca. Quando se leva a cabo um trabalho cooperativo, as mulheres do big man preparam uma refeição para todos. Alguns dos dependentes podem mais tarde saír da alçada do Big Man, o que implica que este esteja consciente de que não pode confiar indefinidamente nessas pessoas. A sua posição mantém-se enquanto ele fôr rico e conseguir manter a sua influência. O sinal indicativo da sua “autoridade” é o poder pessoal que ele adquire. Não se pode considerar que seja propriamente um cargo político, mas a sua ascensão acaba por ser fruto das relações interpessoais. O aspecto social é aqui determinante para o seu aparecimento. O seu carisma obtém-se também através da sua capacidade produtiva, da sua capacidade em conquistar seguidores e parceiros de troca e ainda pela sua generosidade, uma vez que a riqueza não pode ser acumulada é primordial que ele a redistribua dentro e fora da comunidade, durante as festas. Tal como foi frisado anteriormente, a luta e a arte de bem falar são das destrezas mais importantes, mas outras particularidades como a grandeza física, a coragem, o vigor, a capacidade de liderança e a maneira como intimida os inimigos, abonam muito em favor da personalidade do Big Man. No entanto, as características qualitativas destes líderes nunca são iguais, dado que cada um deles tem o seu próprio estilo adaptado às necessidades e 41 exigências dos diversos locais. Alguns destes homens são conhecidos na região por serem fortes guerreiros, temidos pelos inimigos, outros são conhecidos pelas suas excelentes qualidades comerciais. Alguns grandes homens podem também ser apreciados e muito respeitados se forem curandeiros ou tiverem dons mágicos que permitam estabelecer um contacto directo com os espíritos. Como este campo do sobrenatural é muito importante para estas sociedades, todas as áreas a ele ligadas exigem grandes conhecimentos e capacidades, por isso, por vezes os grandes homens que acumulam também estes conhecimentos são até temidos devido às suas influências e capacidades. De qualquer modo, as habilidades mágicas por si só não fazem um big man. (Brown, 1979: 197) Mas o objectivo final é sempre o mesmo: a criação de um bem-estar global em toda a comunidade. Este status de Big Man é por conseguinte temporário e requer uma constante validação que só pode ser feita através da generosidade que (...) deixa o homem pobre em bens materiais mas rico em pretígio (...).(Harris, 1993: 323) Assim chegamos à conclusão que os grandes homens são chefes, mas que não exercem o poder político na sua verdadeira dimensão. O que o Big Man é na realidade é um líder, que conquista a simpatia das pessoas. Os pequenos homens é que são os verdadeiros chefes, porque não precisam de revalidar constantemente a sua posição - adquirem-na por vezes pela sua idade e portanto pela sua experiência de vida -, e podem inclusivé transmitir o seu cargo hereditariamente. Mesmo que este homem possua parte destas características excepcionais, o facto é que não as detém todas, e nas terras altas (...) estes homens excepcionais nunca estabeleceram uma dominação a longo prazo em qualquer um dos grupos. (...) Nunca ocorreu aqui uma continuidade na liderança. È difícil imaginar qualquer tipo de unificação política duradoura, numa sociedade com estas características. Onde esta unificação surgíu foi baseada na estratificação e na aplicação da lei. (Op. Cit. 197) 42 Isto resume o que foi anteriormente dito: a estratificação, a obediência e a coerção são as bases da formação de sociedade estatizada. i. A relação entre o Big Man e os potlachs Segundo Marcel Mauss, o termo “Potlach” significa (...) alimentar, consumir. (Mauss, 1988: 56). Esta cerimónia, que por norma é sempre festiva, o Big Man oferece ostensivamente toda a sua riqueza acumulada durante um determinado período de tempo, quer com a sua comunidade, quer com outras comunidades da região. Charles-Henri Favrod, afirma que este acto visa humilhar ou desafiar o outro. Como quem recebe não pode recusar, para ultrapassar a humilhação da dádiva, mais tarde organiza outro potlach mais importante que o primeiro, em que este chefe possa agora ser mais generoso que o dador. (...) Deve dar sem usura. (Favrod, 1977 : 164). Excluindo qualquer regateio o potlach é ao mesmo tempo (...), perda e aquisição. O dom das riquezas equivale à aquisição de prestígio, de poder. Destruír e dar é, essencialmente, afirmar o seu poder de destruír e dar. Mas estas duas operações só têm sentido se forem praticadas diante do outro. (Ibid) O potlach funciona assim como uma forma de troca, originando uma corrente de dádivas e contra dádivas, que aumentará cada vez mais a troca de mercadorias. Apesar de estes festins funcionarem como um meio de dissipação e circulação das riquezas e onde o mais generoso é o vencedor e os que aceitam a dádiva os vencidos, os bens aqui trocados ou dados não funcionavam como uma espécie de moeda ou capital. O mais importante é a valorização do estatuto pessoal do big man e a criação e fortalecimento da relação social, alargando-se geográficamente o campo de trocas e melhorando-se consequentemente o modo de vida, tendo-se acesso a produtos não existentes em locais tão inóspitos e isolados como são as altas montanhas da Nova Guiné. (...) o principal motivo do 43 potlach é a busca do prestígio honorífico do estatuto político, e não a acumulação da riqueza material. (Godelier, 1971: 179) Mauss designa esta prática como o sistema de prestações totais. (1988: 56) Eles substituem vigorosamente, por dádivas feitas e retibuídas, o sistema de compras e vendas. (...) Estes homens não têm nem a ideia da venda nem a ideia do empréstimo e, não obstante, fazem operações jurídicas e económicas que têm a mesma função. (...) A troca, funciona aí sob uma forma desinteressada e obrigatória ao mesmo tempo. (Op. Cit. 100-101) Estes actos simples de trocas acabam por criar laços muito mais estreitos entre as populações, ultrapassando meramente o aspecto comercial da troca. A dádiva funciona como que uma espécie de segurança, porque quem dá sabe que a mesma vai ser retribuída de forma muito mais acentuada. Portanto, a obrigação do Big Man é dar. Só dando é que ele é favorecido pelos espíritos no sentido de ter maior capacidade de aumentar a sua fortuna. Mas como é que um homem que pretenda ascender a Big Man, pode mostrar que é rico? Esbanjando a sua fortuna. Dissipando-a, gastando-a com os outros, familiares e não familiares convidados. O potlach tem assim três elementos principais que o caracterizam: 1º) Dar 2º) Receber 3º) Retribuir. Há autores - como Wayne Suttles e Stuart Piddock -, que são apologistas da ideia de que os potlachs são para além de todas as razões explicadas vantajosos, na medida em que defendem que estas festas podem ser ecológicamente adaptativas, já que com estas festas se ultrapassam os problemas locais de sobrevivência. Há portanto um sucesso adaptativo e de superioridade na relação homem/meio. Destrói-se porque o saldo líquido daquilo que se produzíu foi superior ao que se destruíu. Outro autor ainda - Hazard -, defende que os potlachs 44 têm outra função ecológica que é a deslocação das aldeias menos produtivas, para as mais produtivas. De que forma? Através do recrutamento de mão-de-obra, ou seja, seguidores do Big Man. Finalizando, a relação do Big Man com os potlachs é essencial, uma vez que é através deles que os grandes homens emanam, adquirem o seu prestígio e é na incapacidade de realização e manutenção indeterminada destes festins que o seu poder prestigiante cai e de seguida, a comunidade troca o anterior big man por outro mais rico e generoso. 45 PARTE III A GUERRA COMO FACTOR DE COESÃO 1978 Relações Intertribais - a Guerra Este tema tem sido alvo de inúmeros estudos antropológicos ao longo dos tempos. Por isso, numa primeira abordagem iremos descrever um pouco algumas das teorias acerca da origem da guerra, do que é a guerra, das diversas facetas da guerra, dos seus porquês e das suas consequências. Entre muitas outras formas de violência organizada, a guerra é a que tem consequências políticas. (Shapiro, 1982: 449) Marvin Harris na sua obra Canibais e Reis diz que existem povos que nunca conheceram o estado de guerra e que por isso, talvez este facto indície que a guerra não fazia parte da cultura dos nossos antepassados da Idade da Pedra. (...) Todavia, já não há práticamente provasw que o demonstrem. (1977: 53). No entanto, o que se sabe é que as origens da guerra remontam a muitos milhares de anos e esta acontece pelos mais diversos motivos, desde insultos, roubo, vinganças, etc. Os bandos cativam simpatizantes da sua causa ou que evntualmente possam também possuír quezílias com o grupo visado, organizam-se e atacam, originando desta forma a guerra. A actividade guerreira assume diferentes características consoante o tipo de sociedade onde ela se desenrola. Por exemplo a guerra entre os grupos nómadas é diferente da que acontece entre os povos semi nómadas ou sedentários. No primeiro caso (... ) as disputas assumem uma forma individualizada, cada combatente tem um adversário particular. Os combates, embora possam ter alguma base territorial, não implicam a conquista ou perda de território. 46 (Batalha : 47) Contráriamente, onde os grupos são sedentarizados e vivem à base da agricultura e da caça, o território assume umpapel de extrema importância, daí que os conflitos por vezes tenham como objectivo a conquista de maiores áreas territoriais ou eventualmente a expulsão dos intrusos das áreas povoadas. Por isso, é que Marvin Harris afirma que após o desenvolvimento da agricultura, a guerra tornou-se provavelmente mais frequente e mais mortífera. (1977: 56) Estas guerras eram muitas vezes provocadas pela posse, ou sentido da identidade territorial. E aliado a este sentimento da territorialidade encontra-se também o desenvolvimento do sistema de parentesco com descendência unilinear e a necessidade de nas heranças serem deixadas as posses territoriais. Para além disto, calcula-se que a guerra tem por outro lado funções definidas, como por exemplo a regulação entre os recursos existentes e o crescimento populacional. Este assunto, tem originado diversas teorias acerca das razões da guerra. Algumas dessas teorias encaram a guerra como: 1º) Forma de solidariedade : a guerra é um fenómeno que estimula e fortalece a coesão e a identidade dentro do grupo. Marvin Harris concorda em parte com esta teoria, principalmente se ela abordar o aumento reprodutivo de forma exagerada, que em vez de originar uma onda de conflitos dentro do próprio grupo, canaliza toda a agressividade para o exterior da comunidade. O autor considera-a como uma espécie de “válvula de segurança”; 2º) Forma de divertimento : Oa antripólogos que defendem esta teoria, acham que a guerra pode funcionar, como um (...) agradável desporto de equipa competitivo. (Harris, 1990: 58) Harris não concorda com esta teoria também, considerando-a incapaz de especificar (...) as condições sob as quais as pessoas são ensinadas a prezar a guerra em vez de a abominarem. (Ibid) 3º) Inerente à natureza humana : Esta teoria advoga que o homem, principalmente os do sexo masculino têm maior predisposição para tal. Uma vez mais Harris contrapõe dizendo que 47 apesar da natureza agressiva do homem, essa agressividade (...) é coisa controlada mais pelas nossas culturas do que pelos nossos genes. (Op. Cit. 59) 4º) Forma de política : Esta ideia diz que a guerra não é mais do que (...) uma tentativa de um grupo de proteger ou aumentar o seu bem-estar político, social e económico às custas de outro grupo. A guerra ocorre porque conduz à expropriação de território e recursos, à captura de escravos ou de saque, e à recolha de tributos e impostos (...). (Op. Cit. 60-61) O autor, acha mais uma vez que esta teoria carece de uma certa veracidade, dado que esta situação poderá eventualmente acontecer em conflitos entre estados, mas que a guerra entre bandos e outras pequenas comunidades, devido às suas particularidades não guerreiam com com estes objectivos. (...) a expansão política não pode explicar a guerra entre sociedades que vivem em bandos ou povoações porque a maioria destas sociedades não se entrega à expansão política. (Op. Cit. 62) Se nenhuma destas teorias se encaixa verdadeiramente nas sociedades tradicionais, então porque razão lutam estes povos? Marvin Harris, explica a guerra nestes povos com o objectivo de conquistar mais território e dispersar a população por áreas mais vastas. Estas conquistas territoriais irão posteriormente fornecer e garantir a sobrevivência das populações, nomeadamente as chamadas “terras de ninguém”, importantes como reservatório de alguns produtos vegetais, caça ou pesca. Como a ameaça de emboscadas as torna demasiado perigosas para tais fins, estas “terras de ninguém” têm um papel importante no ecossistema global como reservas de espécies vegetais e animais que poderiam, doutro modo, ser permanentemente extintas pela actividade humana. (Ibid) Outro motivo, é que em alguns casos a guerra entre povos de sociedades de tradição oral, tem como objectivo a obtenção de baixas taxas de crescimento populacional, não através da morte 48 dos homens, mas sim através do infanticídio feminino. Daí que a explicação final assente na ideia de que não foi o infanticídio que causou a guerra, mas que ambas as situções, aliadas à supremacia sexual masculina (...) que anda a par com estes males, foram causados pela necessidade de dispersar as populações e de diminuir as suas taxas de crescimento. (Op. Cit. 71) Quando, as guerras acontecem entre grupos vizinhos, rivais, estas têm por vezes outros objectivos, sendo um deles a necessidade do grupo vencedor trazer para a sua aldeia alguns troféus dessa batalha, como a cabeça dos guerreiros mortos, ou mesmo os seus corpos, como forma de os submeterem a determinados sacrifícios. Quando a cabeça é trazida, significa que as qualidades do rival morto irão passar para quem o matou ou para o seu grupo e quando o corpo é trazido e ingerido, significa que o mesmo está a ser ofertado às divindades. Este tipo de comportamento foi muito característico na Nova Guiné, até a intervenção do governo australiano, ter alterado todo o comportamento guerreiro nessas sociedades. Nestes casos há portanto, uma carácter religioso subjacente à guerra. 5.1. Os conflitos intergrupais e intertribais nas Terras Altas da Nova Guiné Geralmente em grupos em que o sistema político e social não é centralizado, as relações intergrupais costumam definir-se em termos de acção e oposição. Conflitos interpessoais desenvolvem-se no seio de um clã ou outro grupo local mais alargado através da acusação de roubo, danos materiais, adultério ou outros ataques semelhantes. (Brown, 1979: 197-198) Por vezes, os conflitos internos entre os subclãs Chimbu são originados por questões territoriais ou ainda pela acusação do roubo de porcos. Estas disputas, por vezes originam uma redefinição das fronteiras entre os clãs. O carácter bélico e o comportamento agressivo que é conhecido ao big man pode dar origem a que ele proceda desta forma não só em relação aos bens alimentares, como também trazendo para junto de si as mulheres dos 49 outros, sem temer eventuais represálias. (Op. Cit. 198) É curioso que estas aquisições do Big Man, a morte de membros de outros clãs e a intimidação por ele imposta aos seus opositores, poderá proporcionar-lhe um domínio dos outros dentro do seu próprio grupo e esta dominação pode ser aceite porque isso poderá dar ao grupo um certo poder nas relações intergrupais. Portanto, o grupo do Big Man só aceita esta situação se vierem daí algumas compensações, que neste caso é o prestígio guerreiro desse mesmo grupo em relação às comunidades vizinhas. Esta situação parece dar a entender que nas Terras Altas a coesão intergrupal não é fácil de ser mantida sem uma autoridade legal ou política e que o Big Man não é afinal o que tradicionalmente o caracterizava, como um homem que reforçava a solidariedade dentro do seu clã. Os indivíduos estão sujeitos uns aos outros através da reciprocidade mútua, direitos e obrigações e a necessidade de protecção através do poder temendo em alguns casos as alianças. Se um pequeno clã encontra-se esgotado pelos conflitos internos ou outros problemas, não vai conseguir manter a sua posição comparativamente a outros grupos de maior dimensão. Então, um líder agressivo deve atraíe apoiantes exteriores ao seu grupo, conseguir que se tornen seus seguidores, restabelecendo desta forma o prestígio e a competição intergrupal. (Ibid) Quando surgem estes conflitos intergrupais pelos motivos atrás mencionados - roubo ou outros danos materiais -, a compensação dada a quem foi vítima do roubo, geralmente é dada em porcos. Por vezes há porcos que são roubados e cujo ladrão não é detectado. Este tipo de incidentes é muito vulgar nestes grupos, estabelecendo-se posteriormente um clima de tensão e desconfiança que terminará certamente em conflitos. Se após uma série destes incidentes , nunca houver compensações por não se conseguir apurar o verdadeiro autor do roubo, o conflito pode culminar numa guerra, envolvendo outros grupos de parentesco mais distantes e respectivos apoiantes. Contudo, esta situação é invulgar, dado que os apoiantes têm muitas vezes laços de parentesco com ambas as partes e por conseguinte tentam travar a guerra. 50 Quanto às gueeras intertribais propriamente ditas, os Dani creem que o estado de guerra é essencial para o seu bem-estar e que este é pedido pelos seus ancestrais. (Peters, citado por Brown, 1979: 207) Neste povo, que habita a parte ocidental da Nova Guiné, Karl Heider calcula que cerca de 29 % dos homens morrem por motivos bélicos. Fig. 5 - Guerreiros Dani Para além disso, Marvin Harris diz que para os Dani, a guerra (...) tem uma fase de “luta zero” regulada (...), em que há poucas baixas. Mas os Dani, também lançam ataques inesperados a toda a velocidade que resultam na destruição e desbaratar de povoações inteiras e nas mortes de várias centenas de pessoas (...) . (1990: 57) Ataques e contra ataques é quase o dia a dia destes povos. A segurança dos grupos é sempre instável e a saúde e bem-estar dependem do sucesso contra os inimigos. Estes ataques e contra ataques são devido aos deuses, que clamam por vingança quando um determinado clã é atacado. Se as suas mortes não são vingadas, acredita-se que os espíritos perseguirão os elementos do grupo a que pertencem. Há portanto aqui, uma relação muito forte da guerra com o sobrenatural. Um líder guerreiro decide que tem de se fazer uma batalha e o seu grupo de guerreiros é que escolhe o inimigo. Após este procedimento, há todo um ritual bastante moroso, de preparação para a guerra entre todos os homens das diversas comunidades, através da pintura do corpo e da ornamentação deste com penas. O líder guerreiro consulta os antepassados por forma a tomar conhecimento do curso da batalha. A mesma é acordada entre as partes envolvidas e terá lugar num local apropriado, ou seja, num campo de batalha. O conflito é intermitente, e 51 enquanto alguns guerreiros abandonam a arena outros tomam o seu lugar. No dia seguinte, os grupos envolvidos na luta encontram-se ao que parece para se desafiarem mútuamente a continuarem a disputa num outro dia. Por isso, a batalha pode ser levada a cabo por fases. Quando a guerra é feita através de ataque surpresa, o grupo invasor já sabe que as vítimas do grupo atacado mais tarde ou mais cedo vão pedir vingança. Nestes casos, as hostilidades são intermináveis. É neste tipo de ataques que ocorrem o maior número de mortes. Esta forma de luta é também mais comum na parte oriental das Terras Altas. Quando os grupos em conflito encontram-se exaustos as injúrias, os raids e as mortes cessam por acordo comum, pela escolha da paz ou através de pagamentos. Aos aliados são atribuídas indeminizações ou agradecimentos, pelo facto de estes se terem juntado ao grupo na luta. Se por acaso os aliados tenham sofrido qualquer tipo de injúrias ou eventualmente tenham morrido, a indemnização deverá ser adequada à perda sofrida. Por vezes estas compensações fazem-se com os porcos, em que cada um dos guerreiros iniciantes partilha entre si a carne. (Op. Cit. 208-209) Portanto, para concluír, podemos dizer que a guerra tem de facto uma estreita relação com a organização política dos Papuas das Terras Altas da Nova Guiné, embora ela não seja uma condição determinante para o cargo. Como vimos o grande homem surge devido ao facto de ser rico e partilhar essa riqueza com os outros, mas em algumas comunidades é muito importante, que este homem seja agressivo, pois só assim o grupo é respeitado e temido pelos outros, reforçando-se desta forma as relações internas do clã. 52 CONCLUSÃO O território da segunda maior ilha do mundo - Nova Guiné -, apesar de na sua maior parte ser muito acidentado, as altitudes são variáveis e por isso os modos de vida, a adaptação homem/meio e toda a criação cultural é bastante diverfificada e por conseguinte multifacetada. No entanto, a região cultural das altas montanhas da Nova Guiné é particularmente distinta das restantes regiões Melanésias. Mesmo dentro desta região as populações distinguem-se exactamente pelo local que ocupam, ou seja, quer estejam no interior das montanhas portanto muito mais isoladas -, quer estejam nas áreas periféricas das mesmas. Nestas zonas a concentração populacional aparece em menor escala, do que as populações que se encontram na zona central da Papuásia. Como a densidade populacional é elevada, isso exige uma maior produção agrícola e consequentemente festivais em maior escala, do que nas regiões menos povoadas. Nas zonas periféricas, na parte oriental, ocidental e sul da ilha, a dimensão das tribos e a densidade populacional são bastante mais baixas. Trata-se de uma sociedade cuja estrutura é baseada no parentesco, através do sistema patrilinear e da patrilocalidade. Os Papuas da Nova Guiné tradicionalmente eram povos semi-nómadas, devido à prática de uma agricultura insipiente - agricultura de queimada -, mas com o controlo do território pela Austrália, muitas foram as mudanças introduzidas nas tradições e comportamentos das populações o que provocou grandes alterações e em certos casos perdas irreparáveis. O caso da agricultura é paradigmático, já que a dada altura o governo australiano, proíbiu o nomadismo das populações - para evitar e diminuir desta forma a actividade guerreira -, obrigando-as a sedentarizarem-se. A partir daqui novas adaptações entre a sociedade e o 53 meio foram feitas, e a prova disso foram as novas técnicas de fertilização introduzidas na actividade agrícola de tipo hortícula. O território tornou-se assim ainda mais precioso para cada uma das comunidades. A agricultura de subsistência praticada com a ajuda de uma tecnologia rudimentar - com alfaias essencialmente constituídas em madeira e pedra -, foi também alterada, com a introdução do ferro nas ferramentas - inovação trazida pelo contacto com os europeus -, o que a tornou mais eficaz e a exigir menor dispêndio de energia humana, dado que nesta região não existem animais de tracção. O contacto dos povos do centro montanhoso com o exterior, é feito através das trocas comerciais e através das alianças: o casamento, a adopção, a guerra e os apoiantes do big man, contribuem não só para a sobrevivência de todas as populações que vivem sob o mesmo ecossistema, como também ajudam a formar fortes laços de parentesco, de afinidades e comerciais, reforçando simultâneamente a coesão dos grupos através da sua auto confiança, prosperidade e prestígio perante os outros. Para além da actividade agrícola, a criação de porcos surge como actividade complementar à anterior, embora estes só possam ser ingeridos em ocasiões especiais. Os porcos têm nestas sociedades uma grande importância dado que quem mais animais possuír, maior será o seu status, a sua riqueza, a sua capacidade de produção e por conseguinte poderá ser um candidato a Big Man. A unidade política são as aldeias, cujas fronteiras estão bem delimitadas e a que vulgarmente se designa por “distritos”, sendo a base da organização política a dádiva. Quanto mais generoso fôr o Big Man, mais prestígio ele terá. A liderança é compartilhada com outro tipo de chefia, a dos pequenos homens, que normalmente são grandes conhecedores das técnicas empíricas agrícolas e por isso a ele são-lhe confiadas as tarefas que dizem respeito às plantações, melhor época para que estas sejam feitas, rotação das culturas, atribuição de 54 parcelas de terrenos às famílias. Contudo, as suas funções são escassas e não tem prestígio nenhum. A grande diferença entre estes pequenos chefes e os Big Man, reside no facto de que o primeiro pode herdar essa função dado que ela pode ser hereditária ou pode atingi-la por ser o mais velho do grupo, enquanto que o big man não é um “cargo” hereditário, é temporário, não tem qualquer tipo de poder coercivo e portanto de obediência. A sua função é dar o mais possível, possuír grande poder de argumentação para mediar e impedir eventuais conflitos internos e ser um bom guerreiro, para que os grupos vizinhos os temam e respeitem. Por ser a sociedade Papua baseada num critério quase igualitário, onde não há lugar à estratificação social e ao poder centralizado, esta é pois considerada uma sociedade sem Estado, onde o poder é difuso. Mas, isto não significa que a mesma seja uma sociedade anárquica “sem rei nem lei”. A organização social e a coesão de todo o grupo está estritamente ligada às relações políticas que se estabelecem no seu seio. Quanto ao problema de pesquisa, chegámos à conclusão de que a guerra tem uma estreita relação com o poder político, mas não é um factor determinante para que um indivíduo seja Big Man. A guerra é mais um factor de unidade, identidade, e coesão social, para além de ela transportar consigo quase sempre uma causa sobrenatural, isto é, uma ligação muito estreita entre os guerreiros e os seus antepassados mortos em combate que clamam inevitávelmente e sempre por vingança. Desde o início do nosso século que grandes mudanças têm sido exigidas quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista económico e social. Outras formas de organização dos indivíduos têm vindo a alterar as próprias actividades laborais e produtivas. Estas mudanças tornaram a actividade comercial das Terras Altas mais intensa e mais ricas, devido à maior facilidade na circulação dos produtos e dos contactos entre as diferentes populações. 55 BIBLIOGRAFIA BALANDIER, Georges, 1967 Antropologia Política, Colecção “Biblioteca de Textos Universitàrios”, 2ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1987, 202 p. 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