[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] Cultura e Identidade: uma análise antropológica do conto “Esta casa
abençoada” de Jhumpa Lahiri
Fernanda Pacheco da Silva Huguenin1
Introdução
Sanjeev é engenheiro e alto funcionário de uma empresa americana. Twinkle é
mestranda do curso de Letras de Stanford. Ambos são indianos, embora tenham
passado a maior parte de suas vidas nos Estados Unidos. Conheceram-se por meio de
um arranjo de seus pais, durante uma festa na Índia. Em pouco mais de quatro meses
estavam casados e agora tinham se mudado para o estado de Connecticut. Em plena
mudança, Twinkle começa a achar imagens cristãs pela casa, como um Cristo de
porcelana branca, guardado num armário em cima do fogão. Aos poucos, ela passa a
colecioná-las, para o desagrado e a irritabilidade de Sanjeev, que não entende como
sua mulher, sendo hindu como ele, poderia querer mantê-las na decoração da casa.
Quando todos os achados parecem ter sido desvelados e a casa finalmente está
arrumada, o casal oferece um jantar para os amigos de Sanjeev.
Estes são, resumidamente, o cenário, as personagens e a trama do conto “Esta
casa abençoada” do livro Intérprete de males, publicado em 1999 e ganhador do
Prêmio Pulitzer de 2000, da escritora Jhumpa Lahiri. Reunião de nove contos, a obra
trata do encontro entre Oriente e Ocidente a partir das vivências cotidianas de
indianos radicados em Boston e de americanos de origem indiana. As memórias da
terra natal, os espantos e a falta de habilidade com um mundo diferente e, sobretudo,
as experiências de tradução cultural compõem o tópos do livro.
As personagens criadas nos nove contos são verdadeiras intérpretes de
símbolos e significados entrepostos em condições de liminaridade, isto é, em entrelugares onde o borramento contumaz de identidades desliza continuamente em
1
Professora da Universidade Cândido Mendes - UCAM.
1 situações de estranhamento, etnocentrismo e choque cultural. Aliás, estas situações
podem ser também a experiência da própria Jhumpa, filha de indianos, nascida em
Londres e crescida em Rhode Island (EUA).
O livro como um todo ressoa a fala pós-colonial de personagens não apenas
em posições confortáveis, com vistos, green cards ou naturalizadas, mas também
aquelas marcadas pela migração de indivíduos fugidos do subdesenvolvimento e
atraídos pela possibilidade de ascensão, ainda que numa condição subalterna e num
país estrangeiro. Em Intérprete de males, a autora retrata literariamente o processo
que Homi Bhabha (2003) chama de “DissemiNação”, isto é, a experiência da diáspora
que funda o duplo, o cindido, o híbrido, o autômato e que nos impõe revisar os
conceitos de cultura e identidade em perspectivas mais performativas ao invés da
fixidez essencializada e enrijecida que a própria idéia de conceito sugere. Minha
proposta neste artigo é utilizar o conto “Esta casa abençoada” como suporte para uma
reflexão sobre cultura e identidade, discutindo, a partir da trama proposta por Jhumpa
Lahiri, o que está em jogo na construção e utilização destes conceitos desde uma
perspectiva antropológica.
1. O contexto no texto
Uma frase localizada praticamente na abertura do texto propõe o seu contexto:
“Será que os moradores eram cristãos fundamentalistas?” (LAHIRI, 2001, p.157). A
pergunta de Twinkle diante do espanto por achar artigos religiosos nos recantos de
praticamente toda a casa brinca de borrar as fronteiras culturais entre Ocidente e
Oriente. Pois, para nós ocidentais, os fundamentalistas são sempre os Outros, de
religiões cujos símbolos, ritos e dogmas sequer nos interessamos por conhecer, mas
de pronto acusamos. Inverter os termos devolvendo reflexivamente a pergunta, isto é,
colocar o cristianismo na pauta do radicalismo, parece ser a estratégia acionada por
Lahiri para impactar o leitor logo de início. De alguma maneira, o que a autora faz é
demarcar uma linha divisória entre dois mundos – o indiano e o americano –, mas
uma linha que será esfumaçada ao longo do texto.
Se pensamos com Dumont (1997) sobre esta linha, no caso, uma linha
ideológica que cerca modos distintos de organização social, pensamos em duas
2 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] ideologias 2 sociológicas quando da compreensão da relação sociedade/indivíduo.
Partindo de uma alteridade radical como a organização social das castas indianas,
Dumont sugere que há sociedades em que o indivíduo está englobado
hierarquicamente pelo todo, caso da Índia e de sociedades tradicionais; e sociedades
em que o indivíduo, ao revés, engloba o todo, como uma espécie de encarnação da
própria humanidade, caso das sociedades ocidentais modernas.
A proposição maussiana (MAUSS, 2003) de que jamais houve indivíduos que
não tenham tido noção e sentido de sua própria individualidade espiritual e corporal
continua extremamente válida, porém acrescida da idéia de que o indivíduo, como
valor, e sua exacerbação presente no individualismo, como ideologia, é uma
construção moderna da cultura ocidental. Neste sentido, enquanto na organização
indiana em castas o indivíduo está refletido na hierarquia social, no Ocidente moderno
ele excede à sociedade e está acima dela através de agenciações amplas conferidas por
concepções tais como liberdade e igualdade. O indivíduo, portanto, está acima da
própria sociedade, ainda que apercepções sociológicas, a exemplo da língua, continue
o “adestrando”.
Assim, dentro de uma perspectiva dumontiana, “Esta casa abençoada” encena,
inicialmente, uma distinção identitária das personagens em relação ao contexto
cultural no qual vivem – o universo individualista americano. A primeira questão que
está em jogo no conto é o conflito vivido pelas personagens em relação aos objetos
cristãos encontrados ao longo da arrumação da casa. Como símbolos de parte da
cultura ocidental, eles se tornam os marcadores da alteridade. Por isso, quando a
primeira estátua de Cristo é achada por Twinkle, Sanjeev observa “[...] e pelo menos
jogue fora esta estatueta idiota [...] Não, não somos cristãos. Somos bons hindus”.3
Para Sanjeev, a imagem não fazia qualquer sentido, não lhe dizia nada para além da
tomada de consciência de sua própria condição de estrangeiro nos Estados Unidos.
É apropriado evocar aqui o que diz Geertz (1989) a respeito dos símbolos.
Eles fazem parte de um sistema de significados públicos próprios a uma determinada
2
O sentido de ideologia em Dumont refere-se à ideia de visão de mundo e de apercepção sociológica.
3
Idem, Op. Cit., pags. 156-157.
3 cultura. Interpretá-los significa buscar o contexto a que estão referidos, perscrutando
uma coerência mínima entre suas conexões.
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos,
ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem
ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as
instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser
descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p.
24).
Sanjeev entende que aqueles objetos são símbolos de um sistema cultural com
significados próprios. E sabe perfeitamente que se trata de um sistema diferente do
seu. Ele, portanto, não consegue transitar dentro daquele contexto, não consegue
interpretar aqueles símbolos e, por fim, acaba por desprezá-los como se quisesse
preservar o seu próprio sistema, vale dizer, o seu contexto natal hindu. Por isso, todas
aquelas imagens achadas são para o personagem um “zoológico bíblico”, e é
significativo que sejam um “zoológico” porque assim Sanjeev aproxima o
cristianismo da natureza, retirando-lhe da cultura.
Intrigava-o o fato de que cada um deles à sua maneira era inteiramente ridículo. Sem
dúvida, faltava-lhes a aura do sagrado. Intrigava-o também constatar que Twinkle,
uma pessoa de bom gosto, estava encantada com eles. Aqueles objetos tinham algum
significado para ela, mas não para ele. Pelo contrário, irritavam-no. “A gente devia
ligar para o agente imobiliário. Para dizer que largaram todas essas porcarias aqui.
Pedir para ele levar tudo embora” (LAHIRI, 2001, p. 158).
Ora, a linha divisória entre duas culturas está nitidamente traçada no conto
através das impressões das personagens em relação aos achados cristãos. Assim,
como que para adensar essa fronteira, Lahiri propõe um conflito entre Sanjeev e
Twinkle. Enquanto ele despreza as imagens encontradas na casa, ela aos poucos as
incorpora, tornando-as, inclusive, parte da mobília. Origina-se daí o desacordo do
casal a partir do qual a autora revela a personalidade de cada um.
Aqui se pode pensar na ideia de Leach (1983) de que o comportamento
simbólico não só ‘diz’ alguma coisa, como também desperta emoções e,
consequentemente, ‘faz’ alguma coisa. Pois na medida em que os objetos são
encontrados por Twinkle (e dizem da cultura ocidental cristã) eles também fazem, no
sentido de gerar ações, com que Sanjeev reaja às assimilações de sua esposa. Penso
4 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] em Leach porque esta situação encaixa-se em certa medida na distinção que ele faz
entre o simbolismo público e o privado.
A essência do comportamento simbólico público é que ele é um meio de
comunicação; o ator e a sua platéia compartilham de uma linguagem comum, uma
linguagem simbólica. Eles devem compartilhar de um conjunto comum de
convenções em relação ao significado dos diferentes elementos na linguagem, pois de
outra forma haveria uma quebra na comunicação. Falando de modo geral, isto é o que
entendemos por Cultura. Quando as pessoas pertencem a uma mesma Cultura, elas
compartilham entre si diversos sistemas de comunicação compreendidos
mutuamente. Cada membro de uma tal Cultura atribuirá o mesmo significado a
qualquer item particular de ‘ritual’ culturalmente definido.
A qualidade característica do simbolismo privado é, ao contrário, seu poder
psicológico de despertar emoções e alterar o estado do indivíduo. A emoção é
despertada não por qualquer apelo às faculdades racionais, mas por algum tipo de
ação deflagradora nos elementos subconscientes da personalidade humana. A
extensão em que nossas próprias emoções privadas, em tais circunstâncias, são
também experimentadas por outros é algo que somente podemos supor (LEACH,
1983, p. 141).
Neste sentido, as personagens partilham do mesmo sistema de significados,
isto é, de uma mesma cultura. Por isso, hipoteticamente, diante do simbolismo
público das imagens cristãs, poderiam reagir de modo semelhante, isto é, desprezar os
objetos como portadores de significados para si. É o que Sanjeev faz, mas não
Twinkle. Para ela, os objetos dizem alguma coisa. Parece, então, que a lei leachiana
da apreensão pública de significados comuns para indivíduos de uma mesma cultura
não opera aqui e que pensar num simbolismo privado, como ele mesmo propõe,
esclarece melhor a atitude das personagens de “Esta casa abençoada”.
Se a intenção de Lahiri em Intérprete de males é retratar em seus contos o
universo de indivíduos em condições de liminaridade, isto é, em condições sociais
fronteiriças, nada mais apropriado que pensar as noções de cultura e identidade de um
ponto de vista antropológico, que contemple menos a fixidez cultural e identitária das
personagens e aponte mais para a idéia de mobilidade, deslizamento ou mesmo
hibridez de suas experiências. Considerar que o Outro é sempre o distante e o
estrangeiro é, neste sentido, um erro indutivo, pois o fato de dois indivíduos
pertencerem a um mesmo contexto cultural não implica que eles partilhem igualmente
dos pressupostos de sua cultura, que tenham enfim uma mesma identidade e, para
5 complexificar um pouco mais, pensar em indivíduos em trânsito, como no caso das
personagens do conto aqui trazido, significa romper com qualquer assimilação mais
rígida do que possa ser entendido pela própria ideia de sociedade e do que lhe é
convencionalmente atribuído a priori como as noções de cultura e identidade.
Acredito, portanto, que a autora faz, num primeiro momento, contextualizar as
personagens desde uma perspectiva cultural e identitária, isto é, demarca
minimamente a condição de indianos radicados nos Estados Unidos. Essa fronteira
fica evidente na pergunta fundadora de Twinkle sobra a possibilidade de um
fundamentalismo cristão e, a seguir, com a intolerância de Sanjeev com relação às
imagens cristãs encontradas. Mas é com o conflito do casal que Lahiri começa a
esfumaçar esta fronteira e dizer da liminaridade das personagens que se vêem na
contingência de se tornar “intérpretes de males”.
2. Borramentos e traduções
No conto, como em todo o livro, Lahiri manipula perfeitamente o borramento
que representa a tradução cultural de diferentes mundos. Na figura de Sanjeev, esse
deslizamento aparece de modo indelével. Ele tem um bom emprego e uma idade
razoável. Sua mãe, então, o pressiona para que se case e lhe envia fotos de possíveis
noivas indianas. Depois arranja um encontro com Twinkle. Mas a idéia do casamento,
no entanto, parece prescindir a de amor. Aliás, Sanjeev se sente desconfortável
quando Twinkle o pergunta se ele a ama:
Sanjeev não sabia se a amava. Respondera que sim quando ela lhe fez a pergunta pela
primeira vez, uma tarde em Palo Alto; estavam sentados lado a lado num cinema
escuro e quase vazio. Antes de começar o filme, um dos favoritos dela, uma fita
falada em Alemão que ele achou muitíssimo deprimente, ela encostara a ponta de seu
nariz no dele, roçando em seu rosto os cílios cobertos de rímel. Naquela tarde, ele
respondeu que sim, que a amava, e ela ficou empolgada, e lhe pôs na boca uma
pipoca, deixando o dedo por um instante entre seus lábios como se fosse uma
recompensa por ele ter dado a resposta correta. Embora Twinkle não o tivesse dito,
Sanjeev presumia que também ela o amava, mas agora não tinha mais tanta certeza.
Na verdade, Sanjeev não sabia o que era o amor, só sabia o que o amor não era
(LAHIRI, 2001, p. 168)
Nesta passagem está nítido o registro do conflito interno vivido por Sanjeev.
Ele não conhece o amor romântico ocidental, aliás, não sabe senti-lo. A idéia de dois
indivíduos unidos por um sentimento de completude mútua é algo improvável, ou
6 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] melhor, algo que o personagem não compreende completamente. Por isso receber
fotos de possíveis nubentes não significava um absurdo. Casar-se seria uma decisão
prescritiva.
“Você tem no banco dinheiro bastante para sustentar três famílias”, dizia-lhe a mãe
toda vez que conversavam pelo telefone, no início de cada mês. “Você precisa de
uma esposa, para cuidar dela e amar”. Agora ele tinha uma esposa, uma mulher
bonita, de uma casta bem alta, e que em breve teria mestrado. Como não amá-la?
(Idem, Op. Cit., p. 169).
Note-se a importância dada à casta de Twinkle, o que sugere que a hierarquia
como valor operou na escolha de Sanjeev. Mas como que para hibridizar um pouco as
valorações das personagens, a autora põe em relevo outros elementos como o
mestrado de Twinkle e o cargo de vice-presidente da empresa que Sanjeev estava por
conquistar, isto é, elementos característicos da sociedade individualista moderna
porque sugerem uma mobilidade social que independe do nascimento, isto é, da
tradição. Através destas interseções de diferentes valores esfumaçam-se as linhas
culturais e identitárias demarcadas por Lahiri no primeiro instante do texto.
É interessante notar como a autora constrói um universo de hibridez cultural
ao redor das personagens, sua personalidade, experiência e sua relação. Sanjeev não
conhece o amor e se casa (porque já é tempo) com uma mulher de casta bem alta, mas
também valoriza os atributos individuais de Twinkle, como o mestrado e o gosto em
comum que têm em relação à música e aos romances literários. Twinkle parece ser
uma mulher moderna, no sentido individualista do termo. Estuda, bebe, fuma, já havia
tido um relacionamento com um americano, mas escolhe um indiano para se casar e
realiza a cerimônia na Índia. A interseção destes códigos, isto é, destes sistemas
simbólicos, conferem às personagens seu aspecto híbrido, seu trânsito entre culturas e
sua fluidez identitária.
Aqui a idéia de que estas personagens são como contrapontos de uma narrativa
da nação moderna me parece pertinente. Pois, se é verdade que existem identidades
culturais nacionais interiorizadas não apenas como fábula, mas também como
experiências, num sentido pedagógico, é também verdadeiro que a nação não cumpre
7 um papel totalizante na formação destas mesmas identidades, no sentido de não dar
conta do performativo que sempre extrapola, isto é,
“[...] as fronteiras da nação se deparam constantemente com uma temporalidade
dupla: o processo de identidade constituído pela sedimentação histórica (o
pedagógico) e a perda da identidade no processo de significação de identificação
cultural (o performativo) (BHABHA, 2003:216).
Assim, é preciso pensar cultura e identidade em constantes deslizamentos,
independente da experiência da diáspora. A narrativa da nação não pode suprir com
todos os artifícios àquelas noções, sob pena de se criar uma glosa impermeável dos
dois conceitos. Mais uma vez recorro a Bhabha para esclarecer esta asserção.
No lugar da polaridade de uma nação prefigurativa autogeradora “em si mesma” e de
outras nações extrínsecas, o performativo introduz a temporalidade do entre-lugar. A
fronteira que assinala a individualidade da nação interrompe o tempo autogerador da
produção nacional e desestabiliza o significado do povo como homogêneo. O
problema não é simplesmente a “individualidade” da nação em oposição à alteridade
de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela própria,
articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria
[It/Self], alienada de sua eterna autogeração, torna-se um espaço liminar de
significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias
heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de
diferença cultural (Idem, Op. Cit., 2003, pags 209-210).
Em “Esta casa abençoada”, esta liminaridade está demarcada não dentro de
um contexto específico, que poderia ser o da Índia ou o dos Estados Unidos, mas
exatamente no trânsito, pela migração e pelas contingências das (in)traduções
realizadas pelas personagens, sobretudo no conflito do casal quanto ao que fazer com
as imagens cristãs encontradas. Neste sentido, o exercício de tradução cultural de
Twinkle é impressionante. Ela parece deliciar-se com a “caça aos tesouros” e a cada
novo objeto que encontra, interioriza imediatamente um significado particular. No
começo, manipula-os sem maiores pretensões: “Cobriu a cesta de pão com um pano
de prato que continha, Sanjeev percebeu de repente, os dez mandamentos” (LAHIRI,
2001, p. 165) Depois, aos poucos, vai preenchendo cada descoberta com
interpretações próprias:
“Será que os moradores eram cristãos fundamentalistas?” [...] “Ou então é uma
tentativa de converter as pessoas” [...] “Ah, Sanj”, Twinkle gemeu. “Por favor. Eu ia
ficar arrasada se a gente jogasse isso fora. Essas coisas eram claramente importantes
8 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] para as pessoas que moravam aqui. Seria, sei lá, uma espécie de sacrilégio” (Idem,
Op. Cit., 2001, pags 157-158).
Mas o ponto culminante desta interiorização dos símbolos cristãos por
Twinkle ocorre quando ela, ao varrer o jardim, encontra “[...] uma Virgem de gesso
que chegava à altura da cintura deles, com um capuz pintado de azul recobrindo-lhe a
cabeça, à maneira das noivas indianas”.4 Sanjeev intenciona levar a imagem para o
depósito de lixo, mas Twinkle entra em desespero e chora, até conseguir entrar num
acordo com o marido de modo que a Virgem permanecesse na casa. Ela, portanto, cria
um simbolismo privado em relação aos objetos cristãos achados, simbolismo este não
partilhado por Sanjeev. Diz ela: “Vamos encarar a realidade. Esta casa é abençoada”.5
Jogar aqueles objetos fora poderia “dar azar”. É a partir desse trânsito performático da
personagem de Twinkle e da aparente intransigência de Sanjeev que desejo pensar
como a Antropologia pode iluminar as noções de cultura e identidade.
Se é verdade que a narrativa pedagógica da nação não dá conta da construção
da identidade pelos deslizamentos do performático, tal como entendo a proposição de
Bhabha, acredito que essa narrativa enquanto tal é também uma ficção e que falar do
Outro ou de outra cultura não é mais que realizar um experimento com a nossa
própria cultura, nos termos sugeridos por Wagner (1981). Neste sentido, quando
utilizamos a idéia de nação para evocar as noções de cultura e identidade, mesmo
sabendo que essa convocação é num sentido crítico que quer extrapolar o pedagógico,
como faz Bhabha, nada mais fazemos que pensar o Outro em nossos próprios termos,
fabricando esse Outro a partir de nós. Nas palavras de Wagner:
When this kind of approach is turned to the uses of anthropological investigation, it
makes our understanding and invention of other cultures dependent upon our own
orientation toward “reality”, and it makes anthropology into a tool of our own selfinvention. Whenever one “aspect” or part of a dialectical and self-creating whole is
used as a concious control in this way, its use must inevitably result in the invention
of the other part. When we use the nonconventionalized and differentiating controls
of nature in this way, we objectify and recreate our collective Culture with its central
ideology of the “natural” versus the “cultural” and artificial. When we use these
controls in the study of other peoples we invent their cultures as analogues not of our
4
5
Idem, Op. Cit., p. 167.
Idem, Op. Cit., p. 165.
9 whole cultural and conceptual scheme but of part of it. We invent them as analogues
of Culture (as “rules”, “norms”, “grammars”, “technologies”), the conscious,
collective, “artificial” part of our world, in relation to a single, universal, natural
“reality”. Thus they do not contrast with our culture, or offer counter-examples to it,
as a total system of conceptualization, but rather invite comparison as “other ways” of
dealing, with our own reality. We incorporate them within our reality, and so
incorporate their ways of life within our own self-invention. What we can perceived
of the realities they have learned to invent and live in is relegated to the
“supernatural” or dismissed as “merely symbolic (WAGNER, 1981, p. 142).
Assim, em que medida podemos falar de intérpretes como são as personagens
de Twinkle e Sanjeev? Pois quando se fala de identidade e cultura e, no caso de “Esta
casa abençoada”, quando se pensa em indivíduos traduzidos exatamente porque
“pertencem” a uma cultura, têm uma determinada identidade, mas “vivem” ou
“operam” em outra, em outro contexto, está-se referindo a uma ficção de
“pertencimento”, a uma ficção de “nação”, uma ficção do “contexto indiano” e do
“contexto americano” e uma outra ficção que nos conduz à idéia do intérprete, como
se estas categorias existissem a priori, antecipadas ao próprio texto. Isso significa que
o conto de Lahiri faz sentido apenas porque conta com a invenção de mundos
distintos como Oriente e Ocidente, com a fabricação do Eu e do Outro que (acredito)
se dá nos termos da experiência da própria autora.
Neste sentido, penso que o texto conta com uma invenção icônica de mundos
distintos dentro dos quais, ou melhor, no trânsito entre os quais, as personagens
manejam suas experiências. E o recurso do conflito vivido pelo casal é o que expressa
essa invenção. Entretanto, o que considero estar em jogo no conto é se se deve mesmo
acreditar nestes mundos distintos e nessa idéia de tradução que a condição liminar da
migração sugere em termos culturais e identitários. Pois se os símbolos, no caso, os
achados cristãos, obtêm sentido apenas a partir da relação que se estabelece com eles,
como Wagner me faz pensar, talvez não exista tradução ou interpretação
propriamente, mas um sentido novo, algo que é, a um só tempo, invenção e realidade
para as personagens.
3. Interpretando males
A casa está arrumada e Sanjeev deseja dar um jantar de inauguração para seus
colegas de trabalho e para alguns casais indianos moradores de Connecticut, com os
quais se reunia no tempo de solteiro para “comer grão de bico apimentado e camarão
10 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] frito, fofocar e discutir política” (LAHIRI, 2001, p.165), embora fossem pessoas que
ele mal conhecia e tivessem pouco em comum. Mas talvez exatamente pela presença
desses seus conterrâneos, Sanjeev se sente desconfortável com a mobília de imagens
cristãs que Twinkle tinha alocado no console sobre a lareira.
Sanjeev pretendia perguntar-lhe se podia tirar o zoológico bíblico do console, mesmo
que fosse só para a festa, mas ela saiu quando ele estava no banho. Só voltou três
horas depois, de modo que foi Sanjeev quem fez o resto da limpeza. Às cinco e trinta
toda a casa brilhava; velas perfumadas, que Twinkle comprara em Hartford,
iluminavam a coleção sobre o console, e finos bastões de incenso estavam espetados
nos vasos de plantas. Cada vez que passava pela lareira Sanjeev fazia uma careta,
horrorizado de pensar nas reações de seus convidados ao verem os santos de
cerâmica, o saleiro e a pimenteira em forma de Maria e José (Idem, Op. Cit., pags.
171-172).
A festa tem início. Os convidados chegam muito bem arrumados e com
presentes para o casal. Sanjeev preparou um jantar com muita fartura de samosas no
molho de chutney e champanhe. Está feliz por saber que todos estão ali para prestigiálo, “[...] pois os convidados não eram familiares, e sim pessoas que o conheciam
superficialmente e, num certo sentido, nada lhe deviam”.6 Tudo corre perfeitamente
bem, apesar dele ter que explicar pela “enésima vez que não era cristão”, a despeito
da decoração religiosa da casa. Mas eis que Twinkle decide contar aos convidados
que a casa guarda “tesouros” escondidos e que arrumá-la é “[...] uma aventura diária.
É muito divertido. Só Deus sabe o que vamos encontrar – é, só Deus, mesmo!”.7
O comentário da anfitriã desperta curiosidades em todos e, imediatamente,
como numa grande brincadeira, inicia-se uma verdadeira caçada. Todos os
convidados investigam os cômodos, farejam todos os cantos, os armários, as
poltronas, as cortinas e as estantes em busca de novos objetos. Até que Twinkle
menciona que o sótão jamais fora vasculhado e, de pronto, anfitriã e convivas se
dirigem pra lá, deixando Sanjeev sozinho na sala.
6
7
Idem, Op. Cit., p. 173.
Idem, Op. Cit., p.175.
11 Um por um os convidados foram desaparecendo, os homens ajudando as mulheres a
colocar os pés calçados em sapatos de salto alto nos degraus estreitos da escada, as
mulheres indianas prendendo a ponta solta dos sáris caros na cintura. Os homens
foram depois, e logo todos haviam sumido, até só restar Sanjeev no alto da escada em
espiral (Idem, Op. Cit., p.175).
Desagradado e decepcionado, Sanjeev tem vontade de fechar a escada do
sótão trancando a todos, enquanto pegaria todo “zoológico bíblico” e levaria para o
depósito de lixo. Aqui, Lahiri tenta resgatar um pouco a idéia de limite, de fronteira
cultural e identitária, reforçando o fato de Sanjeev ter desprezo pelas imagens. E ao
fazer isso, a autora reforça o próprio conflito do casal, sugerindo sua desunião. Ele
está só. Ela com os convidados. Ele não consegue transitar. Ela traduz.
Podia jogar num saco de lixo todo o zoológico bíblico de Twinkle, pegar o carro e
largar tudo no depósito de lixo, e arrancar o pôster de Jesus chorando, e dar umas
marteladas na Virgem Maria também. Então voltaria para casa vazia; em uma hora
recolheria todos os copos e pratos, depois se serviria mais uma dose de gim e comeria
um prato de arroz requentado, ouvindo seu novo CD de Bach e lendo o folheto para
compreender a música direito (Idem, Op. Cit., pags.176-177).
Assim, o conto nos encaminha ao debate acerca da ideia de cultura e de
identidade através do jogo conflituoso que vivem as personagens, sua relação e o
desenrolar da trama. O confronto Oriente versus Ocidente ou individualismo versus
hierarquia, na perspectiva dumontiana, pode ser alcançado através do que representa
os objetos cristãos para Sanjeev e Twinkle. Um acinte para ele. Uma descoberta
emocionante para ela. Esta diferença de reação de ambos permite definir a cultura
para além das proposições durkheimianas, como formas de agir, sentir e pensar quase
programadas. Permite dizer, com Geertz, que os símbolos fazem sentido sim dentro
de um contexto, mas que podem ser re-significados, pelo menos no âmbito privado,
tal como propõe Leach, de modo a conjugar outros e novos sentidos. E esses sentidos
são, como ensina Bhabha, da ordem do performático. Não seria correto, portanto,
falar de cultura como algo totalizante, fixo, mesmo porque toda tradição está sempre
sofrendo algum tipo de ‘traição’. E, é claro, pensando com Wagner, sem esquecermos
da ficção que tradição e traição representam enquanto se quer dizer de sua realidade
num sentido antropológico.
Mas voltando à ficção do conto. Como a autora resolverá o conflito entre as
personagens? Afinal, um livro que trata de traduções culturais e borramentos de
12 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] identidade deve justificar seu título apresentando caminhos pra esses ‘intérpretes de
males’. Como terminará o jantar nesta ‘casa abençoada’?
Twinkle grita por Sanjeev enquanto desce as escadas do sótão junto com os
convidados. Quer que ele veja o que encontrou e que a ajude a segurar.
Agora Sanjeev viu que os braços dela estavam segurando o objeto: um busto de
Cristo de prata maciça, a cabeça três vezes maior que a dele. O nariz era adunco e
nobre; o magnífico cabelo crespo caía sobre a clavícula pronunciada; a testa larga
refletia em miniatura as paredes, portas e abajures a seu redor. O rosto exibia uma
expressão confiante, como se estivesse convicto da devoção de seus seguidores; os
lábios inflexíveis eram sensuais e cheios. [...] Enquanto Twinkle descia a escada
Sanjeev a amparava com as mãos em sua cintura, e assim que ela terminou a descida
ele tirou-lhe das mãos o busto. Pesava bem uns doze quilos (Idem, Op. Cit., pags.
177-178).
Frente a frente, enquanto os convidados retornavam à sala, Twinkle pergunta a
Sanjeev se ele ficaria muito chateado se ela colocasse o busto em exibição no console
e prometeu que, passado o jantar, ela o removeria para o seu escritório dela.
Mas ela jamais colocaria o busto no escritório, Sanjeev sabia. Enquanto os dois
vivessem juntos, Twinkle o deixaria no centro do console, cercado pelos outros
objetos da coleção. Cada vez que viessem visitas ela explicaria como o encontrara, e
todos a admirariam ao ouvi-la (Idem, Op. Cit., p. 178).
O conflito ainda não está resolvido. A novidade da descoberta pode derivar em
muitos finais, como na vida, lembrando das proposições de Sahlins (2006), os
sistemas estão sempre em movimento. Se existe alguma estrutura, ela está na
contingência, sempre como estrutura da conjuntura. Assim, os significados dos
símbolos estão sempre referidos à ação humana, porque as totalidades culturais, se é
que ainda podemos falar nestes termos, são experimentadas nas particularidades
históricas: “[...] tantos esquemas distintos de valores e reações que, de maneira
variada, investem de poder certos sujeitos, individuais ou coletivos, como fazedores
de história, e dão a seus atos motivações e efeitos específicos” (SAHLINS, 2006:264).
Não se pode, portanto, pensar em determinações prévias mediadas pela fixidez que a
idéia sistêmica de cultura e identidade deixa vazar, mas atentar antes para agência que
13 é sempre performática. Por isso, embora Lahiri trace fronteiras, ela em todo o texto as
borra, sendo coerente com sua proposta ficcional de representar trânsitos e traduções.
Como todo bom texto literário, o final deve ser deixado ao leitor que decida. É
nesta ‘estética da recepção’ que os sentidos são inventados, a despeito da
intencionalidade do autor. Assim, quero registrar aqui uma interpretação possível,
guiada por este olhar antropológico que desejei emprestar ao conto. Mas antes de
concluir gostaria de pensar uma questão.
Considerei anteriormente que Sanjeev e Twinkle eram as personagens de
“Esta casa abençoada”. Mas, inspirada em Latour (2005), incluo também como
personagens os objetos religiosos encontrados na casa e, mesmo, a própria casa. Pois,
como imaginar toda a trama sem incluir também como atores o ‘descanso com a
imagem de Jesus’, ‘o saleiro e a pimenteira em forma de Maria e José’, a ‘Virgem do
jardim’, o ‘busto de prata’, enfim, todo ‘zoológico bíblico’? Explico-me.
Em Reassembling the social, uma das propostas de Latour, ao resgatar a teoria
de Gabriel Tarde, é de que o social como contexto inclui também o que não é social
em princípio dentro de uma perspectiva da Sociologia do Social. Por isso, ele – o
social –, não é um domínio específico ou especial que inclui uma porção de coisas
particulares, mas um movimento peculiar de re-associações e remontagens. Neste
sentido, não existe sociedade como algo anterior, mas o coletivo que é produzido
entre elementos que não necessariamente são por si só sociais. Esses elementos têm
agência, são também atores porque geram ações do ponto de vista latourniano de uma
Sociologia das Associações. Nas palavras de Latour:
If action is limited a priori to what 'intentional', 'meaningful' humans do, it is hard to
see how a hammer, a basket, a door closer, a cat, a rug, a mug, a list, or a tag could
act. They might exist in the domain of 'material' 'causal' relations, but not in
'reflexive' 'symbolic' domain of social relations. By contrast, if we stick to our
decision to start from the controversies about actors and agencies, then any thing that
does modify a state of affairs by making a difference is an actor - or, if it has no
figuration yet, an actant (LATOUR, 2005, p. 40).
Assim, os objetos cristãos encontrados na casa são também personagens em
“Esta casa abençoada”. Bastaria retirar-lhes da trama para que não mais existisse a
trama. Eles geraram ações no sentido de montarem o contexto relacional do conto,
motivaram o embate entre Sanjeev e Twinkle. Por isso, o final proposto por Lahiri
14 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] evidencia o busto de prata de Cristo para deixar que o leitor decida se as personagens
humanas foram ou não capazes de resolver o conflito.
Volto, então, à minha leitura. E vejo duas possibilidades interpretativas. A
primeira seria a da resignação de Sanjeev. Ele aceita as imagens cristãs na mobília da
casa não exatamente por ter conseguido atribuir sentido a elas, mas como tolerância,
como uma espécie de ‘prova de amor’ em relação à Twinkle. Há um trecho onde essa
interpretação parece bem apropriada, quando ele está com o busto na mão, ainda em
frente à descida da escada, e fita a esposa admirando-a:
Sanjeev olhou para as pétalas de rosa amassadas no cabelo dela, a gargantilha de
pérolas e safira em seu pescoço, as unhas dos pés pintadas com esmalte vermelho
reluzente. Concluiu que essas eram algumas das coisas que faziam com que Pabral a
julgasse um pedaço. Sua cabeça doía por causa do gim, seus braços doíam por causa
do peso da estátua (LAHIRI, 2001, pags. 178-179).
Neste momento, não há tradução. Sanjeev não teria re-significado nada. A
fronteira cultural e identitária estaria mantida, pelo menos para a personagem dele:
um hindu num ambiente estrangeiro, desconfortável com signos que não são os seus.
Descontextualizado. Intraduzível.
A segunda interpretação possível me parece mais interessante. Quando
Twinkle encontra a primeira imagem de Cristo, uma estátua em porcelana branca que
estava no armário em cima do fogão, ela não atende ao pedido de Sanjeev para que
jogue fora em razão da possibilidade dela ter algum valor. Diz ela: “‘Mas de repente
ela vale alguma coisa, quem sabe?’ Virou-a de cabeça para baixo, depois acariciou
com o indicador as minúsculas dobras da túnica. ‘Ela é bonitinha’” (Idem, Op. Cit., p.
157). Só depois é que ela começa a resignificá-las dentro do sagrado. Sanjeev, ao
contrário, não deseja nenhum dos objetos encontrados, mas, curiosamente, o busto de
prata é o primeiro em que ele não pensa em jogar fora e admite como seu.
De fato, Sanjeev detestava o busto. Detestava seu tamanho desmesurado, sua
superfície perfeitamente polida, seu valor inegável. Detestava a idéia de que aquele
objeto estava na sua casa, e que lhe pertencia. Ao contrário das outras coisas que
haviam encontrado, esta tinha dignidade, solenidade, até beleza. Porém, para sua
15 surpresa, tais qualidades só o faziam detestá-la ainda mais. Acima de tudo, ele a
detestava porque sabia que Twinkle a amava (Idem, Op. Cit., p.178).
Ora, a tradução está aí, na idéia do valor material do busto. No lugar de uma
tradução movida por uma espécie de altruísmo, de disposição para o Outro, de
benevolência, Sanjeev se prende às qualidades da peça, sua dignidade, solenidade e
beleza. Não é a sacralidade cristã do busto que o faz admirá-lo e admiti-lo como seu,
mas seu valor estético e econômico. Do mesmo modo, não foi inicialmente o caráter
de sagrado que atraiu Twinkle em relação à estátua de porcelana, mas a possibilidade
dela valer alguma coisa.
Essa parece ser a grande jogada do texto e sua maior ironia. Pois a idéia aqui é
a de escapar das contingências da migração e do que a diáspora sempre nos remete,
como uma experiência sofrida, um tempo de imitação de gestos alheios, de decorar
palavras novas e saber dizê-las nas situações corretas, do intraduzível de determinadas
expressões. A ironia aqui é a motivação da tradução: ver num outro sistema o valor
não precisamente cultural, mas material.
Como ficam, então, dentro deste segundo sentido que atribuo ao final do
conto, a questão da cultura e da identidade diante da tradução? Penso que Lahiri
consegue borrar ainda mais a fronteira cultural e identitária estabelecida inicialmente
no texto pela idéia do valor do busto de prata de Cristo, pois coloca as personagens
dentro do universo capitalista americano. Assim, Sanjeev e Twinkle são indianos e
hindus, mas agora entendem o valor do cristianismo!
4. Conclusões
A identidade não tem uma existência real nem per si. É, ao contrário,
virtualmente um foco, acionado em diferentes momentos e indispensável como
referência. Mas não é concreta, nem monolítica. Ou se parece ser, apenas engessa
muitas fraturas. A identidade é sempre uma fenda aberta a múltiplas identificações.
A partir de uma perspectiva antropológica, a identidade é um instrumento
conceitual cujos atributos são: ser relacional e ter a propriedade de estabelecer
conexões, intersecções e separações entre um indivíduo e outro. Ela se constrói tanto
do ponto de vista do sujeito quanto do observador. Não é estável nem essencial, sendo
16 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] mais persecutória quanto aos deslocamentos construtores de um sujeito em constante
movimento de (trans)formação.
Desse modo, os indivíduos participam de diferentes maneiras do que julgam
ser a sua cultura ou o seu pertencimento. A experiência da diáspora, no mundo global
contemporâneo, requer habilidades quanto à capacidade de traduzir múltiplos signos.
Aliás, não apenas a situação de trânsito a requer, mas a própria condição atual de se
viver numa sociedade em rede (CASTELLS, 2002). É nesse mundo repleto de signos,
em meio as diversas possibilidades de comunicação, que o duplo e o cindido se
constituem a partir de in(traduções).
Neste sentido, penso a casa de Sanjeev e Twinkle a partir da perspectiva da
8
dádiva , pois os objetos lá encontrados exigiram de ambos um relacionamento com a
cultura ocidental cristã. A estatueta, a Virgem, o busto de Cristo e todo o “zoológico
bíblico” foram, para as personagens, verdadeiros gifts, no sentido germânico da
palavra, cuja tradução pode ser tanto presente, quanto veneno. 9 Por pressupor uma
relação, a modernidade entende a dádiva também como um perigo ou algo indesejado
(GODBOUT, 1999).
Neste caso, é possível considerar que os objetos cristãos foram uma espécie de
“presente de grego”, pois funcionaram como mote de estranhamentos e
desentendimentos do casal. Por outro lado, também provocaram em Sanjeev e
Twinkle um exercício de tradução, acionando referências de suas próprias
8
O Ensaio sobre a dádiva, também conhecido como Ensaio sobre o dom, é um clássico da
Antropologia, escrito pelo francês Marcel Mauss e publicado pela primeira vez em 1925. Nesta obra,
são apresentados e analisados os métodos de troca nas sociedades tidas como primitivas. É reconhecido
como o estudo de caráter etnográfico, antropológico e sociológico mais antigo e importante sobre a
reciprocidade, o intercâmbio e a origem do contrato. A dádiva implica no movimento de dar, receber e
retribuir que, uma vez iniciado, gera obrigações e alianças.
9
Em inglês, a palavra correspondente a dádiva é gift, ou seja, presente. Em alemão, gift quer dizer
veneno. Em holandês, gift é tanto presente quanto veneno. Em sueco, gift também significa veneno, ou
então, serpente venenosa, ou ainda, casamento. Em norueguês, gift quer dizer veneno e gifte é o verbo
casar. Em grego, a palavra correspondente é dosis, que também significa parte, porção. Que se pode
inferir de tal mescla? Em primeiro lugar, a dádiva visa ao estabelecimento da relação amistosa, à
construção do laço social, o que somente se concretiza quando a doação é efetivamente aceita. Não
existe o dar sem o receber, e numa perspectiva sistêmica, sem o retribuir. Em segundo lugar, nada
envenena mais uma relação do que uma dádiva recusada. Na relação amorosa, no cumprimento não
respondido, na gentileza desconsiderada, a doação rechaçada gera animosidade e o remédio torna-se
veneno. Na raiz grega da palavra está a lembrança crucial: é precisamente a dose que distingue o
remédio do veneno.
17 identificações culturais indianas, num movimento de reflexividade, que de algum
modo os levou à tomada de consciência de si, de sua condição no mundo.
À guisa de conclusão, entendo que a casa, ainda que “abençoada” do ponto de
vista ocidental cristão, levou marido e mulher a vivenciar alguns “males”, como o
desgaste do choque cultural ou a tensão promovida na relação. Neste sentido, penso
que a autora cumpriu aquilo a que se incumbiu: “de certo modo, visto que tento
articular essas emoções – a impossibilidade de comunicar a dor emocional aos outros
– minha posição como escritora é também a de intérprete.”10 Vale lembrar que o
intérprete não é apenas aquele que se encarrega de traduzir, declarar ou de dar a
conhecer as vontades, as intenções alheias, mas também aquele que se presta a revelar
o que está oculto, à maneira das personagens quanto aos objetos religiosos ou quanto
a si mesmos.
Bibliografia
BHABHA, Homi. “DissemiNação: o tempo, a narrativa as margens da nação
moderna”. In: ______. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede – a era da informação: economia,
sociedade e cultura. São Paulo: Paz & Terra, 2002.
DUMONT, Louis. “Introdução”. In: ______. Homo Hierarchicus: o sistema das
castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1997.
______. “História das idéias”. In: ______. Homo Hierarchicus: o sistema das castas e
suas implicações. São Paulo: Edusp, 1997.
GODBOUT, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1999.
GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”.
In:______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
10
O trecho citado refere-se a uma entrevista dada pela autora e está publicado na orelha do livro
Intérprete de Males.
18 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-­‐4846] LAHIRI, Jhumpa. “Esta casa abençoada”. In: ______. Intérprete de males. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
LATOUR, Bruno. Reassembling the social: na introduction to actor-network-theory.
Oxford University Press, 2005.
LEACH, Edmund. “Cabelo mágico”. In: DA MATTA, R. (Org.). Edmund Leach. São
Paulo: Ática, 1983.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
SAHLINS, Marshall. “A cultura de um assassinato”. In:______. História e Cultura:
apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: The University of Chicago Press,
1981.
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“Esta casa abençoada” de Jhumpa Lahiri