GT 09 – (DES) IGUALDADES E AMBIENTE: CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS ENTRE MANEJOS: AS TÉCNICAS DE PESCADORES ARTESANAIS NO TERRITÓRIO DO RIO SÃO FRANCISCO ARAÚJO, Ana Flávia Rocha de1 [email protected] CRISÓSTOMO, Adinei Almeida2 [email protected] SILVA, Queite Marrone Soares da3 [email protected] RESUMO O presente artigo visa compreender as dinâmicas que perpassam a relação entre Homem e Natureza, bem como, evidenciar as formas de manejo de pescadores artesanais do Rio São Francisco, entre as cidades de Buritizeiro e Pirapora; visto que, os homens vivem e organizam-se das mais diversas formas, a fim de produzir e reproduzir seus modos de vida, tendo como base a natureza. Sendo esta, a fonte primordial das matérias-primas de apropriação do homem, que vem sofrendo com os manejos incorretos e com a falta de estabilidade do clima, proveniente de ações antrópicas. Palavras-chave: Ambiente; natureza, desenvolvimento e manejos. ABSTRACT This article aims to understand the dynamics that underlie the relationship between Man and Nature, as well as highlight the forms of management of artisanal fishermen of San Francisco River, between the cities of Buritizeiro and Pirapora; since men live and organize themselves in many different ways in order to produce and reproduce their modes of life, based on the nature. This being the primary source of raw materials to appropriate the man who has been suffering with incorrect managements and the lack of stability of climate, from human actions. Keywords: Environment; nature, development and managements. 1 Graduada em Ciências Sociais – UNIMONTES. Mestranda em Desenvolvimento Social pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS/UNIMONTES. 2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. 3 Graduada em Ciências Sociais – UNIMONTES. Mestranda em Desenvolvimento Social pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS/UNIMONTES. 1 INTRODUÇÃO Com mais de 500 anos de história, o Rio São Francisco se faz presente na identidade, na oralidade, na vivência, nas místicas e na vida do povo ribeirinho. É a partir desta “presença” que os escritos abaixo se criam e recriam na compreensão do pescador e da pesca nas corredeiras do São Francisco, na cidade de Buritizeiro, Norte de Minas Gerais. Abordar um assunto de tamanha relevância, especialmente nos dias atuais em que nos deparamos com uma intensa transformação do espaço natural devido às interferências do homem no ambiente se torna indispensável, principalmente numa discussão sobre o São Francisco. Paula (2009) em uma notável concepção sobre o Rio São Francisco caracteriza este como sendo um divisor de águas, das culturas materiais e imateriais e da identidade da população sertaneja ribeirinha. O rio esta presente nas especificidades de cada lugar: ponto de partida e chegada, espelho de crepúsculos e luares, de modos de vida e de trabalho. As populações em suas margens e no seu entorno viviam em cronologia com o 2 rio. Secas e cheias eram tempos e espaços de plantar, colher e viver. O homem fazia o seu tempo e seu espaço no tempo e espaço da natureza. (PAULA, 2009, p. 73). Através destas distinções e destas especificidades das sociedades ribeirinhas juntamente com as especificidades postas pelo Rio (espaço, ambiente, delimitação) há o reconhecimento de um modo de vida específico e um saber fazer característico, presente no cotidiano destes pescadores artesanais. Uma das principais concepções que cercam este grupo social de pescadores é a autoafirmação em ser um ribeirinho-pescador. Numa visão científica posta pelas Universidades, consideramos essa autoafirmação uma identidade, que varia de conceituação de acordo com cada autor. Para uma melhor conexão e entendimento dos objetivos a que quero chegar, utilizo Castells (1999) para definir identidade, sendo o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. (CASTELLS, 1999, p. 22). Esta construção de significados relacionados e inter-relacionados a um determinado significante, é o ápice para a caracterização da pesca como um símbolo presente na vida dos pescadores e que é reproduzido diariamente sob uma forma particular de reprodução. Tal forma particular considero ser o saber-fazer adquirido ao longo do tempo por cada sociedade; sendo este adaptado às dinâmicas de transformação do espaço físico e espaço cultural. Para Nisbet (1973) em seus estudos sobre sociedade e sobre as relações sociais, um grupo encontra seu fundamento no homem visto em sua totalidade e não neste ou naquele papel que possa desempenhar na ordem social, encarada separadamente. O grupo é a fusão do sentimento e do pensamento, da tradição e da ligação intencional, da participação e da volição. (NISBET, 1973, p. 47- 48). As territorialidades existentes nas corredeiras do Velho Chico foram construções de pessoas do passado e que ainda hoje são reproduzidas pelos pescadores evidenciando a memória como um fio condutor e ao mesmo tempo construtor das histórias. As lembranças, recordações, histórias e estórias que fazem a memória e representam um conhecimento mais aprofundado de uma dada realidade. É através da memória que se compreende a realidade atual de um grupo. 3 Para alguns autores, como Marx, uma sociedade não pode deixar de produzir suas condições materiais e sociais, já que (des) envolver é expandir, reproduzir. Nesse sentido, para que ocorra a reprodução, o homem deve apropriar-se do espaço, para assim, produzir suas necessidades específicas (de acordo com os modos de vida) ou como podemos chamar de trabalho. Dessa forma, o grande paradoxo instaurado entre o Homem e a Natureza, envolve os manejos do trabalho, ou em outras palavras, dos mecanismos utilizados pelo homem para interferir e extrair da natureza aquilo que lhe convém. Como decorrência desse processo, encaramos que a natureza é uma dimensão, um fenômeno exterior ao homem (onde o homem se encontra separado da natureza); quando na verdade, a natureza é parte integrante e específica do homem, como é vivenciado em muitas culturas. Antes da industrialização e do colonialismo, natureza e sociedade evoluíam normalmente, contudo, o relacionamento entre seres humanos e a natureza deixou de ser baseado na responsabilidade, no comedimento e na reciprocidade para transformar-se em um relacionamento cuja base é a exploração ilimitada. De forma geral, o que tem predominado ao longo dos últimos séculos é que existem dois lados para se compreender este fenômeno. De um lado, têm-se a técnica da ciência que é ensinada nas Universidades e que ainda assim é questionada; e de outro, têm-se a natureza (ambiente) vista como realidade acessível e de fácil intervenção do homem. O modo como hoje concebemos a natureza é uma tradução e reafirmação dessa lógica processual do passado, presente e quiçá futuro. Segundo Moscovici (1975) a dimensão da não linearidade do comportamento de sistemas complexos reforça a nossa percepção de que, neles, os nexos de causa e efeito não são claros; por implicação, sua dinâmica é inerentemente imprevisível. Dessa forma, com o contexto de industrialização e desenvolvimento, a natureza antes mitificada por todos, tornou-se “fábrica” de recursos que visa à transformação dos recursos naturais em riqueza, obedecendo às lógicas e expansão do capitalismo. Contudo, ainda existem grupos sociais que na partilha e compartilha do território conceberam manejos naturais de lidar com o ambiente, como os pescadores artesanais do Rio São Francisco. O SABER – FAZER: AS LÓGICAS DE GESTÃO 4 O rio esta presente nas especificidades de cada lugar: ponto de partida e chegada, espelho de crepúsculos e luares, de modos de vida e de trabalho. As populações em suas margens e no seu entorno viviam em cronologia com o rio. Secas e cheias eram tempos e espaços de plantar, colher e viver. O homem fazia o seu tempo e seu espaço no tempo e espaço da natureza. (PAULA, 2009, p. 73). A noção de grupo social além de uma vivência coletiva no e do espaço social, se torna uma dinâmica produtiva que envolve em seu contexto a profissionalização em termos legais da pesca. Contudo, a pesca nas corredeiras em Buritizeiro – MG é legitimada pelos pescadores em seu saber-fazer diariamente, e não legal (de ilegalidade) aos olhos do Estado; fatores que serão discutidos com maior ênfase no decorrer do texto. Dessa forma, analisando as concepções de espaço numa visão geral, estes são capazes de fornecer posições sociais que se evidenciam em espaços de disposições ou do habitus. Para Bourdieu (1996) “O habitus é esse principio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas”. (BOURDIEU, 1996, pg.22). Para Bourdieu (1930) esta concepção de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, que segundo o mesmo é um conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas ás outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre. O habitus por si só são princípios geradores de práticas distintas, dentro de espaços distintos. Sua essencialidade esta voltada para as diferentes práticas simbólicas que constituem uma verdadeira linguagem. Linguagem esta que são as particularidades de cada sociedade, comunidade ou grupo; o que os tornam diferentes, únicos e essenciais. Neste sentido, sendo um espaço de culturas, de símbolos, de identidades, o São Francisco constitui uma história própria. Conhecido antigamente como Velho Chico o São Francisco colaborou na transformação da região norte mineira e eclodiu na economia do país. De acordo com Paul Litlle (2002/2003), a territorialidade humana tem uma multiplicidade de expressões que produz grande diversidade de territórios e que manifestam suas particularidades socioculturais. Para Diegues e Arruda (2001) isso só é possível porque os grupos culturalmente diferenciados, em sua trajetória histórica, construíram e atualizaram seu 5 modo particular de vida e de relação com a natureza, considerando a cooperação social entre seus membros, a adaptação a um meio ecológico específico e um grau variável de isolamento. De acordo com Rocha (2010, pg. 4) “o território é concebido como o espaço concreto e simbolicamente apropriado por determinado grupo social, cheio de significações”. Através desta vertente do concreto é que o homem afirma uma identidade com este espaço enquanto lugar, e consequentemente constrói uma territorialidade, que apesar de possuir vários significados, atua em toda dimensão social, cultural e política. Esta soma dos saberes e das técnicas de uma comunidade ou determinado grupo social são os símbolos que caracterizam as especificidades de cada um. “Geograficamente o Rio São Francisco é um Rio de Planalto, cuja bacia é totalmente brasileira; caracterizando-se por uma grande heterogeneidade do meio físico, econômico e social” (DUMONT, 2007, p. 28), bem como, a do próprio povo ribeirinho, sertanejo ou barranqueiro, que são os mais utilizados como identidade, enquanto Rio São Francisco, que encontram nas relações de homem/natureza e homem/espaço uma edificação de tradicionalidade. É neste contexto, que o conflito ultrapassa as barreiras puramente socioambientais e surge enquanto construção social dos pescadores e como forma de desestruturação no modo de vida construído. Construção social embasado em saberes tradicionais que para além da lógica sustentável defendida pela maioria da sociedade, é considerada modo de vida. E desestruturação, na medida em que o Estado implanta novos projetos ambientais, como a Transposição, desarticulando o espaço ambiental, social e cultural. Nas travessias, entre idas e vindas, o São Francisco levava em seu “corpo”, pessoas, conhecimentos, especiarias, esperança, alegrias e tristezas, aos diversos “espaços” de seu leito navegável. Se tratando deste “sertão molhado”, as embarcações ganhavam vida através dos vapores, entre eles o Beijamim Guimarães4; que criado em 1923 no Mississipi, Estados Unidos, modificou a estrutura econômica e social da região (ALKMIM, 2011). Em uma época não muito distante e de cheias no Velho Chico5, as embarcações eram as centralidades das comercializações da região. No início dos anos de 1980 (século XX), com a decadência da navegação no São Francisco, as viagens tornaram-se cada vez menos frequentes. 4 Disponível em: http://www.minasgerais.com.br/roteiros/vapor-benjamin-guimaraes/, Acessado no dia: 24/10/2012. 6 Se tratando do Beijamim Guimarães, em 1983, o vapor pegou fogo, com causas ignoradas até os dias de hoje. Cinco anos mais tarde, foi tombado pelo IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais), recebendo assim, sua primeira reforma. Em 1997, o vapor foi incorporado ao Patrimônio Histórico do Município de Pirapora e chegou a ficar parado por quase dez anos. Em 2004, porém, ele volta à ativa, navegando a pequenas distâncias nas imediações de Pirapora. Em outubro de 2007, a Capitania dos Portos de Minas Gerais autoriza o Benjamim Guimarães, após minuciosa vistoria técnica, a realizar viagens de longa distância. 6 A emoção da cidade em festa com a volta do vapor, depois da sua primeira restauração, pode ser compreendida através do denso relato abaixo de Alkmim (2011) A pacata cidade está em festa. Na praça central, grupos folclóricos esbanjam alegria na Dança de São Gonçalo, Folia de Reis e Bumba-meu-boi. Há um clima de otimismo no ar. Grande parte dos 55 mil habitantes de Pirapora espera que as viagens turísticas do Benjamim, mesmo esporádicas e caras (estão previstas apenas seis em 2008, ao custo de 2.880 reais por pessoa), possam desencadear a ressurreição do transporte fluvial no Velho Chico, cujo apogeu foi entre 1958 e 1972. Desde então, o rio entrou num processo de constante assoreamento, causado pelas 18 toneladas de sedimentos que recebe por ano. Os bancos de areia se multiplicaram a tal ponto que inviabilizaram a navegação comercial. Os vapores do são Francisco – mais conhecidos como “gaiolas” – só sobreviveram na memória dos ribeirinhos e nas vendidas por artesões da região. O apito toca, com força. Esbanjando estilo, o Beijamim Guimarães zarpa ao som de fogos de artifício. Todas as medidas foram tomadas para que o barco não encalhe no trajeto. As comportas da barragem Três Marias foram abertas para elevar o nível das águas em 70 centímetros, e placas de sinalização recém-instaladas indicam o caminho a seguir em todo o percurso. “Antigamente não era assim. Dava para perceber os desníveis apenas olhando a superfície da água”, recorda o comandante Cassiano José de Castro, 78 anos, que deixou a aposentadoria de lado para conduzir novamente o velho barco, onde ganhou a vida por 47 anos. O veterano capitão que, aos 17 anos, saiu de Cachoeira, na Bahia, para realizar o sonho de marinheiro em Pirapora, admite estar ansioso. “Meu coração bate acelerado. Nada pode dar errado nesta viagem” – confessa, com alegria de menino. O rústico barco de madeira segue resoluto, acompanhado de perto por uma lancha de apoio da Marinha. Não vai em linha reta, mas em ziguezague, seguindo à risca a rota traçada para desviar das armadilhas de areia. O casco, com apenas 1 metro abaixo da linha d’água, ajuda nas manobras e permite imprimir uma velocidade de cruzeiro de 20 quilômetros por hora. No primeiro piso, o operador de caldeira Francisco Amâncio Neto, 77 anos, outro 5 Utilizo a expressão Velho Chico para retratar os tempos antigos, de cheias do rio; e São Francisco para retratar a atualidade do rio (tempos de hoje). 6 Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br - http://www.paradiso-turismo.com.br, Acessado no dia: 24/10/2012. 7 funcionário resgatando do passado, é o responsável pelo combustível do Benjamim Guimarães. A dinâmica é simples e eficiente. A lenha queima na fornalha para aquecer uma caldeira, de onde sai o vapor que movimenta os pistões, fazendo girar a roda de popa. O perdulário Benjamim queima montanhas de madeira – mas os tripulantes se apressam a explicar que toda essa lenha vem de áreas reflorestadas. Todos concordam que devastação, antes necessária para abastecer as embarcações do Velho Chico de combustível, não tem mais sentido. Deve continuar no passado. Um apito mais longo alerta para a primeira parada, na Barra do Guaicuí, bem no encontro do São Francisco com seu principal afluente, o poluído Rio das Velhas, que nasce em Ouro Preto e abastece a região metropolitana de Belo Horizonte. Guaicuí é outro lugar cheio de história. Do final do século XVII ao início do XIX, era por esse caminho que mercadorias como sal, açúcar e milho eram levadas do Nordeste para centros de extração de ouro em Minas Gerais. Guimarães Rosa, que conhecia o norte de Minas como a palma da mão, escolheu Barra do Guaicuí como cenário da declaração de amor de Riobaldo por Diadorim, em seu romance “Grande Sertão: Veredas”. Não se sabe ao certo quem ocupou primeiro a região. Se foi o bandeirante Fernão Dias ou fazendeiros baianos que expandiam suas criações de gado para o sul, orientados pela Coroa portuguesa, já de olho no precioso metal. O guia mirim Ítalo, de 13 anos, explica a origem do nome do lugar: “A Igreja de Pedra, ou do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, começou a ser construída aqui em 1650. Foi abandonada quando as cheias e a malária expulsaram as pessoas para um terreno mais alto. Só as índias idosas não foram, por isso a barra passou a ser chamada de Guaicui, que em tupi-guarani significa Rio das Velhas”. Detalhe à parte: uma gameleira cresceu sobre o topo descoberto do antigo altar-mor, com suas raízes escorregando pelos dois lados da parede da capela. “Caprichos malucos da natureza”. (ALKMIM, 2011, p. 135-137). Atualmente, este transporte fluvial é apenas um barco de passeio movido à lenha de madeira reflorestada, e ainda percorre do município de Pirapora a Barra do Guaicuí, com menor capacidade que antigamente; aonde seu trajeto ocorria entre Pirapora/Minas Gerais à Juazeiro/Bahia. Conhecido como “Gaiola”, o Beijamim Guimarães fez história na construção do povo ribeirinho. Décadas atrás, abordo do Beijamim Guimarães o escritor Manoel Cavalcanti Proença, já alertava a população em seus escritos sob as possíveis dificuldades de navegação no São Francisco, A navegação vai se tornando cada vez mais difícil, vão surgindo às coroas de areia que mudam de lugar a cada nova enchente, ora no meio do rio formando ilhas, ora coladas a uma das margens. É possível descobrir que em muitos casos a origem das coroas se deve pela destruição da mata ciliar. Encontrando o barranco desprotegido da trama de raízes, a correnteza o desmonta e o rio 8 adquiri uma largura desproporcionada. A água fica mais rasa, a velocidade da corrente diminui e não possui força capaz de arrastar as areias que vêm rodando, e que se amontoam em bancos extensos, dificultando a navegação. No baixio da Esperança, quase é possível atravessar o rio com água pela cintura. (ALKMIM, 2011, p. 57). Para o pescador na atualidade: O rio começou a piorar. A água está acabando. O rio ficou mais seco, tá faltando mais água e tem muita poluição... Assoreamento no rio tá muito grande, o veneno de plantação, principalmente plantação de café, aqui pra cima tem uma e joga tudo no Rio, que é o que tá acabando com o surubim. Tem a Votorantim que joga minério, uma química no fundo, que junto com a lama mata os peixes tudo, lá ne Terezinha inda agora tem um surubim morto lá mesmo, deve dá uns vinte quilo.(Depoimento do pescador Beto, 35 anos em entrevista para Ana Flávia Rocha de Araújo - Janeiro de 2013). O que era uma estimativa de acontecer, já se tornou realidade de acordo com a visão dos próprios pescadores em Buritizeiro – MG. A poluição não só se tornou presente, como visível aos olhos dos turistas, da população, e do pescador; que vê na mortandade e na dificuldade de pegar o peixe, o maior problema da pesca. Não se tratando de um “terrorismo ecológico” como cita Alkmim (2011) em sua obra: “O Velho Chico em três tempos”, esta é uma realidade que não podemos ignorar nunca. E que hoje pode ser comprovada com as fatalidades do dia-a-dia. A história do Beijamim Guimarães; de um vapor que “transformou vidas” e ascendeu à economia do país, é uma das grandes maravilhas possíveis nesta viagem de “lembranças” que é descrever a história do Velho Chico. Contos, lendas, fatos de vapozeiros, remeiros, carranqueiros, pescadores do São Francisco, são concretizações de um “modo de vida” específico, e de um “viver nas águas”. O “Gaiola” como era chamado o Beijamim Guimarães na época das grandes navegações (transporte de pessoas, especiarias e produtos) ainda realiza pequenas viagens pelo São Francisco. Viagens que duravam dias, meses, hoje duram por volta de três horas. Uma hora de descida e duas horas para a subida. Contudo, apesar das dificuldades encontradas ao longo do trajeto (bancos de areia, plantações, etc.) o passeio no Beijamim Guimarães continua sendo histórico e único. As representações e simbologias preservadas, desde a fornalha ao vapozeiro, desde as atrações artísticas ao toldo que cobre o sol escaldante do sertão, são uma perfeita 9 representação dos tempos de antigamente; e ainda hoje é um dos maiores pontos turísticos do município de Pirapora – MG. A facilidade com que as embarcações percorriam o rio foi caracterizada pela extensão de sua vazão e pelos longos trajetos de seu percurso navegável. Em se tratando de extensão, durante um longo período histórico de caracterização e reconhecimento, a nascente do Rio São Francisco era considerada em São Roque de Minas, na área do Parque Nacional da Serra da Canastra; o que tem sido questionado já há algum tempo. Para Melo (2012) estudos revelaram que a verdadeira nascente geográfica do Rio São Francisco encontra-se no município de Medeiros em Minas Gerais, onde nasce o rio Samburá, “curiosamente com maior volume de água e com nascente mais distante que o próprio Rio São Francisco em seu encontro”. (MELO, 2012, p.11). Da nascente então identificada na Serra da Canastra, até as corredeiras de Pirapora e Buritizeiro, a região é conhecida como Alto Médio São Francisco. De Pirapora a Remanso, Médio São Francisco. De Remanso a Paulo Afonso, Submédio São Francisco. De Paulo Afonso à foz, Baixo São Francisco; caracterizando assim, uma área de 640.000 km². (DUMONT, 2004, p. 33). Dumont (2007) caracteriza a região do Alto Médio São Francisco que abrange as cidades de Pirapora e Buritizeiro, Estende-se da nascente até a cidade mineira de Pirapora, abrangendo as sub-bacias dos rios das Velhas, Pará, Indaiá, além das sub-bacias dos rios Abaeté a oeste, e Jequitaí a leste que conformam seu limite. Situa-se em Minas Gerais, abrangendo a Usina hidrelétrica de Três Marias e apresenta topografia ligeiramente acidentada, com serras e terrenos ondulados e altitudes de 1600m a 600m. O divisor leste é formado pelas montanhas da Serra do Espinhaço, com altitudes de 1300m a 1000m. Do lado oeste destaca-se a Serra Geral, cujas cotas oscilam entre 1200m e 800m. Sobressaem ainda, os escalonamentos de superfícies de erosão até a Depressão San Franciscana, em direção à calha do rio e dos principais afluentes, cuja cota, em Pirapora, é de cerca de 450m. A vegetação é constituída de florestas e cerrado. É uma região de muitas chuvas (de 1500 a 1.000 mm anuais) no verão, que caem de novembro a abril. A temperatura média anual é de 23º. As diversas características climáticas classificam a região como tropical úmida, sendo que em algumas partes é temperada. (DUMONT, 2007, p. 29). 10 Localizada na região do Alto Médio São Francisco, a Usina Hidrelétrica de Três Marias é um fator determinante para a concepção da estrutura regional, assim como, uma contextualização da importância do Rio São Francisco para a região. Inaugurada na década de 1960, a Usina de Três Marias possui importância estratégica no controle da vazão do Rio São Francisco. Abastecendo toda a região, a hidrelétrica possui um grande potencial econômico, bem como, enaltece a visão turística de toda a região. Apesar dos benefício acarretados com sua formação, “algumas mudanças decorrentes do barramento das águas já foram constatadas na fauna dos peixes, devido à dificuldade de ultrapassarem os obstáculos físicos da barragem para a continuação da migração para locais de desova”. (MELO, 2012, p. 13). Nos dias de hoje, uma das grandes preocupações de cientistas, biólogos e ambientalistas é a degradação do meio ambiente, que assola as margens do Rio São Francisco. O esgoto urbano e industrial, as queimadas, o uso inadequado do solo, os desvios para irrigação e para as hidrelétricas, as plantações de Eucalipto e o desmatamento das matas ciliares são algumas das atividades mais agravantes de degradação; bem como, a transformação do espaço físico do rio, que acarreta na mortandade e falta de peixes em seu leito, atingindo assim os pescadores da região que vivem da pesca ou encontram na pesca uma complementação econômica. Depois de séculos de exploração inapropriada das águas do “Velho Chico”, beneficiando as mais diversas camadas hierárquicas da sociedade brasileira, hoje ele se encontra em estado “preocupante” quanto a sua preservação, e em processo de transposição das suas águas para o Semi-Árido brasileiro. Enquanto discurso “politicamente correto” o processo de transposição abrange perspectivas positivas e negativas, envolvendo em seu contexto posicionamentos diversos. Segundo Alkmim (2011), as informações recolhidas dos opositores sobre a situação do Rio São Francisco não se restringem à preocupação com o volume da água, mas também com as dificuldades da população rural, que conseqüentemente terão seus modos de vida modificados. Esta, considerada a maior de todas as polêmicas que circundam as obras de transposição. Ter água nos municípios não significa necessariamente usufruí-la “como revelam as realidades de Serra do Ramalho/BA e de Itacarambi – a 673 km de Belo Horizonte/MG. Esses municípios são cortados pelo Rio São Francisco, mas os habitantes da zona rural sofrem com a falta d’água e sofrem com uma seca impiedosa”. (ALKMIM, 2011, p. 120). 11 Dentro do projeto de revitalização, de acordo com informações do Governo federal, 80% das obras em andamento se referem basicamente ao tratamento de esgoto. “O governo prevê a revitalização de oitocentos mil hectares da bacia do São Francisco – equivalente a quase um milhão de campos de futebol, por meio de ações de desassoreamento, contenção de barragens, proteção de nascentes e mananciais e a recomposição vegetal”. São projetos que precisam urgentemente serem consolidados. ( ALKMIM, 2011, p. 121-122). Para os pescadores e moradores ribeirinhos a transposição é um meio/caminho de ajudar quem precisa. “Nosso Rio é grande demais, porque não ajudar quem precisa?”(Fala do pescador Beto, em entrevista – Abril de 2013). As concepções de grandezas, de valores, se confundem com a visão de um rio extenso (em largura e comprimento) que evidenciam um “bem” inacabável. Neste sentido, as populações que conseguiram se sustentar e manter através das águas do rio, criaram ciclos bem definidos de trabalho e lazer, diferenciando suas atividades das demais atividades regidas pelos sistemas capitalistas. Sendo assim, a pesca artesanal nas corredeiras do São Francisco é hoje caracterizada por um grupo de pescadores, que não utilizando mão-de-obra assalariada, capturam o pescado através de técnicas manuais e de baixo custo financeiro. Contudo, com as dificuldades da pesca advindas da devastação do rio, da proibição da pesca nas corredeiras, dos pescadores amadores, existe na atualidade uma necessidade de profissionalização deste pescador. É nesta busca de “qualificação”, de encaixe nos padrões exigidos pela massa do Estado, que ocorre o confronto entre os saberes tradicionais e a inevitável busca de colaboração dos Projetos Estatais na sustentabilidade dos povos e comunidades tradicionais. A pesca compreendida como ritual, os saberes adquiridos dessa prática juntamente com o processo de transposição proposto como forma de desenvolvimento para a região, que surge o contra ponto território enquanto água e território enquanto terra. REFERÊNCIAS ALKMIM, Carlos Diamantino. O Velho Chico em três tempos: 1925/1944/2010. Belo Horizonte: Ed. do autor, 2011. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cerrado, Gerais, Sertão: comunidades tradicionais nos sertões roseanos. A Comunidade Tradicional. Editora cidade, 2010. 12 BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Papirus Editora; 1996. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. A construção da identidade. Volume II; Editora Paz e Terra S/A; São Paulo, 2008. DIEGUES, Antonio C; ARRUDA, Rinaldo S.V. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil. Ministério do meio Ambiente, 2001. DUMONT, Sandra Regina Tôrres. São Francisco – Caminho Geral do Sertão: Cenários de Vida e Trabalho de pescadores tradicionais em Pirapora e Buritizeiro – Norte de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Geografia; área de concentração: Geografia e Gestão do Território; 2007. DUMONT, Sávia. ABC do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Editora Dimensão, 2000. LITLLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. In: Anuário Antropológico 2002/2003. Rio de Janeiro: 2004. MOSCOVICI, Serge. Sociedade contra natureza. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1975. NISBET, Robert A. The Sociological Tradition. Tradução de Richard Paul Neto. Londres: Amorrortu Editores S.A, 1973. p. 47-55. NOVA, Paulo Bastos Boa. Guia do Pescador. CEMIG. Belo horizonte. PAULA, Andrea Maria Narciso Rocha de. Travessias – Movimentos migratórios em comunidades rurais no Sertão do Norte de Minas. Tese de doutorado. UFU, 2009. PAULA, Andrea Maria Narciso Rocha de; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A região mineira do Nordeste – Grande Sertão: Trabalho apresentado no XVIII Nacional de Geografia Agrária – Rio de Janeiro – 06 a 09 de Novembro de 2006. PAULA, Andréa Narciso Rocha de; BRANDÃO, Carlos Rodrigues; CLEPS JUNIOR, João. Pesquisa de campo e em campo, os saberes das histórias de vida em comunidades rurais no sertão de Minas Gerais/Brasil. In: VII Congresso latino americano de sociologia rural-Associacion latinoamerciana de sociologia rural, Quito: Eguador, 2006, anais. __________ Instituto de Estudos Pró-Cidadania. História Natural de peixes de água doce: teoria e prática nas escolas: Bacia do Rio São Francisco; Belo Horizonte: Ed. Pró-Citta, 2012. 13