Cadernos do Centro de Estudos e Ação Social 233 Janeiro/Junho 2009 CLÁUDIO PERANI IGREJA POPULAR MOVIMENTOS SOCIAIS TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO Revista ceas 233.indd 1 27/09/09 10:04 • Cadernos do CEAS é uma revista trimestral do Centro de Estudos e Ação Social que apresenta, analisa e comenta a realidade brasileira, denunciando formas de opressão e desigualdades sociais e apontando a iniciativa das classes populares como caminho para a superação da miséria e da exploração, na direção de uma sociedade mais justa e humana, de real participação democrática. • O Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) é uma entidade constituída por um grupo de jesuítas e por outras pessoas de diferentes pontos de vista, comprometidas com os objetivos acima. • As matérias não assinadas são de responsabilidade conjunta do CEAS. • Os Cadernos do CEAS circulam semestralmente; as assinaturas são feitas para os dois números do ano e dão direito ao acesso à edição eletrônica do ano de referência da assinatura. • Os Cadernos do CEAS estão indexados nas seguintes bases de dados: Citas Latino Americanas de Ciencias Sociales (CLASE); Sistema Regional em Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal (LATINDEX); Sumários de Revistas Brasileiras (Sumários.org); Portal de Periódicos da CAPES. Correspondência, colaborações e assinaturas: Cadernos do CEAS, Rua Aristides Novis 101, Federação 40210-630 Salvador BA Brasil Fone: (0**71) 3247 1232 • Fax: (0**71) 3332 0680 e-mail: [email protected] / [email protected] • http://www.ceas.com.br EQUIPE EDITORIAL: Daniel Andrade Caribé, Elsa Sousa Kraychete, Fabricio Santos Moreira, Felipe Assunção Soriano, Joaci de Souza Cunha, José Maurício Daltro Bittencourt, Joviniano Soares de Carvalho Neto, Manoel Maria do Nascimento Júnior (Coordenador), Manuel Andrés Mato, Sandoval Alves Rocha, Zenaide Rodrigues. Angela Borges (UCSAL), Carlos Eduardo de Carvalho (PUC/SP), Clóvis Cabral (Atabaque), Guilherme Gitahy de Figueiredo (UEA), Grimaldo Carneiro Zachariadhes (Esc. Mun. Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça/RJ), Iraneidson Santos Costa (UCSal), João Correia de Andrade Neto (Col. Est. Odorico Tavares/ BA), José Aldemir (UFAM), Lúcio Flávio Cirne (UNICAP), Maurício Azevedo de Araújo (AATR), Muniz Gonçalves Ferreira (UFBA), Nelson Oliveira (UFBA) e Ricardo Luiz Coltro Antunes (UNICAMP). PROJETO GRÁFICO: Matilde Eugênia Schnitman NORMALIZAÇÃO: Manoel Maria do Nascimento Júnior CAPA: Marcelo Mendonça DIVULGAÇÃO: Elen Catarina Santos Lopes (divulgadora), Flávia Damares Batista, Robson Avelino, Daniela Luz, José Bispo. IMPRESSÃO: Talismã Gráfica e Editora EDITORAÇÃO: Domingos Designer Gráfico ASSINATURA ANUAL: R$ 40,00 NÚMEROS AVULSOS OU ATRASADOS: R$ 12,00 SUBSCRIÇÃO DE APOIO: R$ 60,00 EXTERIOR: Para o norte geopolítico: US$ 60,00 Para os demais países: US$ 40,00 CONSELHO EDITORIAL: Cadernos do CEAS. M.1 –. (1969–). Salvador, Centro de Estudos e Ação Social, 2009. Semestral ISSN 0102-9711 1. Análise conjuntural – Brasil. 2. Politica agrícola. 3. Politica econômica. 4. Politica social. I Centro de Estudos e Ação Social. CDU 338.91 (081) 338.984 338.98 338.28: 304 2 Revista ceas 233.indd 2 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 APRESENTAÇÃO JOVINIANO S. DE CARVALHO NETO 5 CLÁUDIO NO CEAS Esta edição foi elaborada como homenagem póstuma ao Pe. Cláudio Perani SJ (1932-2008), um dos fundadores do Centro de Estudos e Ação Social e um dos mais prolíficos colaboradores desta revista; aqui estão todos os textos com sua assinatura que já passaram pelas páginas dos Cadernos do CEAS. A apresentação escrita por Joviniano Neto, que conviveu por muitos anos com Cláudio Perani, contém breves dados biográficos e resumos dos artigos. 15 Nota Editorial PARTE 1: Igreja Popular 19 31 41 61 75 92 107 Religiosidade popular e mudança social (1974) A ação da Igreja nas bases: da integração à libertação (1974) Comunidades Eclesiais de Base – alguns questionamentos (1978) Comunidades Eclesiais de Base e movimento popular (1981) Pastoral Popular: poder ou serviço? (1982) Novos rumos da Pastoral Popular (1987) Apostolado Social na Amazônia (2007) PARTE 2: Movimentos Socais 113 O Movimento dos trabalhadores e a CUT (1982) 127 Pastoral Popular e assalariados rurais (1984) 145 A greve dos bóias-frias em São Paulo (1984) Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 3 3 27/09/09 10:04 155 159 171 186 195 As lutas contra o desemprego (1986) Notas sobre Educação Popular (1986) Pastoral Popular e movimentos sociais (1989) Sobre as eficácias (1994) Movimentos sociais hoje no Brasil: breves reflexões (2004) PARTE 3: História e opções da Igreja 209 218 229 245 263 285 297 Bispos da Amazônia: a conversão ao posseiro (1975) Pobres e ricos (1977) Libertação e espiritualidade (1980) O Papa na América Central (1983) A Igreja no Nordeste; breves notas histórico-críticas (1984) Rumos da Igreja no Brasil (1985) 25 anos de Cadernos do CEAS (entrevista concedida por Cláudio Perani, José Crisóstomo de Souza e Joviniano Neto) (1994) 309 CEAS: saudoso e saudável (2000) PARA LER NOS CADERNOS DO CEAS SOBRE... 313 Teologia da Libertação 4 Revista ceas 233.indd 4 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 APRESENTAÇÃO CLÁUDIO NO CEAS JOVINIANO S. DE CARVALHO NETO 1. HOMENAGEM E CONTRIBUIÇÃO A publicação contendo os textos assinados por Cláudio Perani nos Cadernos do CEAS é merecida homenagem a quem coordenou e inspirou o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) por muitos anos (presencialmente de 1968 a 1995) e, mais do que isto, uma grande contribuição para todos aqueles que procuram atuar, na Igreja ou nos movimentos sociais, a serviço do protagonismo do povo, dos pobres, dos marginalizados. Para sacerdotes, pastorais, assessores, lideranças e militantes fornece elementos para análise e planejamento de suas ações, parâmetros de julgamento da eficácia, na perspectiva de fermento e semente de um mundo novo, justo, igualitário, fraterno. Ou, em termos explicitamente religiosos, para quem atua na história, procurando reconhecer os sinais dos tempos e desenvolver as primícias do Reino de Deus. O objetivo de contribuir para o maior florescimento da Igreja dos pobres e a seu serviço e ao maior discernimento e fortalecimento dos movimentos populares perpassa todos os textos apresentados, ao ponto de os textos incluídos em uma categoria (Igreja Popular, Movimentos Populares e História e Opções da Igreja) por ênfases e objetivos predominantes poderem, sem grande prejuízo, serem utilizados para reflexão nas outras. A posição e o pensamento de Cláudio evolui (os textos cobrem o período 1974-2007) em torno do mesmo eixo e fio condutor. 2. ALÉM DO CEAS Ressaltando a importância da reunião dos textos que corporificam este pensamento, e antes de antecipar algo do seu conteúdo e significado, cabe fazer uma importante Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 5 5 27/09/09 10:04 Joviniano S. de Carvalho Neto ressalva: estes textos não apreendem todo o pensamento e ação de Cláudio Perani. Aqui cabem duas observações. A primeira é que não representam toda a sua produção e ação no CEAS; para esta edição foram reunidos apenas textos assinados por Cláudio – quando, no início dos Cadernos, em nome da constituição da equipe e do enfrentamento da ditadura, optou-se por textos não assinados e de responsabilidade coletiva, editorial. Além de elaborar e participar da elaboração de textos, sua ação como coordenador e líder foi fundamental em dois sentidos: fazer do CEAS um Centro que reuniu pessoas de diversas posições religiosas (algumas se acreditando ateias), políticas e ideológicas, em torno da luta pela efetiva democratização da sociedade; e influir, a partir do CEAS e da Bahia, na ação e organização da Igreja e dos movimentos sociais. Sua participação no Grupo “Moisés” (que, no Mosteiro de São Bento de Salvador-BA, reunia padres e leigos que procuravam auxiliar na travessia do deserto da Ditadura) e, em nível nacional, na criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), são exemplos notórios de uma ação mais ampla, da qual os textos ora publicados são reflexo e instrumentos. A segunda observação que se impõe é que existe um Cláudio antes e depois do CEAS. Reconhecendo isto, vendo os textos, ora publicados, como uma amostra, ainda que representativa e definidora, intitulamos esta apresentação de “Cláudio no CEAS”. É contribuição que se dá para a construção de imagem que outras organizações e pessoas, certamente, completarão. Sobre o período anterior ao CEAS, consideramos fundamental destacar, sumariamente, dois fatores que, ao nosso ver, fornecem chave de leitura para o seu pensamento e ação: a participação na Ação Católica (AC) e sua interpretação do Concílio Vaticano II. Pe Cláudio foi assistente eclesial da Juventude Universitária Católica (JUC), movimento da Ação Católica especializada, nos inícios dos anos sessenta. A aplicação do VER – JULGAR – AGIR e da “Revisão de vida”, para análise da realidade e formação dos militantes, métodos desenvolvidos pela Ação Católica (AC), eram elementos definidores da identidade do movimento. Pe. Cláudio vive e celebra o Concílio que incorpora perspectivas abertas pela Ação Católica. Na Europa, em 1967 (Bélgica e Roma), estuda e obtém o título de doutor em teologia. É um teólogo que opta pela pastoral e aplica o VER – JULGAR – AGIR. A articulação que faz entre o espírito e método da Ação Católica e o Concílio Vaticano II está expressa em livro de sua autoria, lançado em dois anos, aos quais associamos um papel simbólico. “A Revisão de Vida instrumento de Evangelização. A luz do Vaticano II” foi lançado na Itália em 1968 – ano em que retorna ao Brasil e é designado para o CEAS – e, no 6 Revista ceas 233.indd 6 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Cláudio no CEAS Brasil, pela Loyola, em 1974, ano no qual aparece o primeiro dos seus artigos assinados no CEAS. É, ao que sabemos, o único livro de sua autoria exclusiva. Assim, é estratégico para conhecer o pensamento de Cláudio ao chegar ao CEAS. Nele, após reconstruir a “Revisão de Vida” desde sua origem, para atender demandas dos leigos na Juventude Operária Católica (JOC) e analisar, à luz dela, os documentos conciliares, retira três grandes conclusões. A primeira é a “clara convergência”: “Enquanto na revisão de vida é focalizado o cristão em função do mundo, no Concílio, toda a Igreja é vista em função do mundo” (p. 193). O caminho do fato ao Evangelho não exclui o do Evangelho à vida, mas o Concílio, “considerando o mundo em suas estruturas, vê o homem em seu centro, o homem dependente do ambiente, em relação social com os outros homens, o homem que se interroga e que penetra nas profundezas da sua consciência” (p. 193). Não há ruptura entre o humano e o sobrenatural. O caminho seria: mundo – homem – Homem Novo – Deus e, utilizando a revisão de vida, se deveria contar com uma visão de totalidade (transformar não só o indivíduo, mas todo o ambiente) e com o diálogo que permite descobrir o que há de positivo no interlocutor (p. 194). A segunda conclusão é teológica – valorizar como decisiva a encarnação, a imanência de Deus na realidade humana, a possibilidade de descobrir Deus partindo de baixo, incluir o mundo e a história humana como fonte, ainda que indireta, da revelação de Deus e do seu Plano. Desta concepção decorre a terceira conclusão “uma pastoral que preste atenção à vida, em contacto com a vida, que investigue os sinais dos tempos e interpele os acontecimentos (...) que parta do conhecimento do ambiente social e do reconhecimento dos valores nele presentes”; “profética, que saiba ver o sentido último das coisas” (p. 196). Esta base ajuda a explicar o teólogo que optou pela pastoral, pela imersão no povo em um trabalho da assessoria, dialogando, fertilizando, lançando sementes, apoiando a consciência e organização que dele nascia. A avaliação de ação de Cláudio é, também, auxiliada pela sua inserção no tempo. Sua atuação ocorre em dois momentos bem distintos da história do Brasil e da Igreja. No primeiro, se defrontavam, de um lado, a renovação da Igreja, ampliada pelo concílio Vaticano II que priorizava os pobres e, de outro, a Ditadura Militar, originada de golpe, justificado pela defesa da civilização cristã ocidental, que identificava como “comunismo” a luta pelas mudanças sociais. É o período em que, contra a ditadura, se estrutura ampla frente pela democratização que, a Igreja Católica assume o papel da “Voz dos que não tem voz” e, nela, se destacam mártires, santos e profetas. O segundo inicia-se na década de 1980, e especialmente após a queda do Regime Militar (1985). No Brasil, os movimentos sociais se defrontam com as limitações da democracia contida no político-institucional, com os riscos da cooptação, com a Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 7 7 27/09/09 10:04 Joviniano S. de Carvalho Neto necessidade de descobrir novos caminhos em momento de certo refluxo e o que para alguns, (a posição de Cláudio não era exatamente esta), aparece como dispersão. Na Igreja, a renovação do Concílio Vaticano II, ampliada por Medellín (1968) e mantida por Puebla (1978) defronta-se com limites e alguns recuos em nome do restabelecimento da “disciplina”, da uniformidade e do esforço da Cúria Romana para retornar ao esquema tradicional de análise no qual a “iluminação teológica” precede o Ver (cf. São Domingos – 1992). Os artigos apresentados permitem entrever como Cláudio enfrentou os desafios dos dois momentos. Após estes enquadramento, cabe apresentar, resumidamente, o conteúdo da publicação. 3. IGREJA POPULAR Esta parte, reúne 8 artigos elaborados em momentos históricos distintos. Nos três primeiros, na década de 1970, período de enfrentamento do regime militar e da ida de religiosos para as bases, sua preocupação é com uma igreja que nascia do povo. No primeiro, Religiosidade popular e mudança social (1974), procura responder se esta religião é libertadora ou alienante e identificar os princípios pastorais que deveriam orientar o trabalho da Igreja. Reconstitui as avaliações vigentes, mostrando que, na relação com ela, se deveria optar entre linha evolutiva reformista ou de ruptura. Mantendo o caráter transcendente da fé, mas considerando que a intervenção de Deus se dá neste mundo e nesta história, relembra os condicionamentos sociais de religião popular, propondo que se reinterprete os dados religiosos, busque-se novas formas de expressão, prevendo que, da luta pela mudança social e estruturação de nova sociedade, emergirá a formulação de nova religiosidade. O titulo A ação da Igreja nas bases: da integração a libertação (1974), sintetiza o objetivo do segundo. A integração de religiosos ao meio popular levara a novas formas de trabalho, dentre os quais o das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Assim, analisa o “viver com a base”, identificando motivos, méritos, obstáculos; propondo revisões continuas da prática, com instrumentos das ciências sociais; prioridade para a ação crítica visando a libertação de oprimidos que, ao menos no inicio, teria o apoio de educador vindo de fora, que os ajudasse a reconhecer melhor suas necessidades e lutar para alcança-las. Em Comunidades Eclesiais de Base: alguns questionamentos (1978) parte da expressão e importância a elas atribuídas como instrumento de renovação da Igreja e au- 8 Revista ceas 233.indd 8 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Cláudio no CEAS mento da consciência política. Após identificar as características principais das CEBs, apresenta elementos de avaliação e questionamento de sua ação. A opção preferencial pelos pobres implicaria na abertura para temas sociais e políticos, desenvolvimento da consciência crítica e revisão de critérios. Dois artigos – Pastoral Popular: poder ou serviço? (1982) Novos rumos da Pastoral Popular (1987) respondem a problemas colocados pela redemocratização e termino do regime militar, fim do bipartidarismo (1979) criação do PT (1980) e da CUT (1983), abertura para militantes no movimento sindical, eleições diretas para governadores (1982, 1986) campanha pela Assembleia Nacional Constituinte (1985/86). Em “Pastoral popular: poder e serviço”, avalia, inclusive teologicamente, a entrada do discurso político na Pastoral após a reorganização partidária e as eleições. Levanta as questões debatidas e recorre à Bíblia para explicitar a relação entre fé e política. Formula, então a proposta de uma pastoral de serviço que buscaria o contato com as massas e suas necessidades, ofereceria solidariedade efetiva nos locais de conflitos, seria mais de troca que de articulação, não teria propostas pré-estabelecidas, apoiaria outras organizações e mobilizações sem visar favorecer diretamente a Igreja (grifo de Cláudio), cobraria, a partir de baixo, aos partidos e movimentos. Em Novos rumos da Pastoral Popular apresenta, a partir do Nordeste e do 6.º Encontro Interestadual de CEBs (julho de 86) sua visão da conjuntura e desafios. O crescimento das CEBs, a abertura para trabalho em associações e sindicatos (preferência pela CUT) e para trabalho em época de transição política, a intervenção mais explicita de autoridades eclesiásticas, teriam gerado crise nas CEBs entre os que investiam mais na prática bíblico-religiosa e os que se abriam para outras frentes de luta. Identifica uma transição pastoral e apresenta os impasses existentes. Avaliando, retoma análise teológica feita no artigo anterior, para aprofundar a relação dialética entre fé e política que seguem lógicas diferentes. A presença pública da fé poderia se apresentar sob a forma eclesial, política e ecumênica, a qual prefere, e que se caracterizaria pelo dialogo sem modelos pré-estabelecidos para a ação. Propõe repensar as CEBs na linha do pluralismo pastoral, estrutura participativa e abertura política para sustentar o pluralismo no campo popular. O último texto desta parte – Apostolado Social na Amazônia (2007) – reflete a mudança geográfica, institucional e de tempo histórico. Cláudio fala a partir da Amazônia e como diretor do Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social (SARES), onde adaptou o serviço aos pobres e à Igreja, às necessidades da região. Na “Equipe Itinerante” por exemplo, padres, freiras e leigos, visitavam, de barco, as comunidades ribeirinhas. Em outra frente, o centro sentiu a necessidade de ultrapassar a assessoria para preparar, Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 9 9 27/09/09 10:04 Joviniano S. de Carvalho Neto formalmente, atores para a ação. Historicamente, o artigo reflete a constatação de que o modelo neoliberal aumentou o abismo entre elite rica a maioria explorada e a necessidade de esforço político por uma nova sociedade. Enfrentando este desafio propunha um passo além do acompanhamento e apoio às lutas populares: acrescentar à formação informal uma educação formal, com escolas gratuitas e cursos oferecidos a todos os interessados na mudança social, sem discriminação religiosa ou partidária, ultrapassando os limites dos apostolados tradicionais e utilizando o melhor da cultura política. Cláudio demonstra que a ação e o diálogo com os de fora da Igreja e os diferentes não esvaziaria a fé, mas seguiria, melhor, a metodologia de evangelização de Jesus. 4. MOVIMENTOS POPULARES Oito textos sobre questões colocadas desde a transição do Regime Militar até os meados do primeiro governo Lula. O movimento dos trabalhadores e a CUT (1982) parte da constatação de que a evolução de 1978 a 1982, dando maior visibilidade as tendências ideológico partidárias, colocara novos desafios ao movimento popular. Sem perder a referencia com a luta concreta das classes populares se deveria aprofundar a análise. Para ela, contribui, focalizando as iniciativas para criar a CUT – Central Única dos Trabalhadores. Reconstitui o surgimento da CONCLAT – Conferência Nacional dos Trabalhadores, em congresso importante, mas sem grande repercussão na população voltada para as eleições, e que não mobilizou a base. Cláudio examina a desmobilização e o refluxo do movimento dos trabalhadores, apresentando e relativizando as hipóteses vigentes, defendendo que se deveria pensar, não em avanço/recuo, mas em ritmos e valorizar o cotidiano. O trabalho apresenta as duas grandes correntes que polarizavam as vanguardas sindicais as quais deveriam ser avaliadas pela ação concreta. CONCLAT e CUT, conclui, deveriam ser vistos como instrumentos de politização e organização e se deveria reconhecer a diversidade dos caminhos, espaços e instrumentos das lutas, ouvir mais as bases, crescer a partir de baixo, descobrir alternativas na luta concreta. Em Pastoral Popular e assalariados rurais, (1984) a partir do encontro das CEBs e da Assembleia Geral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), reconhece a importância da luta pela terra e dos posseiros, mas aponta para a problemática e desafios dos assalariados rurais, categoria em expansão. Reconstitui a situação dos “bóias frias” (no algodão, cacau, café, cana, construção). Busca as razões da insuficiente presença e experiência da Igreja junto a estes assalariados. No agir, defende maior inserção; 10 Revista ceas 233.indd 10 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Cláudio no CEAS atitude de solidariedade; não se apressar em explicitar sinais religiosos, relacionar, concretamente, terra e salário, avaliar papel dos sindicatos rurais. Em As lutas contra o desemprego (1986) parte da angústia e desorientação, vistos em encontros das CEBs, grupos de periferia urbana e trabalhadores rurais. Aponta respostas individuais e organizacionais ao problema, endossando a elaboração de pautas de reivindicação. Em Notas sobre Educação Popular (1986) avalia Congresso organizado pelo “Movimento Leigos para a América Latina” sobre a contribuição das experiências de Educação Popular (EP) para a transformação das instituições da sociedade civil. Mostra a diversidade dos participantes; a definição do EP; o papel do povo, contraditório e em articulação e para qual se desenvolvem metodologias e idéias forças. A partir daí, questiona teorias vigentes enfatizando necessidade de repensá-las a partir do desenvolvimento da consciência e organização popular. A EP teria papel político, seria espaço de relação dialética com movimento popular que ajudaria a repensá-lo, na linha de táticas mais representativas e democráticas que combinassem descentralização e articulação. Conclui pela importância da EP valorizar o cotidiano e pensar globalmente. Sobre as eficácias (1994) será duradoura e nacionalmente utilizado. Abre com evento no qual ação dos apóstolos rompe estrutura marginalizada, para avaliar o problema das eficácias das ações que pretendem mudar o mundo. A conjuntura brasileira exporia, dramaticamente, a necessidade de ação imediata contra a fome. Propõe esquema para avaliar as iniciativas no movimento popular. Enquadra e analisa as experiências libertadoras, enquadrando-as em três categorias conforme privilegiassem a preocupação econômica, a articulação política, a gratuita presença e acompanhamento. Conclui pela necessidade de aprofundar o caminho escolhido reconhecendo vantagens, limites e questionamentos; favorecer redes de articulação de eficácia alternativas. O critério fundamental de avaliação da eficácia seria a confiança nos excluídos. Para cada categoria apresenta critérios específicos. Conclui lembrando a importância da gratuidade que teria particular eficácia, pode favorecer energias insuspeitas, criar novas experiências e autonomias. Movimentos Sociais hoje no Brasil: breves reflexões (2004) foi elaborado quando de seminário organizado pela Companhia de Jesus, com presença de movimentos socais. Diante da realidade dos movimentos sociais propõe atitude de discernimento a partir de contacto e escuta dos mesmos. A concepção de movimento social conflita com o neoliberalismo que, para ser enfrentado, necessitaria de novos paradigmas de análise. Diante da crise dos movimentos sociais (ou das teorias sobre ele) apresenta os proble- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 11 11 27/09/09 10:04 Joviniano S. de Carvalho Neto mas que estes enfrentam. Conclui com perspectivas para a ação: avaliação continua, busca da unidade, investimento na formação, vivencia e ética. 5. HISTÓRIA E OPÇÕES DA IGREJA Compreende oito textos, sete artigos e entrevista sobre os 25 anos dos CEAS. Articulam-se com os anteriores, mostrando a unidade do pensamento. “Bispos de Amazônia: a conversão ao posseiro” (1975) reflete encontro de bispos e religiosos sobre a Amazônia para definir diretrizes diante das migrações e conflitos entre empresas agropecuárias e posseiros. O artigo é uma avaliação “teológico-pastoral” da terra como lugar teológico e as dificuldades que se colocam à eficácia da ação profética dos cristãos. Em Pobres e ricos (1977) enfrenta os que reagiam à opção pelos pobres em nome do universalismo de salvação e do mandamento do amor. Apresenta esta posição como ideológica, relembra posições bíblicas sobre conflito, riqueza e pobreza. Conclui que a aceitação do Evangelho segue caminhos históricos, a solidariedade com os pobres é o único caminho, o amor é revolucionário e deve assumir o conflito. Em Libertação e Espiritualidade (1980), diante da Igreja dos pobres que nasce na América Latina, reflete sobre experiências de pessoas da Pastoral Popular, reconstitui seu itinerário desde o contato concreto com a opressão até a conversão a uma espiritualidade que, com Deus, questiona a realidade. No julgamento da realidade utiliza novas leituras sobre Jesus Cristo, Igreja, Sacramentos. Conclui que o alvo é o aumento da “vida” e o aprofundamento da fé que enfrentará as contradições pela referência ao povo e suas lutas concretas. O Papa na América Central (1983) enfrenta a instrumentalização da viagem pelas forças direitistas e “grande” imprensa. Resume os discursos do Papa, cujos temas e linguagem muito teológicos, genéricos e abstratos visavam fortalecer a unidade da Igreja, mas que tiveram boas e más aplicações aos casos concretos Analisa, criticamente, as falas do Papa que defende os pobres e a necessidade da justiça, ao tempo que alerta para os riscos, critica às ideologias capitalista e marxista, manifesta-se contra a violência e a luta armada. A conclusão é que a Igreja local não deverá tirar conclusões indevidas e aplicar a princípios do Papa, a partir dos resultados positivos alcançados pela luta popular. 12 Revista ceas 233.indd 12 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Cláudio no CEAS Igreja no Nordeste: breves notas histórico-críticas (1984) foi modo de comemorar os 15 anos dos Cadernos do CEAS, relembrando a importância do Nordeste para a mudança da Igreja no Brasil.Apresenta, em visão crítica, “antes de 1964”, o surgimento de uma igreja preocupada com o povo e, “depois de 1964”, uma igreja mais popular. Avaliando, faz questionamentos sobre o poder na Igreja, papel das CEBs, riscos de politização da Pastoral. Conclui vislumbrando três perspectivas na Pastoral Nordestina – Renovação interiorizante, militante e, a sua preferida, a atitude ecumênica. A duração da caminhada é parte da conclusão de Rumos da Igreja no Brasil (1985). Após confirmar, na Missão da Terra, em Bom Jesus da Lapa, que uma Igreja renovada tinha nascido, enfrenta os desafios da “Nova República” e da “involução”, no processo desencadeado pelo Concílio Vaticano II, para a continuidade da caminhada. Propõe volta a eixos de Medellin, reconhecimento do novo nas relações com o governo, sem abandonar ou substituir os pobres, investir mais na Pastoral Popular e teologia que assuma a linguagem dos pobres, diálogo com as ciências sociais, colaboração ecumênica, priorização do povo de Deus na linha de mudança da estrutura piramidal da Igreja para uma mais circular e fraterna. Por último, dois textos sobre o CEAS. Em 25 anos de Cadernos do CEAS (1994) Cláudio foi um dos três entrevistados. Como foi transferido no ano seguinte, foi avaliação praticamente no fim do seu período no Centro. Nela o leitor pode conhecer motivos de criação do CEAS, etapas da evolução até 1994, influências teóricas, posições e linhas de trabalho. CEAS: saudoso e saudável (1997), foi publicado no aniversário de 30 anos do CEAS. Na primeira parte relembra o que recebeu no Centro e lhe permitiu aprofundar sua interpretação do Evangelho e prática de Jesus. Na segunda, defende a continuidade de reflexão teórica que ajude os setores populares e propõe maior investimento no estudo e apoio aos milhões de excluídos para o que se necessitaria de contato contínuo, reflexão que penetre no cotidiano, aposta na inteligência e inventividade dos mais fracos. Conclui com frase que resume sua própria vida: “É um grande desafio. Mas, vale a pena”. 6. MÉTODO E TESTEMUNHO A apresentação sumária deixa para o leitor a riqueza dos textos, mas baseia duas conclusões. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 13 13 27/09/09 10:04 Joviniano S. de Carvalho Neto Quanto ao método, a leitura comprova que Cláudio usa o VER-JULGAR-AGIR. Parte, sempre, da realidade e seus desafios. Avalia utilizando contribuições da teologia, Ciências Sociais e marxismo. Propõe integração na luta dos pobres, em postura ecumênica, de escuta e diálogo, visando o aumento da consciência e organização do povo. Para todos os que o conhecemos, relembra que seu método foi sua prática, sua vida. E nos permite concluir pela sua importância para a Companhia de Jesus, para a Igreja Católica e para o povo brasileiro. 14 Revista ceas 233.indd 14 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 NOTA EDITORIAL Os artigos desta edição foram publicados nos Cadernos do CEAS em diferentes épocas e refletem, quanto à forma (citações, títulos de seções etc.), os padrões de cada momento. Reproduzimo-los literalmente para maior fidelidade com o estilo de Cláudio Perani, visto que, na falta dos originais anteriores a 1998 – que supomos perdidos – todos foram digitalizados diretamente das edições impressas da revista. Alguns artigos foram digitalizados a partir de exemplares dos Cadernos do CEAS com a assinatura “Claudio” no índice; como eles contém correções ortográficas e gramaticais manuscritas no próprio artigo, e como estas correções, rabiscos e sublinhados surgem neles quase que somente nos artigos de autoria de Claudio Perani, deduzimos que se trata de correção feita pelo próprio autor e seguimos aquilo que as notas indicavam. As únicas modificações introduzidas foram a numeração das seções e subseções dos artigos – na maior parte deles Perani não introduziu numeração alguma – e a correção de uns poucos erros de impressão mais gritantes. Eventuais erros de pontuação e grafia – como “extenderam”, “paralizações” etc. - foram mantidos tal como se encontram nos textos publicados nos Cadernos do CEAS. Mesmo os lapsi calami explícitos definem um estilo, e não nos cabe, à revelia do autor, alterar textos que hoje são patrimônio dos movimentos populares. O CEAS agradece o apoio a esta edição garantido pela Coordenação Ecumênica de Serviço – CESE, pelo Escritório de Ligação e Organização – ELO e pelos apoiadores individuais que contribuíram para sua realização. CADERNOS DO CEAS Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 15 15 27/09/09 10:04 PARTE 1 IGREJA POPULAR Revista ceas 233.indd 17 27/09/09 10:04 Revista ceas 233.indd 18 27/09/09 10:04 RELIGIOSIDADE POPULAR E MUDANÇA SOCIAL CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 30, mar.-abr. 1974) É um assunto que suscita grande interesse hoje em dia em toda América Latina, dentro e fora da Igreja. Aqueles que se preocupam com o problema da mudança social, da libertação das massas oprimidas, obrigatoriamente confrontam-se com o grande nível de religiosidade dessas mesmas massas. Está fora de dúvida, mesmo para os que questionam o sentido e as motivações mais autênticas desse fato, que o cristianismo com seus valores, normas, ritos e símbolos, atingiu profundamente a vida do povo. Não é o caso, nessas breves reflexões, de lembrar a presença de outras religiões ameríndias e africanas, pentecostais e espíritas, que atualmente no Brasil experimentam um período de crescimento. O que nos interessa é constatar como os setores assim ditos populares, camponeses, operários, marginalizados, que representam as classes menos favorecidas da atual sociedade, são também aqueles que vivem mais “intensamente” um tipo de religião que podemos chamar “popular”. No documento de Medellin é descrita como “uma religiosidade de votos e promessas, peregrinações e de um sem-número de devoções, baseada na recepção dos sacramentos, especialmente do batismo, recepção que tem mais consequências sociais que um verdadeiro influxo na pratica da vida cristã”.1 1 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, A Igreja na atual transformação da América Latina à Luz do Concílio, Petrópolis, Vozes, 1969, p. 89. Esse tipo de religião às vezes pode ser próprio também da classe alta ou da classe média; nesse sentido, religião popular é sinônimo de religião “tradicional”, não doutrinal, não interiorizada. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 19 19 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Nesse contexto, todo e qualquer esforço de mudança social é obrigado a confrontar-se com o problema da religiosidade popular. Não queremos colocar a questão teórica da “religião em si” ou da validade dos valores evangélicos num processo de libertação. Simplesmente refletir - a partir da pratica pastoral atual - sobre a relação entre religiosidade popular e mudança social. Essa religião é libertadora ou alienante? Como deve ser considerada? Quais os princípios pastorais que deveriam orientar o trabalho da Igreja? 1. A ATUAL ORIENTAÇÃO PASTORAL POPULAR Em síntese podemos dizer que a partir de Medellin o setor de Igreja mais sensível a uma renovação procura valorizar a religiosidade popular. Reconhece-se, em primeiro lugar, pelo menos no caso do catolicismo popular, a parte de alienação, seja em relação com o conteúdo mais autêntico do evangelho, seja em relação com o problema da libertação. Uma recente pesquisa no Brasil define o catolicismo popular como “aquele em que as constelações devocional e/ou protetora primam sobre as constelações sacramental e evangélica”, querendo dizer com isso que se trata de um “catolicismo desfigurado, desfalcado de seus componentes essenciais. É um catolicismo de certo modo privatizado”2. Um dos mais categorizados especialistas da América Latina concluía um seu estudo afirmando que “o risco de uma religião alienante e descomprometida diante do grave desafio latino-americano, e um dos aspectos negativos mais acusadores para o nosso catolicismo popular”3. Afirmase que este catolicismo popular não é evangelizado, isto é, não chegou a suscitar uma conversão profunda a partir do conteúdo central do evangelho: a Encarnação do Filho de Deus; fica numa visão dualista da realidade, contribuindo com isso para reforçar o sistema social tradicional. De um lado, existe o mundo alienado dos deuses, sem nenhuma relação com o mundo terrestre; do outro, o mundo profano da economia e da politica, não questionado a partir da fé religiosa. 2 PEDRO A. RIBEIRO DE OLIVEIRA, “Religiosidade Popular na América Latina”, REB, junho de 1972, p. 358. 3 ALDO J. BÜNTIG, Magia, Religión o Cristianismo?, Buenos Aires, Edit. Bonum, p. 202. Cf. CANDIDO PROCÓPIO F. DE CAMARGO, Católicos, protestantes, espíritas, Petrópolis, Vozes, 1973. 20 Revista ceas 233.indd 20 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Religiosidade popular e mudança social Os autores concordam em rejeitar, seja uma atitude ingênua, que consiste na aceitação pura e simples de toda e qualquer expressão religiosa do povo, atitude essa ainda presente em vários setores do trabalho pastoral, seja a atitude elitista que, considerando como superstição a maior parte dos gestos religiosos, os abandona, substituindo-os simplesmente com atividades sócio-politicas4. A solução apresentada vai na linha de uma atitude crítica que “acompanhe o crescimento dos valores da fé que estão envolvidos no catolicismo popular, até dar-lhes toda sua dimensão libertadora”5. Noutras palavras, nem simples aceitação, nem rejeição, mas discernimento diante do fenômeno religiosidade popular, para procurar encontrar e desenvolver o que há de válido. Nessa perspectiva multiplicam-se as pesquisas e os estudos sobre o assunto, na tentativa de uma maior compreensão e aproximação do povo. O documento sobre Pastoral Popular redigido no Encontro do Episcopado LatinoAmericano em 1968, em Medellin, pode ser considerado como a “carta magna” dessa atitude, por assim dizer “ecumênica”, frente à religiosidade popular. O documento adverte que “não podemos partir de uma interpretação cultural ocidentalizada das classes média e alta urbanas”. De fato ela contém “uma enorme reserva de virtudes autenticamente cristãs, especialmente na linha da caridade”. Se é verdade que suas expressões podem estar “deformadas”, podem também “ser balbucios de uma autêntica religiosidade, manifestada através dos elementos culturais disponíveis”. Na linha do Vaticano II, encontra-se nelas uma “semente oculta do Verbo”. Tudo isso indica o reconhecimento de que, atrás de gestos sagrados que podem ser até supersticiosos, existe um núcleo real de autêntica fé cristã. Conseqüência pastoral: não rejeitar, mas “aceitar com alegria e respeito” procurando “purificar e incorporar” 6. A religiosidade popular é considerada 4 A. BÜNTIG, “Dimensiones del catolicismo popular latinoamericano y su inserción en el processo de liberación”, in Fé cristiana y cambio social en América Latina, Salamanca, Sigueme, 1973, pp. 133-134 e SEGUNDO GALILEIA, “La fé como principio crítico de promoción de la religiosidad popular”, in ibid., p. 156. 5 GALILEIA, op. cit., p. 157. 6 A mesma perspectiva é apresentada no documento sobre Catequese: “A religiosidade popular é um elemento válido na América Latina. Não se pode prescindir dela, pela importância, seriedade Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 21 21 27/09/09 10:04 Cláudio Perani como o ponto de partida do esforço de evangelização e de libertação. Essa orientação não ficou nas recomendações de um documento, foi logo aceita e passou a influenciar muita pastoral renovada. É fácil constatar em vários encontros o grande interesse, respeito e simpatia que suscita o assunto “religiosidade popular”. Tudo isso nos leva a reconhecer uma atitude de grande valorização de religiosidade popular, considerada como algo de dinâmico, aproveitável para uma evangelização libertadora. É exatamente essa atitude, esse clima, que desejamos questionar, pois nos parece haver a possibilidade de uma certa ambiguidade ou equívoco prejudiciais para um trabalho crítico. 2. POSSÍVEL EQUÍVOCO FRENTE À RELIGIOSIDADE POPULAR Estamos evidentemente de acordo sobre a impossibilidade de prescindir da religiosidade popular. Temos visto que é algo de bem enraizado no nosso povo. Não pode ser ignorada, ao contrário, todo esforço para uma melhor compreensão é um avanço no caminho da evangelização. Nossa dificuldade é outra. Em primeiro lugar, levantamos algumas suspeitas, bastante secundárias na verdade, mas capazes de esclarecer melhor o problema. Podemos perguntar: qual a razão desta valorização da religiosidade popular? Por que essa aceitação tão fácil, pouco questionada, na qual todos se encontram, sejam conservadores, sejam renovadores, sejam simples pastores, sejam autoridades? E só falar do respeito devido à religiosidade popular que se obtém uma concordância geral. É bom perguntar se não existem algumas motivações inconscientes que pesam nessa direção. Por exemplo, o fato dos agentes pastorais - estrangeiros ou não - serem de e autenticidade com que é vivida por muitas pessoas, sobretudo nos ambientes populares. A religiosidade popular pode ser ocasião ou ponto de partida para um anúncio da fé”. 22 Revista ceas 233.indd 22 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Religiosidade popular e mudança social outra classe, de outra cultura e formação, poderia provocar um certo complexo de culpa que se procura superar, aceitando sem mais as atitudes das outras classes. Mais sutilmente essa fácil aceitação poderia esconder uma certa fuga diante dos problemas fundamentais que se colocam à pastoral de hoje, tais como o problema da secularização, do ateísmo que muitas vezes dela decorre, da dimensão sócio-politica, etc. Ao falar em religiosidade popular se fica necessariamente no âmbito da “religião”, encontra-se um povo não secularizado, não ateu, evitam-se as dificuldades suscitadas pela problemática política... Mas nosso questionamento é mais radical. Atinge também a atitude “popular” crítica. Será que esta valorização da religiosidade popular, mesmo se numa perspectiva crítica, não se constitui um falso problema? Fala-se de “enorme reserva de virtudes”, de “balbucios de autentica religiosidade”, de núcleo real de autentica fé. É isso mesmo que é equívoco e questionável e tem conseqüências importantes. Pois se isso fosse verdade, o processo a ser empregado num trabalho de conscientização teria de fato como ponto de partida essa religiosidade popular, a ser “purificada” e “incorporada”. Estaria dentro da linha evolutiva, reformista, de crescimento lento e constante, como os textos analisados parecem claramente indicar. Ao contrário, se isso não fosse verdade, isto e, se a religiosidade popular por si mesma não escondesse esse tesouro aproveitável, o ponto de partida deveria ser diferente, e o caminho a ser trilhado implicaria mais uma “ruptura”’ que “uma continuidade” com determinadas fórmulas. 3. O POVO E SUA RELIGIOSIDADE Antes de enfrentar o problema central do nosso questionamento, desejamos introduzir uma distinção. Estamos de acordo sobre o fato de a religião constituir algo de vital para o povo, Mesmo os elementos mais exteriores das Igrejas, considerados como “lei”7, por exemplo, o batismo, foram assimilados pelo povo como parte integrante de sua vida. O fato religioso é fundamental: penetra a mentalidade, os gestos, as atividades do povo. É 7 Cf. EDUARDO HOORNAERT, “Distinção entre ‘Lei’ e ‘Religião’ no Nordeste”, REB, 29 (1969), pp. 580-606. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 23 23 27/09/09 10:04 Cláudio Perani algo de globalizante, presente em todas as manifestações mais importantes da vida cotidiana, dando o sentido e a explicação de tudo. Podemos discutir, a profundidade ou superficialidade dessa presença. Em todo caso, deve ser reconhecida. É importante, nessa altura, distinguir entre o nível subjetivo e o nível objetivo da religiosidade popular. Uma coisa é o valor da pessoa religiosa e do povo que se expressa através de determinado simbolismo; outra coisa são os gestos sagrados, as idéias e as motivações religiosas que constituem a dimensão tradicional da religiosidade popular. Nós não colocamos o problema das intenções subjetivas, da boa ou da má vontade. Evidentemente, neste nível o povo é digno do máximo respeito. Não podemos nem devemos julgar. Não há dificuldade em aceitar como pressuposta uma grande interioridade, uma profundidade de moralidade e de fé, a partir de uma atitude sincera. Nesse sentido são válidas as afirmações de Medellin no sentido de valorizar as virtudes do povo, como também a necessária uma atitude de aceitação e não de dominação. Contudo, apesar de não podermos separar o aspecto subjetivo do objetivo, esse último tem uma consistência própria e pode ser considerado pelo que vale, Essa religiosidade popular, vista no seu aspecto ideológico, deve ser avaliada com atitude crítica e pode revelar muita parte de alienação, também ou sobretudo, na sua dimensão mais profunda. Pode existir no centro das massas populares, na vivência de sua religiosidade uma contradição entre as aspirações profundas da fé e suas expressões fortemente influenciadas por interpretações ideológicas dependentes do controle da cultura dominante. Com isso chegamos ao ponto central dessas nossas reflexões, o problema da análise científica do fato religioso. 4. ANÁLISE CIENTÍFICA DO FATO RELIGIOSO Por análise científica não entendemos aqui aquelas pesquisas - que hoje em dia se multiplicam - para levantar uma série de dados quantitativos ou para dar uma compreensão e classificação dos gestos sagrados em relação com a consciência do povo, isto é, para nós sabermos o que o povo entende e quer com aquelas expressões. Isso é valido mas não suficiente, sobretudo em relação com o nosso problema da “mudança social”. 24 Revista ceas 233.indd 24 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Religiosidade popular e mudança social As ciências humanas modemas, sobretudo a psicologia e a sociologia religiosas, nos proporcionam instrumentos de análise para aprofundar mais o conhecimento de um fenômeno, descobrindo no caso da religiosidade seu relacionamento com os outros níveis da realidade político, social, econômico, e revelando condicionamentos e causas desconhecidas no nível do consciente. Hoje em dia, com o desenvolvimento dessas ciências, não é mais lícita uma abordagem de um fenômeno, ignorando essa possível contribuição da análise cientifica. Em se tratando de religiosidade há um certo receio ou medo de provocar uma profanação, ao aceitar um método naturalista aplicado a uma realidade sobrenatural. Entretanto, não devemos esquecer que toda verdade humana, toda descoberta científica pode favorecer também o caminho da verdadeira fé. Em todo caso, esse tipo de abordagem não pode ser considerado como uma “interpretação cultural ocidentalizada das classes media e alta urbanas”, ao contrário, trata-se de algo válido que pode levar a descobrir o condicionamento de uma análise feita a partir de uma mentalidade de classe. Se não devemos reduzir a religião a um “fato cultural”, contudo a religião é também um “fato cultural”. Colocando-nos nessa perspectiva já sabemos que o nível do “espontâneo” é também o nível do tradicional e da conservação ordem existente. O nível do tradicional é o nível da interpretação cultural, de uma leitura religiosa do mundo, não secularizada, por si mesma não criadora. Opõe-se ao espontaneísmo a criatividade que faz o progresso, enquanto o tradicional leva a inércia. No caso da religiosidade do povo, então, a mais vivida e a mais espontânea é aquela que com maior facilidade levará a justificar a atual situação social e sera um sério obstáculo a toda e qualquer mudança em favor do povo. O verdadeiro respeito do povo e de sua religião não se identifica, então, com a aceitação pura e simples do que que ele diz e do que ele faz; tal aceitação pode ajudar a manter uma situação de escravidão e, em conseqüência, significa o maior desrespeito para com o povo. Por exemplo, é espontâneo para o povo afirmar que tudo depende de Deus: foi ele que quis ricos e pobres; aceitar isso significa não somente ter que justificar o classismo atual, mas também ficar bem longe do verdadeiro sentido da dependência de Deus. É um exemplo banal, mas serve para alertar sobre todo o conteúdo da religiosidade popular. Seria importante rever a atitude de respeito quase sagrado de vários agentes diante das manifestações religiosas do povo. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 25 25 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Que significa, então, aplicar uma análise científica ao fenômeno da religiosidade popular? Significa reconhecer três afirmações interdependentes8. 4.1. Primeira: a religião é fenômeno humano A afirmação vai contra o convencimento do crente que reconhece prioritariamente a intervenção de Deus no mundo e na história e considera a religião um acontecimento divino. Essa intervenção não constitui outro mundo ou outra história, tem necessariamente uma dimensão humana e está sujeita a todas as leis e a todos os mecanismos da realidade humana. Conseqüentemente, para julgar a religião, em primeiro lugar, sera necessário usar critérios humanos, critérios oferecidos por uma analise ideológica. Tais critérios humanos nos levam a repensar criticamente certos gestos e conceitos religiosos. O homem pode falar de Deus somente a partir de si, da própria realidade. E normal que projete em Deus sua condição e seus desejos, que pense o céu e a salvação a partir de sua situação sócio-econômico-política. A religião então apresenta-se como a solução das frustrações desta vida terrena, como a realização de tudo aquilo que não pode ser realizado aqui. Para o ateu isso é motivação suficiente para explicar o fenômeno religioso: nessa perspectiva Deus fica reduzido a uma produção humana. O crente recusa esta redução de Deus, pois para ele existem motivações que vão além dessas explicações e uma realidade objetiva não redutível à projeção humana. Isso, porém, não significa que não possa aceitar que cada formulação sobre Deus leve inevitavelmente o sinal do projeto do homem e da sociedade específico do crente. O sentido de afirmação “eu creio em Deus”, fica prioritariamente – não exclusivamente – sujeito a essa análise. Isto vale para toda a religiosidade, popular ou intelectualizada, moderna ou medieval. 4.2. Segunda: a religião é um fenômeno político Era espontâneo situar a religião num mundo sobrenatural, numa esfera espiritual to8 Aplicamos nessa parte as considerações de GIULIO GIRARDI no seu artigo “Veritá rioluzionaria e veritá cristiana”, idoc, 15 de setembro de 1973, pp. 34-44. 26 Revista ceas 233.indd 26 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Religiosidade popular e mudança social talmente alheia à problemática social e, particularmente, à política. Hoje em dia, se difundiu bastante a consciência do aspecto politico do fenômeno religioso em conseqüência da primeira afirmação. Significa que a religião se relaciona com o problema do poder e do conflito de classes, e deve ser examinada também desse ponto de vista. Não será difícil reconhecer o papel habitual da religiosidade popular no sentido de aceitação e de não contestação do poder reinante. Apesar de ser religião do povo é algo a serviço da classe dominante, guarda, por isso, um caráter de conservação da ordem tradicional. É verdade que muitos consideram a ambivalência da religião perante a sociedade formulando a relação dialética: religião como justificativa da ideologia dominante (ópio do povo), de um lado, e como protesto contra a ordem existente (germe de libertação), do outro. No caso, porém, da religiosidade popular o que prevalece é o primeiro pólo sobre o segundo.9 4.3. Terceira: a religião é um fenômeno superestrutural A religião, considerada como uma forma de ideologia e submetida às regras de uma análise ideológica, aparece como um fenômeno superestrutural. Significa que é um fenômeno derivado, produzido, cujas explicações residem alhures, fundamentalmente na base econômica. Evidentemente, o crente não pode aceitar um mecanismo rígido e reduzir o fenômeno religioso a uma superestrutura: reconhece seu conteúdo fundamental de fé. Mas é necessário reconhecer que a religião é também um fato superestrutural, isto é, fica necessariamente condicionada pelo peso do econômico e de todos os outros fatores humanos. Aplicando isso à religiosidade popular devemos nela distinguir um nível mais profundo no qual existem as motivações autenticamente religiosas; e outro fenomenológico e ideológico, no qual as motivações são de outra ordem, habitualmente sócio-econômicas. A partir dessas considerações somos obrigados a rever as afirmações que 9 Essa afirmação deveria ser mais matizada. Seria necessário um estudo de certos movimentos de massa, messiânicos, que parecem ter dado uma importante contribuição a mudanças e revoluções sociais aproveitando da força da consciência sócio-religiosa tradicional. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 27 27 27/09/09 10:04 Cláudio Perani valorizam o aprofundamento e a purificação da religiosidade popular, falando de um núcleo autêntico de fé. Isso pode ser válido – como afirmamos antes no caso de intencionalidade subjetiva e das aspirações mais profundas do ser humano; ao contrário, na ordem fenomenológica descobrimos elementos e causas que não têm nada a ver com a fé. Retomando o que foi anteriormente dito, podemos concluir considerando uma dúplice face da religião, a religião como “transcendência” e a religião como “ordem”. A primeira relativiza a ordem atual e constitui-se, por isso mesmo, como perene fonte de inspiração transformadora. A segunda, de tipo tradicional, consagra a ordem existente e impede qualquer mudança. 5. PARTIR DOS VALORES DO POVO OPRIMIDO Queremos terminar levantando como conclusão algumas orientações pastorais, sempre questionáveis e necessitantes de aprofundamento. Pelo que foi dito, parece importante nos meios pastorais uma tomada de consciência sobre a atual valorização da religiosidade popular. Em relação com os problemas da mudança social tal religiosidade parece apresentar uma grande carga conservadora. É provavelmente uma força que coopera para manter a situação atual, com sua desordem e injustiças. Seu aspecto potencial de protesto é, na prática, muito relativo e muito problemático. Com isso fica questionada uma pastoral que toma essa religiosidade como ponto de partida, dentro de uma perspectiva de evolução e de purificação. É melhor pensar mais em saltos qualitativos que importam necessariamente “rupturas” e conflitos. Não há autêntica renovação sem morte. Se podemos pensar que uma verdadeira fé e um evangelho autêntico compreendem elementos que favorecem uma mudança, tais elementos não devem ser procurados apenas no núcleo da religiosidade popular. Vimos que uma análise profunda nos revela outros conteúdos e outras motivações, que vão no sentido oposto de manter uma situação de poder de alguns e de opressão da maioria. Não parece muito acertada a tática pastoral de procurar resgatar o que de válido pode 28 Revista ceas 233.indd 28 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Religiosidade popular e mudança social conter a religiosidade popular. É melhor não dar peso, relativizar ou abandonar gestos e conceitos sagrados que, embora subjetivamente válidos, são incapazes de traduzir toda a força libertadora do evangelho e ser ponto de apoio para uma consciência da justiça social. O ponto de partida é outro: é o mesmo povo enquanto vive uma situação de injustiça e na medida em que toma consciência dessa situação. São as contradições reais do povo e os valores que vão se manifestando sempre mais, ao passo que o povo luta e se organiza: o sentido de solidariedade, o desejo de salvação, a força do sofrimento, a sensibilidade diante das injustiças, a consciência da própria insuficiência... São valores que se escondem ou se expressam também no âmbito da religiosidade popular, mas nesta correndo o risco de serem desviados. Devem ser traduzidos em termos de problemática social. É o ponto de vista de Medellin quando afirma que a “catequese atual deve assumir totalmente as angústias e esperanças do homem de hoje, a fim de oferecer-lhe as possibilidades de uma libertação plena”10. A opção para a libertação do povo oprimido não é somente o caminho para a mudança social, mas também o princípio fundamental de toda evangelização, desde o momento em que, pela encarnação, não há mais salvação pelos ritos ou gestos sagrados, mas unicamente pelo cumprimento do mandato do amor para com o irmão elevado a primeiro mandamento. A religiosidade popular é chamada a definir-se diante disso. Não negamos a possibilidade de se partir do apego a valores religiosos, como por exemplo à crença na Palavra de Deus, para começar um processo. De fato o evangelho pode ser considerado como uma força de libertação e pode levar a uma conscientização. Ainda não é mudança social. Essa exige outro ponto de partida, outra análise, outros instrumentos de luta. Em conclusão, não é a partir da religiosidade popular que poderá ser operada uma mudança social, mas é o contrário: a luta pela mudança social e pela estruturação de uma nova sociedade terá como conseqüência a formulação de uma nova religiosidade. A evangelização da religiosidade popular, mais do que fruto de uma ação específica, será conseqüência de um trabalho de libertação com o povo. 10 Documento sobre a Catequese, n.º 6. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 29 29 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Por último, gostaríamos de tirar um pequeno equívoco. A atitude de relativizar a religiosidade popular não significa o abandono da linguagem religiosa. A religião não é, necessariamente, o “ópio do povo”. O vinho da Eucaristia não simboliza a fuga no entorpecimento, mas o sangue de um Justo oferecido pela libertação dos homens. Dentro de um processo de transformação social, para o crente, há necessidade de reinterpretar os dados religiosos e de encontrar novas fórmulas de expressão. A linguagem científica é pobre de símbolos e, por isso, não pode abranger toda a realidade. Cabe à teologia manter a fidelidade à sua linguagem simbólica, procurando interpretá-la e descobrir a contribuição que pode dar para a progressiva libertação dos homens. Romper com determinados gestos ou conceitos religiosos não deve significar romper com Deus: há possibilidade de reencontrá-lo e reexpressá-lo a um nível mais profundo. 30 Revista ceas 233.indd 30 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A AÇÃO DA IGREJA NAS BASES: DA INTEGRAÇÃO À LIBERTAÇÃO CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 39, set.-out. 1975) É consciência adquirida hoje na América Latina de que o ponto de partida da reflexão teológica deve ser a Igreja concreta. É nela que se manifesta a novidade histórica, se encontra o princípio da renovação e, de consequência, se revela Deus. Procuramos nestas breves e práticas reflexões, encontros e contatos com a base. Uma das tendências dessa prática eclesial, que pode ser descoberta com facilidade sem precisar de pesquisa, e aquela que poderíamos chamar de “tendência para a base”. Observa-se na igreja brasileira uma migração notável na direção das classes populares. Resta ver quais as dimensões e a consistência do fenômeno. Em que consiste? Aqueles que dedicam tempo integral a uma atividade eclesial, em geral, aquelas pessoas que o povo considera pessoas de igreja assumem outro ambiente e estilo de vida e passam a morar em bairros populares, no interior do pais, no meio de operários e camponeses. Há um começo de mobilidade social (ainda limitada?) da classe média para as classes populares, do centro da cidade para a periferia, da cidade para o interior. Vários colégios de ensino médio são fechados e as irmãs passam a viver numa pequena comunidade de um bairro popular. Essa mudança deu origem a novas formas de trabalho, assistindo-se hoje a uma mul- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 31 31 27/09/09 10:04 Cláudio Perani tiplicação de “comunidades eclesiais de base”, onde “base”, na maior parte dos casos, significa exatamente, os estratos mais baixos da população. Sobre esse fenômeno desejamos refletir, considerando, em primeiro lugar, o aspecto particular deste “viver com a base”, procurando aprofundá-lo através de três degraus: 1. presença; 2. presença de ação; 3. presença de ação critica. Em segundo lugar, como lógica consequência e como contribuição mais importante do artigo, refletiremos sobre o problema de uma presença que “vem de fora” e sobre a desejada “identificação” com as classes populares, reconhecendo como necessária a influencia de pessoa “de fora”, no sentido de alguém que já tenha uma consciência esclarecida. 1. PRESENÇA Não é difícil descobrir as razões que podem ter levado pessoas de igreja para uma presença nos meios populares. Habitualmente houve na história da igreja um dinamismo na direção dos mais pobres que suscitou varias iniciativas e novas experiencias. O evangelho pede insistentemente um compromisso de vida e um engajamento preferencial com os pobres. A crise do mundo com suas diferenças sociais violentas, o processo de secularização em andamento e os movimentos que precederam e deram conteúdo ao Concílio, levam a igreja hoje a tomar consciência de um grande “aburguesamento” e a procurar abrir sua atividade para outras classes. Essa consciência é mais viva na América Latina onde os bispos reconhecem que “a hierarquia, o clero e os religiosos são ricos e aliados dos ricos”1. Dai a insistência para uma “distribuição tal dos esforços e do pessoal apostólico que se dê preferência efetiva aos setores mais pobres, necessitados e segregados”2. No caso concreto do Brasil o planejamento da Pastoral de Conjunto faz anos insiste 1 Conselho Episcopal Latino-Americano, A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio, Conclusões de Medellín, Documento sobre a Pobreza da Igreja, Petrópolis, Vozes, 1969, p. 145. 2 Ibid, p. 147. 32 Revista ceas 233.indd 32 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A ação da Igreja nas bases: da integração à libertação na linha das Comunidades Eclesiais de Base3 que - apesar de em teoria não fazerem distinção de categorias - na prática se desenvolveram entre as mais populares, engajando um sempre maior contingente de lideranças. Habitualmente essa presença consiste em ir morar num bairro popular ou no interior, levando uma vida simples, procurando o contato de casa em casa... Não existe um objetivo concreto, a não ser o desejo de uma maior solidariedade com os oprimidos, procurando amizade, prestando serviço, conscientizando. Trata-se de um entrosamento com situacões e pessoas concretas na linha do conhecimento e do afetivo, em primeiro lugar. Presença vivencial, de testemunho. Reconhecemos o valor deste primeiro passo. É em muitos casos um caminho indispensável para romper com determinados hábitos e esquemas mentais de caráter burgues-clerical que aprisionam as pessoas de igreja. A nova situação é pressuposto para conseguir compreender mais concretamente as necessidades das classes populares. Sai-se de uma aceitação universalista e teórica de toda e qualquer pessoa e percebese valores, contradições, sofrimentos, escravidões, no concreto de um contexto bem limitado. Questionamento pessoal e conhecimento do outro: as duas coisas vão juntas e se condicionam reciprocamente. Tudo isso é importante, mas insuficiente. Deve-se colocar o problema da presença em termos mais críticos. Pode ser uma presença integradora ou libertadora, isto é, pode ajudar as pessoas a aceitarem a situação presente ou pode estimular um trabalho de mudança. O problema não pode ser colocado e resolvido só em termos “subjetivos” de autenticidade. A eficácia da presença, medida pela ação que exige objetivos bem concretos e limitados. Às vezes parece existir uma prioridade do “contemplativo” no sentido de que se coloca como único e absoluto o valor “vivência”, ficando assim na impossibilidade de pegar e questionar a realidade objetiva que fica desvalorizada. Isso nos leva a considerar o segundo ponto da nossa exposição: o problema da ação. 2. PRESENÇA DE AÇÃO 3 Cf. os trabalhos de R Caramuru, Comunidade eclesial de base: uma opção pastoral decisiva, Petrópolis, Vozes, 1968 e J. Marins, Igreja local, Comunidade de Base, S. Paulo, 1968. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 33 33 27/09/09 10:04 Cláudio Perani A pergunta que se coloca é a seguinte: “viver com” ou “agir com”? É verdade que existe uma serie de praticas as mais variadas possíveis: distribuição de alimentos, de vestuários, de remédios..., atendimento médico, cooperativas e artesanato, organizações educativas com cursos de todo tipo, desde alfabetização a cursos profissionais, grupos de evangelização e de catequese para todas as idades. encontros litúrgicos, etc. Prevalecem, porém, muitas vezes uma supremacia do elemento “palavra” (sobressaem os encontros, as reuniões, a doutrinação ... ) que suscita uma certa insatisfação; ha a impressão de não morder a realidade, de perder tempo, de não alcançar nada. Conseqüências? Às vezes resolve-se julgando que há um imediatismo excessivo ou falta de fé, outras vezes rejeita-se toda e qualquer discussão teórica exigindo atividades, “fazer algo”. Um dos motivos desse impasse, ao nosso ver, depende do fato que não dá prioridade à ação. Apesar de afirmar teoricamente o valor do engajamento e do serviço e a necessidade de ação, a evangelização muitas vezes está num esquema que dá prioridade à palavra, deixando em segundo lugar a ação. Isso determina a dificuldade de recuperála, pois fica-se sempre num esquema conceitual. A reflexão que não parte da prática dificilmente pode levar à pratica. Essa última é prioritária: a praxe deve preceder toda reflexão. Nessa linha, o “viver com” tem sentido só se consequência de um “agir com”. Apresenta-se uma objeção: a bíblia não dá prioridade à palavra? a evangelização não consiste em anunciar a palavra do evangelho? Devemos reconhecer isso, sem contudo renunciar à nossa critica anterior; ao contrario, fica confirmada também por uma reta interpretação dos dados bíblicos a exigência fundamental da ação. O sentido de “palavra” que orienta muita atividade de igreja é interpretado a partir da categoria “conhecimento” como simples comunicação entre homens, como transmissão de idéias, de conceitos, de doutrinas. contra o verdadeiro sentido bíblico. Para a bíblia a “palavra” tem dois aspectos distintos, mas indissociáveis: revela ao mesmo tempo que opera. É algo dotado de eficácia que exprime a pessoa toda, seu dinamismo e sua ação, e que importa em acontecimentos que constróem o mundo e fazem a história. Também o ministério da igreja, a evangelizacão, que é serviço da Palavra de Deus, deve ser entendido como obra de salvação e potência de 34 Revista ceas 233.indd 34 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A ação da Igreja nas bases: da integração à libertação vida. O evangelho, boa nova, é sempre prioritariamente uma ação, um acontecimento de “saúde” que depois é interpretado. Se é verdade que não podemos tirar dessas afirmações uma metodologia de ação nem uma filosofia científica de mudança da sociedade, fica adquirido o conteúdo concreto da nossa vida: deve ser ativa, dando prioridade à ação, à transformação, ao trabalho para construir o homem novo. A prática é, na dinâmica da vida, ponto de partida e ponto de chegada. Assim sendo, todo “viver com” deve ser questionado e interpretado a partir do “agir com”. A presença da liderança de igreja deve ser uma presença de ação. Com isso nem tudo esta dito. Que tipo de ação? que tipo de prática? O equívoco entre uma presença integradora (mantenedora da situação atual) ou libertadora (favorecendo uma mudança positiva) deve ser posta também para a ação. Nem toda ação e libertadora. Quais os requisitos? 3. PRESENÇA DE AÇÃO CRÍTICA O problema do tipo de ação é menos notado, ou melhor, raramente chega a colocar-se em termos mais críticos. Como vimos, há uma série de atividades, muitas de caráter promocional, que podem ficar resumidas dentro dos dois extremos que as caracterizam: empreendimentos de cunho econômico e· atividades de tipo educativo. Através delas o problema da mudança libertadora é atingido na sua raiz? Também entre aqueles que estão “agindo”, muitas vezes, existe uma grande insatisfação com o resultado da ação. Percebe-se que algo não funciona. Muitos resolvem o problema numa linha voluntarista, exigindo maior generosidade e maior coragem, sem questionar a ação em si mesma, em seus objetivos e instrumentos. Mais difícil ainda é encontrar pessoas que coloquem o questionamento mais além da ação visível, no nível da visão de realidade, possuída. Tocamos aqui o problema fundamental da ideologia que influencia toda atividade humana, a eclesial também. Entre os vários sentidos dessa palavra, aludimos aqueles mecanismos inconscientes que operam numa determinada direção, que pode ser bem diferente daquela explicitamente querida. Trata-se de um sistema de representação e Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 35 35 27/09/09 10:04 Cláudio Perani de valores que a classe dominante de uma sociedade determinada produz e que influencia todo e qualquer julgamento e decisão. É como uma prisão, um viver dentro de um mundo fechado sem perceber isso. Uma pessoa de igreja que se transfere para um bairro traz consigo toda uma mentalidade e uma escala de valores que provem de outro ambiente. Não é difícil percebê-lo. Habitualmente, também nos meios “renovados” da “pastoral”, subsiste uma visão antropológica personalizante com forte conotação individualista e subjetivista, dá-se prioridade ao egoísmo e à boa vontade na explicação das causas das injustiças e na procura dos caminhos de mudanças, sem perceber suficientemente o problema estrutural e conseguir dar um conteúdo objetivo a esse egoísmo ou boa vontade. Prevalece uma perspectiva moralizante que apela continuamente para a consciência. Mas consciência de que? Evita-se todo e qualquer confronto, propondo a cada passo “diálogo”, “entrosamento”, “união”, que ficam superficiais e impossíveis porque não se consideram suficientemente as profundas divisões estruturais que existem. Uma falsa perspectiva universalista leva a ignorar com facilidade a divisão da sociedade em categorias a partir de interesses fundamentais e diferentes, no momento em que tais divisões são aceitas na prática e, portanto, confirmadas. Hádificuldade para inserir o “culto dominical”, os “círculos bíblicos”, como também muita atividade promocional, num quadro mais amplo de mudança. Podemos acrescentar o perigo de a “visão” permanecer classista no sentido burguês do termo, também no fato como tal da constituição de uma liderança de igreja socialmente distinta e definida, acima e em oposição aos outros, considerados quase como cristãos de segunda ordem. Toda essa mentalidade ideológica e continuamente alimentada por uma teologia elaborada num contexto diferente, vulgarizada e transmitida ao povo com o qual se trabalha. Juntamente com as pessoas com sua mentalidade chega no bairro ou no município do interior toda uma literatura, cartazes, filmes, subsídios de qualquer tipo, verdadeiro material “estrangeiro”, embora “made in Brazil”, porque elaborado dentro de outros interesses e com pressupostos classistas. Com isso não queremos negar o valor do “vir de fora”. Vamos ver que algo nesse sentido é necessário. Questionamos o conteúdo da invasão. Várias pessoas com facilidade advertem a dificuldade desse tipo de presença e procu- 36 Revista ceas 233.indd 36 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A ação da Igreja nas bases: da integração à libertação ram resolver a partir do principio do profundo respeito que se deve ao povo. Procuram despojar-se de toda influência própria, favorecendo a iniciativa e a responsabilidade dos interessados. E inútil dizer do valor dessa perspectiva que, porém, deve ser bem entendida, pois radicalmente o “respeito ao povo” não muda a natureza do problema. Há o perigo de cair em um grande “espontaneísmo”; aceitando sem mais, a primeira palavra do povo porque do “povo”, com a consequência de uma pratica ingênua e, por isso, não transformadora. É preciso lembrar, a propósito de ideologia, sua universalidade, isto é, por ser da classe dominante não se absorve só na mesma, mas é absorvida também pela classe dominada. O povo interioriza as forcas que o tornam dependente.4 É por essa razão que toda prática “espontânea” habitualmente coopera para manter a situação existente. Que fazer? Deve ser superada a simples presença de ação para pôr o problema de uma ação crítica. Essa exige, em primeiro lugar, a tomada de consciência do problema ideológico. Há uma grande dificuldade, pois por definição a ideologia é inconsciente, a pessoa que vive dentro de um mundo ideológico fechado não o sabe. Mas não é impossível introduzir um processo de mudança. Já no nível propriamente teológico todos nós temos experimentado uma troca de mentalidade e de valores que era impensável antes. Não há dúvida alguma de que a experiência de miséria constatada na nova situação de vida é fundamental para pôr em crise o próprio sistema. Não é suficiente. È preciso recorrer a novas categorias, novos conceitos que possam questionar a visão antiga. Tudo isso deve vir de fora, num certo sentido, pois a ideologia se conhece “desde fora”. É o problema da análise da realidade da ação. É necessário encontrar um instrumental de análise que nos ajude a compreender e superar a consciência e as práticas ingênuas do povo, a ter uma visão mais estrutural do contexto, a descobrir todas as implicações de conteúdo econômico, social e político de uma ação pastoral, numa perspectiva dinâmica, se queremos contribuir para uma mudança efetiva. Somos obrigados a recorrer à contribuição das ciências sociais, procurando uma contínua dialética entre teoria e prática, questionando e aprofundando a primeira a partir da segunda, e vice-versa. Residir num bairro, trabalhar com as classes populares de maneira nenhuma dispensa de um aprofundamento teórico. Deve-se partir da pratica, mas essa deve ser continu4 Cf. “Dependências e libertações”, em Cadernos do CEAS, n.º 24, abril de 1973, pp. 14-25. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 37 37 27/09/09 10:04 Cláudio Perani amente revista, “teorizada”, para modificar-se e tomar-se urna prática sempre mais iluminada e transformadora. É somente nesta altura que poderemos falar de urna presença de ação critica. 4. VIR DE FORA? Resta-nos refletir mais explicitamente sobre um problema continuamente levantado e dificilmente resolvido: o problema de uma presença que vem de fora e da identificação com as classes populares. Habitualmente a transferência para a base é motivada pelo desejo de uma solidariedade com os pobres, procurando a maior identificação possível. Não há muita ilusão nisto? Pode-se alcançar certa convivência, condições materiais de vida mais simples, mas a pessoa de igreja habitualmente goza de um esquema de segurança diferente, sobretudo possui um grau de consciência e toda uma bagagem cultural que não pode de maneira nenhuma abandonar, mesmo que não queira utilizá-la. Mas a pergunta vai mais longe. É necessário um maior nivelamento ou poderia ser até prejudicial? Que tipo? Em que sentido? Evidentemente, todo e qualquer esforço de adaptação e de compreensão da nova situação é válido. Nós queremos esclarecer o problema em termos mais “teóricos”, mostrando como seja necessária, para o desenvolvimento de uma comunidade, a atividade de alguém “de fora”, explicando em que sentido entendemos o termo “de fora”. Podemos falar da necessidade da colaboração de “educadores” (habitualmente de classe média) que já tomaram consciência de determinada estrutura de exploração e decididos a colocar-se a serviço dos interesses dos estratos mais baixos da população. A presença de alguém com consciência crítica e disposto a favorecer os interesses dos oprimidos, é indispensável – pelo menos no início do processo – para que esses últimos iniciem um movimento de libertação. Sozinhos não conseguem por falta não de vivência, mas de consciência crítica: estão presos pela ideologia dominante. Não se dá geração espontânea. Há necessidade de uma espécie de “catalisador” que provoque a centelha e desapareça. 38 Revista ceas 233.indd 38 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A ação da Igreja nas bases: da integração à libertação Nesse processo5, em um primeiro momento, o oprimido questiona o “educador” para que tome consciência das contradições vividas pelo primeiro. Num segundo momento, a resposta do “educador” é uma educação conscientizadora que leva o oprimido a assumir contradições que vivia realmente, sem porém ter uma consciência reflexiva disso, isto é, sem conhecer as causas mais profundas, permitindo-lhe agora iniciar uma ação libertadora. Nesse sentido alto deve vir “desde fora”, de uma consciência já esclarecida, alimentada com conceitos que provém de uma análise da realidade e que devem ser revistos continuamente a partir da prática, mas que não se encontram na consciência do oprimido. À medida que o processo cresce, deveria diminuir o papel do “educador” até o oprimido tomar nas mãos inteiramente sua própria ação de transformação e de libertação. Tudo isso aplica-se à pastoral e pode iluminar o papel da liderança de igreja que decide pôr uma presença na base. Para que seja uma presença de ação crítica deve ser uma contribuição de alguém que não impõe “necessidades” próprias ao povo, mas que, por vir “desde fora”, tem possibilidade de ajudar o povo a reconhecer melhor suas verdadeiras necessidades e a lutar para alcançá-las. 5 Para essa parte aproveitamos o artigo de J. C. Scanonne, “La liberación latinoamericana, ontología del proceso autenticamente liberador”, Stromata, jan.-jun. 1972, pp. 107-160. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 39 39 27/09/09 10:04 Revista ceas 233.indd 40 27/09/09 10:04 COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE: ALGUNS QUESTIONAMENTOS CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 56, jul.-ago. 1978) 1. UM NOVO DESPERTAR “Do Amazonas ao Rio Grande do Sul vêm sendo criadas as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). De uma região para outra, elas variam muito em suas fórmulas, aspectos, condições. Mas todas estruturam-se dentro de um mesmo princípio filosófico: inspiradas no Concílio Vaticano II, defendem a libertação do homem por seu próprio esforço. Acusadas de comunistas ou subversivas, as Comunidades de Base têm como uma de suas principais funções o desenvolvimento da consciência política - apartidária e não ideológica - e o despertar do povo para seus direitos. Com isso, desencadeiam um processo de reflexão crítica sobre a realidade dos problemas locais e as causas dessas realidades”. Com tais palavras o Jornal do Brasil (14/05/78) introduzia uma matéria sobre as Comunidades Eclesiais de Base. O fenômeno parece ter-se ampliado a tal ponto que chega a ter uma ressonância política, sendo que MDB e ARENA estão preocupados com as mudanças verificadas em suas bases populares. Há anos no Brasil fala-se em Comunidades Eclesiais de Base como uma das esperanças de renovação eclesial. O processo começou no início da década dos 60, impulsionado oficialmente pela orientação da CNBB através de seu Plano de Emergência e do Plano de Pastoral de Conjunto. Sem dúvida, dentro do clima de renovação suscitado Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 41 41 27/09/09 10:04 Cláudio Perani pelo Concílio Vaticano II, contribuíram para isso movimentos como o Mundo Melhor, a Ação Católica Especializada, a renovação catequética, etc., mas sobretudo a exigência da situação concreta da falta de padres, tradicionais líderes das comunidades cristãs, que obrigava a tentar soluções novas. Não devemos esquecer os motivos mais estruturais: a mudança histórica da sociedade, novas condições de vida, a ascensão das classes populares, etc., colocando novas exigências para a igreja. O ponto de partida foi bastante eclesial: “Na situação brasileira, as paróquias, no seu estado atual, não têm condições de se constituírem nestas comunidades vivas, missionárias e educadoras da fé”. Atualmente estamos numa fase de um certo amadurecimento, podendo contar já com uma experiência de anos, com uma história de tentativas, fracassos, sucessos e descobertas; história e experiência que permitiram a realização em Vitória do Espírito Santo e em João Pessoa de três grandes encontros de representantes de CEBs, comparados com os Sínodos da Igreja primitiva. O primeiro realizou-se de 6 a 8 de janeiro de 1975 com a participação de representantes de comunidades do Brasil inteiro; o segundo teve lugar de 29 de julho a 01 de agosto de 1976, com a presença de representantes e membros de 24 igrejas do Brasil, localizados em 17 estados, num total de quase 100 pessoas, entre leigos, religiosos, padres e bispos; também estiveram presentes representantes de outros países da América Latina e da Europa. O terceiro acaba de realizar-se de 19 a 23 de julho em João Pessoa depois de uma preparação prévia e demorada, feita por leigos nas várias regiões do país, escolhendo as experiências mais críticas. Mais que nos primeiros dois, neste encontro esteve presente a situação de vida concreta das camadas populares: problema de terra, custo de vida, bóias-frias, loteamentos clandestinos, etc. Devemos reconhecer que hoje, no Brasil, no âmbito das classes populares existe uma grande riqueza de tentativas de renovação eclesial, sob o nome de Comunidade Eclesial de Base, não sempre explicitamente aceito e utilizado. Há também uma literatura incipiente, que já pode oferecer amplo material de consulta1 1 Cf. os ns. 81, 95 e 96 da revista Sedoc; Comunidades: igreja na base, CNBB - Paulinas, 1974; ANTONIAZZI, A., “A comunidade eclesial de base”, Atualização, janeiro 1970, pp. 1-10; BARALHIA, M., Evolução das Comunidades Eclesiais de Base, Petrópolis, Vozes, 1974; BARBÉ, O., Retrato de uma Comunidades de Base, Petrópolis, Vozes, 1970; BARREIRO, A., “Comunidades 42 Revista ceas 233.indd 42 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos Em primeiro lugar, os inúmeros relatórios das comunidades, descrevendo sua história, seu começo sua evolução, dificuldades, descobertas, realizações, etc. É um material vivo, preocupado em contar o que de fato acontece, de maneira simples e descritiva, elaborado na maioria das vezes por agentes de pastoral, mas também por membros das comunidades até em versos. Secundariamente, existem estudos, que vão se multiplicando, com as primeiras pesquisas e reflexões teóricas, feitos por pessoas que acompanham de perto o crescimento das comunidades. Lembramos sobretudo os estudos promovidos pela CNBB e pelo CERIS e as análises dos peritos dos dois encontros de Vitória. Apesar de tais estudos, não é fácil ter um quadro bastante objetivo da situação da CEBs, pois estamos diante de uma realidade muito diversificada, seja considerando as experiências concretas seja analisando as várias interpretações já esboçadas. Mesmo ficando no âmbito das camadas populares - uma igreja que nasce do povo - atrás da palavra CEB encontramos estruturas e orientações bem diferentes, algumas vezes a palavra querendo indicar uma renovação mais profunda, um conteúdo verdadeiramente novo, outras vezes simplesmente acompanhando a moda teológico-pastoral e encobrindo o conteúdo de sempre - rótulo novo em garrafa velha. A tal ponto que hoje o termo CEB não é discriminatório de uma tendência renovadora na igreja brasileira mas se deixa perpassar pelas várias orientações que diversificam as atuais tendências dentro da igreja. Há também variedade de análise segundo os diferentes pontos de vista dos autores. Pode ajudar e enriquecer a compreensão das experiências, mas também não sempre contribui para discernir o mais válido e importante do esforço de renovação. Trata-se de um processo em andamento, por isso mesmo toma-se difícil ou até impossível - uma sistematização. Também podem ser perigosas, por que demasiadamente apressadas, certas afirmações. Contudo, diante dos resultados obtidos até hoje e das análises feitas, é sempre possível e necessário dizer algo, não só para reconhecer os sucessos, mas tam¬bém para apontar as ambigüidades e os riscos que podem existir. Eclesiais de Base e Evangelização dos Pobres”, Síntese n. 9, jan/abril 1977, pp. 17-66; BOFF, L., Eclesiogênese: as Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja, Petrópolis, Vozes, 1977; CARAMURU, R., Comunidade Eclesiais de Base: uma opção pastoral decisiva, Petrópolis, .Vozes, 1968; COMBLIN, J., “As comunidades de base como lugar de experiências novas”, Concilium 1975, n. 4 pp. 457-466; GREGORY, A., Comunidades eclesiais de Base, Petrópolis - Rio, Vozes - Ceris, 1973; MARINS, J., Igreja Local: Comunidade de Base, S. Paulo 1968. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 43 43 27/09/09 10:04 Cláudio Perani É o objetivo destas breves linhas, elaboradas a partir do ponto de vista da “justiça social”, considerado não como particular e secundário, mas como o ponto de vista central da bíblia, particularmente dos profetas e do Novo Testamento. Para os profetas há uma estreita relação entre a fé pura em javé e a justiça social. No esforço de renovação de Israel o protesto social dos profetas nasce de sua consciência religiosa e, ao contrário, a verdade da consciência religiosa é vista na realização da justiça social. Tal critério deve nortear, hoje também, o esforço de renovação da igreja, evitando o perigo de absolutizarmos outros fatores, como por exemplo a “comunidade” ou o “culto”. Tudo isso é conforme à orientação do episcopado da América Latina, expressa nos documentos de Medellín, onde - sem dúvida - o problema da justiça social é um problema central e ponto de referência ao tratar dos diferentes asssuntos. 2. OS ELEMENTOS EMERGENTES Ao considerarmos a nova prática eclesial não é difícil individuar as características principais das CEBs, aqueles elementos que são mais considerados e sobre os quais os mesmos interessados voltam com maior insistência. 2.1. O “comunitário” “O povo se reúne uma vez por semana em grupos de 20 a 30 pessoas nos diferentes pontos do bairro”. É a descrição que se encontra num relatório de uma comunidade; é também o que se passa na maioria dos casos. As pessoas se reúnem. A partir de uma mesma realidade territorial, de uma situação de vizinhança, ou a partir de interesses comuns, formam-se grupos os mais variados possíveis. Grupos de evangelho, grupos de culto, grupos para a preparação dos sacramentos, grupos de promoção humana, grupos de adultos, grupos de capelas, grupos de cooperativas de vário tipo, etc. Deixamos de lado a diferente utilização do termo “comunidade” empregado, sem dúvida, com grande freqüência e para indicar realidades muitas vezes entre si diferentes; também não pretendemos considerar a distinção sociológica entre grupo e comunidade, nem a utilização teológica do termo. Constatamos este encontro de pessoas, desde a simples visita até uma reunião bastante ampla, mas sempre permitindo o que os sociólogos chamam de relações primárias. (relações face a face). Habitualmente trata-se de pequenos grupos, onde as pessoas se conhecem entre si, po- 44 Revista ceas 233.indd 44 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos dem participar com facilidade, colocar seus próprios problemas, realizar um ambiente de fraternidade, de auxílio mútuo, de comunhão de ideais. Tal encontro representa uma certa novidade, desencadeia um certo dinamismo, abre perspectivas e possibilidades. Significa uma reação contra uma igreja anônima e alienante, onde prevalece a estrutura das normas, do culto, da hierarquia. Sem dúvida, tal multiplicar-se de grupos acompanha o mesmo fenômeno presente na sociedade hodierna: o surgimento de grupos onde as pessoas se conhecem, têm um rosto, podem ser aceitas, para reagir contra o anonimato imposto pela atual organização do convívio humano. Pode representar também um elemento importante no esforço de renovação da igreja e de evangelização, pois a salvação se apresenta como “encontro”, “comunicação”, “aceitação dos outros”, “comunhão”. Tudo aquilo que favorece a “comunhão” entre os homens deve ser perseguido e realizado. Aqui está também o limite ou o risco do aspecto “comunitário”. Aparece na medida em que a comunidade se organiza em oposição à sociedade e o grupo de igreja se constitui absolutizando, de alguma maneira, o elemento comunitário, fora de um contexto de realidade, procurando um diálogo e uma paz muito interna, esquecendose dos problemas e dos conflitos do conjunto da sociedade. É o perigo muito real de transformar-se em seita no dúplice sentido de seguir um ideal interno e de separar-se do ambiente externo. É o tal de “fechamento” advertido em muitas experiências. É interessante notar como em quase todos os relatórios das CEBs se insista sobre o risco do fechamento e se apele para a abertura. Há uma clara percepção deste problema; talvez não exista uma igualmente clara visão das causas que podem estar na origem do fechamento. Colocam-se determinadas premissas que quase inevitavelmente levam àquilo que não se quer e se condena. Ocorre que, de início há uma visão de sociedade - pretensamente cristã - que leva a não considerar os conflitos, a desprezar as tensões, a ignorar as forças de poder que operam divisões e opressões. Como conseqüência, é fácil pensar na solução comunitária como uma ilha de paz, modelo de uma sociedade cristã sem conflitos. Tal orientação separa a comunidade da sociedade e a torna necessariamente fechada. Outra orientação consiste em pensar a comunidade como um atendimento a necessidades internas e não como serviço ao mundo. Não deveria haver oposição entre os Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 45 45 27/09/09 10:04 Cláudio Perani dois aspectos. De fato é muito fácil que se crie uma separação na medida em que se considerem prioritariamente as necessidades internas do grupo, religiosas ou sociais, em lugar de pensar o trabalho e a organização a partir dos outros, das necessidades da maioria, sobretudo da necessidade de solidariedade com os mais fracos. Este é o caminho mais difícil, inclusive porque rompe com certas estruturas de identificação que podem dar maior segurança, a segurança da peculiaridade e do isolamento, em lugar da confiança no Espírito que leva a superar os limites do grupo fechado para abrir-se ao verdadeiro universalismo. 2.2. A “participação” Ao considerarmos a renovação da igreja pelo aspecto comunitário, coloca-se como conseqüência o problema da participação de todos os membros. Neste sentido o termo “base” significa a base da igreja, a totalidade dos batizados habitualmente considerados como passivos frente à hierarquia (bispos, padres, religiosos). Vimos que - talvez por uma razão negativa: a escassez de padres - a hierarquia eclesiástica no Brasil foi obrigada a favorecer a responsabilidade de outros membros. A participação dos leigos é uma das características da experiência das CEBs. Tal participação se exerce em vários níveis e setores; no culto e na catequese, domínio próprio dos padres; nas obras de caráter promocional; na reflexão e nas tomadas de decisão. Todos falam, manifestam seu parecer, participam das decisões, assumem funções... Particularmente considerado e debatido é o problema dos novos ministérios, não somente entendido como substituição dos padres, mas sobretudo como expressão de novos serviços a serem assumidos segundo as novas necessidades. Há comunidades - até inteiras dioceses - onde os leigos estão assumindo uma responsabilidade efetiva na orientação da pastoral, ajudando a desclericalização da igreja e contribuindo para uma maior inserção no mundo. Sobretudo quando se abrem espaços para o crescimento das classes populares, a igreja consegue renovar-se profundamente, descobre seu comprometimento com o poder e tem maiores possibilidades de prestar um serviço eficaz para toda a sociedade. Verifica-se um processo de democratização interna bastante promissor, porque na medida em que se afirma, obrigará a autoridade a abandonar um certo exercício do poder para assumir uma função mais de serviço e a comunidade eclesial transformarse-á num conjunto de fiéis mais conscientes e participantes. Tudo isso poderá ter um 46 Revista ceas 233.indd 46 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos reflexo na atual sociedade brasileira, capitalista e autoritária, onde as classes populares são privadas da participação econômica e política. Isso só é possível, evidentemente, a partir de uma efetiva democratização interna e de uma abertura da comunidade à problemática mais ampla da sociedade. Como vimos na introdução, já constatamos alguns resultados na prática. Se está tomando forma uma igreja que nasce com o povo, uma igreja mais de base, não faltam perplexidades e reservas quanto ao problema da efetiva democratização. Constatamos em vários casos um real assumir da base que adquire poder e consegue adaptar e mudar a orientação pastoral. Ao contrário, muitas vezes a mudança é só aparente e a participação é mais nominal ou formal em lugar de atingir o conteúdo. É fácil, apesar de certos mecanismos novos e aparentemente democráticos, que os leigos entrem no esquema do padre, ficando este sempre o dono da bola. No cumprimento das novas funções procura-se imitar o modelo do padre, verificando-se o tal fenômeno dos “mini-padres”, isto é, de leigos que, em lugar de expressar uma dinâmica nova mais própria deles, continuam no esquema eclesial, preocupados em materialmente substituir o padre. Neste caso, não somente o poder fica com os padres, mas sobretudo não se modifica a estrutura da pastoral, o trabalho continua como antes e mais dificilmente se abre ao social. Também do lado dos agentes de pastoral que querem uma efetiva participação do povo, muitas vezes é fácil projetar valores e aspirações sobre o povo e depois colhê-las como se fossem do povo. Sem dúvida nenhuma o processo é ainda muito inicial e não permite fáceis ilusões. No nível mais de base é possível ver uma maior participação dos fiéis. Mas o processo de democratização não consegue tão facilmente atingir os escalões superiores. Qual é a participação do povo na orientação da pastoral de conjunto? Qual sua influência na escolha de bispos mais populares? Qual seu peso em contaminar a própria doutrina social da igreja com casos e posições concretas? Qual sua contribuição e presença na próxima Assembléia dos Bispos de América Latina em Puebla? A problemática da participação ou da democratização sofre outro impasse: o risco de ser excessivamente valorizado, de ser considerada como a tensão mais importante, em lugar de abrir - como preocupação fundamental - o conjunto da comunidade eclesial para a dinâmica da sociedade como tal. Existe, de fato, a contradição entre o povo e os agentes de pastoral que habitualmente vêm de fora, possuindo outra cultura, outros meios e outras necessidades. Mas tal oposição não deve ser radicalizada sob pena de ficarmos sempre mais presos nela. Toda a comunidade - agentes e base - deve Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 47 47 27/09/09 10:04 Cláudio Perani considerar fundamentalmente o que se passa ao seu redor, os problemas econômicos, políticos, sociais e culturais, as contradições que a sociedade como tal vive e que atingem a mesma comunidade e constituem um apelo para ela. “O Grupo começou a caminhar, quando percebeu que numa fazenda o rendeiro proibiu os moradores fazerem seu roçado...”, se afirma no relatório de uma CEB. É também a história de muitos CEBs, que começam, ou saem de uma certa inércia, exatamente quando se abrem à problemática externa. Nesta linha é mais fácil resolver também a tensão interna, pois mais que focalizar o agente de pastoral enquanto tal todo o grupo fica comprometido e silo oferecidas possibilidades concretas de participação. 2.3. O “povo” Talvez seja o critério principal considerado por todos. “A igreja que nasce do povo”, assim foi caracterizado o primeiro encontro nacional das CEBs em Vitória (6-8.01.78). “Que o povo veja com os próprios olhos, pense com a própria cabeça, fale com a própria boca, ande com os próprios pés”. Esta é uma das definições de CEB encontrada em Pernambuco. A palavra “povo” está continuamente presente seja para indicar quem são os membros destas comunidades de igreja seja para indicar a perspectiva desta renovação eclesial. As CEBs desenvolvem-se habitualmente entre as camadas populares. Formam-se sobretudo na zona rural, ao redor das capelas, incluindo pequenos proprietários, posseiros, trabalhadores rurais. Multiplicam-se também nas periferias das cidades grandes e médias, com maior dificuldade do que no interior, atingindo moradores de bairros pobres. Ao querer caracterizar melhor a palavra “povo”, constatamos que se trata de categorias marginalizadas na sociedade atual, das grandes massas exploradas que sustentam o peso do trabalho e dos serviços. Utilizando outra palavra bastante genérica, trata-se do povo “pobre”, dos pobres que constituem a imensa maioria da população. Trabalho de CEB significa “em obediência ao evangelho e aos apelos da realidade vivida pelo povo, optar por uma evangelização libertadora, o que implica numa clara opção pelos oprimidos” (Conclusões do I Encontro de Vitória) .. Redescobre-se aqui o critério evangélico fundamental do trabalho de Jesus Cristo e da Igreja: “anunciar aos pobres a Boa Notícia”. Deve-se constatar que muitos agentes de pastoral, padres, freiras, leigos, deixaram determinado trabalho mais ligado 48 Revista ceas 233.indd 48 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos à classe média ou à classe burguesa, para tomarem-se presentes - de forma diferente entre as classes populares. Nesse meio, particularmente no interior, multiplicaram-se as comunidades, os grupos, as iniciativas. A problemática que diretamente atinge as camadas populares foi entrando sempre mais na atenção da igreja e dos planos de pastoral. Não só isso. Igreja do “povo” significa também que o povo se torna ponto de referência de toda a pastoral. E critério fundamental para avaliar a orientação e a eficácia do trabalho. Considera-se a presença do povo, o que ele afirma, suas decisões; ponto de partida básico são as necessidades do povo e suas aspirações; o trabalho educativo consiste em proporcionar um espaço para que o povo possa manifestar sua consciência e encontrar seus caminhos. É inútil reconhecer a importância desta orientação. Pode-se constatar na prática quanto se demonstrou fecunda, seja para uma renovação da igreja, seja para um efetivo serviço ao povo. Trata-se de pôr em prática uma exigência evangélica claramente expressa por Jesus através de seu exemplo e de suas palavras. Doutro lado, também numa perspectiva sócio-política, uma sociedade mais justa poderá aparecer na medida em que as classes populares, atualmente marginalizadas, puderem afirmar seus direitos e sua participação. Na prática, a realidade nem sempre corresponde às palavras. As mesmas palavras, permanecendo genéricas podem esconder conteúdos diferentes. É sempre necessário determinar melhor a palavra “povo”. De quem se trata em concreto? Já dissemos que prevalecem as comunidades rurais. Por quê? Talvez por uma facilidade da estrutura tradicional da igreja - a paróquia, de base geográfica - de estar presente entre os camponeses. Nem sempre as diferentes categorias (assalariados, posseiros, arrendatários...), são identificadas e isso significa que as situações concretas de opressão e de injustiça não são reveladas. Pode acontecer que a renovação se reduza a uma certa modernização das formas religiosas e a uma maior participação dos camponeses, sem contudo significar um caminho novo de libertação, por ficarem enco¬bertos os mecanismos de dominação presentes no campo, com os quais muitas vezes a igreja ficou solidária. Na cidade a situação é bem mais complexa. Aqui as comunidades populares têm mais dificuldades. Muitas vezes prevalecem as mulheres, enquanto os homens ficam ausentes. Muitos grupos e categorias sociais não são atingidos. É sobretudo na cidade Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 49 49 27/09/09 10:04 Cláudio Perani que se multiplicam as camadas sociais e as relações de trabalho; ora, acontece que, particularmente na cidade, o “povo” fica mais indiferenciado. Há maior facilidade em atingir o povo enquanto formado por moradores de bairro. Neste caso, os problemas considerados, habitualmente, são as necessidades como aparecem ao nível do bairro. Mas já assistimos a movimentos que enfrentam, problemas mais amplos e fundamentais como o “custo de vida”. Mais difícil é atingir as diferentes categorias com suas necessidades. Os operários, os funcionários públicos, os biscateiros, etc., que constituem grande parte da classe popular, não são suficientemente considerados e não têm um espaço próprio nas comunidades. O “trabalho”, enquanto tal, ainda não tem um grande peso. Aqui também significa estar por fora de uma engrenagem fundamental da sociedade e, em conseqüência, de uma situação de injustiça e opressão. Ficaria para ser questionado o valor dado ao povo como critério fundamental da pastoral. O problema é muito complexo e nos propomos de retomá-lo brevemente mais adiante. 2.4. A “bíblia” A bíblia, e mais em particular o evangelho, é ponto de referência bastante central nas CEBs. Quase sempre o evangelho está presente e se constitui como força dinamizadora e libertadora. É utilizado não somente em círculos bíblicos, mas em muitas outras reuniões, encontros, cultos, ou lido pessoalmente. A redescoberta da bíblia não é fato novo no campo católico. Faz tempo fala-se de movimento bíblico, a catequese e a teologia renovaram-se voltando à fonte da bíblia e entre os leigos os vários movimentos de Ação Católica contribuíram muito para um acesso direto à Sagrada Escritura. A novidade atual é que este fato se popularizou. O povo manuseia a bíblia. Tal atitude era até pouco característica das igrejas evangélicas. Hoje entrou nas comunidades católicas. O evangelho está presente nas comunidades: é lido, comentado por todos, diretamente relacionado com a vida. Ás vezes certos roteiros, pequenas introduções ou comentários podem ajudar. Mas não se elimina o contato imediato com a página sagrada. O que impressiona é tal utilização direta. Fato que não deixa de suscitar vários questionamentos. É justo, em primeiro lugar, constatar a eficácia da palavra do evangelho. Abre horizontes, entusiasma, compromete. Questiona certo tipo de sacramentalização e de catequese, muitas vezes reduzidas a um rito ou a esquemas muito moralistas, e revela mais diretamente a pessoa de Jesus e o conteúdo muito humano da salvação. 50 Revista ceas 233.indd 50 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos Mas fica o problema da interpretação. No extremo, acontece que o grupo reunido pode ouvir a página do evangelho sem entender muito. Habitualmente fica-se numa interpretação muito literal. Sem dúvida, o povo das CEBs tem o critério fundamental para a interpretação da bíblia: o “lugar” que ocupa na sociedade. Devemos lembrar que a com¬preensão da palavra de Deus não é reservada aos sábios do mundo, mas aos pobres, aos oprimidos, àqueles que lutam pela justiça. As CEBs no Brasil desenvolvem-se sobretudo entre categorias sociais marginalizadas na atual sociedade. A partir desta “situação” há maior disponibilidade e capacidade para entender o evangelho. Contudo, é necessário pôr ao serviço da interpretação popular a ciência exegética. Não é tarefa fácil, pois esta última adquiriu uma tal complexidade e as contribuições científicas estão tão longe do alcance das pessoas simples que se criou um verdadeiro dualismo entre a leitura que o povo faz da bíblia e as considerações dos estudiosos. Há muito trabalho a ser feito para que o povo não fique somente com interpretações bastante “piedosas”, mas que estão longe seja da realidade vivida seja do verdadeiro conteúdo bíblico. Nesta mesma perspectiva insere-se o problema da relação entre evangelho e realidade, uma das preocupações principais das CEBs. É inútil dizer que um apressado paralelismo entre um fato do evangelho e um fato da vida, em lugar de ajudar, pode aprisionar o grupo e afastá-lo mais da realidade e da ação a ser desenvolvida. Muitas vezes acontece que, depois de uma rápida apresentação de um fato de vida, logo se procure no evangelho algo semelhante para tirar conclusões práticas, sem por isso poder aprofundar o fato e analisá-lo em sua dimensão própria. É fácil então ficar no superficialismo do evangelho e da realidade. É necessário descobrir como é mais bíblico uma menor utilização da página escrita para poder aprofundar um problema humano em todas as suas dimensões. A bíblia não é um manual de análise de realidade nem aponta normas concretas de ação. Ela é basicamente um apelo, na lembrança de acontecimentos históricos que têm como centro a vida de Jesus Cristo, para uma conversão nossa e um compromisso em favor dos irmãos, e para sabermos reconhecer e confiar na bondade de Deus Pai presente na história. É um apelo para um ato de fé na história como história de salvação numa dimensão de doação e gratuidade. Ela mesma nos ensina a descobrir a palavra de Deus, encarnada e histórica, nos acontecimentos humanos. Por isso, o livro do evangelho, na sua letra, é insuficiente: é preciso reinseri-lo no fluxo da vida. Isso se dá quando a comunidade aprofunda os fatos humanos com os recursos que tem. A análise da realidade e as Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 51 51 27/09/09 10:04 Cláudio Perani ações conseguentes devem ser descobertas pelo grupo, comprometido com o que se passa hoje na sociedade. 2.5. A “libertação” Esta palavra é muito usada e não sempre esclarece, porque - ela também - é ampla e é usada para indicar processos diferentes. Contudo, anda associada ao fenômeno das CEBs. Indica o objetivo do trabalho que as comunidades desenvolvem: pastoral libertadora, libertação do povo, dos oprimidos, dos marginalizados... Fazer uma opção pelas CEBs, habitualmente significa fazer uma opção pela libertação dos oprimidos. Os elementos e critérios acima apontados para concretizar as CEBs são válidos e importantes. Devem ser considerados todos e relacionados entre si pois se completam. É licito, porém, ter uma preferência e apontar o que achamos mais fundamental. Segundo a perspectiva aqui assumida, o determinante é o critério do “povo”. Corrigindo algo, isto é, considerado em sua situação histórica concreta e em seu processo de libertação. É fundamental para a pastoral das CEBs assumir a situação histórica concreta das camadas populares: definir as diferentes categorias, conhecer o sistema de exploração em que estão presas, considerar suas necessidades, seus direitos, contar com sua capacidade de reivindicação. Se não se fizer isso, as CEBs ficarão sempre numa certa ambigüidade, sem sabermos se representam um efetivo serviço ao povo; prevalecerá a linha paternalista e populista. Falar de situação histórica concreta, significa considerar o povo dinamicamente, isto é, em seu processo de libertação. Significa saber descobrir as causas mais profundas as raízes da exploração; fazer aparecer os verdadeiros conflitos; saber relacionar as necessidades e os acontecimentos imediatos com o conjunto dos fenômenos e com a estrutura global da sociedade em seus vários níveis. Põe-se, necessariamente, o problema das estruturas, o problema do poder, o problema propriamente político. Aqui encontramos grande dificuldade por parte das pessoas de igreja, sobretudo dos agentes de pastoral. Prevalece habitualmente uma perspectiva individualista e moralista. É mais fácil ficar no nível da consciência interior do que abrir para uma visão mais estrutural e objetiva. Daí, muitas vezes, a facilidade em repetir palavras genéricas: 52 Revista ceas 233.indd 52 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos povo, libertação, pobres..., e a dificuldade grande de encaminhar ações concretas que considerem a problemática global e a necessidade de uma mudança da sociedade. A opção pelos pobres das CEBs deve concretizar-se numa opção por uma ação libertadora que tenha como ponto de partida e de referência o concreto da dinâmica da sociedade como tal, suas forças econômicas, sociais e políticas, com seus conflitos e suas aberturas. Noutras palavras, o problema da mudança radical da sociedade. Isso se dá nas CEBs, quando estas conseguem colocar como conteúdo de seu problema os problemas fundamentais da vida do povo: o emprego a terra, o custo de vida, as migrações, o salário, as condições de trabalho, a moradia, a educação, a saúde, o lixo, o transporte, a organização, a presença da repressão nas fábricas, nos bairros, e nos campos etc. E para fazer isso há necessidade de especificar, diversificar, abrir espaços para que cada categoria consiga colocar a própria situação e tenha tempo de aprofundá-la e de encaminhar ações conseqüentes. E deixar falar o povo sem deixá-lo enclausurar, na igreja, dentro de esquemas prematuramente religiosos ou eclesiais, que são mais nossos e que, para impô-los, afirmamos que representam a fé profunda do povo. Na prática constatamos um certo esvaziamento do trabalho de CEB quando não se abre a uma problemática mais concreta. Depois de um início animador ao redor dos temas religiosos, da bíblia, da vivência pessoal e da responsabilidade dada aos participantes, muitas vezes o grupo não evolui, entra num impasse e o dinamismo desaparece. Ao contrário, a temática concreta da vida do povo é fonte de contínua renovação. Muitas comunidades de base, que já estavam sofrendo um certo cansaço e não tinham novas perspectivas, receberam novo impulso, por exemplo, pela orientação da pastoral da terra ou da pastoral operária, preocupadas em colocar de saída os problemas da terra e do trabalho. Tal perspectiva libertadora concreta é a mais fiel à orientação bíblia, é mais teológica. Não se trata, evidentemente, de as CEBs ficarem num nível puramente sóciopolítico. Enquanto igreja, elas têm outra missão específica. Mais adiante retomaremos o assunto. Trata-se de reconhecer qual o caminho da salvação em Jesus Cristo. A linha da encarnação, isto é, da presença no centro da humanidade, e do serviço aos outros, preferencialmente aos pobres, perpassa toda a vida de Jesus e condiciona toda e qualquer palavra explícita sobre ele. O ato de fé, para ser tal, deve estar dentro de um contexto de justiça. Caso contrário é palavra vazia que não salva. A evangelização Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 53 53 27/09/09 10:04 Cláudio Perani não é uma proclamação meramente verbal da mensagem, mas testemunho, isto é, verdade cumprida na ação. A igreja, que deve continuar a prática de Jesus, é chamada de instrumento de salvação universal, o que significa que sua identidade se descobre e se realiza na medida em que se abre à problemática do mundo, se coloca ao serviço dos homens, se solidariza com as classes populares, defende os oprimidos, os injustiçados, os pobres. Nisso proclama a bondade de Deus presente na história. 3. ALGUNS QUESTIONAMENTOS Não pretendemos fazer amplas análises. Somente apontar alguns problemas que são habitualmente considerados nas CEBs mais críticos e que são diferentemente encaminhados. 3.1. O dogma do “povo” Vimos a importância do critério “povo” na pastoral das CEBs, seja enquanto elas são constituídas de pessoas pertencentes às camadas populares, seja enquanto a perspectiva popular influencia e orienta o trabalho. Na realidade, o povo não é um “critério”, mas é o sujeito da história, é como tal - um absoluto ao serviço do qual todo o resto deve estar dedicado, religião e igreja também. Isso deve ser lembrado na hora em que avançamos algumas reflexões críticas sobre determinadas tendências presentes nas CEBs. Devemos distinguir entre “povo” e sua expressão: sua consciência, sua linguagem, sua organização. A esse propósito, na prática e nas reflexões de teólogos e educadores, encontramos atualmente diferentes posições e uma discussão muito animada. Simplificando bastante, as posições limites são duas. De um lado, aqueles que sacralizam o povo e toda e qualquer sua afirmação. Do outro, aqueles que, reconhecendo a importância fundamental do povo, negam-lhe a capacidade de uma lúcida visão da realidade. A primeira tendência é aquela que defende a não-intervenção nas comunidades, sobretudo de pessoas intelectuais. O que vale é somente o pensamento e a ação do povo. Chega-se ao ponto de afirmar que se deve apoiar o povo “mesmo quando não tem razão”. Como uma vez se dependia dogmaticamente da palavra da autoridade eclesi- 54 Revista ceas 233.indd 54 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos ástica, hoje se absolutiza a palavra do povo. Os agentes não intervêm, deixam falar o povo, aceitam qualquer decisão. Há uma grande valorização de tudo o que é popular, cultura, religião... e, do outro lado, uma desconfiança de tudo o que vem de fora do ambiente do povo. Tal tendência pode ser encontrada também em CEBs mais críticas e em agentes de pastoral com boa capacidade de análise. A segunda tendência, mesmo respeitando a necessidade de o povo decidir, por constatar que a ideologia da classe dominante está presente na consciência dos dominados, afirma a incapacidade da consciência popular de ter uma visão correta da sociedade e realizar uma prática de transformação. Daí a necessidade da intervenção dos agentes de pastoral: são eles que irão fornecer uma visão mais crítica e mais científica, porque somente eles podem possuir a ciência. A consciência libertadora não é do povo e deve vir necessariamente de fora. Assim formuladas, essas duas posições provavelmente não se encontram puras na prática. Contudo, são duas orientações presentes, em conflito entre si. Que dizer sobre isso? Parece importante, em primeiro lugar, lembrar que, também neste assunto, é a prática que irá apontando as soluções, a depender dos resultados obtidos, e não a reflexão teórica no nosso nível. Esta não deixa de ser necessária dentro de seus limites. A relação entre agentes e povo deve ser avaliada, não tanto confrontando os dois pólos, quanto pelos sucessos ou insucessos da comunidade toda frente à situação social concreta com seus apelos para determinado engajamento. É evidente que a consciência do povo é influenciada pela ideologia dominante. Essa influência existe, reconheçamos ou não, e condiciona toda e qualquer palavra e ação do povo. Isso porque também as classes oprimidas vivem na mesma e única sociedade opressora que elabora, e a torna presente em qualquer ambiente, sua ideologia justificadora. A periferia está ligada ao centro. A simples presença do agente, mesmo sem falar e procurando a maior identificação com o povo, é uma presença que condiciona. O agente não está presente só com sua intenção, mas carrega toda uma ligação com a estrutura de igreja da qual é representante. É necessário, por isso, não considerar acriticamente a linguagem e os símbolos que o povo usa, mas saber “interpretar” utilizando também os recursos das ciências sociais. Reconhecido isso, ou melhor, exatamente guiados por tal análise questionadora, de- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 55 55 27/09/09 10:04 Cláudio Perani vemos negar que a consciência do povo seja simplesmente modelada pela ideologia dominante sem possibilidade de conter elementos próprios. Muitas vezes, também agentes de pastoral críticos se deixam contaminar pelos dois famosos preconceitos da elite: o povo é passivo, o povo é ignorante. A partir daí, numa conversão ao povo, afirma-se que ele deve participar, decidir, criar sua organização, mas se mantém sempre a exclusividade da verdade quanto à visão científica da realidade e ao “como” se deve agir. Os modos de pensar e agir das classes populares não refletem apenas os conhecimentos e os valores dominantes na sociedade. Seu saber e sua prática contém elementos de resistência e oposição à própria ideologia dominante. A consciência do povo é lúcida: é consciência de classe dominada e, por isso, privilegiada para descobrir determinados mecanismos de opressão. Não se diz que a miséria é fonte de lucidez? Os opressores são levados continuamente a justificar-se, a mascarar, a cobrir a verdade utilizando até a ciência para isso. O povo é mais objetivo, mais verdadeiro e justo em suas análises. Com isso, não se quer negar que faltem ao povo determinados instrumentos científicos. Mas esses não são patrimônio exclusivos de alguns intelectuais e, sobretudo, devem sempre ser questionados e revistos a partir da sabedoria do povo. Além disso, é importante lembrar aqui a distinção entre consciência e ação. Esta última não deriva automaticamente de uma criticidade de saber, mas deve considerar vários outros fatores, como o problema do poder, para viabilizar-se. Muitas vezes uma falta de determinadas ações por parte do povo não provém de pouca lucidez, ao contrário, é fruto de uma sabedoria que pesa as forças em campo. Em conclusão, seria muito perigoso absolutizar uma das duas tendências. Os dois, agentes e povo, estão contaminados pela ideologia dominante e, no mesmo tempo, têm capacidade para pensar e atuar um caminho de libertação. Trata-se de pôr em comum as próprias capacidades para enfrentar as contradições da sociedade: papel do agente não é tanto ensinar ciência, mas criar um espaço de comunicação para que apareça sempre mais clara e eficazmente a consciência verdadeira do povo e sua experiência de resistência. 3.2. Reflexão e ação A problemática da ação está muito presente nas preocupações das CEBs. Outro problema é saber o que se entenda por “ação” e sua eficácia. Podemos encontrar várias e diversificadas posições. O que mais prevalece, porém, ainda hoje, é o tempo dedicado 56 Revista ceas 233.indd 56 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos à palavra e à reflexão. Não entendemos aqui a reflexão a partir e sobre uma prática, mas toda e qualquer atividade onde prevalece a palavra enquanto tal. Revela-se o nível ainda idealista em que estão muitas CEBs, apesar dos esforços feitos para atualizar o compromisso concreto pelos pobres. Há uma abundância de reuniões e encontros: para a liturgia, o aprofundamento da bíblia, a catequese, a preparação aos sacramentos, etc. É verdade que o nível do discurso religioso, por si mesmo, é genérico e simbólico, e não pode concretizar-se numa ação sem ulteriores mediações. Sendo que as comunidades de base são eclesiais, tal nível deve ser respeitado e valorizado, sob pena de perdermos o sentido e a missão da igreja. As CEBs são lugares onde se explicita e se celebra a fé. Mas essa fé, já sabemos, deve ter um conteúdo visível de justiça e caridade que obriga, sob pena de não existir, a ações concretas. Uma das dificuldades depende da visão demasiadamente interna e fechada das CEBs. Considera-se “ação” tudo o que se refere à estrutura interna: a entrada de novos membros, a formação dos mesmos, as celebrações litúrgicas, etc. Essa perspectiva, quando prevalece, fecha e não corresponde à verdadeira missão da igreja: o serviço ao povo todo. Deve-se, então, pensar a ação para fora, a partir das CEBs abrindo-se à problemática da sociedade. Outra dificuldade depende da errada utilização da bíblia ou de outros recursos teológicos, como acima apontávamos. O evangelho é revolucionário no sentido que respeita os oprimidos mas não no sentido de oferecer esquemas de ação ou uma organização para transformações sociais. Neste nível as CEBs devem recorrer a outros instrumentos. Não é que não se desenvolvam ações concretas. Mas muitas vezes ficam no nível individual, com uma perspectiva paternalista. Por razão do tal de “respeito ao povo” prevalecem as pequenas ações, importantes mas limitadas se não abrem para uma perspectiva mais global. Pela influência do agente ou pelos recursos da comunidade muito trabalho social se limita a “pequenas soluções” que pretendem substituir o governo e atendem por isso, só a um pequeno grupo, afastando de uma solidariedade de classe e de uma ação de reivindicação. Uma ação mais global se dá, voltamos a repetir, quando as CEBs enfrentam os problemas fundamentais do povo numa linha de solidariedade de classe. Há CEBs comprometidas com um trabalho no qual se consideram os interesses concretos do povo, apoiando-se na força do trabalho e Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 57 57 27/09/09 10:04 Cláudio Perani favorecendo uma organização própria do povo. Tal dimensão mais política das CEBs, se de alguma forma está presente sempre onde se dá uma renovação que favorece a participação do povo, em particular aparece em certos lugares numa proporção bastante avançada e chega a colocar outros questionamentos. 3.3. A dimensão política Hoje no Brasil a presença das CEBs começa a ter um peso político, se é verdade o que afirmava o artigo do Jornal do Brasil: estão mudando as bases tradicionais dos partidos. Tal conteúdo político sempre existiu pois não há disscurso religioso ou eclesial - enquanto discurso histórico - que seja neutro e não tenha uma incidência política. A novldade que preocupa certos setores consiste na mudança deste conteúdo político. Uma igreja mais hierárquica e autoritária é levada mais facilmente a apoiar a autoridade civil e como se constatou na história, torna-se sustentáculo do poder reinante. Na medida em que as CEBs, mesmo ficando numa problemática interna, realizarem uma igreja mais popular e democrática, que questione o poder hierárquico, poderão quebrar tal solidariedade entre igreja e estado e tornar-se-ão elementos de oposição na sociedade. É o primeiro aspecto da problemática política. Há um trabalho político mais direto. Todos concordam em reconhecer que as CEBs não são nem devem ser um partido político. Mas na medida em que se afirmar a necessidade de um serviço concreto em favor dos oprimidos numa dimensão mais ampla, é claro que se deve considerar também os níveis do poder e da organização que são políticos. Aqui surgem várias dificuldades e tensões concretas na pastoral das CEBs. Até que ponto se guarda fidelidade à missão própria da igreja? Como evitar o perigo de uma nova cristandade? Como fugir de um compromisso de fé que consiste só em palavras? Essas e outras perguntas preocupam vários setores de igreja e não de igreja. Devemos, em primeiro lugar, reafirmar o que foi dito anteriormente quanto à necessidade de as CEBs abrirem-se para uma problemática mais social e global. Isso em força mesmo de seu compromisso pela justiça que é evangélico e exigido pela fé. Em segundo lugar, a CEB não deve perder sua referência eclesial que é a razão de sua especificidade. A comunidade convoca em nome do evangelho que é ao mesmo tempo 58 Revista ceas 233.indd 58 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base: alguns questionamentos compromisso pela justiça no serviço aos irmãos e fé em Jesus Cristo, centro e plenitude da história. A comunidade luta pela libertação entendida num sentido histórico bem concreto, sem esquecer de celebrar, numa antecipação simbólica, o sentido revelado de libertação que transcende o horizonte histórico. Como conciliar essas duas exigências? Parece-nos que, de um lado, as CEBs devem abrir-se sempre mais à problemática propriamente política enquanto CEBs. Isto é, devem procurar pensar a ação em termos sempre mais político, através de uma informação e conscientização que descubra as causas profundas da opressão e considere o aspecto do poder nos vários níveis; através de denúncias concretas que comprometam a igreja; através de programações que ajudem o relacionamento entre as várias comunidades; através de movimentos, campanhas, manifestações, passeatas, atos públicos, greves, etc. no outro lado, para evitar o perigo de uma cristandade moderna, isto é, de organizações sócio-políticas só formadas de cristãos enquanto cristãos, as CEBs serão um serviço válido na medida em que, longe de organizarem frentes próprias, favorecerem organizações autônomas do povo trabalhador e propiciarem instrumentos a tais organizações. Há sempre o receio de perder a freguesia. Mas muitas vezes a preocupação da freguesia impede a fidelidade à própria missão que é de serviço ao mundo. Aqui se justifica a abertura das CEBs para que favoreçam instrumentos que não são propriamente eclesiais, mas que são indispensáveis para o povo conquistar sua libertação. Associações de bairro, sindicatos, comitês de fábrica, partidos...; a conjuntura concreta deve indicar as várias formas em cada momento. 4. CONCLUSÕES As observações críticas e o questionamento apresentado não querem invalidar o trabalho nem diminuir as esperanças que as CEBs suscitam. Pretendem ajudar para que se abra sempre mais um espaço para uma igreja na base, lembrando que base significa a maioria dos nossos irmãos que foram privados do poder econômico, político, religioso e que sustentam o peso do trabalho para uma sociedade melhor. Vimos que as CEBs não se apresentam com uma linha clara e unívoca. Há várias tendências, conteúdos diferentes, vários tipos de pastoral. Isso toma impossível mascarar a renovação pastoral da igreja atrás do nome “Comunidade Eclesial de Base”, mas exige um contínuo questionamento e uma avaliação constante segundo determinados critérios. Apontamos no artigo os que nos parecem os fundamentais. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 59 59 27/09/09 10:04 Cláudio Perani O esforço de democratização da igreja, dando maior espaço às suas bases, não somente determina uma renovação interna, mas também tem reflexos muito importantes para a sociedade toda. O critério fundamental deve ser a opção pelo povo - na linha da escolha preferencial do evangelho pelos pobres - considerado na sua situação concreta e no processo de libertação. Daí a importância de as CEBs abrirem-se para temas concretos: salário, custo de vida, saúde, educação, sindicato, política... Daí também a necessidade de reconhecer a consciência crítica do povo e de favorecer ações de reivindicação que façam crescer a solidariedade de classe. Sem reduzir a missão da igreja, ocultando sua dimensão de fé. 60 Revista ceas 233.indd 60 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE E MOVIMENTO POPULAR CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 75, set.-out. 1981) 1. INTRODUÇÃO “O favelado é visto como marginal, mas não é. Nós somos marginalizados. A gente constrói, a cidade com o suor do nosso trabalho e quanto mais constrói, mais é jogado para longe dela”. Nestas palavras de um favelado da periferia de São Paulo está o nosso tema. Queremos apresentar o dinamismo das massas urbanas das grandes cidades do Brasil e, relacionada com isso, a presença e contribuição das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Nossa perspectiva procura ser a do favelado que tem consciência de sua força como construtor da cidade e, no mesmo tempo, tem consciência de sua exploração e marginalização. A cidade deveria ser o lugar da liberdade, da autonomia, do respeito dos direitos humanos, o lugar onde se encontram maiores recursos, maiores serviços, sobretudo se considerada em oposição ao campo onde, ainda hoje, o coronel ou as grandes empresas sucessoras do coronelismo mandam e mantêm uma situação de quase-escravidão. De fato, o homem do campo vai à cidade obrigado pela expulsão de sua terra mas, também, pelo desejo de maior autonomia e maiores serviços. A realidade é bem diferente. Sem negarmos as vantagens que a cidade pode oferecer, ela de fato para a maioria de seus habitantes se apresenta como lugar da grande exploração, da violência, da insegurança, da falta dos direitos mais elementares. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 61 61 27/09/09 10:04 Cláudio Perani É nesse contexto que pretendemos dizer algo sobre os Movimentos Populares considerados como o esforço do povo para conquistar seu lugar na cidade, sua cidadania. O tema é amplo e complexo. Vamos limitá-Io considerando somente os movimentos de bairro (ligados ao consumo, à reprodução) e deixando de considerar o movimento operário (ligado à produção) e outros movimentos urbanos como os das mulheres e dos negros. Além disso, a introdução sobre Movimento Popular é mais para poder enquadrar a problemática das CEBs, mais considerada nesse estudo. 2. O TERRENO DA LUTA É a cidade latino-americana. Surguiu rapidamente nas últimas décadas, com uma inchação tremenda, abrigando uma enorme população diversificada e provocando grandes desequihbrios. Uma situação de caos que significa, porém, uma “racionalidade” imposta pelo capitalismo monopolista e dependente, engendrando contradições na dialética cidade-campo, encontrando neste último uma estrutura agrária onde domina o latifúndio. O Estado, monopolizado pelos interesses das classes dominantes, não visa nem pode atender às reivindicações da maioria da população. Daí o surgir dos conflitos: os movimentos sociais urbanos slio expressões da massa que reivindica, envolvendo o Estado, melhores serviços e condições de, vida, através de invasões, depredações de ônibus e trens, passeatas, abaixo-assinados... Isso não é novidade, sempre se deu desde a época da industrialização. Podemos lembrar o movimento dos favelados no Rio, o surgimento das Sociedades de Bairro em S. Paulo, as invasões em Salvador que datam de 1940. Parece que hoje, pela intensificação da urbanização e pela super exploração do capitalismo selva.sem, as contradições se agudizam. José Álvaro Moisés, na última reunião da SBPC em 1981, dava três exemplos para demonstrar o aumento da exploração urbana: os quebra-quebra de trens e ônibus que continuam; o caso de uma fábrica onde, depois da demissão de 20% dos operários, aumentaram a produção e os incidentes de trabalho; o aumento da violência urbana e da repressão policial: em S. Paulo a Rota mata em média 1 pessoa cada 2 dias. Nessa situação, a cidade hoje torna-se o lugar privilegiado da luta política. O próprio 62 Revista ceas 233.indd 62 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular Estado reconhece isso quando planeja em termos de Regiões Metropolitanas e quando mostra as preocupações que o levam a intervir nas cidades através de vários projetos sociais que não conseguem ocultar sua finalidade de controle. As reivindicações são as mais variadas. Em primeiro lugar, por habitação, isto é, por um espaço, um lugar onde poder morar; as desapropriações e a impossibilidade de pagar aluguel multiplicam as invasões em todas as cidades. Em segundo lugar, por serviços coletivos: transporte de massa, postos de saúde, escolas, água, luz, esgoto, pavimentação, lazer... O movimento popular não deve sua existência ao poder de mobilização de lideranças institucionais (de governo, de partido, de igreja... ), mas à necessidade de sobrevivência. É o clima de carência e de violência generalizadas que leva o povo a reagir. Tratase, em primeiro lugar, de uma resistência elementar, instintiva, de auto conservação. Mas corresponde a mecanismos - por nós habitualmente desconhecidos - atuantes nos bastidores e que levam à luta pela casa, contra a carestia (bem antes de se organizar em movimento); pela saúde, numa palavra, para ter um espaço mais próprio. O povo resiste à violência, contornando-a ou gerando sempre novas formas de resistência que superam os vários projetos desse governo. Em Salvador, a proibição de construir palafitas na tradicional área dos Alagados, levou o povo a se espalhar mais pelo interior da baía expandindo muito mais a área dos alagados, obrigado pela violência da situação. Há vários caminhos e vários níveis de resistência: desde o favor calculadamente trocado ou pedido ao vereador do PDS até a passeata pelas ruas da cidade enfrentando polícia e autoridades; desde os encontros de lazer ou religiosos onde o povo expressa seu pensamento mais simbolicamente, até as reuniões mais decisórias em vista de determinadas ações. Todos esses níveis revelam uma consciência e uma prática - mesmo que diversificadas - bastante independentes e autônomas, próprias das classes populares. Tais movimentos são chamados por nós movimentos “espontâneos”. Isso pode estar certo no sentido de oposição a movimentos mais conscientes e mais organizados segundo formas por nós conhecidas, mas não no sentido de não exigirem uma certa consciência e elementos de organização, pois são resposta a uma violência comandada que tem sua unidade e racionalidade. Nem tampouco no sentido de não serem eficazes de nenhuma maneira. O mesmo José Álvaro Moisés, analisando os “quebra- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 63 63 27/09/09 10:04 Cláudio Perani quebra” de trens no Rio,1 reconhece que esses movimentos mobilizam o Estado que é obrigado a reprimir e são experiência que revelam a natureza do Estado e nas quais o povo manifesta sua potencialidade, além de revelar organização e objetivos. Permanece, evidentemente, o problema do crescimento do poder do povo, de uma ulterior orientação e organização, que desde já podemos considerar indispensáveis na medida em que se inserem e assumem essa resistência fundamental. 3. A ORGANIZAÇÃO POPULAR Sempre se coloca o problema de uma organização mais estruturada, no sentido de expressar um poder maior: o protesto simbólico deve encontrar o caminho da eficácia, as resistências circunstanciais exigem continuidade, as pequenas lutas iniciais se ampliam, noutras palavras, a politização da luta avança e deve avançar pois a meta é uma mudança geral da atual estrutura da cidade. As organizações do povo, ou com o povo, sempre existiram. O problema é saber a redor de que interesses. Para favorecer a massa ou para beneficiar uma elite com consequente marginalização da maioria? Há organizações manipuladas, ou não, por elites: escolas de samba, blocos carnavalescos, clubes de futebol, cooperativas para diferentes serviços, associações de bairro, comunidades de igrejas, de candomblé, manifestações religiosas... Muitas vezes são instrumentalizadas para servir interesses não populares; outras vezes são mais espaço do povo; sempre o povo procura utilizálas em seu interesse. Nesses últimos anos multiplicaram-se as organizações que nasceram, ou renasceram, a partir ou relacionadas com este grande movimento de resistência: são grupos de jovens, clubes de mães, grupos de moradores, associações, comunidades de igreja, núcleos partidários” deixando de fora os sindicatos, suas federações, esboços de centrais, etc. Há um florecer de iniciativas no setor popular que nos leva a reconhecer o surgimento de uma renovação política popular. Também existe o esforço para sair do isolamento e do bairrismo: procura-se trocar 1 Cf. MOISÉS, José Álvaro – MARTINEZ-ALIER, V., “Rebeliões no subúrbio”, Cadernos do CEAS, n. 49, maio-junho 77, pp 31-49. 64 Revista ceas 233.indd 64 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular experiências, somar os esforços, articular a nível de cidade, a nível nacional, a nível de movimentos. Surgem os movimentos contra a carestia, o movimento dos favelados, as federações de associações de bairro... Para toda essa mobilização, houve influência de outras pessoas e instituições; estudantes, associações de profissionais, MDB (hoje PMDB, PDT e PT), grupos de esquerda, igrejas... A influência da igreja, por muitos, é considerada como influência determinante . Teve e tem certamente um papel importante, mas seria exagero - sobretudo para certos lugares - dar a primazia à igreja. O quadro esboçado - ainda que brevemente - do movimento popular urbano é importante para poder situar a contribuição das CEBs no seu verdadeiro contexto, evitando o risco de uma interpretação fechada no âmbito eclesial. 4. AS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE “Que o povo veja com os próprios olhos, pense com a própria cabeça, fale com a própria boca, ande com os próprios pés”. É uma definição da CEB formulada por um seu membro de Pernambuco, definição bastante genérica e aplicável a várias outras organizações populares, mas definição existencial e, sobretudo, significativa de uma orientação ideal: a perspectiva de autonomia, de participação, de responsabilidade do povo, de libertação. É arriscado tentar uma apresentação das CEBs,2 considerando a grande variedade e complexidade. Nos limitamos a uma breve caracterização para depois apresentar uns desafios atuais. A igreja, sempre, atuou nas periferias urbanas, tradicionalmente, através das paró2 Cf. PERANI, Cl., “Comunidades Eclesiais de Base”, Cadernos do CEAS, n. 56, julho-agosto 78, pp. 36-48, com pequena bibliografia. Acrescentamos: “Comunidades Eclesiais de Base - Encontro de João Pessoa”, SEDOC, n. 118, janeiro-fevereiro de 1979; BOFF, Cl., “A influência política das CEBs”, Religião e Sociedade, n. 4, 1979, pp. 95-120; Idem, “CEBs e Prática de Libertação”, REB, 1980, pp. 595-625; SOUZA LIMA, L.G. de, “Comunidades Eclesiais de Base e organização política: notas”, Vozes, 1980, n. 5. pp. 61-82; ELIAS, R. “CEBs: Movimento de Base: da Igreja ou Popular?”, Cadernos do CEAS, n. 69, setembro-outubro 80, pp. 47-55; Frei BETTO, O que é Comunidade Eclesial de Base, S. Paulo, Brasiliense, 1981. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 65 65 27/09/09 10:04 Cláudio Perani quias que têm uma estrutura territorial e significam a transferência do modelo rural para a cidade. Pela recente iniciativa de renovação a igreja começou a atuar através de outros modelos de pastoral, como, por exemplo, os grupos de evangelização, os círculos bíblicos a pastoral operária, a pastoral dos direitos humanos, as comissões de justiça e paz e, sobretudo, através das Comunidades Eclesiais de Base. As CEBs nasceram na década de 60, no meio rural, e aí se desenvolveram mais, favorecidas certamente pela estrutura povoado/capela já existente. Em seguida passaram para a cidade onde encontraram maiores dificuldades e se instalaram mais nas periferias urbanas, talvez ajudadas pelo esquema territorial do lugar de moradia e pela experiência rural de muitos imigrantes. As CEBs são uma entidade religiosa que surge dentro de uma dupla dinâmica: - a massificação, dispersão e incomunicabilidade da cidade e sua situação de lugar de exploração, favorecendo a formação e o crescimento de pequenos grupos de ajuda mútua; - a perspectiva de renovação da igreja a partir de uma maior fidelidade ao evangelho com sua dimensão de opção pelos pobres e de vida comunitária. Podemos reconhecer 4 etapas na história recente das CEBs, não necessariamente cronológicas. 1. Encontro religioso, de pequenos grupos, favorecendo o diálogo entre os participantes e o contato direto com a Bíblia. Geralmente são grupos de bairro ou de rua, que se reúnem na ocasião de novenas e festas ou mais regularmente cada mês ou cada semana. Prevalecem entre seus membros as mulheres e os jovens. 2. Abertura para a problemática social do bairro. Procurando concretizar a página do evangelho e relacionando a fé com a vida, além dos problemas pessoais, são considerados os problemas do bairro e do trabalho, encaminhando algumas ações concretas, tentando solucionar principalmente a nível de bairro. Percebe-se a necessidade de fazer algo, antes ainda de ter uma visão mais crítica da realidade. 3. Aprofundamento das causas da situação, reconhecida como situação de opressão, e dos meios para solucionar. Supera-se uma vido mais assistencialista-promocional para uma visão que tende à reivindicação-mobilização, participando mais de perto do movimento popular. Nessa etapa colaboram outros agentes (estudantes, profissionais...) e a CEB abre-se para outras entidades, procurando colaborar. São 66 Revista ceas 233.indd 66 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular valorizadas e reconhecidas necessárias outras instituições como as Associações de Bairro e os Sindicatos. Devemos reconhecer que esse avanço foi às vezes ajudado pela presença de intelectuais de esquerda. 4. Ampliação do movimento e politização é a fase atual. Como no movimento popular geral coloca-se mais explicitamente o problema do crescimento e do poder, de sua articulação e organização, assim também a nível de CEBs há uma abertura para o político, como lógica consequência da abertura para o social. Nessa fase entra - também mais que anteriormente - a consideração dos partidos. No último encontro nacional das CEBs (Itaici, 24.04.81) colocaram-se 4 temas: participação na igreja, solidariedade no local de moradia, serviço na política e justiça no mundo do trabalho, sob o tema geral “Igreja, .povo oprimido que se organiza para a libertação”.Constata-se um avanço na direção mais política. Podemos reconhecer a contribuição positiva dada pela CEB no processo de libertação do povo. Na medida em que se criam espaços eclesiais onde o povo tem possibilidade de expressar sua voz e decidir subvertendo a tradicional estrutura autoritária da igreja, cria-se também na sociedade mais um germe de mudança das relações entre classes. Na problemática sócio-política, o povo aprende a não suplicar favores nem a resumir-se à ajuda de intermediários numa forma dependente e inconsciente, mas reivindica em nome de valores cristãos. A própria Igreja é forçada a mudar seu papel: de aliada do poder e mediadora entre autoridade e povo, passa a ser aliada das lutas populares.3 5. DESAFIOS ATUAIS Participando do Movimento Popular, as CEBs encontram os mesmos problemas e dificuldades que desafiam o movimento na conjuntura atual. Evidentemente, tratando-se de uma organização religiosa com seu objetivo próprio que não pretende substituir as outras instituições, as CEBs guardam algumas especificidades. Achamos poder reduzir a três os desafios principais: o problema político, a relação vanguarda massa e a relação entre Movimento Popular e CEB. 3 Cf. SINGER, P. e CALDEIRA BRANT, V. São Paulo, o povo em Movimento. Vozes-CEBRAP, 1980. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 67 67 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 5.1. Crescimento do movimento popular O movimento popular, tão fragmentado, como vai conseguir a unificação para poder somar as forças e não perdê-Ias? Noutras palavras, qual o nível de politização do Movimento Popular e seu possível avanço? Entra aqui também a problemática dos partidos. 5.1.1. unificação Para encaminhar o problema da unidade que é força, devemos afirmar que o ponto de partida dos trabalhos está nas lutas concretas: nessa prática o povo se une. Mas essas lutas são diferentes, por conteúdo imediato, por regiões, por níveis de consciência e organização. Há certamente uma grande variedade e complexidade. Basta pensar à diferença entre S. Paulo e Salvador, e entre Salvador e as cidades do interior. Querer reduzir tudo a um único movimento para fazer unidade, significa esvaziar as lutas. O relacionamento deve ser pela convergência, provocada, em primeiro lugar pela unidade do sistema explorador e do único regime; em segundo lugar, pela troca de experiências nos vários níveis procurando aquelas articulações que possam favorecer o movimento. A unidade deve ser vista como um processo: heterogêneo nas formas para respeitar as diferenças das lutas, convergente nos conteúdos fundamentais para somar forças. Isso se alcança sobretudo através de uma orientação de acumulação de poder e não de comando do movimento. Sabemos que não faltam os que pretendem se apropriar do processo. 5.1.2. politização Trata-se de repetir noutras palavras o que foi afirmado anteriormente. Deve ser superada a visão - ainda muito presente - que considera a resistência e certas organizações populares como simplesmente reivindicatórias, não políticas ou pré-políticas, algo a ser “politizado”. Essa perspectiva leva a instrumentalizar tais organizações para outro fim. É preciso superar a dicotomia econômico/político, sabendo reconhecer na resistência popular em todos os seus níveis o aspecto político, a base do político. Uma .invasão não significa somente a conquista de uma casa, isto é somente uma reivindicação econômica; além de atingir o Estado nesta luta, representa uma nova 68 Revista ceas 233.indd 68 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular experiência de organização, uma nova experiência de vida, uma nova forma de luta, um novo poder. O Movimento Popular não somente reivindica mas leva a questionar continuamente a política da Prefeitura e do Governo, aumentando a desconfiança e o descrédito. do Estado. O Gal. Golbery de Couto e Silva reconhece isso quando afirma: “Os verdadeiros agentes no campo político passaram a ser muito mais esses conglomerados do que o próprio partido único de oposição; E nesses conglomerados, pelo prestígio tradicional e proteção que poderiam oferecer, as organizações religiosas e para-religiosas assumiriam posição relevante, quase hegemônica”. 4 A mesma política social do governo confirma o potencial do movimento popular urbano ao multiplicar seus projetos sociais (Centros Sociais Urbanos, Prodasec, Promorar, Miniprefeituras...), procurando imitar a metodologia e as palavras desses “conglomerados” não-oficiais, entre outros as CEBs. Tais perspectivas são necessárias para pensar corretamente a relação entre Movimento Popular e partidos: esses últimos não podem substituir as organizações de base - de classe e de bairro nem transformá-Ias em órgãos de partido. A luta do movimento popular se apresenta como processo: é uma experiência de associativismo que leva a descobrir caminhos novos e a aumentar o poder; o partido apresenta-se como projeto, com um programa feito, muitas vezes bastante rígido. O projeto não deve dominar o processo, nele já está implícito; deve ajudar seu desenvolvimento. Nesse sentido o partido deve ser avaliado a partir do efetivo serviço que presta ao desenvolvimento do poder do povo, mesmo que esse serviço não seja “fazer trabalho de base” tipo CEB. Na conjuntura atual, concretizando o discurso, podemos reconhecer que há uma superestimação do movimento de base e uma desvalorização do nível partidário, particularmente no seio dos movimentos de Igreja; doutro lado não deixa de ser justificada tal desconfiança da _base em relação aos partidos de oposição, pois muitas vezes assistimos a intervenções mal orientadas, que enfraquecem ou desviam a organização popular. Tratando especificamente das CEBs nesse último ano elas entraram mais na dimensão política (partidária). Nalguns lugares grupos de igreja do identificados com partidos, assessores e base exigem urna definição partidária; há simpatia para com o PT que 4 Conferência na Escola Superior de Guerra (01.07.80). Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 69 69 27/09/09 10:04 Cláudio Perani surge alimentado também por trabalhos pastorais, mas não faltam as simpatias para com o PMDB, a depender das regiões. Muitos lastimam a “pressa partidária” e rejeitam identificações com partido, achando que o momento é mais para investir no sindicato e nas associações ou noutras organizações do povo. No último encontro de Itaici, alguns queriam urna definição partidária das CEBs. A discussão levou às conclusões finais: “a ação política boa é aquela que fortalece a organização popular (...) deve-se entrar na ação política partidária e discutir nas CEBs programas e práticas dos partidos (...) a CEB não é nem pode ser núcleo partidário”. Na prática concreta existem conflitos sobretudo onde há divergências partidárias entre agentes de pastoral e entre animadores. Não podem ser resolvidos abstratamente, mas deve-se favorecer o diálogo e a discussão para descobrir o melhor caminho. Em tese, não só por motivos de especificidade eclesial, mas também por motivo político conjuntural, pensamos que não seja oportuno identificar CEB com partido. A opção partidária, porém, não pode ser deixada unicamente à responsabilidade dos indivíduos: a comunidade toda tem a responsabilidade de avaliar os partidos a nível nacional e - sobretudo - local. Mais que identificar a CEB com partido ou recusar os partidos porque “apressados”, devemos pensar em termos de relacionamento, cada um guardando seu nível próprio, com as consequentes tensões. 5.2. Relação massa-vanguarda O Movimento Popular sempre foi ajudado por pessoas “externas”, ligadas ou não a instituições: agentes intelectuais motivados por ideologias, posições políticas ou inspirações religiosas diferentes, mas desejosos de servir à mesma causa do povo, de oferecer ou formar uma vido mais consequente. A relação entre esses agentes (vanguarda?) e as bases nem sempre é fácil. Por parte das bases há urna certa resistência por aspectos teóricos. Muitas vezes, porém, trata-se de divergências entre os mesmos agentes que são introjetadas no povo: a recusa da teorização. é mais recusa das idéias desse ou daquele grupo! Por parte dos agentes há uma dificuldade em compreender consciência e organização do povo, avançando demasiadamente (ou freando?), isolados nas linguagens abstratas e politizadas somente nas idéias, ou em objetivos doutrinários, “bandeiras” mecanicamente assumidas etc. 70 Revista ceas 233.indd 70 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular A vanguarda intelectual poderá servir na medida em que conseguir andar mais pelas bases e entrar mais em sintonia com lideranças que hoje exigem acompanhamento especial. Além disso, reconhecendo a necessidade de recorrer a outras experiências populares e a conceitos que ajudem a compreensão do processo, isso deve ser feito sem dogmatismo e sem pretensão de ser único depositário do modelo teórico, excluindo dessa procura o povo. A nível de CEBs encontramos as mesmas dificuldades, mais sutis, talvez, porque disfarçadas atrás de uma valorização nem sempre coerente do povo. Muitas vezes padres e freiras continuam segurando o poder. Talvez, se possa dizer “habitualmente”, pois apesar do grande crescimento da base popular e do esforço para redefinir a presença do padre, este é sempre o ponto de referência último também nas CEBs mais avançadas. Isso aparece sobretudo nos momentos chaves de conflito ou de mudança. Os animadores facilmente repetem o modelo autoritário dos agentes e se constituem como elo transmissor de um controle que mata a iniciativa das bases. Consequência disso, existe a falta de revezamento de lideranças, a nível de agentes e de animadores, impedindo o crescimento do conjunto e fechando a dinâmica do questionamento. 5.3. Relação entre movimento popular e CEB As CEBs evoluíram a partir da descoberta do Movimento Popular; esse último foi fortalecido a partir da presença das CEBs. Como se dá hoje a relação entre os dois? É um problema muito concreto e atual, pois a conjuntura, abrindo espaço para outras organizações e, em particular, para os partidos, leva a redefinir o papel das CEBs e a revelar ou esclarecer eventuais equívocos inevitáveis. Há, de um lado, uma exigência política, que a própria teologia do Vaticano II reconhece: a autonomia do Movimento Popular frente à Igreja e, por isso, frente às CEBs. Doutro lado, há um dado teológico: as CEBs, enquanto organismos eclesiais, devem guardar sua identidade dentro do movimento popular mais amplo. Na urgência da luta comum, essa poderia ser considerada uma questão secundária. No contexto, porém, de um efetivo compromisso no processo de libertação, permanece como problema teológico fundamental. A identidade cristã inclui a afirmação - expressa simbolica- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 71 71 27/09/09 10:04 Cláudio Perani mente - da dimensão escatológica. Mas há também elementos concretos que não são deriváveis de uma simples racionalidade política e que, apesar disso, são reconhecidos como válidos e necessários para o processo de libertação. Por exemplo, a dimensão da gratuidade, a urgência da conversão pessoal, a exigência do amor para com o inimigo, o compromisso atual com os oprimidos que não possuem grande potencial revolucionário, etc. Existem algumas interpretações erradas deste relacionamento. Uns consideram as CEBs só como espaço “supletivo”, importante porque na conjuntura atual - isso era mais afirmado no período de maior repressão - não há outros espaços disponíveis; outros consideram as CEBs como simples passo em direção ao político ou ao “verdadeiro” político. As duas interpretações - que têm certa validade - quando absolutizadas instrumentalizam a Igreja, eliminando seu caráter específico que a leva para uma presença contínua - além das conjunturas - na defesa dos direitos universais dos homens. Outro equívoco é querer transformar as CEBs num movimento popular paralelo, correndo o risco de construir uma nova cristandade em decorrência de uma excludência. Em tese, ninguém quer um movimento paralelo. Na prática isso se dá, mesmo inconscientemente, na medida em que as CEBs ficam fechadas sobre si, entram sozinhas na problemática de bairro ou de partido, excluem a colaboração com outros e procuram guardar a direção do movimento. Há o risco de que as CEBs se tornem sementes de uma nova cristandade, do momento em que as atividades sociais se apresentem como iniciativas dos cristãos das CEBs enquanto cristãos e não enquanto participantes de uma problemática social comum a muitos (cristãos e não cristãos) a ser esclarecida e superada também em comum. Uma última consideração sobre a questão das “infiltrações”. Recentemente houve pronunciamentos até de alguns bispos contra infiltrações nas CEBs. De que se trata? O que é infiltração? Se não devemos concordar com determinadas atitudes de instrumentalização das CEBs para outras finalidades, devemos também, e sobretudo, reconhecer o valor positivo de uma colaboração que ajudou as CEBs a abrir-se para uma visão mais política e, ao mesmo tempo, mais evangélica. É do seio dessas CEBs que nasce frequentemente a descoberta do jogo de poder pecaminoso e a conversão com sua exigência de meios políticos mais concretos, também partidários. Denunciar genericamente a infiltração, 72 Revista ceas 233.indd 72 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Comunidades eclesiais de base e movimento popular poderia significar um fechamento e um recuo, um medo e uma falta de liberdade. Mais ainda, pode levar a purificar os próprios quadros com processos sumários e pouco objetivos. 6. CONCLUSÃO Na conjuntura atual, depois de um grande florecimento e expansão das CEBs, parece haver situações de confusão, medo de concorrência, tentativas de recuo em vários lugares. Tal situação é própria da conjuntura pela qual passa o próprio Movimento Popular. No caso das CEBs pode haver o desnorteamento daquele que estava acostumado a ser dono. da área, quando agora encontra muitos outros atores. A história recente mostrou a fecundidade da dialética entre o Conjunto do Movimento Popular e as CEBs. Tal tensão fecunda deve continuar e os impasses devem ser superados não através do fechamento e corte dos contatos, mas enfrentando os desafios desse relacionamento, tendo como ponto de referência fundamental o interesse do povo. São Paulo cita o Antigo Testamento: “Eis que ponho na cidade de Sion uma pedra de escândalo, um rochedo que faz cair; quem nele crer, não será confundido” (Rm, 9,33). Sabemos que se referia a Jesus Cristo, mas sabemos também que Jesus quer ser reconhecido nos oprimidos. Por isso é legítima a interpretação que vê no povo oprimido a pedra de escândalo e o caminho da libertação. É necessário concluir que somente a fé no povo da periferia, posto na cidade como pedra de escândalo, pode ser referencial na confusão e iluminar a caminhada de libertação. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 73 73 27/09/09 10:04 Revista ceas 233.indd 74 27/09/09 10:04 PASTORAL POPULAR: PODER OU SERVIÇO? CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS, n.º 82, nov./dez. 1982) Entendemos por pastoral popular todas as iniciativas de igreja no âmbito das classes populares, nas quais o povo encontra um espaço para assumir sua responsabilidade na vivência de·uma fé comprometida com os problemas da justiça. São as Comunidades Eclesiais de Base, as várias Pastorais da Terra, da Favela, da Periferia, Pastoral Operária..., Movimentos Pastorais de determinadas categorias, Comissões de Direitos Humanos e de Justiça e Paz, Grupos de Assessorias etc, onde o “pastoral”, isto é, a ligação com a igreja, é explicitamente reconhecido. Nesse terreno, atualmente no Brasil bastante rico, dinâmico e diversificado, está em andamento um amplo debate político que acompanha o processo concreto da pastoral popular. Na medida em que as comunidades de base iam surgindo, logo apresentavam-se - além das intenções – como um espaço, não somente de reivindicação social, mas também político, quer dizer como um espaço de contestação do poder seja da Igreja, seja do Estado, seja do Capital. Não há dúvida porém que, depois da reformulação partidária e por ocasião das eleições de novembro de 1982, o discurso político - e não somente o discurso, claro! - entrou plenamente também no âmbito da pastoral. Encontramos vários posicionamentos práticos e teóricos, influenciando-se reciprocamente. Muitas dúvidas e perguntas ficam levantadas e serão equacionadas certamente a partir do desenvolvimento do processo. Queremos contribuir para o debate com estas breves reflexões sobre algumas questões que periodicamente aparecem sobretudo Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 75 75 27/09/09 10:04 Cláudio Perani entre os agentes de pastoral popular. Em síntese, pretendemos levantar o problema de como a pastoral popular se relaciona com o político, antecipando desde já nossa preferência por uma inserção a nível das massas e de suas necessidades, mais do que a nível ela articulação dos vários poderes. Evidentemente, nossa perspectiva deseja assumir o ponto de vista da Igreja que nasce dos Pobres, quer dizer, de uma Igreja que denuncia os opressores e que se solidariza com os oprimidos, comprometida com seu processo de libertação. O enfoque pretende ser teológico, considerando o que cabe à pastoral enquanto pastoral; isso não significa eliminar uma análise política, sempre necessária - em todo caso, sempre explícita ou implicitamente presente - mas, além dela, recorrer a critérios evangélicos que fundamentam a missão da Igreja e seu modo de realizá-la. 1. QUESTÕES DEBATIDAS Várias são as perguntas que se levantam no âmbito da pastoral popular; muitas delas necessariamente são as mesmas que põe a atual conjuntura do movimento popular; outras são mais próprias da pastoral. Sem pretensão de um quadro completo, apresentamos aquelas que parecem ocorrer mais freqüentemente, demorando-nos, nas duas primeiras perguntas, nas questões que atingem o movimento popular todo, mais amplo do que a pastoral popular. 1.1. Onde está o povo? a massa? Talvez seja o questionamento principal. “Povo” é certamente a palavra que mais aparece nas várias análises e não se pode negar que seja a preocupação e referência básica das lideranças, pastorais, sindicais ou políticas. Podemos entendê-lo aqui como “massa” (purificando o conceito da conotação negativa habitualmente atribuído-lhe), a grande maioria dos brasileiros, trabalhadores rurais, operários, moradores das periferias urbanas, biscateiros, empregados, sub-empregados, desempregados... Ele tem sua história: suas necessidades, sua consciência, sua luta do dia-a-dia, suas organizações, suas mobilizações (espontâneas?), sua cultura e sua religião... Conhecem as vanguárdias, os agentes, os assessores toda essa problemática? Mais ainda, está sendo reconhecida e assumida pelos mesmos? A pergunta, talvez, tenha que ser invertida: não tanto “onde está o povo?”, mas “onde estão as assim chamadas “lideranças”? Talvez se descubra uma grande distância, entre nossos esquemas e nossas articulações (sempre pretensamente definidos em nome do povo) e os esquemas e arti- 76 Revista ceas 233.indd 76 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço culações da massa (sempre considerada apenas como ‘’massa’’, quer dizer incapaz de uma visão crítica e de uma organização). Se isso for verdade, não estará colocado aqui - ainda hoje, depois de muitas autocríticas - um dos problemas políticos mais fundamentais para o avanço do processo de mudança? Não há excessiva pressa em sentenciar sobre o que o povo precisa e deve fazer? 1.2. Qual a influência da articulação das instituições tradicionais, das Associações de Bairro, Sindicatos, Partidos? Retoma o questionamento da pergunta anterior, mas explicitando o problema das organizações mais tradicionais. Tradicionais, no sentido das formas que já conhecemos e que são consideradas os canais habituais de organização do povo a nível de bairro, de trabalho e de poder político propriamente dito. Evidentemente, do diferentes entre si e cada uma tem sua própria especificidade que, numa análise mais aprofundada, deve ser atendida. Consideramos as associações, os sindicatos e os partidos que procuram atender aos interesses do povo e do por ele apropriados; Em particular, devemos avaliar a importância do partido, como canal político. Tais organizações estão efetivamente ajudando o crescimento da organização popular? Não existe uma defasagem entre as exigências do movimento popular e as estruturas e condicionamentos dos sindicatos e partidos, mesmo quando os sindicatos são “autênticos” e “de oposição” os partidos? O partido é considerado como o canal que politiza o movimento popular, quer dizer, que lhe dá mais conseqüência e rumo para transformar a sociedade toda. Fala-se, às vezes, de política em sentido amplo, abrangendo várias iniciativas e organizações, mas quando se quer falar mesmo de política, o partido toma-se o único lugar considerado. Tudo isso é colocado como algo de óbvio, sem nenhum questionamento. Será assim? Será que podemos afirmar tranquilamente que o partido unifica as lutas, aumenta o poder do povo, faz o processo avançar, se considerarmos os exemplos concretos conhecidos dos partidos de oposição, vistos em suas diferentes situações regionais? Mesmo que se trate de partido que se quer a serviço dos trabalhadores? Consegue o povo instrumentalizar associações, sindicatos e partidos para sua caminhada ou essas instituições realizam uma articulação - de cúpula onde o povo, mais uma vez, fica por fora? Desses questionamentos não ficam excluídas as CEBs, elas também sujeitas ao perigo de uma articulação bastante cupulista e controladora, longe da situação concreta das bases ou de uma supervalorização de sua influência em relação à massa dos batizados. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 77 77 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Muitas vezes o processo de crescimento do movimento popular é pensado como uma articulação que, a partir das CEBs, passando pelas Associações de Bairro e Sindicatos, chega ao Partido, num crescendo de poder. Será esse o esquema que melhor permite apreender o crescimento do movimento popular? Será que não corre o risco de passar ao lado do efetivo poder do movimento popular? 1.3. No domínio político qual é a tarefa da pastoral popular? Talvez a pergunta exista menos na prática concreta das várias pastorais e mais nas preocupações dos agentes e das autoridades de igreja e possa estar motivada também por uma exigência de segurar o próprio poder. Contudo, não deixa de ter grande relevância para a mesma prática. As CEBs hoje no Brasil, mesmo redimensionando sua influência, são uma força reconhecida por muitos e também temida por certos setores: é importante refletir sobre sua presença no político. Qual sua possível evolução? Qual o pensamento e a atuação da igreja hierárquica? A igreja brasileira renunciou a canalizar para um partido por ela controlado o seu grande potencial político que acumulou em si ao abrir seu espaço aos protestos das massas populares. O posicionamento habitual dos documentos oficiais da igreja de diferentes níveis é bastante unânime: “A igreja não tem ambições nem pretensões político-partidárias (...). Isto não significa porém que ela seja apolítica”1 A nível de princípios o problema parece simples: a igreja não é um partido nem pretende identificar-se ou apoiar um partido; ao mesmo tempo reivindica sua responsabilidade e compromisso nos problemas sócio-políticos, acompanhando “os homens no concreto das situações da vida individual e social”. Qual a tradução concreta e eficaz destas orientações na prática pastoral? A prática é sempre mais complexa. E aí as perguntas são diferentes. De um lado, pergunta-se por que a igreja vai até um certo ponto na problemática sócio-política e depois “abandona” os que se comprometem. Responsabilidade somente individual? A igreja não deve definir-se mais? . Tomar opções mais políticas? É falta de verdadeiro compromisso? Medo da igreja de sujar as mãos? Está certo considerar a pastoral como primeiro passo em direção ao político - como uns afirmam? De outro lado, pergunta-se: Deve a igreja identificar-se com partidos de oposição? Deve ela ser, na base, a madrinha dos partidos verdadeiramente populares? É por aí que deve passar a pastoral popular para ser fiel à sua missão, ser fiel ao povo? Não 1 CNBB, Reflexão cristã sobre a conjuntura política. Brasília, 29.08.81, n. 5-6. 78 Revista ceas 233.indd 78 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço se trata de uma identificação devida somente à coincidência da militância política dos membros das CEBs, mas de um reconhecimento fruto de iniciativas concretas da pastoral e de seus líderes. Outras perguntas podem ajudar a esclarecer melhor mais facetas deste mesmo problema. 1.4. Instrumentalização da fé Não tratamos aqui das tentativas de instrumentalização das CEBs, dos padres e da igreja em geral, por parte de grupos e partidos, em particular, na época eleitoral. Vamos considerar os riscos de certas atitudes internas da pastoral popular. Certamente a mensagem evangélica tem um conteúdo histórico: exige um compromisso da igreja no campo sócio-político. Às vezes, pode ser questionada a utilização dos dados da fé para justificar orientações políticas ou modelos concretos. Até que ponto nos deixamos questionar pela página bíblica em lugar de utilizá-la para defender um nosso posicionamento? Pode haver sentido, por exemplo, em afirmar que “Jesus foi o maior político” ou em contrapor a Política de Deus à Política do Faraó. O problema é não tirar destas afirmações conclusões indevidas para as decisões políticas concretas que exigem outras mediações e que por isso são relativas. Uma análise recente das cartilhas preparadas por vários setores da pastoral popular para as eleições de 1978 mostra a tendência de apelar para a missão divina da igreja para estabelecer a verdade revelada sobre a política.2 Não se corre o risco de desvirtuar a fé fazendo-a dizer o que não quer dizer e, ao mesmo tempo, de enfraquecer a política eliminando a responsabilidade do homem e, assim, alcançando o resultado oposto do desejado? 1.5. “Nova cristandade” disfarçada? Em tese a cristandade - quer dizer, uma instrumentalização da fé para resolver os problemas políticos, uma presença organizada e institucionalizada da igreja nos diferentes níveis da sociedade, sobretudo da política, em nome da fé - é por todos recusada. As experiências, pouco felizes, dos vários PDCs não tiveram entre nós muita repercussão, ainda menos no âmbito da pastoral popular. A cristandade é rejeitada também quando é pensada em termos de opção de esquerda. 2 J. A. GUILHON ALBUQUERQUE, “Fé em Deus e Pé na Terra”, cf. Cadernos do CEAS, n. 65, pp. 66-72. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 79 79 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Mas rejeitando a palavra, a realidade aparece em certas atitudes e questionamentos. A partir da insatisfação com o apartidarismo da igreja, por um lado, e por outro, a partir da desconfiança nas outras forças políticas, o passo é curto para pensar-se em construir uma alternativa que esteja, evidentemente, “do lado do povo”. Que significa o desejo de projetos alternativos? Que significa pretender uma organização política que nasça a partir das CEBs? Analisando cartilhas ou documentos de movimentos pastorais, encontramos palavras reveladoras: “a organização política nasce da fé” - “Jesus apresenta uma alternativa” - “formular um projeto para nova sociedade” - “encontro com grupos que somam na mesma proposta” - “aceitar o confronto com diversas tendências”... Não será que estas expressões indicam a tendência da pastoral popular a se constituir, de fato, numa alternativa política? Não seria nova forma de cristandade? Certamente o discurso da fé é concreto e globalizante, incluindo a vida social em todas as suas dimensões. Também o discurso político é globalizante. Como, entretanto, o discurso da fé se relaciona com o discurso político? É substitutivo desse último? Acrescenta uma segurança que os outros não têm? 1.6. Como a igreja pode acompanhar o movimento popular sem criar linhas colaterais e sem pretender dirigir? Tal preocupação, bem presente na pastoral popular, mostra o que acima era colocado: o desejo de não construir uma nova cristandade. A pergunta sobre a direção do movimento popular parece ser fundamental. Cabe à igreja querer a direção da construção da sociedade? Cabe â igreja dirigir o movimento popular? A resposta é negativa. Não deve. Mas não quer? Sendo que a igreja está presente neste movimento e não pode deixar de querer influir, põe-se a pergunta chave de qual deve ser sua presença. Muitos respondem com a palavra serviço. Mas, de novo, qual é o significado do serviço? Que conteúdo tem? Levantamos uma série de perguntas. Podem aumentar a confusão, mas podem também ajudar para compreender melhor e para aprofundar a caminhada da pastoral popular. Antes de voltarmos sobre esses questionamentos, vamos fazer um breve excurso bíblico. 2. ALGUNS DADOS BÍBLICOS Há dificuldades concretas ao recorrer â Bíblia. Há o risco de não considerar suficientemente a realidade com suas exigências imediatas, dando um salto que nos afasta da 80 Revista ceas 233.indd 80 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço prática para outros níveis de reflexão que nem sempre correspondem à necessidade da ação nem ao conteúdo da mesma Bíblia. Há o risco de justificar com a Palavra de Deus nossa opção política, fazendo dizer à Bíblia o que ela não quer dizer ou nos sentindo facilmente dispensados de uma rigorosa análise política. A Bíblia - sabemos - não é um livro de receitas sociais ou políticas, nem pastorais. É a história de um Povo, lembrada e celebrada a partir de situações sempre novas. É a história que nos lembra a presença contínua do “Deus que ouve o clamor do povo” e nos anima a procurá-lo nos acontecimentos do hoje, utilizando os recursos que temos e tomando nossas decisões inclusive políticas, sem esquecer que também nossa resposta libertadora é dom de Deus, é graça. Aos fariseus que pediam um “sinal” (Mateus 16,1), Jesus se nega. Ele devolve a pergunta ao povo: “Por que não julgais por vós mesmos o que é justo?” (Lucas 12,57). Quando se trata de justiça e, por extensão, de organização da sociedade, de política, de revolução, a Bíblia nos deixa com nossa responsabilidade. Isso não significa que não possamos encontrar cobranças e critérios, sobretudo na prática de Jesus Cristo, que possam iluminar a caminhada da pastoral hoje. Critérios, que não consideramos definitivos - sobretudo numa interpretação individual - mas que devem ser confirmados dentro da prática da comunidade toda. 2.1. O antigo testamento Parece haver no Antigo Testamento3 uma grande liberdade diante dos modelos políticos, que permite ao Povo de Israel situar-se em todos sem, de outro lado, poder dizer que um modelo particular é exigência da Palavra de Deus. Em relação, por exemplo, à instituição da monarquia, nos livros de Samuel encontramos as duas tradições, antimonárquica e monárquica.·As duas estão presentes e se questionam entre si. I Sam 8,4-22 pertence à tradição antimonárquica que não queria um rei, pois seria rejeitar a Deus, único rei. Israel quer um rei como todas as nações vizinhas; Deus é obrigado a atender ao pedido do povo, mas manda o profeta mostrar as conseqüências opressoras do governo de um rei: “Tomará os vossos filhos... Tomará também o melhor dos vossos campos... Tomará o dízimo... Tomará vossos servos e vossas servas...”. O texto de I Sam, 9,15-17 pertence à tradição monárquica que exige 3 Cf. G. RAVASI, “La Teologia Politica dell’Antico Testamento”, Aggiornamenti Sociali, 1981, p. 435-436. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 81 81 27/09/09 10:04 Cláudio Perani um rei como todas as outras nações: “Ungirá Saul para chefe do meu povo de Israel; para que ele livre o povo das mãos dos filisteus”:. O rei será a presença de Deus no povo e o libertará dos inimigos. I Sam 12,19-20 parece um texto de síntese: “O mal (pedir o rei) está feito; agora não vos desvieis do Senhor”. Dentro da nova situação política Israel é convidado a defender e praticar os princípios de sempre. Quanto aos dois sistemas de governo, teocrático e leigo, há no Antigo Testamento uma oscilação ou uma contínua dialética entre os dois. O contexto político bíblico dominante parece ser teocrático; política e fé intimamente entrelaçadas entre si, uma tomando as funções da outra. O rei é colocado no trono por Deus, em nome do Senhor (2 Cron 9,8). Nos livros de Esdra; e Noemia; o compromisso político fundamental é a reconstrução do Templo e dos muros de Jerusalém símbolos do poder sacerdotal e da segregação social de Israel dos outros povos. A certeza de serem os únicos verdadeiros crentes leva os israelitas a pensar que sozinhos podem exercer uma política justa. E nos profetas encontramos continuamente um apelo para a “guerra santa”, para um compromisso nacional sem recurso a alianças com outras nações. A subsistência política está ligada à fé em Deus (lsaías 7,9). De outro lado, a crítica ao sistema monárquico pelo profeta Samuel baseia-se sobre a qualidade leiga da realeza. Nas relações entre Saul e Samuel, o rei tentará excluir a autonomia do profeta (I Sam 13,8-14). Em todo o Antigo Testamento há uma corrente que reclama a dessacralização da política e a despolitização da religião. Zacarias, por exemplo, reconhece dois “ungidos”, duas coroas: aquela do sacerdote Josué e aquela do rei Zorobabel (cf. Zacarias 4,11-14). A categoria “aliança”, central na reflexão do povo de Israel, foi se purificando aos poucos: do sentido de “pacto político” passou ao sentido de “adesão livre do fiel e do povo a Deus”. Sobretudo nos livros sapienciais afirma-se a autonomia da política. Por tudo isso é difícil afirmar que o Antigo Testamento opte por um modelo político ou favoreça um a preferência do outro; dê preferência absoluta ao modelo monárquico ou anti-monárquico, ao modelo teocrático ou mais ao leigo. A política está sempre presente, mas no mesmo tempo é relativizada. O que aparece claro como exigência de Deus é a necessidade de, em cada escolha política, defender a justiça, os direitos humanos, a liberdade, a esperança. 2.2. O novo testamento Na prática e nas palavras de Jesus, em relação ao nosso tema, encontramos duas dimensões. 82 Revista ceas 233.indd 82 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço A prática de Jesus é uma prática sócio-política: Jesus se interessa por questões materiais e econômicas, pela situação social do povo, questiona a ordem oficial... ; Jesus cura os enfermos, expulsa os demônios dos possessos, distribui o pão, freqüenta os marginalizados - prostitutas, pecadores, publicanos, estrangeiros; questiona o Sábado e o Templo, instituições fundamentais de Israel; ataca frontalmente os anciãos do povo, os sacerdotes, os doutores da lei, os fariseus; anuncia a libertação dos pobres; discrimina pobres e ricos; é preso e condenado por razões político-religiosas. Mas a prática de Jesus é diferente da política dos outros, não somente porque privilegia pobres, pecadores, publicanos..., mas também pela maneira com que atua e pelos recursos que utiliza. Diferencia-se, por exemplo, da prática dos Zelotas, que se apunham aos romanos, querendo mudar a ordem vigente. Jesus foge, quando o povo queria fazê-lo rei (João 6,15); quando aceita entrar em Jerusalém com a multidão que o reconhece com rei de Israel; ele entra montando num jumentinho, certamente para significar um tipo diferente de realeza (João 12,14); ao ser preso recusa a espada e as “legiões de anjos” que poderiam defendê-lo (Mateus 26,53), assim como o poder e a força dos seus “súditos”, a multidão (João 18,36); recusa a imagem de Messias que estava na expectativa de todos, imagem de um político que teria continuado a tradição dos reis de Israel (Marcos 8,27-33). Quando Jesus explicita essa prática, apresenta o exemplo do lava-pés e utiliza a palavra serviço (João 13, 1-20). Esta palavra não se encontra na tradição bíblica do Antigo Testamento nem é usada no mundo helênico para indicar autoridade. Ela não pode ser compreendida no sentido de poder, dignidade ou domínio. Indica claramente inferioridade. O servo é aquele que depende do dono, trabalha de empregado, serve a mesa. Não se trata aqui de Jesus querer enaltecer ou ratificar a situação de “empregado”, mas de sublinhar a dimensão de entrega aos outros sem exercer domínio. Também devemos lembrar os outros dados do Evangelho: a dimensão da fraternidade e da amizade. O termo “serviço” questiona mais o poder. “Os chefes das nações dominam sobre elas e os seus intendentes exercem poder sobre elas. Entre vós, porém, não seja assim; mas todo o que quiser tomar-se grande entre vós, seja o vosso servo; e todo o que entre vós quiser ser o primeiro, seja escravo de todos. Porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em redenção de muitos” (Marcos 10,4245). Não se exclui o poder político necessário para organizar uma sociedade; é só lembrar a defesa da autoridade civil em outros textos do Novo Testamento. Trata-se de reconhecer a função de Jesus e de seus seguidores nesta sociedade. Parece claro que não vai na linha de assumir o poder, mas de prestar um serviço. Através da radicalidade do amor ao próximo questiona, evidentemente, toda lógica do poder autoritário que oprime os homens, sem pretender, porém, substituir-se à autoridade civil. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 83 83 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Temos que interpretar os dados evangélicos sem eliminar uma parte, guardando sua complementariedade em tensão. A prática evangélica é concreta e material (o termo “política” não deixa de suscitar equívocos) e com isso exclui qualquer possível identificação com uma interioridade isolada, com um espiritualismo e individualismo de certa tradição cristã. É uma prática preocupada com a divisão dos bens, com a realização da justiça, desde já, no imediato e no cotidiano, em qualquer estrutura política em que a gente se encontre; privilegiando os valores pessoais e a mudança do “coração”; sem perder de vista a relação com as estruturas e o caminho propriamente político, mas dentro dele procurando espaços de igualdade, fraternidade, democracia, no aqui e agora. É uma prática que privilegia (cujos autores são) os pobres, as multidões marginalizadas. A prática evangélica não é política no sentido de ela assumir o poder. Exclui o governo, a primazia e o poder para si, e com isso evita ser reduzida à esfera da política, entendida como globalidade objetiva que estrutura a sociedade toda através de instrumentos de poder próprio. É uma prática que busca despojar-se do poder (Marcos 4,30-32, parábola do grão de mostarda), atuando numa dimensão de serviço. Nisso, ela pode questionar os limites do poder histórico. As sociedades criam instrumentos de poder que podem variar de um tempo e de uma sociedade para outras. Mas deve haver alguém que se afaste dos instrumentos de poder para dar testemunho de que o “Reino de Deus não chega com poder”. Significa que, no pano de fundo da luta de classe a prática evangélica se apresenta como um apelo contínuo para a liberdade, para a fraternidade radical a ser realizada desde já em todos os espaços existentes, e não como um poder que luta contra outro poder. 3. PROPOSTA PARA A PASTORAL POPULAR Voltamos aos problemas concretos levantados nas perguntas iniciais com essa orientação sintetizada na palavra serviço. Devemos cuidar de não fazer uma transposição literal da palavra evangélica. É necessário também, utilizar aquelas mediações pastorais que permitam uma concretização da perspectiva sintetizada pelo Evangelho na palavra serviço. 3.1. Colocação do problema: a pastoral deve estar comprometida com a política. De início é bom lembrar que a pastoral deve estar comprometida com toda a vida do povo, com suas lutas em todos os níveis, também político e partidário. A exi- 84 Revista ceas 233.indd 84 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço gência evangélica de amor/justiça e de fé é uma exigência abrangente e radical. É inútil insistir sobre esse ponto. Todos os documentos oficiais da igreja declaram isso. “A igreja - afirma Puebla - sente como dever e direito estar presente neste campo da realidade, porque o cristianismo deve evangelizar a totalidade da existência humana, incluindo a dimensão política. Por esta razão, critica a todos aqueles que tentam reduzir o espaço da fé à vida pessoal ou familiar, excluindo a ordem profissional, econômica, social e política” (n.515). O partidário, evidentemente, pertence à política. A igreja deve estar comprometida como corpo pastoral, como CEB enquanto tal, e não somente através de seus membros individualmente considerados. A distinção muitas vezes apresentada: a hierarquia não entra no político, sendo que aos leigos cabe o compromisso propriamente político, pode suscitar um certo equívoco. A hierarquia, enquanto mais representativa do corpo todo, não cabe determinado empenho partidário; mas também os leigos, enquanto operando como comunidade pastoral, estão sujeitos aos critérios da pastoral. Evidentemente, os leigos, enquanto cidadãos do mundo, têm sua autonomia. Mas, na medida em que se apresentam como igreja ou apoiando-se na representatividade eclesial, participam da função política da comunidade toda, com sua radicalidade e seu caminha próprio. Resta saber como a pastoral deve estar comprometida com o político. Aqui estão as divergências e as dificuldades. 3.2. O que vamos considerar para discutir o problema a) Resultados já adquiridos pela pastoral Antes de entrarmos em reflexões mais teóricas, será bom apelar para a experiência e lembrar os resultados já adquiridos pela pastoral, pois toda orientação deve partir daí. É universalmente reconhecida a eficácia, também no campo político, das CEBs. Declarações de políticos e empresários refletem o medo e a desconfiança diante desse fenômeno. Tristão de Athayde apresenta o motivo: “tocam diretamente em nosso calcanhar-de-aquiles político, isto é, na participação do povo (...) As CEBs são grupos de fronteira, entre o religioso e o político e não grupos arreligiosos ou apolíticos. Daí a sua eficácia, tanto espiritual como social”.4 A política social do governo, procurando intervir sobretudo nas periferias urbanas 4 “O medo das comunidades”, Jornal do Brasil, 25.06.81. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 85 85 27/09/09 10:04 Cláudio Perani para controlar a força das pastorais e imitando o modelo, a linguagem e a metodologia das CEBs, é outra prova da eficácia da pastoral popular. A luta pela terra é uma das preocupações maiores de muitos empresários e do governo, que chegou a constituir um novo ministério, o Ministério de Assuntos Fundiários. Segundo o Presidente do INCRA, Paulo Yokota, o problema maior está na atuação das Comissões Pastorais da Terra, porque “para cuidar destas questões existem as autoridades e o sistema sindical (...). Mas têm surgido organizações mal definidas. Não entendo bem o sistema da CPT. Parece que existem CPTs nas cidades, regiões e estados. Cada bispo é independente, ligado diretamente ao Papa. Afinal, quem responde por quê? Não há um canal adequado e competente para o entendimento”.5 A confusão do Presidente do INCRA revela o resultado da pastoral da terra que não se apresenta como canal oficial, mas fortalece o poder dos interessados, os posseiros. Não devemos esquecer o testemunho do ex-Ministro Golbery quando dava como razão da reformulação partidária a necessidade de canalizar para quadros partidários oficiais (e por isso mais controláveis) o poder político adquirido pelos vários “conglomerados” entre os quais as organizações religiosas, por exemplo, as Comunidadas Eclesiais de Base.6 Não faltam as perseguições e os mártires. O poder opressor reagiu várias vezes matando leigos e padres da pastoral popular. Outro sinal de perseguição é a violenta e perversa campanha de falsificações, atingindo grupos e bispos da pastoral popular, revelando com clareza o motivo político desta reação na medida em que sempre aparece a preocupação fundamental com a “subversão da ordem” e com o dogma da “propriedade particular”. Parece que se possa concluir que a presença da igreja no meio do povo e no campo das lutas populares, mesmo ficando fiel à sua missão religiosa mas que implica num compromisso pela justiça, desconcerta e desmoraliza os donos do poder e fortalece o poder do povo. Isso, ao nosso ver, não unicamente por razões conjunturais de forte repressão, tem um alcance mais amplo que pode perdurar no atual período de abertura. Há necessidade de uma análise política, como base para uma ulterior reflexão pastoral. Sem demorarmos nesse ponto, podemos - muito sinteticamente - encontrar dois enfoques divergentes na análise do movimento popular. 5 “Luta pela terra volta a preocupar o Governo”, Folha de São Paulo, 08.08.1982. 6 Cf. Cadernos do CEAS, n.º 75, p. 30. 86 Revista ceas 233.indd 86 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço b) Análise política Há necessidade de uma análise política, como base para uma ulterior reflexão pastoral. Sem demorarmos nesse ponto, podemos – muito sinteticamente – encontrar dois enfoques divergentes na análise do movimento popular. O primeiro privilegia o poder popular, o poder das massas. Procura detectá-lo no dia-a·dia da vida do povo e reconhecê-lo em suas próprias formas de resistência contra o Capital e o Estado, na fábrica, no bairro, no campo, com suas formas de organização e suas mobilizações; tenta favorecê-lo a partir de baixo, quer dizer, respeitando a consciência, as necessidades, as novidades dos instrumentos, a criatividade e a participação das classes populares. Os instrumentos clássicos de organização política, associações, sindicatos, partidos, são vistos, eles também, a partir de baixo, isto é, são apreciados na medida em que conseguem ser instrumentalizados pelas classes populares. É uma perspectiva que só pode pensar a mudança da sociedade em termos de longos prazos, considerando a limitada consistência conjuntural do poder popular. Ao mesmo tempo, porém, promove a revolução hoje, na medida em que os trabalhadores enfrentam desde já o capital e conquistam seus espaços de liberdade. O segundo enfoque privilegia a articulação de cúpula. Favorece a organização e o fortalecimento das associações, dos sindicatos, dos partidos de oposição, visando em primeiro lugar ao Estado. Favorece alianças e frentes com setores diferentes das oposições com o intuito de conquistar os instrumentos de poder do Estado. Na posse desse poder, tornar-se-á viável uma mudança radical da sociedade em favor das classes populares. Parece uma perspectiva mais realista, implicando em prazos mais curtos. Conta muito com a atuação de vanguardas e com a preparação de lideranças que possam levar as massas. A articulação dá-se prioritariamente a nível das cúpulas, sem poder esperar a marcha mais lenta das bases. Talvez, as duas perspectivas, na prática, possam andar misturadas,questionandose entre si. Não pretendemos aqui discutir o· assunto. O exposto é suficiente para mais adiante, também por motivos teológicos, concluir na preferência da pastoral pelo primeiro enfoque. c) Análise teológica A análise teológica intervém com novos critérios para orientar a pastoral. Vimos alguns dados bíblicos: relativizam os modelos políticos e exigem, desde já, em qualquer situação, um compromisso com a justiça e os oprimidos; escolhem a pers- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 87 87 27/09/09 10:04 Cláudio Perani pectiva do serviço e da fraternidade contra o poder que oprime. Tudo isso leva a preferir engajamentos mais com as bases do que com os níveis de articulação de cúpula. Vimos as definições habituais dos documentos oficiais da igreja e de muitas cartilhas: a igreja não deve identificar-se com nenhum partido, mas seu compromisso é com a política em sentido amplo. Tais afirmações suscitam equívocos e também um certo repúdio. 3.3. Pastoral: política em sentido amplo “Política em sentido amplo” pode significar um desengajamento, um medo de comprometer-se, um ficar olhando pela janela, enquanto os outros sujam as mãos. A pastoral - afirma-se com certa lástima - vai até um certo ponto: entro se cobra uma ulterior definição ou se dirige por fora dos sindicatos e dos partidos, preparando os quadros das organizações que a igreja não pode assumir. Tais interpretações do erradas. Que na prática muitos setores de igreja se afastem do apoio ao movimento popular por razão de medo, para não comprometer-se e, sobretudo, para não perder determinados benefícios e poder, é um fato. Mas, no caso da pastoral popular, constatamos o contrário: a possibilidade de um compromisso bem concreto, no aqui e agora das lutas das classes populares, através de um testemunho corajoso, que chega muitas vezes até a dar a vida. Não se pode falar de descomprometimento. E tudo isso sem necessidade de atuação partidária. O problema deve ser equacionado considerando a questão do poder. A pastoral “chega até um certo ponto” porque não cabe a ela assumir o poder. O poder deve ser do povo. Essa atitude da pastoral não é uma recusa do caminho do poder para mudar a sociedade. (Este é necessário e indispensável para uma organização histórica que tem seu mérito em assumir o limite conjuntural). É um respeito à sua missão “pastoral”; é recusa do poder para si, do papel de vanguarda para favorecer o poder do povo e, também, para poder questionar em todas as situações um abuso de poder, possível nas organizações populares. Guardando fidelidade ao seu âmbito próprio, a pastoral dá uma maior contribuição política. É o contrário do que se pode pensar: identificando-se com uma corrente ou um partido, a pastoral seria um partido a mais, mesmo que se possa pensar no partido ideal, e o resultado seria a perda de muita força popular; ficando “pastoral” teria uma contribuição própria a nível de defesa dos pobres, valorização dai massas, respeito das pessoas, favorecimento dos valores, questionamento do autoritarismo..., o que nem sempre é possível à política propriamente dita. 88 Revista ceas 233.indd 88 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço 3.4. Os riscos atuais Determinados riscos estão presentes hoje na pastoral popular: o perigo de ser instrumentalizada por propostas políticas, mas também o perigo de ela fazer aliança com certas correntes. Não se trata de identificação prática, por exemplo entre CEBs e diretórios do PMDB ou do PT, por razão da maioria de seus membros estarem engajados em tais partidos. Aceitando como inevitáveis determinados riscos inerentes à prática, trata-se de avaliar orientações pensadas e refletidas que influem nas pastoral popular. É importante voltar à visão do processo popular, anteriormente analisado. Na medida em que a pastoral popular, como missão própria, privilegia os pobres e as massas e não pretende dirigir nem ser uma organização política, mas um serviço ao movimento popular, parece mais oportuno e consentâneo - como orientação básica do seu trabalho - o primeiro enfoque que privilegia o poder popular, mais que o segundo que privilegia a articulação de cúpula. Nem sempre acontece isso. Muitas vezes há uma supervalorização das organizações tradicionais com seu inevitável nível de cúpula. Há uma passagem muito rápida do político para o político partidário. Em particular, encontra-se uma afinidade grande entre a proposta do PT e os anseios das CEBs. Outras vezes, apesar da afirmação em contrário, movimentos pastorais atuam como “correntes” sindicais ou políticas, na medida em que elas se definem em contraposição a outras correntes e ficam preocupadas em concorrer a nível de certas propostas de articulação. Assessorias pastorais podem articular a partir de análises e de propostas que nem sempre correspondem ao processo local. Tudo isso deve ser avaliado para ver a coerência com aquilo que se pretende: o serviço ao povo. A propósito de serviço, podemos reconhecer a fecundidade de certas pastorais que nasceram com o explícito propósito de não organizar movimentos, mas de favorecer as lutas dos camponeses nos diferentes lugares e segundo as diversas necessidades. Nas pastorais sociais existe uma certa polarização entre o que poderíamos chamar a pastoral como “movimento” e a pastoral como “serviço’’. A primeira, pela necessidade de formar seus quadros e de manter uma organização própria onde a pastoral seja bem explícita (também com relação à ligação com a hierarquia), na medida em que entra no campo sócio-político, tem mais dificuldade em colaborar com os outros e sente a necessidade de se definir mais em contraposição às outras propostas políticas existentes. A segunda parece ter mais facilidade em tornar-se presente lá onde maior é a necessidade oferecendo a solidariedade e a ajuda da igreja. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 89 89 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Não se exclui, evidentemente, a necessidade e possibilidade de também os “movimentos” orientarem-se numa perspectiva de serviço. 3.5. Síntese, concretizando a proposta Resta concretizar um pouco - como conclusão - o que entendemos por pastoral de serviço. Negativamente, a perspectiva do serviço deveria levar a questionar as relações da pastoral com as cúpulas, as diretorias, as lideranças dos vários movimentos, mesmo quando são de oposição e “autênticos”; parece mais próprio de um trabalho pastoral uma contínua atitude de autonomia e de questionamento dos quadros institucionais, para favorecer os interesses das bases. A pastoral não deveria colocar-se a reboque de propostas sindicais ou partidárias, mesmo quando podem ser reconhecidas como “as mais coerentes”; tal posicionamento prejudicaria uma maior presença noutros setores. Na mesma linha, não se trata de - como pastoral - entrar em alianças ou frentes: isso exigiria necessariamente uma definição “partidária” da pastoral. Temos também que evitar o perigo de querer controlar por fora, sendo que não podemos assumir a liderança das organizações políticas; isso pode acontecer quando no âmbito da pastoral se preparam os quadros e as decisões a serem tomadas pelos indivíduos nas várias articulações ou organizações em que estão engajados. Positivamente, a maior preocupação deveria ser o contato com as massas e suas necessidades; lembrar os muitíssimos esquecidos e marginalizados, fora das mobilizações e das organizações maiores; deslocar-se para ir lá onde os oprimidos vivem seus conflitos para oferecer a própria solidariedade efetiva, mesmo quando a gente não tenha “nem ouro nem prata” para solucionar os casos; favorecer a integração do povo todo. A pastoral deveria ser mais um espaço de troca que de articulação, um espaço de convivência dialógica de posições políticas diferenciadas; para isso é necessário não oferecer critérios políticos ou propostas já feitas que teriam como resultado a exclusão das outras propostas. A fé é certamente uma instância crítica, mas por si mesma dificilmente pode chegar a indicar caminhos políticos. Deve-se cuidar de não transformar a pastoral num lugar superior de criticidade: a fidelidade à troca verdadeira e à perspectiva de serviço (último lugar) deveria impedir esse risco. A pastoral deveria apoiar as lutas dos outros, seja através da solidariedade da comunidade como um todo, seja através do compromisso de cada cristão nas organizações e mobilizações sem visar a favorecer diretamente a Igreja. Procurar contribuir para a realização da justiça, desde já, em qualquer situação ou espaço que se apresenta. Em relação aos partidos, o ponto 90 Revista ceas 233.indd 90 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular: poder ou serviço de referência deveria ser o mesmo: o interesse das massas; deve-se cobrar por baixo e avaliar a partir do movimento popular e da capacidade deste de instrumentalizar os parti· dos para que seu poder cresça, procurando a concretização daqueles ideais de democracia e fraternidade que os limites da conjuntura permitem. São algumas dicas, evidentemente, discutíveis mas podem ajudar para uma avaliação e um debate sempre necessários para que a pastoral popular acerte continuamente, também nas maiores dificuldades da conjuntura atual, guardando fidelidade ao serviço do povo e às exigências evangélicas. Devemos lembrar a necessidade de evitar o purismo que impede qualquer iniciativa e é sempre conservador. No concreto possível, onde há sempre mistura de poder e serviço, é importante manter a tensão na perspectiva do Evangelho. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 91 91 27/09/09 10:04 NOVOS RUMOS DA PASTORAL POPULAR CLAUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 107, jan.-fev. 1987) É freqüente, neste período de transição política, ouvir de vários lados que se esgotou um caminho da pastoral popular e que é necessário inovar, procurar outros modelos. Isto, aliás já está sendo ensaiado, repetindo esquemas velhos ou experimentando novas aberturas. Nos últimos anos, apareceram vários estudos procurando dar conta da transformação, da igreja nas décadas mais recentes e de sua influência na caminhada da libertação1. 1 BETTO, Frei: Comunidade Eclesial de Base, São Paulo, Brasiliense, 1981; Id.: “As CEBs como potencial de transformação da sociedade”, in REB 43 (171), set. 83, pp. 494-503; BOFF, Clodovis: “A Igreja, o poder e o povo”, in REB, 40 (157), março 80, pp. 11-47; BOFF, Leonardo: Igreja, Carisma e Poder, Petrópolis, Vozes, 1981; CAMARGO, C.P.F.: “A Igreja do Povo”, in Novos Estudos Cebrap, V.l, N. 2; GALLETTA, Ricardo: Pastoral Popular e Politica Partidário, Campinas, Unicamp, 1986 (mimeo); KRISCHKE, P. e MAINWARING, Se. (org):A Igreja nas Bases em Tempo de Transição, Porto Alegre, L & PM-CEDEC, 1986; LESBAUPIN, lvo (org): Igreja, movimentos populares e política no Brasil, São Paulo, Loyola, 1983; PAIVA, Vanilda (org): Igreja e Questão Agrária, São Paulo, Loyola, 1985; PIERUCCI, A.F.: “Comunidades de Base. Origens e Desenvolvimento”, in Novos Estudos Cebrap, V, I, N. 2; ROMANO, Roberto: Brasil: Igreja contra Estado, São Paulo, Kairós, 1979; SOUZA LIMA, L.G.: Evolução Política da Igreja e dos Católicos, Petrópolis, Vozes, 1979; AZEVEDO, Marcello: Comunidades Eclesiais de Base e Inculturação da Fé, São Paulo, Loyola, 1986. 92 Revista ceas 233.indd 92 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular Desejo dar minha contribuição refletindo sobre algumas questões debatidas hoje no âmbito da pastoral popular, sem pretensão de indicar soluções e assumindo a visão limitada de uma análise mais localizada na região nordestina e influenciada pela dinâmica da pastoral popular neste espaço geográfico. A complexidade e diversidade de situações é tão grande, no Brasil, que é muito difícil poder colocar orientações gerais. É fundamental avaliar cada situação na sua especificidade para poder concluir sugestões para uma prática concreta. Tento aqui levantar algumas questões que deverão ser aprofundadas, sem deixar de dar uma opinião pessoal. 1. HISTÓRIA DAS CEBs Em julho de 1986, realizou-se em Trindade (GO) o 6.º Encontro Intereclesial de CEBs, contando com a participação de 1647 pessoas, 742 das quais eram representantes da base. Só o número dos presentes é indicativo do crescimento das CEBs. A problemática tratada - o jeito novo de toda a Igreja ser; a luta pela nova sociedade; terra de Deus, terra de irmãos - mostra o avanço na renovação da igreja e na contribuição para uma mudança política. É necessário, porém, visitar as comunidades em seu trabalho cotidiano para poder avaliar melhor sua consistência atual e suas dificuldades. Aí, em vários lugares, ouvese com freqüência a palavra crise. Penso tratar-se de uma crise de crescimento. Diante da caminhada percorrida e dos desafios da nova conjuntura, o modelo de pastoral até então utilizado não dá mais conta do recado: deve ser repensado e atualizado. Vou apresentar uma situação idealizada, juntando diferentes experiências nordestinas de CEBs, sobretudo do interior. Faz 10 a 15 anos que surgiram grupos de cristãos, nas roças, nos pequenos povoados, nas periferias das cidades, que se reuniam para rezar, comentar a bíblia, colocar em comum suas vidas. Surgiram a partir do interesse pela Palavra de Deus ou motivados por situações de conflitos, como a necessidade de se defender da grilagem. Tais iniciativas significaram uma descentralização da igreja em sentido geográfico e social. Aumentou o número das pessoas comprometidas, formou-se um grupo de animadores, desenvolveu-se uma prática religiosa muito comprometida com ações concretas, no nível sócio-político, envolvendo um círculo maior de pessoas. Tudo, porém, centrado na Comunidade Eclesial de Base. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 93 93 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Aumentando as lutas, membros das CEBs de diversos lugares passaram a atuar também em outras instituições, entrando em contato com sindicatos, associações de bairro, partidos etc. Na maioria dos casos, foi desenvolvido todo um trabalho de “oposição”, para tentar transformar (ou criar novos) sindicatos e associações, que dessem uma maior ênfase às práticas cotidianas e à democracia de base. Muitos animadores tornaram-se dirigentes destas organizações sindicais. Setores das CEBs e das pastorais populares simpatizaram, na maioria dos casos, com a Central Única dos Trabalhadores. Mais tarde, sobretudo por ocasião das eleições de 1982 e de 1986, entrou a preocupação com o partido, manifestando-se um apoio mais direto ao Partido dos Trabalhadores e a candidaturas mais populares. Se, depois de 1982, o envolvimento partidário sofreu um certo recuo, já na campanha pela Constituinte setores de pastoral se comprometeram diretamente, lançando seus candidatos. Estamos diante de um crescimento das CEBs, que possibilitou a abertura para um trabalho mais político. Este, por sua vez, cria para as CEBs uma nova situação, dentro da qual aparece a palavra crise, no sentido de fase de transição, com a necessidade de rever certas orientações e práticas que antes deram certo, mas que agora não dão mais conta da nova complexidade. Nesta situação os caminhos se diversificam: umas CEBs insistem mais na prática bíblico-religiosa, outras abrem mais ainda para outras formas de luta. Se o rumo fundamental da opção pelos pobres, da participação dos setores populares e da solidariedade com suas lutas está traçado, nos passos concretos a serem dados percebem-se, às vezes, incertezas e mal-estar. Também a conjuntura política de transição ou de “abertura” cria uma nova situação para a pastoral popular. Continua, substancialmente, o mesmo modelo econômico, com reajustes a nível político, procurando favorecer uma democracia formal. Os canais políticos da sociedade civil aparecem mais claramente. Modifica-se a política de intervenção do Estado, que, sem abandonar seu braço autoritário, tenta incorporar metodologias populistas e desenvolve políticas econômicas e sociais com o objetivo implícito de esvaziar a resistência popular. Com a abertura partidária e o projeto da Constituinte, toma novo vigor o caminho parlamentar. A própria autoridade eclesiástica intervém mais explicitamente através de Campanhas - pela Reforma Agrária, pela Constituinte - orientando e mobilizando suas bases. A pro- 94 Revista ceas 233.indd 94 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular pósito da Constituinte, alguns falaram de momento de convergência de forças cristãs. Por essa nova conjuntura e pelo caminho andado pela pastoral popular, podemos falar, também, de uma Transição Pastoral que dura já alguns anos. Parece que se esgotou um caminho e que seja necessário abrir outros. A dificuldade está em conseguir inovar a partir da experiência adquirida, seja a nível interno de renovação eclesial, seja a nível de contribuição na luta mais ampla do movimento popular. Para refletir sobre isso, é necessário ver melhor quais os impasses que existem. 2. QUESTÕES EMERGENTES 2.1. Esvaziamento das CEBs É difícil poder fazer uma apreciação em termos numéricos. Desde o início, apesar de seu desenvolvimento, as CEBs atingiram apenas pequenos grupos. Em sua história, a participação de seus membros sofreu oscilações. Nos últimos anos, em vários lugares constatamos um certo descenso. Podemos considerá-lo fenômeno passageiro normal ou está ligado a causas que seria importante analisar? Certamente, a nova situação tem sua influência. O avanço da consciência e das lutas leva muitos membros para outras atividades políticas, fato que pode ser considerado positivo, mas que coloca o problema de como as CEBs vão renovando suas forças e continuam dando sua contribuição específica. Muitos, ao contrário, saíram - ou não entram por não aceitarem determinadas lutas ou considerarem enfraquecido o aspecto religioso. Pode ser a fuga diante de um compromisso maior, mas também pode ser resultado de certo fechamento ou de certo “radicalismo” partidário da comunidade eclesial. Devemos lembrar que as CEBs, apesar de serem as que mais têm contato com a massa dos despossuídos, sempre tiveram dificuldade para aproximar-se daqueles - não são poucos - que estão no último degrau da sociedade, populações marginalizadas de tudo, carentes, indigentes. São os bóias-frias, os diferentes peões, os biscateiros, as lavadeiras, os limpadores de rua, os lixeiros, os operários não qualificados, os que convivem com o desemprego... Neste ponto fica levantada uma grande questão: deve-se privilegiar uma elitização da pastoral popular ou favorecer a capacidade de abrir-se mais às massas? Entendo o Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 95 95 27/09/09 10:04 Cláudio Perani “abrir-se mais às massas” não tanto como uma questão numérica (trabalho com poucos ou com muitos), e sim no sentido de conseguir se relacionar com a linguagem e os problemas do dia-a-dia da massa dos trabalhadores. Isso vale tanto para os agentes como para os participantes populares das CEBs, pois não do poucos aqueles que, por sua consciência, linguagem, tipos de engajamento, acabam se distanciando da maioria do povo. Parece até contraditório pôr este problema no momento em que as CEBs adquirem maior consciência política. Mas temos constatado muitas vezes como determinados engajamentos - em particular as campanhas eleitorais - conseguem desarticular uma organização mais ampla, mais consistente e mais a longo prazo. 2.2. As lideranças Aqui se levantam dois problemas. O primeiro foi bem focalizado no encontro de Trindade: Como guardar a ligação entre o povo das CEBs e os militantes na política partidária? Mais em geral, trata-se de reconhecer as novas necessidades, em termos de fé e de engajamento, dos animadores que se comprometeram em outras frentes de luta (sindicais, partidárias. etc). Evidentemente, não poderio dispor do mesmo tempo para a comunidade nem terão os mesmos problemas e exigências. Qual o espaço de celebração litúrgica e de reflexão que a comunidade pode-lhes oferecer? Como está sendo valorizado o engajamento dos leigos na política e qual o apoio que a comunidade deve continuar a dar? O segundo problema refere-se ao distanciamento que se criou, nesta caminhada, entre muitos animadores e os outros membros da comunidade. Ligado a isto, existe o problema do revezamento dos animadores. Em vários lugares, as lideranças são as mesmas: coordenador da comunidade, dirigente sindical, militante político, sempre a mesma pessoa. Na medida em que tais lideranças entram em outras organizações, muitas delas de nível nacional, afastam-se de suas bases, em todos os sentidos, também culturalmente. Saem do lugar para um congresso ou um treinamento e voltam com uma linguagem e uma perspectiva dificilmente compreensível pelos companheiros. Como atender às exigências da formação das lideranças, sem provocar este distanciamento? O que caracterizou a intervenção da igreja no setor popular foi uma estratégia de “democracia de base”, valorizando o saber popular e a importância do cotidiano como ponto de partida. Nesta perspectiva, a pastoral popular sempre procurou incentivar lutas possíveis, imediatas e cotidianas. 96 Revista ceas 233.indd 96 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular Foram estas lutas que conseguiram dar maior consistência ao movimento popular mais amplo. Na medida em que atingem níveis maiores de articulação e utilizam canais mais institucionais, fica o problema de como guardar o peso político das lutas cotidianas, sem esvaziar a organização neste nível que representa o efetivo poder popular mais amplo na conjuntura. 2.3. O controle da hierarquia As diferentes pastorais populares, em particular as CEBs, sempre tiveram apoio direto de alguns bispos e, através de documentos oficiais, desde a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil até a voz autorizada do Papa. É só lembrar que no encontro de Trindade estavam presentes 51 bispos. Nem tudo, porém, é tranqüilo. Na nova conjuntura algo está mudando. Começam a existir casos - embora poucos - de intervenção direta reprimindo as comunidades. Alguns bispos manifestam preocupações. Segundo as palavras de Dom Amaury Castanho, que participou do Encontro de Trindade, este confirmou que o ponto fraco das CEBs no Brasil é a eclesialidade. (...) A eclesialidade exige, por parte das CEBs, adesão incondicional à Palavra de Deus, celebração freqüente da Eucaristia e comunhão efetiva com os pastores da Igreja. O mais não parece tão importante. Pois é nesses três pontos que as falhos e limitações das CEBs, pelo menos a julgar pelo 6.º Encontro de Trindade, vieram à tona. (JB 19.09.86) A problemática política, em particular, suscita um conflito entre a hierarquia e as bases. Já no Encontro das CEBs de Itaici (1981) se reconhecia como problemática a questão dos partidos. A orientação da hierarquia não é de fácil compreensão e aceitação. Na campanha pela Constituinte, pedia uma contribuição concreta para a elaboração da nova Constituição, e, por outro lado, exigia uma posição supra-partidária da igreja. Por último, devemos lembrar a conjuntura eclesial universal, na qual setores da igreja européia e da igreja latino-americana, através da justificativa anti-marxista, de fato estão conduzindo uma campanha contra a igreja popular latino-americana. É verdade que os mais atingidos são os teólogos e os agentes (só lembrar o “caso Boff’), mas não deixa de haver conseqüências também para as bases. Sintetizando, podemos dizer que existe hoje entre os bispos uma preocupação com a Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 97 97 27/09/09 10:04 Cláudio Perani pastoral popular, desejando a hierarquia estar mais presente e acompanhar. Preocupação legítima e importante na medida em que revele um desígnio de serviço e apoio, e não um desígnio de controle. 2.4. Padres e leigos Sempre foi de tensão a relação entre padres e leigos engajados dentro da igreja. Basta lembrar, antigamente, as Irmandades leigas e, mais recentemente, a Ação Católica. Durante o início e o crescimento das CEBs, apesar da grande presença dos padres, a relação padres-leigos ficou em segundo plano, aparecendo mais a comunidade como um todo, com suas celebrações, suas lutas, suas dificuldades. Na fase da “abertura” política, a problemática dos leigos volta à tona, revelando questões não bem equacionadas. Em primeiro lugar, a hierarquia apela para um maior compromisso dos leigos, sobretudo nos âmbitos sócio-políticos, certamente para resguardar a função mais religiosa da igreja. Se é importante reconhecer a responsabilidade e a autonomia dos leigos no campo político, deve-se também alertar contra o perigo de uma volta da comunidade a uma função mais religiosa (culto, catequese etc), como se a dimensão política de seu trabalho fosse unicamente supletiva e não um aspecto intrínseco à sua missão. Em segundo lugar, a nova conjuntura, pelo crescimento dos animadores e pela abertura de outros espaços, revela mais facilmente o poder dos padres e a dependência dos leigos. Muitos destes, sobretudo quando se engajam na atividade política, subtraindose mais do controle dos padres, encontram dificuldades ou se queixam do abandono pela comunidade. Não pode faltar a tensão fé-política, vivida de maneira diferente em cada conjuntura. Mais atualmente, isso tem acarretado uma dificuldade para definir a relação entre CEBs e Partidos. No encontro de Trindade, afirma-se explicitamente que as CEBs precisam chegar a uma definição mais clara na questão partidária. Há, de um lado, a preocupação com um possível fechamento da igreja. O princípio, muitas vezes afirmado na atual conjuntura, da legítima autonomia dos movimentos sociais e políticos, que tem sua razão de ser, pode prestar-se para uma omissão da igreja, particularmente quando retira o apoio a movimentos populares ainda frágeis e sem infraestrutura. Tal fechamento pode provir também de setores progressistas. Ana Maria Doimo levanta a hipótese de que as novas diretrizes dos setores progressistas para o trabalho pastoral, 98 Revista ceas 233.indd 98 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular em 1979, foram, em grande medida, responsáveis pelo descenso geral dos movimentos urbanos de caráter amplo e massivo no Brasil nos anos 80-822. Do outro lado, a tendência oposta leva a comprometer-se sempre mais politicamente como igreja, inclusive apoiando explicitamente determinadas correntes sindicais e partidos; no caso, CUT e PT. Algumas vozes, às vezes bem oficiais, levantam o desejo de a igreja apresentar seu projeto político próprio, investindo com seu poder e sua influência para dar uma direção hegemônica ao movimento popular, evidentemente, no intuito de organizar melhor as classes populares. Parece difícil conciliar isso com a perspectiva evangélica. É diferente o caso de membros das comunidades que se unem para pensar um projeto político próprio. Desfrutam da sua legítima autonomia e poderão ser apoiados ou criticados pela pastoral, como outros grupos, a partir da coerência de seu trabalho em favor das classes populares. Contudo, há sempre o risco de se aproveitar do poder da estrutura eclesial, envolvendo-a em opções mais particulares, que não se justificam unicamente pela fé. Outro caso é quando a organização pastoral enquanto tal opta por uma escolha política particular, ou atuando como tendência ou quase-partido, ou apoiando diretamente um partido. Esse segundo caso pode ser inevitável e necessário em determinadas conjunturas ou em determinados lugares onde os posicionamentos políticos são bem claros e definidos de um lado e do outro. Em certos lugares, as CEBs tentam impor sua hegemonia em todas as atividades sóciopolíticas nas quais se envolvem, simplesmente eliminando o E de Eclesial. Pessoas das CEBs atuam em organizações não pastorais com o mesmo ritual e o mesmo conteúdo dos ambientes de igreja. Em outros lugares, há uma instrumentalização político-partidária de espaços eclesiais como encontros de culto, reuniões de CEBs etc. Existe ainda o caso de movimentos de pastoral que elaboram e encaminham seu programa político sem qualquer comunicação e discussão com a comunidade eclesial. Alegam que, nesse assunto, não dependem da igreja; ao mesmo tempo, porém, por serem movimento pastoral, pretendem que a igreja reconheça, legitime e incorpore a sua atuação. Toda essa problemática introduz na pastoral popular tensões e divisões antes desconhecidas, fruto da complexidade da nova conjuntura. Antes, o inimigo bem visível, 2 “Os Rumos dos Movimentos Sociais nos Caminhos da Religiosidade”, in KRISCHKE – MAINWARING, op. cit., p. 116. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 99 99 27/09/09 10:04 Cláudio Perani a estratégia mais de defesa e de denúncia e as iniciativas em cima de lutas concretas tornavam mais fácil, “relativamente”, a concordância e a unidade das forças da pastoral popular. Hoje, quando a situação é mais complexa e diversificada e há necessidade de repensar caminhos, o problema da unidade pastoral torna-se mais difícil e deve ser equacionado de maneira diferente. 2.5. Posicionamento contra as esquerdas Apesar das divergências internas à pastoral, o que mais freqüentemente aparece é uma polarização entre partidos, movimentos e correntes políticas, de um lado, e, do outro, a pastoral popular. Isso leva necessariamente a um sectarismo face aos grupos de esquerda, colocando a orientação boa do lado da pastoral e as críticas do lado das “tendências’’ de esquerda3. Outra conseqüência é a quase inevitável transformação da pastoral numa “tendência alternativa”, o que na prática está aparecendo sempre mais. Não se nega o fundamento de muitas críticas que podem ser feitas aos grupos de esquerda e às experiências negativas de membros da pastoral em contato com eles. Isso, contudo, não pode justificar uma polarização tão definitiva. É um dos pontos que deve ser questionado. É fundamental manter uma postura de permanente reflexão crítica sobre a atuação dos grupos de esquerda e da própria pastoral - seus pontos de vista, as conseqüências da sua prática. 3. REPENSANDO OS CAMINHOS 3.1. Algumas premissas teológico-pastorais O problema de fundo é o antigo e sempre atual da relação fé-política. Refiro-me à política enquanto construção da sociedade. Existe entre os dois pólos uma tensão que não pode - nem deve - ser eliminada, mas é necessário aprofundá-la e esclarecê-la sempre mais. Ultimamente, na teoria e na prática, o esforço da pastoral foi no sentido de mostrar a relação intrínseca entre fé e política, com resultados muito importantes que não devem ser abandonados. 3 GALLETTA, op. cit., pp. 68-77. 100 Revista ceas 233.indd 100 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular Numa outra ocasião, apresentei a tensão fé-política através do binômio serviço-poder4. São conceitos limitados e que se prestam a equívocos. E claro que podemos pensar o poder como serviço à sociedade toda, e que o serviço pode ter aspectos de poder. Desejo retomar a reflexão para aprofundar a dialética entre fé e política. Não podemos negar a diferença entre fé e política. Não somente porque a primeira inclui uma perspectiva que transcende nossa história, enquanto a segunda se interessa somente com a organização da sociedade terrestre, mas também porque - exatamente a partir desses diferentes níveis - se trata de duas lógicas diferentes. A lógica da política é uma lógica do poder, da eficácia, da identidade clara, da definição de projetos e programas. A lógica da fé é a lógica da fraqueza, do escândalo, da perda da identidade, da entrega gratuita. O cristão vive uma inevitável tensão entre identidade e envolvimento. Deve afirmar sua vida e, ao mesmo tempo, entregá-la. Quem perder sua vida salva-la-á, afirma o evangelho. Uma dialética pouco compreensível e difícil e que vai além do político propriamente dito. Pode ser entendida no sentido de uma gratuidade radical na relação com os irmãos. Para isso é necessário ser “outro” com os outros, envolver-se com a situação e os sofrimentos dos outros, aceitando até “perder” a própria identidade. Significa que pode ficar na sombra também a referência explícita à fé cristã, à visibilidade eclesial, para poder entrar melhor em contato com os irmãos e prestar-lhes um maior serviço segundo as necessidades deles. Tal dialética da fé, que vive a inevitável tensão entre envolvimento e identidade, atinge a comunidade toda na sua eclesialidade e deve orientar a pastoral. A comunidade pastoral, para ser tal, deve afirmar sua identidade de comunidade cristã e, ao mesmo tempo, envolver-se com os pobres aceitando um certo “desaparecimento”. Tal perspectiva foi muito bem apontada no documento da Catequese Renovada, ao considerar o itinerário das Comunidades Eclesiais de Base, ainda que se tenha limitado a falar dos membros da comunidade. É o momento em que assumem (os membros) tarefas sindicais, políticas, empresariais, “diluindo-se” no meio dos homens, como o sal na água. Nem por isso deixam de pertencer à comunidade e de participar de sua vida. Mas o fato de não mais se ver o “sal” gera inquietação em alguns cristãos mais preocupados com a vida interna da igreja. (...) Nesse momento, a comunidade participa do processo de libertação do povo. Ela sabe que a transformação da sociedade não é tarefa exclusiva dos movimentos comunitários eclesiais. Sente o dever de colaborar 4 “Pastoral Popular: poder ou serviço?”, in Cadernos do CEAS, n. 82, novembro-dezembro 1982, PP. 7-19 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 101 101 27/09/09 10:04 Cláudio Perani com movimentos populares, como sindicatos, associações de bairro, partidos políticos etc. Os cristãos da comunidade entram em contato e colaboram com pessoas de outros credos e de outras ideologias. Confrontam-se com novos projetos e novas maneiras de agir (...)5. Isso é dito dos cristãos. Penso que deve valer, em parte, também para a comunidade enquanto tal. Deve viver a tensão entre o manter e aprofundar sua própria identidade cristã, e o diluir-se no meio dos homens. É evidente que a fé não é fato puramente interior ou individual, e sim exige uma presença pública dos crentes, como pessoas e como comunidade. A conotação política da fé é algo a ela intrínseco. Para manter a dialética anteriormente esboçada, essa presença pública tem se apresentado sob diferentes formas ou tendências. Uma primeira tendência pode ser caracterizada como eclesial, no sentido de a comunidade, em seu compromisso político, aparecer com uma visibilidade institucionalizada da fé. Parece ser esta a tendência priorizada pelo atual Pontífice, que insiste na contribuição política da igreja, mas a partir da fé, da religião, enquanto igreja. Uma segunda pode ser caracterizada como política, no sentido de o movimento pastoral ou de cristãos, ficando bem definidos do ponto de vista da fé, procurarem assumir programas políticos mais concretos, chegando a confundir-se com determinadas tendências políticas ou a colocar-se em oposição a elas. Parece ser uma tendência que hoje existe em certos setores da pastoral do Brasil6. Uma terceira tendência é mais ecumênica, no sentido de dialogar com os outros, sobretudo com os pobres, não a partir de fora, de um modelo pré-estabelecido apoiado nos recursos da fé, mas a partir de dentro, operando conjuntamente, no mesmo nível, 5 Catequese Renovada – Orientações e Conteúdo, Documentos da CNBB, n. 26, Ed. Paulinas, 1983, nn. 300-302. 6 Parece-me que CLODOVIS BOFF apóia e tenta justificar teologicamente esta tendência quando apresenta o modelo da passagem conjunta, querendo fugir aos dois extremos: seja o de construir um partido próprio (modelo de neocristandade), seja o de levar os cristãos a se posicionarem cada um por si (cf. “Os cristãos e a questão partidária”, encarte de Tempo e Presença, n. 212, setembro de 1986, p. 9). 102 Revista ceas 233.indd 102 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular procurando os novos caminhos com as outras pessoas e os outros grupos. Nesse modelo, a comunidade de fé é mais um espaço de troca do que de decisão política e de articulação. Ela “desaparece” quando enfrenta a problemática política que é tarefa de todos os homens. Assume o risco de uma “aparente” ineficácia dos cristãos. Neste caminho ecumênico aparece não tanto uma igreja “para” os outros, quanto uma igreja “com” os outros7. As três tendências, na prática, existem misturadas. Em geral, o que acontece é a predominância de uma ou de outra, a depender das opções de cada comunidade. Pessoalmente, daria preferência à tendência da pastoral ecumênica. Parece, de um lado, permitir que se evite com maior facilidade o risco de deduzir da fé um projeto histórico; do outro, favorece melhor uma inserção de reforço ao movimento popular e à criatividade, de diálogo e colaboração com grupos e iniciativas não pastorais, bem como um caminho de solidariedade no nível humano, pressuposto fundamental para a pergunta da fé. Orientado por estas reflexões, volto aos questionamentos levantados. 3.2. Pluralismo pastoral O crescimento das CEBs e a nova conjuntura política exigem um repensamento da estrutura interna da pastoral popular. Tornando-se mais complexa a situação, a pastoral deve adaptar-se às novas exigências. É importante, em primeiro lugar, mais do que antes, apesar de constatarmos o esforço maior por articulações nacionais, saber reconhecer as diferentes situações locais. É em cada situação que a grande maioria do povo cria e encaminha iniciativas que, em se fortalecendo, são capazes de se expressar em articulações mais amplas. E no concreto das situações locais que a questão do relacionamento com os movimentos políticos se coloca, justificando-se uma colaboração ou uma distinção a partir do modo como os movimentos políticos aí presentes se inscrevem e atuam nos movimentos populares. Parece necessário rever a questão do pluralismo interno. Devemos reconhecer que existem, dentro da própria pastoral popular, diferentes pontos de vista e linhas de ação. Isso pode assustar, porque o caráter totalizante da fé desliza, facilmente, para o totalitarismo da 7 Explicitei algo a mais nessa linha no artigo “A Igreja no Nordeste: breves notas histórico-críticas”, Cadernos do CEAS 94, novembro-dezembro de 1984, pp. 53-65. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 103 103 27/09/09 10:04 Cláudio Perani verdade única. Por isso, também no âmbito pastoral é importante reconhecer e aceitar as diferentes formas de inserção no processo histórico para evitar discriminações perigosas. Na mesma linha, devem ser diversificadas as estruturas e as funções internas da CEB, para respeitar e favorecer os vários níveis de consciência e as diversas formas de atividades. Uma coisa é o atendimento a pessoas recém chegadas na comunidade, outra a satisfação das necessidades dos mais antigos. As novas tarefas sindicais e partidárias de vários membros exigem tratamento específico que não deve abafar outros compromissos e necessidades. É preocupante o fenômeno do esvaziamento e da elitização. A pastoral deveria procurar sempre ir ao encontro da massa, não no sentido numérico de preencher seus espaços, mas no sentido de abrir-se aos mais explorados da sociedade. Para isso são necessários espaços onde eles possam pensar e reforçar seus próprios caminhos de luta, o que nem sempre acontece nos canais políticos tradicionais, que habitualmente são mais elitizantes. O problema das lideranças se insere neste contexto. É urgente revezar e ampliar o quadro dos animadores. As tarefas aumentaram e se diversificaram: deveria acontecer o mesmo com as lideranças. Como evitar o distanciamento delas em relação às massas? Como ajudá-las nas novas responsabilidades? 3.3. Estrutura participativa Vimos como a nova conjuntura contribui para revelar melhor as atitudes de “poder” de bispos e padres dentro da igreja. Os leigos também não são isentos desse risco, sendo fácil copiar um desempenho mais autoritário. Parece óbvia a necessidade de repensar continuamente o modelo de participação e de poder dentro da igreja. Defendendo uma sociedade mais igualitária, seria contraditório não tentar viver isso dentro da própria estrutura eclesial. Sem dúvida, muito foi feito e a caminhada está avançando nesta direção. Mas falta muito. A proclamada autonomia dos leigos no campo político deve ser assumida na prática pelos dois lados: do lado dos leigos, assumindo suas responsabilidades políticas sem ficar na dependência e sem instrumentalizar as estruturas eclesiais; do lado dos padres e bispos, ficando mais “à margem”, sem deixar de dar o apoio necessário. 104 Revista ceas 233.indd 104 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Novos rumos da pastoral popular Ao nível da comunidade eclesial enquanto tal - que também tem suas responsabilidades políticas - parece ser necessária uma maior participação dos leigos na definição e encaminhamento de tais responsabilidades. Para isso, seria desejável uma atitude diferente por parte da hierarquia. Ela sofre sempre a velha tentação de, aproveitandose do lugar central que ocupa, tomar decisões sem a devida participação da comunidade: traça linhas e orientações políticas (ex: documento sobre a Constituinte), assume e encaminha posições frente ao poder público etc. A pouca presença de leigos na discussão e definição de tais linhas e posições significa que, nesse ponto, os setores populares e sua contribuição estão sendo deixados de lado. 3.4. Abertura política Sobretudo neste assunto, é difícil poder individuar orientações mais concretas. Os caminhos do diversificados. Limito-me a apresentar algumas linhas (questionamentos) mais gerais. É importante, em primeiro lugar, que a igreja continue mantendo o apoio ao movimento popular em suas diferentes expressões. Poderá rever seus meios e sua maneira de se relacionar com ele, mas deve sempre mostrar-se interessada pela organização popular na medida em que esse interesse significa uma solidariedade com os setores populares explorados. O apoio de seu poder, suas forças e seus meios materiais deve ser dado a iniciativas e grupos não porque “cristãos”, mas porque defendem os interesses dos pobres. O caminho sempre atual e necessário é aquele de comprometer-se diretamente com as lutas cotidianas e concretas do povo. Não é um desprezo às formas institucionalizadas da luta, e sim a garantia de uma fidelidade ao povo. Parece necessário questionar e romper o esquema de polarização, que, como já referido, coloca de um lado partidos, movimentos e correntes políticas, e, do outro, a pastoral progressista. É um esquema perigoso porque oculta o pluralismo que existe na própria pastoral popular, contribuindo para esvaziar a comunidade eclesial. Torna mais difícil o caminho ecumênico e pode favorecer um certo tom “triunfalista” que já se percebe nas CEBs. Referindo-se à perspectiva protestante, é com acerto que Zwinglio Mota Dias afirma: Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 105 105 27/09/09 10:04 Cláudio Perani o peso político, a força estrutural e o nível organizacional do Catolicismo continuam sendo obstáculos maiores para uma verdadeira comunicação8. Isso vale também para o âmbito político: por um lado o caminho da colaboração e da comunicação com as forças políticas torna-se difícil, quando os cristãos se apresentam como força política alternativa. Em particular, devem ser questionadas as relações preconceituosas com as esquerdas. A atitude ecumênica implica numa postura de crítica a todos os tipos e formas de dominação e manipulação - e não em juízos apriori sobre pessoas e grupos. Por outro lado - o mais importante - a constituição dos cristãos (enquanto cristãos) em força política alternativa compromete aquela dialética a que já nos referimos, entre lógica da fé e lógica política: a lógica da fé leva os cristãos a se diluírem na luta política e, dentro dela, a se unirem a todos aqueles que buscam elucidar e construir os ca¬minhos de uma sociedade fraterna. Às vezes, a presença da igreja - assim como a presença dos partidos - introduz no movimento popular divisões nem sempre coerentes e úteis à caminhada do povo. A contribuição da pastoral deveria ser diferente, mais ecumênica, preocupada em ajudar a força do povo. Por último, a polarização indicada não favorece a autonomia popular, que requer que os movimentos de igreja presentes nos vários setores de luta abdiquem de uma agenda política explicitamente sua, para sustentar o pluralismo construído democraticamente no campo popular9. Ao concluir essas breves reflexões - e apontando para a necessidade de acompanhar a nova complexidade da conjuntura política com uma pastoral mais diversificada e participativa - desejo dizer uma última palavra sobre a atuação pastoral no âmbito político. Para fortalecer os sinais de novidade aparecidos nos últimos anos, parece-me importante não dar muito peso aos canais políticos tradicionais, que podem elitizar e, com isso, esvaziar o crescimento do movimento popular. Sem desprezá-los, trata-se de guardar uma perspectiva mais ampla e, por isso, necessariamente mais lenta. 8 “Igreja na base: um desafio para o ecumenismo”, in Tempo e Presença, junho 1986, p. 6. 9 KRISCHKE, Paulo J.: “As CEBs na ‘Abertura’: Mediações entre a reforma da Igreja e as Transformações da Sociedade”, in A Igreja nas Bases em Tempo de Transição, op. cit., p; 191. 106 Revista ceas 233.indd 106 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 APOSTOLADO SOCIAL NA AMAZÔNIA CLÁUDIO PERANI É gritante a situação da maioria do povo que vive na Amazônia, sofrendo tanto – uns de miséria e fome, outros de opressão, de repressão e de discriminação (ética-cultural). O modelo neoliberal revelou sua incapacidade de melhorar a situação; ao contrário, consegue aumentar sempre mais o abismo entre uma elite rica e a maioria da população explorada. Aparece com sempre maior clareza a necessidade de lutar por uma sociedade nova, diferente da atual. O que exige um esforço eminentemente político, pessoal e atual. A Igreja, além dos ministérios tradicionais, sempre trabalhou na educação social, inspirando-se no seu ensinamento social. Na conjuntura atual parece necessário investir mais numa educação política dos setores populares. Hoje, as forças dinâmicas da mudança são representadas pelos setores populares, ajudados por aqueles – intelectuais e políticos – que se colocam a seu serviço, sabendo reconhecer e valorizar a sabedoria e as iniciativas populares. Esses setores são considerados, em muitos documentos eclesiais, “sujeitos” e “atores” da história. A Igreja fez a “opção pelos pobres”, o que significa acompanhar e favorecer suas lutas e prestar sua colaboração para que se mude a estrutura da atual sociedade, sempre respeitando o objetivo próprio da Igreja. Parece chegada a hora para um investimento novo e mais criativo, que abra caminhos novos. Colocar-se ao serviço dos setores populares para uma formação política significa “romper” com apostolados tradicionais: paróquias, sacramentos, catequese, exercícios espirituais, promoção social, formação e assessoria teológico-política... São atividades importantíssimas e que, evidentemente, devem continuar, pois estão dando frutos também na perspectiva de uma mudança da sociedade. Quando falamos de “romper” não significa abandonar tais atividades, mas introduzir novas formas que Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 107 107 27/09/09 10:04 Cláudio Perani permitam maior abertura a todos os setores mais dinâmicos da sociedade e uma maior eficácia no serviço que a Igreja deve prestar para uma mudança das atuais estruturas sócio-políticas. A nova educação exige mergulhar mais no contexto político atual, que tem sua cultura, seus valores, suas ideologias e organizações, como também seus próprios desafios e suas contradições. É um mundo que se alimenta de uma literatura específica, que não é teológica, mas econômica, sociológica, política, antropológica e cultural, que poderíamos chamar de “profana”. Exige, também, abrir-se para os setores da sociedade mais dinâmicos e desejosos de uma mudança, como também para uma colaboração macro-ecumênica com todos aqueles que estão interessados em pensar e realizar uma sociedade nova. Para preparar atores políticos em vista de uma mudança, devemos utilizar essas fontes seculares, procurando um enfoque ético, com a colaboração das melhores forças da sociedade, e uma metodologia participativa que parta e leve a uma ação transformadora, da pessoa e da sociedade. Em particular, aqui na Amazônia, além das questões fundamentais da política e do trabalho, é importante enfrentar os problemas da etnia, do gênero, do meio ambiente, do pluralismo cultural e religioso, da cidadania e da florestania, da biotecnologia e do patenteamento dos seres vivos, sabendo que hoje são componentes fundamentais da formação e prática política no mundo, não só na Amazônia. A formação política pode ser informal, através das diferentes formas de educação popular e de assessorias pontuais. Mas há necessidade de um esforço maior, de uma educação formal, quer dizer, apoiada em estruturas mais amplas e estáveis. Podem ser cursos, escolas de vários níveis, com a condição que recebam gratuitamente alunos dos setores populares, crianças, jovens e adultos, engajados numa perspectiva de cidadania e de florestania e que não tenham condições de participar de outros cursos. Pode-se objetar que já existem muitas escolas nessa direção (por exemplo, todos os cursos de “fé e política”). São cursos preciosos, que ajudam muitas lideranças pastorais a se abrirem para a perspectiva política. Devem continuar e ser incentivados. Mas, em tais cursos, além de estarem fechados a pessoas de outras crenças ou ideologias, habitualmente prevalece a explicação te- 108 Revista ceas 233.indd 108 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Apostolado social na amazônia ológica, ficando sem muito aprofundamento o nível propriamente político. Outra dificuldade que aparece quando se insiste no nível político é a reivindicação da fé. Por que ter vergonha de apresentar Jesus Cristo? Como é possível uma verdadeira política sem uma abertura para o transcendente, para o nível da fé? Não estamos com isso esvaziando a fé? Não se trata disso. Trata-se de compreender melhor a evangelização de Jesus, seguindo a metodologia dele. Ele, totalmente identificado com o Pai, deu prioridade às obras, estendendo a mão solidária aos pobres, sarando os doentes, freqüentando pecadores e publicanos, expulsando o mal, abrindo-se às multidões, enfrentando o poder das autoridades religiosas e políticas da época. A fé era uma resposta livre de cada um, segundo o tipo de terreno que representava, e Jesus se preocupava em dar uma explicação mais em privado, para grupos restritos. O Evangelho de Lucas não apresenta a revelação da identidade de Jesus como um acontecimento público. É em privado, no contexto de uma oração pessoal, que Jesus ouve a voz que o declara “Filho bem amado”. Também o texto de Marcos (7,24-30), sobre a mulher sirofenícia, ajuda a abrir nossa ação e formação política junto aos “outros de fora”, “diferentes” (outsider). Os que estão “fora” mudam e convertem ao próprio Jesus. Daí a importância de sair de nossos currais estreitos e entrar em diálogo com os que estão “fora”, “no mundo”, “os diferentes”. Eles são condição de possibilidade de ampliar nossos horizontes e somar com eles politicamente, na construção de outros “mundos possíveis”, onde os excluídos, pobres, pequenos e diferentes tenham voz e vez. O texto de Marcos mostra Jesus fora da sua terra, encontrado e transformado por aquela mulher sirofenícia, de outra nacionalidade, cultura e religião. A causa da cura da filha é a palavra da mulher, seu logos. Esta é a chave de leitura do texto. Não há menção à fé da mulher, o que coincide com outros milagres em Marcos (homem com demônio, homem da mão paralisada, leproso etc.). Não há menção de gestos ou palavras de Jesus para fazer este milagre. É a palavra da mulher que transforma Jesus e faz acontecer o milagre. Jesus, de fechado e hostil, em terra estrangeira, passa a ampliar seus horizontes, a sair e a percorrer aquela terra desconhecida. É importante notar que, no texto de Marcos, a mulher não é assimilada ao grupo dos crentes, ela continua sendo sirofenícia, com sua tradição cultural e religiosa. Jesus a respeita! Os “outros” nos convertem e transformam, ampliam a “nossa missão” (restrita), que Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 109 109 27/09/09 10:04 Cláudio Perani passa a ser “nossa missão com eles”, sem prejuízos, sem querer assimilá-los, saindo junto com os diferentes para, no encontro, nos transformar. Não devemos ter medo de atravessar para a outra margem, de “romper” com o tradicional. Concluindo, a Igreja, bem ciente de sua identidade como continuadora da obra de Jesus Cristo, Filho de Deus, abre espaços de educação política oferecidos a todos os interessados numa mudança da sociedade, sem discriminar do ponto de vista religioso ou partidário. O conteúdo desta formação deve ter como base o que de melhor foi elaborado pela cultura política da nossa sociedade, aproveitando a experiência ética do ensinamento social da Igreja, como também das outras entidades e religiões, numa perspectiva mais plural, intercultural, inter-religiosa, intersapiencial. Esses novos espaços da atividade eclesial exigem uma ruptura, “sair fora”, em nível de participação, metodologia e conteúdo, das atividades tradicionais. Essas devem continuar para aprofundar com os interessados o nível da fé; sempre, porém, uma fé aberta ao diálogo sincero com o diferente, que nos pode iluminar e abrir novas perspectivas. 110 Revista ceas 233.indd 110 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 PARTE 2 MOVIMENTOS SOCIAIS Revista ceas 233.indd 111 27/09/09 10:04 O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES E A CUT CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 80, jul.-ago. 1982) A partir da evolução da conjuntura política dos últimos 3-4 anos, colocam-se novos desafios para o movimento popular. A aparente facilidade - ao lado, evidentemente, de dificuldade diante da repressão etc. - que parecia existir, antes da tal de “abertura”, para reconhecer o caminho a ser percorrido e conduzir uma ação unitária, veio menos pelas novas exigências de organização postas ao movimento popular pela conjuntura econômico-política e, também, pela maior visibilidade de várias tendências ideológico-partidárias presentes no movimento. Nesta situação é necessário aprimorar a análise, sem perder a referência fundamental que continua sendo em qualquer conjuntura o dado objetivo e histórico da luta concreta das classes populares em seus diferentes níveis. Pretendemos aqui simplesmente expor umas reflexões, necessariamente limitadas e genéricas pela complexidade do tema, a propósito da conjuntura em que se encontra o movimento popular, focalizando porém unicamente o movimento dos trabalhadores, considerado a partir das iniciativas para constituir a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o que limita ainda mais nosso trabalho. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 113 113 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 1. SURGIMENTO DA CONCLAT Diante da dispersão das lutas dos trabalhadores e pela exigência de debater questões como a política econômica e salarial do governo, a organização nacional dos trabalhadores, a luta pela democracia, no final dos anos 70 surgiu, a partir de alguns sindicalistas a idéia de uma Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (CONCLAT). É claro que não surgiu de improviso, mas foi exigência discutida em vários encontros regionais. prévios, sobretudo de trabalhadores participantes de Oposições Sindicais. Também sabemos que se trata de uma luta antiga: já o I Congresso Operário Brasileiro (1906) criou uma Confederação, que de fato começou a funcionar em 1908. O que aqui mais nos interessa, em primeiro lugar, é constatar que o lugar econômico onde surge hoje a idéia de CONCLAT é fundamentalmente São Paulo (incluindo ABC), coração industrial do capitalismo do Brasil, sede da realização das mais altas taxas de exploração monopolista. Nesta região existe uma classe operária que, além de uma já antiga tradição de lutas, possui atualmente·um grande nível de qualificação profissional, tem formação e relativamente alto nível de consciência. Diferente é a situação de outras regiões. Em segundo lugar, diante da fraqueza do movimento dos trabalhadores para se constituir hoje numa alternativa de poder, mas também diante do entusiasmo suscitado pelas mobilizações e pelas greves, sobretudo no ABC, e que se alastraram no Brasil inteiro nos anos de 78-79, recoloca-se com grande força e urgência o problema da UNIDADE dos trabalhadores. Não é um problema novo. Podemos lembrar a história recente antes de 1964, quando - num período de mobilização - a classe trabalhadora conseguiu criar algumas entidades como o PUA (Pacto de Unidade e Ação) e o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), que não rompiam com a estrutura vertical e corporativista do sindicato, mas que de certa forma conseguiram romper com a estrutura oficial pois não eram organizações ligadas ao Ministério do Trabalho. Hoje, no contexto das lutas populares, constatando sua dispersão e, por isso, sua relativa eficácia, coloca-se com grande frequência e unanimidade a necessidade de juntar as forças, de fazer um salto qualitativo, de politizar mais as lutas... São afirmações que expressam uma realidade objetiva, mas também não deixam de ter um conteúdo equívoco. Veremos isso. Por enquanto, constatamos que é nesse 114 Revista ceas 233.indd 114 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut clima que surge a CONCLAT, com o objetivo explícito de discutir os problemas fundamentais da classe trabalhadora e de unificar as lutas, já pensando numa greve geral. Não é o único caminho. Podemos lembrar que nesse período nasce também o Partido dos Trabalhadores para poder dar uma dimensão mais política às reivindicações sindicais, surge o PDT com a herança de Vargas, como também o PMDB é levado a apoiar mais as lutas reaquecidas dos trabalhadores. Em síntese, a CONCLAT nasce num quadro político que exige um aumento do poder dos trabalhadores e dentro de um movimento de reivindicações que se manifesta sobretudo nas greves do ABC ou dos canavieiros de Pernambuco. Foi, porém, apesar de tudo inicialmente um processo de cúpula: não resultou de uma exigência. generalizada das bases mas de iniciativa de alguns sindicalistas e intelectuais. Devemos lembrar que o movimento dos trabalhadores é mais amplo, complexo e diversificado do que aparece, por exemplo, em certos pólos industriais. Existem lutas que são permanentes, na cidade e no campo, que passam por dentro e por fora dos sindicatos. Existem níveis de consciência e de organização bem diferenciados a depender das diferenças de categoria, de lugar, de histórias, de lideranças etc. É bom ter presente tudo isso para poder melhor avaliar o peso da CONCLAT. 2. PROPOSTAS E RESULTADOS A CONCLAT se realizou de 21 a 23 de agosto de 1981 na Praia Grande - S. Paulo, reunindo cerca de 5.300 trabalhadores1. Foi certamente um acontecimento marcante na história da classe trabalhadora brasileira e, portanto, na história do Brasil. Houve grande participação de trabalhadores impondo suas necessidades e suas perspectivas. As resoluções aprovadas são bastante avançadas do ponto de vista do movimento sindical. Reúnem-se ao redor de 8 itens. 1. Direito do Trabalho. Reivindica-se uma nova lei geral do trabalho (Constituição - Código Nacional do Trabalho) garantindo o trabalho para todos, e estabilidade no emprego, o seguro-desemprego, o direito de greve, convenções coletivas de trabalho, salário-mínimo real unificado, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais etc. 1 Cf. ANA CECÍLIA DE SOUSA BASTOS, “A CONCLAT e a Organização Nacional dos Trabalhadores”, Cadernos do CEAS, n. 76, pp.9-17. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 115 115 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 2. Sindicalismo. É dentro dos sindicatos que devem passar as lutas dos trabalhadores. O sindicato deve ser livre e autônomo, não só em relação ao Estado, como também em relação aos partidos políticos e credos religiosos, sem deixar de ser uma entidade eminentemente política. Deve imperar dentro dele a mais ampla democracia, com uma organização de base através de delegados sindicais e de comissões de empresa, garantindo as condições mínimas de funcionamento. Quanto à contribuição sindical, o movimento sindical deve ter como meta a sua auto-sustentação. É eleita uma Comissão Nacional Pró-CUT, composta por 56 sindicalistas, 24 rurais e 32 urbanos. 3. Saúde e Previdência Social. É o item mais detalhado, denunciando a atual estrutura de saúde do país como antidemocrática e anti-popular e apresentando várias sugestões. 4. Política Salarial. Continuando a luta pelo fim da política de arrocho salarial, reivindica-se a adoção de um salário-mínimo real e unificado, o reajuste de 110% do INPC para salário mínimo, o reajuste trimestral no caminho da conquista de reajustes salariais automáticos, a extensão aos servidores públicos de todos os direitos trabalhistas, a liberdade de negociação direta do índice de produtividade, a unificação das datas base por categoria e a nível nacional, etc. 5. Política econômica. Denunciando o modelo concentrador de renda e a política atual nitidamente recessiva, a I CONCLAT vê como alternativa a mudança radical do conjunto da política econômica que deve ter entre seus objetivos a criação de empregos, a melhoria dos salários e das condições de vida, e a justa distribuição da riqueza nacional. Em concreto, propõe-se um programa de gasto de investimentos públicos gerador de emprego, a produção de gêneros alimentícios, a reforma tributária, o congelamento dos aluguéis, o congelamento da dívida externa, a nacionalização dos bancos estrangeiros e das empresas multinacionais, etc. 6. Reforma Agrária. Exige-se a implantação da reforma agrária, considerada não como simples ocupação de espaços vazios, mas sim, conjunto de medidas que visam promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse, uso e propriedade, e sobretudo pela participação dos trabalhadores rurais. Há várias outras proposições acerca da colonização, dos problemas da terra e da política agrária. 116 Revista ceas 233.indd 116 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut 7. Problemas nacionais. O fim do atual regime militar é condição indispensável para se atingir a democracia no país. Propõe-se uma Assembléia Nacional Constituinte Livre e Soberana e a aprovação de um Plano de Salvação Nacional, incluindo medidas políticas e econômicas como a revogação da Lei de Segurança Nacional o congelamento da dívida externa etc. 8. Plano de lutas, com reivindicações (contra o desemprego e a carestia e pela liberdade e autonomia sindical) e calendários unitários que preparem a greve geral. Foi marcado o dia 1.º de outubro de 1981 para entrega das reivindicações ao Presidente da República, dando o prazo até dia 16 de novembro para a resposta, devendo-se avaliar naquele dia as condições de deflagração da greve geral. É importante avaliar tal esforço de organização da classe com espírito crítico, aproveitando também da experiência desse primeiro ano de pós-CONCLAT. A I CONCLAT foi muito participada pelos trabalhadores. Apesar disso devemos constatar seu nível de cúpula, além das palavras ou dos desejos, seu distanciamento da massa dos trabalhadores. Necessário e inevitável, talvez, mas que não pode ser negado. Deu-se mais tempo aos planos do sindicalismo e à formação da Pró-CUT, isto é, à organização enquanto tal, que por condições objetivas não poderia de fato dar respostas aos grandes problemas vividos hoje pela massa dos trabalhadores, como o desemprego e a contínua mudança das estruturas de exploração capitalista, e ajudar as diferentes formas de resistência em andamento nas várias regiões do Brasil. Isso se deva, talvez, também à presença de uma boa parte de Classe média mais radicalizada (cerca de 2.000 entre bancários, médicos, professores, engenheiros, etc.) e à atuação de vanguardas operárias que têm mais facilidade em globalizar e centralizar. A um ano de distância não encontramos grande repercussão da iniciativa. Até a impressa alternativa não lhe dá grande espaço, preferindo o tema “eleições”. Os próprios integrantes da Comissão Pró-CUT parecem dar prioridade aos partidos institucionais sendo que grande parte deles está em campanha eleitoral. No 1.º de outubro houve certa mobilização com 18 capitais e 320 municípios realizando manifestações de trabalhadores, distanciados porém das massas e sem poder acumular forças para uma greve geral. A base esteve desmobilizada até Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 117 117 27/09/09 10:04 Cláudio Perani para campanha salarial. O dia 12 de março, dia nacional da luta contra o pacotão da Previdência, passou despercebido. Não se conseguiu recolher os 5 milhões de assinaturas contra o desemprego e o arrocho salarial. A Comissão Pró-CUT não teve muita atuação, sobretudo no sentido de acompanhar com mais eficiência as diferentes lutas e greves dos trabalhadores. O que mais revela a fraqueza da organização é a dificuldade de agir e se estruturar a nível local e regional, que deveria ser o nível mais. importante, constituindo a força do movimento. A partir desta situação, foi proposto um adiamento da 2.ª CONCLAT, marcada para agosto deste ano, como também uma dinâmica diferente para sua continuidade. A proposta encontrou fortes reações, mas os pareceres estão divididos e, na hora em que estamos redigindo estas notas, não há uma decisão. O próprio Lula, defensor da greve geral, questionou a realização: “Nenhuma decisão da 1.ª CONCLAT foi levada diante. Para que nós vamos realizar a 2.ª”? Para compreender tais dificuldades e resultados, várias interpretações lembram que estamos num período de desmobilização e de refluxo do movimento dos trabalhadores. É necessário, então, ampliar nossas considerações e considerar o problema do refluxo. 3. O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES HOJE 3.1. O refluxo No 19 de maio de 1980, uma grande passeata de 120.000 pessoas dirigiu-se para o estádio de Vila Euclides em S. Bernardo, dando novo vigor à greve em andamento. Foi o ponto alto de um movimento operário que despontou nos anos de 1978 e 79 expressando uma nova vitalidade e uma dinâmica interna que não dependia apenas da estrutura sindical. Foi também o início de uma desmobilização que parece perdurar ainda hoje. Os dados das greves revelam isso: enquanto em 1979 se contaram no Brasil todo cerca de 400 greves, no ano de 1980 o número foi reduzido a 32. Na campanha salarial de 1980 nas assembléias de S. Bernardo havia a participação de 80.000 metalúrgicos, em 1982 o número reduziu-se a 5.000. Nas. eleições do sindicato, as oposições sindicais não conseguiram as vitórias 118 Revista ceas 233.indd 118 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut desejadas. É quase unânime, também nas análises de certas esquerdas, ouvir falar em desmobilização, refluxo, “maré vazante” etc., justificando através de vários motivos mais objetivos ou mais subjetivos. Só alguns recusam o “refluxo”. Em primeiro lugar, para explicar o refluxo, é apresentada a situação de recessão econômica: a queda da produção, prejudica mais que outros os trabalhadores que vivem do salário. Além da inflação devem enfrentar a recessão. Aumenta o custo de vida diminui o poder aquisitivo do salário, aumentam a rotatividade e, sobretudo, o desemprego. Segundo dados do Dieese em 1959 o tempo gasto para ganhar a ração essencial mínima era de 65hs e 6 minutos, em 1981 aumento para 149hs e 40 minutos. Mais do que o dobro! De acordo com os últimos dados divulgados pela Secretaria de Emprego e Salários do próprio Ministério do Trabalho, o mês de fevereiro encerrou-se com uma queda geral na oferta de empregos, com relação ao mesmo mês do ano passado, nas 10 principais regiões metropolitanas do país. Uma acentuada retração no setor industrial e no de construção civil foram os fatores que mais influenciaram a queda. As maiores retrações no setor industrial ocorreram em S. Paulo (-14,29%), Porto Alegre (-9,73%) e Rio de Janeiro (9,12%). No setor de construção civil, as incidências negativas mais acentuadas foram as seguintes: Brasília (-22,2%), Rio de Janeiro (-12,55%) e Porto Alegre (-12,23%). O comércio teve uma queda menos acentuada, sendo que apenas o setor de serviços apresentou um desempenho positivo na maioria das principais capitais brasileiras.2 É claro que numa situação de desemprego os trabalhadores diminuem suas possibilidades de barganha. Algumas reivindicações conquistadas no fim da década de 70 foram ignoradas nos anos de 81 e 82 como, por exemplo, o aumento de 10% acima do INPS para os que ganham até 3 salários mínimos. Em segundo lugar, além da “repressão econômica”, recrudesceu e aperfeiçoou-se a repressão política contra o movimento dos trabalhadores. O governo interveio com leis repressivas; impediu aos empresários de negociar; depois da greve de 1980 interveio nos Sindicatos de S. Bernardo e S. André, enquadrou vários líderes sindicais na Lei de Segurança Nacional, interveio nas cidades e no interior 2 Cf. Jornal do Brasil, 21.04.82. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 119 119 27/09/09 10:04 Cláudio Perani com o exército e a política, com bombas e cassetetes para quebrar a resistência dos trabalhadores. Outros motivos são apresentados. A divisão entre as vanguardas do movimento sindical, reunidas substancialmente ao redor de duas correntes, a Unidade Sindical e Anampos, ambas procurando ter a hegemonia na organização e, por isso, correndo o risco de não favorecer as lutas concretas. Num contexto mais amplo, deveríamos analisar também o surgimento dos partidos a partir da conjuntura política de “abertura” que inicia em 1978. O fim do AI-5, a anistia, a reforma partidária, propiciam novos espaços ao movimento dos trabalhadores. Mas há também a outra face da medalha: muitas lideranças sindicais, por exemplo, são absorvidas pela luta partidária que, na prática, pode enfraquecer a organização sindical. 3.2. O movimento dos trabalhadores continua andando Tudo o que foi visto é interpretado como “refluxo” do movimento dos trabalhadores. Mas que significa tal refluxo? Constatamos que nas cidades os operários não pararam nestes dois últimos anos. A revista Isto É no número 278 (21.04.82) falava em “Maré Vazante”; apesar disso, no número 282 tinha que reconhecer que os metalúrgicos de S. Bernardo “surpreenderam mais uma vez”. No período de refluxo várias foram as formas de resistência, as reivindicações e as greves dos operários em vários lugares do país. Lembramos a ocupação do canteiro de obras do Pólo Petroquímico do RGS; a ocupação da Coferraz em S. André e da Ciferal (Rio) por questão de salários atrasados; contra o desemprego as greves da Cosipa (Santos) e da Brastemp (S. Bernardo); a greve da Cimental (MG) conseguindo evitar o fechamento da fábrica, dos eletricitários da CHESF (Paulo Afonso), dos metalúrgicos de Niterói, dos funcionários públicos de S. Paulo, dos professores da Bahia, Goiás e Acre... Grande importância teve a greve da FIAT em Xerém (Rio), lutando os operários contra as demissões dos companheiros. Dimensões imprevistas (54.000 grevistas) assumiram as greves da Volks, Mercedes, Ford e Scânia em S. Bernardo. Greves que não foram improvisadas, mas prepa- 120 Revista ceas 233.indd 120 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut radas por uma série de pequenas paralizações. Tais greves se extenderam à região de S. José dos Campos. Existe uma luta permanente nas fábricas. introduzindo formas inéditas de resistência capazes de se adaptarem a cada conjuntura política. Muita coisa miúda, que não repercute mas que está influindo. Devemos reconhecer as derrotas em vários acordos salariais. Não faltam, porém, as vitórias, talvez pequenas, mas reais. Se os metalúrgicos do ABC não conseguiram os 7% de produtividade decretados pelo Tribunal, aumentaram, porém, para 5,5% contra o parecer da FIESP. Os empregados da FORD conquistaram uma representação na fábrica através da Comissão de Fábrica eleita pelos trabalhadores (21.07.81). Segundo o Dieese3, são as seguintes as principais conquistas dos trabalhadores nos acordos de fevereiro e de março deste ano: estabilidade provisória para a comissão de negociação e de salários (agentes autônomos - vigilantes, S. Paulo; comerciários, Belo Horizonte); reconhecimento do Delegado Sindical jornalistas de Porto Alegre) e aumento de 5 para 10 do número de Delegados Sindicais (eletricitários S. Paulo e Rio); adicional de permanência (vigilantes, S. Paulo); gratificação de férias (Cr. 50.000, eletricitários S. Paulo e Rio; Cr. 15.000, metroviários de S. Paulo); jornada semanal de 44 horas (comerciários de Belo Horizonte); aumento do salário família (trabalhadores dos postos de gasolina de S. Paulo); adicional de 30% para as 2 primeiras horas extras e de 50% para as demais (comerciários de Belo Horizonte) etc. Também a nível sindical, apesar de derrotas nas eleições sindicais, podemos constatar um aumento relativo de diretorias autênticas. Tais dados referem-se principalmente ao movimento de S. Paulo, pois é o coração industrial do Brasil, mas também porque mais conhecido e divulgado. Num levantamento mais completo dever-se-iam considerar as outras regiões e, sobretudo, o movimento rural. As análises do movimento dos trabalhadores muitasvezes esquecem o campo ou lembram, simplesmente, as greves dos canavieiros de Pernambuco. Cerca de 1.050 camponeses estavam presentes na 1.ª CONCLAT, trocando experiências com os companheiros da cidade e, também, constatando o distanciamento com suas lutas. A nível de campo, sobretudo envolvendo a resistência pela terra, é difícil poder falar em refluxo. Provavelmente é o contrário: assistimos a um progressivo aumento das lutas pela terra, obrigando o governo a intervir com novas 3 Cf. Dieese, fevereiro de 1982 e março de 1982. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 121 121 27/09/09 10:04 Cláudio Perani e poderosas estruturas tipo GETAT. Existem as lutas mais conhecidas como a de Ronda Alta no Rio Grande do Sul ou as do Sul do Pará. Mas se estendem em todo o Brasil. No último levantamento da CPT nacional, que vai de agosto a dezembro de 1981, o Estado da Bahia alcançou o primeiro lugar nacional com 51 conflitos pela terra. Acrescentando também as lutas dos trabalhadores nos bairros onde moram, somos obrigados a reconhecer a grande diversidade, complexidade e amplitude do movimento dos trabalhadores. Existem pontos avançados, na cidade e no campo, como também momentos em que aparece uma maior mobilização de massa e momentos em que parece retrair-se. Um trabalhador rural do Maranhão dava sua interpretação: “Tem tempo de enfrentar e tempo de respirar; tempo de apressar e tempo de acalmar”. Parece seja necessário rever certos conceitos sobre o movimento dos trabalhadores, muitas vezes, apressados, caindo facilmente num pessimismo ou num fácil otimismo que não permitem reconhecer os tempos da história. Mais que em termos de “avanço” ou “refluxo”, seria melhor pensar em termos de ritmo. Pode haver paradas e retrocessos mesmo, é importante porém - juntamente com os avanços - compreendê-los dentro de um quadro histórico mais amplo. Certamente, determinadas mobilizações de massa, como as greves de 78 e 79, não reapareceram em 1981. Nesse sentido pode-se falar de “refluxo”. Mas o peso político do movimento dos trabalhadores não pode ser avaliado só por estas manifestações, comparáveis ao “tempo de enfrentar”. Há também o “tempo de respirar” que faz parte do mesmo processo: é o trabalho do dia-a-dia, o trabalho de formiga, da organização da classe dentro da fábrica, em cima de coisas específicas. Muitas vezes tal trabalho é chamado de “espontaneísta”, porque não é fruto de uma orientação político-partidária. Mas é nesse nível que se preparam as bases de um novo poder que vai se revelar na medida em que condições objetivas o permitirem. O adjetivo “espontaneísta” pode significar a incapacidade de uma análise mais política da conjuntura. Vamos considerar agora algo das vanguardas do movimento. 3.3. As tendências do movimento sindical Várias são as tendências presentes no movimento sindical, procurando analisar e orientar as lutas dos trabalhadores. ~ necessária e importante sua existência. A diversidade deve-se certamente à complexidade da conjuntura, aos diferentes 122 Revista ceas 233.indd 122 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut níveis de politização, à presença da classe média, e também ao elemento subjetivo e mais idealista, que pode esconder problemas de hegemonia de grupos. Tal diversidade muitas vezes pode dificultar a ação conjunta dos trabalhadores. Atualmente existem duas grandes correntes, Unidade Sindical e Anampos, evidentemente elas próprias reunindo posicionamentos diferentes. A primeira é geralmente formada por sindicalistas mais ligados às diretorias atuais e às esquerdas tradicionais. A segunda mais ligada às oposições sindicais, a outros grupos de esquerda mais novos, a setores social-democratas e a grupos da pastoral popular. A preocupação de ambas é a unificação das lutas dos trabalhadores para alcançar uma organização com sempre maior poder, dando com isso um grande peso à estrutura sindical. Unidade Sindical privilegia o nível das diretorias sindicais, correndo o risco de ser mais facilmente manipulada por pelegos ou pelo próprio Ministério do Trabalho, atrelando os trabalhadores ao ritmo da abertura; considera mais o nível de consciência da massa. Anampos privilegia o trabalho pelas bases, não sempre conseguindo coerência com tal orientação e correndo o risco de um trabalho mais de grupo. A contradição principal não deve ser posta, como em várias ocasiões acontece, nas divergências existentes entre as duas correntes, mas na relação que ambas procuram guardar com a massa dos trabalhadores. Na medida em que as duas correntes falam de si e se definem em oposição uma a outra, podem se afastar sempre mais não somente do dia-a-dia do operário ou do camponês, mas também do poder que os trabalhadores estão construindo. Responsabilizar com excessiva facilidade diretorias pelegas pela falta de resultados na caminhada da unidade, significa dar um peso exagerado às diretorias sindicais, peso que não possuem não só enquanto pelegas, mas simplesmente enquanto diretorias na atual conjuntura sindical. Derrotas de oposições sindicais podem refletir uma falta de maior representatividade. A polarização Unidade Sindical - Anampos, real e objetiva, não deve ser exagerada e, sobretudo, deve ser equacionada pela contínua referência ao concreto das lutas, das bases sindicais e, mais amplamente, de todos os trabalhadores. Com estas considerações, onde se procurou relativizar um caminho fácil de organização pelo sindicato, podemos voltar ao problema da CONCLAT. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 123 123 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 4. “SE MAOMÉ NÃO VAI À MONTANHA,A MONTANHA NÃO VAI A MAOMÉ” A CONCLAT surgiu para debater os problemas fundamentais da classe trabalhadora e unificar as lutas. Deve ter, por isso, continuamente como ponto de referência tais problemas e tais lutas. No quadro mais amplo do movimento dos trabalhadores, a CONCLAT pode representar um instrumento importante, mas não pode ser pensada como “a solução” para a qual se devam investir proritariamente todos os esforços. A grande maioria dos trabalhadores não é sindicalizada , mas está resistindo, expressando de forma diferente sua organização. “As categorias não vão ao sindicato”; “o patrão é o dono do sindicato”; “o presidente nunca vai à fábrica ou à roça!”... , são frases que facilmente se escutam em vários lugares - quando não há ignorância quase absoluta do assunto. O sindicato, num juízo global, ainda hoje está bastante esvaziado por conta de toda a sua história e de sua atuação atual. Apresenta-se muitas vezes com a mesma estrutura de poder da fábrica, decidindo do mesmo jeito que o patrão. Em tal situação não é fácil colocar o discurso da CONCLAT. Contudo, o problema não é: “deve-se pensar em CONCLAT, em CUT?”, mas “como deve ser realizada a CUT?”. Na medida em que se colocam nela todas as expectativas, entra-se num impasse. Na medida em que é considerada como o grande caminho da unidade, pode-se apressar demasiadamente o passo, alcançando o resultado oposto. Ao contrário, na medida em que CONCLAT–CUT forem relativizadas e, efetivamente, instrumentalizadas, como um dos níveis ou tipo de trabalho, poderão encontrar o caminho de sua eficácia. Olhando a amplitude maior do movimento dos trabalhadores, fica a grande questão do processo de unidade do movimento. É fundamental a preocupação com o avanço qualitativo das lutas, com a maior politização e organização. do movimento dos trabalhadores. Aqui de novo é saber “como”! Alguns exemplos concretos podem ajudar. No ano de 1979, em Salvador, organizou-se o 1.º de maio centralizado e, contemporaneamente, em vários bairros de periferia onde se reuniram até 500 pessoas por lugar. Alguns afirmaram que 124 Revista ceas 233.indd 124 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O movimento dos trabalhadores e a cut isso era enfraquecer o movimento, era divisionismo. No ano seguinte, só ficou a concentração “unitária”. Consequência: as 500 pessoas do bairro não se deslocaram para o centro e deixaram de somar com sua participação no bairro. “Se Maomé não vai à Montanha, a Montanha não vai a Maomé”. Numa cidade do Maranhão uma minoria de trabalhadores e uma maioria de estudantes festejou o 1.º de maio com um tom bem revolucionário; a maioria dos trabalhadores estava com o sindicalista pelego auxiliado pelo batalhão do Exército desfilando. Num povoado do mesmo município, o grupo da delegacia sindical convocou o Clube de Mães, a criançada com professorado à frente, a comunidade toda, mais grupo de jovens. Trabalhadores, sindicalizados e não, com uma boa parte da população, levantaram braços e acompanharam refrões da terra e da luta dos lavradores num lugar que nasceu da luta. Aí não sobrou lugar para comemorações paralelas a 200m. da sede local do GETAT. Diferentes “jeitos” de fazer unidade e de acumular forças! Deve ser questionada a acusação de divisionismo frequentemente apresentada para defender um projeto unitário. Muitas vezes não se trata de divisionismo das forças dos trabalhadores, mas de dinamização e ampliação do poder deles. Ao contrário, um projeto centralizado pode significar um esvaziamento e perda de uma possibilidade de crescimento; pode ser o verdadeiro divisionismo condenável. Vimos a diversidade e complexidade do movimento dos trabalhadores. As lutas são diferentes; do operário metalúrgico ao servente da construção, do posseiro ao assalariado, do permanente ao bóia-fria... Tais diferenças põem desafios à organização. A unidade passa necessariamente pela diversidade dos caminhos, dos instrumentos, dos espaços em que as lutas dos trabalhadores se espalham. Os esquemas do ABC não podem ser aplicados tão facilmente a outros lugares. Muito menos os esquemas do trabalho estudantil e dos setores já “radicalizados”... É uma unidade com funções de acumulação mais do que comando4. A organização política, ainda hoje, deve favorecer o nível, local e regional, espaço para as bases, procurando a unidade através de uma convergência dos vários esforços, o que exige o respeito e o crescimento das experiências dentro de cada região e de cada setor, procurando a contínua troca. 4 Cf. CLÁUDIO PERANI, “Comunidades Eclesiais de Base e Movimento Popular”, Cadernos do CEAS, n. 75, pp. 9-30. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 125 125 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Tensões, inevitáveis e benéficas, existem entre e dentro as vanguardas; olhar mais para cima, para as cúpulas ou para baixo, para as bases; para grupos ou para a massa; contar mais com a orientação político-ideológica ou com a força motriz dos interesses dos trabalhadores que se opõem ao capital; absolutizar a estrutura sindical ou favorecer outras organizações; privilegiar a disputa entre as idéias ou o caminho terra-terra de cada situação; esperar a transformação para depois de amanhã ou pensar em prazos mais longos... Um caminho para equacionar tais tensões pode ser a maior escuta das lideranças de base por parte das vanguardas intelectuais. Aqui novamente, não se trata de trazer para a organização, nem levar para os trabalhadores nosso projeto, nem CONCLAT, mas de ir ao encontro de suas necessidades e de assumir sua caminhada. Trata-se de assumir o dado objetivo e histórico da luta concreta das classes trabalhadoras, como é vivido pela consciência das mesmas e avançando - aqui entra também a função das vanguardas - numa organização onde os atores devem ser os trabalhadores. Nessa perspectiva vamos descobrir progressivamente as alternativas concretas. 126 Revista ceas 233.indd 126 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 PASTORAL POPULAR E ASSALARIADOS RURAIS CLAUDIO PERANI (Publicado nos Cadernos do CEAS n.º 89, jan.-fev. 1984) 1. INTRODUÇÃO O homem rural não pode ser esquecido! Parece uma afirmação supérflua ou contrária â realidade dos fatos, sobretudo quando colocada dentro do âmbito do trabalho desenvolvido pela igreja que - como todos sabem - tem uma presença marcante no campo. Reconhecemos o grande número de pequenas comunidades eclesiais que se desenvolveram no interior do Brasil e a importância da solidariedade e das denúncias da igreja particularmente no que se refere aos conflitos de terra, conjunturalmente muito importantes; contudo, diante da variedade e complexidade da situação rural e, sobretudo, diante do contínuo aumento da massa de trabalhadores rurais assalariados, a afirmação inicial de alerta pode ter um sentido. Neste ano de 1983 tivemos ocasião de participar de 2 importantes encontros nacionais da pastoral popular, o encontro das Comunidades Eclesiais de Base, em Canindé, e a assembléia da Comissão Pastoral da Terra, em Goiânia. Em ambos os encontros apareceu violentamente a questão da terra. O problema dos assalariados rurais foi levantado, teve um certo tratamento, sobretudo na reunião da CPT, mas não foi possível aprofundá-lo e ampliá-lo. Tal dificuldade existe também nas bases onde se percebe a existência de bóias-frias, diaristas, peões, volantes, braçais..., sem saber como aproximá-los e como poder estar a serviço da luta dessas categorias. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 127 127 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Reconhecemos a importância fundamental das lutas pela terra, as muitas vitórias dos posseiros e o processo de recamponesação em andamento em muitas áreas. Queremos considerar a problemática de uma outra faixa de trabalhadores rurais, os assalariados, cujas lutas são importantes também para a luta dos próprios posseiros. O vasto mundo dos assalariados rurais desafia a pastoral popular e a igreja como um todo. Ficando nesse âmbito eclesial, desejamos levantar a questão e tentar algumas interpretações iniciais, cientes dos limites das afirmações, pois a pastoral popular não oferece nesse setor uma grande experiência. Além do mais, pretendemos ficar mais restritos ao âmbito do Nordeste, em particular, da Bahia, achando contudo que determinados questionamentos podem ter um valor para a pastoral do Brasil todo, não somente no âmbito rural, mas também no que se refere à presença da igreja no mundo do operariado urbano. Diante da satisfação existente pelos resultados adquiridos pela pastoral popular, parece necessário advertir seus limites para continuar a avançar nesse processo, descobrindo os contínuos apelos que nos chegam dos setores mais marginalizados. 2. A SITUAÇÃO DOS BÓIAS-FRIAS Em vários encontros de agentes de pastoral e de trabalhadores rurais constata-se o número cada vez maior de trabalhadores que perdem o acesso à terra onde trabalhavam para tirar o seu sustento e se vêem obrigados, para sobreviver, a vender sua força de trabalho, engrossando o já considerável número de assalariados existentes nas lavouras da cana, do café, do cacau, do algodão, da cebola, do sisal, no reflorestamento... Vamos retratar brevemente sua situação de trabalho e de vida, utilizando as palavras de agentes e dos próprios trabalhadores nalguns relatórios de encontros e de assessoria. 2.1. No algodão “Casa de paus fincados no chão, encostados uns aos outros, com telhado ou apenas uma lona aberta. Para proteger do vento, insetos e frio, o povo costuma amarrar ao redor das paredes sacos de plástico esvaziados de adubo. Dorme em esteiras ou lonas ou plásticos por baixo. Na safra o pessoal divide os barracos e vive amontoado e todo misturado, homens, mulheres, casados e solteiros. Grande incidência de tuberculose. Não tem filtro, nem fossa. No combate às doenças das plantas, sobretudo quando o 128 Revista ceas 233.indd 128 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais veneno é jogado de avião, há sérios riscos de contaminação dos barracos onde mora o povo e dos tanques de água. Há várias denúncias de mortes por envenenamento. O transporte é em caminhões, sendo cara a passagem. Os que moram perto vão nas carretas de tratores. Se houver acidente, o trabalhador fica parado sem ganhar. Só uns tratoristas têm carteira assinada; predomina o contrato por empreita ou produção; nenhum direito é considerado. Existe uma rotatividade muito grande”. 2.2. No cacau A situação pode ser resumida nas estrofes deste Grito do Operário do Cacau: “Vamos falar em Seu Ivo/que tanto lhe trabalhou/e quando se viu doente/seu patrão lhe desprezou. Ficou prá lá jogado/como um cãozinho sem dono;/quando estava com saúde/trabalhava até com sono,/hoje que está doente/jogaram no abandono. Quando estava com saúde/só não comia raposa/hoje que está doente/ só não come mariposa/e se não morreu de fome/agradece a sua esposa”. Em muitas fazendas estão despedindo todos os trabalhadores antigos e readmitindo novos, mas para permanecerem apenas 3-6 meses, a fim de não contarem tempo para indenização. O salário perde sempre mais seu poder aquisitivo: em maio/83 a diária subiu a 1020 quando 1 kg de carne do sol custava 1.300; em novembro/83 a diária passou para 1.675 e a carne para 2.400! Aumenta o trabalho na empreitada, imposta pelos patrões porque acelera o ritmo de trabalho de cada homem/dia, estende a jornada de trabalho de 8 para 12 horas, dispensa a vigilância dos cabos de turma e, no final das contas, o trabalhador se dá por satisfeito porque tem a impressão de ganhar mais por semana trabalhada. 2.3. No café “A família do trabalhador permanente, em geral, vive na região e a do bóia-fria nem sempre. O homem vem, trabalha um período (colheita, em geral) e depois retoma. Alguns possuem uma rocinha, outros são ‘macaqueiros’ (trabalhadores que vivem do ganho nas fazendas de gado), outros, ainda, são volantes acostumados a pegar safras. As famílias vêm do Ceará, Pernambuco, Paraíba, Paraná, S. Paulo, Ruy Barbosa, Itaberaba... Todos trabalham. As crianças na carpina, no viveiro, no plantio, na colheita. O Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 129 129 27/09/09 10:04 Cláudio Perani homem também faz cerca. A mulher faz tudo, principalmente na colheita. O trabalho é pago pela diária ou por produção. As diárias do homem variam ao redor do salário mínimo, habitualmente porém não perfazendo o total no mês. As mulheres recebem 60-65% da diária mínima e as crianças cerca de 50%. Os direitos, em geral, não são respeitados. A jornada é de 9 horas de trabalho, poucas empresas pagam o repouso semanal, poucos têm carteira assinada. Os bóias-frias que vêm de outros lugares ficam acampados em barracos de lona ou tábua. Condições de vida difíceis: intoxicação com veneno de café, gripes, barbeiro... A consulta médica é descontada do ordenado”. 2.4. Na cana “Até 1946 tudo caminhava bem nestes engenhos. A Usina permitia plantar lavoura. O pessoal vivia bem, se reunia, tinha o Beato Simeão que se hospedara aí na que foi casa de seu Firmino que agora foi para São Paulo. Depois a cana foi tomando conta: os trabalhadores ficaram só fichados, sem terra. E hoje sem terra nem ganho nem trabalho. E quando tem trabalho, a vara não tem medida (...) Tem trabalhadores que estão trabalhando pela bóia. E esta poderá ser descontada do salário na próxima moagem. É a volta do cativeiro?” Nas palavras de Severina Maria da Conceição: “As coisas pioraram muito com o novo dono. Aqui na coivara desse morro, para plantar cana, estávamos recebendo 800 de diária; agora mudaram a conta e sai por 500 ou 600. A Usina diz que trabalhamos 6 dias para receber 7. Muitos estão gostando porque tem serviço todo dia. Mas não dá. A diária, na tabela da Usina, é 1.020, mas nunca dá mais de 800 cruzeiros (...). A maior questão que temos é com os direitos atrasados. O novo administrador da Usina está prometendo assinar a carteira e nos fichar. Ele queria que todos aceitássemos começar de novo sem contar os tempos antigos: entre 15 e 20 anos. Cinco aceitaram e ganharam apenas 500.000 em total. Eu não aceitei e falei com os demais: que os direitos dão 500.000 para cada um de nós. Quem fica agüenta enrolações como deixar passar 12 kg de cana por 9 kg. Os 5 pediram as contas por isso. Agora é o dono quem tem pressa em assinar carteiras. Nós vamos botar em claro nossos direitos”. Algumas estrofes de Dolores: “Sou um pobre miserável/que vive do ganha-pão, /saio de casa bem cedo/para as terras do patrão,/peço serviço ele diz:/ salário eu lhe dou não. 130 Revista ceas 233.indd 130 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais O cabo chega gritando/com a ordem do patrão:/’aqui hoje tem, serviço/amanhã não tem mais não’ ,/ele aí fica calado/não engole a decisão. Diz ‘eu vou caçar um lugar/pra poder plantar pra mim’,/aí vem o marechal/começa a plantar capim./’esta terra não é sua/tudo aqui pertence a mim’. Ele sai se maldizendo/com vontade de chorar,/a terra ficou pra todos/e ninguém pode plantar/com o diabo do cativeiro/e esse tal de marechal...” 2.5. A escravidão dos peões “São geralmente os peões gente nova. Porém com freqüência, pais de família com vários filhos. E até menores de idade: mais de 50 garotos (13, 14, 15 anos...) encontravam-se nas derrubadas da “Codeara” - segundo o testemunho de vários peões - por ocasião da recente intervenção da Polícia Federal. Iludidos quase sempre a respeito do pagamento, do lugar, das condições de trabalho, do atendimento médico. Tendo que pagar até a viagem - contra todo o estipulado num a posteriori decepcionante e forçado. Em sistema de empreitada que significa submeter-se além do dono e seu gerente, às fraudes e abusos dos empreiteiros. Já na mata das fazendas, sem possibilidade de saída. Fechados no “inferno verde”. Controlados por pistoleiros e “gatos”. Atacados pela malária, quase sem exceção. Com o fígado e o baço inchados. Mortos muitos deles pela malária, acumulada às vezes, nas diversas espécies da doença. Sem medicamentos, ou com medicamento pago e insuficiente. E atendidos tarde, já sem esperança. Contra todas as promessas. Comida fraquíssima: arroz, feijão e carne seca. Nos armazéns das fazendas compram-se as mais elementares mercadorias a preço alto. E até venderam-se amostras gratuitas de medicamentos. Sem pagamento nenhum, muitas vezes, depois de meses de empreitada, os peões acabam o serviço devendo à fazenda! Saem fugindo da morte, por doença. Pelas matas. A pé, léguas, dias. Perseguidos. Atirados. E mortos. ‘De morte morrida ou de morte matada’. Perdidos para sempre, o nome e o cadáver. Ameaçados, de arma, nos escritórios de algumas fazendas para aceitarem já fatalmente as inesperadas condições como fato consumado (convidados até a se despedir da família e da vida, por gerentes ou pistoleiros ou capatazes)”1. 1 DOM PEDRO CASADÁLIGA. Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. 1970. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 131 131 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 2.6. Na construção civil Um exemplo da cidade nos ajuda a compreender quanto se assemelham as duas realidades. “Na construção civil é um morrer de gente danado! Os acidentes de trabalho são muitos. Nunca levam o acidentado para o pronto socorro, levam para as clínicas particulares. A construção civil está péssima. Existe sobrecarga de trabalho. Trabalha-se 9.30 horas por dia, mas no fim do mês só se recebe 6 horas-extras (...). Nas construções de barragens, contratam pessoas do interior sem documentação, morrem e ninguém sabe. Em Pedra do Cavalo não contrataram um rapaz porque tinha pai e mãe: se morrer eles iam procurar (...). Gostam de agregar mão-de-obra do interior e de outros estados. Chegam num determinado lugar, prometem mundos e fundos, quando chega aqui não tem nada. O alojamento é um barracão com uma cama em cima da outra, sem colchão, cama forrada com sacos de cimento; quando eles reclamam, a firma manda pedir conta. E a passagem de volta? Ah! nós só vamos buscar; para voltar é com vocês! (...). Na nossa área o pagamento é feito quinzenalmente,. mas quando a gente entra, só recebe a quinzena daí a um mês”. *** Na medida em que “a cana (o capim, o café, o cacau, a soja, a cebola... ) vai tomando conta”, os camponeses transformam-se em “fichados”. Volta (será que houve tempo que não existiu?) a situação de cativeiro. O quadro que se esboça nestes depoimentos é verdadeiramente de “inferno verde”; Há uma tremenda mobilidade com condições de transporte péssimas, em geral sem cobertura nem assento; o salário no mês quase nunca chega a alcançar o mínimo exigido pela lei; os direitos trabalhistas não são respeitados nem conhecidos; depois de uma vida gasta na produção um homem nem chega a ter uma casinha própria digna desse nome; a luta pela saúde é contínua e a morte é algo muito próximo independentemente da idade; a alimentação é precaríssima: os trabalhadores comem farinha com sal, algumas vezes carne, muitos nem param para o almoço; a situação é de total insegurança: o pouco ganho que existe hoje, amanhã pode desaparecer improvisadamente deixando o trabalhador na maior angústia. Não são raros os casos de depressão, ansiedade pesadelos, total apatia... : a cachaça é o consolo que resta. Tudo isso mostra o grau de exploração selvagem do capitalismo que consegue multiplicar seus lucros. Para completar o quadro deveríamos mostrar os momentos de festa e a resistência que, apesar de tudo, existe entre os assalariados. Visa ao salário e aos direitos traba- 132 Revista ceas 233.indd 132 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais lhistas, mas também à terra e a outras reivindicações. Manifesta-se nas formas mais imediatas (diminuição da produção, procura das fazendas que pagam melhor, cobrança dos direitos na justiça) até às mais organizadas como os contratos coletivos e as greves sobretudo na região da cana em Pernambuco. Em relação à terra reivindicam a lei dos 2 hectares, ocupam matas virgens, plantam na beira das estradas ou a terça nas fazendas que permitem. O trabalhador rural pobre não perde sua relação com a terra. Em geral, os relatórios mostram a dificuldade de um trabalho de conscientização e organização nesse meio; a mobilização é difícil; não se vê como fazer união, como avançar na luta, como atingir os patrões que aparecem como todo poderosos. O retrato apresentado não se reduz a alguns casos, bem lastimáveis mas isolados e limitados. Ao contrário, revela uma situação que aumenta e se generaliza sempre mais na conjuntura do campo brasileiro. “Todo mundo é assalariado”: tal constatação é ouvida com sempre maior freqüência. E é confirmada por estatísticas e estudos. Em primeiro lugar, devemos lembrar a importância da população do campo. Segundo o Censo de 1980, na Balda, 50,3% da população economicamente ativa desenvolvem suas atividades no meio rural2. Em segundo lugar, considerando a evolução das participações das diferentes categorias de trabalhadores rurais entre 1970 e 1975, no Brasil, constata-se que as taxas de crescimento da mão-de-obra de empregados (permanentes e temporários, inclusive de empreiteiras) superam largamente o ritmo de crescimento da mão-de-obra familiar. Cresce a participação relativa do trabalho assalariado no total do emprego (de cerca de 24% para 28%), em detrimento da mão-de-obra familiar. Esse dado por si só reflete o forte processo de expansão das relações de trabalho tipicamente capitalistas na agricultura brasileira, uma progressiva proletarização3. Devemos acrescentar que as taxas de aumento do emprego temporário são as mais elevadas no período: 8,6% ao ano para os empregados temporários contratados diretamente pelos estabelecimentos; 3,1 % ao ano para os contratados por empreitada; e 6,5% ao ano para o conjunto dessas duas categorias. Isso significa que a agricultura está tendendo cada vez mais a empregar a força de trabalho estritamente nos momentos necessários das atividades agropecuárias, não se responsabilizando pela sua 2 Cf. OLIVEIRA, N. – KRAYCHETE, E G.: “Censo de 1980: um retrato da Bahia”, Cadernos do CEAS, n. 79, maio-junho 1982, p. 39. 3 Cf. KAGEYAMA, A. e SILVA, J. Graciano: “Os resultados da modernização dos anos 70”, Cadernos do CEAS, n. 88, novembro-dezembro 1983, p. 30. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 133 133 27/09/09 10:04 Cláudio Perani manutenção no restante do ano. Tal, proliferação do emprego sazonal, então, representa não apenas uma intensificação do ritmo de trabalho mas, do ponto de vista do trabalhador, um aumento do desemprego (ou subemprego) estacional4. No período da safra o trabalhador deve dar mais duro, pois o espera um período sem trabalho. Existem interpretações diferentes dos dados estatísticos e há discussões sobre a distinção tradicional camponês e proletário, assim como em relação às reivindicações dos bóias-frias (terra ou salário?). Deve-se reconhecer a importância de tais discussões e a complexidade das relações de trabalho, no campo. É difícil poder individuar uma categoria de “assalariado puro”. No concreto, as situações se misturam, aquele que tem sua terrinha é levado a completar com a diária e aquele que vive de salário procura uma terra. A situação é complexa e, justamente por isso, é necessário dar uma maior atenção ao grande número daqueles que não têm terra e dependem só de sua força de trabalho comprada por um. patrão que impõe muitas condições. E difícil não reconhecer um processo de proletarização na conjuntura do campo brasileiro. Isso é suficiente para fundamentar a reflexão pastoral. 3. A AUSÊNCIA DA IGREJA Diante desse vasto mundo de bóias-frias qual é a presença da igreja? Qual seu posicionamento? Qual é o serviço que a pastoral popular consegue realizar? Como é vivida a célebre “opção preferencial pelos pobres?” No famoso e importante documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (14.02.1980), Igreja e problemas da terra, que representa uma abertura corajosa e um avanço notável da igreja em favor do homem do campo, os assalariados estão pouco presentes. Há um simples aceno àqueles que “se transformam em proletários”, bóiasfrias, clandestinos, volantes (n. 48), é à “mais grave situação dos peões na Amazônia Legal” (n. 49). Isso, evidentemente reflete a situação da pastoral, onde o conflito de terra que envolve os posseiros é plenamente reconhecido e aceito, enquanto a problemática dos assalariados não encontra suficiente presença e experiência da igreja. Voltemos aos dois encontros nacionais de pastoral popular. No 5.º Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base que viu a participação de mais de 500 pessoas 4 Ibid, pp. 30 e 34. 134 Revista ceas 233.indd 134 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais escolhidas no Brasil inteiro, apresentando os problemas vividos pelas mesmas comunidades, dos 86 agricultores presentes somente 2 ou 3 eram bóias-frias. A Carta de Canindé reconhece entre os cinco grandes problemas “o crescente número de agricultores que perdem as terras e se tomam assalariados rurais e até bóias-frias, que já somam 7 milhões no Brasil”. Um dos quadros de uma celebração litúrgica apresentou a situação dos bóias-frias de São Paulo: “Em cima de um caminhão/bem cedinho ele vai/sem nenhuma garantia/pro seu pão de cada dia/ele vai tentar ganhar”. Durante o encontro chegou a notícia de que mais uma vez os bóias-frias foram vítimas de suas péssimas condições de trabalho: em acidente numa estrada de São Paulo, 29 perderam a vida. Foi só. Não houve ulterior aprofundamento da problemática. Na IV Assembléia Nacional da CPT pouquíssimos eram os assalariados presentes. O grupo que aprofundou a questão não conseguiu nenhuma presença dos mesmos. Apesar disso, o tema esteve presente. Constatou-se o aumento dos trabalhadores rurais volantes e o agravamento de sua situação. Foram também levantados exemplos de organizações de bóias-frias no estado de São Paulo. A marginalização por eles vivida no âmbito da sociedade tem seu correspondente na igreja e na organização sindical. Entre as linhas de ação propostas, pela primeira vez aparece o ítem “assalariados”: “A CPT deve tomar como uma das prioridades a questão do assalariamento rural ou seja as relações de trabalho no campo, destacando a problemática dos Trabalhadores Rurais Volantes. 1. Aprofundar, divulgar a realidade com suas lutas e experiências. 2. Promover encontros sobre a problemática, em conjunto com outros trabalhos afins. 3. Ajudar os assalariados a enfrentarem a problemática das migrações e as condições, acidentes e segurança do trabalho. 4. Incentivar outras categorias de trabalhadores rurais que levam a luta conjunta com os assalariados”. A questão da terra e a Reforma Agrária dominaram os debates, mas se reconheceu que o conflito se complica da terra para o salário, para a escravidão branca, e que a campanha para a RA deveria considerar também as questões trabalhistas, entre outras. Deixando os documentos e os encontros para considerar a pastoral popular em concreto, não dispomos de levantamentos objetivos e completos que nos permitam conclusões certas. A constatação geral de muitos agentes de pastoral é que nas CEBs do campo e nos movimentos de pastoral rural bem rara é a presença dos assalariados. Os grupos de igreja que se formam do integrados principalmente por pequenos proprietários, posseiros, rendeiros... É difícil organizar os bóias-frias, porque não... se encontram! O fato é mais grave do que possa aparecer à primeira vista. Se em alguns lugares há Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 135 135 27/09/09 10:04 Cláudio Perani a percepção do problema e se tenta encaminhar algo, em muitas comunidades a ausência dos assalariados nem é percebida. Mais ainda, em lugar de ficar questionada, a comunidade ou o movimento se justificam acusando os outros. Daqueles que não têm terra os comunitários dizem que “tem cabeça fraca”, “são cachaceiros”! Os assalariados, às vezes, são considerados inimigos do homem do campo porque não participam de suas lutas pela terra. Parece ser lícito concluir que, apesar de algumas louváveis e importantes tentativas de setores da pastoral popular, no seu conjunto a igreja dos pobres não está presente no mundo dos assalariados rurais. Esse fato deve ser analisado, procurando descobrir as razões mais profundas. Sem isso será difícil poder encontrar pistas de trabalho. 4. QUAIS AS RAZÕES Há, em primeiro lugar, uma realidade objetiva que deve ser considerada e que independe das intenções dos agentes. Resume-se numa palavra: a situação de exploração e de opressão dos assalariados rurais. De manhã até noite, de segunda-feira até sábado, com sol ou chuva, no pesado, sem as mínimas condições de descanso e lazer, sem poder alimentar-se suficientemente, homens e mulheres devem trabalhar para o lucro do patrão. Esse último apropria-se não somente do trabalho das pessoas, mas também de sua vida. Isso se dá através de um verdadeiro controle repressivo exercido por jagunços armados que impedem a saída das fazendas ou, de forma mais sutil, por uma pirâmide hierárquica que vai de gerente até o último cabo de turma e que assemelha muito ao sistema de controle das grandes fábricas. Apesar de diminuir por razão das novas relações, muitas vezes ainda subsiste o controle através do compadrio e formas semelhantes. O assalariado experimenta o poder do patrão sobre sua vida como uma dependência e uma submissão existenciais. A mobilidade dos assalariados é muito grande. Só esse fato pode explicar a dificuldade de um trabalho com eles. Mobilidade, porque devem ir ao trabalho que fica longe, gastando tempo cada dia ou afastando-se da família por semanas ou meses. Mobilidade, porque a rotatividade é grande, o patrão emprega só no tempo da colheita, demite com facilidade. Mobilidade, porque podem ficar desempregados e ter que andar muito para encontrar outro trabalho. Tudo isso cria uma situação de insegurança, de medo que pode chegar ao desespero. 136 Revista ceas 233.indd 136 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais A maior parte desses assalariados temporários, apesar de trabalhar no campo, mora nas periferias das cidades. Pertence, de alguma forma, ao mundo urbano, usufruindo das vantagens e sofrendo as tensões que são próprias da cidade. Isso pode significar uma maior liberdade que não existe nas fazendas, mas pode também provocar outras dificuldades devidas aos condicionamentos impostos pelo mundo urbano. Vivem, por exemplo, em bairros sem as mínimas condições de sobrevivência, são obrigados a preços mais altos que aumentam a carestia etc. A situação de exploração e as dificuldades de tempo e lugar não ficam somente no âmbito externo, na relação patrão-empregado; atingem todas as relações sociais, são interiorizadas e criam uma ruptura no âmbito dos valores. Podemos lembrar um trecho de Karl Marx no Manifesto Comunista: “Tudo que era sólido, bem estabelecido, desvaloriza-se; tudo que era sagrado se acha profanado e por fim os homens são forçados a considerar, desiludidos, o lugar que têm na vida e suas relações mútuas (...). A extensão da maquinaria e a divisão do trabalho tiraram do trabalho dos proletários todo caráter de independência e todo atrativo”. Marx interpretava com esse texto o movimento da revolução industrial, mas pode servir também para interpretar a mudança provocada pelo avanço capitalista no campo. Depois de uma semana de trabalho em condições sub-humanas, o que de fato fica é um pouco de cachaça para esquecer o cativeiro. Os trabalhadores são reduzidos a uma vida materialista: “tudo que era sagrado se acha profanado”. Os valores religiosos, também, estão sujeitos a essa ruptura. O fato de não freqüentar a igreja matriz não se deve unicamente à falta de tempo, mas sobretudo à rejeição de uma religião comprometida com os patrões. Há outras razões, relacionadas com as primeiras, mas que podem ser consideradas mais no reflexo que a situação objetiva produz sobre a igreja. “Quando se dão transformações substanciais na dinâmica das classes, a religião (a igreja) é obrigada a transformar-se (independentemente da intenção e consciência dos atores)”5. Essa transformação não é automática e depende também da iniciativa da igreja. É importante, por isso, considerar os obstáculos que a igreja coloca porque, pelo menos neste nível, poderia haver maior possibilidade de mudança. Vamos elencar algumas razões sem pretensão de uma análise exaustiva e aprofundada. 5 TABORDA, Francisco: “Igreja, Sociedade e Política. Sobre a evangelização do Político”, perspectiva teológica, n. 35, janeiro-abril 1983, p. 20. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 137 137 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Ausência de assalariados rurais. Já temos constatado, na primeira parte do artigo, que a igreja presente no setor rural não é muito freqüentada por bóias-frias e peões. As Comunidades Eclesiais de Base do campo e os vários movimentos de pastoral rural, em sua grande maioria, são integrados por posseiros e pequenos proprietários. Isso se explica pelas condições objetivas, antes consideradas. Mas tem uma conseqüência para a igreja: pela ausência dos assalariados dificilmente tais comunidades e movimentos poderão prestar um serviço válido, que favoreça a luta deles. Não sempre se considera tal limite. O fato de as CEBs serem integradas por lavradores, pessoas pobres e exploradas, é comparado com o modelo anterior da igreja, onde prevalecia a presença do fazendeiro ou da classe média. Essa comparação permite de ver todo avanço feito pela igreja em direção às classes populares, mas não revela o caminho que ainda deve ser feito para atingir também os bóias-frias, que vivem uma situação de maior marginalização. Falta de conhecimento do mundo dos assalariados. É conseqüência da situação anterior e característica tradicional da igreja. As relações de trabalho, a exploração sofrida, a dureza da vida de trabalho não são conhecidas. Talvez um pouco em suas conseqüências de falta de escola, de saúde, de moradia digna etc. Os agentes de pastoral, em sua grande maioria padres e freiras, têm condições de vida diferentes e habitualmente não dependem de patrão nem vivem unicamente de salário. Também não conhecemos suficientemente a reação dos membros das comunidades que, apesar de sua posição bem próxima dos assalariados rurais, às vezes, não parecem compreender a situação deles e fazer jus à dignidade dessa categoria. Medo do conflito de classe. O conflito de classe, isto é o conflito entre “o grupo restrito, mas muito influente, dos patrões e empresários, dos proprietários ou detentores dos meios de produção, e a multidão mais numerosa da gente privada de tais meios e que participa no processo de produção, mas isso exclusivamente mediante o seu trabalho”6, perpassa a sociedade toda e atinge também posseiros e pequenos proprietários, explorados pelo capital. No caso dos assalariados, a exploração talvez seja mais violenta; em todo caso, o conflito se manifesta com maior clareza. Coloca abertamente os operários contra os patrões. Na igreja, a palavra conflito nunca foi muito bem aceita. Mais ainda, o “conflito de classe”. Isso pode explicar as dificuldades vividas pela pastoral que, no caso dos bóias-frias, é obrigada a se confrontar diretamente com este conflito de classe. 6 JOÃO PAULO II: Encílica sobre o Trabalho Humano, 1981, n. 11. 138 Revista ceas 233.indd 138 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais Visão idealista do trabalho. Na tradição bíblica encontramos as duas visões, pessimista e otimista, em relação ao trabalho. A primeira o apresenta como uma “maldição”, conseqüência do pecado dos homens: “Tirarás da terra com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gêneses 3,17). A segunda o apresenta como uma benção: “Deus os abençoou: frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gênesis 1,28). As duas tradições sempre estiveram presentes na história da igreja. Ultimamente, surgiu uma “teologia do trabalho” preocupada em valorizar o aspecto positivo do mesmo. Tal teologia se impôs no Concílio Vaticano II e se encontra também na encíclica de João Paulo II sobre O Trabalho Humano. Muito acertadamente o trabalho é considerado chave essencial de toda a questão social e dimensão fundamental da existência humana. Isso interpreta a consciência dos trabalhadores que valorizam seu trabalho e, por conseqüência, tem grande importância para a pastoral. A afirmação, porém, de que “o trabalho é para o homem”, é “um bem do homem”, se não é acompanhada de uma análise sociológica que levante a função escravizadora do trabalho, pode levar a uma Visão idealista que impede uma aproximação com o mundo do trabalho. O Papa não deixa de falar do conflito e da situação de “milhões de homens que se vêem obrigados a cultivar as terras de outros e que são explorados pelos latifundiários” (n. 21). Essa situação deve ser reconhecida e assumida. Afirmações como “a terra para quem nela trabalha”, se podem ser importantes para a condução de uma luta, não só de posseiros mas também de assalariados, não devem impedir de reconhecer a situação concreta daqueles que não têm terra nem vão poder segurá-la com muita facilidade. Visão individualista do trabalhador. “O contrato de trabalho deixa a gente sozinho diante do patrão”. Esta afirmação de um trabalhador pode ser também a visão de agentes de pastoral que, mais uma vez, carecem de um conhecimento mais aprimorado do mundo dos assalariados, de sua solidariedade, de suas lutas. A dificuldade e a resistência dos assalariados rurais é explicada porque eles “não têm nada para defender de seu”. Significa que não têm terra e não se considera o valor e o poder do trabalho. É verdade que a conjuntura revela a possibilidade de resistir ou de atacar a partir da terra, enquanto existem dificuldades de organização para os trabalhadores volantes. Este fato, porém, não deve ser alimentado por uma visão que considera o assalariado como uma categoria que não luta, como um fraco porque não tem terra, não é um “produtor”. A solidariedade e consciência de classe que se desenvolvem entre os operários da indústria permitindo um avanço na luta do movimento operário, devem encontrar seu paralelo também entre os assalariados do campo. A perspectiva religiosa. Habitualmente, há por parte dos agentes de pastoral o desejo Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 139 139 27/09/09 10:04 Cláudio Perani de abençoar tudo com um sinal religioso. O conteúdo explícito da fé é logo apresentado, sem dar tempo suficiente para que a dimensão humana se desdobre plenamente. Parece que não se faça evangelização se não se fala explicitamente de Jesus e de Deus. É evidente que, em se tratando de pastoral, seu objetivo é evangelizador, quer dizer, tem a função de anunciar a salvação em Jesus Cristo. A maneira e o tempo para fazer isso devem ser questionados e devem tomar em conta as circunstâncias concretas em que vivem, no caso, os assalariados que, provavelmente, não têm o mesmo tipo de religião que os posseiros. Não se trata de justificar com esquemas tipo “primeiro promover, depois evangelizar”. A mesma evangelização exige o respeito da dignidade humana e tem como conteúdo a justiça. Temos considerado acima o mundo “materialista” em que vivem os assalariados e uma possível interiorização que pode criar rupturas com certos esquemas religiosos. Apresentar-se apressadamente com tais esquemas pode impedir aquela presença e solidariedade que se quer para que os assalariados se encontrem como pessoas e como classe. A nossa abordagem equivocamente “religiosa” poderia, mais uma vez, marginalizar os bóias-frias. Tal afirmação não é absoluta, quer dizer, não queremos afirmar que se deva deixar de lado a abordagem religiosa, menos ainda, concordar com o posicionamento dos que nunca querem falar de religião. Também nesse caso, são os trabalhadores que devem manifestar sua opinião e seu desejo. A prática poderá ensinar vez por vez qual o caminho melhor. Aqui simplesmente queremos alertar quanto ao equívoco de certas abordagens pretensamente “pastorais”. Os instrumentos pastorais. A pastoral popular tem uma série de instrumentos pedagógicos e organizacionais que se revelaram eficazes no trabalho que está desenvolvendo. Nos referimos aos canais de contato, às comunidades, às reuniões, aos lugares de encontro, às dinâmicas dos debates, às lideranças, aos subsídios impressos ou audio-visuais, aos vários instrumentos de luta etc. Tudo isso pode ser útil para um trabalho com volantes, mas não devemos esquecer que foi experimentado noutro meio e que talvez não sirva para a nova situação. Por exemplo, para um certo tipo e freqüência de reuniões há necessidade de poder dispor de tempo, facilmente encontrado pelos pequenos proprietários que têm maior liberdade e não pelos assalariados sujeitos ao tempo do patrão. Temos que perceber o problema para não forçar a utilização de certos instrumentos, mas deixar o caminho aberto para descobrir os que mais podem se adaptar às condições e exigência do mundo dos assalariados. Falta de alternativas. Uma justificativa que, às vezes, se ouve, particularmente por parte de autoridades de igreja para não permitir uma inserção de agentes de pastoral no meio 140 Revista ceas 233.indd 140 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais dos trabalhadores volantes, é o fato que não aparecem alternativas. “Nós não temos soluções para apresentar, por isso não podemos ir”. Pode ser verdade que não temos soluções para oferecer. Tudo isso não é motivo para negar nossa presença e nosso serviço. Ao contrário, deveria exigir um maior investimento. Não termos alternativas é exatamente a marca do nosso serviço que é pastoral e não político, em sentido próprio da palavra, quer dizer, consiste numa solidariedade e numa ajuda para que os trabalhadores encontrem e assumam suas alternativas. Na prática, pelo desejo de ter algo de imediato para oferecer e por não agüentar uma situação de impasse, muitas vezes ficamos bloqueados. Devemos questionar tal resistência, descobrindo que do ponto de vista político essa falta de alternativas pode permitir uma maior participação e responsabilidade dos interessados, e do ponto de vista evangélico uma maior vivência do aspecto da gratuidade. 5. QUE FAZER? Depois de tais questionamentos, fica a pergunta “o que fazer?”. O fato de esclarecer e aprofundar algumas dificuldades, não elimina a necessidade de encontrar sugestões. Como entrar em contato com os trabalhadores volantes e estar a serviço de sua luta? Pelo dito anteriormente, fica clara a impossibilidade de dizer muitas coisas sobre o assunto. A prática irá ensinar melhor na medida em que aumentar. É possível, contudo, tirar algumas conclusões dos questionamentos anteriores. Maior inserção. Se os assalariados rurais não estilo presentes nas comunidades e nos movimentos de pastoral, a primeira e óbvia conclusão é que os agentes de pastoral devem ir lá onde eles se encontram. Trata-se de deixar os próprios lugares e andar nos lugares freqüentados pelos bóias-frias: de manhã cedo nas pontas de rua, nos caminhões, nas fazendas, nos barzinhos, no fim de semana nos bairros onde moram... Trata-se de adquirir maior mobilidade, a mesma dessa categoria de trabalhadores. Às vezes, as dificuldades poderão ser insuperáveis: é praticamente impossível entrar em certas fazendas, nem para um cursinho de batizados ou uma celebração litúrgica, pois o controle pelos jagunços ou pelas assistentes sociais é muito rígido. Trata-se de ver as situações concretas: de escutar a palavra dos trabalhadores, particularmente sobre os temas que mais lhes interessam: salário, condições de trabalho e de vida etc; de deixar-se instruir por eles. Na Europa, diante da distância entre a igreja e o mundo do trabalho, a pastoral descobriu o caminho dos “padres operários”, Sempre se disse que tal experiência não tinha nada a Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 141 141 27/09/09 10:04 Cláudio Perani que ver com nossa realidade. Mesmo que isso fosse verdade, não deve ser descartada facilmente, pois pode sugerir formas de maior presença no mundo dos operários e também no mundo dos bóias-frias. De fato, também entre nós não faltam pequenas experiências. Entrar na produção não seria para ser “vanguarda” do movimento, mas simplesmente para ter um canal a mais que aproxime a igreja do mundo dos assalariados e lhe permita um maior conhecimento. Em todo caso, o exemplo trazido não quer sugerir a entrada na produção - que na nossa situação deveria também considerar o grave problema do desemprego -, mas alimentar a preocupação para uma maior inserção. Para esse tipo de trabalho, há necessidade de investir tempo e forças. Não podemos pensar de encontrar logo o caminho com breves contatos. O problema dos recursos, também humanos, é um problema de opção. Não é verdade que faltem pessoas para uma pastoral dos bóias-frias; falta a decisão que leve a priorizar esse tipo de compromisso. Muitos lugares e grupos sociais são super-atendidos pela igreja, quando aí estão imensas multidões sem ninguém que delas se ocupe. Essa primeira sugestão é básica, pois somente a partir desse contato poderia ser melhor esclarecido o caminho. Atitude de solidariedade. A presença já é um ato fundamental de solidariedade. Essa deve manifestar-se no plano pessoal e de classe. Se é verdade que o problema é fundamentalmente de conjunto, sempre tem sentido uma atitude pessoal de compreensão e amizade. Vai frontalmente contra as relações de dependência e de controle exercidas pelo patrão. Evidentemente não teria sentido se, contemporaneamente, não houvesse uma solidariedade também política com todas as lutas da classe. A encíclica sobre O Trabalho Humano sublinha a importância da solidariedade e a coloca como ponto fundamental de uma verdadeira eclesiologia. “É preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho. Tal solidariedade deverá fazer sentir a sua presença onde o exijam a degradação social do homem-sujeito do trabalho, a exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e mesmo de fome. A igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a igreja dos pobres”7. O Papa não poderia ser mais explícito. 7 Ibid., n.º 8. 142 Revista ceas 233.indd 142 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e assalariados rurais Rever a questão dos sinais religiosos. É conseqüência do questionamento sobre a pressa com a qual os agentes de pastoral colocam o problema e os sinais do religioso. Tal pressa, parece às vezes indicar uma limitada vivência de fé, pois há muita insegurança e medo quando não se explicitam determinados sinais externos. Devemos aprofundar nossa visão de fé e saber reconhecer o trabalho da graça e a presença do Reino de Deus lá onde se constrói uma solidariedade humana e se luta para uma libertação da opressão. A prática de Jesus Cristo, revista sob este aspecto, poderia ensinar muitas coisas. Há também alguns documentos recentes de superiores de ordens religiosas que vão nessa linha. O ex-Geral da Companhia de Jesus, Pe. Pedro Arrupe, numa carta aos representantes da “Missão Operária”, reconhecendo as dificuldades do ambiente, afirmava: “As circunstâncias podem impedir ou desaconselhar a explicitação de vossa missão evangelizadora”8. É um caso, talvez, limite, que não se aplica ao Brasil, mas que pode nos ajudar para rever nosso apego aos sinais religiosos. Na mesma linha vai o Documento do Conselho Plenário da Ordem dos Frades Menores: “Devemos atingir ainda em nossas próprias sociedades aqueles que ainda não foram tocados pelo Evangelho e aqueles que se afastaram do Evangelho tal como se lhes apresenta de modo tradicional. Pela nossa presença tentaremos ajudá-los a interpretar sua experiência e promover o bem que encontramos. Caso esta pareça ser a vontade de Deus, explicitamente proclamaremos o Senhor”9. O que significa que a proclamação explícita não deve ser um fato automático. O documento retoma palavras do “subversivo” S. Francisco que evangelizava uma terra de batizados, procurando aproximar a massa marginalizada... O conteúdo das lutas. É uma questão importante e difícil, que não pode ser tratada nos limites de um artigo. Nas áreas de posseiros encontramos conflitos manifestos e mobilizadores. Aí o problema da “terra” é fundamental. Nas áreas de assalariados os conflitos são ocultos e mais condicionados. Aqui entra a luta pelo “salário”. Não se trata de relativizar a terra para poder afirmar o salário. Nem de querer ficar unicamente com os importantes conflitos pela terra, esquecendo as massas que vivem de salário ou querendo logo impor uma bandeira, que talvez para elas não tem sentido. Trata-se de reconhecer que a opressão é a mesma, o mesmo capitalismo explora posseiros e bóias-frias. Trata-se de relacionar terra e trabalho, não a partir de esquemas abstratos, 8 ARRUPE, Pedro: Encontro com os representantes da Missão Operária, Roma, 10.02.80. 9 Conselho Plenário da Ordem dos Frades Menores:evangelização e Missão na Ordem, Salvador, 25.06.83. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 143 143 27/09/09 10:04 Cláudio Perani mas do reconhecimento da realidade e das complexas e diversificadas relações concretas onde, muitas vezes, terra e salário se misturam. Entre as várias lutas, o caminho do salário e o caminho da lei (exigência dos direitos garantidos pela lei) são formas válidas e políticas de luta, dada a distância existente entre o que prescreve a lei e o que os patrões cumprem. Mas deve-se também reconhecer os limites. A lei não é dos trabalhadores. O salário é a forma escolhida pela dominação burguesa. Nesse sentido devemos questionar certas afirmativas que reconhecem a possibilidade de um “justo salário”. Lembram as justificativas à escravidão10. Lei e salário devem ser considerados como instrumentos. Não se trata de abrir mais o espaço da lei para poder avançar mais, mas de ver com os trabalhadores de que modo podem avançar também através do instrumento da lei. Os Sindicatos. Existem experiências de sindicatos de assalariados rurais, onde bóiasfrias encontraram uma forma de organização. Já falamos das mobilizações dos sindicatos de Pernambuco na ocasião dos dissídios coletivos. Na região do cacau, em Ibirapitanga - BA, a união e luta de um grupo de assalariados conseguiu estruturar um sindicato defensor dos direitos da classe, desenvolvendo um trabalho amplo de conscientização. Os exemplos não faltam. Mas também em relação ao instrumento do sindicato, não é suficiente a consideração de que é órgão de classe. Além do reconhecimento dos limites estruturais do sindicato brasileiro, deve-se considerar caso por caso, dado que existe uma diversidade de atuação. No caso dos assalariados rurais há uma dificuldade a mais. Em sua grande maioria são integrados por pequenos proprietários e posseiros. Também os que se reestruturaram a partir de lutas recentes guardam a mesma composição. Vale então aquele questionamento feito em relação às CEBs. Dificilmente um sindicato de posseiro poderá ter grande sensibilidade para a situação dos trabalhadores volantes e, ao contrário, esses últimos terão dificuldades para reconhecer naquele órgão seu sindicato. Várias vezes ouve-se dizer por assalariados que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais é dos patrões. As sugestões são limitadas e bastante genéricas. É importante não prefixar-se em modelos, mas acompanhar o movimento dos trabalhadores. Ajudará também a igreja a viver sempre mais sua “opção pelos pobres”. 10 Cf. BEOZZO, José: “Ser trabalhador rural no Brasil hoje”, Concilium, n. 180, 1983/10, pp. 109123. 144 Revista ceas 233.indd 144 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A GREVE DOS BÓIAS-FRIAS EM SÃO PAULO CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º93, set./out. 1984) No dia 15 de maio de 1984, a pequena cidade de Guariba, com 25 mil habitantes, situada na região da cana de Ribeirão Preto - São Paulo, foi invadida por uma multidão de mais de 1.000 bóias-frias. Incendiaram e demoliram dois prédios da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), atearam fogo a três veículos da mesma e saquearam um supermercado. Os bóias-frias tinham entrado em greve. Os caminhões dos “gatos” foram recolher em vários pontos da cidade cerca de 10 mil trabalhadores rurais para conduzi-los às usinas, mas os motoristas eram obrigados a parar por causa dos piquetes. Um dos canaviais da Usina São Carlos foi incendiado. A Polícia Militar, com cerca de 200 homens, chegou jogando bombas de gás lacrimogêneo; houve tiroteio com um morto (Amaral Vaz Meloni de 49 anos, aposentado) e 29 feridos. Também a Polícia Federal esteve presente. Dois motivos imediatos contribuíram para a revolta dos trabalhadores rurais. O principal foi a decisão dos usineiros de mudar o sistema de corte de cana de açúcar estabelecendo 7 ruas ao invés de 5 como era antes. Com isso o trabalhador era obrigado a carregar a cana cortada até os montes, diminuindo sua produção. Pelo sistema de 5 ruas chegava a colher 150 metros por dia, enquanto pelo de 7 esse rendimento caía para 90 metros. A outra causa foram os constantes aumentos das taxas de água. Na véspera da revolta houve novo aumento, totalizando 900% em um ano. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 145 145 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Os bóias-frias reuniram-se em assembléia e apresentaram 21 reivindicações, na maioria atendidas pelos usineiros depois de três dias de greve. “Foi uma grande vitória de todos os trabalhadores rurais”, conforme explicou muito emocionado o bóia-fria Caetano Faria dos Santos. Clemência Dias Pereira estava radiante: “Ontem a noite dormi tão tranqüila que cheguei a sonhar”. E outro trabalhador: “Eu não me contive. Chorei de emoção. Era um nó que estava 25 anos na garganta”. 1.1. A situação dos bóias-frias Na região de Ribeirão Preto cerca de 110 mil bóias-frias estão empenhados no corte da cana. Muitos eram pequenos sitiantes, mas acabaram perdendo suas terras e foram se instalar nas periferias das cidades. Outros vieram de fora - Minas Gerais, outras áreas de São Paulo, Nordeste -, quando em 1975 se instalou o projeto Proálcool. Grande é o lucro gerado na região de Ribeirão Preto com a produção de açúcar e álcool (em torno de Cr$ 10 bilhões), mas é apropriado por 4 ou 5 famílias donas das Usinas São Martinho - a maior do Brasil, de propriedade do Grupo Ometto -, Bonfim, São Carlos e Santa Adélia. Até os próprios recursos destinados ao lazer, educação e saúde do empregado da usina (2% do preço do litro do álcool e I % do valor da saca de açúcar) são aplicados pelos usineiros para construir piscinas e comprar helicópteros, segundo o deputado Waldir Trigo (PMDB). Os trabalhadores rurais ficam numa situação de fome. O trabalho é muito pesado. O bóia·fria levanta às 4 da madrugada, depois de ter preparado na véspera a comida; faz 2 horas de caminhão antes de chegar no lugar de trabalho; corta a cana de 7 às 10, de 11 às 14 e das 15 às 17, tomando nos intervalos a comida fria; volta no fim do dia com mais 2 horas de viagem. Os acidentes são muitos, seja no transporte sem condições (cada semana há mortos), seja no manejo do facão (15-20 acidentes por mês acontecem numa usina). O ganho é pouquíssimo. Com duro esforço os trabalhadores conseguiam uma média de 130-150 mil por mês. Ganhavam 1200 por tonelada, cortando 5-6 toneladas por dia. Com o regime de 7 ruas conseguem fazer 4 ou 4,5 toneladas, reduzindo com isso a produção a 60·70%, perfazendo no mês só 1 salário mínimo. Acrescente-se que devem pagar seus instrumentos de trabalho (lima, facão, marmita...) que se gastam em 146 Revista ceas 233.indd 146 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A greve dos bóias-frias em São Paulo pouco tempo e, sobretudo, que ganham isso só durante a safra: o resto do tempo - 6 meses - não têm trabalho ou vivem de biscate. Os bóias·frias são tratados como pessoas de segunda categoria. Por serem considerados trabalhadores temporâneos, as fazendas não assumem responsabilidades trabalhistas. Aproveitam-se do “gato”, ou empreiteiro, que leva os trabalhadores para as plantações e recebe um tanto por cabeça, descontando daquilo que o trabalhador deveria receber. Devemos considerar também o aumento do custo de vida. Um quilo de feijão equivale a umas 2 toneladas de cana. É preciso cortar·4 toneladas para pagar a conta da água. Em Guariba, como noutros lugares, as taxas aumentavam continuamente, sendo que 60% da população pagava 5.300 por mês, podendo chegar até 80.000. Um exemplo de como vivem esses homens é Augusto Alves Fonseca. Tem 9 filhos pequenos e ganha, juntamente com a esposa, 150 mil cruzeiros no corte da cana. Paga 80.000 de água e acumula dívida de 280.000 no supermercado.1 Na marmita do cortador de cana quase sempre não tem carne. Às vezes um ovo, uma salada, uma batata. Em tempos de aperto, só arroz com feijão, ou mesmo puro, temperado só com sal.2 1.2. A luta A coragem e a união dos bóias-frias conseguiram a vitória contra os usineiros. Desde o 2 de maio de 1983 os trabalhadores da região de Jaboticabal vêm alertando para a extorsão representada pelo aumento do número de ruas de corte de 5 para 7. Os trabalhadores já fizeram greve há um ano e nada conseguiram. Essa vez, sentindo que a luta era para valer, patrões e empregados sentaram-se à mesa de negociação. Os bóias-frias não sabiam o que era isso há mais de 20 anos. Durante todo esse tempo, eles foram aguentando. Até que no dia 15 de maio os de Guariba explodiram. E para valer. O movimento grevista de Guariba surgiu “espontaneamente”, segundo o próprio presidente do STR, Benedito Vieira de Magalhães, “sem nenhuma influência externa”. Ele próprio, apesar de estar há 17 anos na presidência do sindicato, não tem muita 1 Cf. O São Paulo, 25-31 de maio de 1984, p. 6. 2 Cf. Tribuna da Luta Operária, 2 de maio a 3 de junho de 1984. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 147 147 27/09/09 10:04 Cláudio Perani ascendência sobre a categoria. Segundo o Secretário do Trabalho Almir Pazzianotto, os chamados líderes sindicais da região não têm liderança nenhuma e “a massa de trabalhadores passou por cima deles”. A negociação, porém, acabou sendo conduzida por líderes sindicais e advogados trabalhistas de outras regiões. Quando a greve começou, deram seu apoio dirigentes da Federação dos Trabalhadores da Agricultura, vereadores e deputados do PMDB e do PT, dirigentes da CUT, o coordenador da CPT estadual... Como sempre acontece nesses casos, para não reconhecer a gravidade da situação e a capacidade dos trabalhadores, as autoridades procuraram outros responsáveis. O prefeito de Guariba achou que tinha “dedo de fora”. O Ministro do Trabalho disse que pessoas estão “agitando a massa trabalhadora”. A Polícia Federal esteve presente para levantar os prováveis políticos que estariam liderando os bóias-frias. 1.3. A vitória A greve valeu a pena. Segundo Leopoldo Paulino, advogado da Fetaesp, em 30 anos nunca se conseguiu na Justiça tanta coisa junta para o trabalhador como neste caso com apenas três dias de greve. Os bóias-frias conseguiram quase tudo que reivindicaram. Eis os principais pontos de acordo: - Sistema de corte reduzido de 7 para 5 ruas. - Aumento do preço do corte por tonelada de 1.200 a Cr$S 1.740, podendo chegar a Cr$ 240.000 por mês. - Registro de carteira obrigatório. - Recibo de pagamento mensal em envelopes contendo o valor do salário. - Descanso semanal remunerado. - Pagamento do dia quando a chuva não permitir o trabalho. - Se o cortador ficar doente, a empresa pagará seu salário normal por 30 dias. - Os patrões fornecerão todos os equipamentos. - Condução gratuita. - Garantia de emprego por 8 meses. O .acordo ratificou também conquistas antigas dos trabalhadores rurais, como registro em carteira, recebimento de férias e 13º salário, pagamento dos direitos em caso de rescisão dos contratos. Direitos elementares, mas que não eram cumpridos. 148 Revista ceas 233.indd 148 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A greve dos bóias-frias em São Paulo 1.4. A luta continua O acordo foi aprovado. Resta saber como será aplicado e como continuar a luta por outras reivindicações. Os bóias-frias prometem retomar o movimento se o acordo não for cumprido. “E se voltarmos, será para valer!” Já existem as primeiras queixas do STR Guariba dizendo que o acordo não está sendo respeitado pelas usinas e fornecedores de cana da região e conhecemos a grande capacidade dos patrões e não cumprir o que assinam. Há o problema da fiscalização: quem vai controlar o cumprimento do acordo? Sabemos da fraqueza dos sindicatos da região e da grande facilidade dos usineiros em não manter a palavra do acordo. Há o problema do “gato”, o intermediário que explora mais uma vez a mão-de-obra. As autoridades sugerem a implantação de cooperativas de trabalhadores volantes, que seriam nada mais do que uma forma mais institucionalizada de intermediário. Só sindicatos fortes poderiam substituir os “gatos” como intermediários na contratação da mão·de-obra. Há o problema mais geral da organização dos bóias-frias, para eles poderem em cada momento capitalizarem a força demonstrada na revolta. Entretanto, a luta continua e amplia mais por iniciativa dos próprios interessados. Os movimentos dos bóias-frias se extendem a todo o Estado de São Paulo, e fora dele também. Entraram em greve bóias·frias de Barrinha, Barretos (organizando piquetes), Monte Alto (saqueando um supermercado), Monte Azul (fazendo uma passeata), Sertãozinho (15 mil empregados pararam as usinas), Santa Rosa de Viterbo, São Joaquim da Barra (2 mil bóias·frias), Jaú (fazendo piquetes), Pontal (8 mil bóias· frias, conseguindo a eliminação do “gato”), Limeira e Iracemápolis (5 mil bóias·frias e trabalhadores de usinas); Avanhandava, Promissão, Penápolis, Lins, Getulina, Alto Alegre, Barbosa, Buritema, Araçatuba. O movimento está se expandindo como uma mancha de óleo. Também fora do Estado de São Paulo. Em Santa Helena (Goiás) entraram em greve 4.000 bóias-frias; no Paraná 20 STRs se solidarizaram com o movimento de Guariba; Em Uberaba, 3 mil bóias-fria entraram em greve e conseguiram um aumento de Cr S 900 para 2.100 ... O exemplo de Guariba está se espalhando! A revolta não ficou no âmbito dos cortadores de cana, mas se estendeu aos trabalhadores volantes de outras culturas. Contemporaneamente aos acontecimentos de Guariba, Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 149 149 27/09/09 10:04 Cláudio Perani em Bebedouro, cidade próxima, 6 mil apanhadores de laranja entraram em greve reivindicando um aumento de Cr$100 para Cr$ 200 por caixa colhida. Houve organização de piquetes e a presença de 300 policiais-militares reprimido, invadindo casas de trabalhadores e espancando senhoras e crianças. Depois de três dias de greve conseguiram Cr$ 210 por caixa, sabendo porém que dessa importância devem ser deduzidas as parcelas de descanso semanal remunerado, férias, 13º salário e indenizações que ficam na mão do empregador, salvando um pagamento líquido de Cr$144. Em Jaboticabal os trabalhadores temporários das chamadas “lavouras brancas” (arroz, feijão, milho, cebola, amendoim, soja) reivindicaram o pagamento de uma diária de Cr$ 10 mil, além dos outros direitos trabalhistas. 2. ENSINAMENTOS E QUESTIONAMENTOS Vários comentários estranharam essa improvisa revolta dos bóias-frias. Outros, ao contrário, relevaram o atraso com o qual ela chegava. Essa conclusão considerava a situação de extrema exploração em que se encontravam os trabalhadores rurais da região de Ribeirão Preto. Já vimos, brevemente, na primeira parte, a situação de fome. Trata-se de milhares de trabalhadores que vivem em condições de extrema miserabilidade, inacreditáveis mesmo num sistema de “capitalismo selvagem” Em 1975, Maria Conceição D’lncão e Mello levantava a renda familiar de uma região próxima e semelhante àquela de Ribeirão Preto: 90% das famílias de bóias-frias tinham uma renda familiar mensal até os 60% do salário mínimo, 74% até os 40% do SM e 30% até os 20% do mesmo.3 De lá para cá, com o deterioramento do poder aquisitivo do salário e com o continuo aumento do custo de vida, podemos imaginar o que pode significar a sobrevivência para milhares de famílias que vivem unicamente do salário. Faz dez anos o projeto Proálcool entrou na região aumentando a área plantada com cana nas terras mais nobres e de maior fertilidade. Com isso, o Proálcool vinha forçando uma excessiva concentração de terras, aumentando o número de pequenos produtores que acabavam vendendo suas propriedades e migrando para as cidades, quase 3 D’INCÃO E MELLO, Maria Conceição: O Bóia-Fria, Petrópolis, Vozes, 1975. 150 Revista ceas 233.indd 150 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A greve dos bóias-frias em São Paulo sempre para sub-empregos. Com esta escassez de terra e com a abundância de mãode-obra, favorecida também pela crise recessiva e pelo desemprego nas cidades, eram dadas as condições para a formação de um grande proletariado rural. Seu único recurso é a força de trabalho oferecida como mercadoria grandemente explorada pelas usinas. Estas faziam questão de aumentar tal exploração: além do baixíssimo salário e do inadimplemento dos direitos trabalhistas mais elementares, ultimamente passaram a exigir o corte de cana por 7 ruas em lugar de 5. Ficava assim configurada uma situação altamente explosiva. Segundo a D’Incão, a região de Ribeirão Preto pode ser considerada o “ABC da agricultura brasileira”. 2.1. As reivindicações dos bóias-frias Constatamos que as reivindicações dos trabalhadores colocaram prioritariamente o problema do salário, seu aumento e o controle da produção; contemporaneamente entraram outros direitos trabalhistas e as condições de trabalho, sem esquecer o problema do transporte e da saúde. Além disso devemos lembrar que o estopim da revolta foi o problema do aumento da água na cidade de Guariba. São reivindicações eminentemente proletárias, de uma situação de vida em que a reprodução depende unicamente do salário. Este é o problema imediato. E são reivindicações tipicamente urbanas ou com características mais urbanas que rurais. Em nenhum momento fala-se de terra como no caso dos trabalhadores da cana do Nordeste que lutam pelos dois hectares. Parece ter desaparecido a esperança de conquistar ou reconquistar uma terrinha. Já não se acredita mais nesta possibilidade. Não significa que a terra tenha desaparecido totalmente do horizonte destes trabalhadores. Simplesmente, a nova questão central imediata que aparece no rural/urbano é o salário. É pelo· salário que os bóias-frias questionam e enfrentam diretamente o capital. Isso deve ser reconhecido para poder acompanhar corretamente as lutas dos assalariados rurais. Uns dirigentes sindicais têm dificuldade para essa interpretação: “Seria capitularmos frente a uma aspiração do trabalhador rural que é o direito à posse de terra”. Afirmar a prioridade do salário, não significa excluir a relação com a terra nem con- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 151 151 27/09/09 10:04 Cláudio Perani cluir que essa última é insignificante. Significa reconhecer a nova questão do salário e dos direitos trabalhistas não só como problemas mais imediatos, mas como caminho concreto para enfrentar o capital. Também não se trata de negar a importância de uma reforma agrária, mas de questionar o poder mobilizador de determinadas apresentações. A luta reivindicando o salário, ela também, pressiona por uma reforma agrária, mas de outra maneira, por outros caminhos que devem ser reconhecidos em sua especificidade sob pena de se ficar na teoria abstrata. 2.2. Como surgiu a revolta Quase todos os comentários sobre o movimento de Guariba, contemporaneamente à manifestação de sua surpresa, afirmam que foi um movimento “espontâneo”, que eclodiu de forma espontânea. Os próprios líderes sindicais ficaram surpreendidos, reconhecendo que a explosão da base passou por cima de muitos dirigentes sindicais. Podemos concordar no reconhecimento da “espontaneidade” do movimento, mas somente no sentido de não ter seguido esquemas ou planos pré-estabelecidos e de não ter obedecido a nenhum controle central. De fato, não foi preparado por organizações institucionalizadas, nem pelos próprios sindicatos, que não são em sua maioria reconhecidos pela massa dos bóias-frias. Isso não significa afirmar uma geração espontânea ou a ausência de toda e qualquer causa. Em primeiro lugar, deve ser reconhecida a situação explosiva acima brevemente retratada. Existe um conflito de classe latente que provoca uma constante insatisfação com a situação real e uma expectativa permanente de melhores condições de vida. A situação de fome determina um descontentamento acumulado. Além do mais, Guariba é uma região com tradição de luta, onde várias greves foram realizadas no passado. Mas não é só isso. A “espontaneidade” significa ausência de determinados canais tradicionais e conhecidos de conscientização e de organização, mas não ausência de toda e qualquer iniciativa nesse sentido. Houve um trabalho prévio, miúdo, de contatos e conversas no barzinho, no caminhão, durante as interrupções do trabalho..., feito pelos próprios trabalhadores. A “espontaneidade” esconde um trabalho cotidiano de conscientização e organização, invisível à opinião pública, mas não menos eficaz. 152 Revista ceas 233.indd 152 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A greve dos bóias-frias em São Paulo Tal trabalho é possível e tem eficácia porque na região já existe alguma estabilidade entre os trabalhadores rurais. Apesar de volantes, eles têm trabalho assegurado por 6 meses, moram nos mesmos bairros, não têm uma terrinha própria para voltar depois da colheita. Existe um mínimo de estabilidade e identidade: “Enquanto os bóias-frias de outras regiões do país não têm identidade, os trabalhadores da região de Ribeirão Preto iniciaram um processo de auto-identificação como categoria de trabalhador: eles se consideram cortadores de cana e isso é pré-condição para qualquer organização”.4 A “espontaneidade”, também, não significa a ausência de todo e qualquer trabalho de conscientização e de influência externa. Devemos reconhecer a presença da igreja atuando através da Comissão Pastoral da Terra, na linha de um trabalho de conscientização sobre os direitos trabalhistas e de apoio aos sindicatos combativos. No ano de 1983, depois de um estudo sobre a questão das 7 ruas, a CPT tinha denunciado a nova exploração. Os sindicatos ficam distantes da problemática dos bóias·frias e limitados em sua atuação. Mas a partir do Congresso da Contag em 1979, que exigiu um maior trabalho sindical em favor da categoria dos bóias-frias, também na área de Ribeirão Preto foram feitas tentativas de educação sindical e trabalhista. Por último, não podemos esquecer a situação de “abertura” política. Não tanto o fato de o Governador Montoro ter feito campanha política na região sobre os direitos trabalhistas, quanto o clima de mobilização criada no país pelas sucessivas concentrações em favor das diretas já. As instituições, em particular os sindica. tos, apareceram na hora da greve desenvolvendo um papel de negociadores. Leopoldo Paulino, advogado da FETAESP, no dia 16 de maio, chegou a Guariba onde juntamente com o presidente do STR de lá e os diretores da Fetaesp passou a trabalhar para que o movimento prosseguisse mais forte, mais organizado.5 Apareceu também o Secretário do Trabalho, Almir Pazzianotto, muitas vezes preenchendo a ausência dos sindicatos. Mas ficou claro que estes não eram os canais dos trabalhadores que ficaram mais na praça que nas assembléias. 4 D’INCÃO E MELLO, Maria Conceição, in Jornal do Brasil, 27.05.84. 5 Cf. depoimento do próprio Leopoldo Paulino na Tribuna da Luta Operária, n. 172. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 153 153 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 2.3. A continuidade “Os cortadores de cana-de-açúcar da região Sertãozinho - que responde por um quarto da produção de açúcar do país - poderão entrar em greve na próxima sexta-feira, caso os usineiros e outros fornecedores de cana não cumpram o acordo de Guariba, firmado há um mês”.6 Vimos acima que já existem queixas contra os usineiros que não estão cumprindo o acordo. Os próprios bóias-frias de Guariba voltaram a fazer greve por esta razão. O movimento dos bóias·frias de Guariba e Bebedouro foi certamente um grande marco na história das lutas dos trabalhadores. Conquistaram uma vitória significativa que, porém, deve ser avaliada com realismo. A pressa com a qual os donos aceitaram as reivindicações, além de revelar a força do movimento, manifesta outras coisas. Existe a intervenção do governo de São Paulo que, além de dispersar os trabalhadores volantes, mobilizou os patrões através da mediação do usineiro e secretário do governo, Roberto Gusmão, para um acordo a ser assinado imediatamente e a ser estendido ao estado todo apesar das dificuldades da Fetaesp. Havia o desejo de evitar novas greves e sobretudo o medo de. incêndios nos canaviais não podendo assim cumprir os compromissos do Proálcool. Havia o receio de os sindicatos acrescentarem novas reivindicações. E também havia a confiança na possibilidade de não cumprir os acordos. Daí a necessidade de os bóias-frias permanecerem vigilantes e cobrarem em continuidade. Além disso, coloca-se o problema mais amplo da organização dos trabalhadores. Apesar de importante, a vitória para melhores condições de vida é um triunfo relativo. O êxito deve ser visto mais a longo prazo, na capacidade de os trabalhadores constituírem uma união cada vez mais firme. Considerado o esvaziamento das organizações tradicionais, é importante reconhecer a novidade que se encerra no movimento de Guariba. Existe uma organização primária permanente que é a mais sólida. Como poderá crescer? Como fortalecê-la e institucionalizá-la? É certamente um problema difícil. O sindicato aparece bastante desgastado. A partir dessa experiência terá que pensar em transformações radicais. Certamente poderá servir na medida em que reconhecer essa organização de base, procurando respeitá-la e ajudá-la. Como isso poderá acontecer, é uma pergunta que fica em aberto. Fica claro que a caminhada continua sendo muito comprida. 6 Jornal do Brasil, 18.06.84. 154 Revista ceas 233.indd 154 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 AS LUTAS CONTRA O DESEMPREGO CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 101, jan.-fev. 1986) O problema do desemprego está gerando uma crise social de grande repercussão e de prejuízo irrecuperável para a população brasileira. Está presente no Brasil inteiro, do Sul ao Norte, no campo e na cidade. Em vários encontros de CEBs, de grupos de periferia urbana ou de trabalhadores rurais, o desemprego aparece no depoimento de muitos, com sua dramaticidade. O mais angustiante é que diante desse problema as pessoas ficam sem saber o que fazer. O encaminhamento de alguma solução parece tão superior às possibilidades dos grupos interessados que, muitas vezes, a discussão sobre desemprego fica na constatação da realidade, sem conseguir encaminhar algo de mais concreto. Um conhecimento maior da situação, porém, e uma análise mais aprimorada revelam que, também neste setor, há um fervilhar de iniciativas. Em primeiro lugar, devemos reconhecer que o povo brasileiro luta para sobreviver. Há, é verdade, o caso extremo e dramático de algumas pessoas que se suicidaram por não conseguir trabalho. Mas são situações limites. A necessidade da vida impõe a cada dia a luta pela sobrevivência. Faz anos que o povo repete que o custo de vida continua subindo e os salários não o acompanham. Pior ainda, quando o salário não existe porque o trabalhador foi demitido. Não dá mais para aguentar... Mas deu! O povo está resistindo. Multiplicam-se os biscates, aumentam as migrações, encontram-se novos canais de sobrevivência. Desenvolve-se toda aquela atividade que os técnicos Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 155 155 27/09/09 10:04 Cláudio Perani chamam de “economia submersa”, porque não individuada pelas pesquisas oficiais, mas inventada e bem conhecida pelos interessados. Mas não existem somente estas iniciativas individuais. Há algo de mais organizado e socializado, que está aparecendo no Brasil inteiro. Desde experiências limitadas e isoladas até o 1.º Encontro Nacional do Movimento de Luta Contra o Desemprego, anunciado para outubro no momento em que estamos escrevendo estas linhas. Em São Paulo, existe a Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego (APSD)1. Consegue unir as forças do Governo do Estado, de quatro Igrejas e de empresários cristãos. São recolhidas doações em dinheiro para os desempregados. Nas periferias da cidade, formam-se grupos que se filiam à Associação e no fim de cada mês recebem uma quantia em dinheiro. A iniciativa, interessante e louvável, pode criar dificuldade para um trabalho mais político que pretenda lutar pela criação de empregos. Sempre em São Paulo, surgiram Comitês de Luta Contra o Desemprego, na capital e no interior, organizados com plenárias municipais, regionais e estadual. Em 1983, foi realizado o acampamento de Ibirapuera, que durou dois meses e meio. Quase um ano depois do acampamento, 1.500 desempregados organizados a partir de 70 comitês da Plenária Estadual ocuparam por uma semana a sede do SlNE (Sistema Nacional de Emprego). Na luta contra o desemprego, aparecem habitualmente duas propostas: uma de autoajuda e outra de reivindicação. A primeira consiste na união de quatro famílias empregadas, para ajudar uma quinta sem emprego (ou 5x2). A segunda consiste em elaborar uma pauta de reivindicações, encaminhando-as nas diversas instâncias competentes. As reivindicações encaminhadas foram: passe livre nos transportes, isenção de taxas de água e luz, cestas de alimentos de 75 Kg distribuídas mensalmente, emprego com estabilidade mínima de um ano, atendimento médico pelo INAMPS, seguro desemprego. Enquanto a primeira orientação, mais assistencial, retarda uma luta de reivindicação, a segunda pode chegar rapidamente a um nível de maior politização que dificulte 1 Veja o artigo de Paul Singer, A Estratégia do Sociedade Civil no Combate ao Desemprego, neste mesmo número. (Nota da Equipe Editorial: a nota foi mantida como estava no texto original; o artigo de Paul Singer pode ser encontrado na edição 101 dos Cadernos do CEAS) 156 Revista ceas 233.indd 156 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 As lutas contra o desemprego soluções imediatas sempre necessárias. Em alguns bairros de São Paulo, tenta-se ligar as duas iniciativas. Atualmente a Plenária Estadual conta, também, com o apoio financeiro da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego. No Sul do Brasil, a partir de lutas isoladas e de um encontro, nos dias 4 e 3 de fevereiro de 1985, em Curitiba, reunindo quatro estados, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e S. Paulo, surgiu o Movimento Nacional de Luta contra o Desemprego, que começou a publicar um Boletim Informativo,2 com o objetivo de traduzir as lutas dos desempregados e servir de elo de ligação entre os companheiros dos diversos recantos do pals. Atualmente, o Movimento integrou também os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. O Estado do Paraná tem uma das lutas mais organizadas: Contando com a participação efetiva de 176 associações de moradores, o movimento paranaense iniciou com lutas isoladas e a partir de atividades que preenchiam, a curto prazo, as necessidades dos desempregados, como feiras de produtos hortigranjeiros, hortas comunitárias, bazares, etc. Depois começou a lutar pela criação de Frentes de Trabalho, além de outras reivindicações. Houve reuniões, encontros, assembléias. A primeira e marcante manifestação pública do Movimento de Curitiba e região metropolitana foi uma passeata realizada no mês de abril de 1984, com mais de 5.000 pessoas. Reivindicaram frentes de trabalho, passe livre para os desempregados e isenção das taxas de água e luz. Conseguiram do Governo do Estado 8.000 passes diários para Curitiba e 2.100 para a Região Metropolitana e a liberação de 2 bilhões de cruzeiros para serem aplicados em frentes de trabalho em todo o Paraná, construindo escolas e creches e executando serviços de saneamento nos bairros. O movimento do Rio de Janeiro, com uma articulação reunindo, por enquanto, Petrópolis, Nova Iguaçu e Caxias, caracteriza-se pelo desenvolvimento de atividades corno rifas, filmes, bônus, shows, teatro, venda de biscoitos, de confecções, etc. A preocupação maior é a assistência aos desempregados, promovendo sua solidariedade e organização. O Encontro de Curitiba, depois de ter relatado as diferentes experiências, ficando 2 Secretaria Geral do MNLCD: Rua Wenceslau Braz, 78/115, 01016 - São Paulo. Responsável pela elaboração do Boletim: Federação de Associações de Moradores, Rua Voluntários da Pátria, 527 - 90.000 - Porto Alegre. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 157 157 27/09/09 10:04 Cláudio Perani claro que cada Estado continuará levando suas lutas e reivindicações específicas de acordo com suas particularidades, fez as seguintes propostas para o movimento a nível nacional: - relação orgânica entre os desempregados da cidade e do campo; - ampliação do Movimento buscando contatos com outros Estados que levam a. luta contra o desemprego; - ampliação do Movimento com a participaçio política de entidades como CUT, CONCLAT, Pastoral Operária, Partidos Políticos, Igrejas, Entidades de Direitos Humanos, OAB, etc. - emissão de um Boletim Nacional de Luta contra o Desemprego; - realização do I Encontro Nacional de Luta contra o Desemprego. As principais bandeiras de luta a nível nacional são: - redução da jornada de trabalho de 48 horas para 40 horas semanais sem redução dos salários e sem horas extras; - implantação imediata do salário-desemprego; - reforma agrária sob o controle dos trabalhadores; - previdência social aos desempregados extensiva aos seus familiares. E no Nordeste? A luta pela sobrevivência não é menor. A grande concentração populacional e a estrutura sócio-política diferente aumentam as dificuldades para enfrentar o desemprego. Nesta situação, continua prioritária a iniciativa das migrações, seja para o Norte, seja para S. Paulo, que continua pólo de atração. Não faltam iniciativas específicas: luta pela readmissão dos companheiros demitidos, ocupações de terra, iniciativas de pequenas “cooperativas” de serviços, etc. O movimento mais organizado que vem do Sul poderá ajudar e fortalecer as iniciativas locais. É importante, porém, que não perca sua especificidade, favorecendo as lutas próprias dos desempregados bem enraizadas em núcleos de base. 158 Revista ceas 233.indd 158 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO POPULAR CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º106, nov.-dez. 1986) Reuniram-se em Salvador, Bahia, de 4 a 9 de agosto, mais de 250 participantes do Congresso organizado pelo Movimento Leigos para a América Latina (MLAL) sobre o tema: A contribuição das experiências de Educação Popular para a transformação das instituições e da sociedade civil. Na grande maioria, eram voluntários italianos trabalhando na América Latina mais alguns representantes de experiências de Educação Popular e assessores de vários países da América Latina e da Itália. Os voluntários italianos são um grupo bem definido de cristãos pertencentes a um movimento que se define - nas palavras de seu Presidente, Amedeo Piva - através de três referências fundamentais: centralidade e primado da pessoa, pluralismo exigido pela inspiração cristã e o popular. Os objetivos do Congresso eram ambiciosos: confrontar as experiências de Educação Popular, avaliar e aprofundá-las teoricamente, estimular intercâmbios e articulações... A heterogeneidade das situações e das experiências, o grande número de participantes e o pouco tempo de um Congresso não permitiram avançar muito na linha desejada. De outro lado, a própria homogeneidade dos participantes cristãos, agentes ou assessores em Educação Popular, representava um potencial e um limite. Isso não elimina a importância do Congresso, que - além de outros merecimentos - serviu para constatar a contribuição que os voluntários italianos estão dando ao movimento popular latino-americano. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 159 159 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Não pretendo apresentar uma síntese do desenvolvimento e dos resultados dos trabalhos, menos ainda uma avaliação global do encontro: seria difícil pela complexidade e diversidade das colocações. O encontro revelou sem dúvida, uma grande riqueza de experiências educativas estimuladas pela colaboração dos voluntários italianos, juntamente com um bom nível de reflexão. Em relação ao Congresso, algumas críticas já apareceram: lamentam sobretudo o pouco espaço dado à voz dos voluntários e, ao contrário, a excessiva confiança na palavra dos assessores. Retomo isso porque revela uma certa contradição com a perspectiva da educação popular e porque pretendo sobre isso fazer umas reflexões. Minha intenção se limita, em primeiro lugar, a apresentar e comentar parte do conteúdo, utilizando uma síntese feita por Luís Alberto Gomes de Souza. Em segundo lugar, aproveito a ocasião para acenar a duas questões que vão além do Congresso e que, pelo menos no Brasil, estão presentes na problemática da Educação Popular: a questão da consciência popular e a questão da organização. Duas partes bem definidas e diferenciadas. 1. EDUCAÇÃO POPULAR Sob esse nome estavam representadas, no Congresso, várias experiências: Cooperativas Agrícolas, Grupos de Camponeses, Trabalhos com Sindicatos, Formação de Base e de lideranças sindicais, Grupos de Lavadeiras, Trabalho com Prostitutas, Organizações e Comunidades de Bairro, Grupos de Mulheres, Escolas Rurais e de Periferia, Comunidades Eclesiais de Base, Pastoral entre Camponeses, Grupos pela Paz, Centros de Defesa Direitos Humanos, Experiências em Comunicação, Medicina Popular etc. Gomes de Souza procurou recolher em quatro pontos - objetivo, sujeito, meios e idéias-força - parte do conteúdo apresentado pelos trabalhos de grupo e pelos assessores. A preocupação não foi de apresentar uma definição abrangente da educação popular (EP), mas de fazer aparecer os aspectos principais por ela tratados. Contudo, habitualmente há concordância em definir a EP como uma prática social e um processo coletivo de produção de conhecimentos, atitudes e aptidões através do qual os setores populares se constituem como sujeito histórico para a realização de um projeto popular que expresse interesses, necessidades e aspirações das classes populares. Vê- 160 Revista ceas 233.indd 160 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Notas sobre educação popular se, com isso, que a EP tem um conteúdo de classe e político e está necessariamente relacionada com o movimento popular. Essa definição bastante ampla nos ajuda a reconhecer a existência de um processo de auto-educação envolvendo o povo entendido como maioria e que está presente antes de qualquer intervenção de agentes de educação que vêm de fora. 1.1. Finalidade radical Negativamente, a EP significa. a rejeição do mundo moderno em crise. E a negação da sociedade capitalista em todas as suas dimensões de dominação. A América Latina, talvez, seja o lugar onde mais facilmente aparece o poder/fracasso do capitalismo, aqui denominado de selvagem. Positivamente, trata-se de criar uma sociedade nova, segundo uma visão de democracia, onde as palavras igualdade e participação se tomem uma realidade. Isso implica romper com todos os mecanismos de dominação, não somente econômico-políticos, e em refazer todas as relações sociais numa dimensão nova de fraternidade. O projeto dessa sociedade não nasce da vontade de um grupo político ideológico particular, mas é uma tarefa coletiva e é fruto de uma prática que se pensa permanentemente. Partir da prática, refletir sobre ela, voltar à prática: são palavras e orientações bem presentes no. âmbito da EP. Para expressar isso, mais que a palavra projeto, prefere-se habitualmente utilizar a palavra caminhada. 1.2. Quem faz e pensa o povo? Trata-se de saber quem vai realizar a nova sociedade, quem é sujeito histórico portador do futuro. É o povo. Mas aqui constata-se a potencialidade, e, ao mesmo tempo, a ambigüidade do “popular”. Muitas vezes o popular é absolutizado, reificado; temos na América Latina os exemplos negativos dos diferentes populismos; há o risco de “basismo” ingênuo, raiz de um possível totalitarismo. O sujeito do novo é aquele que está sendo explorado pelo velho, pela sociedade dominadora, porque tem dentro de si a possibilidade de negar tal exploração. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 161 161 27/09/09 10:04 Cláudio Perani É um sujeito contraditório, porque sua consciência na origem está dividida: recebe a influência do dominador e, ao mesmo tempo, tem uma raiz de rebeldia. Essa consciência dividida é superada pelo processo educativo, que é auto-educação através de uma prática de luta que permite uma consciência sempre mais crítica e protagônica. É um sujeito coletivo. São as classes populares com sua diversidade, fragmentariedade, circulação. Basta lembrar as diversidades locais e nacionais, a passagem ruralurbano, as migrações... É um sujeito em via de articulação. Segundo a classe, a etnia, o sexo, a idade, a religião. São os índios, os negros, os jovens, as mulheres. Põe-se aqui um grande desafio: como articular as especificidades sociais e culturais com a vocação universal do sujeito coletivo? Como passar do concreto particular ao concreto universal? Aparece como importante a necessidade de aprofundar as raízes culturais próprias; de redescobrir a velha noção do internacionalismo; de passar da pequena comunidade para a dimensão universal, através da crise do Estado-nação (o voluntariado rompe os limites do próprio espaço); de relacionar cotidiano com utopia. É um sujeito com uma longa história de práticas, de lutas, de vitórias e de lições tiradas dos retrocessos. Nessa caminhada, as classes populares vão ocupando espaços na sociedade civil para destruir a dominação/direção das classes dominantes e construir sua hegemonia alternativa. Nas últimas décadas, inclusive nos momentos de repressão, elas estão emergindo com maior força histórica. 1.3. Meios de intervenção São considerados neste ítem os meios de intervenção em sentido amplo, que não se reduzem a técnicas educativas. E mais o problema da metodologia. Os sujeitos emergentes se organizam em cada resistência em movimentos, associações, sindicatos, partidos, igrejas: são diversos lugares de encontro e de ação a partir de um lugar vital unificante, seu sofrimento, sua rebeldia, suas lutas e esperanças. O processo educativo parte de situações e problemas concretos, locais e particulares, procurando o inserimento no projeto maior, político em sentido amplo de polis-sociedade. 162 Revista ceas 233.indd 162 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Notas sobre educação popular A EP redescobre permanentemente o saber do povo, a cultura popular, em suas potencialidades e em suas ambigüidades. Recupera o tradicional, não no sentido de atrasado, mas no sentido de sabedoria. São citados os casos da medicina popular e das artes populares, tentando superar a dicotomia artificial entre erudito e popular. É afirmada a necessidade de utilizar a tecnologia moderna na produção de bens materiais e simbólicos. Nas experiências de produção econômica, devem ser consideradas as tecnologias de ponta e alternativas. Na comunicação popular, devem ser utilizados os meios de comunicação social e a informática. 1.4. Algumas idéias-força Ao longo dos trabalhos, apareceram com maior insistência algumas orientações, necessidades, problemas e impasses que mereceriam um ulterior aprofundamento. • Necessidade de negar o autoritarismo em todos os níveis, presente também na EP, sobretudo nas relações agente/povo e liderança/base. • Ver como relacionar melhor a eficiência e a gratuidade, reconhecendo o risco de um certo militantismo que pode levar a esquecer aspectos fundamentais da vida. • Na mesma linha, é importante pensar como articular os conflitos e as lutas com a reconciliação, a ternura, a fraternidade. • Necessidade de fazer uma crítica e uma revisão permanentes. • Para chegar a isso e evitar o dogmatismo, é importante conhecer melhor a realidade através de um esforço que ficará sempre inacabado. • Reconhecer a contribuição do religioso e a força transformadora do sagrado. No caso do cristianismo, a fé aparece como portadora de um horizonte utópico, o Reino de. Deus que deve ser construído desde já. Até aqui se resumiu a síntese do Gomes de Souza, que pode dar uma idéia da riqueza do conteúdo. Ele próprio afirmou - depois de tê-la apresentado - que devia ser desmontada. Além da heterogeneidade, já apontada, presente no Congresso, devemos reconhecer que o conceito Educação Popular é tão abrangente e utilizado para indicar realidades tão diferentes que fica sempre muito arriscado querer teorizar em cima dele, procurando uma conceituação unitária mais comum, como era um dos objetivos do Congresso. Como afirmou alguém, as experiências transbordam o vocabulário e resistem a ficar aprisionadas em certas conceituações. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 163 163 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Prefiro dizer algo sobre dois pontos - entre os muitos - que apareceram no encontro e que, pela prática atual de muitos agentes, parecem exigir um questionamento e um aprofundamento: os problemas da consciência popular e da organização (articulação) do movimento popular. Nesta segunda parte, distancio-me do Congresso para fazer considerações mais pessoais. 2. A CONSCIÊNCIA POPULAR Apresento simplesmente uns questionamentos em relação ao problema da consciência popular, que parece teoricamente bem equacionado por vários autores clássicos por nós utilizados e reinterpretados, mas que, na prática e na nossa reflexão corriqueira, levanta dúvidas, impasses, conclusões equívocas... Afirmou-se que a consciência do povo, na origem, está dividida. E uma consciência ingênua, falsa. A ideologia dominante atinge todos os níveis da sociedade, sendo por isso incorporada também pelas classes populares. Não existe uma consciência popular em forma pura. É uma consciência contraditória: percebe a exploração que está vivendo e, ao mesmo tempo, é invadida pela ideologia do opressor. Em outras palavras, falando em conhecimento popular, reapresente-se o mesmo problema. O povo tem o conhecimento do cotidiano, o tal senso comum, considerado em oposição ao conhecimento científico. Há uma separação entre o conhecimento imediato da situação e dos interesses particulares, de um lado, e o conhecimento mais global da sociedade e da história, de outro lado. Devemos reconhecer que, com o avanço da EP, há toda uma tendência hoje que valoriza o saber popular e a cultura popular. Mas não consegue tirar todas as conseqüências a nível de reflexão teórica. Permanece um dualismo pouco equacionado entre a consciência popular e a consciência científica, entre o acervo cultural do povo e a teoria revolucionária, que pode levar a alguns equívocos. Desse posicionamento se segue a necessidade de ajudar o povo a passar de uma consciência ingênua para uma consciência crítica, de um conhecimento cotidiano e localizado, para uma compreensão da situação histórica global e dos seus verdadeiros interesses de classe. É o tal processo de conscientização. 164 Revista ceas 233.indd 164 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Notas sobre educação popular Aqui entra o papel da EP, entendida como educação de oposição, educação em função dos interesses das classes populares. Deveria, em síntese, promover uma passagem gradual de um nível de consciência oprimida até formas de consciência capazes de perceber a realidade em termos dos verdadeiros propósitos de libertação dos grupos oprimidos. Será que não se corre o risco de eliminar a auto-educação antes afirmada? Será que, na prática, não se supervaloriza um lado, o da intervenção dos agentes externos? Os teóricos da EP percebem esse risco e afirmam que não se trata simplesmente de transmitir ao povo uma teoria entendida como conjunto de categorias a serem apreendidas. Trata-se de um processo de produção de conceitos, ativo e crítico, que deve ser coletivo, intelectuais e povo juntamente, dialogando e pondo em comum seus saberes. Diante do conhecimento da realidade adquirido pelo senso comum, há a necessidade de um aprofundamento que utilize um instrumento de análise mais rigoroso, categorias e conceitos científicos. Afirma-se também que tal instrumento deve ser revisto permanentemente a partir da prática. O quadro até aqui apresentado, que certamente representa uma simplificação da problemática, tem sua lógica e ajudou o avanço da EP e do movimento popular. Apesar disso, fica hoje em alguns setores da EP um certo mal estar. Pode depender de falhas práticas na aplicação da metodologia ou de uma interpretação excessivamente mecanicista de certas categorias. Não podemos, porém, excluir a possibilidade de rever mais radicalmente teorias que parecem inquestionáveis. Na prática, constatamos várias contradições. O próprio Congresso é um exemplo. Querendo avaliar e aprofundar teoricamente a prática de EP, deu prioridade aos assessores, pouca voz aos agentes presentes e houve ausência dos principais interessados, os oprimidos. Não significa que consideramos a elaboração teórica exclusivamente tarefa dos intelectuais? Uma análise sumária da prática de EP no Brasil leva a constatar a dificuldade em que se encontra a formação das lideranças. Apesar de estar consciente a de procurar evitar os riscos do vanguardismo e do basismo, fundamentando-se numa teoria dialética do conhecimento (prática-teoria-prática), o resultado, muitas vezes, é a formação de lideranças com grande “consciência crítica”, mas que não sabem mais lidar com os companheiros nem encaminhar ações concretas. E só falha metodológica? Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 165 165 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Alguns setores da esquerda clássica e da pastoral popular julgam saber o que o proletariado pensa, quer e faz e julgam-se no dever de ensinar a ele o que deve pensar, querer e fazer. Dificilmente tal posicionamento seria aceito nos meios da EP. Contudo, inconscientemente, também neste setor persistem atitudes que dividem equivocamente povo e educadores como se o primeiro fosse portador das necessidades e os segundos, das respostas; o primeiro teria uma visão localizada e parcial e os segundos, uma visão mais geral, etc. Divisões certamente questionáveis. Que dizer diante de tais dificuldades? Não tenho a pretensão de dar respostas; só percebo a necessidade de aprofundar melhor a questão também do lado teórico. Tem seu fundamento a afirmação da consciência popular dividida e da necessidade de um processo de conscientização que deve recorrer a rigorosos instrumentos de análise. Com isso, devemos evitar absolutizar o saber popular. Por outro lado, devemos ao mesmo tempo afirmar a consciência dividida também do educador. Pode ele conhecer, por razão de seus estudos, outros contextos, outras revoluções, várias teorias. Mas ele também está ideologicamente condicionado pelas idéias dominantes. Ele também carece de conhecimento, talvez o mais fundamental para a mudança, que provém da experiência histórica da luta das classes populares. Sobretudo conhece pouco da cultura do povo, de sua linguagem, de sua maneira simbólica de se expressar. Nós, intelectuais, com facilidade identificamos um excesso de simbolismo com um vazio de conteúdo. Não sabemos reconhecer esse tipo de linguagem, particular e global, localizado e crítico; linguagem própria de uma classe que é explorada e que deve defender-se. Será que não se pode utilizar o conceito de economia submersa para falar também de uma consciência submersa? Uma consciência bem viva e lutadora, obrigada a viver na sombra, também nos encontros de EP. Que significa consciência ingênua? Muito provavelmente o fato de a consciência popular não combinar com a consciência do educador. Quem é ingênuo, neste caso? Parece necessário questionar mais as teorias interpretativas que nos sustentaram até aqui. Não se trata de renunciar ao rigor científico. Ao contrário, trata-se de aplicá-lo com coerência, questionando continuamente pontos de vistas e teorias que, sabemos, não são absolutos. O encontro Itália-América Latina, talvez, tivesse podido manifestar mais frutos nesse sentido. Sabemos da crise, na Europa, das grandes teorias interpretativas do social, incluindo a teoria marxista. Está caindo toda visão “totalizante” da história e da sociedade e reaparece a antiga sabedoria do povo, com suas imagens 166 Revista ceas 233.indd 166 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Notas sobre educação popular e símbolos que recusam submeter-se à lógica dos conceitos. Esta situação parece ter certa correspondência com a experiência latino-americana. Crise não significa abandono de conceitos e teorias que ajudem a globalizar as experiências. Mas, certamente, a necessidade de repensá-las a partir dos novos dados adquiridos pelo desenvolvimento do movimento popular. Deve ser revista a relação tradicional entre teoria e prática, bem como a distinção entre teóricos e pessoas comuns. Talvez não tenhamos prontos conceitos substitutivos mais apropriados. Pelo menos, devemos aceitar levantar uma suspeita que nos permita uma maior abertura para com a novidade que vem do povo, o avanço das lutas, da consciência e organização do povo e da situação em que ele está. 3. O PROBLEMA DA ORGANIZAÇÃO A Educação Popular, na medida em que se afirma como política, inserida num projeto histórico em construção, onde o povo organizado é sujeito de uma nova sociedade, deve necessariamente interessar-se pelos problemas de organização, de articulação, de poder. Também, se o seu específico é o conhecimento e não se considere como instrumento político em sentido estrito, não deixa de ter um conteúdo político. Todos concordam neste ponto. Para isto, é necessário considerar a EP relacionada ao Movimento Popular entendido em sentido amplo, de povo em movimento, com sua cultura, suas iniciativas, suas lutas, suas organizações. Está a serviço dele, de sua organização. A EP encontra no Movimento Popular seu espaço privilegiado. É uma relação dialética, conflitiva. Já neste ponto poderíamos questionar a pretensão, por parte da EP, de querer ditar regras sobre a organização popular. Prefiro, para simplificar, tratar o assunto considerando diretamente o Movimento Popular. Todos reconhecem a vitalidade do Movimento Popular. Limitando, daqui em diante, minha análise à situação brasileira, não é difícil constatar a multiplicidade de ações, iniciativas, lutas, mobilizações, entidades com as quais o povo está resistindo à opressão e construindo uma nova sociedade alternativa. O Congresso do MLAL confirmou isso. Foi dito que o povo é um sujeito em vias de articulação. Uma das constatações ha- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 167 167 27/09/09 10:04 Cláudio Perani bituais que se ouvem é a multiplicidade, diversidade; numa palavra mais explícita, a atomização dos movimentos sociais. Daí a necessidade de colocar o problema da organização ou da articulação. Reconhece-se uma certa articulação, mas parece limitada, fraca, crescendo com demasiada lentidão. A Carta de Esperança enviada no fim do Congresso fala da urgência de articular as lutas do campo e da cidade, dos países do Terceiro Mundo e da Europa. O problema da organização é certamente fundamental, ou. melhor, o problema do poder do povo. E o crescimento deste poder que vai permitir uma mudança de situação. Sobre isso não há dúvida. O problema aparece quando se pergunta o que se entende por organização. Que significa articulação? Como se realiza? Como está relacionada com o poder popular? Muitas vezes, exigir maior organização significa uma maior presença do povo nos canais tradicionais e clássicos: associações, sindicatos, partidos. Não devemos cair num simplismo, eliminando ou relativizando demais tais instrumentos. Mas devemos reconhecer que são canais construídos pelo poder da burguesia ou por ela apropriados. São hoje questionados por muitos. Não podemos negar que partidos e sindicatos, também se integrados por trabalhadores, isolam o indivíduo de seu tecido social de base para segregá-lo dentro de uma unidade organizada, comandada por um programa definido. É suficiente o povo ocupar estes espaços para resgatá-los em próprio benefício? Não é necessário uma análise mais aprimorada para reconhecer vantagens e limites das organizações políticas tradicionais, pensando melhor sua reformulação? Na análise do Movimento Popular brasileiro, alguns autores, depois do período de surgimento e crescimento do movimento, falam de período de expansão (l978-1982, coincidindo com a abertura do regime e a formação das Centrais de Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores, etc) e, atualmente, de período de crise, ao constatar - depois das eleições de 1982 - que o povo, forçado a ficar mais voltado para as lutas pela sua própria sobrevivência, tem dificuldades em integrar a cena da política nacional. Pode-se questionar, talvez, a visão que está por trás deste tipo de avaliação, levada a privilegiar os canais tradicionais como eleições e partidos. Será que isso não nos impede de reconhecer outras formas de resistência e de organização? Parece necessário repensar o processo de organização/articulação. Colocar em discussão as organizações tradicionais significa, ao mesmo tempo, estender a tese da alienação também a estas formas de organização. Suas pretensões de centralização 168 Revista ceas 233.indd 168 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Notas sobre educação popular e de representação contribuíram certamente para impedir a criatividade social; não permitiram, apesar de suas lutas por um futuro melhor, a construção de utopias concretas.1 Mas não é suficiente questionar as organizações tradicionais. As próprias idéias de articulação, de unidade, de projeto global, etc., devem ser repensadas. Elas têm sua marca burguesa. Querer unificar tudo para melhor exercer o controle e o domínio sobre as iniciativas populares pode sacrificar as diferenças, as especificidades, os aspectos dinâmicos, a riqueza do movimento popular. Isso significa aumentar o poder popular? Parece que o povo gosta mais de uma resistência fluida, mais dispersa e, por isso mesmo, menos controlável dos dois lados. Neste nível das lutas locais de resistência, o movimento popular está em processo de acumulação de forças e de crescimento. Podemos lembrar as iniciativas mais conhecidas dos operários no ABC paulista, o movimento dos Sem Terra, as ocupações de terra, as invasões nos terrenos urbanos, as lutas pela água, pela saúde, pela educação... Assim como as iniciativas mais “submersas”. São lutas que, neste nível, expressam táticas novas, bem diversificadas e revolucionárias. É claro, o movimento deve crescer! Mas como? Em que ritmo? Quando afirmamos que as diferentes práticas concretas não se esgotam nelas próprias, mas devem interligar-se, integrando-se num projeto global em construção, podemos - no mínimo - pecar por uma certa pressa. Afirma-se que uma firmeza estratégica - não dogmática - deve conviver com uma flexibilidade tática. Aqui está, talvez, nossa dificuldade ou nosso equívoco. Parece que atualmente faltam estratégias novas que respeitem as novas táticas, mais participativas e democráticas. A pressa, muitas vezes, pode levar a querer encaixar os movimentos populares em modelos de unificação que, em lugar de aumentar o poder popular, o enfraquecem. São modelos que reduzem o particular a uma globalidade mais formal que não aumenta a força. É importante descobrir como o poder popular pode crescer com uma organização que saiba combinar descentralização com articulação. 1 KARNER, Harmut: “Movimientos sociales: Revolución Del Cotidiano”, Nueva Solidaridad, 64, Caracas, pp. 25-32. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 169 169 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 4. CONCLUSÃO Depois de uma breve panorâmica da EP, a partir dos conteúdos apresentados no Congresso do MLAL, quis apresentar alguns questionamentos em relação à consciência popular e à articulação do Movimento Popular. São questionamentos que ficam sem resposta. Creio que podem ajudar a empreender um esforço maior de reconhecimento de toda novidade que surge na EP, educandos e educadores juntos. A conclusão leva a constatar a velhice de certos instrumentos de reflexão que circulam entre nós. Não é motivo para parar ou desanimar. O povo nos ensina a valorizar o cotidiano, a trama elementar das relações com os homens e com as coisas. O cotidiano não é sinônimo de refluxo, de privacidade, de irresponsabilidade. Poderia ser. Mas o cotidiano é também o lugar onde, desde já, se revelam e se realizam os frutos novos. Fica o desafio de pensar e realizar o global. 170 Revista ceas 233.indd 170 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 PASTORAL POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS, n.º 119, jan.-fev. 1989) Apesar de reconhecer o crescimento da pastoral popular, não é fácil avaliar sua caminhada na atual conjuntura. Há confusão, incertezas, desencantos, diferentes orientações criando um clima que dificulta uma discussão mais objetiva. A única certeza, na qual todos se encontram, é a situação de fome da grande maioria da população que luta pela sobrevivência, sem conseguir encontrar caminhos que permitam apontar para uma mudança mais ampla. No quarto ano de sua existência, a “Nova República” revela-se claramente com sua política autoritária e com seu modelo econômico que continua favorecendo uma elite extremamente reduzida. Algo mudou no nível institucional, mas são mudanças que não alteram a atual correlação de forças. O movimento popular e os canais políticos dos trabalhadores vão se desenvolvendo, deixando aparecer, contudo, o limite de seu poder e a distância da grande massa marginalizada. Não é para estranhar que também no âmbito da pastoral popular se constate uma situação de crise e de incertezas que se prolonga faz alguns anos. Avanço ou retrocesso da pastoral? Parecem aumentar as vozes que falam de retrocesso ou de esvaziamento. Há, porém, pareceres diversos que dependem de vários pontos de vista, de abordagens diferentes. A questão da relação fé-política, equacionada de maneiras diferentes, certamente influi. As interpretações, ainda hoje veiculadas, que consideram a pastoral como tendo só uma tarefa “supletiva” no campo social em nada contribuem para enfrentar a nova conjuntura. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 171 171 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Nesta situação, não pretendo apresentar uma avaliação mais global da pastoral popular. Tarefa importante, mas difícil. Simplesmente desejo levantar alguns questionamentos e expressar um parecer sobre o atual relacionamento da pastoral popular com os movimentos sociais. Deixo de lado a interferência da hierarquia neste campo; há novidades que devem ser consideradas, porque revelam uma estratégia global de controle que pode ter sua importância e suas consequências quanto ao futuro da pastoral. Mas já há vários esclarecimentos sobre o assunto. Deixo, igualmente, de lado a novidade representada pela maior presença, no âmbito da pastoral, de projetos de “produção comunitária”. aparecem hoje com maior urgência pela situação dramática de fome em que o povo vive e como uma das maneiras organizadas de luta. É uma novidade importante, mas exige um espaço próprio de reflexão, limitando-me à relação da pastoral popular com os movimentos sociais, não pretendo considerá-la do ponto de vista mais teórico da “relação fé-política”. A literatura da Teologia da Libertação já avançou bastante neste ponto. Baseio-me, evidentemente, em pressupostos teóricos que podem ser explicitados e questionados. Somente no fim do artigo resumo algumas reflexões do teólogo salvadorenho Ignácio Ellacuría, numa perspectiva mais teórica. Limito-me a considerar a prática concreta em andamento, onde vejo aparecerem novidades que não me parecem suficientemente analisadas e avaliadas e levantam certas preocupações. Há, evidentemente, as tensões de sempre entre a tarefa da Igreja e o compromisso político, entre a atuação das instituições de representação popular e as “massas”, entre as organizações da Igreja e aquelas não vinculadas à Igreja, etc., mas recolocam-se de forma diferente na nova conjuntura, revelando mais claramente acertos e impasses. Meu questionamento se dirige, sobretudo, aos agentes de pastoral e aos assessores que têm uma grande influência na orientação da pastoral. Do ponto de vista dos membros das pastorais, é mais difícil ver e equacionar esse problema, tendo em vista que o engajamento na Igreja e nos movimentos sociais podem se confundir na mesma pessoa. Convém explicitar brevemente meus enfoques político e teológico. Do ponto de vista político, privilegio o poder popular, o poder das massas, procurando detectá-lo no dia-a-dia da vida do povo e reconhecê-lo em suas próprias formas de luta; o problema da organização deve ser equacionado a partir daí.1, Do ponto de vista teológico-pas- 1 Cf. C. PERANI, “Pastoral popular. Poder ou Serviço?”, in Cadernos do CEAS, n.º 82, nov.-dez. 1982, pp. 7-19. 172 Revista ceas 233.indd 172 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais toral. dou referência a uma linha mais “ecumênica” do que “militante”.2 A primeira privilegia o diálogo com os outros, sobretudo com os pobres, não a partir de fora, de um modelo pré-estabelecido apoiado nos recursos da fé, mas a partir de dentro, operando conjuntamente na procura de novos caminhos com as outras pessoas e os outros grupos; a segunda privilegia a presença política, no sentido de o movimento pastoral ou de cristãos, ficando bem definido do ponto de vista da fé, procurar assumir programas políticos mais concretos, chegando a confundir-se com determinadas tendências políticas ou a colocar-se em oposição a elas. Tais enfoques são evidentemente relativos: podem facilitar certos questionamentos, ao mesmo tempo em que mostram seus limites para interpretar uma situação bem complexa e diversificada, onde várias tendências devem concorrer para um avanço. A intenção, contudo, não é de alerta para a pastoral popular moderar seus caminhos, mas, ao contrário, de estímulo para que ela possa avançar mais, com coerência sempre maior, na linha de uma concreta opção pelos pobres. 1. PASTORAL POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS A Pastoral Popular3 situa-se como uma das presenças no grande mundo dos movimentos sociais. Deu, está dando e continuará a dar sua contribuição para o objetivo comum de uma sociedade nova, baseada sobre relações de justiça e fraternidade. Tem seus limites e dúvidas. Tem, também, sua especificidade no sentido de que se trata de um trabalho de Igreja. Isso vale igualmente para aquelas entidades de serviço que têm certa autonomia diante da hierarquia, mas que guardam uma relação institucional com a Igreja. Minha análise nesse artigo, pretende ficar mais restrita ao âmbito desta pastoral levantando questionamentos que lhe dizem respeito, sem pretender avaliar os movimentos sociais e suas entidades. Sem dúvida, é inevitável que as considerações feitas em relação à pastoral sejam influenciaas por uma visão política. Contudo, na linha de Puebla, pretendem ser uma “análise dos fatos a partir de uma perspectiva ou ‘visão’ pastoral”.4 2 Cf. Id.: “Novos Rumos da Pastoral Popular”, in Cadernos do CEAS, n.º 107, jan.-fev. De 1987, pp. 37-46. 3 Cf. “Pastoral Popular: Poder ou Serviço?”, art. cit., p. 7. 4 CNBB. Igreja, Comunhão e Missão. 1988, nº 110. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 173 173 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Os questionamentos dizem respeito a quatro pontos: a relação da pastoral com as instituições dos movimentos sociais, como CUT (Central Única dos Trabalhadores), PT (Partido dos Trabalhadores), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), etc.; o problema da articulação e unificação; a formação política; a questão da mística. 1.1. Pastoral popular e instituições dos movimentos sociais Quando se fala em “movimentos sociais”, geralmente se entende por isso as iniciativas, lutas e organizações mais informais dos setores populares: o que não é institucionalizado nem se deixa facilmente institucionalizar. Em sentido mais amplo, porém, os movimentos sociais incluem também formas mais institucionalizadas de organização: entidades dos movimentos populares urbanos (conselhos de bairro, associações diversas), movimentos e entidades ecológicas, de mulheres, de negros, de sem terra, organizações sindicais, organizações partidárias, etc. Ora, uma das questões que a pastoral popular vem colocando com mais insistência nos últimos tempos é exatamente a da sua relação com essas organizações mais institucionalizadas dos movimentos sociais. É conveniente, então, aprofundar essa questão. Por um lado, não se trata de a pastoral fechar-se em si mesma, ignorando a existência de tais entidades. Por outro lado, não se trata tampouco de estabelecer com elas um relacionamento cego e acrítico. Na nova conjuntura, apresentam-se novas exigências e, com elas, a necessidade de repensar os caminhos. Como isso está sendo feito? Sugiro a hipótese seguinte: diante da situação de fome dos nossos irmãos e, também, pela pressão dos canais propriamente políticos, alguns setores da pastoral sofrem hoje a tentação do poder, a tentação de utilizar a fé como uma prática eficiente. Tais setores correm o risco de se aproveitar de sua “especificidades pastoral” ao trabalhar no domínio da política. “Especificidade pastoral” significa recolher o âmbito religioso do grupo, quer dizer, seu aspecto explícita ou implicitamente eclesial, sua dimensão de fé, sua relação com Deus. Ora, a fé tem suas exigências e seus critérios que devem ser respeitados. A tentação do poder consiste na perspectiva – intencionalmente honesta e razoável – de utilizar Deus como uma vantagem. Supõe um Deus de força e de poder, a nosso serviço. Ao contrário, pelo Evangelho, Deus se revela como escândalo, como fraqueza, quer dizer, contraria as expectativas da elite religiosa-política de seu tempo que esperava a restauração do reio de Israel, colocando-se do lado dos mais fracos e marginalizados, sem utilizar o caminho do poder, quer religioso, quer político. Nisso 174 Revista ceas 233.indd 174 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais escandaliza e, paradoxalmente, revela outra eficácia e outro poder. Jesus nos ensina que ser filho de Deus não é vantagem, mas obediência até a morte, tentando assumir até o fim a solidariedade com os pobres, pondo-se a seu serviço, sem sonhar nenhum tipo de eficácia milagrosa. É a tentação do poder: crer – influenciados pela lógica da política – que a salvação seja fruto do poder, e não do amor e da graça. Noutras palavras, quando se entra no campo da política, apelando para a contribuição da fé, corre-se o risco de utilizar a fé como arma de poder. Opera-se no campo da política – setor da história, quer dizer, do relativo – com os critérios da fé que, apesar de estar mergulhada na história, tem aspectos que remetem para o absoluto. Tais afirmações não devem levar a interpretações equivocadas. Não se trata de negar a necessidade de usar o poder para realizar a mudança da sociedade. Também não se pretende negar o peso político que a Igreja está tendo hoje no Brasil em favor dos pobres e a necessidade de viver a fé numa dimensão social e política. Trata-se simplesmente, de um lado, de reconhecer e valorizar a autonomia dos processos políticos sem querer controlá-los com mediações eclesiais e, do outro, de manter o testemunho de que o Reino, que se realiza desde já aqui na terra, é de Deus. Para concretizar melhor, penso que a tentação do poder aparece bastante claramente hoje na relação que, em alguns lugares, a pastoral popular tende a estabelecer com certas instituições ou entidades do movimento popular. E essa relação anda bastante problemática. O que acontece habitualmente na prática? Ou um posicionamento de fechamento e concorrência por parte da pastoral, ou uma postura de submissão a determinadas entidades, suas orientações, programas, palavras de ordem ou bandeiras. Num caso e no outro, trata-se de um comportamento que deveria ser avaliado e questionado. Seja o posicionamento de fechamento, seja a postura de submissão decorrem talvez, em grande parte, de uma insegurança frente às práticas de cobrança que se vêm tornando cada vez mais comuns por parte de inúmeras entidades de classe e partidárias ou de suas correntes. Cobram o apoio - e até mesmo o engajamento ativo - da pastoral, alegando que a recusa significa “ficar em cima do muro”, “reforçar o patrão”, “cair fora da luta”, etc. Não há dúvida de que, por parte da pastoral, existem recuos lastimáveis que não podem ser justificados com estas reflexões. São um efetivo cair fora da luta, uma volta à Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 175 175 27/09/09 10:04 Cláudio Perani sacristia, um trair a opção pelos pobres. Mas é também necessário refletir sobre o tipo de cobrança feita, para desmistificar o caráter autoritário e anti-democrático dos argumentos tipo “ficar em cima do muro”, na medida em que não permitem um diálogo e não reconhecem a possibilidade de um pluralismo de engajamentos. De que “muro” se trata? Que águas ele separa? Quem decidiu que tal ou qual instituição é o rio por onde passa necessariamente a transformação social? E mais ainda: quem decidiu que todos têm o dever de optar por tais entidades e delas participar? O que significa, por exemplo, priorizar o sindicato e o partido como formas de organização popular? O que significa optar pela CUT e pelo PT, apoiar só a corrente majoritária da CUT, etc? Não existe o risco de a pastoral adotar como critério de ação quase exclusivo a orientação de uma determinada entidade ou corrente? Por parte de certos setores da pastoral, há compromissos político-institucionais que podem ser questionados do ponto de vista da fé, exatamente porque podem levar a pastoral a uma atitude de “poder” e não de “serviço”, introduzindo critérios e práticas absolutistas num campo que é eminentemente lugar do relativo. Mais ainda, a identificação de alguns setores pastorais com uma única linha pode ser questionada também do ponto de vista político. Penso aqui em certas alianças - mais ou menos explicitadas - da pastoral com algumas “tendências” ou “na simples adesão” a suas bandeiras de luta e campanhas. O fundamental na pastoral é o compromisso concreto com o trabalhador e sua caminhada. Não se trata de ser contra ou a favor das instituições que integram os movimentos sociais, não se trata de aliar-se ou de fechar-se a elas. O apoio a qualquer entidade vai ser dado pelo povo, na medida em que ele encontrar naquela entidade a defesa de seus interesses. A pastoral deveria apresentar-se como espaço aberto onde as propostas e a atuação concreta das várias organizações e correntes possam ser analisadas, deixando a seus membros maior responsabilidade de escolha, sem impor algo a partir da instituição pastora. Deveria ter uma atitude de “discrição política”, não porque deva ocupar-se só do aspecto religioso da luta do povo, mas porque seu serviço/anúncio, ao tempo em que se concretiza em experiências sempre mais políticas, deveria perder aquele dogmatismo que provém da fé, para diluir-se numa pluralidade de formas que dificilmente podem coincidir com o próprio anúncio.5 5 Cf. SEVERINO DIANICH: Chiesa in Missione, Torin, Ed. Paoline, 1985. 176 Revista ceas 233.indd 176 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais 1.2. A questão da articulação e unificação dos Movimentos sociais Para entender melhor a maneira como essa questão vem sendo colocada e discutida no meio da pastoral, é importante considerar, inicialmente, a conjuntura dos movimentos sociais. Hoje, fala-se com maior freqüência no cansaço, refluxo, descrença e desalento do povo. Sem dúvida nenhuma, o empobrecimento e a luta pela sobrevivência estão consumindo uma energia maior do povo. Algumas situações nos deixam perplexos e indagam profundamente a sensibilidade das nossas propostas e da nossa prática. No que se refere às condições materiais da existência, a correlação de forças existente hoje em nossa sociedade tem se mostrado amplamente favorável às classes dominantes, e isso interfere muito no ânimo e nas possibilidades de luta da mensa maioria do povo. É verdade que outros fatores são igualmente importantes para explicar o desalento, a descrença e a pouca autonomia do povo. Tomando-se como exemplo a descrença, um dos fatores que mais contribui para seu crescimento é a atuação dos próprios políticos e suas políticas: o povo desacredita sempre mais nas instituições burguesas (governo, parlamento, partido...). Pode-se até discutir até que ponto isso significa uma sabedoria do povo e um avanço de sua compreensão política: não se pode negar, contudo, que representa um dado de realidade a ser considerado por todos. O desalento é também conseqüência da dispersão e isolamento em que se encontra uma boa maioria do povo. A esperança que tínhamos nos movimentos sociais, em sua autonomia, no seu poder, pode ser fruto de nossas análises e expectativas demasiadamente idealistas. Perceber isso e ver melhor as dificuldades atuais é talvez fruto de nossa aproximação e convivência com o cotidiano do povo. É frente a essa situação de dispersão e desestímulo dos movimentos sociais que, na pastoral, muitos estão levantando a necessidade de maior articulação e unificação desses movimentos. De fato, numa situação de opressão muito grande, o sentimento de impotência se agrava qando as pessoas e grupos ficam isolados, limitados ao seu próprio local, à sua própria realidade. Daí a importância de fazer alguma coisa no sentido de abrir horizontes, favorecendo uma acumulação progressiva e constante do poder transformador do povo. O grande desafio é como alcançar isso! Nesse sentido é que me proponho a analisar melhor essa conclusão aparentemente tão evidente sobre articulação e unificação dos movimentos sociais. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 177 177 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Em primeiro lugar, o que se entende por articulação? A idéia mais comum no meio da pastoral é de que se trata de articular as iniciativas e lutas do povo numa perspectivas de que elas se integram ou, pelo menos, assumam as propostas e bandeiras de determinadas entidades consideradas como sendo os principais canais de expressão, organização e representação popular (organizações de classe, partidos etc.). No caso, o ponto de partida da atuação pastoral já estaria pré-determinado pelo ponto aonde se deve chegar: articular para fortalecer tais entidades dos movimentos sociais. Há, porém uma outra perspectiva de articulação, onde o ponto de partida da atuação são os movimentos sociais e a realidade popular no seu acontecer concreto; não há ponto de chegada pré-determinado, trata-se de construir algo numa direção cujos caminhos vão sendo discernidos e criados com o próprio povo, em cada situação concreta. Essa última é a perspectiva com a qual me afino. Concretizando um pouco mais, não se trata de a pastoral articular o povo em determinadas entidades, e sim de favorecer a criação/ampliação de redes diversificadas de relacionamento entre o povo de diversos lugares, promovendo oportunidades de encontro e troca entre pessoas ou grupos, favorecendo inclusive certas viagens para conhecer diretamente realidades diferentes, etc. Sem dúvida já acontecem vários encontros nos quais participam pessoas de diversos locais e regiões. Só que, em grande parte dos casos, são reuniões para resolver assuntos administrativos, ou encontros muito ampliados. A esses, seria bom acrescentar outro tipo de encontro, algo que favoreça um conhecimento mútuo mais estreito e que resulte em algum laço de continuidade. Enfim, trata-se de favorecer um maior pluralismo: articulações diversas horizontais, mais efêmeras e mais estáveis, entre quatro ou cinco pessoas e entre muitas pessoas, articulações que vão vencendo a dispersão e o isolamento, etc. Dentro disso, não se exclui a priori a articulação em qualquer .forma de organização, sejam as mesmas institucionalizadas ou não, só que nenhuma delas é ponto de partida ou de chegada. A pastoral deve pensar a articulação não tanto como uma questão quantitativa. Deve tentar reconhecer o processo qualitativamente novo em andamento. Neste, a articulação revela níveis diversificados e complexos: o nível da superfície e o nível das raízes; nem sempre um é simples consequência do outro. A organização, sempre pensada num movimento centrípeto, deve ser complementada por um movimento centrífugo. Aqui se abre um grande campo à contribuição da pastoral: andar lá onde estão os marginalizados é caminho de uma unidade a ser construída pelo próprio povo. Da 178 Revista ceas 233.indd 178 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais mesma maneira, partir das suas necessidades e da sua consciência, abrir espaços para que possam aparecer os vários aspectos da vida, favorecer um poder mais direto e menos delegável, valorizar mais a comunidade do que os quadros, valorizar a totalidade dos setores populares e não somente o operariado, pensar mais em processo do que em ponto de chegada, etc. Tudo isso já e uma prática de muitos setores da pastoral. Na nova conjuntura acho importante reforçá-la como ponto de partida que favorece articulações mais consistentes e criativas entre o povo. Quanto à unificação dos movimentos sociais, parece-me necessário repensá-la. Quem disse que a união faz força em todo e qualquer caso? Quem disse que a dispersão e só fraqueza? Indo mais a fundo, será que todos têm que estar unificados por um pensamento comum e por uma proposta única? Todos têm que estar unificados em organizações? Onde fica a democracia e o respeito ao outro nisso? Uma coisa é a unificação de lutas concretas em certos momentos de maior confronto, outra coisa é a unificação como norma. Muitas vezes, o desejo de unificação abriga a expectativa de superar as divergências e divisões que existem entre e dentro de certas organizações populares e inclusive patorais. As divergências e divisões não são necessariamente negativas. Podem até ser muito positivas, sinal de pluralismo democrático. O negativo é que, na maioria dos casos, as divergências confluem simplesmente para uma tremenda luta de poder entre posições ao invés de confluírem para um debate franco e aberto. A relação entre cada posição e o grande povo, então, é muito mais uma relação de convencimento, quando não de manipulação - e é isso, em grande parte, o que contribui para debilitar o poder e a autonomia do povo. Devemos reconhecer no âmbito da pastoral uma tendência a confundir fraternidade com consenso, ausência de tensões e harmonia; existe uma grande dificuldade para lidar com as diferenças. E bom lembrar que a caridade exige o reconhecimento do outro enquanto outro. 1.3. O problema da formação política A necessidade de programas de formação política também tem sido apontada por diversos setores da pastoral como uma condição para superar a debilidade dos movimentos sociais e aprimorar a contribuição da pastoral. Essa é uma colocação bem insistente nos últimos tempos. Supõe-se que, numa conjuntura de desânimo e desestímulo dos movimentos sociais, a maior formação - ou conscientização das classes Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 179 179 27/09/09 10:04 Cláudio Perani populares seria um fator importante para a maior dinamização e mobilização das suas iniciativas de luta. Neste sentido, diversos setores da pastoral não apenas têm multiplicado encontros, reuniões ou cursos de formação política para animadores de base, lideranças, etc., como têm também incentivado a sua participação em cursos promovidos por outras instituições ligadas aos movimentos sociais. Ninguém duvida da importância da informação e da formação dos setores populares. O problema não está aí, mas às vezes tem-se a impressão de que o recurso à formação política nos moldes como tem sido feita seja um fugir de dificuldades de outra ordem. Corre-se o risco de ficar no plano do idealismo, simplificando a complexidade da realidade. Certos esquemas tradicionais de formação - apesar dos propósitos em contrário - e certos resultados já visíveis levantam dúvidas sobre a solução encontrada. A formação de lideranças, por exemplo, freqüentemente tem um resultado que deixa interrogações muito sérias: não raro, os indivíduos formados acabam por se descolar do seu tecido social de base e se reagregam em universos onde eles permanecem dependentes dos “formadores” (mais intelectualizados), ao mesmo tempo em que perdem a capacidade de diálogo com os seus primeiros iguais. Em relação a esses, muitos acabam assumindo uma postura de superioridade - quando não de autoritarismo - em nome da “conscientização” que passaram a ter. A formação continua um grande desafio! Explicitando melhor alguns questionamentos, impressiona a insistência sobre a clareza que os participantes dos movimentos sociais devem ter: “é importante que cada movimento local tenha claro... os participantes dos movimentos populares devem ter claro... distinção muito clara... falta de uma política mais clara...”. É sempre possível ter essa clareza? Sobretudo numa situação de transição e quando certos instrumentos teóricos revelam suas insuficiências? É evidente a necessidade de aprimorar um instrumental de análise, a ser continuamente repensado a partir da prática e na prática. E talvez aqui haja muito simplismo nos meios da pastoral. Mesmo quando seus agentes ou assessores pretendem não trabalhar com os preconceitos ideológicos das concepções vulgares ou doutrinários do marxismo, o pressuposto básico dos seus projetos e cursos de formação é quase sempre a luta de classes que implica a “existência de uma força (classe) localizada no centro da produção e capaz de transformar a sociedade através da luta, a partir de um projeto prévio”. Hoje, isso parece não dar conta da realidade toda, pluralista e particular, múltipla e fluida. 180 Revista ceas 233.indd 180 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais É evidente a necessidade de aprimorar um instrumental de análise, a ser continuamente repensado a partir da prática e na prática. E talvez aqui haja muito simplismo nos meios da pastoral. Mesmo quando seus agentes ou assessores pretendem não trabalha com os preconceitos ideológicos das concepções vulgares ou doutrinários do marxismo, o pressuposto básico dos seus projetos e cursos de formação é quase sempre a luta de classes que implica a “existência de uma outra força (classe) localizada no centro da produção e capaz de transformar a sociedade através da luta, a partir de um projeto prévio”. Hoje, isso parece não dar conta da realidade toda, pluralista e particular, múltipla e fluida. Deve-se reconhecer a importância da abordagem sócio-político-econômica e a contribuição do instrumental analítico “luta de classes”. Ninguém nega a existência de um conflito entre as classes. O próprio Papa João Paulo II, em sua encíclica sobre “O Trabalho Humano” , reconhece o “conflito entre o mundo do capital e o mundo do trabalho”. Sem querer entrar numa discussão bem complexa, pode-se dizer que o problema, em primeiro lugar, não está em negar o instrumental de análise “luta de classes”, mas no modo como a classe trabalhadora - ou suas vanguardas tem formulado seu programa de luta, utilizando, às vezes, esquemas deterministas e apriorísticos questionáveis. Em segundo lugar, trata-se de reconhecer que tal instrumental é limitado, quer dizer, não consegue prestar conta da complexidade da vida toda. Mesmo a Teologia da Libertação nem sempre considerou suficientemente outras abordagens como, por exemplo, a abordagem antropológico-cultural. Utilizar também o enfoque cultural não significa voltar atrás mas avançar mais, completando o enfoque sócio-analítico. Em várias partes do mundo - e também aqui no Brasil -, as grandes interpretações do social e as visões totalizantes da realidade e da história estão sendo questionadas. Questionamentos deste tipo poderiam ajudar a pastoral a compreender melhor o “relativo”, “o contidiano” o “local”, o “louco”. No fundo, reaparece hoje a antiga sabedoria (esperteza) do povo: à racionalidade do poder, não opõe a práxis revolucionária (ainda mais racional), nem a temática da utopia e da libertação (mística cristã), mas a resistência fluida, cínica, divertida... O problema é complexo e desafiador. A crítica ao racionalismo onipresente dessas visões totalizantes não pode parar na constatação das situações sociais e das dimensões humanas que tais visões não contemplam. Há que construir outra racionalidade. Uma práxis revolucionária não prescinde da razão, não prescinde de um permanente esforço de elucidação da realidade em suas múltiplas dimensões e articulações. Mais precisamente, a construção de um tempo histórico novo implica em pensar os caminhos dessa construção, a cada momento e em cada Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 181 181 27/09/09 10:04 Cláudio Perani movimento. Pensar com a razão, com a imaginação, com a emoção, sem que nenhuma prevaleça sobre a outra, embora possam ter intensidades diferentes em cada situação concreta. Razão e paixão vão juntas, não podem ser separadas. Dentro disso, inclusive, diria que as próprias constatações e valorizações da resistência fluida cínica e divertida do povo estão carecendo de um discernimento mais agudo, particularmente no âmbito da pastoral. Um outro aspecto é o nível muito acadêmico de vários cursos de formação oferecidos pela pastoral e a absolutização da lógica do pensamento científico. Seria importante abrir espaços maiores para a rica experiência da educação popular dos últimos anos no Brasil, e para a emergência e desenvolvimento das “lógicas” do pensamento popular, de suas informações e pontos de vista, de seus sentimentos e emoções, de seus sonhos, frustrações e aspirações. 1.4. A mística cristã A tentação a que me referi anteriormente, de utilizar a fé para uma prática política eficiente, pode também ser vislumbrada dentro do âmbito estritamente pastoral quando nos deparamos com uma insistência nova sobre a necessidade de uma mística. Alguns setores das organizações políticas continuam vendo, no conteúdo religioso próprio do povo brasileiro e conservado sobretudo nos militantes que provêm dos trabalhos pastorais, algo de prejudicial que deve ser combatido, ou simplesmente ignorado, porque inútil para um processo político. Já no âmbito da pastoral, a preocupação é evidentemente oposta: na medida em que a pastoral se abre para o político, deve procurar reinterpretar, aprofundar e alimentar também a dimensão da fé. E uma das tarefas que mais aparece atualmente, nos diferentes setores da pastoral: CEBs, CPT, CPO... Dá-se importância ao aprofundamento bíblico, é atualizada a catequese, é revalorizada a celebração da fé e alguns chegam até a pensar numa “pastoral da militância”, no sentido de refletir sobre o compromisso político à luz da fé para aprofundar as duas dimensões. Neste contexto, apareceu nos últimos anos a palavra “mística cristã” . O aspecto místico da fé é introduzido para fortalecer a caminhada política. Afirma-se que a racionalização de certos esquemas políticos elitiza e afasta as massas. Para elas participarem 182 Revista ceas 233.indd 182 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais do processo revolucionário, deve-se favorecer o “religioso” e alimentar o aspecto “místico” da visão de fé, que pode aumentar a força do povo. Acho importante compreender e valorizar o sentimento religioso do povo, reconhecer sua fé até na dimensão profundamente mística. O que preocupa é uma relação demasiadamente apressada com a política, correndo o risco de uma certa mistificação. Às vezes, parece haver uma instrumentalização da fé para um projeto político. O problema é delicado e complexo: de um lado, a fé deve ser “instrumentalizada” no sentido que se realiza nas ações e deve levar a uma mudança; do outro lado, sobretudo quando o projeto político parece já existir e se trata de encaixar nele a massa, a fé pode perder sua dimensão própria, sua força questionadora dos projetos humanos. A introdução utilitária da mística cristã para iluminar e fortalecer o caminho da transformação social pode, ao contrário, criar mais confusão na relação fé/política. Podemos lembrar que a raiz da palavra mística é “fechar os olhos”. Ora, por um lado, o processo de transformação social exige um esforça contínuo de lucidez. Por outro lado, viver o evangelho implica em compreender sempre mais que o caminho da salvação é o caminho do humano, do mandamento do amor ao próximo, também em sua dimensão política. Por último, constatamos na prática que os movimentos pastorais com muito conteúdo místico são, habitualmente, alienados da política: Cursilhos, Encontros de Casais com Cristo, Focolarinos; ou são mais conservadores: Opus Dei, Comunhão e libertação, etc. 2. ENTÃO, O QUE CONCLUIR? Não sei. Não há respostas feitas numa situação de confusão e de crise. E possível refletir sobre alguns caminhos que já aparecem na prática e que se revelaram fecundos. A situação de crise exige a coragem de continuar a caminhada, assumindo certa insegurança, aceitando comportamentos aparentemente passivos ou gratuitos, aguentando momentos que se apresentam como fracasso.6 6 RAMBLA, Josef Mª: “El clamor de Espírito na Época de Crisis”, in Selecciones de Teologia n. 102, abril-junho 1987, pp. 133-156. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 183 183 27/09/09 10:04 Cláudio Perani A situação de crise impõe a necessidade de pensar em ritmos lentos: a pressa que nos leva a retomar esquemas velhos e superados pode ser muito prejudicial ao movimento popular. “Ritmo lento” não significa que - diante das dificuldades encontradas - se renuncie a pensar o processo de mudança para deixar-se levar pelas circunstancias. Ao contrário, significa um esforço para reconhecer que a não mudança atual não é uma derrota e que prossegue uma luta muitas vezes de maneira pouco perceptível para nossos instrumentos de análise habituais; significa tomar consciência de que as situações são bem diferentes e complexas e que não se pode reduzir à unidade a luta do povo pobre; significa, sobretudo, reconhecer que o ritmo do povo não coincide com o nosso calendário político, mas que não deixa de ser ritmo, quer dizer, povo que se movimenta. Numa perspectiva pastoral, é fundamental abrir os olhos sobre a realidade dos fatos. Para isso, é necessária uma constante crítica dos nossos modelos ideológicos de análise de realidade e de mudança social e um maior enraizamento nosso na dinâmica popular. O encontro entre os “intelectuais” da pastoral e os setores populares deve se dar nos dois sentidos: o povo freqüentando os primeiros, os assessores e agentes indo lá onde o povo vive e trabalha. Esse segundo caminho parece o mais necessário e o mais difícil hoje. É importante não cruzar os braços, ficando numa simples crítica negativa ou, pior, caindo fora da luta. Devemos contribuir para desfazer a fatalidade da crise. O encontro com o povo favorece isso. A maior solidariedade com os pobres ajuda a descobrir a força transformadora dos pobres. Se os velhos modelos fracassaram, deve-se procurar favorecer modelos novos de pastoral, de luta, de organização... As sugestões apresentadas aqui pretendem servir como estímulo a pensar numa linha mais criativa. Gostaria de terminar este artigo sobre a relação entre a pastoral popular e os movimentos sociais com uma visão mais teórica, resumindo uma reflexão de Ignacio Ellacuría.7 Ao considerar os modelos da relação da Igreja com os movimentos sociais e políticos, entre os vários existentes e possíveis, Ellacuría privilegia o modelo que denomina de “colaboração social”.8 7 “La Teología de la Libertación frente al Cambio Sociohistórico de America Latina”, in Diaconia, n. 46, junho 1988, p. 129-166. 8 Para evitar equívocos, talvez fosse melhor usar a tradução “colaboração com o social” ou “colaboração com a sociedade civil”. 184 Revista ceas 233.indd 184 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pastoral popular e movimentos sociais Esse modelo se fundamenta no que é específico da fé e da instituição eclesial e no que é seu limite. O específico da fé não é a promoção dos aspectos políticos e técnicos do Reino enquanto formalmente tais, senão enquanto favorecem ou desfavorecem o anúncio do Reino de Deus. O modelo de colaboração social, sem romper a unidade com o político, tampouco se confunde com ele nem se situa no mesmo plano. Reconhece que a Igreja é uma força social: situa-se no âmbito da sociedade civil e não do Estado, do poder social e não do poder político. Esta força social teve muitas vezes a tentação de converter-se em força política. Não é necessário. Se a Igreja pretende ser uma força política, seja dominando outras forças políticas, seja pondo-se ao seu serviço, é como o sal que perde o sabor. Mas há ou pode haver uma eficácia autônoma da igreja e da fé na configuração do social. Não se trata, portanto, de renunciar à eficácia. Ela provém da pressão social, através da palavra e do gesto, e não da utilização do poder político. Quando esta pressão social se põe totalmente em favor das maiorias populares com consequente conflito com as classes e estruturas dominantes, está se fazendo um trabalho parcial, que não esgota tudo aquilo que deve ser feito por outras instâncias, mas que é um trabalho da Igreja como força social, no qual a força da fé traz algo insubstituível. Nesta perspectiva, salva-se a especificidade e a autonomia da fé e da instituição eclesial. Nem a Igreja, nem parte alguma dela (CEBs, CPT...) deve subordinar-se a nenhuma instância política. Uma coisa é o compromisso social em favor da justiça e outra, a subordinação a outras organizações das quais se recebem ordens ou orientações de atuação. Evidentemente, não se pode fazer uma separação rígida entre social e político. Tratase de acentuações diferentes. Penso, contudo, que essa visão de Ellacuría possa ajudar a prática da pastoral popular também no Brasil. Só a desconfiança na eficácia histórica da fé pode levar a abandonar seu crescimento para dedicar-se ao cresci· mento de outras organizações políticas. Essas são necessárias. A fé tem uma palavra sobre elas: algumas vezes de animação, outras de denúncia. A fé pode lançar para um trabalho político. Dificilmente, porém, será mais vantajoso para as maiorias populares que a pastoral sucumba à tentação do político. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 185 185 27/09/09 10:04 SOBRE AS EFICÁCIAS CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 150, mar./abr. 1994) 1. INTRODUÇÃO Os apóstolos Pedro e João sobem ao Templo de Jerusalém para rezar. São seguidores de Jesus, que introduziu a Lei nova do amor, mas aceitam as estruturas religiosas do Templo. Diante da Porta Formosa, encontram um coxo que pedia esmola. Homem necessitado, como muitos outros, não tinha outra perspectiva ou esperança a não ser aquela da esmola. Vivia uma situação de dependência: daqueles que o traziam ao templo e daqueles que lhe davam esmola. É a situação da maioria do povo explorado, pobre e dependente. Pedro e João, homens simples e sem instrução na visão dos membros do Conselho Superior, diante do esmoleiro esquecem a oração, param e olham para ele, pedindo ao coxo a mesma coisa: “Olhe para nós!”. A relação entre os discípulos e o coxo sai do anonimato de mil casos semelhantes, torna-se pessoal, íntima e amiga. O homem olhou, esperando “receber algo”. Era a única esperança que tinha. Acostumado a receber esmola, não podia ter outras expectativas que o libertassem dessa sua dependência. Pedro e João não podem dar uma esmola. Eles também são pobres, não têm nem ouro nem prata. E se tivessem? Talvez teriam dado algo. Em todo caso, nesta situação de pobreza, são forçados a não dar coisas, apesar do pedido do caso, mas a dar algo de diferente, aquilo que tinham: a fé no nome de Jesus. No caso concreto, a fé em Jesus 186 Revista ceas 233.indd 186 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Sobre as eficácias significa confiança no coxo. Pedro estende sua mão direita, oferece sua solidariedade e apela para a iniciativa do coxo: “Levante-se e ande!”. E o coxo deu um pulo e começou a andar! O resultado não é simplesmente uma ajuda que permite viver mais um dia, mas que não muda a situação crônica de dependência. É muito mais. É uma intervenção que rompe a estrutura de marginação. De agora em diante, a pessoa anda com suas pernas, não depende mais da esmola dos outros, criou confiança em si a partir da confiança nele depositada por Pedro. Esse é o grande “milagre”, que suscita admiração e espanto. Dar esmola era admitido como algo corriqueiro e normal, porque nada mudava na sociedade. Esse tipo de cura e de poder que desencadeia a autonomia do coxo tem influência sobre a sociedade toda. Suscita espanto, porque se percebe que mudam as relações de poder. E tem conseqüências: as autoridades e os professores da Lei ameaçam prender Pedro e João. Esse episódio bem conhecido, tirado dos Atos dos Apóstolos, nos introduz no tema dessas breves considerações: o problema das eficácias das ações que pretendem mudar o mundo. Desde já, podemos perceber a diferença entre uma eficácia mais limitada e provisória, aquela da esmola, e a eficácia da confiança dada ao coxo, que rompe sua situação de dependente. A conjuntura brasileira atual - de fome, miséria e desemprego - impõe com dramaticidade ainda maior o problema da eficácia: é necessário fazer algo, e de imediato, para combater a fome que está matando o povo. A sociedade está se mobilizando para isso. Multiplicam-se os comitês animados pela campanha da “Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida”, que - pela urgência da situação - quer dar comida para quem tem fome, aqui e agora, sem esquecer de atacar também as questões estruturais. A questão da eficácia deve interessar a todos. Neste tempo, parece fundamental e prioritária a ação, não tanto a reflexão teórica. O importante é fazer algo, deixando de lado ou para outra oportunidade a discussão. Concordando com tal prioridade, constato ao mesmo tempo muitas iniciativas bem diversificadas entre si e, conseqüentemente, com diferentes eficácias. Por isso, é sempre necessário e útil avaliar as diversas orientações para esclarecer todas as ações e reconhecer as mais coerentes e mais lúcidas, na medida do possível. Quero limitar minhas considerações àquelas iniciativas no âmbito do movimento popular que pretendem favorecer o surgimento de uma nova sociedade. Representam um leque bem amplo de atividades a ser simplesmente relatado neste contexto. Trata-se Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 187 187 27/09/09 10:04 Cláudio Perani de grupos de conscientização, de organizações de categoria, de projetos econômicos, de movimentos e campanhas, de escolas, de reivindicações, etc. Em particular, tomo em consideração a atuação de entidades de serviço, organizações não governamentais, pastorais, direções de movimentos, de associações e de órgãos de classe, na suposição de que aqueles que habitualmente chamamos de agentes de intervenção, assessores, intelectuais e lideranças tenham sua influência na orientação dos trabalhos. 2. TRÊS TIPOS DE TRABALHO É certamente difícil tentar enquadrar a riqueza das experiências libertadoras atualmente em curso no Brasil em determinados esquemas que são obrigados a simplificar a realidade. Sem pretender isso, utilizo categorias tradicionais para tomar em consideração algumas experiências em que prevalece a preocupação econômica, outras em que se acentua a dimensão propriamente política e, por fim, iniciativas de simples presença ou acompanhamento de setores populares onde prevalece a dimensão da gratuidade. Sem dúvida, há trabalhos que não devem se enquadrar nesta divisão. Por exemplo, o vasto universo da educação popular formal. O que nos interessa aqui não é retratar tudo o que está sendo feito no Brasil, mas simplesmente refletir sobre certas experiências, na medida em que participam de alguma forma das orientações acima indicadas. A. Dimensão econômica Penso nas várias iniciativas de assistência, nos grupos de produção, nas cooperativas de produção e comercialização, nas iniciativas para conquistar terra, terreno, casa... Trata-se de oferecer ou conquistar ou produzir juntos bens econômicos que possam melhorar as condições de vida dos setores marginalizados. É uma orientação tradicional das entidades de ajuda e, em particular, das igrejas. Hoje, está sendo desenvolvida também pelos meios mais politizados. Por um lado, por razão da urgência da situação; por outro, pela orientação dos governos dos países desenvolvidos, dos bancos mundiais e de várias organizações não governamentais. Foi bem significativo, por exemplo, constatar na última Assembléia Nacional da Comissão Pastoral da Terra a importância acentuada que assumiram os projetos econômicos alternativos para os lavradores poderem sobreviver na terra. Evidentemente, tais projetos econômicos, em medidas diferentes, têm sua incidência 188 Revista ceas 233.indd 188 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Sobre as eficácias política. Por exemplo, a “Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida”, que distribui alimentos para matar a fome de muitos brasileiros, tem certamente uma dimensão mais política que econômica, pela mobilização que suscitou. Doutro lado, o tal de “humanitarismo” do Banco Mundial e da ONU, incentivando projetos econômicos, esconde, sem dúvida, uma estratégia política do Norte em relação ao Sul. B. Dimensão política Podemos colocar aqui todas aquelas iniciativas que privilegiam a articulação e a organização mais permanentes e globais dos grupos, das diferentes categorias, dos setores da sociedade, com um objetivo explicitamente político. Entram nesta perspectiva novas formas de organização popular, associações, movimentos reivindicatórios, sindicatos, partidos, centrais... São iniciativas que favorecem a institucionalização (objetivo, programa, normas de pertença, quadros ... ) para ter mais continuidade e poder e que pensam o problema mais global da mudança da sociedade. É claro que muitas dessas iniciativas podem estar ligadas a uma base mais explicitamente econômica. C. Dimensão de presença Trata-se da presença de agentes, assessores e lideranças, principalmente nos setores da população mais excluídos, mas também em determinados âmbitos culturais (índios, negros, mulheres) ou socio-políticos (o âmbito das cidadanias), para entrar em contato com estes setores, reconhecer sua situação, manifestar a própria solidariedade, acompanhar suas iniciativas e, com isso, favorecer um crescimento de consciência e poder. Não se trata tanto de dar alguma coisa ou de favorecer organizações tradicionais, mas de permitir, com a própria presença e confiando no povo, ser catalisador de iniciativas assumidas pelos interessados conforme suas possibilidades e, sobretudo, respeitando sua autonomia. Típico desse acompanhamento parece ser o outro, quer dizer, o respeito à autonomia e criatividade dos outros em seus empreendimentos econômicos, políticos e sócioculturais. Esse outro, ou essa alteridade, aparece mais no acompanhamento aos excluídos, mas não só. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 189 189 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 3. VANTAGENS E LIMITES DE CADA OPÇÃO A. Na orientação econômica Existe aqui, certamente, uma eficácia imediata muito grande. São produzidas e distribuídas “coisas” que conseguem matar a fome, aumentar a renda, proporcionar um emprego... Tudo muito importante, fundamental e necessário, sobretudo na presente conjuntura. Pode-se também alcançar determinada eficácia política, na medida em que se consegue quebrar algumas dependências e criar relações sociais novas. Isto é possível principalmente em experiências menores, que não tenham que administrar grandes recursos. É evidente o alcance dessas iniciativas, que hoje estão se multiplicando, sobretudo para enfrentar o grande problema da fome e do desemprego. Há novidades interessantes que conseguem equacionar melhor o problema da confiança no povo, favorecendo e estimulando sua autonomia e criatividade. Doutro lado, a dificuldade está no fato de que habitualmente estas iniciativas representam uma solução para um grupo limitado e tomam mais dificil a solidariedade de classe. Nem sempre, é verdade. Mas muitas vezes são atingidos somente alguns “consumidores” que podem se instalar em sua melhor situação. São muitos os exemplos de movimentos comunitários bem animados, esvaziados por intervenções econômicas que criam divisões e dependências. Além disso, podemos lembrar muitas intervenções, às vezes bem intencionadas, que aceitam tranqüilamente doações humanitárias (?) pequenas ou grandes, que são profundamente anti-solidárias, humilhantes e, na prática, colonizadoras. Creio que se chega a isso quando se superestima a eficácia estritamente material e não se reflete melhor sobre o problema da dependência e das relações sociais que envolvem outro tipo de eficácia, igualmente importante. Principalmente quando não se dá crédito aos interessados e à sua capacidade criativa. B. Na orientação política Quando se trata de querer mudar as estruturas e criar uma sociedade nova, com novas relações sociais, é claro que se deve falar de eficácia política. Aqui entra a questão de 190 Revista ceas 233.indd 190 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Sobre as eficácias um novo poder e de novas formas de organização para alcançar esse poder. Apesar de muitos falarem da crise do movimento popular, há muita coisa nova hoje, no Brasil, em termos de maior participação popular: nova consciência, novas relações mais igualitárias, maior representatividade, novas metodologias participativas, novas lideranças ... Criam-se novas estruturas e renovam-se as antigas. É verdade que o poder popular é ainda muito limitado e disperso. A fragmentação aparece como fraqueza, mas bem poderia ser, também, a aparência da multiplicidade no concreto.. É neste momento que o problema da eficácia entra e está sujeito a diferentes interpretações. Muitas vezes, são favorecidas determinadas estruturas, mantendo o mesmo tipo de poder - burocrático, elitista, hierárquico. A novidade do poder novo, mais popular, é reabsorvida e esvaziada pelo peso das estruturas tradicionais. Outras vezes, o processo de organização favorece apressadamente uma centralização e globalização, aparentemente mais eficaz. Ao contrário, o processo enfraquece porque as cúpulas, distanciando-se de suas bases, perdem força e poder. Mais ainda, há dificuldade em respeitar e incentivar outros poderes que aparecem na cena política: das mulheres, de grupos raciais, de minorias culturais, etc. Seria importante repensar o problema da eficácia política e da construção do poder popular. Muitas vezes, o que é atomizado e fragmentário, quando mais participativo e ligado aos interesses dos grupos populares, pode representar mais força que fraqueza. C. Dimensão de presença Habitualmente, iniciativas de simples presença nos meios populares são questionadas exatamente por não apresentarem eficácia histórica. E por essa razão são pouco valorizadas. A própria palavra eficácia parece inoportuna para compreender ou avaliar tal orientação. Fica-se no âmbito do subjetivo, sem conseguir matar a fome nem introduzir mudanças estruturais. Aliás, acho que uma das maiores dificuldades desse tipo de iniciativa é o fato de ter que presenciar situações de extrema miséria “sem poder resolver”. Apesar disso, penso que também nesse âmbito podemos descobrir uma grande eficácia. A história recente dos movimentos sociais no Brasil nos revela que muitos espaços e categorias vieram a ocupar o palco dos atores históricos a partir Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 191 191 27/09/09 10:04 Cláudio Perani de presenças mais gratuitas. Podemos lembrar as muitas iniciativas nos bairros populares, entre categorias esquecidas como os posseiros, os aposentados, os moradores de rua, as crianças... Uma orientação de simples presença pode permitir aproximar os setores mais excluídos, que estã aumentando no Brasil. É verdade que encontramos entre eles as mais dramáticas situações de fome, mas é também verdade que existe aí algo de profundamente humano que deve ser reconhecido e valorizado. É através desta presença menos orientada para determinadas ações eficazes que podemos favorecer novos tipos de sociabilidade que integram melhor o econômico-político com o cultural, tradições com novidades, espaços e tempos... A presença, habitualmente, significa uma solidariedade, um “estar do lado de”, um confiar nos mais fracos. Na medida em que existe uma certa gratuidade, esta pode favorecer a percepção dessa solidariedade e dessa confiança por parte dos “excluídos” e desencadear neles novas forças e novas atividades. Trata-se de uma espécie de “eficácia”. Aqui, também, os limites e os riscos são grandes. Podemos ficar na auto-satisfação dos agentes, que não constrói nem desencadeia novas energias. Ou atuar de forma paternalista e com uma orientação de solidariedade muito assistencialista. 4. ESCOLHER / ACENTUAR / LIGAR MELHOR Deve-se pensar em ritmo lento e em perspectivas de longo prazo mesmo quando certas situações não podem esperar. Acima de tudo, temos diante de nós o desafio difícil e complexo de articular experiências específicas e localizadas com visões e projetos mais globais. Pode-se viver experiências que ficam ilhadas e não contribuem para a mudança da sociedade toda. Que fazer diante desse quadro acima esboçado? Que significa operar para uma maior eficácia? Parece importante, em primeiro lugar, rejeitar a tentação ou o desejo de escolher uma das três orientações como sendo a mais eficaz ou, pior ainda, a única que permite alcançar uma verdadeira eficácia. Podemos ter preferências pessoais, mas – como vimos – cada caminho tem sua importância e seus limites. 192 Revista ceas 233.indd 192 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Sobre as eficácias Não se trata, então, de escolher entre essas três orientações, de privilegiar um caminho em lugar de outro. Trata-se de aprofundar o caminho escolhido a partir do reconhecimento de suas vantagens e seus limites e do questionamento que pode provir das outras orientações. Trata-se de favorecer redes de articulações de eficácias alternativas que se possam corrigir, enriquecer e completar entre si. Caminho difícil, porque habitualmente acontece que, para defender o próprio trabalho, questionam-se os trabalhos com orientações diferentes. Retomemos o episódio do início deste artigo. Apesar de ser tirado de um texto não literalmente “político”, creio que dele podemos extrair um dos critérios fundamentais para avaliar os trabalhos e sua eficácia mais profunda: a confiança depositada nos setores excluídos, pois a eficácia em vista de uma maior autonomia passa pela confiança nas pessoas. Fala-se muito de “povo-sujeito-da-história”. Isto deve ser averiguado no concreto de cada experiência. Naturalmente, essas afirmações continuam bastante teóricas e devem encontrar mediações mais políticas. É o desafio de todos nós. No caso de projetos econômicos, a maior solidariedade política poderá provir de sujeitos políticos plurais. Além de favorecer estruturas novas - alternativas - de produção, comercialização, etc, será importante ver como o grupo se relaciona e se confronta com outros grupos semelhantes e com outros grupos diferentes e como acompanha - enfrenta - o desafio do projeto econômico hegemônico. No caso das organizações mais políticas, é necessário perguntar-se sempre qual a relação entre as direções e as bases, até que ponto estas são ouvidas, podem orientar as decisões, ter uma efetiva participação. Terá que ser questionado o tradicional costume de uma direção central ditar as normas para todos. Qual é o respeito à complexidade, diversidade e pluralismo de situações e temáticas? São respeitadas as exigências econômicas imediatas? Para que isso seja possível, precisamos nos abrir para todo tipo de organização, desde as mais frágeis até as mais estruturadas, favorecendo a construção sempre nova de diferentes autonomias. As presenças que se pretendem de acompanhamento e solidariedade devem se confrontar com a necessidade de mediações econômicas e políticas concretas. A compreensão e o respeito às pessoas são algo de precioso, mas não modificam as estruturas no nível macro. Como ampliar os laços de solidariedade e as iniciativas comunitárias? Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 193 193 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Devem ser reconhecidas e favorecidas eficácias criativas, de sujeitos face a face, capazes de refazer credibilidade e motivos de esperar e amar em gratuidade. Gostaria de lembrar, para finalizar, a importância da gratuidade. Por indicar uma atitude não somente de compromisso sem remuneração, mas também sem objetivos e motivos pré-estabelecidos, pode ser considerada por muitas como uma ação bonita, mas sem nenhuma eficácia. Ao contrário, a gratuidade também inclui uma particular eficácia. Está relacionada ao amor e à liberdade e pode favorecer energias insuspeitas, capazes de criar novas esperanças e novas autonomias. 194 Revista ceas 233.indd 194 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 MOVIMENTOS SOCIAIS HOJE NO BRASIL: BREVES REFLEXÕES1 CLÁUDIO PERANI O tema dos movimentos sociais é atual e importante. Quem fala de crise, quem os considera como o melhor caminho político de mudança, quem os relativiza, quem os instrumentaliza... Há muitas experiências bem sucedidas, outras questionáveis. Existe, também, uma boa reflexão teórica. Nessas páginas desejo apresentar algumas notas, numa perspectiva mais questionadora, esperando que possam contribuir na discussão. 1. DO QUE SE TRATA Sob o nome “movimento social” habitualmente se incluem múltiplas experiências e organizações bastante diferenciadas: movimentos populares, associações, sindicatos de trabalhadores, pastorais sociais, projetos econômicos alternativos, economia solidária, fóruns, comissões, conselhos, coordenações, campanhas etc. Numa palavra, em sentido amplo, podemos dizer que há movimento social lá onde grupos se mexem, em geral para reivindicar direitos e provocar alteração na ordem sóciopolítica existente. 1 Estas Breves Reflexões foram elaboradas por ocasião do Seminário sobre Movimentos Sociais organizado pelo Apostolado Social da Companhia de Jesus, em Curitiba (PR), em maio de 2004. Além dos membros de várias obras sociais da Companhia estavam presentes representantes de diversos movimentos como o Movimento Sem Terra, o Movimento Indígena de Roraima, o Movimento dos Ribeirinhos da Amazônia e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre outros. As experiências apresentadas e a reflexão teórica sobre o tema, com a assessoria de Martinho Lenz, foram bem interessantes e levantaram várias questões que merecem aprofundamento. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 195 195 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Seria bom, nesse momento, lembrar a imensa diversidade das iniciativas populares, que nós chamamos de espontâneas, sem dar muito valor porque, talvez, não se encaixam na nossa visão de organização nem são por nós conhecidas. Algumas são ligadas a partidos ou, o mais das vezes, independentes deles. Outras emergem dos setores populares, com ou sem apoio de outros segmentos, apoio mais discreto ou mais diretivo, não raro com recursos intelectuais e materiais. O que impressiona é o grande número desses movimentos, sua complexidade, sua diversificação e, também, dispersão. Em primeiro lugar, antes de qualquer crítica, parece importante reconhecer a riqueza desses grupos que se mexem e o seu valor político. Devemos desconfiar de algumas conclusões apressadas, como aquela que fala de fraqueza dos movimentos porque muitos dispersos. Ou do desejo de logo articular ou intervir com mais recursos para aumentar sua força. Os resultados muitas vezes são o oposto do que se quer: os movimentos enfraquecem ou até mesmo desaparecem. Nessa situação, não é fácil definir e classificar os diversos movimentos. O fundamental é manter uma atitude de discernimento contínuo e crítico, que nos leve a conhecer diretamente os movimentos em sua atuação concreta. Para tal, se faz necessário um contato direto e uma escuta constante, buscando uma maior compreensão. Isso é indispensável porque as intenções e as ações explicitadas no projeto nem sempre encontram respaldo na prática e a intuição ou o carisma inicial às vezes é abandonado, entrando num processo de burocratização. Aqui surge a necessidade de parâmetros teóricos. Entre os autores que refletem sobre os movimentos sociais encontramos o sociólogo e psicólogo clínico italiano, Alberto Melucci, cujas principais idéias acerca do tema sintetizamos a seguir. Para ele, os movimentos sociais em sentido restrito representam um fenômeno coletivo e visam superar os limites da ordem existente. São sinais de uma transformação profunda exigida nas estruturas complexas das sociedades atuais. Em suma, um movimento social é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere2 2 Alberto Melucci, A invenção do presente: os movimentos sociais nas sociedades complexas, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 35. 196 Revista ceas 233.indd 196 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Movimentos sociais hoje no brasil: breves reflexões A ação coletiva é um conjunto de práticas sociais envolvendo um certo número de indivíduos ou grupos que se relacionam com continuidade e têm um determinado objetivo comum. Esse agir coletivo não é o resultado de forças naturais ou de leis necessárias da história, mas um produto de escolhas e decisões. Nas palavras desse autor, a construção de uma sociedade planetária mais igual, assim como de sociedades locais menos dramaticamente dilaceradas pela desigualdade, permanece uma aspiração fundamental para todos aqueles que se interrogam sobre o futuro de nossa espécie e agem pelo bem comum. Mas esta tendência para a justiça e para a eqüidade deve hoje ser sustentada por uma capacidade de análise dos modos como a desigualdade se forma e se mantém em todos os processos sociais e pessoais que nos envolvem. A idéia de que só a mudança das estruturas pode produzir transformações, sem envolver os nossos modos de construir, individual e coletivamente, a mesma experiência humana, pertence às ilusões do passado. Se seremos ou não capazes de fazer também das nossas mentes, dos nossos afetos e emoções, das nossas necessidades espirituais, um terreno de experiência de mudança, este é o desafio que devemos enfrentar. A consciência da não-transparência das relações sociais dá à ação por uma sociedade mais justa uma forma mais realística que renuncia ao sonho moderno, carregado de onipotência, de um ponto de chegada final da história3 A questão fundamental, segundo ele, reside na existência ou não de um conflito sistêmico. Significa que o movimento social está em posição antagônica ao atual sistema econômico-político, isto é, com o capitalismo em sua forma atual de neoliberalismo. Os conflitos, é claro, não existem somente nas dimensões de classe e raça, mas invadem também o âmbito das relações culturais. Noutras palavras, a ação coletiva deve levar a romper os limites dos comportamentos admitidos, indo além das leis reconhecidas e forçando uma nova estrutura que o atual sistema não pode tolerar. De acordo com Melucci, não podemos falar de movimento social quando as ações coletivas se situam no interior dos limites de variabilidade estrutural de um certo sistema de relações sociais, sendo simplesmente fenômenos de manutenção da ordem estabelecida. 3 Idem, p. 1. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 197 197 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 2. AS NOVIDADES Não é difícil constatar a mudança dos movimentos sociais como parte da história de cada lugar e de cada tempo. Há pouco tempo atrás o que mais mobilizava os trabalhadores eram as lutas por mudanças nas condições de trabalho: melhores salários, cumprimento dos direitos trabalhistas, regime de trabalho em cada empresa etc. Organizações como sindicatos, oposições sindicais e comissões de fábrica, entre outras, tiveram aí um papel significativo. Evidentemente, todas esta problemática continua fundamental hoje também. Mas o capitalismo se transforma, a sociedade passa a enfrentar novos desafios. O desemprego deixa de ser um problema cíclico e torna-se uma realidade crescente e permanente, em virtude, sobretudo, da modernização tecnológica. Para a maioria dos trabalhadores não se trata apenas de lutar por empregos e melhores condições de trabalho. O desafio maior é criar novas formas de trabalho, capazes de garantir alternativas de sustentação da vida para si e suas famílias. O novo, em muitas dessas iniciativas, está em fazer da economia um campo de criação de novas propostas de trabalho, numa perspectiva econômica solidária e não apenas de reivindicações de melhorias dentro do modelo capitalista de produção de mercadorias e de empresa. Além do trabalho, diversas dimensões da vida passam a ser consideradas: o gênero, as etnias, a terceira idade, a sexualidade, as culturas, a ecologia, os direitos humanos. Surgem novos movimentos que se ocupam da saúde e da doença, da defesa do consumidor, das migrações, da violência e da paz, do nascimento e da morte... Muitos se entrelaçam mais estreitamente com a vida cotidiana das pessoas e com a experiência individual, assumindo uma crescente autonomia dos sistemas políticos. Uns se desenvolvem mais no rural, outros no urbano. Há movimentos que colocam o problema do sentido da vida, questões éticas, movimentos religiosos etc. Tudo isso com uma base social bem heterogênea, que abrange diferentes setores populares e de classe média. A partir daí, também no nível da reflexão teórica encontramos mudanças. Paradigmas tradicionais não são mais suficientes para explicar as novidades. A teoria marxista não dá mais conta da totalidade dos fenômenos. Penso que continua tendo uma grande importância na análise da realidade, mas deve ser completada por outros paradigmas. Por outro lado, não é fácil encontrar paradigmas novos que possam responder à complexidade e à riqueza do que se apresenta no cenário social. É premente a necessidade de criar novos métodos de análise e novos conceitos: isso não se improvisa, leva 198 Revista ceas 233.indd 198 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Movimentos sociais hoje no brasil: breves reflexões tempo, exige paciência. Alguma coisa tem sido produzida. Essa é outra questão a ser melhor conhecida e discutida. 3. A CRISE DOS MOVIMENTOS POPULARES Já faz alguns anos que se ouve dizer que os movimentos populares estão em crise, entendida aqui não como caminho de crescimento mas como esvaziamento. Tal afirmação merece uma avaliação mais cuidadosa. Em primeiro lugar, é bom se perguntar de quem é a crise: se dos próprios movimentos ou da reflexão sobre eles. Uma análise apressada, constatando mudanças dos movimentos que não conseguem ser encaixadas nos parâmetros tradicionais, pode concluir pela decadência das organizações populares. Devemos discernir com cuidado entre a grande variedade das iniciativas. Sem dúvida, é possível identificar o esvaziamento de alguns movimentos. Seria importante, porém, perceber melhor os desafios e as tendências presentes hoje nos diversos movimentos populares. Sem pretender esgotá-los – o que seria impossível –, vou apresentar algumas breves considerações. 3.1. A conjuntura em tempo de globalização neoliberal A conjuntura econômica atual exerce um influxo considerável sobre o cotidiano das pessoas que vivem do trabalho na nova sociedade. A luta pela vida torna-se cada vez mais penosa e nem sempre permite um mínimo de fôlego para uma resistência mais organizada. O desemprego avassalador, o rebaixamento da renda familiar, o aumento da fome e a convivência com a violência atingem e modificam a vida das pessoas em todas as suas dimensões. Na verdade, estamos vivendo uma mudança acelerada de valores, estruturas. Sem dúvida, para a grande maioria do povo a situação é de sufoco. Mas não de paralisia. Dentro desta situação, e até a partir dela, vemos brotar uma enorme diversidade de iniciativas. Há movimentos bem conhecidos e falados como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). No âmbito da economia, como já mencionamos, cresce todo um movimento de grupos, associações e cooperativas empenhados na criação de novas formas de geração de trabalho, muitas delas numa linha de economia solidária, na cidade como Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 199 199 27/09/09 10:04 Cláudio Perani nas zonas rurais. No campo da saúde surgem inúmeros grupos e redes de fitoterapia e outras práticas alternativas, que resistem à transformação da saúde em mera mercadoria fornecedora de lucros para a indústria farmacêutica. Na esfera da técnica, da qual o trabalhador foi alijado (e sabe que foi) pelas pesquisas e “segredos” do capital, algumas iniciativas de educação e trabalho buscam elevar o nível de conhecimentos científicos e técnicos dos trabalhadores (o que é diferente de cursinhos rápidos de uma semana, adequados tão somente às demandas imediatas das empresas) e estimulam a pesquisa voltada para as reais necessidades dos trabalhadores e das comunidades populares. Por fim, no tocante aos cuidados com o meio ambiente temos uma série de movimentos de reforço às propostas e perspectivas da agro-ecologia, para não falar de movimentos como o da convivência com o semi-árido, que engloba desde opções agrícolas apropriadas à região até tecnologias de captação da água que permitem enfrentar os períodos de estiagem. Além do movimento dos bancos de sementes, em oposição à pressão dos interessados nos lucros transgênicos! Enfim, essas e muitas outras são iniciativas que se multiplicam, ganham vitalidade e se fortalecem porque, a nosso ver, correspondem a desafios concretos que o povo está vivendo. E, mais importante, na maioria dos casos não se trata de quebra-galho nem de práticas assistenciais. Inúmeros são os movimentos que, pelo modo como se organizam, pelas relações que estabelecem e pelo conteúdo do que fazem, carregam dentro de si a proposta de construção de uma sociedade justa, fraterna, digna para todos. Eles resistem, na prática, à lógica do capital: transformar tudo em mercadoria lucrativa para si mesmo. Além disso, trata-se de experiências nas quais perpassam questões de diversos outros movimentos – como os de gênero e etnia. Muitas vezes, por exemplo, a afirmação das mulheres ganha novo impulso quando elas participam de desafios concretos mais ligados ao mundo da saúde. Não por acaso, a maior parte dos participantes dos grupos de fitoterapia é formada por mulheres. Outros movimentos podem ser pressentidos no surgimento de alguns indícios ou embriões. A difusão de certos conhecimentos e equipamentos eletrônicos –especialmente para filmagens – está possibilitando um desenvolvimento da criatividade entre jovens, o que revela um enorme alcance educativo. Em muitos casos esse tem sido o caminho através do qual os jovens começam a se construir como cidadãos, a expressar e escolher valores éticos, a expandir sua autonomia frente às seduções da violência. Claro, não podemos idealizar nem cair em otimismos ingênuos. Mas me parece que é 200 Revista ceas 233.indd 200 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Movimentos sociais hoje no brasil: breves reflexões neste chão que devemos buscar discernir o momento atual dos movimentos populares: o que apontam? quais as possibilidades? o que fazer para que se fortaleçam? 3.2. Liderança e militância Há questões que dependem diretamente dos movimentos sociais, da forma como se organizam, evoluem e são apoiados. Uma delas é a maneira com a qual aqueles que são chamados de “líderes” ou “militantes” atuam e se situam neles. Em primeiro lugar, sabemos que a linguagem é sempre reveladora de uma posição e de uma prática. Essas duas palavras – líder e militante – vêm de contextos muito diretivos (o da psicologia social comportamentalista e o militar) e revelam uma orientação bem autoritária. O líder é aquele que sabe e consegue cooptar os outros, motivando-os para cumprir a tarefa da organização; o militante é aquele que observa uma disciplina rígida e imposta para a vitória da causa. São termos que diminuem o sentido da autonomia e da subjetividade em benefício de uma bandeira que deve ser defendida. Ora, habitualmente, uma das afirmações freqüentes dos movimentos sociais contemporâneos consiste em considerar todo membro como protagonista: trata-se de romper com a dependência e o autoritarismo, querendo que os “pobres” sejam sujeitos históricos da mudança e, por conseguinte, de suas próprias iniciativas. Trata-se de gerar “autores”, quer dizer, pessoas que desenvolvem sua criatividade, se realizam e participam continuamente do poder de decisão, criando um novo tipo de relações sociais, ainda que às custas de uma aparente lentidão inicial. O desafio, no caso, é o de como realizar isso na prática – o que geralmente é bastante difícil. A meu ver, seria importante continuar aprofundando a discussão desse ponto. 3.3. Cooptação das lideranças Um possível motivo do enfraquecimento de alguns movimentos sociais é o fato de que muitos militantes, com a vitória de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT), foram incorporados em administrações públicas. É algo positivo, pois isso pode introduzir nas estruturas do governo uma prática mais coerente, aprendida nas lutas populares. Fica, porém, o problema da reposição dessas forças, uma vez que os movimentos populares necessitam continuar com sua atividade específica. É algo que não se pode improvisar. Além disso, o discernimento do lugar de compromisso na nova conjuntura não é fácil. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 201 201 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Já antes de Lula existiam estratégias promovidas pelas autoridades ou grupos conservadores com a explícita intenção de dividir a organização do povo. Lideranças eram corrompidas para formar organizações paralelas, com a intenção explícita de enfraquecer o poder popular. 3.4. As parcerias Existe algo de mais complexo e sutil para ser discernido: o problema das parcerias. Nos últimos anos, aproveitando da “abertura” do governo nos vários níveis (municipal, estadual e federal), alguns movimentos, entidades populares e pastorais entraram em parceria com o próprio governo, quer dizer, aceitaram desenvolver trabalhos em comum. Com a fundação dos Conselhos Paritários, representantes populares ocuparam espaços no seu interior. Às vezes era aceito o apoio de uma organização nãogovernamental (ONG) disposta a oferecer sua ajuda para potencializar o movimento, sempre na perspectiva de adquirir mais poder pelo fato de ocupar um espaço de governo ou ter mais recursos materiais. Em conseqüência disso, no entanto, muitos movimentos ficaram somente neste nível e descuidaram de seu caráter mobilizatório e reivindicatório, de modo que a atuação mais operacional e propositiva reduziu-se à esfera dos Conselhos. Em tese, poderia ser um caminho bem acertado; na prática, muitas vezes contribuiu para enfraquecer a oposição popular. Colocar o pé num espaço de governo pode ser válido na medida em que se mantém o outro fortemente fincado na mobilização popular. Caso contrário, a força do movimento não aumenta, mas diminui. Vários são os exemplos que poderiam ser apontados. Uma recente pesquisa vem confirmar essas afirmações. O Movimento Ativo da Participação da Sociedade (MAPAS), encarregado da investigação, focalizou os instrumentos criados ou reformulados pelo atual governo: o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, a Conferência para o Meio Ambiente, o Conselho das Cidades e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Eis algumas conclusões: Os movimentos sociais estão encurralados. Integrados a instâncias criadas pelo governo Lula, viram suas exigências caírem no vazio. Precisam voltar às ruas para exigir o cumprimento delas4 4 Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 de julho de 2004. 202 Revista ceas 233.indd 202 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Movimentos sociais hoje no brasil: breves reflexões É importante reconhecer que os movimento sociais, com sua especificidade e objetivos, serão sempre necessários, qualquer que seja o sistema político. Por isso, devem manter sua autonomia. 3.5. Absolutização dos movimentos Outra questão bem atual é a absolutização de um movimento. Poderíamos falar de burocratização, mas não é somente isso, vai além dela. Ainda que tendo uma finalidade mais geral de mudar a estrutura da atual sociedade, a maioria dos movimentos nasce a partir de objetivos bem concretos, trabalhando sobre temas específicos. Por essa razão conseguem mobilizar forças populares. Aos poucos, percebe-se o limite e a fraqueza do movimento, descobre-se que os problemas são vários e, para crescer, ampliam-se os objetivos, multiplicam-se as tarefas e as lutas além das possibilidades concretas dos interessados. Vem a tentação de abarcar tudo. Muitas vezes o resultado é o oposto: o movimento esvazia-se. É inquestionável a necessidade de não se fechar, de crescer, de ampliar os horizontes e as lutas. O problema é saber como isso está sendo conduzido: impondo uma orientação autoritária e que provém de fora do movimento ou respeitando as decisões e o crescimento do conjunto segundo suas forças? 4. A MÍSTICA Não é de agora que a palavra “mística” entrou na reflexão dos movimentos sociais, querendo, com isso, indicar uma paixão pela causa, uma força interior, uma fé na vitória capaz de sustentar os “militantes” nas conjunturas mais problemáticas. Parece que, diante dos impasses da luta, do desânimo e das desistências, se descobriu a necessidade de apelar para algo não simplesmente racional que pudesse dar sustento também nas horas difíceis. Pode ter um conteúdo religioso ou simplesmente inspirar-se num ideal de vida, mas significa sobretudo uma força interior que impulsiona para continuar, principalmente nos momentos das dúvidas, sofrimentos ou mesmo das derrotas. É óbvia a necessidade de fundar nossa vida sobre uma fé e uma esperança que nos proporcionem um sentido mais profundo da existência e nos reforcem na confiança de que a nova sociedade que sonhamos é possível e, com nosso esforço, poderá se realizar. Ninguém vive sem ideal, sem acreditar em algo ou em alguém, sem esperan- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 203 203 27/09/09 10:04 Cláudio Perani ça num mundo melhor. Tudo isso, hoje, é chamado de mística. A partir do instante, todavia, em que, com muita freqüência, os movimentos populares recorrem à mística, gostaria de refletir sobre dois possíveis desvios. O primeiro consiste em apelar à mística para explicar ou justificar possíveis erros na condução política dos movimentos. A mística não pertence à racionalidade ou à lógica política, é de outra ordem, inscreve-se na dimensão ética que se alimenta com a contemplação. É crucial para quebrar a hegemonia da racionalidade moderna e reconhecer seus limites, mas não a substitui. Não podemos fugir do esforço de avaliar politicamente as práticas e as lutas e, se preciso, rever os métodos, as estratégias e até os objetivos da caminhada. Sem isso, o recurso à mística pode tornar-se uma alienação. Já o outro possível desvio, não facilmente detectável (também porque dependente do conceito de cada um acerca do tema), reside na instrumentalização da própria mística. Ora, ela significa reconhecer que há algo além de nós, que supera nossos limites, que nos transcende. Na medida em que a mística representa uma escolha radical pela causa popular, necessariamente interpretada segundo uma lógica humana, a própria opção corre o risco de tornar-se o absoluto da minha vida. Eu não me deixo mais levar e questionar por um absoluto que me transcende, não me deixo mais orientar pela mística, mas a utilizo para confirmar meu caminho, a causa em que acredito. É isso que chamo instrumentalização da mística, sem negar, evidentemente, o compromisso radical pelo irmão popular, cuja face se revela (e me apela) a cada tempo e lugar. Esse esforço de discernir, sempre, as faces do irmão, é também um esforço por deixar-me questionar pelo que me transcende, aberto a toda e qualquer mudança, a todo e qualquer sinal. 5. PERSPECTIVAS Diante da impossibilidade de predizer qual será o futuro dos movimentos sociais, apontaremos algumas perspectivas gerais que podem ter sua importância para o crescimento dos mesmos: 1. Avaliação contínua: Parece óbvio, mas é algo difícil, talvez porque muitas vezes não se possuam os instrumentos metodológicos necessários ou, quem sabe, não haja liberdade para questionar e reorientar a caminhada. Mesmo assim, a avaliação é condição para uma maior coerência e eficácia das propostas e realizações concretas dos movimentos sociais. 204 Revista ceas 233.indd 204 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Movimentos sociais hoje no brasil: breves reflexões 2. Superar a dispersão para procurar maior unidade: “Povo unido jamais será vencido” é o grito de toda luta. Suscitando o escândalo de muitos, um sociólogo afirmou num encontro de educação popular justamente o contrário: “Povo desunido jamais será vencido”. Tem seu sentido. Devemos reconhecer que a dispersão não necessariamente significa fragilidade, pode ter um aspecto de força. Devemos, contudo, trabalhar para uma sempre maior unidade que fortaleça a oposição. O problema é saber “como”, para não resultar no efeito oposto. Penso que a questão hoje não seja tanto a do povo unido versus dispersão, mas a construção de novas formas de cooperação e solidariedade concreta. Essa é uma questão de fundo. Dou um exemplo: há lugares em que os agricultores moram longe uns dos outros, cada um trabalha a sua terrinha e pouco se encontram regularmente, a não ser para combinarem juntos a comercialização, a safra e a distribuição das responsabilidades para a realização da venda. Pode ser pouco mas é o ponto concreto em torno do qual eles constróem sua solidariedade, sua cooperação. Quando isso é forte e valorizado por eles mesmos fica mais provável que outros projetos também venham a ganhar força, a exemplo do Fome Zero, que tem tido um impulso maior ali nos lugares onde já existe alguma prática ou movimento popular; 3. Investir na formação: É algo muito pedido atualmente e que tem sua validade, particularmente num contexto de confusão. Lembrando, entretanto, que a formação é um momento da ação; 4. Ter uma ética: Se lutamos por uma sociedade justa e solidária, é evidente que esses princípios devem existir e ser vivenciados, em primeiro lugar, no próprio movimento, devendo nortear posteriormente toda ação na sociedade. São essas algumas breves notas sobre o tema dos movimentos sociais, as quais podem servir para aprofundar a discussão, hoje tanto mais necessária. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 205 205 27/09/09 10:04 PARTE 3 HISTÓRIA E OPÇÕES DA IGREJA Revista ceas 233.indd 207 27/09/09 10:04 BISPOS DA AMAZÔNIA – A CONVERSÃO AO POSSEIRO: REFLEXÕES TEOLÓGICO-PASTORAIS SOBRE O ENCONTRO DAS IGREJAS DA AMAZÔNIA LEGAL EM GOIÂNIA CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 39, set.-out. 1975) De 19 a 22 de junho de 1975 realizou-se em Goiânia, sob o patrocínio conjunto da linha de Ação Missionária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um encontro de Bispos, Prelados e convidados especiais da Amazônia Legal para traçar as linhas básicas para atitudes e práticas pastorais face ao conflito existente e latente entre empresas agropecuárias e posseiros, bem como diante do fenômeno das migrações internas, decorrentes daqueles conflitos. Noutras palavras, um encontro bem oficial de pastoral onde o protagonista central foi a TERRA, o problema de posse e uso da terra. Não pretendemos analisar o conteúdo e os resultados da reunião, simplesmente tratar do ponto de vista teológicopastoral duas questões que achamos fundamentais: a terra como novo lugar teológico e o problema da eficácia da ação profética. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 209 209 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 1. “TERRA”: LUGAR TEOLÓGICO Consideramos o problema a partir de dois conceitos teológicos, o de “revelação” e o de “evangelização”, sendo que os dois querem dizer o mesmo conteúdo. 1.1. Revelação histórica Faz tempo os documentos oficiais da igreja abandonaram o esquema interpretativo da revelação como um simples conteúdo estático de verdades reveladas que devem ser transmitidas hoje. A partir deste esquema, a pastoral - a ação da igreja que revela a Deus - consistia em procurar ensinar tais verdades contidas nas fontes teológicas, a Sagrada Escritura e a Tradição da igreja, e habitualmente sintetizadas e pedagogicamente simplificadas num catecismo. Este modelo foi criticado como incompleto, correndo o risco de ser a-histórico e extrínseco ao homem. O Concílio Vaticano II redescobriu a historicidade da revelação, colocando no centro o HOJE, revalorizando assim o mundo, os acontecimentos, a história, que se passa na sociedade. E procurou pôr em prática o novo esquema, produzindo um documento que representa uma novidade absoluta na tradição eclesial, a Constituição sobre a Igreja no Mundo de Hoje. Pela primeira vez o ponto de partida são os “sinais dos tempos”, isto é, os acontecimentos sociais e políticos que se impõem na atualidade. Foi uma primeira tentativa, imperfeita, limitada, equívoca, mas fundamentalmente decisiva para superar o modelo antigo. A Conferência de Medellin foi na mesma linha, levantando, em cada documento o quadro da realidade latino-americana, saindo do âmbito restrito da igreja, para considerar os problemas chaves da sociedade. “As situações históricas e as aspirações autenticamente humanas constituem parte indispensável do conteúdo da catequese” (Doc. sobre Catequese, 6). A partir destas orientações oficiais, a prática pastoral - que já se inspirava neste método (particularmente a Ação Católica com seu “ver-julgar-agir”) e que foi um dos pontos de partida das conclusões teológicas do Vaticano II ficou confirmada e foi 210 Revista ceas 233.indd 210 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Bispo da amazônia – a conversão ao posseiro: reflexões... ampliando sempre mais seu raio de influência, entrando no setor da catequese e, mais em geral, no setor da evangelização dos adultos. Hoje, no Brasil, a pastoral que assume como ponto de partida e como conteúdo de seu trabalho a realidade local e global, a sociedade com suas estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais, já tem uma longa história e uma grande experiência. Contudo, não deixam de subsistir dúvidas, equívocos, incertezas, receios – pelo menos em certos ambientes – que impedem um maior avanço nessa linha. De um lado, há o perigo de considerar a realidade como um quadro exterior, um instrumento pedagógico para passar outro “conteúdo”, o propriamente religioso, esvaziando de tal modo a mesma realidade. Doutro lado, corre-se o risco de eliminar o evangelho e a referência a Jesus Cristo, não sabendo mais como e por que razão se deva interpretar “à luz do evangelho”. Persiste um certo dualismo, com conseqüente medo, que impede tomar a sério a realidade e descobrir nela o caminho da revelação. Nesse contexto, coloca-se o encontro de Goiânia. Não representa uma novidade teológica, uma contribuição na linha teórica. Foi uma experiência forte, uma descoberta e percepção clara de que a conversão da igreja ao evangelho e sua capacidade de evangelizar só podem realizar-se na medida em que ela mesma se converte - no caso - ao posseiro, se solidariza com ele participando de sua luta. Por essa razão, o encontro foi pastoral no sentido pleno da palavra e, no mesmo tempo, teve como conteúdo central o problema da “terra”. Que esse tinha que ser o caminho, tornou-se evidente por uma razão intuitiva, por uma experiência ou discernimento do “Espírito” que não precisava de razões lógicas. E foi explicitado no encontro, ao afirmar que a conversão ao Cristo da igreja da Amazônia Legal só era possível através de uma conversão ao posseiro. Uma experiência não pode ser transmitida. Simplesmente queremos aqui lembrar alguns fundamentos teológicos para esclarecer este caminho. Teologicamente, trata-se de entender o que é revelação de Deus e, particularmente, sua historicidade. Não significa que Deus falou só no passado através de determinados acontecimentos históricos que devem ser lembrados hoje. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 211 211 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Significa que Deus fala também aos homens hoje, no presente, através de uma palavra que eles possam entender. Nesse sentido, toda palavra de Deus e sobre Deus chega a nós através dos homens e se manifesta no seio de sua experiência histórica. A atualidade da palavra é possível na medida em que se apresenta na atualidade histórica, sem esquecer - evidentemente - a relação com o passado. Para que isso possa realizar-se, a relação social, na qual o homem se abre a outro homem, é lugar teológico, isto é, lugar em que a existência humana se abre à revelação de Deus. A relação social não é simplesmente um possível ponto de partida, mas o lugar privilegiado, isto é, o ponto de partida necessário de toda experiência cristã autêntica. Não é simplesmente um lugar de aplicação de conclusões teológicas de outros lugares, mas um “lugar-fonte” de compreensão, no qual se revela Deus mesmo, também se transcende, no mesmo tempo, toda relação entre os homens. Tal relação social deve ser vista, evidentemente, na sua dimensão pessoal-estrutural, como relação interpessoal, sem excluir as dimensões sócio-politicas. Pelas afirmações que precedem, justifica-se a necessidade de considerar o homem que vive hoje, a sociedade em que está inserido, com suas dimensões econômico-políticas, sua evolução histórica, as forças que operam na humanidade toda. Com palavras tradicionais e bíblicas, significa considerar a “criação” como palavra de Deus. Afirmado este nível de conhecimento, devemos reconhecer sua limitação ou ambiguidade, isto é, sua incapacidade em revelar a plenitude do mistério de Deus e da vocação humana. Essa plenitude, acessível pela fé, é descoberta através da· relação com o acontecimento histórico fundamental, Jesus Cristo, vivido e transmitido até nós na comunidade igreja. É preciso recorrer à. luz da revelação propriamente dita, da Escritura e da Tradição da igreja, para que seja possível explicitar a significação última da experiência humana, sua dimensão plenamente cristã, como também alcançar a compreensão do mistério de Deus que se revela em Jesus Cristo. Contudo, não basta interpretar a Escritura. É preciso colher os conteúdos igualmente em sua atualidade histórica, isto é, no concreto da existência. A palavra da Escritura não é portanto, em si mesma, uma chave de interpretação suficiente, mas ela mesma precisa ser interpretada, dentro da comunidade eclesial, a partir da realidade presente em cada momento. 212 Revista ceas 233.indd 212 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Bispo da amazônia – a conversão ao posseiro: reflexões... A compreensão última da revelação não esvazia tal realidade. Ao tomar-se Homem, o Filho de Deus não anulou, empobreceu. ou limitou a densidade da dimensão humana de sua pessoa, ao contrário, a respeitou no seu conteúdo e lhe deu todo reconhecimento e a plenitude de sua realização. Por isso, os homens e a sociedade de hoje, os acontecimentos históricos, não são simples aparência ou quadro extrínseco ou instrumento para chegar à realidade do Reino. Têm valor em si mesmos e, consequentemente, devem ser analisados, respeitados e assumidos enquanto tais. Justifica-se a necessidade de demorar neles, analisando-os, utilizando todos os recursos das ciências humanas, que, neste nível, se tornam indispensáveis para iniciar o processo de revelação. Na prática pastoral, uma excessiva pressa em recorrer ao evangelho, provocando um paralelismo “acontecimento-Evangelho” muito superficial e simplista, revela um certo “docetismo”1, isto é, um esvaziamento da realidade, que significa uma desconfiança na palavra da criação e que, por isso mesmo, impede a compreensão da palavra da encarnação. O encontro de Goiânia, colocando como tema .central a “terra” e deixando falar o “posseiro” e sua situação, manifestou o valor e a fecundidade deste caminho, não somente para uma maior compreensão sociológica do fenômeno, mas também - dentro dessa - para uma mais autêntica atitude evangelizadora. 2. O CONTEÚDO DA EVANGELIZAÇÃO O afirmado até aqui poderia levar a uma falsa conclusão, isto é, pensar que o problema “terra” é somente ponto de partida do caminho da evangelização, a ser superado e abandonado no momento em que se revelasse o conteúdo central do evangelho. Se ponto de partida, é também conteúdo da evangelização. Não pretendemos apresentar interpretações teóricas, simplesmente lembrar algumas afirmações recentes de documentos oficiais, que nos permitam modificar a ótica habitual. Em Goiânia tratou-se do direito dos posseiros ao uso e à propriedade da terra e da ação da igreja em defesa desse direito. Um problema de Direitos Humanos. Na visão 1 Docetismo é aquela doutrina que afirma ter Jesus Cristo só uma aparência de humanidade. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 213 213 27/09/09 10:04 Cláudio Perani tradicional de missão da igreja este trabalho seria logo classificado como promoção humana. Depois surgiriam as questões: qual a relação com a evangelização? é extrínseca ou intrínseca? há oposição? separação? sem perceber que a mesma colocação da dicotomia “evangelização-promoção humana” está errada. No documento A Justiça no Mundo do Sínodo dos Bispos de 1971, afirma-se: ”A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo se nos oferecem claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da igreja”. E na Mensagem sobre os Direitos Humanos do Sínodo de 1974, lê-se: “A promoção dos direitos humanos é requerida pelo evangelho e é central em seu ministério”. Noutras palavras, se a promoção humana é “dimensão constitutiva”, parte “central” do evangelho, não se pode pensar em termos de evangelização e promoção humana. A primeira inclui necessariamente a segunda, com seu conteúdo histórico, terrestre, como aspecto “constitutivo”. A promoção humana, ou promoção da justiça, deve ser referida à explicitação da fé. Ambas são dimensões da mesma evangelização e partes integrantes da missão da igreja. Será difícil encontrar uma explicitação teórica satisfatória da relação entre a dimensão terrestre do Reino e sua dimensão eterna. Mas isso não deve fazer esquecer a unidade fundamental. Jesus opera com os “milagres” e a “palavra”. Sara os doentes e fala do Pai. Sua ação é profundamente unitária e nós não colocamos em dúvida que seu ato de solidariedade com os pobres fosse um fato de libertação, de “boa nova”, isto é, de evangelização. O encontro de Goiânia, exatamente porque tratou dos direitos humanos dos posseiros em sua situação concreta e questionou a solidariedade da igreja, foi um encontro de evangelização ou de pastoral - como se afirmou. A consideração da evangelização com seu conteúdo concreto de justiça leva-nos ao questionamento daquele tipo de pastoral que chamamos de pastoral profética. Trata-se de ver agora como a profecia se relaciona com o momento histórico atual e com seu conteúdo de justiça a ser realizada. 3. PROFECIA E EFICÁCIA A primeira parte do encontro foi dedicada ao levantamento da realidade do homem da Amazônia. Os depoimentos sucederam-se com uma constância impressionante, 214 Revista ceas 233.indd 214 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Bispo da amazônia – a conversão ao posseiro: reflexões... revelando uma situação de injustiça bem mais profunda e universal do que se pudesse pensar. Em toda parte as empresas pecuárias entram expulsando os posseiros. Os instrumentos jurídicos de defesa não existem ou são praticamente não utilizáveis. O levantamento, também, revelou a grande sensibilidade e preocupação social dos agentes de pastoral, isto é, daquelas pessoas que acompanham mais de perto a vida dos posseiros e podem, de alguma forma, captar o drama que estão vivendo. E não se ficou somente na preocupação. Mesmo que com modalidades e visão crítica diferentes constatou-se a existência de um compromisso sério e de muitas ações de vários tipos em favor dos posseiros. Esta atividade pode ser chamada de prática eclesial que deve ser reconhecida como algo de fundamental e prioritário. É neste nível, e não na reflexão científica ou teológica, que começa a transformação. Essa prática é uma prática transformadora e espiritual. Transformadora, porque - na medida em que capta e se solidariza com as necessidades dos camponeses - contradiz o sistema e os comportamentos normais da sociedade, de um lado, e se opõe a outras práticas de igreja, do outro, sem esquecer a possibilidade de questionar também as ideologias mais ou menos científicas e as várias teorias interpretativas que sempre correm o risco de serem modelos abstratos. Espiritual, porque animada pelo Espirito, isto é, preocupada não com o poder que escraviza, mas com os oprimidos e os marginalizados. Neste sentido podemos reconhecer quanto seja falsa a acusação de “materialismo” ou de “economicismo” que muitas vezes essa prática recebe, não percebendo que o verdadeiro materialismo é todo compromisso com o poder opressor. Tudo isso deve ser reconhecido e representa a justificação do impacto que receberam os presentes no encontro de Goiânia, ao passo que os vários depoimentos eram apresentados. Habitualmente esse tipo de prática leva a uma atitude profética, isto é, a igreja sensibilizada pela situação de injustiça denuncia esta mesma injustiça, através de pronunciamentos, compromissos ou ações particulares, sem se preocupar de encaminhar um modelo que seja “justo”. É um nível de atuação de grande importância e, certamente, com consequências práticas. Mas, para quelaso aconteça é necessário perceber, em primeiro Iugar, o perigo de um elitismo. Toda atitude profética é, de certa forma. de uma pessoa que vê, no nível Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 215 215 27/09/09 10:04 Cláudio Perani do ético, com clareza e que pronuncia uma palavra mais radical. Alguém que abre o caminho. Mas deve-se considerar o risco de satisfazer, só com um pronunciamento, a consciência da totalidade do grupo e de acobertar as reais possibilidades de mudança que o mesmo grupo possui. Em segundo lugar, é preciso colocar o problema da viabilidade. Profecia e eficácia são dois aspectos que devem ser considerados na prática eclesial. A primeira, sem o esforço de encontrar um caminho viável de mudança, transformar-se-ia numa palavra vazia e não seria mais uma interpelação para uma conversão. É claro que ao falar de prática pastoral deve-se por a questão prévia do que se entende; neste caso, por eficácia, considerar seus critérios, seus conteúdos. Mas, na medida em que está implicado um problema de justiça social, é evidente que essa tal de eficácia está sujeita também aos critérios científicos. Em Goiânia, os muitos técnicos presentes, se de um lado perceberam o testemunho dado pelos agentes de pastoral e sua grande sensibilidade social, do outro constataram uma insuficiente preocupação política e um certo dualismo entre o econômico e o humano, que levava a esquecer ou esvaziar o primeiro. A sensibilidade, que se expressava facilmente no protesto ou na profecia, podia impedir a descoberta de um caminho tático viável da situação constatada; como, também, a presença de um modelo econômico opressor podia levar a desconsiderar o nível próprio da economia numa falsa oposição com o humano. Daí a necessidade, partindo sempre da prioridade da prática, de uma análise científica da realidade, recorrendo ao auxílio das ciências humanas. Dai, também, a necessidade de descobrir ações concretas, possíveis e acessíveis às condições da igreja, dentro de uma perspectiva mais global de continuidade. Para o bem da verdade, devemos dizer que em Goiânia foram apresentados trabalhos que estão nessa perspectiva. Por exemplo, a experiência da prelazia do Acre e Purus, que chegou a elaborar um catecismo da terra.2 As conclusões do encontro, não deixaram de ser concretas, apresentando caminhos viáveis como o da LEI e o do ASSOCIATIVISMO, isto é, ações que saibam explorar o âmbito de justiça que a lei oferece e que procurem uma sempre maior gru2 Cf. Dom MOACYR GRECCHI. “Comunidade de Fé e Homem Novo na. Experiência da Igreja. do Acre e Purus”, REB, dezembro de 1974, pp. 896-917. 216 Revista ceas 233.indd 216 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Bispo da amazônia – a conversão ao posseiro: reflexões... palização das bases nas práticas de defesa dos próprios interesses. Contudo, parece que deva ser feito um esforço sempre maior por parte dos agentes de pastoral para resolver o problema da eficácia. Doutro lado, não são isentos de contestação os teóricos, os técnicos, que com facilidade, atrás do adjetivo “científico”, correm o risco de impor modelos apriorísticos, sem captar a capacidade “científica” do povo. A este propósito, parece desejável um diálogo - difícil? - sempre mais intenso entre agentes de pastoral e técnicos para poder aprimorar a prática eclesial. Antes de terminarmos, aqui também para evitar equívocos, devemos completar a significação da ação profética. É uma palavra que deve pronunciar-se sobre o “aqui e agora” com aquele conteúdo de viabilidade acima indicado, contudo é alocução em mistério, isto é, sempre aponta para um além que supera o nível da justiça humana. A palavra profética, isto é, a evangelização, nunca pode ser pronunciada em absoluta identidade com a palavra econômica ou política. Encontrando a terra e falando dela, encontra alguém que não se identifica com ela. Neste sentido não deve ser eliminada a tensão terra-céu e a plenitude do conceito cristão de justiça que implica a “justiça de Deus, que se obtém pela fé”. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 217 217 27/09/09 10:04 POBRES E RICOS CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º 48, mar.-abr. 1977) Faz tempo algo está mudando na Igreja do Brasil. Constatamos todo um esforço de vastos setores em direção a uma “pastoral popular”, uma pastoral prioritariamente preocupada com as camadas populares, os setores da sociedade mais oprimidos e marginalizados, operários, biscateiros, camponeses, a grande maioria do povo brasileiro que ocupa o campo e os grandes bairros periféricos das cidades. Entram nesta perspectiva grande parte do trabalho das comunidades eclesiais de base, vários movimentos especializados de lavradores e operários, as Comissões Pastorais da Terra, o Conselho Indigenista Missionário, centros sociais urbanos, ate. Atrás desta orientação há uma opção evangélica, o desejo de favorecer os “pobres”, de viver no meio deles, de realizar um trabalho que seja efetivamente sinal de libertação para os oprimidos. Parece ser possível constatar que esta orientação, que sempre esteve presente na história da Igreja, mas quase sempre minoritária e abafada por uma orientação oficial ou aprisionada por vários equívocos e ilusões, consegue hoje alcançar uma certa amplitude chegando a pôr vários questionamentos. Descobre-se o paternalismo da perspectiva antiga que buscava levar o rico a ajudar alguns pobres, deixando estes últimos numa situação de maior dependência e na mesma ou maior pobreza; descobre-se quanto a igreja ficou presa pela mentalidade individualizante, sem possibilidade de perceber os problemas estruturais, os problemas sociais gerais. Tais questionamentos não ficam 218 Revista ceas 233.indd 218 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pobres e Ricos no âmbito de alguns grupos de base isolados, mas chegam a ser postos pela Comissão Representativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Na Comunicação de 25 de outubro de 1976 os bispos reconhecem o “duplo tratamento” que a nossa sociedade reserva aos “pobres” e aos “poderosos”; afirmam que a igreja deve seguir o exemplo de Cristo: “sua opção e seus prediletos são os fracos e os oprimidos”; e, por fim, reconhecem o erro da antiga pregação, que aconselhava “paciência e resignação”. 1. E OS RICOS? Diante de tudo isto não faltaram e não faltam várias reações fora e dentro da igreja, algumas escandalizadas com tal atitude considerada “particularista”. É necessário, no nível, estreito por conjuntura histórica, das lutas ideológicas intra-eclesiais - que, porém, nascem de problemas concretos como “terra”, “salário”, etc. -, tomar consciência destas reações, de suas motivações, de sua consistência. Ficando no âmbito da igreja, pretendemos nestas páginas refletir brevemente sobre uma das acusações feitas à pastoral popular de um lado, introduz um conflito entre pobres e ricos, excluindo estes últimos, colocando-se assim numa posição não evangélica; do outro lado, suscita o ódio e estimula a violência, contra o preceito evangélico. Seja nos encontros de pastoral, seja em documentos mais oficiais, diante da opção de uma pastoral que pretende defender os direitos dos pobres, quase sempre levanta-se a pergunta: e os ricos? As dificuldades multiplicam-se: • Cristo não fazia diferença entre rico e pobre, procurava a todos. Esta posição é defendida também pela CNBB do Sul: “Jesus também trata os ricos, recebe-os, visita-os. Prega aos ricos talvez mais do que aos pobres, concitando-os à conversão, à pobreza de coração, à prática da justiça. Jesus comia com os ricos, alertava-os contra os perigos da riqueza. A exemplo de Cristo, a igreja deve contatar os pobres e os ricos. Deve integrar os marginalizados e os grupos de influência em comunidades cristãs” É clara a divergência com o documento da Comissão Representativa. • Antes de serem ricos ou pobres, camponeses ou operários, os homens são pessoas e, neste nível, devem ser igualmente atingidos pelo anúncio do evangelho. • Podemos formar duas igrejas, uma de pobres e outra de ricos? Devemos formar comunidades eclesiais também com os ricos. • Trabalhar com os pobres é mais fácil, por isso a atual orientação; mas não devemos esquecer os ricos, pois, apesar da dificuldade, são eles que vão dirigir a sociedade... Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 219 219 27/09/09 10:04 Cláudio Perani • Favorecendo os pobres e sua conscientização, pode-se desencadear um caminho de violência não mais controlável. • A igreja, e os religiosos em particular, devem ser elo entre ricos e pobres, procurando sem lutas, o entendimento e a solução dos problemas. • Por último, como a mais violenta, a acusação fácil de subversão ou de marxismo quando o trabalho considera as divisões de classe. Acusação esta que se ouve também a partir de setores de dentro da igreja. Podemos reduzir a duas as dificuldades apresentadas contra uma política pastoral que escolhe os pobres: o universalismo da salvação e o mandamento do amor. Se o evangelho não faz exceções e se pretende apresentar um caminho de salvação válido para todos os homens, deve ser igualmente anunciado a todos. A igreja não pode introduzir distinções, privilegiar alguns e excluir outros. Os ricos, também, têm direito a ouvir a boa nova do evangelho e a igreja deve trabalhar com eles. Esta é a objeção mais presente e que parece dificultar tremendamente uma pastoral que privilegie determinadas categorias. A outra dificuldade deriva diretamente do mandamento evangélico “amai-vos uns aos outros”, com sua exigência radical de amar até os inimigos. Parece que tudo isso deva levar a um trabalho de paz, diálogo e reconciliação, evitando revelar ou aprofundar divisões, como no caso de uma pastoral que optasse para a defesa dos interesses dos pobres. São essas as objeções que pretendemos esclarecer. Seria evidentemente necessária uma conceituação mais rigorosa dos termos “pobres” e “ricos” situando-os a partir de uma definição de classe. Contudo para o nosso trabalho, achamos suficiente a interpretação comum dos termos, com a advertência de não fazer uma simples transferência da linguagem sociológica. Em segundo lugar, sendo que se apela para a Bíblia, pretendemos simplesmente contestar tais objeções recorrendo à mesma Sagrada Escritura. Somos conscientes do risco de uma utilização ideológica. Mas, achamos correto, pois se trata de desmascarar quanto de ideológico existe na interpretação vigente. De outro lado, o uso ideológico terá que ser superado, evitando reducionismos indevidos e não pretendendo justificar com a Bíblia todo e qualquer esquema da pastoral atual. 2. ASPECTO IDEOLÓGICO Poderíamos multiplicar as objeções e os exemplos. O simples fato da facilidade e da amplitude deste tipo de reação leva-nos a refletir sobre as razões, conscientes ou inconscientes, que podem estar presentes. Sem dúvida, uma explicação está no envol- 220 Revista ceas 233.indd 220 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pobres e ricos vimento de uma parte da igreja com os setores dominantes da sociedade. É, por isso, necessário reconhecer o aspecto ideológico do problema. Habitualmente as objeções apresentadas apelam para a Sagrada Escritura. Acontece que não se percebe a conotação fortemente ideológica da interpretação que se dá. Hoje, exatamente por razão desta “prática” com os pobres e, no plano das ciências, pelo levantamento de várias suspeitas, podemos reconhecer a influência de conçepções alheias à Sagrada Escritura. Concepção “individualista”: há dificuldade em pensar em termos estruturais ou de classe, em termos de problemas sociais globais. O mesmo uso da linguagem é revelador disto: utilizam-se mais facilmente as palavras ricos, pobres, humildes, e não opressores-oprimidos, dominantes-dominados, pois se pensa sempre em termos individuais, colocando logo o problema moral da responsabilidade pessoal e da conversão interior. Esquece-se completamente o conceito teológico de “pecado original” que ajudaria não pouco para entender a realidade de uma estrutura de opressão. Concepção “espiritualista”: no sentido de uma interiorização dualista que esvazia o conteúdo material da pobreza evangélica. Sem dúvida o pobre bíblico é o homem da aliança, aquele que procura tomar-se disponível para o plano de Deus; mas a Bíblia não elimina o conteúdo material da pobreza, o lugar social no mundo, na história e na sociedade, como multas vezes acontece numa interpretação, simplista e interessada, do conceito “pobres de espírito”. Ideologia de conciliação: elimina do evangelho e da prática cristã toda espécie de conflito e de divisão. Apela-se para o diálogo, a qualquer preço, como exigência fundamental do mandamento do amor de Deus e do próximo. De consequência, todo conflito é considerado mal e pecado. Em particular, a palavra e a realidade da “luta de classe” são banidos do vocabulário cristão. Em nome de uma pretensa harmonia fraterna apela-se para o interclassismo, deixando de perceber as profundas divisões que existem entre as classes sociais, e suas causas, e – conseqüentemente – sem poder encaminhar uma ação que de fato supere as divisões. Em síntese, se é verdade que não podemos encontrar na Bíblia a hodierna problemática de “classe”, encontramos, porém, uma clara tomada de posição quanto ao problema das relações de opressão entre os homens, problema que está na base seja do tema riqueza/pobreza bíblico seja da atual análise de classe da sociedade. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 221 221 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 3. A SAGRADA ESCRITURA Antes de considerarmos diretamente as duas dificuldades apresentadas, queremos dar uma breve panorâmica bíblica sobre os temas da riqueza (pobreza) e dos conflitos. A Bíblia fala seguidamente contra os “ricos” e a “riqueza”1, sabendo, porém, que “rico” na Bíblia não é simplesmente aquele que tem bens materiais, mas aquele que os acumulou às custas dos outros. quer dizer, dos “pobres”, e a “riqueza” não é condenada enquanto simples bem-estar, mas enquanto causa e motivo do empobrecimento de muitos. Eis a seguir, como exemplo, alguns textos tirados do Antigo Testamento. Amós, o profeta agricultor, lança estas invectivas contra a aristocracia e os detentores dos monopólios comerciais: “Ouvi isto, vós que engulis o pobre e fazei perecer os humildes da terra, dizendo: Quando passará a lua nova, para vendermos o nosso trigo, e o sábado para abrirmos os nossos celeiros, diminuindo o efá, aumentando o siclo, e falseando a balança para defraudar? Compraremos os necessitados por dinheiro e os pobres por um par de sandálias” (Amós, 4-6). “Por isso, porque oprimis o pobre e lhe estorquis tributos em trigo, não habitareis estes palácios de pedra que construístes; não bebereis o vinho destas vinhas de escol que plantastes. Porque eu conheço o número de vossos crimes e a gravidade de vossos pecados, sois opressores do Justo, exatores de dádivas e violadores do direito dos pobres em juízo” (Amós 5, 11-13)2 1 Aproveitamos o estudo de JOSÉ M. GONZALES-RUIZ:, “Prospettiva biblica. della societá di classe”, Studi Francescani, 1973, n. 3-4, pp. 301-312. 2 Na literatura de cordel Jorge Pereira Lima assim traduz: “Com profunda inspiração Amós dá seu forte brado Pisais os pobres exigindo Tributo exagerado Não habitareis nas casas Que tendes edificado …............................................ Amós fala dos tributos Que se paga em cereal 222 Revista ceas 233.indd 222 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pobres e ricos Habacuc, o profeta inquisidor, condena as riquezas sob a forma especifica da usura: “Ai daquele que procura lucros criminosos para sua casa, e quer colocar bem alto o seu ninho, para escapar às mãos da adversidade!” (Habacuc 2, 6-9) Miquéias, outro profeta agricultor, investe contra os poderosos do reino: “Ai dos maquinadores de iniqüidade, dos que meditam o mal nos seus leitos, e o executam logo ao amanhecer do dia, porque têm o poder na mão! Cobiçam as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas; fazem violência ao homem e à sua familia, ao dono e a sua herança” (Miquéias 2,1-2) Na mesma linha os profetas Isaías e Jeremias: “Ai de vós que ajuntais casa com casa e que acrescentais campo a campo, até que não haja mais lugar, e que sejais os únicos proprietários do país.” (Isaías 5,8) “Ai daquele que para si construiu esse palácio por meios desonestos, e seus salões violando a equidade. Ai daquele que faz seu próximo trabalhar sem ser pago e lhe recuse o salário.” (Jeremias 22, 13) A denúncia é explícita e direta. “Ai de vós!” é dirigido contra aqueles que acumulam riquezas, terras e casas às custas dos pobres. Fatos bem atuais! O Novo Testamento, contrariamente ao que muitos pensam não elimina esta linguaSe por caso de questão Que vá ao Tribunal O rico é sempre quem ganha Pois a justiça é venal …............................................ Os sacerdotes calados Não levantam sua voz Fazem parte da injustiça Com medo de ficar sós Aceitam como Pilatos A repreensão de Amós (em Amós Camponês Profeta, Caruaru) Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 223 223 27/09/09 10:04 Cláudio Perani gem violenta do Antigo; ao contrário, é confirmada nos gestos e nas palavras de Jesus. Os ricos, enquanto opressores dos pobres, são igualmente condenados. “Ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação! Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome! (Lucas, 6, 24-25) É interessante notar como a nossa catequese esqueceu facilmente este texto, preferindo insistir sobre as bem-aventuranças de Mateus: “Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o reino dos céus” (5,2), e incluindo com facilidade na categoria “pobre de espírito” seja os pobres seja os ricos, sem preocupar-se em ter que denunciar a situação de opressor em que os ricos se encontram. Tal esquecimento leva a descobrir a pouca liberdade da igreja e sua ligação com as classes dominantes. Na parábola do rico Epulão (Lucas, 16, 19-31), a oposição é total entre o homem rico e o mendigo Lázaro. Entre os dois há um. grande “abismo” que não pode ser superado. Não há reconciliação possível. No caso de Zaqueu (Lucas, 19,1-10), “homem muito rico”, a conversão e o ato de fé em Jesus são possíveis unicamente tomando consciência da exploração dos obres e decidindo mudar: “Senhor, doravante darei a metade dos meus bens aos pobres, e, se tiver defraudado alguém. restituirei o quádruplo”. Temos que reconhecer quanto é “material” a exigência de uma conversão! No episódio do jovem rico o problema da salvação passa necessariamente pelo problema da riqueza: “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os ricos”! (Marcos 10,23) A Epístola de São Tiago encontra outras razões para condenar os ricos: “Não são por ventura os ricos os que oprimem os pobres e os arrastam aos tribunais?” (2,6) “Vós ricos chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós virão (...). Eis que o salário que defraudastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor (...). Condenastes e mataste o Justo, e ele não vos resistiu” (5,1.4.6) Já vimos algumas palavras explícitas de Jesus sobre a riqueza. De fato, devemos reconhecer que Jesus frequentou os ricos, pregou para eles, exigiu pobreza, não só de coração, 224 Revista ceas 233.indd 224 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pobres e ricos mas real. Mas é fundamental, sob pena de esvaziar totalmente o evangelho, reconhecer as diferentes atitudes de Jesus. Em primeiro lugar, Ele se identifica com os pobres e dá como sinal da chegada do reino, como princípio orientador de sua pastoral, “os pobres são evangelizados”. É uma escolha clara e definitiva, que vai marcar toda a atitude sucessiva. Esta identificação com os pobres não significa – já vimos – uma valorização da pobreza, mas a recusa de uma sociedade dividida em classes, onde alguns oprimem a maioria, onde não se respeita a fundamental igualdade entre os homens. Em segundo lugar, Jesus que é o reconciliador por excelência, centra toda sua pregação em dividir radicalmente pobres e ricos: os primeiros são felizes, os segundos são amaldiçoados; os pobres são salvos, os ricos dificilmente entrarão no reino, ou melhor, enquanto ricos não terão acesso à salvação. E se por “rico” nós entendemos, mais em geral, as classes dominantes de Israel, os “anciãos do povo”, o alto clero, os escribas, os fariseus etc., podemos facilmente reconhecer como Jesus explicitamente se opõe a eles, numa oposição irreconciliável. Está em contato com eles, mas para denunciar: “Ai de vós, escribas e fariseus!”; ensina em parábolas, para que não entendam; são adversários e foge deles... Tanto assim que estas classes reagiram, organizaram-se e mataram-no. Em síntese, se é verdade que Jesus vem para todos, que encontra ricos e pobres, é também verdade que atua diretamente, segue – por assim dizer – duas pastorais. Aos pobres estende as mãos para levantar e ajudar; diante dos ricos aponta o dedo para denunciar. Com estes últimos exemplos fica introduzido o tema dos conflitos. Jesus que veio realizar a paz no mundo, tem como missão histórica revelar o conflito: “Não julgueis que vim trazer a paz sobre a terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre o filho e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão pessoas de sua própria casa.” Este texto é facilmente esvaziado de seu conteúdo “violento” por uma repulsa quase instintiva a tudo aquilo que implica luta, associando o evangelho com um caminho fácil de diálogo, compreensão e amor. Mas Jesus não recusou assumir atitudes violentas, procurando, ao contrário, em lugar de resolver imediatamente certas divisões, resolvê-las e aprofundá-las. Envia os discípulos “como cordeiros entre lobos” (Lucas 10,3), prevê a perseguição: “Vos lançarão as mãos e vos perseguirão, entrevando-vos às sinagogas e aos cárceres, levando-vos à presença dos reis e dos governadores, por causa de mim.” (Lucas, 21,12) Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 225 225 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Expulsa do templo os negociantes derrubando-lhes as mesas (Marcos 11,15-17) e, sobretudo, ataca diretamente os fariseus: “Ai de vós fariseus que (…) desprezais a justiça e o amor de Deus (…) gostais das primeiras cadeiras (…) devorais as casas das viúvas (…).” (Mateus 23,13 ss.) Com suas escolhas e sua pregação subverte a ordem estabelecida: os pequenos e os pobres são preferidos aos poderosos da época. Evidentemente, estes últimos não aceitam tal preferência e reagem violentamente: “pegam em pedras para lhe atirar”, “procuram então prendê-lo”, “e desde aquele momento resolveram tirar-lhe a vida”. A vida de Jesus não foi uma vida de tranquilidade e harmonia. Neste contexto deve ser interpretado o mandamento do amor. É apresentado no Evangelho como sendo “o caminho” da salvação, e com a novidade de um radicalismo total: “Eu, porém, vos digo: Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem e vos maltratam” (Mateus 5,44). Afirmar a necessidade de amar os inimigos já significa reconhecer a existência deles e a possibilidade de não odiá-los. O problema está em saber como terá que se concretizar este “amor”. Pelo visto anteriormente, será necessário antes de tudo respeitar as exigências da justiça, eliminar as causas das desigualdades e da opressão. Amar os ricos, no caso, deve implicar a revelação e a superação das situações que impedem a verdadeira reconciliação, até chegar – se for necessário – a uma atitude violenta. Na medida em que as relações, por exemplo, “empregador – empregado”, constituem relações de dominação, os empregadores são, objetivamente, para os trabalhadores “inimigos de classe”. Não se trata de ter um ódio pessoal, mas de aceitar uma luta para quebrar tais relações de dominação.3 Como a igreja viveu o ensinamento e o exemplo de Jesus nas primeiras comunidades? É a Eucaristia que constitui a igreja como sinal da comunhão perfeita entre os homens e da presença de Deus na Comunidade. Ora a Eucaristia tem sua pré-figuração no episódio da multiplicação dos pães: todos foram saciados. E a reconciliação entre pobres e ricos exigida pela Eucaristia é feita – nas primeiras comunidades – ao redor dos bens materiais: “Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um” (Atos 2, 44-45) Quando os bispos do Sul afirmam a necessidade de “integrar os marginalizados e os grupos de influência em comunidades cristãs”, resta saber o mais 3 Cf. GÉRARD FOUREZ, “Luta de classe e Comunhão Cristã”. Cadernos do CEAS, n. 36, p. 44. 226 Revista ceas 233.indd 226 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Pobres e ricos importante: ao redor de que será feita esta integração? Na medida em que mascarar os conflitos, abraçando ricos e pobres em nome da caridade cristã, contribuirá para manter uma situação de injustiça e, de conseqüência, impedirá uma verdadeira comunhão. Esta será possível só colocando a realidade da desigualdade na renda, nas condições materiais, na participação nas decisões nos vários níveis, etc.; numa palavra, revelando a divisão, a luta que existe entre marginalizados e grupos de influência. A Eucaristia deve manifestar com clareza tudo isso, para poder suscitar uma conversão concreta: sem esquecer que é, contemporaneamente, anúncio e comemoração da plena comunhão final. 4. CONCLUSÕES Resta recapitular o que foi dito ao redor das duas objeções centrais apontadas. O problema da salvação universal. O universalismo da salvação é claro pelos dados da Escritura. Todos são convidados. “Há porém os filhos da luz - afirmam os bispos - que recebem a mensagem da salvação e há os filhos das trevas que se recusam a recebê-la”. Contudo, parece-nos que tal resposta não esclarece bem o nosso problema. É perigoso enveredar pelo caminho do reconhecimento dos que se salvam ou não. Pode levar a um julgamento que foge às nossas possibilidades. A objeção como tal da salvação universal está mal colocada. Não se trata disto, mas do caminho concreto. histórico, em que se manifesta para mim o evangelho e as condições para entrar no Reino. Neste sentido é forçoso reconhecer que existe uma escolha, um caminho “particular”, uma preferência para os pobres. São eles que têm as chaves do reino de Deus (cf. Lucas 16,9), e, por isso, todos são obrigados a confrontar-se com eles. Há condenação clara do caminho da apropriação da riqueza enquanto causa da existência da pobreza. Uma vez que existem ricos e pobres, como uma realidade não fatalista, mas histórica, fruto da iniciativa dos homens, uma vez que existem opressores e oprimidos, a igreja é chamada a optar, a definir-se. Talvez, em lugar de falar em “opção pelos pobres” seja mais compreensível falar de “defesa dos direitos dos fracos”. Quando se fala de direitos humanos, é mais que evidente a divisão que a nossa sociedade opera, é fácil reconhecer a diferença entre ricos e pobres. Se a sociedade reserva aos homens um duplo tratamento, deve existir também uma dupIa pastoral, exigências diferentes de conversão, segundo o lugar que os homens ocupam. Dizer que todos são Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 227 227 27/09/09 10:04 Cláudio Perani pessoas, que todos devem converter-se a Deus, que a todos é oferecida a salvação, sem considerar o lugar concreto ocupado, as relações de dominação existentes entre os homens, significa abstrair do mundo e da história, fazer uma pastoral abstrata que não atinge as pessoas não revela o problema fundamental da opressão e, em consequência, torna impossível a conversão. Temos dito que a solidariedade com os pobres é um caminho particular. De fato não é verdade. É o único caminho possível e, por isso, universal. Não significa exclusão dos ricos, mas apontar para eles a exigência dos pobres, que é a exigência de Deus: a abolição de uma estrutura social de opressão e espoliação. Os ricos podem salvar-se só desaparecendo enquanto opressores. O problema da reconciliação. O caminho do amor e da paz não pode ser reduzido a uma reconciliação superficial. Temos visto como o evangelho, que apresenta o caminho único do amor para com o próximo, não exclui a luta e as oposições, ao contrário, às vezes parece provocá-las. O encontro com os pobres revela as profundas divisões que existem na nossa sociedade, o papel opressor da riqueza. Manifestam-se relações sócio-econômico-politicas de dominação que não permitem a aplicação de um modelo de reconciliação válido para as as relações pessoais. A luta e a opressão presentes na sociedade não podem ser mascaradas, sob pena de tornar impossível a conversão. A doutrina espiritual mais tradicional sempre insistiu sobre a necessidade de individuar e revelar o pecado e o demônio. Deve ser agora aplicada à análise das relações sociais, evitando o perigo de impedir o reconhecimento das divisões presentes na sociedade, motivados pela doutrina do diálogo e da comunhão cristã universal. Tais divisões devem ser reveladas e enfrentadas com a eventual violência que podem implicar. Isso não significa alimentar o ódio do inimigo ou ir contra a paz, ao contrário, pode representar o verdadeiro caminho do amor. É necessário redescobrir as dimensões sociais e políticas da teologia do amor; reconhecer que o amor é revolucionário e deve assumir os conflitos. Sem uma certa luta, um determinado esforço, nunca se alcançará superar a sociedade dividida em classes. Negar a luta de classe pode significar o oposto do que pretende a reconciliação cristã, porque seria ratificar uma situação de divisões. Para concluirmos, sem dúvida, diante das dificuldades que podem levantar o particularismo e a violência de uma pastoral que defende os pobres, mais que estas considerações teóricas, é fundamental considerar a prática da igreja. Descobriremos a fecundidade, seja para uma renovação interna seja para um verdadeiro serviço à sociedade, desta pastoral que faz emergir com nitidez o verdadeiro núcleo evangélico. E as dúvidas desaparecerão. 228 Revista ceas 233.indd 228 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 LIBERTAÇÃO E ESPIRITUALIDADE CLAUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º66, mar.-abr. 1980, p. 62-72.) Numa perspectiva de fé, não é difícil reconhecer o sopro do Espírito que atingiu a América Latina. No Brasil e nos outros países do continente assistimos à renovação de uma ‘”igreja que nasce do povo”, de uma igreja que opta pelos pobres e toma-se “igreja dos pobres”, entendida não como igreja paralela, mas como centro renovador e integrador da igreja toda. E uma caminhada, ainda iniciante, com todos os limites de um processo humano, mas já dá para perceber os frutos: recria-se a igreja, suas estruturas, funções e mentalidade são renovadas, opera-se uma mudança, uma conversão, uma “passagem”, em sentido bíblico. Tal renovação - necessariamente - atinge também a espiritualidade, quer dizer, o caminho concreto do encontro com Deus, da procura e da manifestação do Espírito, da compreensão e vivência da fé. Na tradição católica, espiritualidade é o caminho da perfeição que se resume na vivência do único mandamento; “amar a Deus e ao próximo”. Quer iluminar a relação pessoal do homem com Deus, considerando a globalidade da existência cristã. Se existe uma única espiritualidade cristã, no sentido de assumir os dados fundamentais do Evangelho, ao mesmo tempo as realizações concretas da vivência evangélica podem variar historicamente. Hoje, na América Latina, surge um novo caminho, uma nova luz se manifesta. Para muitos há como uma passagem das trevas para a luz; antes, no depoimento de muitos - apesar de várias praticas espirituais - não se enxergava, parecia tudo correr bem ao próprio redor. Nas palavras do profeta: “Exclamam: Tudo vai bem! Tudo vai bem! quando tudo vai mal” (Jer 6,14). Agora descobre-se a injustiça, o pecado, a equivocidade da própria situação e se quer mudar. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 229 229 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Há várias experiências em diversos lugares, no Brasil e na América Latina toda, diferentes entre si, mas também apresentando coincidências reveladoras. Experiências cristãs vividas antes de serem refletidas, mas que demonstram que o Espírito do Senhor está presente em nossa história. Sobre tais experiências queremos refletir, não para sistematizá-las numa doutrina fechada, mas simplesmente para recolhê-las, aprofundar certos itens, com a intenção de prestar um serviço e incentivar a procura1. Também porque há dúvidas e acusações que podem dificultar a descoberta do Senhor. Afirma-se que diminui a oração e desaparece a vida espiritual e que há uma demasiada insistência no aspecto sócio-político; há o medo que valorizando os pobres se esqueça a Deus. Esse breve artigo, que pretende dirigir-se prioritariamente aos agentes de pastoral, é por isso limitado aos dados e ao enfoques relativos às experiências de padres, freiras e leigos comprometidos com a pastoral popular, sem excluirmos lideranças populares comprometidas no trabalho. Apesar de o povo, em sua vivência de fé, ser referência fundamental, aqui não se diz nada da espiritualidade dos camponeses, operários, moradores de bairros populares, etc. Seria importante para caracterizar o que podemos chamar de “espiritualidade da libertação”. É o limite da nossa perspectiva. 1. OS FATOS 1. O ponto de partida, habitualmente, é o contato com a situação concreta de opressão dos setores populares. São padres, freiras, leigos, comunidades religiosas, grupos de jovens ou de profissionais que mudam de lugar e se aproximam dos pobres. Pobres considerados não abstratamente, mas na realidade de sua situação social: são a maio1 Bibliografia consultada: GUTIÉRREZ, G., Teologia da Libertação: perspectivas, Petrópolis, Vozes, 1975; id., Teologia desde el reverso de la historia, Lima, CEP, 1977; VÁRIOS, Cruz y Ressurrección, México, CRT-SERVIR, 1978; VÁRIOS, Experimentar Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1974; SEGUNDO, J.L., Liberación de la Teologia, Buenos Aires, Lohlé, 1975; GALILEIA, S., Espiritualidade da libertação, Petrópolis, Vozes, 1975; CASTILLO, A, “La Espiritualidade Latinoamericana emergente”, Christus, n. 500, julho de 1977, pp. 49-53; EQUIPE TEÓLOGOS CLAR, Pueblo de Dios y Comunidad Liberadora, Bogotá, CLAR, 1977; PAOLO, A., Diálogo de la liberación, Buenos Aires, Lohlé, 1970. 230 Revista ceas 233.indd 230 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade ria da população brasileira, são as multidões, os camponeses, os operários, os pequenos funcionários, os biscateiros, as empregadas domésticas, os moradores de favelas, os índios, etc. Há vários níveis de contato: da solidaridade que se expressa em diferentes formas, das visitas periódicas, até à convivência morando ou trabalhando com os pobres, modificando o próprio estilo de vida, a própria mentalidade. Neste primeiro contato é imediato o conhecimento da opressão, da escravidão e das injustiças que o povo sofre. Mas há também o desejo de compreender melhor a situação e de conhecer suas causas para contribuir numa mudança. Entra aos poucos a prática de uma análise da realidade antes desconhecida, mas que se revela importante para a formação de uma consciência mais crítica. Não somente se constata a opressão do povo; impressiona sobretudo sua coragem, sua resistência, sua luta, sua fé que continuam firmes nas maiores dificuldades e suscitam admiração e desafio nos agentes de pastoral. Outros contatos se revelam importantes; o encontro e a colaboração com pessoas dedicadas à causa do povo, que escutam seus clamores, mas que não expressam a fé cristã. Tal encontro, muitas vezes, ajuda para descobrir certo fechamento eclesial, questiona atitude e mentalidades. Por último, lembramos a contribuição de nível mais teórico - que às vezes é ponto de partida - oferecida por cursos e seminários, pelos documentos oficiais (Vaticano II - Medellín - Puebla - CNBB) e pela teologia da libertação (Gutiérrez, Boff, Mesters, etc) 2. A conseqüência deste impacto - a depender evidentemente da liberdade de cada um - é o conflito e a ruptura com a segurança anterior, com os antigos esquemas e instrumentos que alimentavam a vida espiritual, com as instituições e os métodos utilizados no trabalho apostólico. Espera-se uma ruptura com tradições familiares, com a formação recebida no seminário, com a comunidade religiosa com os símbolos cristãos tradicionais: com certos momentos litúrgicos. O cristão é questionado nas suas motivações mais profundas, nos conteúdos de fé mais fundamentais: a Igreja, Jesus Cristo, Deus. A antiga segurança e o conjunto de práticas religiosas revelam-se impotentes diante do clamor da miséria. Pior ainda, muitas vezes aparecem como uma espécie de prisão ou favorecendo a situação de opressão, mesmo quando pretendem eliminá-la. Nas Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 231 231 27/09/09 10:04 Cláudio Perani palavras de uma pessoa do povo: “Antes os padres fechados nos seus conventos, e as freiras também, não podiam dar-se conta da verdadeira situação. Creio que nem eles mesmos conheciam verdadeiramente a Deus e faziam-nos conhecê-lo como eles criam”. Descobre-se uma imagem de Deus e de igreja vinculada ideologicamente com a ordem atual que discrimina e oprime a maioria do povo. Não pode não haver um forte questionamento e uma reação. 3. Ao mesmo tempo existe uma decisão, prévia a qualquer ulterior explicação, uma opção por uma vida comprometida com os pobres, a serviço deles, engajada na luta crucial da nossa época. Há como uma intuição firme de que este é o caminho do compromisso cristão. E, em conseqüência, o caminho do encontro com Deus: “Quando quero encontrar a Deus. visito as roças, entro nos casebres...”.A ruptura anterior não resulta num abandono ou numa revolta estéril, ao contrário, a opção pelos pobres significa uma resposta a um apelo, um compromisso vital que abrange a existência toda e projeta nova luz também na relação com Deus. Constitui-se no critério fundamental de renovação e sintetiza a característica principal da nova espiritualidade. É aquilo que teremos que aprofundar. 2. MARCOS FUNDAMENTAIS 2.1. Opressão do povo À luz da fé, vemos a distância crescente entre ricos e pobres como um escândalo e uma contradição com o ser cristão. O luxo de uma minoria constitui um insulto à miséria das grandes massas. Esta situação é contrária ao desígnio do Criador e à honra a ele devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, aliás, bem mais grave por acontecer em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de poder mudar tal situação: “Que sejam derrubadas as barreiras da exploração... contra as quais são impotentes os melhores esforços de promoção”2. O texto de Puebla sintetiza, interpreta o que se passa ao constatar o clamor do povo e sua opressão. Há um impacto nas pessoas que entram em contato mais direto e verdadeiro com a situação do povo ao constatar a gravidade e o escândalo desta mesma situação. Como compreendê-lo? 2 Conclusão da Conferência de Puebla, Ed. Paulinas, n. 17 do texto provisório. 232 Revista ceas 233.indd 232 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade • Não se trata unicamente de um momento sociológico, quer dizer, de um simples conhecimento, espontâneo ou científico, mas que fica no nível da compreensão da realidade pelo que oferece exteriormente. As análises são necessárias, há níveis de realidade que são econômicos, sociais e políticos, e são conhecidos enquanto tais. Mas a compreensão vai além. • Nem se trata de um simples momento emocional, que pode estar presente e influir: o sofrimento que sinto ao descobrir a situação do outro, a angústia do contraste com o meu bem-estar, ou o sentimento de culpa. • É um momento teológico, quer dizer, é um momento de revelação: revela-se o escândalo da injustiça e do pecado social; revela-se o Juízo de Deus que condena; revela-se o apelo de Deus que convida ao compromisso. A situação é algo - e é compreendida como tal - que grita vingança aos olhos de Deus. Na linguagem bíblica é o "tempo" de Deus, tempo de visita (Lc 19,44), tempo favorável (2 Cor 6,2), tempo de julgamento e de definição, carregado de esperança (Rm 13,11). Está relacionado com atos particulares de revelação e de salvação operados por Deus. Para os opressores e tempo de desgraça, para os oprimidos, de libertação. É tempo de graça: há a percepção do mal e, contemporaneamente, da presença e da força de Deus que salva. Na linguagem da tradição espiritual é um momento do agir dos espíritos, quando se impõe uma decisão pessoal. Tudo isso pode não estar refletido explicitamente; aliás muitas vezes as palavras "espírito", "fé" "graça", “Deus”... não aparecem - também porque ligadas a uma experiência alienante de espiritualidade -, mas estão presentes nas reações e nos passos encaminhados pelos agentes. O povo em sua situação concreta é a mediação visível: somos por eles questionados e convertidos. Compreendemos que não se pode ir ao povo impunemente... 2.2. A conversão “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos pela renovação do vosso espírito” (Rm 12,2). O impacto recebido não significa necessariamente uma escolha e uma mudança. Pode-se fugir, deixando de se comprometer com a luta do povo. Para outros, nessas condições de luta, pode desaparecer o encontro com o Senhor. Muitas vezes a resposta dá início a um caminho difícil de renovação, numa palavra tradicional, de “conversão”, mas com aspectos particulares que devemos analisar. Positivamente. a mudança significa uma solidaridade com os pobres e com sua luta. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 233 233 27/09/09 10:04 Cláudio Perani “Pobre” - como vimos - é purificado do sentido falsamente espiritual, para adquirir o conteúdo concreto das categorias sociais oprimidas na América Latina. “Nesta categoria se encontram principalmente nossos indígenas, agricultores, operários, marginalizados na cidade”3. Pobres, também, enquanto estão tomando consciência de sua exploração, vão se organizando e lutando para uma mudança de estruturas. A solidariedade é com os pobres e com seus movimentos, participando da luta política para eliminar as injustiças. Contemporaneamente, é através dessa solidariedade que se reconhece que o Espírito de Jesus está nos pobres e anima sua luta. São os pobres que permitem a renovação da igreja: “Nestes anos aparece cada vez mais claro para muitos cristãos que a igreja, se quer ser fiel ao Deus de Jesus Cristo, deve tomar consciência dela mesma, a partir de baixo, dos pobres deste mundo, das classes exploradas, das raças depreciadas, das culturas marginalizadas”4. São os pobres que tomam possível a busca de Deus; são eles que têm nas mãos as chaves do Reino de Deus (Lc 16,9). Espiritualidade da libertação significa escolha particular, identificação sociológica parcial: o compromisso com os pobres. Tudo é enfocado a partir deles, que aparecem como a chave para compreender o sentido da libertação e a revelação do Deus libertador. E o mesmo caminho de Jesus, da escolha dos pobres, da fratemidade, e, por isso mesmo, caminho de polêmica e de conflito com o poder. Negativamente, a mudança significa uma dúplice ruptura: com os poderosos do mundo e com determinadas estruturas de igreja. A ruptura se dá com o poder opressor que tem nomes bem concretos: estrutura capitalista, multinacionais, regime ditatorial, classe burguesa, latifundiários... E também com a mentalidade que justifica a ordem atual e que sutilmente penetra em tudo e em todos, até nas mentes dos oprimidos, tornando o discernimento mais difícil. Começase a viver na oposição: oposição ao atual regime, à sociedade atual que explora através de mil formas bem concretas; com as exigências de uma nova ascética (disciplina e austeridade de vida) e as conseqüências previsíveis de uma eventual repressão. Tudo isso já se verificou, tornando atual uma igreja perseguida que renova o testemunho da igreja dos mártires. 3 Ibid., n. 898. 4 GUTIÉRREZ, G., Teologia desde el reverso de la história, Lima, CPE, 1977, p. 54. 234 Revista ceas 233.indd 234 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade A ruptura se dá também com determinadas estruturas de igreja e com um caminho de espiritualidade que acompanhou e sustentou até hoje, dando segurança e alegria. Apesar de haver o perigo de confundir as diversas lutas, talvez esta última seja a ruptura mais dolorosa porque mais pessoal. Descobre-se que os valores mais santos - amor, paz, unidade, oração... - foram desfigurados numa estrutura de exploração. As mesmas idéias de Deus e de Jesus Cristo são instrumentalizadas e postas ao serviço dos opressores. Por várias razões históricas e atuais o que chamamos de sinais “religiosos”, “espirituais”, “sacramentos”, de fato, muitas vezes não revelam o Deus libertador, mas um Deus alienado e alienante, separado da vida, comprometido com o poder. Nossas atuais estruturas e símbolos carregam o peso de uma violência que remonta às origens da evangelização da América Latina. Segundo as palavras de uma Bula papal de 1493: “A fé católica e a religião cristã, sobretudo nos nossos tempos, seja exaltada e em toda parte ampliada e dilatada, procure-se a salvação das almas, deprimam-se as nações bárbaras e sejam elas reduzidas à fé”. Apesar de mudanças profundas, uma certa aliança cruz-espada corre o risco de guardar submissos, como uma vez os índios, hoje os camponeses e os operários. Neste nível a espiritualidade da libertação revela sua tarefa prioritária: a de não se contentar com palavras e símbolos teóricos, mas de considerá-los no condicionamento histórico, cumprindo o papel de desmascarar os equívocos. A confrontação é sempre com o critério dos pobres. Já S. João, mestre de espiritualidade, afirmava: “Aquele que diz estar na luz, e odeia o seu irmão, jaz ainda nas trevas” (Jo 2,9). Tudo o que aparentemente é palavra de luz, mas de fato é treva, deve ser abandonado. Não é Deus, mas um ídolo. O conhecimento de Deus deve estar ligado à causa concreta da libertação. Não é possível crer no Deus libertador sem participar no processo de libertação. 2.3. Análise da realidade Devemos retomar e aprofundar o problema do instrumento de análise da realidade, pois adquire uma função importante na nova espiritualidade da libertação. Esta caracteriza-se por não ser abstrata, mas por tentar ser histórica, considerando o espírito dentro de seu condicionamento estrutural. Uma espiritualidade que renova a melhor tradição da teologia da encarnação. Isso se dá, em primeiro lugar, pelo contato e compromisso com os pobres. A partir daí tem início um processo de desideologização, quer dizer, de desmascaramento de Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 235 235 27/09/09 10:04 Cláudio Perani vários conteúdos pseudo-cristãos, pseudo-libertadores. Mas não é suficiente. As ciências humanas hoje colocam à disposição dos homens vários instrumentos, limitados e parciais, mas sem dúvida indispensáveis, se se quer ver atrás das aparências e suspeitar do que é habitualmente afirmado, para desmascarar os equívocos, as falsidades, a opressão. Tanto mais indispensáveis quando sabemos que as classes dominantes são aquelas que fabricam e veiculam as idéias dominantes na sociedade, idéias que contaminam também a igreja, a teologia e a espiritualidade. Tradicionalmente o espírito era relacionado com o “coração” do homem e não com as estruturas da sociedade, consideradas simples palco das ações humanas; hoje reconhece-se que tudo aquilo que tem a ver com o espírito está intimamente relacionado com a presente situação social, com o modo de produção econômica, com o regime político... Se não se compreendem tais mecanismos estruturais e ideológicos, em lugar de refletir a palavra de Deus, se corre o risco de ser um inconsciente porta voz das idéias da classe dominante. A escolha do instrumento de análise não é fácil. As várias sociologias são imperfeitas e limitadas, mas deve-se escolher aquelas que permitem com maior acerto uma crítica do poder opressor. Os religiosos, por exemplo, através de seu organismo oficial, a CLAR, chegam a optar pela “teoria da dependência nos mesmos termos e com os mesmos alcances com que foi assumida em Medellín (...porque) é uma teoria que aponta para uma práxis libertadora, evangélica”5. Há necessidade de uma crítica da economia política da dominação que nos leve a assumir o caráter antagônico do conflito entre dominador e dominado; sem isso é impossível uma verdadeira identificação com os pobres e se corre o risco de ficar numa aproximação puramente verbal ou com os vícios do antigo paternalismo, que podia ser generoso e sacrificado mas não contribuía para a luta do povo. Neste nível a espiritualidade da libertação não oferece um conteúdo novo, simplesmente um método para discernir melhor. Mas tem suas conseqüências: a necessidade de uma ação concreta coerente com a análise feita e com as causas descobertas. A espiritualidade da libertação pretende ser eficaz. Quanto a isso a fé se revela como insuficiente. Daí o recurso à mediação das ideologias. “Neste sentido positivo, as 5 EQUIPE TEÓLOGOS CLAR, Pueblo de Dios y Comunidad Libertadora, Bogotá, 1977, pp. 40-41. 236 Revista ceas 233.indd 236 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade ideologias aparecem como necessárias para a vida em sociedade, na medida em que são mediações para a ação”6. A espiritualidade libertadora assume tais mediações para poder concretizar uma ação eficaz. É política, evita a falsa imparcialidade do “espírito”, não tem medo de ser parcial. Pode-se dizer, ao contrário, que representa a possibilidade e capacidade de desempenhar conscientemente o papel ideológico do qual depende a real libertação dos homens. Porque adesão ao absoluto da fé e de Deus, “se deixa interpelar e enriquecer pelas ideologias no que têm de positivo”7. A nova espiritualidade aparece como capacidade de fazer convergir numa unidade existencial a contribuição da reflexão científica e da reflexão teológica, onde são assumidos como funda. mentais os conteúdos econômicos e políticos. 3. O PROBLEMA DA FÉ Permanece fundamental o problema da fé. Aparece claro o compromisso político, a unidade de visão e de ação. Para isso foi necessário sacrificar algo de fundamental da tradição cristã? Vimos que o impacto suscitado pela presença dos pobres e pela constatação da injustiça, pode ser interpretado como revelação de Deus. Mas o que significa isso? Que Deus? Que fé? Devemos, nesta altura, explicitar o problema da fé cristã em seu sentido específico, no seu aspecto de transcendência. Sabemos que essa transcendência se historiciza, tanto nos conceitos como na prática da nossa fé. Há, porém, necessidade de refletir sobre o que há de transcendência nessa fé: sua relação com a origem evangélica, com a gratuidade, de Deus de oferecer o dom do Reino, com o fato de nos remeter a uma realidade superior e transcendente que não se identifica simplesmente com os pobres e sua luta apesar de estar aí presente. Devemos falar em Deus, Criador e Senhor do céu e da terra. Tal reflexão é importante, inclusive porque a nova espiritualidade, exatamente neste ponto, é acusada de horizontalismo e de secularização (esquece a dimensão vertical. transcendental, elimina o céu). Não somente; às vezes essa preocupação pode estar presente naqueles que intuíram o caminho novo, exigindo um aprofundamento. Estamos diante de uma mudança na compreensão da fé. Podemos falar de crise no sentido de discernimento, purificação, crescimento. É claro que nem toda crise tem 6 Puebla, op. cit., n. 396. 7 Ibid., n. 399. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 237 237 27/09/09 10:04 Cláudio Perani como resultado uma resposta positiva. Pode ocorrer que a fé explícita seja rejeitada. Sendo, porém, que se trata de uma novidade, não devemos julgar a partir dos esquemas e dos sinais de fé tradicionais. São fundamentais em primeiro lugar, o testemunho afirmado e os frutos produzidos. Estar atentos para captar os novos conteúdos e os novos canais de explicitação, pois tudo isto está sendo revisto. Na caminhada de purificação algo é abandonado, por não corresponder mais à nova compreensão. Pode-se falar, em geral, de um certo silêncio da fé, não no sentido de ter-se esvaziado, mas no sentido de não haver mais necessidade de muitas expressões. Por que falar muito de Deus? Por que multiplicar as orações as “práticas espirituais”, as palavras e os gestos? Sem dúvida, há uma reação contra uma abundância muito fácil e muito estéril. A Escritura parece concordar: “Não nomear o nome de Deus em vão”. “Nas nossas orações não multipliqueis as palavras” (Mt 6,7). “Por que me chamais Senhor, Senhor... e não fazeis o que digo?” (Le 6.46). É sabido que os mestres espirituais consideram a superação do sagrado e o abandono da segurança posta em determinados sinais para entregar-se mais radicalmente ao caminho da secularização, como um sinal de amadurecimento da fé cristã. Jesus mesmo, quando lhe pediram sinais, respondeu negando: “Não lhe será dado outro sinal senão o de Jonas” (Mt 16,4), que é o sinal do Filho de Deus feito homem, que se seculariza e dá a vida pelos irmãos. Contudo o problema dos símbolos não é eliminado… São abandonados, sobretudo, aqueles sinais de Deus que - como vimos – estão ligados de alguma forma ao mundo opressor e são por ele utilizados, sem que haja contestação alguma, nem compromisso de justiça. Percebe-se que não pode adorar a Deus compactuando com injustiça ou partindo de uma pretensa neutralidade, porque onde é negada e não é praticada a fraternidade é negado Deus. Em síntese, sem sermos absolutistas, constatamos que está sendo purificada uma fé que era mais teórica e intelectual, descomprometida com a realidade e ação, uma fé individualista, uma sentimental e afetiva. É negada uma que pretendia resolver tudo e que substituía - entre as outras coisas – a responsabilidade sócio-política dos cristãos. Algo é redescoberto e afirmado como prioritário, algo é alimentado a partir da recusa da situação de opressão, pela partilha comunitária entre irmãos e pela comunhão com o povo cuja fé orienta fortalece a fé dos agentes. 238 Revista ceas 233.indd 238 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade A fé é vista prioritariamente como missão, como descoberta do outro e compromisso de luta ao lado do oprimido. Trata-se de manter uma prática de justiça e de amor (aqui entra também a gratuidade) num mundo de opressão, muitas vezes sem ver muitos sinais objetivos de mudanças, ao contrário, constatando a violência da injustiça. Trata-se de reconhecer continuamente o sentido atual e definitivo da luta de libertação. De esperar contra toda esperança. E uma fé que não diz referência explícita a Deus como absoluto, mas ao amor de Deus historicizado nos oprimidos. É uma fé que assume como seu próprio conteúdo, e ao mesmo tempo expressão, a justiça, numa união concreta e vital recuperando uma visão bíblica. O conceito de justiça aqui é entendido de maneira bem ampla. Não é uma simples luta destrutiva ou um mero combate de classe, também se isso não se exclui. “A fome, a justiça, não são só questões econômicas e sociais, são mais globalmente questões humanas e desafiam na raiz nossa maneira de viver a fé cristã”8. O compromisso pela justiça está intimamente relacionado com o ato de fé. A experiência cristã de Deus, não é uma experiência religiosa, do sagrado, mas é uma experiência do sentido radical do ser do mundo, da história9. Ora, comprometer-se pela justiça significa, radicalmente, eliminar o absurdo e o fatalismo, crer na fraternidade humana e no sentido da história; significa imitar o Filho de Deus que se particulariza no Servo sofredor para libertar os homens. Nessa perspectiva, a prática da justiça é o lugar de acesso a Deus, é o lugar onde aparece a fé, o lugar da busca de Deus. A Escritura parece afirmar mais: “Conhecer a Deus (isto é, a fé) é praticar a Justiça” (Jer 22, 15-16), não só porque sem justiça não e possível encontrar a Deus (“Não há conhecimento de Deus no país” - Os 4,1), mas também porque positivamente realizar a justiça é conhecer a Deus. E a justiça da qual fala o profeta está ligada a coisas bem concretas: construir palácios, recusar salários, julgar a causa do pobre… “Eis como sabemos que o conhecemos: se guardarmos seus mandamentos” (1 Jo 2,3). “Todo aquele que pratica a justiça é nascido dele” (Jo 2,29) e o nascimento está ligado de alguma forma à fé. Pela Escritura a religião (o ligar-se a Deus. reconhecer a Deus) está 8 GUTIÉRREZ, op. cit., p. 51. 9 Cf. VAZH de Lima, “A Experiência de Deus”, em Experimentar Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1974, pp. 74-89. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 239 239 27/09/09 10:04 Cláudio Perani relacionado, até se identificar, com a justiça: “A religião pura e sem mancha aos olhos de Deus nosso Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições” (Ti 1,27). Paulo VI reconhecia este caminho de humanismo (na América Latina é claramente um caminho de luta de libertação) e de secularização como caminho da nova espiritualidade: “A religião de Deus que se fez homem se encontrou com a religião - porque tal é - do homem que se faz Deus. Que aconteceu? Um choque, uma luta, uma condenação? Podia ter-se dado, mas não se produziu. A antiga história do samaritano foi a pauta da espiritualidade do concílio” (07.12.65). E é a nossa espiritualidade. Ainda deve ser esclarecido algo sobre a fé como reconhecimento de um Deus transcendente, criador do céu e da terra como afirmávamos no início. É bom lembrar, em primeiro lugar, que na América Latina, falando em geral, não se coloca o problema da existência ou não existência de Deus, de um absoluto. Não é problema das massas latino-americanas, como não era problema do Antigo e do Novo Testamento. A existência de Deus não se discute. Este é um problema que surge mais no mundo industrializado, ligado a uma ideologia burguesa, substancialmente atéia, mesmo quando reconhece a Deus. Nem a fé em Deus se explicita a partir de declarações dogmáticas dos primeiros concílios ou do Vaticano I. Mas está bem presente reconhecendo a Deus como o Deus dos pobres, o Deus libertador, o Deus que ouve os clamores de seu povo e desce para libertá-lo. É o Deus transcendente, certamente, mas sua transcendência “não aparece fundamentalmente no distanciamento do criado mas sobretudo no questionamento em e através do criado”10, quer dizer na necessidade de superar continuamente as formas históricas de libertação. O absoluto de Deus e seu universalismo são reconhecidos, mas através da parcialidade da escolha dos pobres. Deus é parcial no sentido que se define em favor dos oprimidos contra a injustiça. Nesta perspectiva, o reconhecimento e o encontro com o Deus transcendente e absoluto significam uma busca incansável a partir do compromisso com os pobres e com sua luta de libertação. 4. NOVAS LEITURAS TEOLÓGICAS A partir da nova situação, necessariamente á um repensamento e reinterpretação do caminho espiritual até então percorrido, atingindo – como vimos – também os conte10 S0BRINO,J. “Discernimento cristão”, Concilium, p. 139. 240 Revista ceas 233.indd 240 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade údos fundamentais e suas expressões. Sempre foi assim na história do cristianismo. A partir de novas experiências e necessidades se reinterpreta e se expressa a mensagem evangélica na sua integridade, mas através de formas e conteúdos novos, selecionando determinados enfoques, não pelo gosto da novidade, mas pelas exigências do momento atual. O processo está em andamento. Nestas breves linhas não é possível indicar, nem sumariamente, as pistas que estão se esboçando. È tarefa da teologia da libertação que acompanha a igreja dos pobres. Limitamo-nos só a algumas perspectivas, para encerrar o artigo. Já vimos algo a propósito da fé e de Deus Pai. 4.1. Jesus Cristo Sem esquecer a ressurreição, é focalizado mais o Jesus histórico, o Jesus de Nazaré, sua prática concreta mais que sua doutrina. Jesus que escolhe os pobres, opera milagres, multiplica os pães, tem compaixão do povo, luta pela justiça e pela fraternidade, entra em conflito com os poderes religiosos e políticos do seu tempo. Jesus identificado com o Servo sofredor do Segundo Isaías: que assume os sofrimentos e as esperanças do povo. Numa palavra, Jesus libertador. Nesta pespectiva é vista a ressurreição como irrupção antecipada da libertação definitiva. Revela a plenitude de vida de Jesus, mas também é reconhecida em toda eliminação da opresão e em todas as vitórias das lutas do povo. É valorizado o Reino de Deus que já está presente, mas ainda deve completar-se. Reino que é, contemporaneamente, dom e tarefa. Antes a espiritualidade focalizava mais o encontro pessoal com Jesus; hoje insiste no reino, na missão de justiça a ser realizada, e o acesso a Jesus é somente pelo compromisso em favor do Reino. 4.2. Igreja A igreja é a comunidade dos discípulos de Jesus que seguem seu exemplo padecendo as mesmas conseqüências: “Expulsar-vos-ão das sinagogas, e virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus” (Jo 16,2). É aquela que emerge da maioria. A igreja do povo, dos pobres, entendendo com isso em primeiro lugar a comunidade formada pelos pobres, mas também a solidariedade de todos com eles e a luta contra toda e qualquer opressão em favor de todos os oprimidos. Uma igreja então, mas de serviço, encarnada no mundo e preocupada com os problemas das massas. É questionada a distância entre a igreja e o povo. Sobretudo é denunciada toda Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 241 241 27/09/09 10:04 Cláudio Perani atitude de poder da instituição que a leva a comprometer-se com os opressores deste mundo, abandonando os pobres. A evangelização, evidentemente, é conseqüência desta visão de Jesus Cristo e da Igreja: um participar da luta de libertação do povo para uma libertação integral, que realiza a comunhão plena entre os homens e entre eles e Deus. Aceitando, muitas vezes, uma presença silenciosa. 4.3. Sacramentos A participação nos sacramentos e na liturgia parece quase desaparecer na nova espiritualidade. Fala-se pouco de oração e de sacramentos. A pessoa humana, os irmãos, os pobres são apontados como “sacramentos”, como “sagrado”. Parece não haver mais necessidade de um espaço separado. Podemos compreender os motivos. Batizados, sacramentos, missas… sempre ocuparam a maior parte do tempo e das forças dos agentes de pastoral. Agora que eles mergulham no meio do povo, percebem quanto ficaram aprisionados dentro de um mundo onde o “sacramento” não era somente um sinal da presença da gratuidade de Deus, mas – por estar desligado de uma prática concreta de justiça – se tornava de fato a imagem, quer dizer, o ídolo, de uma eficácia sagrada a-histórica. O sacramento ficava reduzido a um rito e como tal entrava naquela condenação dos profetas e de Jesus no Evangelho contra o culto e o rito como caminho de libertação. “Jesus disse-lhes: Isaías com muita razão profetizou de vós, hipócritas, quanto escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão, pois, me cultuam ensinando doutrinas e preceitos humanos” (Mc 7,6-7). Tais queixas devem ser consideradas para avaliar toda oração e todo culto. Em particular, essa alienação pode ser observada a propósito da Eucaristia. Foi destruído seu caráter de comunhão, substituindo a alimentação pelo rito; prevaleceu o interesse do “como” da presença de Jesus sobre o “fato” desta mesma presença; sobretudo se transformou o amplo convite de Jesus às massas famintas num mistério sagrado reservado somente a iniciados, a quem muitas vezes falta o requisito fundamental: a confrontação com a pobreza. A ortodoxia dos sacramentos sempre ficou íntegra, mas houve um cisma na prática, chegando então a uma idolatria. É natural que, percebendo tudo isso a partir do novo lugar, a espiritualidade da libertação queira guardar uma reserva e um certo silêncio. A Eucaristia é realizada onde a 242 Revista ceas 233.indd 242 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Libertação e espiritualidade comida é conquistada pelos pobres e compartilhada com eles; é celebrada em toda luta e esperança vividas nos movimentos populares. Como recuperar a “mundaneidade” da eucaristia e seu caráter fundamentalmente popular? É o desafio que se coloca. Talvez, aquí também, o caminho seja deixar-se levar e ensinar pelo povo, por suas celebrações. Quanto ao sacramento da Ordem, o exercício do sacerdócio deixa na sombra o aspecto mais cultual e procura abandonar uma postura autoritária, para valorizar o aspecto profético e de animação do povo. Procura ser um ministério mais coletivo e popular, apresentando a parcialidade de Deus no conflito de classe, atento às exigências das classes dominadas, a serviço das organizações populares. 5. CONCLUSÃO Partimos do novo sopro de vida que anima a igreja na América Latina. A tentativa do artigo foi de reconhecer o afirmar-se de uma nova atitude espiritual numa parcela do povo de Deus. Consideramos unicamente os dados concretos que temos à disposição e que dizem respeito àqueles que habitualmente são considerados agentes de pastoral. Voltamos a repetir, é uma perspectiva muito restrita. Contudo permite individuar os traços característicos daquela que pode ser chamada uma nova espiritualidade, uma espiritualidade da libertação. O ponto de partida é o contato com a multidão oprimida, reconhecendo o sistema opressor que produz tal situação. Isso questiona profundamente a própria fé e remete para urna caminhada nova de busca contínua. O impacto inicial alimenta a inserção no povo e na sua luta, assim como uma atitude sempre mais crítica. A fé é redescoberta como missão, como compromisso contra toda esperança, assumindo de maneira unitária o conteúdo de justiça. Deus é aquele que ouve os clamores de seu povo, Jesus de Nazaré é o libertador através da escolha dos pobres e a igreja é vista como aquela que nasce do povo. Diante deste panorama podemos constatar que não tem sentido falar em diminuição da fé ou abandono da espiritualidade. Ao contrário, é o Espírito que anima toda esta renovação que se constitui num aumento da·”vida”, de que fala S. João, e num aprofundamento da fé. É claro que ficam dúvidas, temores e tensões. Trata-se de uma caminhada, de um processo. O problema fundamental é aquele que decorre do limite dos grupos de igreja comprometidos em tal espiritualidade. Vivem uma dúplice contradição (presente no ar- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 243 243 27/09/09 10:04 Cláudio Perani tigo): 1) a de querer ter o povo como ponto de referência contínuo, enquanto sua fé corre o risco de se elitizar, afastando-se da fé do povo, não sempre alienada; 2) a de querer comprometer-se com as estruturas sócio-políticas, enquanto a tendência quase sempre espontânea é de continuamente brigar no nível da instituição eclesiástica. Será necessário manter uma atitude de auto-crítica. que desconfia da própria segurança e que procura continuamente a referência aos outros, em particular - vamos repetir mais uma vez - ao povo e às suas lutas concretas. Talvez, mais que falar em espiritualidade da libertação como nova descoberta, seja fundamental um processo de redefinição contínua. Outras coisas devem ser esclarecidas e aprofundadas. O problema dos símbolos da fé não pode ficar simplesmente na negação dos atuais. Quais os novos gestos, os novos sinais, para expressar a fé, para celebrar a luta do povo? A tensão do conflito entre fé e militância mais radical está sempre presente. Assim também a tensão entre a eficácia da luta e a gratuidade do Reino. Mas também há certeza: este foi o caminho de Jesus e deve ser o de seus discípulos. A nova espiritualidade que está surgindo pretende discernir entre o espírito da libertação dos humildes e o espírito de opressão dos poderosos. Quer ser eficaz e histórica, encontrando hoje nos movimentos populares o mesmo Espírito de Jesus presente nos pobres. Procura por à disposição todos os bens espirituais, que pela Bíblia são os bens mais fundamentais da vida humana: pão, casa, amor… Se até hoje a espiritualidade cristã foi alimentada por duas grandes dimensões: a grandeza do mundo e a profundidade da alma, talvez possamos dizer que neste tempo na América Latina está surgindo uma nova espiritualidade alimentada pela luta de libertação do povo latinoamericano. 244 Revista ceas 233.indd 244 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O PAPA NA AMÉRICA CENTRAL CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n. 86, jul.-ago. 19/83) A visita do Papa à América Central, de 2 a 9 de março de 1983, foi certamente uma das viagens mais faladas e mais politicamente instrumentalizadas, sobretudo pelas forças direitistas que se aproveitaram das palavras do Papa para condenar o esforço de renovação da Igreja que se solidariza com os setores mais explorados destes países, procurando apoiar suas lutas de libertação. Viagem difícil, não tanto pelas ameaças de morte, quanto pela situação explosiva de quase todos os países da América Central, que inevitavelmente se reflete na Igreja, chamada a posicionamentos mais concretos. Particularmente explorado pela imprensa internacional e por setores conservadores da Igreja, foi o que se chamou de “profanação da Eucaristia” em Nicarágua. Pela primeira vez em suas viagens o Papa era questionado pela voz do povo. Grandes eram as expectativas de todos os setores: o povo alimentava a esperança de poder ouvir uma palavra de paz; o poder conservador pensava capitalizar a visita para fortalecer-se; os setores de Igreja, divididos entre si, almejavam uma maior união, cada um segundo sua perspectiva. Por todos esses motivos, achamos válida uma breve análise da viagem, que permita uma interpretação mais correta da mesma, sobretudo por razão da instrumentalização ideológica da grande imprensa. Além disso, apesar da situação bem diferente do ponto de vista político eclesial, não deixa de ser importante essa reflexão também para a Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 245 245 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Igreja brasileira, seja no sentido de poder manifestar uma sempre maior solidariedade com os irmãos que sofrem e lutam na América Central, seja para tirar lições para a própria pastoral brasileira. 1. OS DISCURSOS Como de costume foram muitos, variados, dirigidos a diferentes categorias de pessoas nos diferentes países e tocando temas prevalentemente teológicos sobretudo nas homílias das Celebrações Eucarísticas. Na intenção do Papa a visita tinha “o caráter eminentemente religioso que deriva da missão da Igreja e do ministério confiado por Cristo a Pedro e aos seus sucessores: proclamar a fé e a salvação de Cristo Jesus ao homem de hoje” (Mensagem antes de iniciar a viagem)1. Isto não significa que não tenha tratado temas mais diretamente ligados à situação sócio-política da região. Significativamente, depois de sua viagem o Papa resumiu sua experiência lembrando o estado de grande tensão interna existente nas sociedades visitadas: “As tensões têm a sua origem nas antigas estruturas sócioeconômicas, nas estruturas injustas que permitem a acumulação de maior parte dos bens nas mãos de uma elite pouco numerosa, ao lado da contemporânea pobreza e miséria de uma enorme maioria da sociedade. Este sistema injusto deve ser mudado por meio de reformas adequadas e com a observância dos princípios da democracia social” (Alocução do dia 16 de março). Em síntese, foram os seguintes os temas tratados nas homílias: • Na Costa Rica insistiu sobre o amor à Santa Igreja, questionando os que a criticam como se estivessem à margem dela ou ficam indiferentes; no mesmo tempo lembrou que a Igreja “exorta-nos a comprometermo-nos na eliminação da injustiça, a trabalhar pela paz e superação do ódio e da violência...”. • Na Nicarágua enfrentou o tema da unidade da Igreja, considerando-a “Família de Deus” e lembrando o texto de S. Paulo: “somos um só em Cristo” (Gálatas 3,28); apontou os perigos que ameaçam a unidade: a primazia dada a “considerações terrenas, compromissos ideológicos, opções temporais, inclusivamente consepções da 1 1 As citações são tiradas de L ‘Osservatore Romano, edição portuguesa, ano XV, pp. 10, 11 e 12. 246 Revista ceas 233.indd 246 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central Igreja que suplantam a verdadeira”; indicou a necessidade de submeter “nossas concepções doutrinais e os nossos projetos pastorais ao magistério da Igreja; • No Panamá falou do matrimônio como amor recíproco e caminho de maturidade humana e cristã. • Em EI Salvador, lembrando "o mal da divisão entre os homens, que semeou o mundo de supulcros, com as guerras, com essa terrível espiral do ódio que arrasa, aniquila, em forma tétrica e insensata", insistiu sobre a necessidade da paz e da reconciliação; questionou as ideologias e exigiu a conversão do “rico” e daqueles que “recorrem ao terrorismo”. • Na Guatemala centralizou sua reflexão na fé, recordando porém que “se pode fazer morrer o irmão pouco a pouco, dia a dia, quando se lhe impede o acesso aos bens que Deus criou para benefício de todos e não só para proveito de alguns poucos. Essa promoção humana é parte integrante da evangelização e da fé”. • Em Honduras, na praça diante do Santuário da Virgem de Suyapa, apresentou Maria como a “Mulher nova”: “Cada cristão deveria ser capaz de reconhecer no rosto de uma menina, de uma jovem, de uma mãe, de uma anciã, algo do mistério mesmo daquela que é a Mulher nova”. • Em Belize, voltando ao tema da unidade tratou a problemática do ecumenismo, lembrando que “a fraternal e sincera colaboração no serviço cristão em favor dos homens será um sinal seguro de uma verdadeira vida evangélica”. • No Haiti falou da Eucaristia e de Nossa Senhora; diante das injustiças e desigualdades existentes, afirmou que “a Igreja tem neste domínio uma missão profética, inseparável da sua missão religiosa (...). O fato de ser membros do Corpo de Cristo e de participar no seu banqueie eucarístico, empenhou-vos na promoção das mudanças necessárias”. As mensagens específicas retomaram os mesmos temas, sempre procurando relacionar fé e justiça: • Com os Bispos do Secretariado Episcopal da A.C. (SEDAC) tratou o tema da unidade na Igreja e na sociedade. “A unidade interna da Igreja exige o acatamento Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 247 247 27/09/09 10:04 Cláudio Perani pronto e sincero ao pensamento dos Pastores”. No mesmo tempo o Papa lembrou o sentido cristão do Povo de Deus. • Aos Bispos da Assembléia do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) indicou o que significa ser bispos hoje na América Latina: bispos de um povo profundamente religioso, empenhados na sua missão espiritual, para um povo que sofre. Reconhecendo as “profundas injustiças, exploração de uns por outros, graves faltas de eqüidade na distribuição das riquezas e dos bens da cultura”, alertou contra a “pressão ideológica” e a “tentação de combater a injustiça com a violência”. • Às religiosas e aos religiosos o Papa lembrou a "necessária opção preferencial, não exclusiva, em favor dos pobres”, sem se deixar “enganar por ideologias partidárias”, sem “conceber a vida religiosa à margem dos bispos”, excluindo “qualquer tipo de apostolado ou magistério paralelo ao dos bispos”. • Aos sacerdotes lembrou a "identidade do sacerdócio e o compromisso da missão aqui e agora”, insistindo sobre a integridade doutrinal e alertando contra um “compromisso revolucionário que pretende mudar as coisas e as estruturas, recorrendo inclusivamente à violência”. • Aos jovens e ao mundo universitário pediu de "comprometer-se para uma nova sociedade”, de “defender o homem, os seus direitos e a sua liberdade”, sem se fechar “ao sentido do absoluto e do transcendente”. • Com os educadores da fé e os delegados da Palavra defendeu a “liberdade das famílias” e a “liberdade do ensino no processo educativo” e a necessidade de indicar “as implicações e aplicações sociais da palavra”, mantendo-se sempre “em estreita comunhão com os bispos”. • Diante dos camponeses o Papa reconheceu a situação trágica de exploração, apelou para o compromisso dos interessados, sem porém “deixar-se arrastar pela tentação da violência, da guerrilha armada ou da luta egoísta de classes”. • Aos indígenas da Guatemala o Papa afirmou "A Igreja conhece a marginalização que sofreis; as injustiças que suportais (...). Por isso, ao cumprir a sua obra de evangelização, ela quer estar junto de vós e elevar a sua voz de condenação ( ... ). Ninguém pretenda nunca mais confundir evangelização com subversão”. 248 Revista ceas 233.indd 248 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central Aos trabalhadores o Papa lembrou os pontos principais de sua Encíclica sobre o Trabalho, a “prioridade do trabalho sobre o capital” e a necessidade de reconhecer o trabalhador como “sócio e colaborador no processo produtivo”. Antes de aprofundarmos dois temas que aparecem mais importantes e que mais recorrem nas palavras do Papa, a Unidade da Igreja e o Problema da Justiça e Paz, vamos fazer algumas considerações gerais. Devemos respeitar a globalidade do ensinamento do Papa, deixando-nos questionar por suas palavras, também quando nos fala de exigências que não nos parecem prioritárias na situação concreta vivida. Que significa sua insistência sobre a fé, a Eucaristia, a fidelidade à doutrina cristã, a unidade da igreja, a dependência do magistério eclesial? Certamente são valores importantes que não podem ser abandonados. Qual o sentido de seus alertas contra o perigo das ideologias, da violência, do ódio? Devemos, no mesmo tempo, interpretar as palavras de João Paulo II com integridade e sem reducionismos, colocando-as no contexto geral do magistério eclesial, onde uma encíclica tem mais peso do que uma homilia. Isso exige um sentido crítico. A absolutização da pessoa do sucessor de Pedro e de suas palavras, feita por certos setores da Igreja e que, às vezes, lembra uma espécie de idolatria, significa um desserviço ao próprio Papa, não é verdadeira obediência evangélica e não permite a necessária interpretação de sua orientação a partir do contexto concreto de América Latina. Os discursos do Papa têm um nível bastante geral e abstrato, quer dizer, abstraem das determinações mais concretas de cada país e cada situação, ficando nos princípios sem descer a aplicações. Ele mesmo afirmou que seu ensinamento era “global”, queria ter um “caráter unitário” (Discurso ao SEDAC). No fim da viagem, reconhecendo que os países da América Central “são diversos um do outro”, disse que seu “programa era próprio para cada país e, ao mesmo tempo, comum para todos” (Alocução do dia 16 de março). Houve explicitações mais diretas sobretudo no caso da Guatemala e do Haiti. No país do Presidente Rios Montt, fanático religioso apoiado pelos Estados Urudos, autor de uma política de genocídio sistemático e que acabava de mandar fuzilar 6 condenados a morte - fato considerado “incrível e deplorável” pelo Núncio Apostólico -, o Papa foi bem vigoroso ao denunciar a violação dos direitos, a violência, as torturas, o sequestro. “Deus proíbe matar” disse às centenas de milhares de índios que o ouviam, numa clara alusão à execução da véspera. No Haiti, onde o Presidente vitalício Jean-Claude Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 249 249 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Durvalier conduz uma política de exploração e de miséria do povo, João Paulo II teve palavras claras de crítica: “Existe uma profunda necessidade de justiça, de uma melhor distribuição dos bens, de uma organização mais equilibrada da sociedade com maior participação de todos, de uma concepção mais desinteressada (grifo nosso) do serviço em favor de todos” (No encerramento do Congresso Eucarístico). Noutros lugares ficou mais genérico, sobretudo em El Salvador e na Nicarágua, não reconhecendo a contribuição da luta popular e criticando o “terrorismo, quer de esquerda quer de direita”, dando com isso cobertura, mesmo não querendo, às forças conservadoras. O discurso, não apresentando um ulterior discernimento sobre “esquerda” e direita”, na prática, foi interpretado como crítica mais leve para com os governos conservadores e mais pesada para com a luta popular contra tais governos. Temas e linguagem foram muito teológicos. Pode ser natural ao falar para bispos e padres, mas no caso das homílias das grandes concentrações a conseqüência é a incomunicabilidade com o povo, que tem outra linguagem e outras preocupações, mesmo quando muito religioso. Nesse caso tornam-se mais importantes a presença e os gestos do Pastor e não tanto seu discurso que fica, pelo menos em parte, incompreensível. Mais teológico significa, também, uma preocupação mais interna à Igreja. Houve omissões em reconhecer caminhos positivos da luta popular e da renovação da Igreja que mais se solidariza com os pobres; houve mais preocupação em alertar contra os perigos da abertura e em lembrar a identidade e definição da Igreja e das diferentes funções eclesiásticas. E isso mais em abstrato, sem considerar as falhas e a pouca coerência evangélica que atinge também a hierarquia da Igreja. Vários bispos apóiam os regimes repressivos e o ultradireitista bispo de San Vicente (El Salvador), Dom Pedro Arnaldo Aparício, acabava de denunciar ao Presidente que há pelo menos 30 sacerdotes integrados na Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN). O discurso de João Paulo II apresenta certas dificuldades para os setores da Igreja latino-americana comprometidos com a renovação pastoral. Enquadra-se em categorias mais dualistas, oposição Hierarquia-Povo de Deus e Igreja-Mundo, superadas pela perspectiva do Concílio Ecumênico Vaticano II do primado do Povo de Deus e da abertura da Igreja ao Mundo, perspectiva concretizada para a América Latina nas Assembléias dos Bispos em Medellin e Puebla, que colocam como ponto de partida e preocupação fundamental “o surdo clamor que brota de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes advém de parte nenhuma” (Me- 250 Revista ceas 233.indd 250 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central dellin, n. 14), clamor que se torna “cada vez mais impressionante” (Puebla, n. 87). Achamos·que por essas razões - seu nível geral, sua preocupação interna e seu distanciamento da compreensão do povo - os discursos de João Paulo II foram menos proféticos e favoreceram mais uma instrumentalização conservadora, e sua viagem resultou - contra suas intenções - numa viagem “mais política que pastoral”, segundo o parecer do jesuíta Rogélio Pedraz da Universidade de San Salvador. 2. A UNIDADE DA IGREJA Foi certamente a preocupação principal de João Paulo II. Devemos reconhecer o motivo, considerando, de um lado, a situação tremendamente conflitiva dos países visitados e seus reflexos dentro das Igrejas; do outro lado, a função do Pastor, centro da unidade da Igreja. Na Igreja de América Central, talvez mais que no Brasil, por razão do conflito radical presente na sociedade daqueles países, há duas linhas que, se não chegam a uma ruptura formal, são bem contraditórias entre si: uma que apóia os regimes repressivos no poder e a outra que favorece a guerrilha. Há bispos direitistas favorecidos pelo poder oficial e bispos e padres exilados ou mortos pelo mesmo poder. O conflito de classe não pode não influir também na Igreja. Já em sua Carta aos Bispos de El Salvador (06.08.82), João Paulo II reconhecia que “as discórdias e as divisões (...) têm sua raiz verdadeira e profunda nas situações de injustiça social”. Logo no início de sua visita, ao falar aos bispos do SEDAC, lembrou a “unidade na sua forma mais plena e perfeita que nos é proposta como exemplo: a do Filho com o Pai”. Os bispos, “princípio de unidade” devem preocupar-se com “a unidade na fé” para que “não se desarticule o nosso universo de fé”. Ao longo de sua viagem, sempre voltou a preocupação pela unidade, concentrando sua reflexão na homília em Manágua. “Trata-se, antes de tudo da unidade da Igreja, do Povo de Deus: do rebanho do único Pastor. Mas também (...) da unidade de todo o gênero humano”. Na homília desenvolve o primeiro aspecto. O Papa lembra que Jesus morreu “para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos”; que “na Igreja, como numa família, deve reinar a unidade na ordem”; e que todos “somos um só em Cristo”. Essa unidade está “baseada em um único Senhor, única fé, um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos e atua por meio de todos e se encontra em todos”. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 251 251 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Trata-se evidentemente de valores fundamentais sobre os quais sempre nós devemos questionar. A palavra do Papa nos ajuda a retomar continuamente o caminho da unidade e da reconciliação, quando sabemos que o desejo de “poder” que está em nós é uma poderosa força de divisão. Também a integridade da fé deve ser preocupação constante para a Igreja cumprir sua missão libertadora. Resta ver as situações concretas de divisão e os caminhos também concretos para construir tal unidade. O Papa aponta vários perigos que ameaçam a unidade: considerações terrenas, compromissos ideológicos, opções temporais, magistérios paralelos, diferentes concepções de igreja (popular, carismática, não tradicional)... Tudo isso é risco e certamente existe. Mas não pode ser aplicado genericamente a setores de Igreja sem fazer uma análise mais detalhada e concreta. Tais advertências, muitas vezes, são aplicadas com grande facilidade (e isso é revelador!) a setores de Igreja comprometidos com os pobres e a luta popular. Nesses casos, habitualmente não se trata de Igreja paralela, de duas igrejas separadas, mas do esforço da Igreja (não sempre por todos acompanhado, é verdade) de viver os princípios evangélicos, de aplicar as orientações do Concílio, do Papa e dos bispos, de prestar atenção aos sinais dos tempos, de parar e prestar socorro ao ferido encontrado na margem da estrada, de abrir-se às novidades de vida e liberdade que brotam na história dos povos. Nessa caminhada feita sem se separar dos bispos, a Igreja se purifica, descobre seu pecado, procura mudar, renovar-se, aprofundar sua fé. Acontece que muitos - dentro e fora da Igreja - resistem, não querem perder sua segurança, seu poder, tomam distância, acusam. A divisão que daí resulta é inevitável e benéfica. Devemos lembrar que Jesus Cristo, também hoje, se coloca contemporaneamente como “princípio de unidade” e “pedra de tropeço”. Paulo e Barnabé, em sua abertura aos pagãos, suscitaram divisões na Igreja primitiva: “Os judeus instigaram mulheres religiosas e de elite na sociedade bem como os homens mais influentes da cidade e promoveram uma perseguição contra Paulo e Barnabé, expulsando-os do território” (Atos 13,50). O próprio Papa adverte isso quando nos lembra de “não confundir evangelização com subversão”. Tal advertência vale também no interior da Igreja. João Paulo II, ao fundamentar teologicamente a exigência da unidade, recorre a dois dados: a unidade em Cristo, participando do mesmo pão, e a submissão ao magistério da Igreja. “Na Igreja - afirma o Papa - ninguém tem mais direito de cidadania que o outro: nem 252 Revista ceas 233.indd 252 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central os judeus, nem os gregos, nem os escravos, nem os livres, nem os homens, nem as mulheres, nem os pobres, nem os ricos, porque todos somos um só em Cristo” (Gálatas 3,28). Tal afirmação de S. Paulo é compreensível no contexto da época que implicava o fim dos privilégios, aos olhos de Deus, dos judeus respeito aos gregos, dos livres respeito aos escravos, dos homens respeito às mulheres e, por conseqüência hoje, dos ricos respeito aos pobres. Sem tal interpretação a afirmação do Papa pode não ser entendida ou instrumentalizada. O mesmo vale para a unidade ao redor do “mesmo pão” (1 Coríntios 10, 17), a Eucaristia. Paulo, mais adiante, avisa que se os cristãos não suprimiam as diferenças econômicas e sociais, se não “discerniam o Corpo do Senhor”, isto é, não faziam justiça à morte do Senhor Jesus para reconstruir a fraternidade, “comiam e bebiam sua própria condenação” (1 Coríntios 11, 29). A mesma fé em Cristo e mesma Eucaristia não são algo de mágico que dispensem do caminho penoso da luta pela unidade; ao contrário, exigem essa última. Quando o Papa afirma que o sacerdote “não pode estar contra ninguém, mas deve abraçar a todos” (Discurso aos sacerdotes em El Salvador), não significa que sua ação não possa provocar divisões. Jesus veio para todos, mas sua ação e sua palavra marginalizaram os fariseus. O mesmo acontece hoje: os que escolhem o caminho da solidariedade com os pobres não querem excluir a ninguém, são os ricos que se excluem por não aceitarem tal opção. Quem divide na Igreja? João Paulo II insiste continuamente sobre a necessidade de submeter-se ao magistério eclesiástico, ao Pastor sucessor de Pedro, aos bispos. A palavra “bispo”, talvez, seja aquela que mais aparece em todos os discursos. Tal insistência questiona nossa visão horizontalista de Igreja. Nela o bispo tem uma função particular, de serviço para favorecer a unidade do corpo todo. E um dado que vem do Evangelho e que é retomado claramente pelo Concílio Vaticano II. Aqui também devemos ver em concreto como se realiza ou não se realiza tal relacionamento. Não sempre é fácil dentro de uma verdadeira fé amadurecida. Os conflitos presentes na sociedade e na própria Igreja, as orientações dessa última não sempre unitárias quando se trata de casos concretos, a falta de testemunho evangélico de muitos membros da Igreja, bispos também, impedem de considerar a fidelidade ao magistério, novamente, co- mo um recurso mágico e fácil que elimine a responsabilidade pessoal. Reconhecendo a razão circunstancial que o Papa podia ter para lembrar principalmente o magistério como caminho da unidade, podemos constatar a ausência de outros Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 253 253 27/09/09 10:04 Cláudio Perani critérios, igualmente importantes, sem querer eliminar ou subestimar o primeiro: os sinais dos tempos, a voz dos pobres, o sentido do Espírito Santo presente no Povo de Deus... São critérios presentes nos documentos oficiais. Lembrando as palavras do Papa aos bispos de EI Salvador, se a injustiça social é a raiz profunda das discórdias, todo caminho para a unidade terá que enfrentar esse problema. Também na Igreja, mais que motivos teológicos, é a questão da divisão de classes que está na raiz da desunião. Os cristãos de Nicarágua percebem isso quando escrevem ao Papa: “A verdade é que nós nunca nos chamamos Igreja Popular. Mas, simplesmente, só ‘Igreja’. O que acontece é que alguém nos chama com este nome para poder, depois, dizer que não somos cristãos. (...) O Senhor nos convida à unidade eclesial, e nós queremos escutar seu apelo. (...) O Senhor repetidas vezes afirmou que a Igreja é a Igreja dos pobres, porque eles do os preferidos de Deus. Nesse compromisso pelos pobres, pela justiça e pela paz nós queremos nos unir” (Manágua, 15.08.82). Pena que João Paulo II, não tenha lembrado em seus discursos essas palavras! Por último, considerando brevemente o apelo feito pelo Papa aos povos de América Central para o diálogo e a reconciliação, devemos compreendê-lo dentro da situação de oposição radical entre os governos repressores e a luta de libertação do povo. Qual é o diálogo possível entre presidentes como Somoza, Guillelmo Garcia e Rios Montts, de um lado, e os movimentos de libertação do outro? Apesar disso, a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional há mais de dois anos vem propondo negociações diretas entre o governo de EI Salvador e seu comando. O governo recusou repetidamente. Não podemos considerar as eleições propostas como forma de diálogo, quando sabemos que se trata de uma farsa. 3. O CAMINHO DA JUSTIÇA E DA PAZ Diante da tremenda e visível situação de injustiça, João Paulo II foi claro em afirmar a necessidade de criar “um urgente clima de justiça na sociedade centro-americana” (Homilia da Missa na Guatemala). Tal tarefa é dos governantes, legisladores, empresários, comerciantes, industriais, agricultores, trabalhadores... Mas é afirmada, também com muita clareza, a responsabilidade e missão da Igreja. O Papa não se cansa de repetir em todas as homílias e em todos seus discursos às diferentes categorias da Igreja o compromisso pela justiça é parte integrante da missão evangélica. “Voltarei com freqüência ao tema da justiça e da paz”, diz aos bispos do SEDAC. “O Evangelho 254 Revista ceas 233.indd 254 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central constitui-se em defesa do homem, sobretudo dos mais pobres” (Discurso ao SEDAC). “A promoção humana é parte integrante da evangelização e da fé” (Homilia da Missa na Guatemala). Os religiosos devem estar “comprometidos na promoção da justiça na elevação cultural e humana do homem, na causa do pobre” (Discurso aos religiosos). Os bispos devem “ter uma preferência para os mais pobres”. “As comunidades, com os seus presbíteros e diáconos como orientadores sejam cada vez mais promotoras do desenvolvimento humano integral, da justiça e da eqüidade, em benefício, em primeiro lugar, dos mais necessitados” (Discurso aos bispos do CELAM). O posicionamento é claro. Também explícitas são as afirmações sobre os perigos que podem existir ao trilhar o caminho da justiça e da paz: possíveis radicalizações e instrumentalizações políticas, pressões ideológicas, violência e ódio. Esses alertas aparentemente claros, merecem um comentário pois sua interpretação, querendo respeitar o conjunto da doutrina social da igreja, não é simples. De fato, é nesse ponto que constatamos um grande reducionismo: os setores conservadores aproveitam-se para condenar toda e qualquer luta popular e o apoio da Igreja. Consideramos brevemente as duas questões que mais aparecem: da ideologia e da violência. 3.1. A questão das ideologias Não cabe aqui entrar no complexo problema dos diferentes sentidos da palavra e de suas variadas interpretações. O Papa afirma que a Igreja deve ter cuidado com possíveis reduções ideológicas, deve recusar as pressões e os compromissos ideológicos. Também quando fala aos trabalhadores diz que “não há necessidade de recorrer a ideologias” (Mensagem aos Trabalhadores). Parece apontar a ideologia capitalista e a ideologia marxista. A primeira “se opõe à dignidade da pessoa humana e às suas justas aspirações em conformidade com os sãos princípios da razão e da lei natural e eterna”, a segunda “vê na luta o motor da história.-na força a fonte do direito e na discriminação do inimigo o ‘abc’ da política” (Homilia na Missa de El Salvador). A mudança é possível “sem recorrer a métodos de violência nem a sistemas de coletivismo, que podem resultar não menos opressores da dignidade do homem que um capitalismo puramente economista” (Discurso ao chegar na Costa Rica - grifos nossos). Muitas vezes há uma quase identidade entre ideologia, violência e ódio. Recusando as ideologias, o Papa lembra que “é possível combater as injustiças com a aplicação da doutrina social da Igreja” (Homilia na Missa em El Salvador). Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 255 255 27/09/09 10:04 Cláudio Perani É importante lembrar com o Papa que nem o Evangelho nem a doutrina social que dele provém são ideologias. A fé tem um caráter de totalidade e transcendência que questiona qualquer realização política, sempre parcial. E a ideologia, por definição, é parcial. Nesse sentido devemos entender os alertas contra os reducionismos para ficarmos fiéis à missão específica da Igreja. No mesmo tempo essa missão exige um comprometimento concreto, uma ação. E nesse ponto que os princípios da fé e da doutrina social da Igreja são insuficientes e requerem outras mediações de análise e outros instrumentos de organização. O documento de Puebla é claro: “Nesse sentido positivo, as ideologias surgem como algo necessário para a esfera social, enquanto são mediações para a ação” (Conclusões do CELAM em Puebla, n. 535). O próprio Papa reconhece isso quando afirma: “não podia trazer-Ihes a solução pronta, diante de problemas complexos que escapam à capacidade da Igreja” (Discurso de despedida da Guatemala). O Papa apresenta os princípios, as grandes orientações da fé, os perigos de determinadas mediações. Cabe à Igreja local, segundo a orientação da Encíclica Populorum Progressio, e aos diferentes setores da sociedade, concretizar ulteriormente, passar à prática, e para isso é preciso utilizar outras mediações, outros instrumentos, sem pretender substituir a responsabilidade do povo na organização da sociedade. Ao rechaçar igualmente, sem ulterior distinção, capitalismo economista e sistema coletivista, sente-se, mais uma vez, a necessidade de uma análise mais concreta, caso contrário as afirmações podem ser interpretadas facilmente com uma clara oposição às lutas populares que se inspiram na ideologia marxista. Parece estar muito presente o modelo concreto dos socialismos da Europa Oriental com seus limites e injustiças. Na América Central há uma novidade que analisaremos mais adiante. 3.2. A questão da violência João Paulo II manifesta-se contra a violência, a guerrilha, a luta armada, a luta revolucionária. Muitas vezes isso é sinônimo de ódio, de novas injustiças e opressões. Aqui também, a experiência histórica e o conhecimento do homem que provém da fé mostram quanto seja oportuna a lembrança do ideal cristão. Nesse caso, porém, as afirmações se prestam facilmente para uma interpretação parcial e ideológica. Como é vista pelas elites a violência é sempre a “violência revolu- 256 Revista ceas 233.indd 256 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central cionária”, não é aquela que se pratica todos os dias contra as populações. Sente-se nesta problemática a ausência da perspectiva de Medellín: “A situação de injustiça pode chamar-se de violência institucionalizada” (Documento sobre a Paz, n.16). O Papa parece condenar igualmente a violência fascista e a violência revolucionária, a segunda mais responsável por conter erros doutrinários. Será que não temos que inverter a perspectiva? A verdadeira violência é prioritariamente aquela do regime capitalista que explora os trabalhadores e mata os irmãos. A luta revolucionária é uma resistência a tal dominação, é a procura de relações mais fraternas. Nisso há uma diferença fundamental. É muito difícil perceber isso fora do contexto do drama da América Central. Ouçamos a motivação do padre José Rutilio Sanchez quando comunicava ao seu bispo a decisão de integrar-se à FMLN: “Somente pretendo tomar a cruz e seguir a Jesus nos barrancos, nas trincheiras onde se vive o espírito e a letra das bem-aventuranças, criando as bases do Reino de Jesus, um mundo onde haja pão para todos, vestimenta para os esfarrapados e onde possamos enterrar os nossos mortos, que já não morrerão antes do tempo, de fome ou de violência e onde haja consolo para os tristes e escolas para o futuro”. Mesmo reconhecendo em João Paulo II uma igual condenação dos dois lados, que na prática favorece o regime atualmente no poder, o Papa parece oferecer algumas pistas para uma nova interpretação. Falando aos camponeses afirma: “Na busca de uma justiça maior e da vossa elevação, não podeis deixar-vos arrastar pela tentação da violência, da guerrilha armada ou da luta egoísta de classe ( ... ). Há quem tenha interesse em que abandoneis o vosso trabalho para empunhar as armas do ódio e da luta contra outros irmãos vossos”. Se se fala de luta egoísta de classe, pode-se pensar numa luta de classe não egoísta, “luta nobre pela justiça”. E será que as armas sempre são do ódio e monopolizadas por interesses alheios? Já os bispos de Nicarágua, na Carta Pastoral de 17.09.79 declaravam: “Quanto à luta de classes sociais, pensamos que uma coisa é o fato dinâmico da luta de classe que deve levar a uma justa transformação das estruturas, e outra é o ódio de classes que se dirige contra as pessoas e contradiz radicalmente ao dever cristão de reger-se pelo amor”. No Haiti o Papa lembrou um acontecimento histórico: “Há 170 anos, três mil soldados poloneses desembarcaram nesta ilha, enviados pelas forças de ocupação para reprimir a revolta da população que lutava pela sua independência política. Estes Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 257 257 27/09/09 10:04 Cláudio Perani soldados, em vez de combater as legítimas aspirações de liberdade, simpatizaram com o povo haitano”. A aplicação à situação atual é imediata. A luta pela independência política daquela época, que recebeu o apoio dos poloneses, lembra facilmente a luta atual pela independência econômica. Quando se desce a casos concretos e de forma participativa, também as conclusões podem ser diferentes. 4. A VISITA Á NICARÁGUA A presença do Papa na Nicarágua, tornou-se particularmente significativa pela situação do país onde o povo fez uma revolução com o apoio dos cristãos, atualmente dirigido por um governo de esquerda; pela reação do povo durante a Missa celebrada na Praça 19 de Julho de Nicarágua; e pelas conseqüências que teve a nível político-ideológico. Os jornais falaram amplamente daquela que foi chamada “profanação da Eucaristia”. O próprio Papa teve um aceno na síntese que fez de sua viagem: “Não é pensável que o Magistério da Eucaristia possa sofrer uma deformação, como infelizmente se verificou num caso, que por felicidade foi único” (Alocução do dia 16 de março). Significativamente o ex·Presidente do CELAM, Cardeal Alfonso López Trujillo, saudava a João Paulo II no encontro com o CELAM, manifestando sua “profunda tristeza e a mágoa de milhões e milhões de latino-americanos pela insensata falta de respeito, pela lamentável profanação da qual foi objeto a Eucaristia e a vossa sagrada pessoa, peregrina de paz e de concórdia”. Com rapidez e eficácia extraordinárias, setores conservadores da Igreja e setores da burguesia nicaraguense, inclusive grupos contra revolucionários no estrangeiro, apropriaram·se dos símbolos e das palavras da visita do Papa. No mês de março realizou-se uma grande Missa em Miami que congregou numerosos exilados nicaraguenses e contou com a presença de Fernando Chamarro, chefe de grupos militares que estão atacando a Nicarágua. A missa foi em desagravo ao Papa e converteu-se num verdadeiro ato político. Fernando Chamarro foi quem entregou o cálice na cerimônia. Nesse caso não se falou de “profanação eucarística”! Na nossa revista, já tivemos ocasião de explicar e interpretar o episódio2, que visto 2 Cf. PEDRO A. RIBEIRO DE OLIVEIRA, “O Papa na Nicarágua: uma análise dos acontecimentos, Cadernos do CEAS, n. 85, maio-junho 1983 pp. 73-76. 258 Revista ceas 233.indd 258 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central com maior distância assume o sentido de uma simples manifestação do desejo popular durante a Missa. Desejamos aqui colocar a visita do Papa no quadro mais amplo da situação de Nicarágua, vendo as atitudes do Papa diante da novidade da revolução nicaraguense. O povo de Nicarágua, em sua imensa maioria, se preparou para esta visita. Foram impressos muitos folhetos (quase um milhão de exemplares), falando do Papa e explicando a visita. Várias pessoas e grupos manifestaram suas esperanças publicadas na coluna “o que você diria ao Santo Padre” do Nuevo Diário. Um grupo de padres e leigos escreve ao Papa: “Como Pastores, temos constatado nalguns dos nossos amigos a dor provocada pela perda de suas seguranças; não podemos, porém, deixar de sentir a alegria de ver os rostos iluminados pela esperança das grandes maiorias de nicaraguenses, noutras épocas privados do direito à saúde, educação, moradia, alimentação... e que hoje vêem abertas as perspectivas de uma vida digna. Em sua pessoa, Santo Padre, queremos assumir coletivamente nosso esforço eclesial de comunhão e nosso compromisso de sermos construtores da paz como humildes colaboradores da imensa tarefa que Sua Santidade tem neste mundo carregado de tensões” (Correspondência Popular, n. 16, p. 2). As expectativas em Nicarágua, evidentemente, eram divididas. Os meios que apóiam o processo revolucionário esperavam que o Papa ajudasse a conseguir a paz e denunciasse a agressão norte-americana; seu eslogan era “entre cristianismo e revolução não há contradição”. Os meios da oposição insistiam muito sobre o caráter religioso da viagem e sua expectativa era vaga: “O Papa vem nos abençoar - Estou feliz, vem o Papa”. Na chegada no aeroporto, houve um gesto de grandíssima importância simbólica. Depois que o Papa passou ficaram perto do avião os membros da Direção Nacional do FSLN e os bispos da Conferência Episcopal. Antes de retirar-se, por iniciativa do Comandante Tomás Borge, os dois grupos se saudaram com abraços e apertos de mãos. O gesto foi aplaudido pelo público. O Comandante Daniel Ortega, Coordenador da Junta de Governo, recebeu o Papa não somente denunciando em seu discurso a intervenção americana, mas também reafirmou a “vocação de paz” do povo e do governo da Nicarágua e ratificou os princípios sobre a liberdade religiosa. Ele afirmou: “Santo Padre, nossa Revolução foi atacada por todos os lados e a confrontação política se manifestou em todos os terrenos. Em outubro de 1980, a Direção Nacional da FSLN, assinalava tal fenômeno e, ao mesmo tempo, ratificava sua posição de garantir plenamente o direito inalienável das pessoas de professar sua fé religiosa e difundi-la. Também manifestava nessa ocasião que Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 259 259 27/09/09 10:04 Cláudio Perani nossa experiência revolucionária demonstra que quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes de responder às necessidades do povo e da história, suas próprias crenças os leva à militância revolucionária” (Ibid., p.7). O mesmo Comandante, na despedida, apesar das tensões havidas, renovou a esperança: “Santidade, hoje, nesta despedida da terra de Nicarágua, afirmamos ao Senhor que temos confiança que a solidariedade cristã saberá manifestar-se em favor deste povo sofrido” (Envio, n. 21, p.20). Qual foi a mensagem do Papa neste contexto? Parecia compreender e ir ao encontro da situação do povo nos breves acenos: “compreendo as suas dificuldades” (Na Catedral de Leão) e “Nicarágua tão provada (...), tão vigorosa e ativa para responder aos desafios da história e procurar edificar uma sociedade à medida das necessidades materiais e da dimensão transcendente do homem!” (Homilia em Manágua), que, porém, não foram desenvolvidos. A atitude de João Paulo II foi mais diplomática, às vezes fria e dura em sua expressão exterior. Os temas tratados foram Educação e Unidade da Igreja. No primeiro, sem nenhum aceno ao trabalho desenvolvido pelo governo no setor da alfabetização, lembrou “a liberdade das famílias e a liberdade de ensino no processo educativo”, tendo os pais crentes o estrito direito a “não verem seus filhos submetidos, nas escolas, a programas inspirados no ateísmo” (Discurso aos Educadores católicos). A homilia na Praça 19 de Julho teve como tema único a Unidade da Igreja. Pronunciou 14 vezes a palavra “bispo” e somente uma vez a palavra “paz”, em resposta aos gritos do povo. Omitindo-se sobre os temas da paz e dos mortos, pedidos pelo povo, e afirmando a necessidade de “submeter nossas concepções doutrinais e os nossos projetos pastorais ao magistério da Igreja, representado pelo Papa e pelos Bispos”, João Paulo II, na situação de conflitividade eclesial, dava toda razão só a uma parte da Igreja. No mesmo tempo, não oferecia espaço para um diálogo com a revolução nicaraguense e a nova situação que se tinha criado, com suas esperanças e seus riscos. Não podemos negar que existe na Nicarágua uma semente nova, o projeto de um homem e de uma sociedade novos. Certamente existem riscos e forças destruidoras: uma minoria da hierarquia que procura deslegitimar o processo por via religiosa e a intenção de uma minoria sandinista para absolutizá-lo. 260 Revista ceas 233.indd 260 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 O papa na américa central Parece que o Papa, além de ter necessariamente preparado os discursos em Roma, chegou com uma opinião previamente definida em relação à revolução nicaraguense. Logo na Costa Rica denunciava os “sistemas de coletivismo”, podendo-se entender a referência ao sandinismo. Se foi informado sobre processos marxistas-lenistas em andamento na América Central, deve ter interpretado relacionando com outros países por ele conhecidos, onde se combate a religião e se faz propaganda do ateísmo. Na Nicarágua o processo está em andamento. Contudo, devemos saber reconhecer as novidades existentes, também para poder favorecê-las e evitar endurecimentos. A direção do processo revolucionário garantiu a liberdade religiosa, reconheceu aos cristãos cidadania no partido revolucionário (rompendo, com isso, com a tradição marxista dogmática) e favoreceu uma consciência participativa e crítica na maioria do povo. É uma semente lançada. É uma realidade nova. Há pobres, na Nicarágua, cuja vida tem mais esperança hoje que antes de 1979. O profetismo da Igreja deveria reconhecer essa situação e descobrir nela os novos apelos. Não é fácil para o Papa, orientado pelos exemplos marxistas concretos que conhece. Deveria ser tarefa da hierarquia local. Sabemos que parte desta está mais comprometida com as forças conservadoras. Um comentário do Cardeal Aloísio Lordscheider a propósito dos fatos de Manágua coloca-nos o problema grave da informação. “Se a Frente Sandinista - afirmou Dom Aloísio - tivesse conversado com o Vaticano antes da visita, deveria ter pedido algo que evitasse os problemas, teria explicado ao Papa a situação” (Jornal do Brasil, 11.03.83). Isso significa reconhecer que o Papa estava mal - ou não suficientemente - informado sobre a situação através dos canais oficiais: Núncios, Hierarquia local, CELAM. Tais canais - por seu distanciamento e oposição - não transmitiram a nova realidade acima apontada, coisa que podia ser compensada com maior contato com a Frente Sandinista e os setores de Igreja que apoiaram a revolução. Isso fica claramente demonstrado por certas afirmações do Papa. Logo ao chegar a Manágua falou dos “milhares e milhares de nicaraguenses que não tiveram possibilidade de vir - como desejariam - aos lugares de encontro”. Repetiu a mesma afirmação ao despedir-se da Nicarágua falando de “muitos outros que, por razões diversas, não puderam estar presentes para alimentar sua fé cristã”. Isso não foi dito nos outros países, nestes termos. Os textos escritos em Roma, não correspondem à realidade. Na Praça 19 de Julho havia 600-700 mil pessoas (Manágua tem 700 mil Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 261 261 27/09/09 10:04 Cláudio Perani habitantes e Nicarágua uma população de 3 milhões). Foi a concentração de massa maior da história da Nicarágua, a segunda em importância numérica da viagem pela América Central. A informação falha provinha da Cúria de Manágua que preparou a viagem com o tema daqueles que “não podiam vir a ver o Papa”. O exemplo é de pouca conta, mas pode ser indicador de um problema, o da informação, fundamental para a comunicação do Papa. Podemos perguntar qual foi a informação que recebeu no que se refere aos passos dados pela revolução sandinista, à situação dos cristãos que acompanham a luta popular em Nicarágua e, mais em geral, nos outros países da América Central. Colocando o problema da informação, não queremos considerá-lo como único ou o mais importante. É determinante, como vimos no início, o fato de condenar igualmente direita e esquerda e de não descer a aplicações mais concretas: no contexto local é interpretado como oposição à revolução. Nesse sentido, cabe à Igreja local não tirar conclusões indevidas e aplicar os princípios do Papa a partir dos resultados positivos alcançados pela luta popular. Desejamos terminar essas reflexões lembrando o mártir Dom Oscar Romero. O Presidente de EI Salvador não queria que o Papa visitasse a Catedral onde Dom Romero está sepultado. Esse era também o parecer da maioria dos bispos que prepararam a viagem. O Papa insistiu para visitar seu irmão no episcopado, reconhecendo-o qual “zeloso Pastor que o amor de Deus e o serviço aos irmãos conduziram até à entrega da própria vida de maneira violenta”. Pena que foi uma visita mais individual! A Igreja da América Central é uma Igreja de mártires. Com Dom Romero são centenas de padres, as freiras, os catequistas, os leigos mortos por serem cristãos. Os cristãos de Nicarágua lembraram ao Papa um índio guatemalteco, da aldeia de Santa Teresa de Huehuetenango. Escrevem eles: “Lembramo-nos do Senhor, Santo Padre, porque ele tem seu mesmo nome. Chama-se João Paulo. Este João Paulo, pois, escapou vivo de um massacre do exército na aldeia dele. E contou como ali chegaram os guardas, reuniram a todos e perguntaram-lhes se eram cristãos. E quando responderam afirmativamente, levaram os homens para a escola e os fuzilaram. As pobres mulheres e as crianças para uma Igreja. Ali violaram-nas e depois as mataram juntamente com as crianças” (Manágua, 15.08.82). O sangue dos mártires sempre foi um dos sinais mais fortes da presença da Igreja de Jesus Cristo e do advento do Reino da Justiça e da Paz. 262 Revista ceas 233.indd 262 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A IGREJA NO NORDESTE: BREVES NOTAS HISTÓRICO-CRÍTICAS CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS n.º94, nov.-dez. 1984) Na ocasião dos 15 anos dos Cadernos do CEAS não podiam faltar algumas considerações sobre a Igreja, uma vez que a nossa revista sempre tratou esse tema procurando apresentar e discutir as novidades e os impasses da pastoral popular. A referência ao Nordeste é inevitável. Nessa região operou-se uma profunda mudança da Igreja, antes e depois de 1964, influenciam o com isso a pastoral do Brasil inteiro. A situação de extrema exploração, revelando o abismo existente entre o pequeno grupo da burguesia dominante e a massa dos trabalhadores oprimidos, deve certamente ter contribuído para essa transformação. Essa situação reforça a necessidade de participação comunitária nas decisões, de forma articulada com os educadores, como único caminho para o povo exercer um direito que lhe está sendo subtraído - o direito à educação pública e gratuita. As causas são várias e complexas. Desejamos somente salientar o avanço da Igreja nestes últimos anos, para depois tecer algumas considerações críticas. Sempre houve certa solidariedade da Igreja com os latifundiários e uma grande preocupação com o próprio rebanho. Gregório Bezerra conta nas suas Memórias um problema surgido com o bispo de Pesqueira no ano de 1960: Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 263 263 27/09/09 10:04 Cláudio Perani “Iniciara-se um período de seca e o campesinato pobre do agreste e do sertão entrou a passar fome. O bispo conseguira uma grande quantidade de charque e gêneros alimentícios (feijão, farinha, milho, leite em pó) e ia distribuir os donativos à massa flagelada; mas só queria salvar o corpo dos que já tinham a alma garantida, isto é, só queria dar alimentos aos que confessavam e comungavam. Isso provocou enérgicos protestos. Sua Eminência recuou, mas tratava-se de um recuo tático, limitado: passou-se a fazer discriminação na quantidade, de maneira que os católicos recebiam mais e os não-católicos recebiam menos. (...) O bispo de Pesqueira passou a atacar ainda mais furiosamente a liga camponesa e o ‘agente do imperialismo russo Gregório Bezerra’. Precisamos contratacar e desmascarar o ilustre prelado como instrumento consciente dos latifundiários”1.1 Na caminhada, a Igreja abriu-se para o povo e para um ecumenismo abrangente. Pe. Edgar Carício de Gouveia, vigário de Igarapeba-Pe, afirmava em 1963: “É melhor a gente estar com as massas do que com um pequeno número de pessoas poderosas. O pequeno número vem depois”2. Mais tarde, em 1968, Pe. Antônio Henrique Pereira Neto, assassinado pela repressão no Recife, dá seu depoimento: “A minha tarefa básica é a reconciliação, que deve prescindir da religião, e levar as pessoas a uma maior autenticidade (...). É uma ação sem manchetes nem fachadas; não pretendo trabalhar nas cúpulas: acredito nas coisas de base (...). Nunca fui escolhido pelo bispo, nem acho isso importante. Fui escolhido pelo povo, os estudantes com quem convivo diariamente (...). Mantenho entre a juventude um contato permanente com pessoas de outras crenças e religiões: protestantes, judeus, espíritas e ateus. A missa que celebro é ecumênica; mesmo os que não são cristãos se sentem de tal maneira a comungar também (...) Os setores de esquerda apenas se opõem aos cristãos que não têm uma fé comprometida com a vida”3. 1 BEZERRA, Gregório: Memórias, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, vol 2.º, 1979, p. 159. 2 Cit. por CALLADO, Antonio: Tempo de Arraes, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 105. 3 Cit. por KRISCHKE, Paulo José: A Igreja e as Crises Políticas no Brasil, Petrópolis, vozes, 1979, p. 46. 264 Revista ceas 233.indd 264 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas Dos latifundiários para as massas trabalhadoras, de posições ferrenhamente anti-comunistas para comportamentos ecumênicos: é uma caminhada de Igreja não sempre retilínea e homogênea, muitas vezes revelando um movimento pendular com avanços e recuos, mas certamente produzindo novidades concretas que modificaram a presença da Igreja na realidade nordestina. Exemplo dessa mudança pode ser considerado o encontro das Comunidades Eclesiiais de Base realizado em Canindé-CE, de 4 a 8 de julho de 1983. Apesar de ser um encontro nacional, a presença nordestina, sobretudo de estados como Maranhão e Ceará onde faz tempo existem as CEBs, foi marcante, revelando uma nova face da Igreja. Esta novidade, sintetizada na famosa frase “opção pelos pobres”, consiste numa abertura da Igreja para as massas marginalizadas e, conseqüentemente, para uma vivência de fé mais ligada à problemática da justiça nas relações sócio-econômico-políticas entre os homens. Em Canindé o povo do campo, das periferias urbanas e das fábricas estava presente, prova concreta de uma caminhada de conversão que não ficou nos documentos bonitos, mas que conseguiu dar frutos. Reconhecido isso e a partir deste dado de fato, as notas seguintes querem ser mais questionadoras. E conhecida a dificuldade que a Igreja tem em fazer auto-crítica. O auto-envolvimento impede também aos cristãos comprometidos na pastoral ter, para seu próprio trabalho, o mesmo olhar crítico que existe em relação à Igreja institucional ou a outros movimentos sócio-políticos. A perspectiva do artigo quer ser a do evangelho: “Por quê olhas a palha que está no olho do teu irmão e não vês a trave que está no teu?”. Para isto pode ajudar uma panorâmica histórica limitada ao período que imediatamente precedeu a 1964. Naquela época lançaram-se sementes que frutificaram mais tarde em direções diferentes, mas cujas raízes já estavam presentes. A problemática da Igreja antes de 1964 pode iluminar os problemas que hoje estamos vivendo. 1. ANTES DE 1964 1.1. O surgimento de uma igreja preocupada com o povo Nossa referência histórica limita-se a considerar os anos que imediatamente Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 265 265 27/09/09 10:04 Cláudio Perani precederam o “golpe” (1960-1964). Nesse período o quadro conjuntural nordestino/brasileiro é bem complexo, diversificado e em evolução. O governo Juscelino Kubitschek tinha impulsionado a expansão capitalista favorecendo a penetração do capital estrangeiro na região Centro-Sul e estendendo-a até o Nordeste. A Sudene foi fundada em 1959. Nos anos considerados, as dificuldades econômicas acentuaram-se; os setores dominantes procuravam, na esfera econômica, uma política de modernização do sistema capitalista e, na esfera política, uma orientação populista. Tal populismo engendrou mecanismos populares de apoio em cujas bases se deu um fortalecimento progressivo de setores populares que, não encontrando seus porta-vozes nos canais partidários tradicionais, se expressavam mais através dos movimentos de cultura popular, de educação popular ou de formas novas de organização, como as Ligas Camponesas. Essa emergência das classes populares pressionava outros setores da sociedade no sentido de uma tomada de posição. Nesse contexto, ajudada pela abertura provocada pelas encíclicas sociais de João XXIII e pela problemática conciliar, a Igreja se renova procurando um maior contato com o povo e mostrando uma maior preocupação com os problemas sócio-econômicos. Não foram os bispos (sem excluir algumas exceções) que criaram essa abertura da Igreja. Ela resulta de um processo que frutificou inicialmente em suas bases, por iniciativa, em primeiro lugar, de leigos e, em segundo lugar, de padres e freiras. Enquanto os bispos ficavam mais afastados e protegidos, os outros estavam mais em contato seja com os ambientes da esquerda seja com as camadas populares. Foram as práticas efetivas de setores católicos minoritários que forçavam bispos e setores mais amplos da Igreja para um compromisso social crítico. No Nordeste teve grande atuação o Movimernto de Educação de Base (MEB) de iniciativa da Igreja Católica e financiado pelo Governo Federal4. Seus quadros dirigentes provinham em grande parte da Ação Católica Especializada, em particular da Juventude Universitária Católica, por isso é importante que façamos uma referência a esse movimento, de âmbito nacional, mas que teve um grande influxo no Nordeste. 4 Cf. WANDERLEY, Luiz Eduardo W.: Educar para transformar, Petrópolis, Vozes, 1984. 266 Revista ceas 233.indd 266 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas A JUC5 sempre foi orientada pelo método “ver-julgar-agir”, nascido na Bélgica com Cardijn e a JOC, com o objetivo de afirmar a unidade de vida do jovem trabalhador e ajudá-lo a viver sua fé no ambiente de trabalho. Esse método permitiu ao movimento católico uma abertura para o social e o político, num primeiro momento limitado ao mundo universitário, para depois abrir-se à sociedade toda. A JUC superava o dualismo fé-política, apesar de ter vivido sempre a tensão dessa relação. Na caminhada iniciada foi descoberta a necessidade de uma compreensão mais concreta, mais “científica” da realidade. O “ver” mais superficial, descritivo e fenomênico das primeiras análises, tinha que ser aprofundado para permitir uma compreensão mais profunda e global da realidade, descobrindo as causas dos problemas detectados. O contato com os comunistas permitiu à JUC uma caminhada de aprimoramento de seu instrumento de análise, unindo seus princípios cristãos a elementos pro vindo das ciências sociais, em particular, da sociologia marxista. As etapas dessa caminhada passam pelos momentos identificados pelas idéias de ideal histórico e de consciência histórica. O pe. Almery Bezerra, assistente de Recife, apresentou um trabalho em 1959 (Da necessidade de um ideal histórico) em que, reconhecendo o caráter mais especulativo da Doutrina Social da Igreja, afirmava: “É absolutamente necessário, em vista de um engajamento cristão eficaz na ordem temporal, que se faça uma ampla e cuidadosa reflexão sobre as realidades históricas concretas (segundo tempo e lugar), à luz dos princípios universais cristãos, em busca da fixação de certos princípios médios (grifo do autor), que exprimem o que se pode chamar de ideal histórico cristão”6. No Congresso dos 10 anos (4-5.07.60) são esboçadas umas linhas gerais desse Ideal Histórico: no nível religioso a orientação fica bastante tradicional; no nível econômico apresenta-se uma opção pelo desenvolvimento que exige a 5 Cf. SOUZA, Luiz Alberto Gomes de: A JUC, os estudantes católicos e a política, Petrópolis, Vozes, 1984. 6 Citado por SOUZA, op. cit., p. 155. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 267 267 27/09/09 10:04 Cláudio Perani superação do capitalismo; no nível político menciona-se a importância de os partidos estarem ligados aos interesses das classes menos favorecidas7. Os compromissos concretos dos jucistas - na política estudantil, nos movimentos de cultura popular, no sindicalismo rural, no MEB... - fazem avançar a discussão teórica e a abertura do movimento para com o povo. No Manifesto do DCE da Universidade Católica do Rio de Janeiro (março de 1961) se dizia: “Temos consciência de que a promoção das classes operário-urbanas e campesino-rurais se coloca, neste momento, dentro da perspectiva cristã, como o passo mais largo que a história exige das vanguardas atuantes no sentido da humanização do mundo. Nesta promoção, a educação das massas é uma tarefa da primeira hora”8. Aparece no Manifesto e nos artigos do Pe. Henrique Lima Vaz a idéia de consciência histórica: “É a consciência que os homens de uma época determinada adquirem em relação às condições concretas nas quais suas exigências de realização humana devem ser assumidas e, em conseqüência, na direção da história humana dessa época”9 Colocou-se então a questão prática crucial: “Conviria que a JUC como movimento assumisse a responsabilidade de um trabalho organizado no plano político? Ou seria melhor que os elementos militando na política universitária se organizassem por conta própria, um grupo próprio?”10 A opção escolhida foi a segunda, criando-se a Ação Popular (AP). Se em teoria a distinção entre JUC e AP era clara, na prática surgiram tensões que afastaram sempre mais os dois movimentos. O que aqui nos interessa constatar é a grande presença no MEB de jucistas e das discussões políticas da época. O MEB, com sua discussão teórica centrada nas bases e com seu maior enraizamento na realidade popular, tomava mais concreta a abertura de setores de Igreja para o social e as classes populares. “O MEB desenvolveu uma original pedagogia popular, engendran7 8 Ibid., p. 175. 9 Ibid., p. 198. 10 Palavras de Frei Romeu Dale, in ibid, p. 192. 268 Revista ceas 233.indd 268 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas do subsídios concretos para uma efetiva integração da teoria com a prática, para a investigação militante, para a educação libertadora. A prática educativa, que se desdobrou em outras práticas, propiciou condições de desenvolvimento de comunidades (...) conduzindo ao surgimento embrionário de uma democracia de base, calcada em atividades concretas que estavam dando substantividade a um poder local, débil mas efetivo”11 O Movimento desenvolveu todo um processo de Educação de Base, que procurava favorecer a participação dos interessados, partindo das necessidades e dos meios populares de libertação, e levar a uma ação transformadora, integrando os homens em sua comunidade e na sociedade toda. Mais que os textos teóricos, a prática efetiva do Movimento, que estava a serviço dos trabalhadores rurais em situação de opressão e continuamente em conflito com proprietários e autoridades, contribuiu para uma tomada clara de consciência de classe. Sobretudo foi dada ênfase ao desenvolvimento comunitário, formando comunidades no âmbito familiar ou de vizinhança, passando pelas de trabalho e associação, até o pequeno povoado ou o pequeno município. Nessa perspectiva o Movimento não podia ficar numa prática exclusivamente educativa: com rapidez passou de atividades de alfabetização para níveis mais políticos, encaminhando seus alunos e as comunidades para ações comunitárias econômicas e sociais e para uma atuação no sistema eleitoral e no sindicato. O trabalho de sindicalização rural ocupou grandes forças do MEB, contribuindo para uma orientação mais positiva, alertando, em contraposição às posturas dos bispos e do clero, contra “um perigo real de se imprimir uma orientação anticomunista” e contra “a tendência danosa de formar um sindicalismo cristão e a lastimável realidade de padres - em vários Estados - estarem assumindo a vida sindical realizando assembléias e dirigindo diretorias”12. 11 WANDERLEY, op. cit., pp. 16-17. 12 Ibid., p. 285. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 269 269 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Todo esse trabalho de base teve seu reconhecimento a nível de cúpula e forçou a abertura dos bispos. A Mensagem da Comissão Central da CNBB (30.04.63) declarava, entre outras coisas: “Sabemos que o simples acesso à terra não é solução cabal para o problema. Mas o julgamos inadiável para a realização do direito natural do homem à propriedade (...). Para a realização deste imperativo, a desapropriação por interesse social (...) é uma das formas viáveis de realizar, na atual conjuntura brasileira, a função social da propriedade rural”. Neste breve quadro histórico encontramos todos os elementos que permitem explicar a abertura atual da Igreja nordestina. Sobretudo por iniciativa de leigos, através do método Ver-Julgar-Agir e das perspectivas do Ideal e da Consciência Históricas, a Igreja abriu-se ao social, superando o dualismo espiritual-temporal, fé-política, e comprometendo-se com os setores populares, numa dimensão comunitária. Nem tudo foi positivo e tranqüilo. Ao contrário, muitas tensões suscitadas foram resolvidas dentro de uma perspectiva autoritária, que deve ser lembrada. 1.2. Divergências e impasses Enquanto a nível de “base” estava em andamento essa abertura para os setores populares, a nível mais “hierárquico” as tendências eram diferenciadas. Há uma orientação desenvolvimentista que confia no poder político, realizando-se assim uma simbiose entre a Igreja e o Estado, bem visível particularmente na criação da Sudene. A preocupação com a problemática social da região e a falta de confiança na capacidade do povo leva a Igreja a aliar-se com o Estado. Nos encontros dos bispos nordestinos (maio de 1956 e maio de 1959) aparecem técnicos e autoridades do governo, são estudados temas econômico-sociais, são exigidos planejamentos adequados, entregando aos economistas, patemalisticamente advertidos, a solução dos problemas. A Sudene - aprovada em dezembro de 1959 - é entusiasticamente apoiada pelos bispos. A falta de uma análise mais classista e a excessiva confiança nos técnicos e nas autoridades não permitiram perceber na época que a Sudene, já em sua gênese, correspondia à necessidade capitalista de uma modernização econômica e de um reforço do controle político do Nordeste, que nada tinham a ver com as necessidades dos oprimidos. 270 Revista ceas 233.indd 270 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas Alguns bispos e padres entram diretamente no campo social favorecendo a sindicalização rural. Começou no Rio Grande do Norte, com base no SAR13 (1960), daí se estendendo para outras regiões: SORPE (1961) em Pemambuco SORAL (1962) em Alagoas, equipes de sindicalização no Piauí, Sergipe, Maranhão e Bahia. Além da preocupação social, era bem evidente o objetivo de fazer frente ao comunismo considerado presente nas Ligas Camponesas e nos Sindicatos ligados ao PCB. Na linguagem popular as Ligas “eram de Julião” e os Sindicatos “eram dos padres”. As Ligas Camponesas, colocando como único inimigo o latifúndio, constituíam uma ameaça à estrutura fundiária da sociedade nordestina e à Igreja ligada ao latifúndio e contrária à luta de classe. Os Sindicatos ligados à Igreja tinham uma tendência reformista, procurando buscar uma solução harmônica das diferenças existentes entre agricultores e latifundiários. A preferência era dada à formação de cooperativas como meio de melhorar a vida dos camponeses. É fácil compreender como tais orientações entrassem em choque com o trabalho desenvolvido pelos movimentos de Ação Católica Especializada e pelo MEB. A repressão, seja do governo seja da Igreja, irá atingi-los violentamente sobretudo depois do golpe de 1964. Já antes podemos constatar fortes tensões, desconfianças e medidas disciplinares contra JUC e MEB. O problema político coloca-se como pano de fundo de muitas discussões e divergências. Já vimos a solução encontrada pela JUC: ou ela mesma adquirir um conteúdo mais político, ou dar origem a um movimento autônomo propriamente político. O segundo caminho escolhido, mais fácil para eliminar determinadas tensões, pode ter contribuído para a luta contra o sistema opressor; talvez não tenha ajudado para um ulterior aprofundamento da dialética fécompromisso, facilitando a divisão dos campos e - ultimamente - tornando-se um dos motivos do enfraquecimento dos dois polos, representados institucionalmente pela JUC e pela AP. O que aparentemente mais criava dificuldade era o encontro com os grupos da es13 SAR: Serviço de Assistência Rural; SORPE: Serviço de Orientação Rural de Pernambuco; SORAL: Serviço de Orientação Rural de Alagoas. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 271 271 27/09/09 10:04 Cláudio Perani querda marxista. “Nas circunstâncias concretas em que vivemos, os militantes e as organizações católicas não devem entrar em frente comum com os movimentos de doutrina ou ideologia marxista ou capitalista liberal”14. Essa advertência dos bispos da CNBB ao Assistente-Geral da ACB, Dom Cândido Padim, parece apelar para princípios éticos da Doutrina Social da Igreja, mantendo equidistância entre comunismo e capitalismo. Na prática era aplicada discriminadamente contra os cristãos que colaboravam com movimentos ou grupos de esquerda e não valia para os bispos quando apoiavam a Sudene, certamente de inspiração capitalista. E isso acontecia quando João XXIII afirmava a distinção entre idéias filosóficas e movimentos históricos, abrindo com isso perspectivas práticas de colaboração. Devemos, porém, constatar também uma tensão a nível de base, particularmente no MEB .e.noutros trabalhos populares, quando militantes de formação cristã, encontravam-se com militantes comunistas. Entretanto, os conflitos dentro da Igreja, de ordem doutrinária ou ideológica, são também conflitos de poder. O Assistente Nacional da JUC, Frei Romeu Dale, numa carta a Dom Helder Câmara em 1961, afirmava com muita honestidade: “Nossos padres e nossos bispos precisam rever o modo de exercer sua autoridade”15. Os movimentos de ação católica e de educação popular eram integrados por leigos que, na medida em que entravam sempre mais em contato com os setores populares e com militantes de outras ideologias, percebiam novas exigências questionadoras de esquemas eclesiais conservadores. De um lado os leigos sentem a necessidade de um maior espaço decisório dentro da Igreja, doutro lado a hierarquia se sente atacada e reage defendendo o princípio de sua autoridade. Nesse momento apela com facilidade a problemas doutrinários, quando de fato o problema é uma maior responsabilidade dos leigos, considerada como insurbordinação pela hierarquia. Com o golpe de 1964, a repressão interveio mortalmente nos movimentos populares nordestinos. Lideranças camponesas e operárias, agentes de pastoral e militantes de esquerda foram presos e condenados, destruindo-se assim muitas organizações populares. Nesse momento a maior parte da hierarquia é solidária com os autores do golpe. A Ação Católica e o MEB são atingidos. Mas no Nordeste não morrem. Apoiados por Dom Helder Câmara e outros 14 Cit. por SOUZA, op. cit., p. 209. 15 Ibid., p. 187. 272 Revista ceas 233.indd 272 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas bispos, ficam alguns grupinhos que procuram continuar fiéis à perspectiva de serviço às classes populares. Entretanto, para ver a fecundidade do esforço anterior a 1964 não se deve ficar numa perspectiva linear. O que foi destruído em 64, de fato, não morreu. Houve uma dispersão que contribuiu para que a abertura da Igreja para os setores populares se reconstituísse numa dimensão nova e bem mais ampla. Foi a partir do trabalho anterior a 64 que nasceram as Com unidades Eclesiais de Base e as várias pastorais populares. A semente frutificou dando origem a uma Igreja popular que consegue realizar, nas novas circunstâncias sócio-políticas e numa dimensão mais amadurecida, as conquistas da época precedente. Muitos impasses antigos são superados pela maior presença de setores populares dentro da Igreja. Outros voltam sob novas formas. E o que devemos considerar no seguimento do artigo. 2. NASCE UMA IGREJA POPULAR Foi depois do golpe de 1964 que se concretizou ainda a mais a perspectiva do Pe. Gouveia de “estar com as massas”. Enquanto a CNBB divulgava pronunciamento que significava um retrocesso em relação às declarações de 1963, inúmeros leigos, padres e freiras retomavam o caminho do interior e dos bairros periféricos. Sensibilizados pelas condições de vida do povo nordestino e apoiados por alguns bispos da região, antigos militantes e assessores da AC e do MEB, acrescentando-se novos agentes de pastoral nativos do Nordeste ou chegando de fora, mudam de lugar, deixam a sacristia para viver no meio do povo, “acreditando nas coisas da base” - como afirmava Pe. Henrique. Sacerdotes, catequistas, freiras, membros de organizações de apostolado adotam novas atitudes frente ao meio em que vivem, a fim de inserir-se melhor nas comunidades populares. Habitualmente essa presença não tem um objetivo concreto, a não ser o desejo de uma maior solidariedade com os oprimidos, procurando amizade. Trata-se de um trabalho anônimo, na solidão e insegurança, às vezes, sem canais de comunicação a nível de Igreja. É uma presença vivencial, de testemunho. Não elimina o problema de uma presença mais crítica, mas é ponto de partida fundamental também para questionar a pseudo visão crítica dos agentes. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 273 273 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Surgem, então, as Comunidades Eclesiais de Base, uma das novidades mais importantes da Igreja da América Latina. Não é presunção afirmar que seu berço foi o Nordeste, sem pretender a esclusividade. Sem dúvida cabe distinguir entre a “fundação” preconizada e o desenvolvimento destas comunidades, onde ele se realiza de fato. No Plano de Pastoral de Conjunto a formulação mantém um movimento da cúpula para a base, sobressaindo uma preocupação mais interna: “Na situação brasileira, as paróquias, no seu estado atual, não têm condições de se constituírem nestas comunidades vivas, missionárias e educadoras da fé”16. Na prática nordestina há o encontro concreto de agentes de pastoral com a vida comunitária em certos povoados, bairros, grupos informais e formais de pessoas. Estas comunidades representam uma alternativa mais vital às antigas organizações eclesiais (irmandades, círculos, associações, ação católica etc.). Têm como característica uma maior espontaneidade e aderência à vida local do povo: são grupos de moradores de um bairro, pessoas relacionadas pelo trabalho, ou pelo estudo, clubes espontaneamente surgidos de uma necessidade socialmente sentida. Através destas comunidades a Igreja abre-se ao povo, às massas. Apesar de serem, habitualmente, grupinhos numericamente limitados, tal orientação pastoral significa, de um lado, a entrada do povo na Igreja, como participante e ator, e do outro, a abertura da Igreja aos verdadeiros problemas, necessidades e aspirações das massas. É por esse caminho que a Igreja consegue fazer a vinculação entre o “Pai nosso” e o “Pão nosso”. É por esse caminho que se opera um progressivo distanciamento da autoridade política e da classe burguesa para aproximar-se das classes populares. Nas palavras do Cardeal D. Avelar Brandão Vilela: “A consciência religiosa não quer ser o ponto de apoio para a garantia de privilégios de uma pequena minoria contra a esmagadora maioria da população”17. Alguns movimentos tradicionais ou novos continuam ou surgem no Nordeste. Devemos lembrar o Movimento de Evangelização a partir dos bairros de Recife, a Animação Cristã do Meio Rural, a Pastoral Rural, a Ação Católica Operária etc. São todos movimentos bem presentes nos setores populares, 16 BARROS, Raimundo Caramuru de: Comunidade Eclésia de Base: uma opção pastoral decisiva, Petrópolis, Vozes, 1968, p. 45. 17 Veja, 22.08.73, p. 5. 274 Revista ceas 233.indd 274 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas constituindo núcleos de resistência e de denúncia também nos anos mais duros da repressão. Em 1970 a ACO publicava um documento de denúncia, afirmando que “ao trabalhador do Nordeste é proibido ser homem”. Foi a dolorosa conclusão a que chegou um grupo de militantes operários das diversas cidades do Nordeste, depois de prolongada pesquisa sobre a realidade da vida operária na região. Ampliando o espaço geográfico do Nordeste, até o Centro-Oeste e a Amazônia, regiões que podem constituir o Nordeste amplo, devemos lembrar o nascimento em Goiânia, no ano de 1975 da Comissão Pastoral da Terra, que em pouco tempo se estendeu ao Brasil todo. Não se tratava de criar um movimento de trabalhadores rurais cristãos, mas de a Igreja abrir-se à problemática dos posseiros, violentamente expulsos de suas terras, solidarizando-se com eles e ajudando sua luta. A “questão da terra” tomava-se ponto de partida e conteúdo mesmo da evangelização. A importância da iniciativa e a novidade da orientação pastoral são comprovadas pelos seus frutos. As próprias, CEBs, que depois de alguns anos de vida estavam sofrendo um processo de fechamento, foram reanimadas com essa perspectiva de ir ao encontro dos conflitos concretos vividos pelas classes populares. O crescimento no Nordeste amplo de uma Igreja popular, não em contraposição à Hierarquia, mas no sentido de uma Igreja integrada efetivamente pelo povo participante e a serviço do povo, teve seu reconhecimento e sua sistematização teórico-oficial em dois documentos eclesiásticos, saídos aos 6 de maio de 1973 em Goiânia (Marginalização de um Povo) e em Recife (Eu ouvi os clamores do meu povo), assinados por bispos e superiores religiosos. Sem esquecer seus limites, podemos reconhecer o grande avanço da Doutrina Social da Igreja nesses dois documentos. São documentos engajados, conseguindo um compromisso concreto por suas perspectivas regional e popular; utilizam uma prévia análise sociológica da realidade; abandonam o modelo de “desenvolvimento” para assumir a perspectiva de “libertação”; recusam dirigir-se aos poderosos, mas escolhem conscientemente os setores populares, confiando em seus valores e sua capacidade de organizar. É o reconhecimento oficial, mesmo que parcial, de toda uma caminhada de comunidades populares e de agentes de pastoral vivendo e testemunhando uma situação social gritante e exigindo uma mudança radical da Igreja. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 275 275 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Tal mudança continua em andamento. A pastoral popular sofre imediatamente a influência da situação econômico-política. Nos anos da repressão mais violenta (1969-1973), o posicionamento mais firme da Igreja foi resposta ao ataque do Governo que não poupou CNBB. Foi um posicionamento ao lado dos pobres porque “contra o Estado”. Mais recentemente, teve que confrontarse com a problemática política da “abertura” e das eleições de novembro de 1982; ficou questionada pela tremenda seca que assolou o Nordeste nestes últimos 6 anos. Não vamos lembrar essa história, preferimos apresentar alguns questionamentos para iluminar a caminhada atual. Reencontramos, mesmo que num contexto diferente, problemas e tensões que apareceram na crise antes de 64. 3. ALGUNS QUESTIONAMENTOS 3.1. O poder dentro da Igreja É inegável a grande mudança, já visível em muitos lugares, pelo que se refere à estrutura interna da Igreja, à questão do poder e das relações entre os diferentes membros da Igreja. A Igreja popular é uma realidade, significando uma maior presença de setores populares dentro dela, com possibilidade de participação maior e com peso considerável nas várias decisões a serem tomadas. As CEBs comprovam isso com sua grande diferenciação. Têm seu dinamismo próprio, são espaços onde o povo pode falar e rezar conforme seu desejo e necessidade, têm sua produção literária acessível e criada, muitas vezes, por pessoas iletradas... O conteúdo debatido e as lutas enfrentadas, de caráter mais “secularizado”, são outra prova de uma maior democratização interna. O povo tem mais possibilidade de debater seus problemas concretos, que são problemas de saúde, de moradia, de sobrevivência, de trabalho, de relacionamento... Tudo isso pode ser constatado em muitos lugares e é, certamente, sinal de uma mudança. Mas daí a concluir que a Igreja conseguiu redistribuir seu poder interno, o caminho é longo! Devemos reconhecer a grande capacidade da autoridade eclesial em manter ou recuperar seu poder. Fala-se habitualmente do controle dos padres ou de certos animadores, chamados, por isso, de minipadres. Vamos aprofundar um pouco mais essa questão. 276 Revista ceas 233.indd 276 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas Não devemos esquecer o peso institucional da Igreja. Sua estrutura é hierárquica, o controle e as decisões vêm de cima. A nível de eleição de bispos ou de nomeação de vigários não foi mudado nada. Afirmamos a função particular da hierarquia, no que se refere à interpretação dos dados da fé e à condução da igreja, e a importância da instituição para dar segurança e apoio, criar continuidade, dar unidade etc. Questiona-se o exercício “autoritário” na linha do poder e não do serviço, a exclusão de outras responsabilidades, a intervenção em campos não próprios etc. Na prática, na medida em que a hierarquia (bispos e padres) intervém, pode esvaziar certo conteúdo popular e impor necessidades próprias. No último encontro nacional das CEBs, em Canindé, uma carta das CEBs da Arquidiocese de Goiânia criticava o Regional da CNBB que - talvez com a boa intenção de colaborar - mandou todas as orientações de cima, burocraticamente, quebrando a tradição de dinâmica de base que têm as CEBs. Isso aconteceu noutros Regionais. Exigência inevitável de um movimento que cresce? A falta de padres - agentes intermediários entre bispos e povo - e a ausência de movimentos de classe média como na época da AC antes de 1964, levaram a hierarquia a assumir diretamente, em primeira pessoa, a pastoral popular18. Muitas vezes tal situação é considerada como um passo de democratização. Se de um lado o contato mais direto do bispo com o povo pode levar a uma mudança do exercício do poder, na linha de um efetivo serviço, doutro lado devemos também ter presente que a manipulação do povo ou do grupo dos animadores populares é mais fácil quando não existe a mediação dos padres ou da classe média, com maiores possibilidades de questionar a autoridade última. “Tocamos aqui, num ponto que permite refletir sobre o equívoco de colocar um sinal positivo, de maneira automática e sem maiores distinções, nos movimentos sociais, apenas Porque surgem na base das instituições. A força de estereotipar uma crítica das elites, termina-se por esmaecer a possibilidade de forças políticas profundamente autoritárias virem “de baixo”, as quais, longe de levar a uma ruptura com o poder estabelecido, entram em sua via de reforço. O peso destes movimentos torna-se maior se houver uma convergência entre a ação “espontânea” vinda da base e uma direção centralizada e calculada proveniente do alto”19. 18 Cf. LIMA, Luiz Gonzaga de Souza: Evoluçção Política dos Católicos e da Igreja no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1979. 19 ROMANO, Roberto: Brasil: Igreja contra Estado, São Paulo, Kairós, 1979, p. 85. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 277 277 27/09/09 10:04 Cláudio Perani A consideração da produção da reflexão teórica é outro exemplo que permite descobrir o persistente autoritarismo eclesiástico. Permanece ainda um grande abismo entre, de um lado, a linguagem técnica e o intelectualismo de certos documentos oficiais e da reflexão sociológica e teológica, mesmo que se trate da teologia da libertação, e do outro, o antiintelectualismo presente no trabalho de base. Essa distância é assumida conscientemente por muitos agentes de pastoral e assessores, quando consideram unicamente deles as tarefas de fornecer instrumentos de análise, de sistematizar e teorizar os dados fornecidos pelo povo ou de formular projetos alternativos. Devemos reconhecer o avanço popular dos documentos oficiais na medida em que se solidarizam com o povo e tratam seus problemas. É também evidente que existem conhecimentos diferentes. Mas a possibilidade de análise e de teorização não pode ser reservada aos intelectuais, caso contrário os setores populares continuarão sempre dependentes e serão levados onde eles não querem pelo “padre” ou pelo “doutor”. Os exemplos, também na Igreja popular, são fáceis. Encerrando esse ítem, achamos importante lembrar os fatos antes de 64: a importância que assumiu o problema disciplinar dentro da Igreja em relação aos movimentos leigos, como se colocou e como a instituição reagiu. O contexto hoje é diferente, mas pode continuar uma dinâmica semelhante. 3.2. CEBs, modelo de uma nova sociedade? No encontro de Canindé, das CEBs, o tema foi exatamente “CEBs, povo unido, semente de uma nova sociedade”. Numa perspectiva de fé comprometida com a vida e de Igreja aberta para o povo e a problemática social, é evidente que se pense na nova sociedade. Como não exigir uma mudança diante da situação de fome da maioria dos nordestinos? Na medida em que as CEBs introduzem dentro da Igreja novas relações de participação e novos instrumentos de convivência, haverá um refluxo positivo na problemática mais ampla da sociedade toda. Novas forças estarão disponíveis, ensaios de democracia poderão iluminar outros caminhos. Mas considera as CEBs, inicialmente propostas como instrumentos de renovação da estrutura interna da Igreja, agora como padrão organizatório para toda a sociedade, pode ser perigoso. A imagem da semente é uma imagem evangélica, com um 278 Revista ceas 233.indd 278 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas conteúdo teológico de “fraqueza-poder”, “morte-ressurreição”, presença da “graça”, que não pode ser entendido, assim sem mais, somente em sentido sócio-político, como de fato acontece. Muitas vezes, há uma mistura de duas linguagens, teológica e sociológica, que pode criar confusão e equívocos. Quando na pastoral popular se fala da nova sociedade, existe um certo triunfalismo eclesial e muito idealismo. Confunde-se a perspectiva da utopia evangélica com o concreto da realidade eclesial e política. Uma análise sociológica das CEBs no Nordeste leva a reconhecer que se trata de pequenos grupos (o povo é sempre bem mais amplo!), muitas vezes fechados. Constata-se que facilmente viram seitas. Depois de 1982 em vários lugares do Nordeste falou-se em esvaziamento das CEBs. Num encontro no Maranhão, diante desta constatação, foi apresentada a necessidade de “sair da Arca de Noé”! Não negamos a fecundidade evangélica da abertura política da pastoral popular no Nordeste. E a caminhada deve continuar. Diante de certos esvaziamentos das CEBs durante os últimos anos, alguns grupos refugiaram-se num trabalho exclusivamente bíblico. Pode ser um recuo tático conveniente, mas pode enfraquecer o necessário conteúdo político da opção de fé, sob pena de esvaziar a própria fé. A nova sociedade deve ser construída com a participação de todas as forças integrantes a sociedade. Quando as CEBs pensam “seu projeto de sociedade”, correm tremendo perigo de isolamento e, mesmo não querendo, vai ser difícil evitar a solução tipo “cristandade” ou “neo-cristandade de esquerda”. Torna-se mais difícil o relacionamento com outros setores da sociedade, que têm outros projetos, talvez igualmente ou mais populares e eficazes. Entra-se no caminho difícil das alianças. Ou, pior ainda, assume-se uma atitude de defesa e de condenação de outros movimentos que julgamos instrumentalizar o povo. E introduzido, uma vez mais, um elemento de fechamento, que não somente impede “sair da Arca de Noé”, mas pode significar, também em termos políticos, uma contribuição a menos para construir a nova sociedade. O contrário daquilo que se deseja. Seria importante recuperar a memória histórica dos fatos anteriores a 64: avaliar a experiência e os resultados do sindicalismo cristão, da colaboração com as esquerdas, das alianças feitas; considerar a contribuição recebida, as tensões vividas ou eliminadas... Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 279 279 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Podemos desdobrar um pouco mais esse ponto, introduzindo um último questionamento. 3.3. A politização da pastoral Não negamos a fecundidade evangélica da abertura política da pastoral popular no Nordeste. E a caminhada deve continuar. Diante de certos esvaziamentos das CEBs durante os últimos anos, alguns grupos refugiaram-se num trabalho exclusivamente bíblico. Pode ser um recuo tático conveniente, mas pode enfraquecer o necessário conteúdo político da opção de fé, sob pena de esvaziar a própria fé. O que se questiona é a identificação teórica do compromisso pastoral com o engajamento partidário. Em muitos ambientes da pastoral popular o engajamento com o povo foi evoluindo no sentido de achar que o quente da luta fosse a prática partidária. Vários esquemas teóricos apresentavam a necessária evolução, das CEBs para o Sindicato até o Partido. A pastoral de Crateús sintetizou na célebre imagem dos “três paus”: facão, foice e machado. O facão são as CEBs que iniciam o trabalho desmatando o mato; a foice são os movimentos populares - quase sempre reduzidos ao sindicato - que vão abrindo o caminho e desenvolvendo a consciência política; o machado é o partido político para derrubar as árvores grandes. Com isso dava-se a impressão que a maior força política do povo estivesse no sindicato e no partido. Dom Fragoso, bispo de Crateús, confirma isso: “O compromisso sindical é a expressão visível do compromisso evangélico (...). A luta de classe é feita, primeiramente, a nível da comunidade, como luta sindical. O povo se organiza em pequenas categorias profissionais, dentro de seus sindicatos, para lutar contra a opressão e contra a organização da classe opressora20”. Isso pode valer para a situação de Crateús, mas não pode ser generalizado, pois, numa análise política concreta, em muitos lugares, sindicato e partido, apesar de terem nascido dos movimentos populares, são espaços controlados pelo governo e pelos patrões, onde o povo tem menor poder. 20 FRAGOSO, D. Antônio: “Fé e compromisso para uma pastoral em tempos de revolução”, Vozes, outubro de 1981. 280 Revista ceas 233.indd 280 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas Quanto ao partido, com muita pressa apelou-se para uma filiação partidária, prevalecendo habitualmente o Partido dos Trabalhadores como mais autêntico. As justificativas nem sempre eram de caráter político, sendo que com facilidade entraram razões evangélicas que nada tinham a ver com a escolha do PT. Foi importante, e continua sendo, pelo menos a nível de amadurecimento político, o engajamento partidário de muitos setores de Igreja. Introduziu na prática de alguns partidos uma dinâmica diferente, mais de base e mais democrática. Reconhecemos, também, que pode ser inevitável e necessário, em muitas conjunturas concretas, a identificação prática do grupo de Igreja com uma tendência sindical ou partidária. Questiona-se a escolha política fundada, não somente a nível de motivação última de fé mas também a nível de critérios imediatos, nos dados do evangelho e da teologia, eliminando a autonomia do político propriamente dito e absolutizando uma escolha contingente. Questiona-se, também, a visão política que prioriza o movimento popular na participação em certas formas de organização historicamente já dadas, como o sindicato e o partido. O movimento popular não somente é mais amplo, mas apresenta formas de luta, em que o povo - na conjuntura atual - consegue enfrentar a classe opressora com mais poder que no sindicato ou no partido. Isso não significa excluir sindicato e partido, mas considerá-los dentro de uma outra ótica política. No Nordeste, a nível de base, muitos trabalhadores atualmente estão percebendo tais problemas e se questionam sobre instrumentos utilizados, que apareceram como os melhores, mas que de fato estão afastando do caminho por eles traçado e estão enfraquecendo a luta. Ficaria o problema propriamente teológico do papel político da Igreja. Uma demasiada identificação com correntes sindicais ou partidos políticos pode criar limitações à sua missão e enfraquecer até sua contribuição política ao processo global. Hoje, também, fala-se de sindicato dos padres e de partido da Igreja. A experiência pré-64 - os sindicatos cristãos, as alianças com os grupos de esquerda, a formação da AP, as divergências políticas, a pressa das elites - pode ensinar muita coisa. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 281 281 27/09/09 10:04 Cláudio Perani 4. CONCLUSÃO Temos acompanhado a caminhada da Igreja nordestina na direção de uma abertura sempre maior para os setores populares. Essa caminhada tem suas raízes nos movimentos de classe média e populares anteriores a 64. Seu desaparecimento teve como conseqüência um reflorescer dessa abertura em dimensões mais amplas. A Igreja continua com sua consciência histórica, procurando acompanhar seu tempo com uma visão mais classista. A opção pelos pobres concretiza-se no Nordeste na solidariedade com as lutas dos posseiros por suas terras, com a situação de milhões de flagelados pela seca, com a resistência escondida de milhares de bóias-frias, com as revindicações das grandes massas que ocupam as periferias das cidades... As tensões não faltam. Como antes de 64, também hoje a pastoral popular se confronta com os problemas do autoritarismo interno, da relação fé e política, do diálogo com outros grupos e movimentos. Pela experiência passada parece importante não eliminar as tensões com soluções simplistas, mas saber reconhecer a densidade da história e entrar nela. A caminhada é comprida. Para terminar, à maneira de síntese, desejamos apresentar três perspectivas renovadoras presentes na pastoral nordestina. Toda distinção é relativa. Tratase simplesmente de constatar diferentes atitudes e posicionamentos que caracterizam agentes de pastoral e animadores, aqueles que - mais conhecidos ou mais anônimos - tomaram sobre si, e continuam tomando - o esforço para renovar e atualizar a face da Igreja. Tentamos descrever brevemente tais atitudes, vendo suas diferenças, sem querer pronunciar um julgamento, e sabendo que na prática estão misturadas entre si, muitas vezes tratando-se simplesmente de maior ou menor acentuação de uma a preferência da outra. a) Renovação interiorizante No contato com o povo preocupa-se prioritariamente em reconhecer e favorecer o aspecto propriamente religioso. Quer alimentar a fé em Jesus Cristo, respeitando a religiosidade popular, desenvolvendo uma catequese renovada, atualizando a liturgia. Tem uma perspectiva mais interna, favorecendo a organização, os quadros e os conteúdos eclesiais. Está preocupada com a diminuição 282 Revista ceas 233.indd 282 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 A Igreja no nordeste: breves notas histórico-críticas da fé, com as desistências na Igreja e com o crescimento de outras Igrejas ou religiões. Atua indiscriminadamente com todos os setores da sociedade. Abrese à problemática social a partir da exigência da fé e como conseqüência desta. Procura os pobres e entra em contato com eles para ajudá-los, tentando resolver de imediato, na medida do possível. Sua ação concreta é mais de assistência. b) Perspectiva militante Privilegia a situação concreta dos setores populares, vendo o rosto de cada categoria explorada e procurando comprometer-se com a luta do povo. Assume uma perspectiva de classe. Supera o dualismo espiritual-material, vendo encontro com o pobre como fato espiritual, questionador e alimentador da própria fé. A preocupação é mais externa, mais profética e mais política: adquire importância fundamental o problema da superação da opressão, da mudança da sociedade da organização do povo. Daí as denúncias contra as injustiças. Daí o interesse e o relacionamento com o movimento popular, as associações de bairro, os sindicatos, os partidos. A fé revela sua face política: exige comprometimento e é vivida nessa luta. Preocupa-se com a contribuição que a Igreja pode dar para um projeto de sociedade nova. E nesse projeto a Igreja deve estar presente com seus movimentos. c) Atitude ecumênica À diferença das duas atitudes anteriores, é mais educativa. Dentro de uma opção clara pelos pobres, numa visão classista, coloca como prioritário o respeito para a responsabilidade e a liberdade dos outros, pessoas e grupos. Colabora para que o povo faça sua escolha, seja em termos de fé, seja em termos políticos. Tem uma visão de Igreja como “instrumento”, no sentido que deve estar à disposição e a serviço dos outros. Não é proselitista, não se preocupando com a força numérica de seus quadros ou com o crescimento de outras organizações. Considera a pastoral mais como espaço de troca que de articulação, um espaço de convivência dialógica e posições políticas diferenciadas. Procura descobrir e reconhecer o esforço de comunhão de todas as pessoas e de todos os grupos. Apóia iniciativas de outros. Vive esse ecumenismo numa perspectiva de fé, colocando com Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 283 283 27/09/09 10:04 Cláudio Perani sua atitude vivencia! a pergunta para os outros e deixando a liberdade da resposta. Essas três atitudes podem ser encontradas em muitos agentes e animadores da Igreja nordestina. Mas continua o processo de aprendizagem. Quando o povo participa na Igreja, nunca termina a exigência de conversão para uma sempre maior fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. 284 Revista ceas 233.indd 284 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 RUMOS DA IGREJA NO BRASIL CLÁUDIO PERANI (Publicado originalmente nos Cadernos do CEAS, 100, nov.-dez. 1985) De 6 a 7 de julho de 1985, mais de 3 mil trabalhadores rurais provindos de várias Comunidades Eclesiais de Base - homens e mulheres, jovens e crianças - estavam presentes na Gruta da Soledade, no Santuário de Bom Jesus da Lapa, Bahia. Contavam sua vida, suas alegrias e seus sofrimentos, suas lutas, sua defesa e conquista da terra. Falavam de sua fé no Deus de Jesus Cristo, cantavam, rezavam, celebravam esta fé. A Missão da Terra, naquele momento, constituía-se na imagem de uma Igreja renovada, mais pobre e popular, que está nascendo no Brasil, ou melhor, que já nasceu, já se afirmou com determinadas características, das quais a primeira é o fato de o povo trabalhador assumir seu lugar dentro dela como protagonista e ator. Em síntese, esta é a visão da Igreja no Brasil que desejamos apresentar nestas linhas. O rumo novo já está claramente traçado. Evidentemente, existem tensões e contradições, novos desafios para a continuidade da caminhada; vários setores da Igreja ainda não entraram nesse rumo, outros estão oscilando na nova conjuntura. Mas a direção está dada e a caminhada continua, acumulando sempre mais forças - é nossa conclusão - sobretudo se olhamos o processo a partir de baixo, do povo em movimento. A nova conjuntura - política e eclesial - apresenta seus desafios. As interpretações divergem. Por consequência, também as orientações para o trabalho eclesial. Desejamos - a partir de uma análise sociológica - dar nossa opinião, não pretendendo prever o Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 285 285 27/09/09 10:04 Cláudio Perani futuro, mas simplesmente descobrindo a situação atual e refletindo melhor sobre ela, para iluminar o caminho a ser percorrido. Os obstáculos e as tentações não faltam. 1. CONTEXTO CONJUNTURAL 1.1. Nova República “A Nova República pode ser muito bem uma nova ilusão, uma nova fraude. Os se· nhores deste mundo nosso, colonizado e dependente, poderão permitir que mudem os governos e até os regimes filiais, sempre que se preserve a alma sem alma do sistema. E com ela se mantenha o sacrifício do povo e sua escravidão, particularmente no campo, sempre cobiçado pelos sucessivos impérios.”1 Este lúcido julgamento do bispo Dom Pedro Casaldáglia coloca uma suspeita sobre a Nova República. Dentro da Igreja, as interpretações foram bem diferenciadas, dependendo muito da maior ou menor aproximação com o povo explorado. Alguns setores falaram em “clima de esperança”, “aurora da liberdade”, chegando a confiar nas promessas de mudança do governo: “Tudo leva a crer que a nação evolui de uma democracia de classes médias para uma democracia participativa.”2 Outros setores são mais reservados e questionam o excesso de otimismo levantado. Não somente se reconhece a continuidade da política elitista e concentradora no campo econômico-social - “De três anos para cá, a situação piorou muito. O desemprego aumentou, as instituições estão oneradas, as pessoas cansadas”, afirma Dom Luciano Mendes de Almeida3 -, mas também não se acredita muito na “democracia relativa” que está sendo implantada, onde o povo mais uma vez é marginalizado, como ficou claro na eleição pelo Colégio Eleitoral e como pode ser previsto no novo golpe que vai excluir a massa dos cidadãos brasileiros da elaboração da nova Constituição. A visão da conjuntura política é fundamental para a Igreja traçar suas linhas pastorais. As divisões teológico-pastorais internas, antes de serem uma questão de ortodoxia, 1 CASALDÁGLIA, Dom Pedro. Conquistar a terra, reconstruir a vida, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 8. 2 Comunicacão do Pe. Fernando Bastos de Ávila à 23ª Assembléia Geral da CNBB (Itaici,1019.04.85). 3 Folha de S. Paulo, 09.06.85. 286 Revista ceas 233.indd 286 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Rumos da igreja no Brasil são em sua raiz consequência de diferentes análises políticas. Nosso posicionamento está expresso nas páginas deste caderno, não vamos repeti-lo aqui. Somente acrescentamos algo que mais diretamente se refere à Igreja. A tática do governo, de fato, mudou. É clara a intenção de cooptar a Igreja para tentar superar o fosso que existe entre o governo e a sociedade civil. Mudou o comportamento da cúpula na linguagem e nalgumas iniciativas concretas. O Presidente José Sarney chegou a falar de “opção pelos pobres”, visitou a CNBB numa reunião de 75 minutos com 11 bispos, participou e falou no encerramento do Congresso Eucarístico em Aparecida, convidou a Igreja para participar da Comissão pela Reforma Agrária... Mais clara ainda é a mudança de vários órgãos do Governo que convidam entidades da Igreja para participar de seus planejamentos, que nos seus programas sociais assumem a linguagem e a metodologia das Comunidades Eclesiais de Base, pedem o apoio e a colaboração da Igreja, investem com muito dinheiro, chegam a fazer reuniões com o povo de... Bíblia na mão! Tal orientação é favorecida pela presença de militantes oposicionistas nos 2º e 3º escalões do Governo. Tudo isso é “novo” e deve ser analisado além das intenções das pessoas, considerando quem está com o poder e sua política global, para não cair na fácil ilusão de um efetivo clima de democracia. 1.2. A Conjuntura eclesial A nível internacional, não é difícil constatarmos uma situação de “involução” do processo desencadeado pelo Concílio Vaticano II. Manifesta-se na preocupação com a necessidade de avaliar o movimento de renovação, de abertura, definir e integrar as novas experiências, de voltar à “grande disciplina”, segundo a expressão do Pe. J. B. Libânio.4 Depois de um movimento centrífugo, assistimos ao prevalecer de uma linha centralizadora que, inevitavelmente, tem como consequência atitudes mais conservadoras. Tal orientação, no âmbito latino-americano, começou logo depois da Conferência de· Medellín (1968), com a nova cúpula do CELAM tentando controlar a interpretação e aplicação dos documentos assinados pelos bispos. Tem respaldo nalguns setores do 4 Cf. LIBÂNIO, João Batista: A Volta à Grande Disciplina, S. Paulo, Loyola, 1983. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 287 287 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Vaticano que conseguiram a publicação da Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, a condenação do teólogo Leonardo Boff e a suspensão dos padres nicaragüenses que exercem cargos no governo, entre outras iniciativas. Particularmente revelador é o caso da Nicarágua, onde setores populares das Igrejas, com seus padres, religiosos(as) de congregações e pastores estão apoiando a Revolução, enquanto outros setores, incluindo a maioria dos bispos, fazem uma oposição constante ao projeto revolucionário. Aparece aí com maior clareza o motivo onde se situa o divisor de águas dentro da Igreja: a “opção pelos pobres” manifesta seu limite e suas dificuldades quando se trata de apoiar concretamente uma perspectiva revolucionária popular. No Brasil, nos últimos tempos, assistimos a uma maior iniciativa do grupo de bispos relacionados com o Cardeal do Rio de Janeiro, ocupando os espaços da imprensa nacional diária para atacar a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base e a própria CNBB. Nas palavras do monje beneditino Dom Marcos Barbosa, “graças a Deus, ainda temos aqui no próprio JB uma plêiade de bispos que, quase semanalmente, tenta neutralizar e corrigir as posições da CNBB. Além de Dom Eugênio, citando ao acaso: Dom Lucas Moreira Neves, Dom José Freire Falcão, Dom Luciano Duarte, Dom Boaventura Kloppenburg, Dom José Veloso, Dom Karl Josef Romer”.5 Isso tinha consequências no relacionamento com o Vaticano que privilegiou as informações provindas desse grupo e que levou a Presidência da CNBB e a Comissão Episcopal de Doutrina a reclamar em Roma: “Nas relações com a CNBB, o Vaticano levará sempre mais em conta o ‘princípio de subsidiaridade’ , pelo qual os problemas só irão a Roma, depois de esgotadas todas as instâncias no plano interno da Igreja no Brasil”.6 Sem negar a firmeza com que a CNBB e os bispos mais comprometidos com a perspectiva de abertura aos setores populares enfrentam a conjuntura eclesial de “involução”, temos que constatar alguns alertas que chegam das bases contra uma diminuição de liberdade no trabalho pastoral. A missão do bispo, que sempre deve ser reconhecida dentro da Igreja, numa conjuntura eclesial de fechamento pode levar a atitudes de controle que nem sempre são consequência necessária desta mesma missão. Em todo caso, olhando a conjuntura eclesial mais no nível das cúpulas, reconhecendo a tensão existente entre Roma e a Igreja brasileira, devemos ver o que está por trás 5 Jornal do Brasil, 03.05.85. 6 Notícias, Boletim Semanal da CNBB, 25.07.85, p. 2. 288 Revista ceas 233.indd 288 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Rumos da igreja no Brasil dessa tensão. Sem negar a importância de um questionamento teológico ao redor de certos conteúdos de fé, devemos reconhecer o conflito existente entre uma Igreja mais ligada ao poder institucionalizado e uma Igreja que se esforça para favorecer o poder dos pobres. Por esta tensão passa o caminho de conversão da Igreja e sua consequente maior capacidade de evangelizar. 1.3. A caminhada continua A análise anterior seria parcial e, por isso, levaria facilmente a conclusões erradas, se não fosse completada por uma análise dos setores mais populares que integram a Igreja, dando a estes últimos a importância determinante que assumiram nestes anos. A caminhada da Igreja que nasce dos pobres – apesar dos estágios tremendamente diversificados e dos avanços e recuos existentes – continua hoje e já alcançou tal grau de consistência que dificilmente poderá ser interrompida. Muitos “pobres” - trabalhadores rurais, operários, moradores das periferias urbanas, negros - “entraram” na Igreja. Qeremos com esta palavra acentuar o fato de eles participarem com sua voz, seus problemas e suas decisões, contribuindo, assim para forjar um novo rosto da Igreja de Jesus Cristo. As CEBs estão continuando sua caminhada, vivendo este “novo modo de ser Igreja” e preparando-se para o 6º Encontro Intereclesial, em julho de 1986, sobre o tema “CEBs, Povo de Deus em busca da Terra Prometida”. Focalizam os problemas da terra de trabalho e da terra de moradia (os dois valem seja para o campo seja para a cidade), assim como o desafio da participação política do povo todo, mostrando seu elevado grau de sintonia com a conjuntura atual. A Comissão Pastoral da Terra acaba de realizar sua V Assembléia, avaliando os 10 anos de caminhada, constatando seu rápido desenvolvimento e os frutos produzidos no apoio à luta dos trabalhadores do campo. Podemos também lembrar as diferentes pastorais específicas: CIMI, Pastoral Operária, Pastoral dos Pescadores, Pastoral da Mulher Marginalizada..., e os vários movimentos presentes nas camadas populares, que favorecem um alargamento da base social da Igreja. Através dessa pastoral, estão surgindo animadores e lideranças populares profundamente ligadas às necessidades e às lutas do povo e reinterpretando sua fé e sua missão Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 289 289 27/09/09 10:04 Cláudio Perani cristã evangelizadora. É um fermento novo, já marcado com o sangue do martírio e que revela a presença do Espírito nessa Igreja que nasce dos pobres. A caminhada de renovação da Igreja é assumida por teólogos e por bispos. O documento que serviu de subsídio para a 23a Assembléia Geral da CNBB sobre o assunto “Liberdade Cristã e Libertação” sintetiza assim as características e opções que estão orientando a caminhada evangelizadora e pastoral da Igreja no Brasil: “- Na metodologia, a encarnação vital na realidade e na história de nosso povo. - Na eclesiologia, um novo modo de ser Igreja, concretizado, sobretudo, na Colegialidade Episcopal, no relacionamento da Hierarquia com o povo de Deus, na vida das Comunidades Eclesiais de Base. - Quanto ao conteúdo, a evangelização libertadora se expressa nos documentos oficiais do episcopado e na prática de uma pastoral de conjunto que procura abarcar as diferentes dimensões da vida religiosa-social-política-econômica e cultural. - Na educação da Fé, procura-se o aprofundamento da Palavra de Deus, sobretudo na catequese renovada, círculos bíblicos e reuniões das CEBs onde se trata de integrar Bíblia e vida.”7 Diante desse avanço dos setores populares na Igreja e do acompanhamento de seus pastores, somos levados a uma visão bastante otimista. O processo continua no rumo até hoje apontado. Não significa que não haja recuos ou impasses e que não se deva avançar mais. Não se trata, porém, de mudar de orientação. Trata-se de ver como andar mais na mesma direção. 2. O CAMINHO A PERCORRER 2.1. O Marco de medellín Na década de 60, o sopro do Espírito Santo agitou a Igreja toda que no Concílio Vaticano II chegou a indicar orientações básicas para sua renovação. Podem ser resumidas 7 SEDOC, n. 184, setembro 1985, c. 180. 290 Revista ceas 233.indd 290 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Rumos da igreja no Brasil em duas: 1) o reconhecimento do povo de Deus não mais como simples objeto de cuidados pastorais, mas como sujeito responsável da salvação do mundo;8 2) a consciência da Igreja de ser orientada para o mundo e, por isso, de ter que ler sua própria ordem do dia nos processos da sociedade humana. Para a América Latina, Medellín (1968) representa a aplicação dessa orientação do Vaticano II à própria realidade. Trata-se de um marco fundamental e surpreendente na história da fé na América Latina, o aparecimento de uma voz profética “no umbral de uma nova época da história do nosso Continente”.9 Em Medellín apareceu claro e se pronunciou o nome de um dos pecados fundamentais na realidade de hoje: “as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina” (14,1); “injustiça que brada aos céus” (1,1). Foi reconhecido o grito dos pobres, “o surdo clamor que brota de milhões de homens” (11,2) e, contemporaneamente, foram ouvidas “as queixas de que a hierarquia, o clero e os religiosos são ricos e aliados dos ricos” (14,2). Por último, a necessidade de ação: “Não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação” (Introdução, 3). A Conferência de Puebla foi preparada por um grupo que procurou esvaziar o conteúdo forte de Medellín, impondo uma linha mais doutrinal e apologética, preocupado em definir e defender a verdadeira doutrina, descobrindo e denunciando desvios na Igreja, mais do que continuando a denunciar a dor, a fome e a exploração desumana dos pobres. Por isso, Puebla revela incertezas, contradições e certo refluxo. Apesar disso, porém, reafirma o substancial de Medellín: “uma clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres”.10 E põe em primeiro lugar a necessidade de uma conversão da própria Igreja: “Na Igreja da América Latina, nem todos nos temos comprometido bastante com os pobres; nem sempre nos preocupamos com eles e somos com eles solidários. O serviço do pobre exige, de fato, uma conversão e purificação constantes, em todos os cristãos, para conseguir-se uma identificação cada dia mais plena com Cristo pobre e com os pobres” (11,40). 8 A grande discussão para conseguir colocar o capítulo sobre o Povo de Deus antes do capítulo sobre a Hierarquia é sinal da importância dessa mudança e das exigências que dela decorrem. 9 CELAM, A Igreja na Atual Transformação da América Latina à Luz do Concílio, Introdução às Conclusões, Petrópolis, Vozes, 1969, p.42. 10 III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, A Evangelização no Presente e no Futuro da América Latina, São Paulo, Loyola, 1979, n. 1134. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 291 291 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Na hora em que a Igreja universal é convocada para uma avaliação do trabalho a partir do Concílio Vaticano II, é importante que a Igreja latino-americana volte a Medellín e avalie sua caminhada a partir das intuições fundamentais daquele grande acontecimento: a denúncia das injustiças sociais, o valor dos pobres e a necessidade de agir. Na hora em que há divisões internas entre várias linhas pastorais, sinais de dúvidas e incertezas, Medellín nos lembra os marcos fundamentais da caminhada. Na hora em que a conjuntura apresenta para a Igreja novos desafios, é importante, à luz de Medellín, abraçar a causa dos pobres com mais vigor. Voltar a Medellín não significa retroceder ou negar os passos andados e os avanços exigidos pelas novas situações. Trata-se, simplesmente, de lembrar o ponto de partida, reafirmar uma intuição que se revelou fecunda na história recente da pastoral latinoamericana, enquanto profundamente inspirada no Evangelho. 2.2. Igreja profética A novidade política parece diminuir a necessidade de uma ação profética da Igreja para favorecer uma ação mais de diálogo, negociação, entendimento com as autoridades do Estado. Abrem-se canais novos. Na visita do Presidente Sarney à CNBB, segundo a Folha de S. Paulo (26.06.85), “os bispos lembraram a necessidade de um trabalho conjunto do Governo e Igreja, cada um na sua área específica”. Frase perigosa, pois as palavras “trabalho conjunto” podem levar a pensar numa repentina concordância de objetivos e de planos entre Igreja e Governo; além disso, lembrar a “área específica” parece reafirmar a divisão da sociedade capitalista que reserva só para o governo o “político” e para as Igrejas a “religião”, desvinculada de preocupações sociais. Várias intervenções de setores eclesiais afirmavam a possibilidade de a Igreja, na nova conjuntura, dedicarse à sua específica tarefa pedagógica da fé. Que fazer nessa nova situação? É necessário, em primeiro lugar, reconhecer a novidade. Negá-la ou não considerá-la significaria uma atitude pouco política, ingênua e idealista, enfim prejudicial. Existindo novos canais de comunicação, deve-se pensar em como utilizá-los pelas bases e pela cúpula da Igreja. Se o Governo mudou de tática, a Igreja também deve repensar sua prática. Em segundo lugar, devem-se manter, na nova conjuntura, os princípios e os valores descobertos. O que se revelou válido e foi incorporado na renovação pastoral: a escolha dos pobres, a importância das bases, o reconhecimento e a disposição de aprender da sabedoria do povo, o favorecimento da organização e do poder das classes 292 Revista ceas 233.indd 292 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Rumos da igreja no Brasil populares..., tudo isso deve ser respeitado e mantido. A mudança da prática é necessária para corresponder à nova situação, favorecer e intensificar a orientação básica. Numa situação de negociação, é mais do que nunca necessário manter o espírito profético da Igreja. Melhor, deve aumentar, para contrabalançar eventuais riscos na utilização necessária dos instrumentos da negociação. Deve-se afirmar a análise conjuntural, para saber o que de fato mudou e o que continua na política das classes dominantes para manter seu poder e seus benefícios. Pode ser mais difícil hoje reconhecer a violência contra os oprimidos, porque disfarçada por uma aparência de maior legalidade. Deve ser uma análise mais diversificada, que dê conta de regiões, situações, níveis de organização bastante diferenciados entre si. Na hora em que a Igreja pode ter à disposição meios aparentemente mais eficazes e poderosos, por causa desse favorecimento do governo, ela deve cuidar para não cair na tentação de abandonar, ou relativizar, o lugar dos pobres. Deve, sobretudo, procurar não assumir o papel de mediadora, recusado por Jesus e que a história sempre revelou prejudicial aos pobres e à própria Igreja. Neste ponto, vale reafirmar a preocupação do Papa com o risco de uma Igreja institucionalmente política e lembrar o específico da fé: trata-se de não assumir o poder em substituição do povo, de favorecer o poder dos oprimidos contra os opressores. Aumenta a necessidade de mergulhar sempre mais no mundo dos pobres. Na medida em que se torna inevitável o relacionamento com as autoridades civis, a Igreja deve guardar os dois pés bem enraizados no setor popular. O contato com as autoridades pode enfraquecer o papel profético. Por isso, sempre deve estar subordinado ao processo popular, reivindicando delas o que pode auxiliar tal processo. Para que isso aconteça, é necessário o contato com o povo, lugar onde avança o processo de mudança e de criação do homem novo e onde é possível descobrir o apelo de Deus, denunciar as injustiças, renovar a própria fé, iluminar os rumos da pastoral, sobretudo, não trair os pobres. 2.3. Maiores aberturas Afirmamos acima que não se trata de mudar de rumo, mas de avançar mais no rumo já traçado a partir de Medellín. Indicamos aqui, brevemente, alguns setores onde parece seja necessário investir mais. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 293 293 27/09/09 10:04 Cláudio Perani A. A pastoral popular tem presença na problemática da terra (campo e cidade) e das periferias urbanas. As cidades, porém, crescem com grande rapidez, deslocando sempre mais além da margem atual a massa da população. Além disso, o capitalismo é muito esperto em transformar continuamente as relações de trabalho, aumentando a exploração. A Pastoral deve pensar numa maior presença entre os operários e na problemática do desemprego; investir mais recursos no trabalho com biscateiros, peões das empreitadas, funcionários do comércio e dos serviços; deslocar-se para as novas periferias. No campo, a proletarização está aumentando e, com isso, o trabalho sazonal dos bóias-frias, volantes, diaristas, peões, que vivem muitas vezes a situação de “escravidão branca”. O desafio, neste setor pouco frequentado pela Igreja, é grande. Ainda é limitada e fraca a consciência da Igreja em relação à exploração específica vivida pelos negros, pelas mulheres e pelos menores abandonados. Constituem a massa do povo brasileiro, mas as iniciativas pastorais nestes setores são ainda minoritárias. Ficam sempre como desafio os problemas, variados e complexos, não somente da esfera da produção, mas também da família, das condições de vida nas periferias urbanas e no interior, da violência, das expressões culturais, do lazer, das formas de organização exigindo novidade e criatividade ... B. A reflexão teológica, apesar do grande desenvolvimento dos mimeografados populares, guarda um nível bastante acadêmico, também quando é considerada Teologia da Libertação. Esta última trata dos pobres e reinterpreta a fé a partir deles, mas habitualmente não é por eles lida e entendida. Isso mostra o distanciamento que ainda existe entre o povo e a teologia. A teologia é verdadeiramente cristã não somente quando trata com amor os pobres, mas quando contribui para que eles possam falar, assume sua linguagem e sua sabedoria. Devemos reconhecer a grande contribuição da Teologia da Libertação. Põe-se, contudo, para ela a tarefa de recolher a expressão de fé do povo, sua linguagem simbólica, sua visão de Deus, incorporar isso como expressão da fé do povo a ser trabalhada. O caminho nesta direção está em começo. C. Um campo ainda bastante difícil, não somente pela problemática em si, mas também pela presença de um clima emotivo, é o setor do diálogo com os marxistas e com o marxismo. Em geral, constatamos a necessidade de maior utilização de instrumentos das ciências sociais, para aprimorar a análise da realidade feita nos ambientes da 294 Revista ceas 233.indd 294 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Rumos da igreja no Brasil pastoral e aceitar que se levante uma suspeita crítica sobre a pretensão da verdade. Não se trata de renunciar ao conteúdo próprio da fé. Ao contrário, a certeza da fé deveria permitir maior abertura para dialogar com marxistas e com o marxismo, sabendo reconhecer seja as contribuições positivas que continuam válidas, seja os limites e o avanço da discussão nesta problemática. Mantendo o assunto no clima das acusações e das simplificações, só podem ser favorecidos os posicionamentos rígidos que não servem à causa do povo nem da Igreja. D. Por último, um aceno ao ecumenismo. Fala-se de ecumenismo de base, entendendo com isso a colaboração concreta dos cristãos entre si e com os fiéis de outras religiões em várias lutas populares e a comunhão nas celebrações litúrgicas. Tais iniciativas são desenvolvidas mais pelas Igrejas cristãs tradicionais. Devem aumentar. Contudo, o grande desafio provém das seitas religiosas, sendo muito difícil praticar o ecumenismo com elas. O próprio nome de “seita” revela um distanciamento e um julgamento apriorístico. É inegável o espírito proselitista e a instrumentalização também por interesses econômicos e políticos de certos grupos religiosos nalguns lugares. Isso não deve ser generalizado e não deve justificar a falta de esforço para um maior conhecimento e aproximação. 2.4. A voz e o poder do povo A abertura da Igreja à problemática do mundo a serviço dos mais pobres tem um retorno importante para a própria estrutura da Igreja. As CEBs são células onde se procura viver uma igualdade e corresponsabilidade mais distribuídas. Elas, juntamente com as diferentes pastorais populares, questionam a atual estrutura sociológica da Igreja. Devemos reconhecer que ainda é grande a distância entre a pregação da democracia e os ensaios democráticos existentes dentro da Igreja, de um lado, e do outro a estrutura autoritária que ainda prevalece. O projeto do Vaticano II de dar prioridade ao Povo de Deus frente à Hierarquia ficou quase que só no papel, lamentavelmente. A estrutura piramidal da Igreja prevalece. Grande é a caminhada na direção de uma estrutura mais circular, que melhor expresse a fraternidade, respeitando as diferentes funções e serviços. Devemos reconhecer que a voz e o poder do povo dentro da Igreja ainda são bem fracos. Podemos lembrar o processo de nomeação dos bispos e dos vigários: como Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 295 295 27/09/09 10:04 Cláudio Perani e onde se realiza. A Igreja está dizendo que nas CEBs o povo está falando. Se analisamos com sinceridade, podemos constatar que também aí ainda prevalece o poder clerical. Devemos reconhecer que a caminhada é comprida. Estamos ensaiando os primeiros passos. A partir desta avaliação, colocam-se novos desafios para a Igreja brasileira. Nem tudo depende dela, por razão do relacionamento com Roma. Mas sempre existem espaços para novos ensaios. No âmbito já existente, e forçando novos âmbitos, descobrimos a necessidade de o povo participar melhor do poder eclesial. Tarefas urgentes são a valorização dos leigos e das mulheres dentro da Igreja, a participação das bases nas decisões pastorais, o respeito ao povo falando por si. São tarefas que devem ser pensadas, não por simples gosto de novidade, mas para ser fiel às exigências de fraternidade do Evangelho e, com isso, para prestar um maior serviço ao mundo. 296 Revista ceas 233.indd 296 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 ANOS DE CADERNOS DO CEAS O CEAS ENTREVISTA JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA, JOVINIANO NETO E CLÁUDIO PERANI, QUE PARTICIPARAM DA EQUIPE DE REDAÇÃO DESDE O INÍCIO Como e por que surgiram os Cadernos do CEAS em 1969? Crisóstomo - A revista surgiu no bojo da preocupação geral, própria da década de 60, com o subdesenvolvimento, a miséria e a opressão no chamado Terceiro Mundo, um quadro particularmente gritante no Nordeste brasileiro e sob um regime militar. Foi um fruto da preocupação e do engajamento da Igreja nessas questões. Os Cadernos começaram talvez mais doutrinários e teóricos, dando um salto com artigos mais breves e que captavam mais a cena popular, e outro ainda com o tratamento de questões políticas e conjunturais, com editoriais mais vivos. Foi um processo de politização muito positivo no geral, que se fez sentir de modo também muito positivo no movimento da Igreja e mais além. Outros poderiam ver aí um certo descaminho... Joviniano - Foi em março de 1969, com textos mimeografados. Em outubro, o n. 4, com capa impressa, texto mimeografado, tamanho carta, reproduzia um artigo da revista Aggiornamenti Sociali, dos jesuítas de Milão. Em fevereiro de 1970, o n. 5 é o primeiro totalmente impresso e já nas dimensões e formato de hoje. O tema foi “O problema da mão-de-obra operária industrial na Bahia” e inclui o artigo em que resumi pesquisa por mim coordenada. Os Cadernos surgiram como instrumento de reflexão, a partir da Igreja, sobre nova situação que mostrava a necessidade de: a) manter uma análise lúcida da realidade em época de dificuldade de acesso às informações, por causa da censura, do autoritarismo e da desarticulação de várias organizações e expectativas; b) interpretar mudanças que ocorriam, inclusive no modelo político-econômico brasileiro, em busca de compreender de como o capi- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 297 297 27/09/09 10:04 Cláudio Perani talismo e a modernização avançavam no Brasil; c) reagir ao regime ditatorial. Os dois primeiros números reproduzem documentos da Igreja. O terceiro já fala em redemocratização. Os Cadernos comemoram 25 anos, pouco depois dos 25 anos do AI-5. Por terem surgido no período ditatorial, foram muito orientados pela luta contra o regime autoritário, utilizando a força das idéias. Ao mesmo tempo, o CEAS e os Cadernos continuavam uma reflexão a nível de Igreja que a crise e o fechamento da Ação Católica, em 1968, interromperam. O CEAS é, de certo modo, um fruto da Ação Católica. Eu era dirigente da Juventude Independente Católica, a JIC, dos profissionais liberais, e havia participado do esforço de criação de uma publicação chamada Hoje no Mundo. Chegamos a editar seis números. Cláudio havia sido assistente da Juventude Universitária Católica, a JUC, no Rio Grande do Sul. Cláudio - Completo dizendo que havia, dentro da orientação geral dos jesuítas da América Latina que refletiam sobre a problemática social, o desejo de divulgar a doutrina social da Igreja, aplicando-a à situação do Nordeste. Isto mostra o nível bastante teórico e idealista da época, para não dizer alienado, no sentido de o grupo da Redação pensar ser possível influir na mudança da sociedade nordestina simplesmente através da aplicação de orientações gerais, patrimônio da Doutrina Social da Igreja. A orientação foi logo corrigida, porque o contato - saudável e indispensável - com a realidade concreta mostrou a complexidade da situação e a necessidade de aprimorar a utilização de instrumentais teóricos de análise que pudessem levar a um maior conhecimento. Na luta contra a ditadura, a revista se respaldou em documentos oficiais da hierarquia eclesiástica, que aos poucos foi abrindo os olhos sobre a nova realidade. Os primeiros mimeografados do CEAS saíram com um documento da CNBB e denunciando o AI-5. A pequena publicação foi um sucesso, sendo reproduzida pelo SEDOC. Quais as etapas mais importantes de sua evolução histórica? Joviniano - Uma periodização poderia situar a primeira etapa entre 69 e 72. É um momento de compreensão, posicionamento e análise inicial. Os números são monográficos. O Censo de 70 permite, em 72, mostrar uma face pessimista do modelo e do milagre brasileiros. A ênfase é no Nordeste, na ótica da SUDENE. E o grande marco inicial é o número 10, dedicado ao tema “Igreja e Política”, um texto maior no qual a revista alcançou o número de páginas que mantém até hoje. 298 Revista ceas 233.indd 298 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 Anos de cadernos do CEAS A segunda etapa vai de 72 a 84. Predomina a análise crítica do modelo autoritário e o apoio à conscientização e organização para reconquistar a democracia. Denúncia das injustiças. Este tipo de imprensa era como uma voz dos que não tinham voz. Não foi à toa que a reprodução dos documentos Ouvi os clamores de um povo e Marginalização de um povo suscitou grande reação. Um marco foi o estudo sobre a Amazônia, que, além de servir de contraponto à euforia da Transamazônica, vai firmar o CEAS na área de estudos rurais e credenciá-lo para assessorar a criação da CPT Nacional. Documenta-se, nesta época, a conversão da Igreja aos pobres e à análise social, inclusive absorvendo conceitos e instrumentos de análise sociológica, também marxista. Causou um grande impacto político o texto de Dom Hélder: O que faria Santo Tomás diante de Karl Marx? Definem-se as três grandes linhas de atuação e reflexão do CEAS: 1) Crítica ao modelo político-econômico que se implantava no Brasil; 2) Aumento da consciência e organização populares, documentando a luta dos movimentos populares, abrindo espaços para os marginalizados e dando ênfase em experiências de educação popular; 3) Acompanhamento e reflexão sobre a ação da Igreja, com ênfase nas pastorais populares. Este longo período poderia ser subdividido em vários momentos. Por exemplo, a partir de 74, acompanhamos o fim do milagre brasileiro, a distensão e a longa transição mostrando o caráter autoritário e excludente do modelo e a sua condenação pela maioria do povo. Acompanha-se a crise do modelo econômico, refletindo a crise do petróleo e os esforços para prolongá-lo e reciclá-lo. De 79 a 84, no governo Figueiredo, acompanha-se o crescimento das pressões e expectativas de mudança. A terceira etapa, aberta por uma definição de paradigmas, vem de 85 a 93. É uma fase de acompanhamento e relativização dos eventos da conjuntura, de desconfiança nas políticas econômicas. Ênfase na importância de compreender e desmascarar os esquemas reciclados de dominação e cooptação. É quando, por exemplo, começam a aparecer os textos sobre mídia e comunicação. Momento de acompanhar os eventos, procurando mostrar o que continua importante, mesmo fora de moda, como a idéia de Reforma Agrária. Finalmente, é um momento de entender, sem perder o referencial, as mudanças que ocorrem no mundo e no Brasil. Esta fase está se encerrando, também sintomaticamente, com a discussão e redefinição dos paradigmas e dos modos de atuação do CEAS. Discute-se a crise do Leste Europeu, a mudança na América Latina, o crescimento das seitas. Procura-se matizar e ampliar os enfoques político-econômicos com a inclusão de temas culturais, sobre gênero, meio ambiente, ete. Cláudio - A primeira etapa, da análise inicial, já continha germinalmente as intuições fundamentais da revista. A necessidade de denunciar o regime autoritário e o modelo Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 299 299 27/09/09 10:04 Cláudio Perani capitalista, a importância da presença popular através de suas experiências concretas e a importância de um instrumental de análise muito influenciado pelo marxismo. Lembro que o n. 7 tinha como tema: Marx, Cristianismo, luta de classes, trazendo o texto de um autor alemão, mas já com uma interpretação a partir do contexto latinoamericano. Ali publicações, contudo, se revelaram demasiadamente teóricas, dispersas e vagas. Daí a passagem para a segunda etapa, procurando aprimorar uma análise mais crítica. O caminho seguido foi duplo. De um lado, procuramos aprimorar o nível científico da análise, sendo que tivemos a colaboração de alguns cientistas sociais, entre os quais o Prof. István Jancsó. Do outro lado, valorizando mais o pensar e o fazer do povo, ajudados nisso pelas experiências das outras Equipes do CEAS, desenvolvendo um trabalho de asses¬soria popular. Gostaria de lembrar o n. 47, fundamental neste sentido, com o artigo “A vida é uma luta”, no qual se apresentava não somente a situação de exploração em que se encontrava o povo, mas também sua vitalidade, suas iniciativas, suas organizações. Esse texto foi muito utilizado por vários movimentos populares. Quanto à terceira etapa, discordo em parte de Joviniano, em relação ao fechamento. A mim, parece que estamos ainda no início da procura de novos paradigmas. Na dispersão atual, a caminhada será longa. A Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação tiveram influência na orientação do CEAS? Crisóstomo - Seguramente. Era muito forte a presença dos documentos do Vaticano II e de Medellín e de gente como Hugo Assman, Cláudio Perani... Era o tempo da assimilação - digamos, “idealista” - do marxismo pelos setores engajados da Igreja em toda a América Latina. Cláudio - Alguns membros da revista sempre se inspiraram nos textos da Doutrina Social da Igreja. Na prática, os textos mais contundentes e publicados pela própria revista, porque mais concretos, foram documentos da CNBB ou de grupos particulares de bispos, como no caso do Caderno n. 27, com o título Uma Igreja a Caminho do Povo, citado por Joviniano. E interessante lembrar que essa edição foi seqüestrada no 300 Revista ceas 233.indd 300 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 Anos de cadernos do CEAS correio, pela Polícia Federal. No início, a revista se inspirava mais na assim chamada Teologia do Desenvolvimento ou Teologia das Realidades Terrestres, de inspiração mais européia. Logo depois, já nos números 9 e 10, de 1970, a Teologia da Libertação aparece como inspiradora da nossa reflexão teológica. No n. 24, sai um artigo sobre esse tema. Diria, contudo, que a revista nunca deu grande espaço para uma reflexão teológica mais explícita. Preferiu uma análise sócio-política e uma reflexão pastoral na qual era mais fácil encontrar convergências e rumos de ação social. Tendo que trabalhar nisto que o Cardeal Dom Avelar considerava “de fronteira”, preferimos uma discrição teológica, não somente pelo motivo acima indicado - a necessidade de uma convergência prática, mas sobretudo porque estávamos convencidos de que não era a verbosidade da reflexão teológica que podia prioritariamente servir à causa da libertação, mas um compromisso concreto com os setores marginalizados. Joviniano - A ênfase do CEAS sempre foi a análise de casos concretos e a assessoria aos movimentos populares. A reflexão principal se concentra fundamentalmente no nível pastoral de aplicação da doutrina ou dos princípios, mais do que na elaboração teórica mais abstrata. A situação no Brasil é tão dramática, tão anti-evangélica, que se pode conseguir amplo apoio para denúncias, análises e ações sem referências explícitas a pressupostos teóricos. A evolução da DSI e as opções da Teologia da Libertação vão contribuindo na emersão de uma série de elementos que se integram num projeto compartilhado por vários setores progressistas democráticos. Um momento de grande significação a nível nacional e da Igreja foi o documento dos bispos chamado Por uma nova ordem constitucional, no qual se delineiam os traços de uma proposta, de uma ideologia global para o Brasil. Nascidos a partir de uma iniciativa de católicos preocupados com o tema da justiça social, os Cadernos contaram também com a ajuda, a participação e a colaboração de outros segmentos e correntes de pensamento não propriamente vinculados à questão religiosa. O que representou isto para o CEAS? Que elementos de convergência foram trabalhados e que conflitos daí resultaram? Crisóstomo - A participação dos chamados “leigos” (de modo geral, não religiosos) contribuiu essencialmente em dois aspectos. Primeiro, o aporte das ciências sociais: conceitos teóricos e dados socio-econômicos. Segundo (junto com o que poderíamos chamar de “um certo manejo do instrumental marxista”), a politização da visão essencialmente ético-humanista dos religiosos. Em outras palavras e com boa vontade: a preocupação com as exigências reais da ação política, com um certo tipo de eficácia. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 301 301 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Dando um salto e procurando ser eqüânime, pode-se talvez dizer: purismo e basismo versus dirigismo e centralismo. É claro que isso significou também, para os religiosos, um envolvimento (sempre conflitivo, mas instrutivo) com as pendências e brigas da esquerda, um universo onde a “teoria” era mais sagrada do que na Academia de Platão. E a recíproca? Bem, quando os não-religiosos não eram tão orgulhosamente “tapados” para ver nos seus parceiros crentes apenas um atraso idealista ou mesmo apenas o interesse da corporação eclesiástica, a experiência ensinou algo sobre a heterogeneidade das motivações e dos critérios que apontavam para o ideal social. A mim, isso fazia pensar e ajudava a ver. Compreender o ponto de vista e as motivações do Outro talvez seja o (meu) negócio filosófico prático. De um modo mais geral, creio que a perspectiva e a linguagem da revista acabaram também por “contaminar”, de modo essencialmente positivo, setores de esquerda e de oposição. Creio que a revista foi, durante todo esse tempo (e continuará sendo, espero), urna grande experiência de sincretismo baiano, um corredor, um canal de comunicação e diálogo entre setores de inspirações diversas que têm importância na formação de urna cultura política no Brasil. Cláudio - Creio que a contribuição dos intelectuais ligados ao pensamento marxista ou a correntes socio-políticas diferentes, corno o nacionalismo, foi sempre fundamental. Deram ao CEAS urna maior abertura e aceitação, particularmente no mundo das esquerdas. A convergência ou esforço para chegar a urna convergência sempre se deu pela preocupação de todos com a necessária mudança do nosso modelo econômicopolítico e com os caminhos concretos para urna libertação mais radical. Editoriais, análises de conjuntura, vários artigos... sempre foram redigidos e avaliados a partir de urna discussão comum, onde se confrontavam e integravam diferentes competências (teologia, filosofia, economia, sociologia, psicologia, etc), corno também diferentes ideologias. Isso forçava no sentido de urna maior aproximação da realidade e para uma linguagem mais compreensível, superando o hermetismo de cada disciplina científica. Em particular, a presença de membros não vinculados a um pensamento religioso ajudou os católicos a saírem do que eu chamaria de ideologia pastoral. Evidentemente, não faltaram os conflitos. Internamente, sempre houve tensão entre alguns que queriam explicitar mais a inspiração cristã e a Doutrina Social da Igreja e outros que, sem renegar isto, valorizavam mais os caminhos concretos, considerando também que outras publicações haviam se especializado em veicular um pensamento mais próprio da Igreja. Penso que este foi o conflito mais intenso, mas localizado entre os membros católicos ou entre os jesuítas. 302 Revista ceas 233.indd 302 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 Anos de cadernos do CEAS Externamente, foram questionadas as posições marxistas ou assim chamadas ou consideradas, seja pelo Cardeal Dom Avelar, seja por um jornal ligado ao governador da época, Antônio Carlos Magalhães. Evidentemente, a partir de perspectivas bem diferentes e com estilos diametralmente opostos. Também algumas posições pastorais, corno, no caso, de um Editorial sobre a primeira visita do Papa ao Brasil, questionado pelo próprio Dom Avelar. Eu diria que os conflitos internos ao conjunto dos membros da própria Equipe de Redação não foram ocasionados tanto pelas divergências ideológicas ou de princípios inspiradores, mas por orientações políticas mais concretas. Sempre tentamos equacionar tais tensões mediante o aprofundamento das problemáticas. Gostaria de lembrar, também, contribuições de muitos autores, já afirmados no cenário nacional, corno José de Souza Martins, Herbert de Souza, Inaiá de Carvalho e outros, menos conhecidos, que encontravam na revista um veículo de divulgação de suas idéias. Joviniano - O eixo que reuniu pessoas de várias correntes no CEAS não foi o religioso. Como está nos créditos da revista, o objetivo é a denúncia das injustiças, o apoio à consciência e à conscientização popular e a construção de urna sociedade mais justa e democrática. Os Cadernos são um ponto de encontro em tomo de análises e assessorias. Os anos foram definindo um perfil em que as ênfases e até os pontos de partida teórico-metodológicos podem ser diferentes. Mas os resultados mostram semelhanças. Não foi difícil concluir um quadro de paradigmas em 85. Em 93, o novo quadro já é majoritariamente consensual. Mesmo as divergências não implicam, geralmente, negar a importância de elementos trazidos pelo outro, mas da dimensão, do peso a ele atribuído. Isto dentro do que consideraríamos o paradigma geral da formação esquerdista-democrática no Brasil. Aliás, urna das características da cultura e da identidade brasileiras é a valorização do amálgama, da capacidade de somar e misturar. Há momentos de maior debate, quando se aproximam do limite dos paradigmas. Um ponto polêmico, por exemplo, é a maneira como se coloca, no CEAS, o nacionalismo, ou seja, a afirmação da identidade nacional. Geralmente, as dificuldades não se concentram no elemento religioso, mesmo porque ninguém se propõe atacar, na revista, dogmas e autoridades eclesiásticas. Situam-se no conteúdo e limites dos modelos explicativos da esquerda brasileira. A discussão, agora, é maior por três motivos: a) Estamos assistindo à crise dos paradigmas, dos grandes modelos globais, dos caminhos únicos de explicação e salvação do mundo; b) A quebra da dicotomia Estado autoritário x Sociedade Civil reivindicante levou a Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 303 303 27/09/09 10:04 Cláudio Perani várias relações possíveis. Por exemplo, em municípios e estados, movimentos populares chegam a ter acesso ao Executivo e Legislativo. A tensão entre aproveitamento de oportunidades e oportunismo tem levado, por exemplo, ao questionamento da sacralização do povo; c) O próprio crescimento da crise e da miséria está pedindo novas respostas e propondo mudanças nas concepções de analistas e assessores. O eixo da pluralidade hoje, no CEAS, está em ser mais ou menos propositivo, em ser mais ou menos fiel aos modelos e esquemas de análise centrados na economia e na divisão de classes. A contribuição do pluralismo foi forçar a aprofundar argumentações, incorporando à análise fatos verdadeiros e menos percebidos e valorizados nos esquemas originais. Quais as principais contribuições nos momentos chave do enfrentamento do autoritarismo militar? Crisóstomo - Os Cadernos levavam dados, denúncias, informações, notícias e uma maneira alternativa de entender a realidade nacional. Isso quando o regime militar censurava toda a imprensa (com a sacrificada resistência de jornais alternativos como o Movimento). Mais importante ainda: os Cadernos e seu suplemento popular, o De Olho, levavam informação a setores populares, grupos de base e pessoas que trabalhavam com eles. Na conjuntura pós AI-5, a revista contribuiu para frustrar a censura e representou uma resistência viva contra o endurecimento político. Joviniano - Na época da ditadura, vazou um documento do SNI acusando o CEAS de ser o principal centro alimentador do “clericalismo esquerdista”. Com a cobertura da Igreja, dos jesuítas, do Cardeal, se revelavam fatos e documentos que não podiam ser veiculados em outros meios, já censurados. O CEAS foi uma fonte alternativa de informações e análises, um instrumento de crescimento da consciência e or¬ganização populares. Cláudio - A revista sempre foi uma voz de denúncia do autoritarismo, contra as prisões, as torturas, a violência no campo, a violência contra a Igreja, etc. Por essas razões, sofreu a censura da Polícia Federal, várias admoestações e o seqüestro do n. 27. Como você configura a relação da revista com as lutas populares? Crisóstomo - Embora o CEAS tenha estado mais articulado aos ligados à Igreja, os 304 Revista ceas 233.indd 304 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 Anos de cadernos do CEAS Cadernos foram, provavelmente, a publicação nacional crítica de oposição que mais conseguiu chegar, através dos agentes médios, aos setores populares de base mais ou menos mobilizados, principalmente fora de certos movimentos maiores, mais visíveis ou mais “avançados”. O suplemento De Olho representou um esforço notável nessa linha, bem como os artigos que conseguiam captar, de forma mais descritiva, a cena da labuta popular cotidiana. Neste âmbito, a contribuição do CEAS foi particularmente importante. Logo de saída, a revista matizou seu ideal socialista abraçando as reivindicações dos pequenos agricultores por um pedaço de terra. Pendeu inicialmente mais para a tese do voto nulo. Em seguida, voltou-se para a participação eleitoral e uma certa atenção à vida partidária institucional, eleitoral. Abraçou também, embora com certa relutância, as chamadas reivindicações democráticas dos setores médios. Do mesmo modo, acabou por aceitar criticamente a via sindical, dentro da estrutura oficial. Talvez se possa dizer que o setor mais eclesial tendia espontaneamente a aproximar (para não dizer reduzir) a luta político-social aos limites do marco da ação eclesial de vanguarda: pastoral, educação/conscientização, comunidades de base. Por outro lado, menos pedagógica ou sutil, a esquerda “empurrava” suas bandeiras político-sociais, supostamente mais abrangentes e politizantes. No fim das contas, dava-se um equilíbrio bastante razoável, que credito especialmente a alguns representantes da melhor dialética jesuítica - afinal, os patrocinadores desta experiência. Joviniano - São duas as contribuições básicas. Uma é a documentação da luta dos movimentos sociais. Os Cadernos eram e ainda são uma revista fundamental para documentar e acompanhar a luta dos movimentos sociais, especialmente no campo, onde a cobertura é menor por órgãos semelhantes. O CEAS traz aos movimentos sociais e aos intelectuais um retrato não acadêmico e comprometido. Além disso, a revista é um instrumento de socialização de informações, de realimentação de assessores, agentes e lideranças que atuam nos movimentos sociais. Não sendo geralmente lida pelas bases dos movimentos sociais, grande parte do público do CEAS sempre foi de agentes de pastoral, assessores, lideranças intermediárias, religiosos em ação social. Cláudio - Todos os membros da Redação, mais na base ou mais nas articulações, acompanham de alguma forma os movimentos sociais. A revista, desde o início, afirmou que o povo marginalizado deve ser o autor de seu desenvolvimento. Podemos dizer que os Cadernos sempre apostaram no povo, às vezes com maior clareza, outras Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 305 305 27/09/09 10:04 Cláudio Perani vezes com certas ambigüidades. Tentamos analisar a conjuntura, pondo à luz os atores populares; apresentamos experiências populares concretas, procuramos tomar partido do lado do povo e favorecer as lideranças dos movimentos sociais. Atualmente, tentamos administrar a tensão entre os que mais defendem a necessidade de articulações e aqueles que mais apostam numa maior presença entre os excluídos. Na medida em que prevalece essa segunda orientação, aumenta o desafio para a revista; em particular, torna-se muito difícil apresentar caminhos e alternativas. Perpassando um dos momentos mais importantes da luta política no país (1967-93), os Cadernos tiveram oportunidade de se posicionar sobre as diversas alternativas para a sociedade. Houve um único posicionamento ao longo de todo esse período ou se observaram mudanças em função de correlações de forças internas? Joviniano - Houve mudanças em função das forças internas e, especialmente, da reação às mudanças da realidade externa. A ênfase dos Cadernos está mais na análise crítica que na proposição, mais na sugestão de metodologia para o trabalho popular que na indicação de linhas de trabalho. Podemos concluir, contudo, da análise dos próprios textos, por uma linha ideológica bem definida que inclui, por exemplo: a) A crítica ao imperialismo e ao capitalismo, especialmente norte-americano, a partir do Brasil e da América Latina; b) A crítica ao modelo econômico brasileiro, com ênfase nas suas características de concentração e exclusão; c) A proposta de democratização do Estado e fortalecimento da sociedade civil, com ênfase no apoio aos movimentos sociais e acentuada preocupação com as relações desses movimentos (inclusive, hoje, as chamadas ONGs) com o Estado, pelo qual podem ser cooptados, ou cair no risco de substituí-lo. Atualmente, cresce a preocupação com o poder local; d) Pluralismo cultural, respeitando as várias tendências, mas enfrentando a manipulação da mídia, valorizando as experiências e os discursos dos vários segmentos populares, enfatizando mecanismos de educação e conscientização popular e comunitária; e) Socialmente, a crítica à desigualdade e à marginalização da maioria do povo - os diversos segmentos da população de baixa renda, apresentados nas suas várias faces: favelados, negros, mulheres, índios, pescadores, lavradores, lavadeiras. O que leva a críticas e alternativas mais ou menos explícitas em habitação, saúde e educação. Cláudio - Nesta linha apresentada por Joviniano, houve, de fato, continuidade mais ou menos coerente na revista. Pessoalmente, sublinharia o compromisso com os 306 Revista ceas 233.indd 306 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 25 Anos de cadernos do CEAS movimentos populares e com as transformações das relações sociais. Não é uma linha programática nem atrelada a propostas político-partidárias. Contudo, representa uma alternativa. Antes e depois da abertura, houve influências de tendências partidárias. O que é sempre inevitável. O CEAS, várias vezes, foi considerado com ou sem razão - mais ligado ao PCdoB ou ao PT, ou de tendência nacionalista. Também esteve presente - particularmente no início, quando se aprimoravam os paradigmas de análise - o desejo de assumir uma linha mais político-partidária. O conjunto da Equipe sempre preferiu optar pelo pluralismo partidário. É claro que, tendo havido entre os membros pessoas ligadas a diversos partidos - PCdoB, PCB e, mais recentemente, PDT e PT -, sua influência ocasionou e ocasiona uma determinada conotação. Em certo momento de sua trajetória, a revista chegou a ser vista como acentuando predominantemente o rural? Joviniano - Os Cadernos foram vistos e valorizados a partir da marca rural. Há várias explicações. Primeiro, o grande impacto inicial da matéria sobre a Amazônia, que credenciou o CEAS a assessorar a criação da CPT. A partir deste fato e do acompanhamento e proximidade com a CPT, a revista passou a ser vista pelos que no meio rural como um canal de divulgação. Há uma grande quantidade de textos referentes à questão agrária, trabalhadores rurais e ações e políticas desenvolvidas no campo publicada nos Cadernos. Levantamento dos n. 100 ao 148 revela mais de 60 artigos sobre o campo. Ainda: o peso que têm, entre os leitores, aqueles que atuam no estudo e ação na área rural. Sobretudo na utilização da revista. Pode ser menor em quantidade do que o de outras categorias (por exemplo, professores e estudantes universitários), mas utilizam. Isto reflete, também, a prioridade dada à ação da Igreja no meio rural desde 1962. Outro aspecto é que, como estamos no Nordeste, atraímos imagens e temas rurais. Não deixa de ser significativo que, nas ilustrações das capas dos Cadernos, predomina o tom, a imagem associada ao rural. Cláudio - Gostaria de salientar que a revista nasceu em Salvador e sempre se preocupou em dar prioridade ao Nordeste e ao Norte do Brasil. São regiões onde, ainda hoje, a problemática do campo é fundamental. Contudo, gostaria também de lembrar que os Cadernos sempre trataram da problemática urbana, sobretudo da problemática da moradia e, menos, do trabalho operário. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 307 307 27/09/09 10:04 Cláudio Perani Como os Cadernos pensaram e trabalharam a questão do público leitor? Que público priorizar e atrair? Com que linguagem? Que público leitor foi realmente captado? Cláudio – Público e linguagem sempre foram assunto de nossa consideração. Nunca conseguimos equacioná-los perfeitamente. Um índice da aceitação da revista é sua tiragem e os assinantes. A tiragem chegou a 3.500 exemplares, diminuindo para 3.000. Voltou a 3.500, em 94. Os assinantes também oscilaram entre 1.800 e 2.500. Fechamos 93 com 2.200. Joviniano - É uma revista por assinatura, de público relativamente fiel, que lhe garante continuidade. A primeira pesquisa sobre nosso público distinguiu quatro grandes segmentos: religiosos e agentes de pastoral; estudantes universitários; intelectuais e professores; instituições educacionais e sindicais... e lideranças políticas. Uma pesquisa mais recente e menos abrangente juntou estudantes e intelectuais numa mesma categoria. A linguagem sempre foi uma grande preocupação. Uma revista de análise e aplicação não teórico-erudita, séria e objetiva nas análises, mas facilmente entendida por lideranças intermediárias, agentes e assessores. O público conquistado é o que refaz a assinatura. Muitos são nossos assinantes há anos. Citam e utilizam os textos, inclusive em sala de aula. Encaminham documentos, relatórios, jornais, textos analíticos. O acervo da Biblioteca do CEAS foi reunido, em boa parte, a partir dessas contribuições. O público a atingir é esse, o de agentes de mudanças, assessores, pessoas capazes e comprometidas com o crescimento da consciência e da organização popular. Para manter e ampliar o público, deve-se assegurar as características da revista e incorporar criticamente novas preocupações e variáveis. Acompanhando as novas viagens e levando a novas viagens. 308 Revista ceas 233.indd 308 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 CEAS: SAUDOSO E SAUDÁVEL CLÁUDIO PERANI No título deste depoimento informal coloquei “CEAS saudoso” porque tenho dele uma lembrança muito afetuosa; e saudável porque foi nele que cresci em minha “saúde” e, ainda hoje, me inspira muito. Andando por estas regiões amazônicas, encontro pessoas que falam do CEAS e me conhecem através da revista. É um depoimento bem pessoal, que divido em duas partes: na primeira, lembro o que eu encontrei no CEAS e, na segunda, o que eu gostaria que continuasse fazendo. 1. ALGO DA MINHA HISTÓRIA NO CEAS Meu primeiro impacto no CEAS foi o encontro com um grupo de estudantes e de professores da área das ciências humanas, de diferentes ideologias, alguns de orientação marxista. Até então, só tinha estudado teologia. Foi para mim uma aprendizagem difícil, mas muito frutuosa. Gostaria de lembrar o clima democrático e de respeito pelas opiniões de todos que conseguimos introduzir, apesar das dificuldades e das muitas crises (uma crise contínua?). Isso permitiu uma análise de realidade mais aprimorada, menos dogmática e, por consequência, mais perto das necessidades dos movimentos populares. Em particular, devo reconhecer a grande contribuição dos amigos marxistas que, introduzindo-me no campo da análise marxista, me permitiram não somente apri- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 309 309 27/09/09 10:04 Cláudio Perani morar o conhecimento da realidade em que vivemos e o caminho da história, mas também aprofundar minha interpretação do Evangelho e da prática de Jesus, inspiradora da minha prática hoje. Parece anacrônico falar disso, quando o marxismo passou de moda e surgem outros paradigmas. Pessoalmente, penso que, numa conjuntura em que se afirma o fim das ideologias e na qual aparecem tendências esotéricas e místicas, seja muito saudável utilizar alguns conceitos marxistas para poder discernir melhor. O seu grande impacto foi o encontro direto com setores populares, em particular os trabalhadores rurais. Coloco-o em segundo lugar não pela importância, mas por razões cronológicas. Apesar de ter tido sempre algumas andanças pelas camadas populares, foi o CEAS que me obrigou a um contato maior (que, devo reconhecer, foi sempre limitado). Descobri outro mundo, diferente do meu, com sua sabedoria, com seus valores e com seu compromisso. Além de ter feito muitas amizades e ter equacionado melhor a angústia da “revolução”, aprendi muito, não somente no que se refere à visão de realidade e aos caminhos da mudança, mas também no âmbito, propriamente “meu”, da fé e da teologia. 2. ALGUMAS PERSPECTIVAS PARA O CEAS Gostaria de lembrar o que o Padre Geral da Companhia de Jesus nos disse quando de sua passagem pelo CEAS, em 1992. “O Centro – dizia ele –, alcançou o respeito e o reconhecimento de quantos se interessam pela mudança das estruturas sociais, tanto nos meios acadêmicos como nos meios populares. Esta íntima relação, tão recomendada por meu antecessor, o inesquecível Padre Arrupe, entre reflexão científica e inserção no meio popular, entre o serviço direto dos pobres e a generalização e divulgação das análises fundadas nestas experiências, é o que constitui, creio, a originalidade e a força do CEAS”. Estou de acordo. Se o CEAS nem sempre teve grande reconhecimento nos ambientes mais acadêmicos, conseguiu, porém, elaborar uma reflexão teórica séria, que sempre ajudou os setores populares e as pessoas comprometidas neste trabalho. Penso seja muito importante que esta orientação continue, apesar das dificuldades hodiernas. Lembro um editorial do CEAS, nestes últimos anos, no número 167 do ano de 1997. 310 Revista ceas 233.indd 310 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Depoimento: 30 anos Aí se dizia: “Sentimos o imperativo de ‘voltar’ (...) para os milhões de semicidadãos – agora redescobertos como “clandestinos” (...). Os movimentos sociais de favelados, agora também nas cidades médias, de migrantes em massa, de aposentados, biscateiros de todo beco (muito negro nesta situação branca), domésticas, mães chefes de família lutando em clube e grupos de vizinhança pelos filhos (menos abandonados que os pais), doentes reclamando na frente dos postos de saúde sem remédio nem enfermeira, funcionários de todo nível, desempregados de toda obra... Chamam nossa atenção, nesse meio, os blocos crescentes de “irresponsáveis” – loucos violentos (...). Procuramos experimentar e entrever nessas bandas da rede social malha fina, das maiorias, até de classes perigosas, novos eixos de mobilização social e política, muito além da partidária, sindical etc. (...) Suspeitamos que os chamados movimentos in-formais, ou mais des-organizados, apenas por ser-nos grandes desconhecidos, distantes das “nossas formas” mentais, ideológicas, culturais; distantes das “nossas lógicas” de organização e mobilização políticas, justamente por isso eles podem ser, talvez, mestres”. Até aqui o editorial do CEAS com o qual me identifiquei muito. Penso que esta linha deva continuar. Pode não ser a única, mas é aquela onde se deve investir mais, pois, em geral, não me parece muito presente e nem muito valorizada nos ambientes teóricos e práticos, dos movimentos e das pastorais populares. Para que esta orientação possa se firmar e avançar sempre mais, penso seja necessária, além de um contato contínuo com os setores populares, uma reflexão mais localizada, que penetre mais na vivência cotidiana do povo. Parece contraditório dizer isto no momento em que todos falam de “globalização”. Mas tenho, também, a experiência de quanto canse este tipo de análise: muitos agentes não suportam mais um discurso genérico e repetitivo, que não ajuda em nada o compromisso concreto de transformação. É preciso voltar-se mais para os caminhos concretos do povo, para a proliferação disseminada de criações anônimas e perecíveis, que irrompam com vivacidade e não se deixam catalogar. No mundo dos excluídos, sob a realidade efetiva da exploração e opressão de todo tipo, existem micro-resistências, que fundam, por sua vez, microliberdades e que mobilizam recursos insuspeitos. Trata-se de apostar e de confiar, de fato, na inteligência e na inventividade dos mais fracos. Não é suficiente chamá-los de “sujeitos históricos”. Devemos reconhecer concretamente seus caminhos de liberda- Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 311 311 27/09/09 10:04 Cláudio Perani de, que não se reduzem nem se identificam, assim sem mais, com certos movimentos populares mais organizados. Penso seja esta uma grande tarefa do CEAS. Com seu conhecimento da prática popular e com sua capacidade de reflexão teórica, poderia favorecer sempre mais este tipo de análise, que não se encontra facilmente no mercado e que, me parece, é fundamental. É um grande desafio. Mas vale a pena! 312 Revista ceas 233.indd 312 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 PARA LER NOS CADERNOS DO CEAS SOBRE... TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO • Equipe do CEAS. “Notas para ma releitura do artigo de Nell-Breuning no contexto latino-americano”. Cadernos do CEAS, n.º 7, jun. 1970, pp. 12-18 • ______. “Opções da Igreja no Brasil”. Cadernos do CEAS, n.º 9-10, dez. 1970. • ______. “Dependências e libertações”. Cadernos do CEAS, n.º 24, abr. 1973, pp. 14-25. • ______. “Teologia e ação libertadora: reflexões concretas sobre a praxe eclesial”. Cadernos do CEAS, n.º 24, abr. 1973, pp. 26-35. • ______. “O primeiro encontro latino-americano de cristãos para o socialismo”. Cadernos do CEAS, n.º 24, abr. 1973, pp. 36-46. • ______. “Militância cristã e classe social: a propósito de dois movimentos da Igreja”. Cadernos do CEAS, n.º 26, ago. 1973, pp. 46-52. • ______. “Preparando a terceira Assembléia dos Bispos da América Latina”. Cadernos do CEAS, n.º 53, jan.-fev. 1978, pp. 46-57. • Galiléia, Segundo. “A libertação na conferência de Medellín”. Cadernos do CEAS, n.º 34, nov.-dez. 1974, pp. 56-61. • Comblin, José. “Libertação no pensamento cristão latino-americano”. Cadernos do CEAS, n.º 35, jan.-fev. 1975, pp. 26-37. • Fourez, Gérard. “Luta de classe e comunhão cristã”. Cadernos do CEAS, n.º 36, mar.-abr. 1975, pp. 41-46 • Assman, Hugo. “Medellín: a desilusão que nos amadureceu”. Cadernos do CEAS, n.º 38, jul-ago. 1975, pp. 56-65. • Richard, Pablo. “A Teologia da Libertação na atual situação política da América Latina”. Cadernos do CEAS, n.º 54, mar.-abr. 1978, pp. 51-60. • Casaldáliga, Pedro. “Além de Medellín”. Cadernos do CEAS, n.º 55, mai.jun. 1978, pp. 38-47. Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 Revista ceas 233.indd 313 313 27/09/09 10:04 Cláudio Perani • “Reflexões de católicos cubanos sobre Puebla”. Cadernos do CEAS, n.º 59, jan.-fev. 1979, pp. 56-65. • Mato, Manuel Andrés. “O ‘povo’ dos bispos e o povo real”. Cadernos do CEAS, n.º 64, nov.-dez. 1979, pp. 55-59. • Souza, Luiz Alberto Gomes de. “Puebla e as práticas populares na América Latina”. Cadernos do CEAS, n.º 62, jul.-ago. 1979, pp. 42-49. • Equipe do CEAS. “Documento de Puebla – A Igreja está mais do lado dos pobres”. Cadernos do CEAS, n.º 62, jul.-ago. 1979, pp. 50-64. • Follmann, José Ivo. “Igreja, ideologia e classes sociais”. Cadernos do CEAS, n.º 62, mai.-jun. 1985, pp. 74-77. • “Para onde vai a Igreja?” Cadernos do CEAS, n.º 99, set.-out. 1985, pp. 51-58. • Löwy, Michel. “A crítica ao fetichismo capitalista: de Marx à Teologia da Libertação”. Cadernos do CEAS, n.º 186, mar-abr. 2000, pp. 71-81. • Girardi, Giulio. “A opção pelos pobres na América Latina (entrevista)”. Cadernos do CEAS, n.º 189, set.-out. 2000, pp. 15-28. • Costa, Iraneidson Santos. “A esperança dos pobres vive (considerações em torno da Igreja dos Pobres no Nordeste). Cadernos do CEAS, n.º 205, mai-jun. 2003, pp. 49-67.” 314 Revista ceas 233.indd 314 Salvador Janeiro/Junho 2009 nº 233 27/09/09 10:04 Diagramação, Editoração e Artefinalização Av. Sete de Setembro, 71, Edf. Executivo, S/902 Cep: 40060-901 • Salvador-Ba T (71) 3329-1057 • C (71) 9966-3287 [email protected] Fotolito, Impressão e Acabamento Rua Waldemar Falcão, 335 • S/02 Brotas • CEP: 40.295-001 T (71) 3418-6300 Salvador - BA Revista ceas 233.indd 315 27/09/09 10:04