ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Vida Toda Linguagem: Memória e Cultura em Pedra do Reino ALVES, Maria das Dores Valentim (UNIOESTE) SILVA, Dr. Acir Dias (UNIOESTE) RESUMO: Este trabalho tem a intenção de expor criticamente, a partir das imagens da microsserie A Pedra do Reino (2007) do diretor Luiz Fernando Carvalho e do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta(1971) de Ariano Suassuna as relações com a arte da memória. Diante disso, refletiremos sobre as reminiscências estéticas e poéticas de Cervantes, de Dante, de Platão, Giullio Camilo, Carvalho e de tantos outros artistas que, dialogam na circularidade das representações culturais e num jogo de identificação, transferência e projeção, criam novas imagens, palavras e artisticamente devolvem-nas ao meio cultural. Tal estudo consiste ainda na tentativa de perceber a tradução como uma nova criação; pois, ao traduzir um texto primeiro, se constrói uma nova maneira de reconhecer na cultura, nas imagens e na literatura o mundo que elas encerram. As representações da cultura atual são Imagens Agentes, pois surgem como alegorias de outras tantas representações da sociedade. Essas imagens estão inseridas organicamente na visualidade do texto literário, nas imagens e sons do cinema, nas artes plásticas e no teatro. As narrações cinematográficas, assim como as séries televisivas, com seus mitos e alegorias são tensões, desejos materializados em ação permanente que se renovam e se perpetuam em memórias e reminiscências. PALAVRAS-CHAVE: Arte da memória, tradução cultural, literatura e cinema. ABSTRACT: This paper aims to expose critically from the microarray images of the A Pedra do Reino (2007) director Luiz Fernando Carvalho and Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta (1971), Ariano Suassuna relations with the art of memory. Given this, we will reflect on the aesthetic and poetic reminiscences of Cervantes, Dante, Plato, Giulio Camillo, Carvalho and so many other artists, dialogue in the circularity of cultural representations and a set of identification, transference and projection, creating new images, words and artistically return them to the cultural environment. This study is still trying to understand the translation as a new creation, for, to translate a text first builds a new way to recognize the culture, the images and literature the world that they embody. Representations of the current culture images are agents, because there are as many allegories of other representations of society. These images are embedded organically in visuality of the literary text, images and sounds of the cinema, the visual arts and theater. The narrative films, as well as the television series, with their myths and allegories are tensions, desires materialized in permanent action to renew and perpetuate themselves in memories and reminiscences. KEYWORDS: Art of memory; cultural translation; literature and cinema. 1. INTRODUÇÃO Os mitos e emblemas que configuram a obra romanesca A pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta(1971), de Ariano Suassuna, estão também organicamente inseridas em A Pedra do Reino(2007), microssérie televisiva de Luiz Fernando Carvalho. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 737-751 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Para além disso, tais emblemas não se originam nelas, mas perfazem o caminho da atualização de algumas memórias sob a forma de tradução de alegorias, ou seja, imagens de outras produções culturais que agem para educar nossa memória estética e também política. Quaderna, o narrador-personagem da obra de Suassuna, tem suas origens na Literatura Medieval sob sua forma mais difundida, a Novela de Cavalaria; consagrada pela literatura canônica e mais tarde dessacralizada pela obra de autores como Rabelais, Lazarillo de Tormes e Cervantes, na obra Dom Quixote de La Mancha (1978). No caso da Novela Épica de Cervantes, assim como em A Pedra do Reino, a inversão dos papéis social, recorrente na carnavalização, pode ser notada pelo fato de Quixote ser nomeado cavaleiro andante por sua obstinada vontade de sê-lo, contrariando certas normas de organização da sociedade medieval. Essas normas, vigentes também no círculo ortodoxo da literatura e de outras formas de arte, relegavam tudo o que não fosse oficial para fora das esferas legítimas do reconhecimento cultural. Nesse caso, o herói que representava esse espírito de conformidade com tais regras era o Cavaleiro medieval. Esse herói para quem a honra e a bravura eram características imprescindíveis figurava nos textos da chamada grande literatura, nas telas de pintores renomados e no teatro erudito. O herói picaresco de Cervantes, de Suassuna e também o de Carvalho, tem um perfil diferente do herói de cavalaria, para quem a honra e a palavra são sagradas. Segundo Tavares (2007), para o herói pícaro mais valioso do que a honra é a sobrevivência, e mais importante que a palavra dada é não passar fome (TAVARES, p. 69). O estudo da Arte da Memória tem sua origem com os oradores Gregos e Romanos, era antes um recurso da retórica. Diz Francis Yates que “o Ad Herenium é a principal fonte da tradição de estudos da memória”. Segundo seus preceitos, quem quiser iniciar-se nessa prática precisa antes criar um loci, um lugar imaginário, pois estamos falando da memória artificial. Deve cuidar para que este loci seja tranqüilo e silencioso, de tamanho mediano, e atentar ainda para o efeito da iluminação sobre a imagem a que se deseja memorizar. Depois, nesse loci, devem ser inseridas as imagens. É recomendado dar um caráter dramático à imagem que se quer memorizar, uma vez que as imagens impressionantes se inscrevem em nossas mentes de maneira mais memorável do que as banais (YATES, 2007, p. 22). A respeito disso, nos diz o autor anônimo do Ad Herenium: Agora a própria natureza nos ensina o que fazer. Quando vemos em nosso cotidiano coisas triviais comuns, banais, geralmente falhamos em nos lembrar delas, porque, a mente não é estimulada por algo novo ou excepcional. Mas se vemos ou ouvimos algo indigno, desonroso, incomum, Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema grande, inacreditável ou ridículo, disso conseguimos nos lembrar. (Ad Herenium. Apud YATES, 2007, p. 26). O estudo da Arte da Memória considerado nesse trabalho segue na contemporaneidade os mesmos métodos dos antigos estudiosos e suas relações perfazem o caminho dessas imagens alegóricas. Segundo Milton José de Almeida em Cinema Arte da Memória (1999) a educação estética proposta pela imagem, é na contemporaneidade, sobretudo efetuada pelo cinema, que age na construção e da memória histórica, sendo essa memória também discurso e ideologia. Diz Almeida que Quando sugiro que se pense no cinema, ao lermos esses textos sobre a memória artificial, estou querendo dizer que o cinema participa da sua história, não só como técnica, mas como arte e ideologia. O cinema é uma invenção moderna, no sentido material-técnico, porém, a forma como suas imagens são produzidas é homóloga à produção da memória artificial. Assistir a um filme é estar envolvido num processo de recriação de memória [...] O cinema, ao mesmo tempo, cria ficção e realidades históricas, em imagens agentes e potentes, e produz memória. (ALMEIDA, 1999, p. 56). Em sua obra O Teatro da Memória de Giulio Camillo (2005), Almeida nos apresenta um Teatro. Nele as imagens agentes estão materializadas e distribuídas em 49 locis, e em sete degraus. O Teatro seria uma estrutura em madeira, cujo projeto Giulio Camillo apresentou em Veneza e depois em Paris. Acomodaria no máximo dois espectadores por vez e em seu interior estavam dispostas as imagens consideradas representativas do pensamento divino, artístico, científico e filosófico, representados primeiramente pelos sete planetas até então conhecidos e pela ordem da criação do mundo. O que propõe Camillo é a realização material daquilo que, até então, era imagem mental. O loci de Camillo, seu Teatro da Memória, seria uma fábrica de conhecimento, de memória. Por intermédio do movimento e das associações de pensamentos e imagens nesse meio, era permitido ao espectador apropriar-se de todo o conhecimento nele contido: A Arte da Memória, para imagens e palavras, ressurgida aqui no Teatro de Camillo, aconselha que nos movimentemos de modo ordenado, pausado, indagando cada imagem e tentando liberar de cada uma as mensagens aí contidas, ou decifra-las como pequenos oráculos visuais. Liberta-las também da sua auto-referência e coloca-las no circuito de relações possibilitadas por todas as outras imagens presentes, fora e dentro do seu freqüentador. (ALMEIDA, 2005, p. 38). Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema As imagens do Teatro da Memória se repetiam em diferentes ordens e permitiam ao espectador atuar nelas também como diretor, fazendo delas as associações simbólicas que lhe convinha obedecendo a determinadas regras. Consideremos as memórias de Quaderna, personagem das obras de Suassuna e Carvalho também como artificiais, pois foram forjadas na intenção de construir uma obra literária, seu castelo enigmático; sendo a sua própria história uma miscelânea de romance, crônica, memorial, epopéia, novela de cavalaria, folheto de cordel, mito, á guisa de defesa e apelo diante do processo no qual está envolvido, acusado de subversão política, de liderar movimentos de oposição ás instituições e de estar envolvido com na morte de seu padrinho, Pedro Sebastião Garcia Barretto, e com o desaparecimento de Sinésio. Ao mesmo tempo em que Quaderna se defende da acusação, o herói tenta provar sua fidalguia, sagrar-se Rei da Pedra do Reino do Sertão. Diz-se descendente dos Reis Castanhos e Cabras do sertão, dos legítimos e verdadeiros Reis brasileiros, não daqueles reis e imperadores estrangeiros e falsificados da casa de Bragança. Requer para si o trono do Brasil por “herança de sangue e decreto divino” (Suassuna, 2007, p. 34). Para cumprir seus intentos, evoca os textos de outros autores de várias vertentes, eruditas e populares: Homero e os poetas do sertão estão lado a lado no mosaico de suas memórias. Figuras mitológicas, símbolos cristãos, cabalísticos, astrológicos, alquímicos e pagãos permeiam toda a narrativa. Autodenomina-se um diassevasta, vai recolhendo os cantos e montando seu castelo da memória. Ao modo de Camillo, suas memórias são editadas pelos arquétipos. 2. OS QUATRO JOGADORES Na unidade dos quatro elementos é que pode haver vida. Quaderna é uno, a divindade formada de quatro elementos, ou antes, o homem feito como imitação da idéia de Deus. O quatro, relacionado á personalidade de Quaderna é considerado um número místicosagrado. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1999), as interpretações para o número quatro e suas inferências sob outros números, como o quarenta, e formas geométricas como o quadrado, estão, em quase todas as civilizações, ligados à Simbologia Sagrada. Como símbolo cristão, está associado aos quatro braços da Cruz (p. 751-762). E, segundo Bráulio Tavares na obra ABC de Ariano Suassuna (2007), o nome Quaderna recebeu a influência direta desse símbolo: Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema O nome Quaderna não entrou para a literatura brasileira pelas mãos de Ariano Suassuna, mas pelas de João Cabral de Melo Neto que o usou como título de seu livro de poemas publicado em Lisboa em 1960, enfeixando poemas escritos no período 1956-1959, entre eles alguns dos mais famosos seus, como: “Estudos para Uma Bailadora Andaluza”, “Paisagem Pelo Telefone”, “A Palo Seco” e Poemas(s) da Cabra”. Segundo Marli de Oliveira em sua Introdução á Obra Completa de Cabral, era intenção do poeta dedicar quatro poemas ás “Bailadoras Andaluzas”, as dançarinas de flamenco, comparando-as com os quatro elementos (fogo, água, terra, e ar), o que já sugere uma estrutura dividida em quatro. (TAVARES, 2007, p. 143). Assim, ao relacionar o número quatro à Quaderna, que são quatro elementos, quatro temperamentos, podemos associá-lo também a quatro deuses Greco-romanos e suas representações alegóricas no Teatro de Camillo. KIRCHER, Athanasius. Teatro da Memória de Giulio Camillo. In: ALMEIDA, M. J. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. 2005, p. 129. 3. O BANQUETE HOMÉRICO DE OCEANO O segundo grau do teatro é dedicado ao Banquete, tem em uma de suas portas Apolo, que foi retirado do primeiro grau para ceder lugar ao Banquete. Para materializar essa Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema alegoria, Homero imagina que Oceano (água da sabedoria que existiu antes da origem da criação) oferece um Banquete aos deuses (as idéias no modelo divino). Por isso, coloca o Banquete no primeiro e segundo graus do Teatro, de modo a torná-lo agentes em todas as outras imagens (ALMEIDA, 2005, p. 247). Oceano, as águas da sabedoria, corresponde á criação da vida, pois figura os seres que se originaram da água. Oceano também é uma imagem simbólica em O romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e em A Pedra do Reino. É na Lagoa do Vieira, durante a caçada, que brota da água para os olhos de Quaderna uma Pedra com o desenho do Escorpião, símbolo do Reino do Sete Estrelo do Escorpião, e a parte desaparecida da Coroa do Reino, um chapéu de couro que se encaixava a ela como forro, prova corporal e irrefutável da história de seu Reino Encantado. Não é por acaso que a pedra é encontrada na lagoa, no “barro esbranquiçado de um riacho seco”. Pedra e água são símbolos importantes em todas as culturas. O barro representa nas Escrituras Sagradas à origem do homem. Segundo Chevalier & Gheerbrant, a pedra e o homem apresentam um movimento duplo de subida e de descida. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p. 696). Assim, Quaderna, ao encontrá-la, se eleva da sua condição plebéia e ascende á condição de “escolhido”. Forjado no barro da lagoa, elevado pelo poder da pedra, e da coroa o Homem se torna Rei. Quaderna une à Coroa do Reino – a coroa de seu bisavô Dom João Ferreira Quaderna, o Execrável – o forro de couro por ele encontrado na Lagoa do Vieira, onde diziam que Dom Sebastião aparecia, pedindo para seu Reino fosse desencantado. Fotograma: PIATTI, D. E. A Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Pedra do Reino. Direção: Luiz Fernando Carvalho. TV Globo. Brasil, 2007. Português. 2 DVDs (4h36min), son., color. 4. QUADERNA É SATURNO, O TEMPO DO TEATRO MEMÓRIA A natureza de Saturno é melancólica. Suas emoções são a seriedade, a tristeza, a introspecção e a solidão, que estão representadas no Teatro da Memória de Giulio Camillo, no grau da Caverna, pelo pardal solitário. Possui forte ligação com objetos antigos e simboliza o tempo, que no domínio do Teatro está representado na porta da Caverna pela cabeça de um lobo, um leão e um cachorro, símbolos do presente, passado e futuro. Saturno representa ainda infortúnio e pobreza, que se apresenta no grau da Caverna pelas imagens de Pandora. Seus materiais são o couro e o chumbo. Representa também o poder e a autoridade, esses representados no grau da Caverna por Cibele, que revela sua relação com a Terra – a Mãe, Gaya – numa forte ligação com a tradição e com a disciplina; e o transporte, que é a mais humilde ocupação de Saturno, está representado ainda no grau da Caverna pelo Asno (YATES, 2007, p. 186). A dualidade da personalidade de saturno pode ser percebida no recorte do poema citado por Quaderna: O Encontro de Antonio Silvino com o valente Nicácio: “neste Planeta terrestre”, O homem não se domina: tem que viver sob o julgo da Providência Divina. Foi feito do Pó da terra, no Pó da terra termina! Assim, eu mostro a estrada. do passado e do presente, Estrada onde morrem Reis molhados de sangue quente! Hoje tornados em Pó, Resta a memória, somente!” (SUASSUNA, 2006, p. 101). O grande orador Quaderna também está nesse tempo circular que não é medido pelo tempo real, tal qual o concebemos no mundo concreto de nossas ações cotidianas. Suas memórias estão no templo de Saturno, deus carnavalesco, no Teatro de Giullio Camillo, e também no templo de Saturno, devorador de homens sob forma de imagens alegóricas. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 5. APOLO O CARRO DO SOL NO SERTÃO DO CARIRI Apolo é o deus solar, possui setas poderosas que imitam os raios que alcançam distancias longinquas capazes de vencer o inimigo, assim iluminado pelo fogo da poesia é visionário, desvenda os enigmas ocultos, tem a clarevidência de sentir o que virá. Guia o povo, os liberta do terrível monstro Pitón, evoca as Musas. Por ser o deus dos poetas a quem Homero dedica hinos, sua presença no O romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e em A Pedra do Reino é plausível. Quaderna começa sua narrativa evocando as musas, porém a musa que ele evoca é a musa do deserto do sertão: Ave musa incandecente do deserto do sertão forje no Sol do meu Sangue o trono do meu clarão: cante as pedra encantadas e a Catedral Soterrada Castelo desse meu chão. (SUASSUNA, 2006, p. 27) Quaderna viagem pelo Sertão em seu carro e palco teatral. Fotogramas: PIATTI, D. E. A Pedra do Reino. Op. Cit. Ao aludir às Musas e aos poetas, que podem tocar de leve o Sol, por isso são profetas e visionários, alegoricamente Quaderna se aproxima do Deus Sol, Apolo, que fala com as Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Musas no Oráculo de Delfos. Desse modo, Apolo e algumas de suas muitas possíveis representações também são imagens agentes em Romance d' A Pedra do Reino e em A Pedra do Reino. 6. QUADERNA É MERCÚRIO NO TEATRO DA MEMÓRIA Mercúrio, o deus mensageiro, é o planeta regente de Gêmeos o signo zodiacal de Quaderna e também de Ariano Suassuna. Mercúrio é a divindade que está representada no teatro de Giulio Camillo por meio de suas sandálias, elas estão no sexto grau do teatro, lembremos porém que, as imagens agentes que estão representadas em quaisquer dos sete graus do teatro podem comunicar todas as outras. Aliás, é essa a função dessa divindade que por isso mesmo é tambem denomimada “o mensageiro”. Conforme Chevalier e Gheerbrant (1999), Mercúrio foi escolhido por Zeus para atuar como mensageiro junto aos deuses do infernos, Hades e Perséfone. Essa característica de Mercúrio como um deus que tem o dom de transitar por todas as esferas do cosmo, Céu, Terra e Inferno pode ser exemplificada na fala de Quaderna, que faz ainda alusão á obra de Dante Alighieri: Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de Paraíso, Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme e alta pedra que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio Taperoá, cuja areia é cheia de cristais despedaçados que faíscam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande e EstacaZero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila (SUASSUNA, 2006, p. 31). As sandálias de Mercúrio simbolizam o deslocamento e a elevação. Essa divindade pode abarcar ainda as outras três que citamos anteriormente; Saturno, Apolo e Oceano. A simbologia de Mercúrio, no que tange a obra O Romance d'A Pedra do Reino e a microssérie A Pedra do Reino é a que talvez mais se revele, pois também na estrutura da obra essa divindade funciona como mensageiro: hora, mensageiro de outros feitos literários, cinemátograficos, estéticos e filosóficos que Suassuna, e Carvalho pelo método da bricolagem fundiram á sua obra; hora pelos vários gêneros que as perpassam, mensageiro de estilos de romance, e de estilos de escrituras, mensageiro de imagens e Memórias. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Os pedaços de imagens memoráveis escolhidos por Quaderna para compor a sua Epopéia sertaneja, como é o caso do exemplo acima, vem de fontes populares e de fontes clássicas, dos mitos. Conforme orienta o Ad Herenium, as imagens que Quaderna personagem-narrador evoca são fantásticas, são imagens recolhidas no universo das Escrituras Sagradas, das filosofias herméticas e dos pensadores neoplatônicos – para os quais a memória é reminiscência –, das imagens da literatura, da pintura, cinema e do teatro. Imagens que são a imitação da idéia perfeita, contemplada somente pela alma. Essas imagens agentes que preenchem os loci das memórias de Quaderna em O romance d´A Pedra do Reino e em A Pedra do Reino partem das reminiscências dos autores Ariano Suassuna e Luiz Fernando Carvalho. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Milton J. de. Cinema: arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999. __________. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Cotia: SP: Ateliê Editorial: Campinas: Editora da Unicamp, 2005. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987. __________. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Editora da Unesp, 1994. BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia. Histórias de Deuses e Heróis. [Tradução David Jardim Júnior]. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. CHEVALIER, Jean. & GHEERBRANT, Alan. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. CERVANTES, Miguel. Dom Quixote. São Paulo: Editora Abril, 1978. NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia: das origens á idade moderna. São Paulo: Editora Globo, 2005. SANT’ANNA, Afonso R. de. Paródia paráfrase e cia. São Paulo: Ática 1985. SUASSUNA, Ariano. Iniciação á Estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. TAVARES, Bráulio. ABC de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. YATES, Frances Amélia. A arte da memória. [Trad. Flavia Bancher]. São Paulo: Editora da Unicamp. 2007. FILMOGRAFIA A Pedra do Reino. Diretor: Luiz Fernando Carvalho. Roteiro: Luis Alberto de Abreu, Bráulio Tavares, Luiz Fernando Carvalho, Ariano Suassuna. Música original: Marco Antônio Guimarães. Música adicional: Antônio Madureira. Elenco: Irandhir Santos; Abdias Campos; Alyyne Pereira; Américo Oliveira; Anthero Montenegro; Beatriz Lelis; Claudete Andrade; Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Everaldo Pontes; Flávio Rocha; Germano Haiut; Hilda Torres; Iziane Mascarenhas; João Ferreira; Jones Melo; Júlio Rocha et alii. TV Globo. Brasil, 2007. Português. 2 DVDs (4h36min), son., color. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 752-762