PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014)
Da fé ao funk: o cotidiano como legitimador do gospel no programa
“Esquenta!”1
Jênifer Rosa de Oliveira2
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP
Resumo
No mundo secularizado diferentes formas de explicação da vida competem com a religião,
que, por causa disso, não conta mais com a submissão obrigatória de seus fiéis, que devem ser
conquistados (BERGER, 1985). Para atraí-los, a religião se submete a lógica do mercado,
permitindo que seus elementos sacros, como a música, sejam apropriados como objeto de
consumo e entretenimento. Nesse processo de hibridação, a religião se aproxima de instancias
profanas vulgarizando o que outrora era sacro, ao mesmo tempo em que reconfigura para o
contexto religioso elementos da cultura popular. Neste trabalho, propomos discutir as
hibridações contidas na participação dos artistas evangélicos no programa Esquenta!, da TV
Globo.
Palavras-chave: religião; mídia; música gospel; cotidiano; Esquenta!.
1. Introdução
Campeonato carioca de futebol, março de 2012. Numa partida contra o Vasco
da Gama, o jogador Fellype Gabriel marca os três gols do Botafogo que consagraram
a vitória do time sobre o gigante da colina. No final da partida, o jornalista de um
famoso programa de televisão pergunta ao jogador qual música ele gostaria que
tocasse no quadro especial em que exibem as músicas escolhidas pelos jogadores que
fazem três gols numa única partida. Fellype então escolhe a música “Rendido Estou”,
interpretada por Fernandinho e Aline Barros, dois grandes nomes da indústria
fonográfica gospel.
Mas a escolha de Fellype não foi uma novidade. Além dele, muitos outros
jogadores brasileiros que marcaram três gols numa única partida já pediram alguma
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Subjetividade, do 4º Encontro
de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
2
Graduada em Comunicação Social (Jornalismo e Relações Públicas pela UFMG. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo,
financiada pela Capes.
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música evangélica neste mesmo quadro do programa, até mesmo o craque Neymar,
que em mais de uma oportunidade, pediu uma música gospel. Isso demonstra a
dimensão que a música evangélica, antes restrita a situações de caráter religioso,
adquiriu no cotidiano dos brasileiros a partir da inserção da religião na mídia e do
crescimento do número de evangélicos no país.
Estima-se que o número de evangélicos no Brasil tenha crescido 61,45% nos
últimos 10 anos, passando de 15,4% da população em 2000 para 22,2% em 2010.
Segundo relatório do ultimo censo, este crescimento vem se estabelecendo desde
1950, quando o número de católicos, religião predominante no país, começou a
diminuir. Foi também a partir dessa mesma época que as denominações de orientação
pentecostal, as principais responsáveis pelo crescimento no número de evangélicos
segundo o censo, começaram a ganhar força no Brasil.
Os pentecostais, adeptos da teologia da prosperidade, desde o início de sua
chegada no país utilizam a mídia como forma de interagir com os fiéis. Já nos anos 50
existiam emissoras radiofônicas evangélicas com mensagens religiosas em tempo
integral, e nas décadas seguintes surgiram os primeiros televangelistas, como R.R.
Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus e Edir Macedo, da Igreja Universal
do Reino de Deus (CUNHA, 2007, p. 60). Partindo desses dados, é possível inferir
que a aproximação entre os campos religioso e midiático pode ser vista como uma
possível explicação para a modificação do cenário religioso do Brasil, que vem se
firmando desde meados do século passado.
O crescimento do número de evangélicos no país produziu impactos na
economia, sendo o mercado fonográfico um bom indicativo dessa ascensão. Segundo
relatório da Associação Brasileira dos Produtores de Discos, dos 20 CDs mais
vendidos em 2011, dois eram de artistas evangélicos. Esse sucesso nas vendas fez
com que grandes gravadoras, como a Sony Music e a Universal Music criassem selos
específicos para o lançamento dos artistas da chamada música gospel. Essa presença
da religião na mídia e a ascensão do mercado fonográfico gospel provocou o
surgimento de personalidades religiosas, principalmente relacionadas à música, que
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receberam status de celebridades. Em 2013, em uma lista elaborada pela revista
Forbes que reunia as cem pessoas mais influentes do país, três dos nomes citados
foram de cantores desse segmento (Aline Barros, Ana Paula Valadão e Thalles
Roberto). Os artistas evangélicos deixaram para trás nomes conhecidos do grande
público, como Cláudia Raia e Dráuzio Varela3.
A participação dessas personalidades na TV, que antes se restringia aos
programas religiosos, passou a ser notória também nas demais produções, como no
caso do programa Esquenta!, da TV Globo, objeto de nossa investigação. Situações
como nas protagonizadas pelos jogadores de futebol citados no início deste artigo são
cada vez mais comum na televisão e mostram que a música gospel está cada vez mais
inserida na vida cotidiana dos sujeitos.
2. Fé e cotidiano: bricolagem de sentidos
Conforme apontado por Agnes Heller (2000), “a vida cotidiana é a vida do
homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos
de sua individualidade, de sua personaidade.” (HELLER, 2000, p. 17). Em outras
palavras, a vida cotidiana é onde todas as capacidades do homem estão em
funcionamento e de onde ele tira sua força produtiva. O homem nasce inserido nessa
cotidianidade e se desenvolve na medida em que adquire as habilidades necessárias e
assimila os valores que estruturam a vivência do grupo do qual ele pertence. Este é
um ser genérico pois é produto de suas relações, sendo herdeiro e preservador das
estruturas da vida cotidiana, na medida em que as reproduz em suas atividades.
No entanto, conforme também observou Heller (2000, p. 18), a estrutura da
vida social é heterogênea e hierarquizada. Mas esta hierarquia entre as esferas, que
estabelece como estruturante da vida cotidiana os valores da esfera dominante, não é
imutável. Ela está sujeita aos processos que se estabelecem ao longo da história, de
ascensão e declínio de classes, de construção e degeneração de valores. Apesar da
3
http://forbesbrasil.br.msn.com/blog/post-redacao.aspx?post=daaec777-6984-41d0-b4442f2d194d4ed5
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aparente sensação de que a vida cotidiana se passa em um plano estável, esta é
marcada por fragmentações. Tanto que Heller (2000, p.30) prioriza a criatividade
como a principal característica da vida cotidiana. Para a autora, como são muitas as
probabilidades que se colocam em cada situação e não sendo possível calcular
racionalmente cada ação, o homem lança mão da criatividade para fazer suas
escolhas. Assim, regularidade e espontaneidade se implicam mutuamente na vida
cotidiana na medida em que não é possível refletir sobre o conteúdo de cada forma de
atividade que a compõe.
Certeau (1998, p. 91-95) também chama a atenção para as relações
espontâneas que se escondem por trás da aparente estabilidade da vida cotidiana. Para
ele, embora figurem as regras de um sistema imposto, existem diferentes formas de se
fazer (diferentes estilos de ação) a partir dos usos que os sujeitos fazem dessas
estruturas dominantes. Se num primeiro nível esses estilos de ação seguem as regras
impostas, num segundo nível, que se encontra imbricado neste primeiro, o sujeito, por
meio de sua criatividade no manejo das regras, tira proveito delas para si. Esses
reempregos das estruturas do sistema dominante são uma forma astuciosa que os
dominados utilizam para assimilá-lo e modificá-lo sem, contudo, deixar de fazer parte
dele. Conforme apontado pelo próprio autor, os reempregos atingem inclusive as
esferas da mídia e do consumo. Assim, a discussão sobre o consumo, por exemplo,
não pode se delimitar apenas ao contexto de uma indústria cultural, mas se expandir
para os usos que os espectadores fazem, a partir de suas próprias lógicas, dos produtos
que ela os impõe.
Na realidade, diante de uma produção racionalizada, expansionista,
centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo
totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica
suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas
“piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma
quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios
(onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhes são
impostos (CERTEAU, 2000, p. 94).
O campo religioso, que constitui mais uma esfera das muitas que compõem a
vida cotidiana, não fica ileso a todas essas relações complexas apontadas pelos dois
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autores. Pelo contrário, ele pode ser percebido como uma espécie de vitrine para
observá-las. A religião, sobretudo o Cristianismo, que na Idade Média se instituía
como a principal organizadora da sociedade, estabelecendo os valores morais, a
organização política e as verdades que explicavam o funcionamento do universo, vem
perdendo sua influência ao longo dos anos devido ao surgimento de novas ideologias
e da racionalização do pensamento. Com isso, embora ainda seja uma esfera de
importância considerável da vida cotidiana e ainda influenciar as demais, a religião
precisa se colocar a venda para conquistar os seus fiéis, como observou Berger:
Resulta daí que a tradição religiosa que antigamente podia ser imposta pela
autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser
“vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”. A
situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado. Nela, as
instituições religiosas tornam-se agências de mercado e as tradições religiosas
tornam-se comodidades de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da
atividade religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da
economia de mercado” (BERGER, 1985, p. 149)
A ascensão do mercado fonográfico gospel e a constante inserção da religião
na mídia podem ser vistos como um esforço nesse sentido apontado por Berger, de
tornar a religião mais “agradável” para os fiéis a partir da aproximação desta com
outras esferas da vida cotidiana, principalmente com o consumo. Esta relação entre
religião, consumo e entretenimento no contexto evangélico já havia sido abordada por
Cunha (2007) a partir do conceito de cultura gospel criado pela autora. A partir dele
ela analisa as hibridações provocadas pelo encontro entre mídia, religião e mercado,
que tem na música gospel o seu principal produto. Este conceito e suas implicações
serão trabalhados no tópico a seguir.
3. Música, consumo e entretenimento: A cultura gospel
Música e religião sempre estiveram intrinsecamente ligadas. Foi apenas a
partir da Renascença que as artes, aqui inclusa a música, puderam se instituir como
esferas autônomas através do processo de racionalização que separou o que era
Sagrado do que era Secular. Antes disso, a música primitiva era subordinada a fins
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práticos, como usos em rituais apotropéicos (relativos ao culto) e de exorcismos, de
acordo com finalidades específicas (Weber,1995, p.86).
No Cristianismo, a música, por semelhante modo, é utilizada como
instrumento de louvor a Deus e também como elo entre os fiéis e na promoção de
emoções coletivas. Com a expansão do mercado fonográfico nesse nicho específico, a
nova música cristã se presta também às experiências de consumo (MENDONÇA,
2007, p.2). No tocante estritamente aos grupos protestantes, a música ainda é uma
forma de contar a própria história. Nos EUA, os worksongs que os negros americanos
convertidos ao protestantismo entoavam durante o trabalho nas lavouras serviram de
base para a criação das primeiras espiritual songs durante o movimento de
avivamento que ocorreu nas igrejas negras americanas no final do século XIX que,
por sua vez, está na gênese do movimento pentecostal (BAGGIO, 2005, p.23).
A música cristã também ajuda a contar a história do protestantismo no Brasil.
Os primeiros protestantes que para cá vieram foram luteranos alemães e anglicanos
ingleses. Eles chegaram ao país no início do século XIX, incentivados pela política de
abertura dos portos às nações amigas, promovida por D. João VI em 1808 (CUNHA,
2007). No final do século XIX chegaram os primeiros missionários originários dos
EUA: batistas, metodistas, presbiterianos, etc., do chamado Protestantismo Histórico
de Missão (PHM). Os primeiros grupos pentecostais só chegaram ao país início do
século XX . Nesta época, as músicas entoadas nos cultos eram traduções daquelas
utilizadas nos países anglo-saxões, e os instrumentos e ritmos da cultura popular
brasileira eram vistos com rejeição (CUNHA, 2007).
Os processos de industrialização e urbanização que marcaram o século XX
também influenciaram o protestantismo no Brasil, garantindo as condições
necessárias para que o pentecostalismo se tornasse a corrente hegemônica, já que os
valores pregados pela teologia da prosperidade se adequavam aos valores do
capitalismo globalizado que então avançava. Foi nesta época que surgiram as
primeiras composições nacionais (CUNHA, 2007 p.45), e as primeiras rádios
evangélicas.
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Cunha (2007) propõe uma abordagem sobre o lugar das culturas da mídia e do
mercado na formação de uma nova expressão cultural religiosa, a qual denominou
“cultura gospel”. Essa cultura gospel teria como expressão a tríade música-consumoentretenimento: “Na lógica da cultura do mercado, consumir bens e serviços é ser
cidadão; na lógica da cultura gospel, consumir bens e serviços religiosos é ser cidadão
do Reino de Deus.” (CUNHA, 2007, p. 138).
A autora também coloca o sectarismo como uma das principais características
dessa cultura gospel, pois se por um lado a inserção desses valores profanos (consumo
e entretenimento) promove uma maior liberalização nos costumes ao permitir uma
maior integração dos evangélicos com a sociedade, paradoxalmente, por outro lado,
há um reforço das características do protestantismo brasileiro, como a divisão entre
sagrado/profano e a demonização das religiões afro-indígenas e do catolicismo. Para a
autora, o que a cultura gospel faz é reconfigurar, “com ares de modernidade as linhas
divisórias entre a igreja e o mundo, entre o sagrado e o profano estabelecidas pela
tradição pietista e puritana (...)” (CUNHA, 2007, p. 203).
Canclini (2011, p. XIX) chama de hibridação a “esses processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se
combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” Para ele, as diferentes
instâncias da vida moderna não se encontram em oposição abrupta, mas hibridadas.
Para ele, a hibridação pode ser um processo espontâneo, desencadeado pela
criatividade dos indivíduos em sua vida cotidiana. Então podemos entender que,
embora o mercado seja um importante motivador desse processo, este não se resume a
economia de mercado, já que adentra as dimensões simbólicas e culturais da vida dos
sujeitos, adquirindo outros sentidos nos novos usos proporcionados.
Faremos agora uma descrição da participação dos evangélicos no programa
Esquenta!, objeto de nossa análise para entender como essas hibridações aparecem no
contexto mídia-religião.
4. Os evangélicos como atração no Esquenta!
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O programa Esquenta! estreou na Rede Globo de Televisão em 2011, sob o
comando da apresentadora Regina Casé. Semelhante a outros trabalhos já realizados
por ela na mesma emissora, a periferia é o tema principal. No palco, a apresentadora
divide espaço com atores de novela e nomes importantes do samba, como Arlindo
Cruz, mas também incorpora ao elenco fixo do programa grupos de funk,
webcelebridades e personalidades das comunidades, principalmente do Rio de
Janeiro. O samba e funk são elementos da cultura popular com uma forte presença no
programa, influenciando desde sua trilha sonora (a vinheta do programa é um samba e
a música de abertura um funk) até o cenário, que é bem colorido, semelhante aos
desfiles das escolas de samba no carnaval. Os convidados, que podem ser tanto
personalidades de destaque na mídia quanto anônimos, costumam permanecer no
palco durante todo o programa, sendo comum que no momento das performances,
principalmente as musicais, haja uma interação entre todos os presentes, que dançam
e cantam junto com o artista que se apresenta.
A religiosidade é também é um elemento recorrente no programa. Durante o
ano de 2013, que serviu de recorte para nossa investigação, além de participações
isoladas
de
representantes
de
diferentes
religiões,
três
programas
foram
completamente estruturados sob alguma temática religiosa, a saber: dia 17 de março,
programa especial sobre a Páscoa (sob a perspectiva de diferentes religiões); 28 de
julho, programa especial sobre São Francisco de Assis e dia 15 de setembro, especial
sobre o budismo, a propósito da estreia da novela das 18h da mesma emissora, “Joia
Rara”, que também trazia a religião oriental em seu enredo central. No entanto, como
o foco deste artigo é a participação dos evangélicos especificamente, essas demais
presenças religiosas não serão trabalhadas, apenas apontadas para que se perceba a
multiplicidade de elementos, muitas vezes até contraditórios, que convivem na
proposta do programa.
A respeito da participação dos convidados evangélicos que serviu como
corpus para nossa análise, esta se deu em três dias durante o ano de 2013: no
programa especial de Páscoa já citado anteriormente, que contou com a presença do
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cantor Thalles Roberto e de uma disputa entre grupos de coreografia gospel; no dia 19
de maio, com a participação dos irmãos Jefferson e Suellen, que ficaram conhecidos
no país como os irmãos “Para nossa alegria”, após divulgarem na internet um vídeo
no qual aparecem cantando, de forma cômica, uma música conhecida entre os
evangélicos cuja dita expressão aparece no refrão; e no dia 23 de junho, programa
especial de São João, com a presença do cantor de funk gospel Tomzão.
No programa do dia 17 de março, que teve como inspiração temática a festa da
Páscoa, comemorada tanto por cristãos quanto por judeus, a religião foi um elemento
bastante presente. No entanto, ela não se restringiu a essas duas correntes, já que
também havia participantes que professavam religiões de matrizes africanas. Nesta
ocasião, a participação dos artistas gospel se deu em dois momentos. O primeiro deles
foi a presença do cantor Thalles Roberto, que permaneceu no palco durante todo o
programa, juntamente com os outros convidados que representavam as religiões
judaica e católica (um rabino e um padre) e os demais componentes do elenco fixo do
programa. O trecho transcrito a seguir retrata um pouco do cenário em questão:
Imagem/Descrição
No palco, além de Regina Casé e Padre Omar,
estão Arlindo Cruz e Carlinhos Brown, com
adereços que remetem às religiões afro. Além
do elenco fixo, também está presente Thalles
Roberto, cantor gospel. Na platéia, dos garis do
Rio de Janeiro e jovens participantes da Jornada
Mundial da Juventude. Cenário e figurino do
elenco são bastante coloridos, estampados com
motivos africanos.
Áudio
Regina Casé: Padre Omar, fala a verdade, o
senhor já sofreu preconceito por cantar samba?
Padre Omar: infelizmente existe um processo de
demonização do samba. E a gente às vezes não
consegue desarticular esse preconceito.
Thalles: Eu gravei um samba agora também.
Samba é samba.
Regina Casé: Samba é de Deus.
Thales: Samba é de Deus total.[grifo nosso]
No final do programa, que tratou de temas religiosos diversos, como a ceia de
páscoa judaica e a Jornada Mundial da Juventude, três grupos de dança se
enfrentaram numa disputa para eleger a melhor coreografia gospel. A disputa fazia
parte de um quadro do programa em que grupos de dança disputam entre si, o
“Calourão do Esquenta!”. Os três grupos eram formados, em sua maioria, por jovens
e adolescentes. Eles aparecem trajando um figurino bem produzido. As meninas estão
bem maquiadas e os meninos usam roupas largas, no estilo das tribos urbanas, e
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cortes de cabelo modernos. Todos dançam músicas agitadas, com pegadas de rock e
ritmos eletrônicos. As coreografias são compostas de movimentos rápidos, inspirados
na dança de rua e em outras danças contemporâneas. Após uma votação feita por
meio da manifestação da platéia, o grupo “Peculiar Family”, de dança de rua, formado
apenas por meninos, é eleito o vencedor sob gritos de “É campeão!” entoados pela
platéia.
Após a premiação do grupo vencedor, Regina Casé convida Thalles Roberto
para cantar, e os integrantes do “Peculiar Family” se colocam atrás dele no palco,
improvisando uma coreografia. Os demais participantes do programa também vão
para o palco, cantar e dançar. O cantor de pagode Mumuzinho, do elenco fixo do
Esquenta!, segura um microfone e começa a cantar com Thalles, improvisando um
back vocal. Enquanto eles cantam, a plateia acompanha com palmas e é possível
perceber muitas pessoas cantando, o que demonstra que a música do cantor
evangélico é conhecida daquele público.
No programa do dia 19 de maio a música evangélica apareceu de modo muito
pontual, por meio da breve participação dos irmãos Jefferson e Suellen, que ficaram
conhecidos em todo país depois que um vídeo em que eles aparecem cantando, de
forma muito engraçada, uma música bastante conhecida do público evangélico, se
tornou viral nas redes sociais. Na ocasião, que teve o ciberespaço como temática
principal, vários temas relativos à internet, como webcelebridades, traição virtual,
relação entre artista e fã nas redes sociais, etc., foram discutidos. O cenário, bastante
colorido, era decorado com elementos gráficos que lembravam os jogos de videogame
e cores e texturas metalizadas compunham o figurino do elenco do programa.
Os irmãos foram convidados a entrar no palco quando as webcelebridades
eram o assunto em pauta. Antes deles, esteve presente a moça que ficou conhecida
como “Luiza do Canadá” por causa de outro viral. Quando adentraram o palco, os
irmãos, juntamente com a atriz Fernanda Paes Leme, fizeram uma encenação do
vídeo. Foi esse o único momento em que a música gospel apareceu, entoada pelos
irmãos, mas, como no vídeo, envolta por um contexto de humor.
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Imagem/ Descrição
Aplausos da platéia
Começa a passar o vídeo dos irmãos divulgado no
youtube
Muitos aplausos, gritos e risos na platéia enquanto
os irmãos entram no palco e durante toda a
permanência deles.
A atriz Fernanda Paes Leme e os dois irmãos
reencenam o vídeo. Muitos risos entre os demais
participantes do programa. Os irmãos cantam a
mesma canção evangélica que entoaram no vídeo,
de forma bem humorada.
Áudio
Regina Casé: Teve um outro viral que a gente quase
morreu, que a gente se rachou de dar risada. Foi um
viral que realmente veio para nossa alegria.
Regina Casé: mais de 127 mil visualizações. Eu vou
chamar agora Jefferson e Suellen, para nossa alegria!
Regina Casé: Palmas para eles! O quê que mudou na
sua vida, Jefferson?
Jefferson: Mudou muita coisa. Graças a Deus a gente
gravou um CD e ganhamos muitos carinho e parabéns
dos fã, né. A gente visitou bastante lugares, a gente
nunca imaginou. A gente também nunca ia imaginar
que a gente ia estar aqui, como o louvor fala né, nos
galhos secos de uma árvore qualquer, onde ninguém
jamais pudesse imaginar. [sic]
A festa católica de São João foi o tema do programa Esquenta! do dia 23 de
junho de 2013, mas nem por isso o catolicismo foi o elemento dominante. No palco,
decorado com bandeirolas e balões utilizados nas festas juninas, estavam presentes o
Quinteto Sanfônico da Bahia (grupo de sanfoneiros), a Orquestra Sinfônica de
Heliópolis, a estilista Isabela Capeto, o filósofo e professor Mangabeira Unger, o
cantor Michel Teló e a atriz Ellen Roche, além dos componentes do elenco fixo do
programa, todos vestidos com figurinos juninos. Também estavam presentes
personalidades do samba, como Arlindo Cruz e Péricles. No meio dessa mistura,
Regina Casé chama para entrar no palco o cantor de funk gospel Tomzão.
Imagem/Descrição
Áudio
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Regina Casé e Mangabeira Unger conversam
sobre o livro lançado por ele, que fala sobre
religião.
Os dançarinos do programa, vestidos com roupas
estampadas com motivos juninos, descem a
rampa do cenário dançando funk. Um outro
grupo de rapazes, vestidos de terno, vem
entrando logo atrás. A platéia aplaude.
Os dançarinos do programa caminham para o
centro do palco, onde Tomzão está com o seu
grupo de funk.
Tomzão começa a cantar um funk que fala de
Jesus e outros elementos da religião evangélica,
ditando movimentos que são logo seguidos pelos
dançarinos do programa, que se encontram no
palco, e toda platéia.
Regina Casé: Falando em religião, eu quero mostrar
pra você. Já conhece funk gospel?
Mangabeira: Já, já, já conheci.
Regina Casé: Porque hoje a gente...até o funk se
rendeu ao gospel, tamanha a força, ou vice-versa.
Mangabeira: Sim
Regina: e o funk gospel vem que vem que vem com
tudo querido DJ!
Arlindo cruz: Em nome de Jesus!
[...]
Regina: Eu quero saber uma coisa, dá pra ir até o
chão com essa roupa?
Tomzão: Assim, a gente manda o passinho né, hoje a
gente não rebola porque a gente não usa mais a
sensualidade, mas a gente manda o passinho, [...]
Regina: O passinho do abençoado!
Tomzão: Todo mundo de pé! Todo mundo com a
mãozinha pro alto! Quando você fizer esse movimento
aqui que eu vou ensinar vai vir toda sorte de benção
agora pra você. Levanta a mão bem alto, faz com a
gente assim: [grifos nossos]
[começa a música]
Importante esclarecer que, para esta análise, utilizamos os vídeos
disponibilizados no site do programa, que são segmentados em títulos que descrevem
momentos específicos do programa. Não tivemos acesso ao conteúdo integral do
programa conforme este foi ao ar nos dias determinados, e também por isso não
pudemos especificar o horário exato em que os excertos aqui utilizados foram ao ar.
No entanto, não acreditamos que esta limitação prejudique a análise aqui proposta,
uma vez que o que pretendemos é entender como a participação dos artistas
evangélicos é inserida na narrativa central do programa e isso nos foi possível
perceber por meio dos vídeos disponibilizados.
5. Espontaneidade, flexibilização, paradoxo
Como foi possível perceber, a participação dos evangélicos no programa
Esquenta! se dá envolta numa série de outros elementos que não pertencem ao
contexto religioso. Essa aproximação entre o sagrado e o profano, embora
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aparentemente harmônica na proposta do programa, pode revelar algumas
contradições.
Da parte do programa, é possível perceber, essa presença das atrações
evangélicas é justificada porque estas, para além de seu discurso religioso, apresentam
outras características que são pertinentes a proposta do programa, como o fato de
serem celebridades (Thalles Roberto), ou por estarem ligadas ao samba ou ao funk,
que são bastante explorados pelo programa (Tomzão e os grupos de coreografia
gospel), ou por seu caráter de popularesco, cômico (Os irmãos “Para Nossa Alegria”).
Os evangélicos são escalados como atração para agradar um público em ascensão,
mas a religião acaba sofrendo um apagamento, pois o que fica mais evidente são esses
outros elementos, que reafirmam a proposta do programa. Da parte dos evangélicos,
por sua vez, essa presença se justifica já que, conforme apontado por Cunha (2007),
música, consumo e entretenimento são a expressão da cultura gospel, então estar na
mídia, em um programa de ampla audiência, na principal emissora do país, é
condizente com esse perfil evangélico que se desenha.
No entanto, para participar do programa, percebe-se que os evangélicos (tanto
os que participam do programa quanto os que o consomem) precisam fazer algumas
concessões, que podem gerar tensionamentos. Nota-se uma flexibilização do limite
entre sagrado e profano, já que todo o conteúdo religioso presente nas participações
dos artistas evangélicos acaba se diluindo no contexto do programa, que congrega
uma série de outros elementos em sua temática, alguns deles até demonizados pelos
evangélicos, como as religiões de matrizes afro, por exemplo. Assim, o sectarismo
que Cunha (2007) apontou como uma das características da cultura gospel, em alguns
momentos, parece ser minimizado, mas acaba sendo reafirmado em outros.
Pelas participações analisadas, é possível perceber os processos de hibridação
e midiatização que caracterizam a cultura gospel. É marcante a reconfiguração de
elementos da cultura popular para o contexto religioso, transformando o que era
associado, muitas vezes, a situações profanas, em algo do domínio do sagrado. A
principal evidência disso é a utilização do samba e do funk, dois ritmos muito
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relacionados à sensualidade e à vida promíscua, pelos artistas gospel. Um exemplo
dessa sacralização de elementos da cultura popular, antes rechaçados, está na fala do
próprio Thalles: “Samba é de Deus total”. Outra evidência é a performance dos
artistas gospel, com figurino bem produzido, danças, músicas agitadas, associação do
humor à religião, etc. que toma a dimensão de espetáculo e se presta ao
entretenimento, se igualando, nesse sentido, às demais apresentações musicais de
artistas não-confessionais.
Mas, se por um lado esse processo de hibridação pode ser visto, como aponta
Berger (1985) como uma tentativa do campo religioso de se colocar a venda para
atrair seus fiéis, por outro, não pode também ser um movimento de seus fiéis, a partir
da necessidade deles próprios, de tornar a religião mais próxima de suas vidas
cotidianas, de reinventá-la a partir das regras de um mundo onde ela perde
importância? A pergunta se coloca porque essa incorporação de elementos da cultura
popular e da cultura do espetáculo, muitas vezes, nasce da iniciativa dos próprios
sujeitos que se relacionam com a religião e não das lideranças religiosas
institucionalizadas, como pode-se perceber pelas atrações evangélicas do Esquenta!,
todas ligadas a um contexto de entretenimento e não de uma matriz teológica
propriamente dita. Seria então um exemplo do uso da criatividade dos fiéis na vida
cotidiana, ou dos diferentes modos de fazer apontados por Heller (2000) e Certeau
(1998) respectivamente.
No entanto, é possível perceber, esses reempregos que nascem da interação
entre fé e cotidiano não se dão sem tensões. No programa analisado um exemplo disto
ocorre na associação entre funk e religião, já que a sensualidade, uma das principais
características deste ritmo, é algo rechaçado pela moral evangélica: “hoje a gente não
rebola porque a gente não usa mais a sensualidade, mas a gente manda o passinho”.
A falta de Tomzão evidencia que, apesar de toda flexibilização feita para aproximar o
campo religioso das demais esferas da vida cotidiana, em alguns momentos o
sectarismo ainda é reafirmado e surgem alguns paradoxos.
6. Referências:
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música 2011. Disponível em: <http://www.abpd.org.br/downloads/Fina2011.pdf>. Acesso
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BARBOSA, Ricardo. Música, racionalidade e linguagem. In: STAFLATE, Vladimir et al.
Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Editora Humanitas, 2007. p. 15-36.
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Ed.Paulinas, 1985.
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globalização. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Ed USP.
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1991.
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<http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_06/06_05_MCarvalho.pdf >. Acesso em: 29
ago. 2012.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 3ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão Gospel: Um olhar das ciências humanas
sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2007.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 6ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
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Demográfico 2000. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2014.
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http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tendencias_demograficas/tend
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CONGRESSO DA ANPPOM, 17, São Paulo, 2007. Anais... São Paulo: Unesp, 2007.
Disponível
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<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/musicologia/musicol_JM
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