A Noção de Propaganda e sua Aplicação nos Estudos Clássicos O Caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala Conselho Editorial Av Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected] Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt ©2013 Ana Teresa Marques Gonçalves Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. G5868 Gonçalves, Ana Teresa Marques. A Noção de Propaganda e sua Aplicação nos Estudos Clássicos: O Caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala/Ana Teresa Marques Gonçalves. Jundiaí, Paco Editorial: 2013. 284 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8148-264-4 1. História 2. Propaganda 3. Imperadores Romanos 4. Estudos Clássicos. I. Gonçalves, Ana Teresa Marques. CDD: 109 Índices para catálogo sistemático: História Propaganda – Publicidade IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal 109 659.1 Sumário Apresentação........................................................................................................7 Prefácio..............................................................................................................15 Capítulo 1 IMAGEM E PROPAGANDA NO ESTUDO DO INÍCIO DO PERÍODO SEVERIANO (193 a 217 d.C.) 1. Breve balanço historiográfico: a construção do conceito de monarquia militar..17 2. Novas abordagens sobre o período severiano....................................................24 3. Revendo conceitos: a noção de poder...............................................................31 4. Entre imagens e representações........................................................................34 5. A construção de um conceito operacional nos estudos clássicos: propaganda.....40 6. A iconografia imperial......................................................................................46 7. Alguns meios de propaganda no período severiano...........................................51 8. A idealização da figura do imperador................................................................61 Capítulo 2 AS VÁRIAS FACETAS DAS IMAGENS IMPERIAIS DE SEPTÍMIO SEVERO E CARACALA 1. Septímio Severo e a divulgação da imagem de vingador de Pertinax................65 2. A promoção da cerimônia de consecratio de Pertinax.........................................71 3. A aproximação com as imagens dos antoninos ................................................80 4. A formação da domus imperial..........................................................................90 5. Geta, Caracala e a imagem da Concórdia.......................................................106 6. Festas e cerimônias imperiais severianas..........................................................115 7. A imagem de reconstrutores da capital imperial.............................................133 8. A divulgação dos sonhos, oráculos, omina imperii e omina mortis dos imperadores severianos..........................................................140 9. O funus imperatorum de Septímio Severo.......................................................159 10. Os severos e a construção de arcos do triunfo...............................................172 11. Caracala e sua vinculação às imagens de grandes generais e heróis................182 Capítulo 3 A CONTRAPROPAGANDA OU A OBLITERAÇÃO DAS IMAGENS CONCORRENTES 1. Pescênio Nigro e a imagem do novo Marco Antônio......................................195 2. A imagética de Clódio Albino........................................................................203 3. A damnatio memoriae de Geta.......................................................................210 Considerações Finais..........................................................................................221 Referências.......................................................................................................225 APRESENTAÇÃO Mas rapidamente me dei conta de que uma sociedade não se explica unicamente pelo material, mas nela intervêm de uma forma igualmente determinante, e por vezes até mais determinante, fatores que relevam do mental, da idéia, da representação ideológica. (Duby, 1989, p. 9) Em 1997, defendemos uma dissertação de mestrado intitulada A Oposição aos Imperadores Durante o Período dos Severos: Uma Análise da Obra de Herodiano, na qual procuramos analisar as diversas maneiras como os vários estratos sociais buscaram demonstrar suas insatisfações com os governos dos Imperadores Severianos. No último capítulo, que versava sobre os expedientes adotados pelos governantes para desestimular, controlar, combater e/ou suprimir os atos de oposição e de subversão, identificamos quatro formas principais de os Imperadores Severos lidarem com os grupos de oposição que se criavam nos seus governos, buscando por intermédio destes expedientes ampliar sua base de apoio e conquistar uma adesão e uma legitimidade mínimas para seus comandos, isto é, quatro formas principais de tentar conquistar elementos sociais para os grupos de apoio ou de controlar as oposições: 1) A cooptação, feita através das adlectiones, isto é, as inscrições de cavaleiros na hierarquia senatorial patrocinadas pelos governantes. Havia três graus de adlectiones: adlectus inter praetorios (cavaleiro inscrito para exercer a pretura), adlectus inter quaestorios (cavaleiro inscrito para exercer a questura), e adlectus inter tribunicios (cavaleiro inscrito para exercer o tribunato da plebe). Por intermédio dessas inscrições, os Imperadores colocavam em posição de destaque equestres de sua confiança, fornecendo-lhes o dinheiro para o censo e utilizando os dispositivos da comendatio e da nominatio para a escolha dos novos magistrados; 2) As leis, que serviam como formadoras ou explicitadoras de comportamentos sociais considerados adequados. No período severiano, é reconhecida a ação de três grande juristas junto ao governo imperial: Papiniano, Júlio Paulo e Ulpiano, que ocuparam a Prefeitura do Pretório, comandando a Guarda Pretoriana e propondo leis; 3) A coerção, ou seja, a eliminação capital dos opositores e de seus filhos, para que não assumissem a função de vingadores dos pais; 4) A propaganda, isto é, o conjunto de símbolos, ideias e imagens que era divulgado no território imperial, mediante a utilização de vários suportes, formando em seu conjunto a imagética imperial. Ao longo da pesquisa, chamou-nos a atenção o pouco número de obras existentes sobre a propaganda severiana, isto é, sobre a criação e a divulgação de uma imagem im7 Ana Teresa Marques Gonçalves perial que conseguisse conquistar a adesão dos estratos sociais aos quais ela se dirigia. Este livro tenta contribuir para minimizar essa lacuna. Como vemos no primeiro capítulo, a quase ausência de trabalhos de História sobre a imagética imperial severiana se deve ao fato de preponderar entre os pesquisadores a ideia de que os governantes severianos apenas se sustentaram no poder contando com o apoio das legiões, como se somente a utilização da força militar fosse capaz de manter um soberano no poder. Segundo Eugen Cizek, foi na época dos Severos que a provincialização do Senado tornou-se mais intensa (Cizek, 1990, p. 160), opinião esta compartilhada por outros autores. Mason Hammond é quem nos fornece o maior número de dados sobre o assunto. A partir de um estudo estatístico a respeito da origem dos integrantes do Senado, elenca 937 senadores nos governos de Septímio e Caracala. Destes, 43% são itálicos e 57% advindos das províncias. Dos provinciais, 26% são de origem africana, 57% vêm das províncias orientais, 15% das províncias ocidentais e 2% não têm origem identificável (Hammond, 1957, p. 77 e Hopkins, 1983, p. 200). A orientalização e a provincialização dos senadores foram, desse modo, processos graduais, que vinham se afirmando desde os Antoninos, dos quais os Severos se diziam herdeiros. Para Paul Petit, foi a partir dos Severos que a ordem senatorial tornou-se decididamente uma “classe superior” (Petit, 1974, p. 64-65), pois se reuniram no Senado de Roma os principais expoentes das mais importantes elites que habitavam dentro dos limites do Império Romano e não apenas expoentes das aristocracias itálicas. Poucos foram os que permaneceram nas Cúrias locais. Frente a isso, a própria engrenagem decisória do Senado se alterou: era suficiente haver setenta senadores presentes para se assegurar a validade de um senatus consultum, já que vários deles estavam em viagem por suas terras natais. A formação dessa “classe superior” também pode ser entendida pela absorção cada vez mais rápida e facilitada dos membros da ordem equestre pelo Senado, através das várias adlectiones promovidas pelos Imperadores. Já fazia algum tempo que a elite senatorial vinha se alimentando de elementos equestres. Desde os Flávios e os Antoninos, pelo menos, tornaram-se comuns as inscrições de cavaleiros na hierarquia senatorial. Apesar da inserção desses novos membros no Senado, a forma mentis senatorial não desapareceu. Os senadores continuaram se distinguindo do resto da população por sua forma de vida e suas aspirações. Era o orgulho dos patres e seu prestígio que os mantinham coesos (Cizek, 1990, p. 160), apesar da diversidade crescente de sua origem territorial. Com a entrada de tantos “novatos”, foram os costumes ancestrais e uma ética particular, baseada principalmente na adaptação de alguns princípios estoicos ao mos maiorum, que lhes garantiram um mínimo de coerência social e de espírito de corpo. Pertencer ao grupo senatorial era compartilhar noções morais e culturais tão antigas quanto o surgimento do primeiro Senado. Os homens novos aderiam imediatamente aos valores e tradições do Senado (Chastagnol, 1970, p. 314). Os senadores quase não tinham mais, no período severiano, a possibilidade de escolherem diretamente os Imperadores, tarefa essa assumida cada vez mais pelas legi8 a noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos ões. Contudo, o governante só se legitimava no poder pela ratificação que lhe era dada pelo Senado, quando este lhe atribuía o título de Augusto. Num texto sobre as transmissões de poder efetuadas de Nero até Severo Alexandre, Mason Hammond conclui que, neste período, o Senado continuava a ser reconhecido como a única verdadeira fonte dos poderes imperiais. A prerrogativa do Senatus Populusque Romanus de selecionar um novo Imperador passou de fato para as tropas (legionárias ou pretorianas), mas só isso não bastava. Era imprescindível a conquista da aceitação do Senado, mesmo que esta fosse feita pela força das armas (Hammond, 1956, p. 124-125). O Imperador precisava, dessa forma, não apenas tentar garantir os privilégios mínimos deste grupo social como também se mostrar amigo dos senadores. Era necessário construir uma imagem e torná-la pública, fazê-la conhecida. Os senadores queriam um “amigo” e se opuseram a todos os Imperadores que se afastaram do ideal da amicitia. Segundo Richard Saller, enquanto nas relações de patronato/clientelismo se executavam trocas recíprocas entre homens de honra e status desiguais, como a estabelecida entre Imperador e exército e entre governante e membros da plebe, o que caracterizava a amicitia era o fato de os que mantinham este tipo de relação se virem como pertencentes ao mesmo grupo de interesses e detentores de honra e status iguais (Saller, 1990, p. 49). Acrescente-se que, como enfatizam Peter Garnsey e o próprio Richard Saller, a amizade dependia de valores e interesses compartilhados para se instituir como tal (Garnsey; Saller, 1987, p. 154). Não adiantava apenas o Imperador compartilhar as opiniões dos aristocratas; ele precisava demonstrar essa amizade por meio de ações e de imagens construídas e espalhadas pelo Império. Da mesma forma, os ricos senadores e equestres precisavam demonstrar a sua amizade pelo príncipe, mandando construir obras públicas e erigir estátuas em sua honra em Roma e nas províncias. Como afirma J. B. Campbell, os Imperadores que fizeram um bom trabalho na opinião dos senadores, relacionando-se com o Senado e demonstrando ter um mínimo de respeito e de consistência no governo, conseguiram morrer em suas camas e não em levantes militares ou complôs palacianos (Campbell, 1984, p. 425-426). A plebe urbana de Roma era ainda um ator político a ser levado em consideração nesta passagem do segundo para o terceiro século de nossa era. O Imperador assumia para ela a função de patrono, distribuindo bens e oferecendo jogos. Como coloca Zvi Yavetz, não se depreende tanto esforço, inclusive orçamentário, para se ganhar o favor de um grupo social totalmente desprovido de importância política. Não se poderia governar o Império unicamente com o apoio da plebe, mas não se poderia governá-lo indo completamente contra a vontade popular (Yavetz, 1984, p. 183). E os Imperadores tinham que lidar com ela por intermédio de instrumentos “visíveis” (distribuições e jogos), e “invisíveis”, como a propaganda (Macmullen, 1992, p. 163). Esse conceito de “invisibilidade” usado por Ramsay Macmullen apenas indica que os Imperadores utilizaram símbolos e ideias para se aproximarem dos grupos 9 Ana Teresa Marques Gonçalves sociais, além dos artifícios de caráter econômico, que são definidos pelo autor como instrumentos mais “visíveis”. Realmente nessa obra de Macmullen, intitulada Enemies of the Roman Order: Treason, Unreste and Alienation in the Empire (1992), o relacionamento dos Imperadores com a plebe, por intermédio de instrumentos “visíveis”, como distribuições e jogos, é privilegiado em detrimento de outros artifícios utilizados para a sua cooptação. Para garantir o apoio do exército, Septímio Severo e Caracala buscaram aumentar os privilégios dos soldados. Septímio optou por colocar nos postos mais elevados do exército homens vindos da Síria (legiões que o apoiaram inicialmente), da África (onde estava localizada a sua cidade de nascimento – Leptis Magna, na qual também promoveu várias obras públicas e onde ainda habitavam vários de seus parentes), e da Ilíria (onde estavam estacionadas legiões extremamente fortes) (Seltman, 1939, p. 25). Além disso, ambos buscaram aumentar o soldo dos legionários e Pretorianos. Autores como R. Develin e M. Alexander Speidel demonstraram, por intermédio da construção de escalas numéricas, o quanto Septímio Severo e Caracala aumentaram o pagamento militar. Um legionário recebia na época de Augusto 900 sestércios anuais; na época de Septímio, teve seu soldo aumentado para 2.400 sestércios anuais; e no governo de Caracala, passou a receber 3.600 sestércios anuais (Speidel, 1992, p. 88). Centuriões, por exemplo, recebiam 13.000 sestércios anuais na época de Augusto, 36.000 na época de Septímio e 54.000 na de Caracala (Speidel, 1992, p. 105). Sabemos que pelo menos 70 milhões de denários por ano estavam envolvidos com os pagamentos militares (Develin, 1971, p. 688). Todavia, os soldados não queriam somente benesses materiais. Precisavam de um bom patrono, cuja imagem poderiam copiar. Ansiavam pelo governo de um líder provedor, corajoso, generoso e viril, como podemos inferir pela análise dos documentos textuais. Herodiano, autor que vivenciou os governos de Septímio e Caracala, escreveu em sua obra História do Império Romano após Marco Aurélio que: (Septímio Severo) quando passava por montes muito altos e de clima rigoroso, marchava com a cabeça descoberta sob a chuva e a neve, oferecendo assim a seus soldados uma conduta entusiástica e valente. Deste modo, os soldados resistiam aos esforços (...) por desejo de imitar o Imperador. (Herodiano, III, 6, 10)1 Por essa curta passagem, pode-se notar como os soldados buscavam imitar o governante. Só um bom príncipe poderia garantir um bom governo, pois num poder que tendia para o pessoal, como o romano durante o Principado, o Estado era visto como um prolongamento do homem que governava. O Imperador também procurava obter o apoio dos habitantes das províncias. Além da propaganda oficial instigada pelos príncipes, estes também podiam contar 1. Todas as traduções para o português feitas neste livro são de responsabilidade da autora. 10 a noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos com as manifestações favoráveis vindas das províncias, e que se traduziam na construção de monumentos, estátuas e inscrições, por intermédio das quais os provinciais anunciavam a sua aceitação do poder imperial e a sua lealdade ao soberano. Como afirma Mason Hammond, muitos Imperadores buscaram o apoio das províncias para ascenderem ao poder supremo, tornando-se, em alguns casos, a voz destas províncias (Hammond, 1956, p. 126) e os provinciais lhes agradeciam, mostrando afeição ao soberano através de signos visíveis. Contudo, lembremos que as províncias já haviam sofrido até o período severiano um profundo e marcante processo de romanização, como bem destacam Sandra Gozzoli (1987, p. 81-108) e Fergus Millar (1983, p. 76-96). Este último enfatiza a relação de patronagem que sempre marcou os laços de alguns Imperadores com algumas cidades provinciais, que definiam que algumas benesses econômicas deveriam ser retribuídas na forma de um devotamento político e militar e de uma demonstração de respeito pelas construções erigidas para a realização do culto imperial. Lembremo-nos também de que a Liberalitas imperial poderia ser dirigida tanto a particulares como a comunidades (Manning, 1985, p. 78), de acordo com as necessidades vigentes, e as cidades lutavam para conquistar a atenção dos governantes, fazendo obras em sua homenagem e mandando embaixadores para falarem com os príncipes e solicitarem novas benesses. Para Fergus Millar, três fatores marcaram a relação de Roma com as cidades provinciais: o exército, já que muitos legionários eram de origem provincial; o patronato, que vinculava as cidades ao Imperador; e as leis romanas, que integravam as cidades sob uma mesma tutela de caráter jurídico (Millar, 1983, p. 77). Sandra Gozzoli, por sua vez, acrescenta elementos a essa análise. Para essa autora, não se pode esquecer o apoio que Roma, desde o período republicano, dava às aristocracias provinciais, esperando delas fidelidade (Gozzoli, 1987, p. 82). Além disso, a própria presença de legiões nas províncias servia para a manutenção da estabilidade social e da ordem romana em seu interior, além de exportar os modelos romanos de organização espacial, social e política (Gozzoli, 1987, p. 91). Dentro do governo, o bem e o mal poderiam mudar de natureza pelas características daquele que governava, visto que faltavam leis específicas para coibir e limitar as ações imperiais. Portanto, era importante construir uma imagem de bom governante e tentar divulgá-la para todos os segmentos sociais imperiais, em Roma e nas províncias, e não apenas agir como bom governante. Não que alguém conseguisse governar sozinho, pois todos os governantes romanos sempre precisaram formar ao seu redor um grupo social de apoio, mas a última palavra nas questões públicas cabia ao soberano, e ele dava o tom do governo por meio de suas opções de comando. Como afirma Georges Balandier: O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da 11 Ana Teresa Marques Gonçalves iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. (...) Logo, o passado coletivo, elaborado em uma tradição, em costume, é a origem da legitimação. É uma reserva de imagens, de símbolos, de modelos de ação; permite empregar uma história idealizada, construída e reconstruída segundo as necessidades, a serviço do poder presente. Este gere e assegura seus privilégios colocando em cena uma herança. (Balandier, 1980, p. 7) Neste livro, buscamos perceber como esta reserva de imagens, símbolos e ações foi utilizada pelos primeiros Severos na tentativa de consolidação de seus governos. Mas por que estudar exatamente os períodos de Septímio Severo e de seus filhos Geta e Caracala? Porque são Imperadores considerados extremamente envolvidos com as legiões e que, segundo boa parte da historiografia, só se mantiveram no poder graças a esse apoio militar. Tentamos, assim, demonstrar que esses governantes também lançaram mão, nos guiando pelas afirmações de Georges Balandier, de um repertório de imagens, símbolos e representações, que, ao ser criado e divulgado, se transformou nas formas de propaganda adotadas por estes Imperadores. Desse modo, procuramos construir um conceito de propaganda operacional para o período estudado, ou seja, os governos dos primeiros Imperadores Severianos: o fundador da nova dinastia, Septímio Severo, e seus dois filhos e sucessores, Geta e Caracala. Procuramos desenvolver uma análise das representações desenvolvidas e divulgadas pelos primeiros Severos, tentando desvendar como elas foram se sucedendo ao longo dos governos, por que e como foram utilizadas, quais os suportes usados na sua divulgação e a sua correspondência com a realidade vivenciada pelo Império e seus soberanos. Vemos como essas imagens correspondiam a um tipo de Império que se queria ver constituído e de Imperador que se queria ver no poder, e como essas representações foram se modificando para responder aos anseios dos vários grupos sociais e para se adequarem às idades dos soberanos e aos fatos que iam se sucedendo na tarefa de comandar o Império. Peter Burke, na obra A Fabricação do Rei, buscou focalizar a imagem pública do Rei Luís XIV da França, tentando contribuir para a história da comunicação, da produção, da circulação e da recepção das formas simbólicas. Nela, estudou um pouco de arte e de política, ressaltando a análise dos rituais da realeza, do culto ao soberano e do sistema de comunicação que foi sendo produzido para fabricar “um grande homem” e para revelar essa imagem pública aos súditos. Percebeu como a imagem do rei estava sempre sob constante revisão, se adequando aos fatos ocorridos, e como as comparações com Alexandre Magno foram se tornando menos comuns. Para tanto, defendeu a utilização do termo propaganda de forma ampla, no intuito de auxiliar o estudo das 12 a noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos tentativas de persuasão e manipulação dos súditos e de transmissão de valores para os mesmos. Todavia, sublinhou a importância de que não se entendessem essas transmissões apenas como tentativas de persuasão, mas principalmente como expressões de poder do rei e da devoção de alguns de seus súditos (Burke, 1994, p. 13-16). Nesse estudo, Peter Burke utilizou a noção de “Estado de Teatro” de Clifford Geertz, percebendo como os rituais, as cerimônias, as festas contribuíam na arte de “administração da impressão”, isto é, como essas atividades públicas, nas quais o soberano se apresentava ao olhar de seus governados, ofereciam ao rei e aos que o cercavam momentos privilegiados nos quais se podia reafirmar o poder do monarca e se reconstruir simbolicamente a autoridade. E esta autoridade requeria uma renovação constante. O Estado centralizado precisava de um símbolo de centralidade, e este era o rei (Burke, 1994, p. 20-25). Ao longo do livro, Burke ressalta que Luís XIV e seus conselheiros se apoiaram na criação, principalmente, de suas primeiras imagens, nas fórmulas e gêneros romanos (Burke, 1994, p. 31), enfatizando a releitura romana do mito de Alexandre Magno como herói conquistador (Burke, 1994, p. 43), as entradas triunfais nas cidades visitadas (Burke, 1994, p. 55), a necessidade do rei de superar na guerra os feitos dos romanos (Burke, 1994, p. 88), a imagem de Pompeu e as recriações de Hércules, Augusto e Nero (Burke, 1994, p. 89; 127 e 147), a preocupação real em construir arcos do triunfo (Burke, 1994, p. 90), as estátuas equestres e suas longas epígrafes nos pedestais (Burke, 1994, p. 107), as moedas e medalhas, inspirando-se nas romanas (Burke, 1994, p. 127 e 143), e os funerais reais (Burke, 1994, p. 134). Segundo Burke, Luís tentou se apresentar como um Imperador Romano e divulgar o seu reinado como um Império. Por isso, se sentia um sucessor dos governantes romanos, um novo Augusto (Burke, 1994, p. 191-192). Assim, os conselheiros de Luís XIV estudaram os rituais dos Imperadores e escultores foram mandados a Roma para estudar estátuas e monumentos antigos, visando transformar Paris em uma nova Roma. Os escritores viam a Roma antiga como rival a superar, para a maior glória de Luís XIV. O acúmulo de paralelos com os romanos é notável, mas não se deve presumir que as imagens similares e/ou idênticas tivessem o mesmo significado nos dois contextos, pois as diferenças políticas e culturais entre as duas épocas devem sempre ser levadas em consideração. Como afirma Burke, o recurso à mesma imagem de poder em culturas tão diferentes não deveria nos surpreender. A identificação implícita entre a ordem política e a ordem cósmica é um exemplo clássico da legitimação que se perpetua através dos tempos (Burke, 1994, p. 205-209). Após ler essa obra, identificamos vários pontos comuns entre as imagens reais estudadas por Burke e o que percebíamos nas leituras dos documentos textuais e iconográficos romanos. Contudo, faltam-nos documentos específicos sobre a recepção dessas imagens. Podemos identificar algumas imagens construídas, as mensagens que eram transmitidas por essas imagens, os suportes pelos quais as mensagens eram 13 Ana Teresa Marques Gonçalves passadas e algumas vezes quais elementos sociais eram atingidos pelas representações, mas é muito difícil perceber, pelas fontes que restaram, a repercussão das imagens e de suas mensagens junto aos diversos estratos sociais. Essa noção de que os homens públicos vivem como num teatro, tendo suas vidas públicas e privadas sendo examinadas pela população, é anterior ao período imperial. Como podemos perceber por uma Carta de Marco Túlio Cícero, enviada em 60 a.C. a seu irmão Quinto. Nela, Cícero afirma: Termino esta carta pedindo e insistindo: tal qual fazem os bons poetas e os atores de alto nível, que você seja mais cuidadoso na última etapa e na conclusão de suas tarefas e atividade, a fim de que o terceiro ano de seu governo, como o terceiro ato de um espetáculo, dê a impressão de ter sido o mais perfeito e belo. (Cícero, Cartas, XVI, 46) Portanto, a comparação da arena política a um palco de espetáculos, e a atuação dos homens públicos com aquela fornecida pelos atores, é algo que é feito desde a República, e que se mantém no imaginário político ao longo do Alto Império, com o príncipe ocupando o lugar do solista nas récitas políticas. Tal concepção aparece explícita numa passagem da História Romana de Dion Cássio, senador que conviveu com os Severos: “(Governante): Vives como numa espécie de teatro, cujos espectadores são todos os habitantes do Império e não te será possível esconder nem o menor erro” (Dion Cássio, LII, 34.2). Buscamos, então, obras que estudassem as imagens construídas pelos Imperadores Severianos e quase nada encontramos, pois estes governantes ficaram conhecidos muito mais pelo seu potencial militarista do que pelas representações que criaram ou que reutilizaram das imagens usadas por governantes anteriores. Vários historiadores modernos, ao longo dos anos, foram dando forma à imagem dos Severos como os criadores e/ou fundadores de uma Monarquia Militar, que só buscou sua legitimidade e autoridade nos benefícios concedidos aos soldados, ignorando ou relegando a uma posição inferior todos os outros artifícios usados pelos soberanos para alcançarem ou se manterem no poder. Neste livro, ao criticarmos a utilização do conceito de Monarquia Militar para caracterizar o período severiano, queremos relativizar o poder dado aos homens em armas. Não pretendemos negar a sua importância, mas apenas demonstrar que não se consegue permanecer muito tempo no poder somente com o apoio do exército. Acreditamos que os Severos jamais pensaram em se apoiar unicamente na força bélica. Por isso, pretendemos mostrar como Septímio e Caracala tentaram criar e divulgar imagens que agradavam também aos senadores, à plebe de Roma, aos membros das elites provinciais e, inclusive, aos soldados. Assim, cremos que o conceito de Monarquia Militar não dá conta de toda a complexidade do período severiano. 14 PREFÁCIO O Império Romano, por sua extensão, estabilidade e duração, apresenta um excelente campo para se pensar alguns aspectos fundamentais sobre o exercício do poder nas sociedades humanas. Para muitos historiadores, o Império foi uma enorme superestrutura de dominação, baseada na força militar, que se impôs sobre um amplo território, sem alterar as sociedades subjugadas. Oferecia paz interna e externa em troca de tributos – a forma ideal de um estado mínimo, de um poder exercido na sua mais pura simplicidade, como força bruta. Essa corrente historiográfica, que talvez seja hoje a dominante, esquece-se, no entanto, que o Império Romano foi um produto histórico, que só pode ser entendido na longa duração. Foi o resultado de um amplo e longo processo de integração, econômica, cultural e política, das cidades-estados ao redor do Mediterrâneo e guardou as marcas da história de sua formação: daí a complexidade das relações de poder em seu interior. O exercício do poder, no Império, nada tinha de simples. Quando Augusto venceu as guerras civis e centralizou, finalmente, todo o poder nas mãos de uma só pessoa, assumiu a posição de um polo que articulava diferentes instâncias de dominação, algumas bem tradicionais, outras radicalmente inovadoras. O segredo da centralização duradoura do poder nas mãos de um único imperador reside, precisamente, no modo como se irradiava pelo território do Império, criando ou reforçando hierarquias sociais e garantindo privilégios e direitos das elites e das plebes das cidades que o compunham. O poder centralizado propiciava, assim, o equilíbrio entre uma infinidade de poderes – alguns grandes, como o de um senador, outros menores, como o de um cidadão que recebia sua porção de trigo – dos quais era o fiador em última instância. Produzindo e reproduzindo desigualdades, o poder imperial exercia-se sobre todos e necessitava, para ser eficaz, da aceitação de todos como o único poder legítimo. E para ser legítimo, por sua vez, era necessário que todos os habitantes do Império soubessem que ele era único. Era preciso que esse saber – sobre quem detém o poder - se propagasse. Como mostra Ana Teresa M. Gonçalves neste livro, poder e propaganda não podem ser pensados separadamente. Para pensar a relação entre ambos, a autora, com grande ousadia, debruça-se sobre um período crucial do Império: o início da dinastia dos Severos, na passagem do século II ao III d.C. Para muitos historiadores, a ascensão de Septímio Severo e de seu filho Caracala marcaria uma transformação radical nas estruturas de poder do Império. Vitorioso na guerra civil que se seguiu à 15