Ciência Editora: Ana Paula Macedo [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 15 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, terça-feira, 6 de outubro de 2015 Cientista descobre jabutitingas vivendo em regiões alagadas da Região Norte. Até então, acreditava-se que o bicho vivia exclusivamente em áreas terrestres. Em risco de extinção, o animal é encontrado em florestas tropicais da América do Sul, principalmente nas brasileiras Tem jabuti na várzea » AUGUSTO PIO Aline Fidélix/ Instituto Mamirauá/Divulgação Curiosidade B elo Horizonte — O jabutiamarelo, como é chamado na Amazônia, foi encontrado em regiões inundadas no Norte do país, uma surpresa para os pesquisadores envolvidos no projeto. Isso porque o animal, também conhecido como jabutitinga (Chelonoidis denticulata), é estritamente terrestre e classificado como vulnerável à extinção pela International Union for Conservation of Nature (IUCN) e integra a lista do acordo internacional Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Fauna e Flora Selvagens (Cites). “Não era esperada a ocorrência dessa espécie na várzea, já que a maioria dos animais terrestres está ausente. É muito tempo para um animal considerado estritamente terrestre viver num ambiente alagado. Capturamos muitos animais nessa região, o que nos leva a acreditar que a quantidade de jabutis na várzea pode ser superior à quantidade em terra firme”, diz a bióloga mineira Thaís Morcatty, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação localizada em Tefé, no Amazonas. Na visão da bióloga, essa é uma grande descoberta científica, já que muda tudo o que se sabe sobre esse animal e pelo fato de — apesar de quase ninguém saber — o jabuti ser um dispersor de plantas. “É um mistério a ser desvendado a história de o jabuti se alimentar e se reproduzir em um lugar em que não há terra exposta por tantos meses do ano. Além disso, sabemos que ele é um importante dispersor para as plantas locais. Ao comer frutas e espalhar as sementes, age como um agricultor, ajudando a manter a integridade da Floresta Amazônica”, esclarece Morcatty. Os trabalhos de pesquisa foram realizados na região da confluência de dois grandes rios: Japurá e Solimões, totalizando uma área de mais de 7 mil quilômetros quadrados de florestas inundadas sem conexão com a terra seca. A bióloga conta que sempre teve um gosto especial por quelônios, que é o grupo que abrange todas as tartarugas, cágados e jabutis. “Comecei a estudar as tartarugas-marinhas, mas depois foi o jabuti que me chamou a atenção. É um animal que todos conhecem e adoram aqui no Brasil e no exterior, mas descobri que pouco se sabia cientificamente sobre ele”, conta. Segundo Morcatty, não havia a maior parte das informações ne- » Por mais que o jabutitinga consiga se deslocar por longas distâncias, ele permanece nas áreas de várzeas durante a estação seca » Nessa época, as terras estão emersas e ele poderá se reproduzir, permitindo que seus ovos se desenvolvam em terra seca » Quando está seco e muito calor, ele permanece perto de regiões encharcadas para se refrescar » Os demais animais do grupo, as tartarugasmarinhas e os cágados, têm adaptações para o ambiente aquático, como corpo mais achatado e nadadeiras ou membranas entre os dedos » O jabutitinga não apresenta nenhuma dessas características, tendo pés robustos e casco bem arredondado Há a suspeita de que a quantidade de espécimes vivendo nas várzeas sejam maior que a de jabutitingas terrestres cessárias para qualquer tomada de decisão em relação à conservação desse animal. “Na Amazônia, ainda existem muitas populações naturais dessa espécie em áreas de floresta preservada. Então, é um ótimo lugar para realizar esse estudo”, complementa. Ao participar de expedições, a cientista também registrou algumas espécies raras de cágados em locais remotos, mas seu trabalho tem o foco principal no jabutitinga. “Por meio das pesquisas com ela, além de conhecer mais sobre a espécie, acabamos conhecendo mais sobre a dinâmica do bioma amazônico”, diz. O estudo abrange diversos conhecimentos ecológicos sobre o jabuti, como o tipo de ambiente em que ele vive na Amazônia e quais alimentos consome. “Nesse sentido, descobrimos que esse bicho consegue viver nas grandes extensões de florestas que se alagam completamente durante o ano, as chamadas várzeas, onde os demais animais terrestres estão ausentes, mesmo aqueles com boa capacidade de natação, como a anta, o veado e a paca”, explica. Morcatty salienta que, além de aspectos ecológicos, o estudo avalia o estado de saúde dos jabutitingas, investigando possíveis doenças e contaminações ambientais que podem acometer a espécie. “A saúde dos animais reflete a saúde da floresta em que eles vivem. Então, saber Amanda Lelis/ Instituto Mamirauá/Divulgação É um mistério a ser desvendado a história de o jabuti se alimentar e se reproduzir em um lugar em que não há terra exposta por tantos meses do ano” Thaís Morcatty, pesquisadora do Instituto Mamirauá e autora do estudo se os animais estão bem nutridos, se têm doenças e como essas podem afetar os demais animais ou se há indícios de intoxicação por alguma substância liberada pelo homem nos informa o quanto o ambiente está em equilíbrio e preservado”, frisa. Até o momento, os jabutitingas estudados se mostraram saudáveis e os parasitas detectados não oferecem risco aos animais ou aos seres humanos. Cultura local Outra vertente do estudo de Morcatty é compreender como o jabuti está inserido na cultura local. “Em todo o Brasil, desperta curiosidade e está sempre em ditados, parábolas e histórias fantásticas. Em todas as regiões do país, está associado a diversos poderes medicinais. Seus atributos mais reconhecidos são a força e a esperteza, além de ser referido Ameaçados pelo comércio ilegal Outra grande ameaça ao jabutitinga é o tráfico para o comércio de animais de estimação. “Ainda sabemos pouco sobre o impacto dessa atividade para a conservação dessa espécie. Muitas vezes, as pessoas compram os filhotes nos centros urbanos desconhecendo que o animal pode ter sido retirado ilegalmente da floresta. É importante verificar se o vendedor tem a certificação de que o animal vendido é proveniente de reprodução em cativeiro”, alerta Thaís Morcatty, pesquisadora do Instituto Mamirauá, no Amazonas. A especialista explica que o jabutitinga está distribuído nas florestas tropicais da América do Sul, que são a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica. Portanto, o Brasil detém quase toda a área de distribuição do animal, tendo uma grande responsabilidade sobre a conservação dela. “As florestas de várzea ocupam grande área da região amazônica e são também reconhecidas pela alta produtividade. Os animais que conseguem viver o ano todo nesse ambiente — em geral, os arborícolas, como os macacos — se beneficiam da alta disponibilidade de alimentos”, detalha. Os jabutis vêm de uma linhagem antiga na Terra e que certamente sobreviveu a diversas condições difíceis ao longo da evolução, explica a pesquisadora. Por isso, eles devem ser tão resistentes, enfrentando o desafio de viver em um ambiente alagado para aproveitar a alta disponibilidade de alimento. “Para tanto, além de nadar muito bem, foi preciso mudar a estratégia de alimentação e de esconderijo, já que, durante a seca, ele se alimenta de frutos disponíveis no chão e se esconde em árvores caídas”, explica. Há a suspeita de que a espécie também tenha regulado o ciclo reprodutivo, possivelmente diminuindo o tempo de incubação dos ovos e concentrando a postura e o nascimento dos filhotes apenas durante a época da seca, quando há terra emersa disponível na várzea. Como boa parte da água dos rios que banham a várzea, como o Solimões, vem da Cordilheira dos Andes, Morcatty acredita que, com as mudanças climáticas e o derretimento das geleiras os níveis dos rios aumentem cada vez mais durante a época da cheia. “O que temos visto é que, a cada ano, o nível de água na cheia tem batido novos recordes. Esta- mos muito preocupados com as grandes enchentes que têm ocorrido na região amazônica porque, quanto mais alagada a floresta estiver, menos abrigo ela oferece para os jabutis, deixandoos muito expostos aos predadores e aos seres humanos”, diz. Cheias Segundo a cientista, é importante entender mais sobre o comportamento dessa espécie durante a época da cheia dos rios nas regiões de várzea na Amazônia para construir ações que possam aumentar a sobrevivência e a capacidade reprodutiva dela, contribuindo para a conservação. “Para a Mata Atlântica, as principais estratégias devem ser estimular a proteção das áreas nos quais o jabuti ainda existe e como um animal com poderes mágicos”, diz. Na Amazônia, por exemplo, alguns são chamados jabutis da ciência devido à inteligência e à capacidade mística. “Por conta dessa crença, as pessoas fazem negociações com os jabutis da ciência para realizar seus desejos.” Atualmente, o jabutitinga é classificado pela IUCN como vulnerável à extinção. Os riscos variam conforme o local em que vi- ve. Na Mata Atlântica, a principal ameaça é o desmatamento, que reduz a extensão de locais propícios para a sobrevivência.“A Amazônia é ainda um bioma mais preservado, porém, em algumas regiões da floresta, os jabutis são animais bastante caçados. Em ambientes de várzea, as grandes cheias que frequentemente têm ocorrido podem prejudicar a sobrevivência da espécie”, completa a pesquisadora. Novos desafios As pesquisas desenvolvidas no Instituto Mamirauá com os jabutitingas continuarão em busca de responder a outras importantes perguntas, como: – Em que época se reproduzem e quantos filhotes são capazes de produzir no ano? – Como as mudanças climáticas podem afetar a sobrevivência das populações? – Qual o impacto das ações humanas para a conservação da espécie? também o reflorestamento de áreas degradadas com espécies vegetais nativas”, aponta. Além disso, diz Morcatty, é preciso estimar quanto o mercado ilegal de animais de estimação pode estar contribuindo como ameaça, informando a população sobre como proceder legalmente na criação do jabuti. “Para qualquer local de sua ocorrência, o mais importante é trabalhar em conjunto com as comunidades locais, pois elas são as melhores guardiãs e co- nhecedoras da região onde os jabutis habitam.” Em fevereiro de 2016, a cientista planeja fazer uma pós-graduação em uma universidade na Inglaterra e deixará o Instituto Mamirauá, mas pretende continuar estudando as tartarugas brasileiras. “Tenho planos de continuar estudando esse animais. Ainda há muitas espécies com grandes lacunas de conhecimento e pretendo dedicar a minha carreira de cientista para pesquisá-las”, diz.