Ciência
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15 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, terça-feira, 6 de outubro de 2015
Cientista descobre jabutitingas vivendo em regiões alagadas da Região Norte. Até então, acreditava-se que o bicho vivia exclusivamente
em áreas terrestres. Em risco de extinção, o animal é encontrado em florestas tropicais da América do Sul, principalmente nas brasileiras
Tem jabuti na várzea
» AUGUSTO PIO
Aline Fidélix/ Instituto Mamirauá/Divulgação
Curiosidade
B
elo Horizonte — O jabutiamarelo, como é chamado na Amazônia, foi encontrado em regiões
inundadas no Norte do país, uma
surpresa para os pesquisadores
envolvidos no projeto. Isso porque o animal, também conhecido como jabutitinga (Chelonoidis
denticulata), é estritamente terrestre e classificado como vulnerável à extinção pela International Union for Conservation of
Nature (IUCN) e integra a lista do
acordo internacional Convenção
sobre o Comércio Internacional
de Espécies Ameaçadas da Fauna
e Flora Selvagens (Cites).
“Não era esperada a ocorrência dessa espécie na várzea, já
que a maioria dos animais terrestres está ausente. É muito tempo
para um animal considerado estritamente terrestre viver num
ambiente alagado. Capturamos
muitos animais nessa região, o
que nos leva a acreditar que a
quantidade de jabutis na várzea
pode ser superior à quantidade
em terra firme”, diz a bióloga mineira Thaís Morcatty, formada
pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação localizada
em Tefé, no Amazonas.
Na visão da bióloga, essa é
uma grande descoberta científica, já que muda tudo o que se
sabe sobre esse animal e pelo fato de — apesar de quase ninguém saber — o jabuti ser um
dispersor de plantas. “É um mistério a ser desvendado a história
de o jabuti se alimentar e se reproduzir em um lugar em que
não há terra exposta por tantos
meses do ano. Além disso, sabemos que ele é um importante
dispersor para as plantas locais.
Ao comer frutas e espalhar as
sementes, age como um agricultor, ajudando a manter a integridade da Floresta Amazônica”,
esclarece Morcatty.
Os trabalhos de pesquisa foram realizados na região da confluência de dois grandes rios: Japurá e Solimões, totalizando uma
área de mais de 7 mil quilômetros
quadrados de florestas inundadas sem conexão com a terra seca. A bióloga conta que sempre
teve um gosto especial por quelônios, que é o grupo que abrange
todas as tartarugas, cágados e jabutis. “Comecei a estudar as tartarugas-marinhas, mas depois foi
o jabuti que me chamou a atenção. É um animal que todos conhecem e adoram aqui no Brasil
e no exterior, mas descobri que
pouco se sabia cientificamente
sobre ele”, conta.
Segundo Morcatty, não havia a
maior parte das informações ne-
» Por mais que o
jabutitinga consiga se
deslocar por longas
distâncias, ele permanece
nas áreas de várzeas
durante a estação seca
» Nessa época, as terras
estão emersas e ele poderá
se reproduzir, permitindo
que seus ovos se
desenvolvam em terra seca
» Quando está seco e muito
calor, ele permanece perto
de regiões encharcadas
para se refrescar
» Os demais animais do
grupo, as tartarugasmarinhas e os cágados, têm
adaptações para o ambiente
aquático, como corpo mais
achatado e nadadeiras ou
membranas entre os dedos
» O jabutitinga não
apresenta nenhuma dessas
características, tendo pés
robustos e casco bem
arredondado
Há a suspeita de que a quantidade de espécimes vivendo nas várzeas sejam maior que a de jabutitingas terrestres
cessárias para qualquer tomada
de decisão em relação à conservação desse animal. “Na Amazônia, ainda existem muitas populações naturais dessa espécie em
áreas de floresta preservada. Então, é um ótimo lugar para realizar esse estudo”, complementa.
Ao participar de expedições, a
cientista também registrou algumas espécies raras de cágados
em locais remotos, mas seu trabalho tem o foco principal no jabutitinga. “Por meio das pesquisas com ela, além de conhecer
mais sobre a espécie, acabamos
conhecendo mais sobre a dinâmica do bioma amazônico”, diz.
O estudo abrange diversos
conhecimentos ecológicos sobre o jabuti, como o tipo de ambiente em que ele vive na Amazônia e quais alimentos consome. “Nesse sentido, descobrimos que esse bicho consegue viver nas grandes extensões de florestas que se alagam completamente durante o ano, as chamadas várzeas, onde os demais animais terrestres estão ausentes,
mesmo aqueles com boa capacidade de natação, como a anta, o
veado e a paca”, explica.
Morcatty salienta que, além
de aspectos ecológicos, o estudo
avalia o estado de saúde dos jabutitingas, investigando possíveis doenças e contaminações
ambientais que podem acometer a espécie. “A saúde dos animais reflete a saúde da floresta
em que eles vivem. Então, saber
Amanda Lelis/ Instituto Mamirauá/Divulgação
É um mistério a
ser desvendado
a história de o
jabuti se
alimentar e se
reproduzir em
um lugar em
que não há
terra exposta
por tantos
meses do ano”
Thaís Morcatty,
pesquisadora do
Instituto Mamirauá e
autora do estudo
se os animais estão bem nutridos, se têm doenças e como essas podem afetar os demais animais ou se há indícios de intoxicação por alguma substância liberada pelo homem nos informa
o quanto o ambiente está em
equilíbrio e preservado”, frisa.
Até o momento, os jabutitingas
estudados se mostraram saudáveis e os parasitas detectados
não oferecem risco aos animais
ou aos seres humanos.
Cultura local
Outra vertente do estudo de
Morcatty é compreender como o
jabuti está inserido na cultura local. “Em todo o Brasil, desperta
curiosidade e está sempre em ditados, parábolas e histórias fantásticas. Em todas as regiões do
país, está associado a diversos
poderes medicinais. Seus atributos mais reconhecidos são a força
e a esperteza, além de ser referido
Ameaçados pelo comércio ilegal
Outra grande ameaça ao jabutitinga é o tráfico para o comércio de animais de estimação.
“Ainda sabemos pouco sobre o
impacto dessa atividade para a
conservação dessa espécie. Muitas vezes, as pessoas compram
os filhotes nos centros urbanos
desconhecendo que o animal
pode ter sido retirado ilegalmente da floresta. É importante verificar se o vendedor tem a certificação de que o animal vendido é
proveniente de reprodução em
cativeiro”, alerta Thaís Morcatty,
pesquisadora do Instituto Mamirauá, no Amazonas.
A especialista explica que o jabutitinga está distribuído nas florestas tropicais da América do
Sul, que são a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica. Portanto, o
Brasil detém quase toda a área de
distribuição do animal, tendo
uma grande responsabilidade sobre a conservação dela. “As florestas de várzea ocupam grande
área da região amazônica e são
também reconhecidas pela alta
produtividade. Os animais que
conseguem viver o ano todo nesse ambiente — em geral, os arborícolas, como os macacos — se
beneficiam da alta disponibilidade de alimentos”, detalha.
Os jabutis vêm de uma linhagem antiga na Terra e que certamente sobreviveu a diversas
condições difíceis ao longo da
evolução, explica a pesquisadora. Por isso, eles devem ser tão
resistentes, enfrentando o desafio de viver em um ambiente alagado para aproveitar a alta disponibilidade de alimento. “Para
tanto, além de nadar muito bem,
foi preciso mudar a estratégia de
alimentação e de esconderijo, já
que, durante a seca, ele se alimenta de frutos disponíveis no
chão e se esconde em árvores
caídas”, explica.
Há a suspeita de que a espécie
também tenha regulado o ciclo
reprodutivo, possivelmente diminuindo o tempo de incubação
dos ovos e concentrando a postura e o nascimento dos filhotes
apenas durante a época da seca,
quando há terra emersa disponível na várzea. Como boa parte da
água dos rios que banham a várzea, como o Solimões, vem da
Cordilheira dos Andes, Morcatty
acredita que, com as mudanças
climáticas e o derretimento das
geleiras os níveis dos rios aumentem cada vez mais durante a época da cheia.
“O que temos visto é que, a cada ano, o nível de água na cheia
tem batido novos recordes. Esta-
mos muito preocupados com as
grandes enchentes que têm ocorrido na região amazônica porque, quanto mais alagada a floresta estiver, menos abrigo ela
oferece para os jabutis, deixandoos muito expostos aos predadores e aos seres humanos”, diz.
Cheias
Segundo a cientista, é importante entender mais sobre o comportamento dessa espécie durante a época da cheia dos rios
nas regiões de várzea na Amazônia para construir ações que possam aumentar a sobrevivência e
a capacidade reprodutiva dela,
contribuindo para a conservação. “Para a Mata Atlântica, as
principais estratégias devem ser
estimular a proteção das áreas
nos quais o jabuti ainda existe e
como um animal com poderes
mágicos”, diz. Na Amazônia, por
exemplo, alguns são chamados
jabutis da ciência devido à inteligência e à capacidade mística.
“Por conta dessa crença, as pessoas fazem negociações com os
jabutis da ciência para realizar
seus desejos.”
Atualmente, o jabutitinga é
classificado pela IUCN como vulnerável à extinção. Os riscos variam conforme o local em que vi-
ve. Na Mata Atlântica, a principal
ameaça é o desmatamento, que
reduz a extensão de locais propícios para a sobrevivência.“A Amazônia é ainda um bioma mais
preservado, porém, em algumas
regiões da floresta, os jabutis são
animais bastante caçados. Em
ambientes de várzea, as grandes
cheias que frequentemente têm
ocorrido podem prejudicar a sobrevivência da espécie”, completa a pesquisadora.
Novos desafios
As pesquisas desenvolvidas no Instituto Mamirauá com os jabutitingas
continuarão em busca de responder a outras importantes perguntas, como:
– Em que época se reproduzem e quantos filhotes são capazes de produzir no ano?
– Como as mudanças climáticas podem afetar a sobrevivência das populações?
– Qual o impacto das ações humanas para a conservação da espécie?
também o reflorestamento de
áreas degradadas com espécies
vegetais nativas”, aponta.
Além disso, diz Morcatty, é
preciso estimar quanto o mercado ilegal de animais de estimação pode estar contribuindo
como ameaça, informando a
população sobre como proceder legalmente na criação do jabuti. “Para qualquer local de sua
ocorrência, o mais importante é
trabalhar em conjunto com as
comunidades locais, pois elas
são as melhores guardiãs e co-
nhecedoras da região onde os
jabutis habitam.”
Em fevereiro de 2016, a cientista planeja fazer uma pós-graduação em uma universidade na
Inglaterra e deixará o Instituto
Mamirauá, mas pretende continuar estudando as tartarugas
brasileiras. “Tenho planos de
continuar estudando esse animais. Ainda há muitas espécies
com grandes lacunas de conhecimento e pretendo dedicar a minha carreira de cientista para
pesquisá-las”, diz.
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