forum abel varzim
Acto de Constituição do
FORUM ABEL VARZIM – DESENVOLVIMENTO e SOLIDARIEDADE
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
Auditório Cardeal Medeiros
1996.04.27
Desenvolvimento solidário – Que Estratégia para Portugal?
Oradores :
Eng.º Alfredo Bruto da Costa
Dr. João Salgueiro
Dr. Mário Soares
Eng.º Alfredo Bruto da Costa*
Senhor Bispo, Senhores Dr. Mário Soares, Dr. João Salgueiro, Dr. João Gomes,
meus caros amigos.
Por estranho que pareça, confesso que tenho alguma dificuldade, se não mesmo
aversão, em falar da solidariedade. É que presumo que quem me ouve espera que fale
das excelências desse valor, como se tal excelência carecesse de ser demonstrada. Ora
acontece que, para mim, a bondade da solidariedade é auto-demonstrativa, não se
demonstra, simplesmente afirma-se.
É bom ser-se solidário, como é bom ser-se feliz. Pode haver e há noções
diversas de felicidade, mas ninguém precisa de que se demonstre que é bom ser-se
feliz.
Sei, no entanto, que neste tempo, que é o nosso, fortemente marcado por
ideologias e estilos de vida de cariz individualista e mesmo liberalista, a bondade da
solidariedade nem sempre é um dado adquirido. E mesmo quando o é, importa saber o
sentido que se dá ao termo. Por isso, ao mesmo tempo que gostaria de dizer o que
*
Transcrição a partir de gravação. Texto editado.
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
1 (7)
forum abel varzim
entendo por solidariedade, assumo o incómodo de também dizer algo, sobre as razões
da bondade do valor em causa.
Ao fazê-lo, retomarei algumas das minhas anteriores reflexões, que já expus
noutras ocasiões, e peço desculpa de aqui as repetir.
O Homem, o ser humano, homem e mulher, define-se como um ser social, um
ser com os outros; assim o define a sua natureza, assim o define a sua condição. Quer
isso dizer que a solidariedade é um elemento constitutivo do ser e do modo de ser
humano. Não é um elemento facultativo, não é um acrescento secundário, tem a ver
com a natureza humana, com a condição humana. Pode verificar-se tanto em
objectivos positivos, ligados a atos bons em si, como em finalidades que sejam
negativas. Actos de banditismo ou de malfeitoria, por exemplo.
A solidariedade é, antes de mais, um facto; mais, a solidariedade é um
benefício, a experiência humana mostra que as pessoas beneficiam com a
solidariedade. Para além disso, porém, o homem se define também como um ser para
os outros; aqui a solidariedade ganha uma dimensão ética, moral, uma dimensão de
amor. Lê-se no Livro do Génesis "não é bom que o homem esteja só" , ou seja:
homem é um ser relacional.
A solidariedade surge, assim, como um facto e como um valor.
Vejamos, um pouco mais de perto, estes dois aspetos do problema.
Primeiramente, a solidariedade como um facto: o ser humano tem a
experiência de uma existência comum, de um destino comum; vivemos imersos numa
rede de interinfluências, de interdependências. A solidariedade é um elemento factual
da condição humana.
Vejamos o que a experiência humana corrente nos apresenta: nascemos e
vivemos em família, o modelo da família é o modelo de solidariedade; nascemos em
estado de dependência, de uma dependência que, progressivamente, se vai
transformando em interdependência. Vivemos em sociedade, em sentido mais amplo
do termo. Se analisarmos o nosso quotidiano, vemos a imensidão de aspetos em que
precisamos, ou seja, dependemos, dos outros e os outros precisam, ou seja,
dependem de nós. Homem algum ou mulher é totalmente autossuficiente.
Pensemos em quantos operários, técnicos e cientistas, em quantas gerações
estão por detrás de uma coisa tão simples como abrir uma torneira e ela deitar água.
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
2 (7)
forum abel varzim
A interdependência é uma realidade da nossa experiência quotidiana, a vida
constrói-se numa rede de interdependências. Quanto maior é o meio em que vivemos,
maior a especialização, maior o número de pessoas de quem dependemos no nosso
dia-a-dia. Por outro lado, quando olhamos para as dimensões mundiais, verificamos
que existe, também a esse nível, uma rede imensa de interdependências: relações
comerciais entre os países, necessárias para sobreviverem, tanto para os que exportam
como para os que importam. São decisões tomadas por um país que afectam outros
países; câmbios, taxas de juro, etc..
O conceito de ingerência carece de ser revisto. Surge cada vez mais clara a
necessidade da noção e do sentido do bem comum mundial. Os países pobres estão
numa situação de extrema gravidade que os pode arrastar ao desespero.
A solidariedade verifica-se no espaço entre pessoas, grupos e países, e também
no tempo, entre gerações. É a transmissão do saber, da ciência, são a experiência e o
conhecimento acumulados ao longo de gerações e que beneficiam as sucessivas
gerações subsequentes.
Nos tempos mais recentes, alguns fatores vêm gerando sérios obstáculos à
vivência da solidariedade. Em primeiro lugar, um certo tipo de urbanização começou
por reduzir a tradicional família, da chamada família alargada, onde a solidariedade se
vivia de um modo espontâneo, à família nuclear, vulnerável a fortes tensões internas.
Mais recentemente ainda, um certo tipo de organização do trabalho vem minando a
coesão até mesmo da família nuclear, gerando uma sociedade cada dia mais
desagregada, atomizada e individualista.
São as distâncias a vencer no quotidiano, e o tempo necessário para as
deslocações correspondentes; são o cansaço e o stress físico, psíquico e emocional; é
o desgaste da energia vital; são alguns outros aspetos de uma sociedade e de uma
família que não souberam adaptar- se à entrada da mulher na vida profissional. Tudo
num contexto da cultura do consumismo e num clima de concorrência em que o outro
é sinónimo de rival, e vemos regressada a cultura do salve-se-quem-puder.
Numa sociedade assim, há sempre quem sobre, quem esteja a mais; são os
pobres, os idosos, as pessoas com deficiências, as dependentes de cuidados de outra
pessoa, as minorias étnico-culturais; enfim, são as vítimas da exclusão social. Seja qual
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
3 (7)
forum abel varzim
for a escala, familiar, local, nacional ou mundial ou o ângulo, espaço ou tempo, em
que o problema seja observado, verificamos que essa solidariedade factual tem
implicações no campo dos valores, dos valores da justiça, da liberdade e do amor.
Noutras palavras, a solidariedade tem também uma dimensão moral. Desejo
afastar desde já qualquer mal entendido que confunda a solidariedade com o
sentimentalismo inconsequente, e faço-o com as palavras do Papa João Paulo II, que
esclarece que a solidariedade (e cito) "não é um sentimento de compaixão vaga ou
de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas
ou distantes, pelo contrário, diz o Papa, é a determinação firme e perseverante de
se empenharem pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um,
porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos " , (fim de
citação).
Em última instância, a solidariedade é universal, há uma solidariedade, que une
todos os homens e mulheres, todos formam uma única família humana, para retomar
as palavras de João Paulo II, "todos somos responsáveis por todos ".
Todavia, há homens e mulheres que, pela sua condição, merecem ser alvos
preferenciais da nossa solidariedade. Trata-se, precisamente, dos excluídos, de
homens e mulheres em situação de carência e privação mais graves de ordem
material, social, cultural ou moral. Podem ser pobres no sentido material da fome, de
falta de meios de subsistência ou no de outra qualquer forma de carência, solidão ou
isolamento, carência de afeto, etc.. São homens e mulheres individualmente
considerados, são grupos, são países inteiros. Por vezes, quando pensamos na
solidariedade, pensamos sobretudo em termos de uma relação interpessoal de pessoa
a pessoa. Esta dimensão da solidariedade é sem dúvida uma dimensão fundamental, é
necessária e urgente, hoje, como o foi ontem e como o será no futuro, mas não basta;
a solidariedade com os pobres e os excluídos tem também a ver com as nossas
responsabilidades sociais e políticas, com o modo como encararmos a organização
social, o sistema económico, a propriedade e o uso dos bens, enfim com aspectos
económicos, sociais e políticos da vida em sociedade.
Por outras palavras, a solidariedade tem também uma dimensão política, a
solidariedade deve ser encarada, não como um apêndice da vida das sociedades, mas
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
4 (7)
forum abel varzim
como um elemento constitutivo destas. Neste entendimento, podemos falar, ou
devemos falar antes, de sociedades mais solidárias e sociedades menos solidárias, de
um mundo mais solidário e de um mundo menos solidário. Do mesmo modo, a
solidariedade, não deve limitar-se a gestos avulsos, mas deve ir mais longe,
constituindo uma dimensão intrínseca à nossa mundividência, um elemento da nossa
cultura, uma característica do nosso modo de ser. Gostaria de realçar algumas
implicações da noção de uma sociedade solidária, quando se toma a sério o conceito
de solidariedade.
Em primeiro lugar, seria um erro considerar que a solidariedade se destina a
remendar as injustiças inerentes ao sistema económico e social, aceitar como um dado
que o sistema produz e reproduz injustiças e cabe à solidariedade compensá-las. A
solidariedade a sério interpela a sociedade inteira, os sistemas, e as políticas; é um
vector de mudança social. A solidariedade não se limita às políticas redistributivas da
segurança social. Sem dúvida, a segurança social é importante e as alterações
necessárias têm de ser pensadas com muita atenção. Mas a segurança social não
dispensa que a precaução da solidariedade esteja presente na formulação das políticas
económicas, nos critérios da construção europeia e na configuração do próprio sistema
económico e social. Por vezes, são as próprias políticas económicas, nacionais ou
europeias, que provocam o aumento das despesas da segurança social. Quanto mais
desempregados houver, quanto mais uma concorrência sem limites levar à falência as
empresas, tanto maiores terão de ser as pressões sobre a segurança social.
Em segundo lugar, é passado o tempo em que altas taxas de crescimento
económico geral geravam excedentes que permitiam sustentar políticas sociais que
atenuavam a situação dos pobres, sem afetar o bem-estar dos mais privilegiados.
Hoje, a solidariedade é mais exigente; põe à prova até que ponto as pessoas desejam,
ou consentem no objectivo de uma sociedade solidária e aceitam e redução dos
privilégios, em benefício dos injustiçados.
E o tempo que temos para optar pode não ser longo, porque a solidariedade é
um fator da coesão social, e as sociedades europeias poderão não resistir por muito
tempo às tensões sociais a que estão sujeitas, sem o risco de virem a ocorrer ruturas,
mais ou menos graves, no próprio tecido social. O tempo dos excedentes e das sobras
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
5 (7)
forum abel varzim
já terminou. E hoje todos, governos, trabalhadores, empresários e cidadãos comuns,
todos, somos chamados a dizer com clareza até que ponto aceitamos que a
solidariedade seja um pilar sólido da sociedade em que vivemos. Quer queiramos quer
não, as nossas ações e as nossas omissões, as nossas palavras e os nossos silêncios
são uma resposta a essa questão.
Em terceiro lugar, é tempo de acabarmos com uma cultura em que o Estado e
as instituições particulares de solidariedade social se olham uns para os outros mais
como inimigos do que como parceiros cuja ação converge para objetivos comuns.
Parceiros que devem, naturalmente, respeitar a natureza própria do papel de cada um,
mas que devem, também, conjugar esforços, promover sinergias, evitar desperdícios
inerentes a ações dispersas e individualistas. Creio que seria importante uma reflexão
séria que permitisse encontrar um novo equilíbrio entre os papéis que cabem na
construção de uma sociedade mais solidária aos três principais atores: o Estado, a
Família e a Sociedade Civil, com as suas instituições.
Permitam-me uma palavra especial sobre o papel da solidariedade nas relações
entre o trabalho e o capital.
O tempo em que vivemos é, todos o sabemos, um tempo de grandes
transformações
e
mudanças
profundas.
Transformações
e
mudanças
que
comprometem o equilíbrio que já era precário entre o capital e o trabalho. Creio que
temos de ter a lucidez suficiente para darmos conta de que é preciso revermos o lugar
e o papel do trabalho humano, na economia e na sociedade, e identificarmos as
implicações que daí resultam para a função, que será sempre instrumental, do capital.
Também aqui creio serem necessárias, uma nova cultura empresarial e uma nova
cultura sindical, novos processos de decisão, novas formas de acesso ao capital, novas
formas de convivência entre as partes interessadas.
Uma palavra final sobre a construção europeia. É sabido que é muito difícil,
quando não impossível, que um parceiro pequeno, como Portugal, desenvolva
isoladamente políticas e práticas de solidariedade. Por outro lado, não é hoje possível
pensar em Portugal mais solidário, sem pensar numa Europa mais solidária. Creio que
a solidariedade até hoje praticada a nível europeu seja das tais que não beliscam os
interesses dos países mais fortes. São muitas as vozes que falam do atraso da
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
6 (7)
forum abel varzim
dimensão social, na construção europeia. É preciso que a Europa acorde e desperte
para essa lacuna grave do projeto europeu. Uma Europa solidária tem de ser também
solidária com os países pobres. Quer do Terceiro Mundo, quer do ex-Segundo Mundo.
De uma solidariedade que se traduza, nomeadamente, em justiça nas relações
comerciais, mas também em acolhimento dos que deixam os seus países, à busca de
meios de subsistência ou mesmo de sobrevivência. Este último aspeto tem a ver, além
do mais, com a capacidade de conviver com outras culturas, porventura com um novo
conceito de sociedade pluricultural, matéria em que porventura, Portugal se encontra
em melhores condições de tomar a dianteira e dar o exemplo do que qualquer outro
país da Europa.
Peço desculpa de não ter trazido uma estratégia para um Portugal mais
solidário, mas apenas alguns elementos, que poderão contribuir para isso.
Muito obrigado!
«502» - Desenvolvimento Solidário – Que Estratégia para Portugal?
7 (7)
Download

Alfredo Bruto da Costa