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Os Simões Bacamarte da Economia Solidária1
Henrique Tahan Novaes2
Introdução
“Um possível aumento de salários somente iria melhorar a remuneração dos escravos, mas não
restituiria o significado e o valor humanos nem ao trabalhador nem ao trabalho” (Marx, 1994).
“O verdadeiro alvo da transformação emancipatória é a completa erradicação do capital como
modo de controle totalizante do próprio sociometabolismo reprodutivo, e não simplesmente o
deslocamento dos capitalistas da condição historicamente específica de “personificações do
capital”” (Mészáros, 2002).
Este texto é o resultado de uma crítica aos pensadores da Economia Solidária (ES) que se
inicia no Grupo de Estudos Estratégicos (GEE) da Unesp – Araraquara. Apesar de
evidenciar seus primeiros passos em minha monografia de graduação [Novaes, 2001],
acredito que a reflexão ainda não tinha ganhado maturidade suficiente em função de não ter
lido quatro livros imprescindíveis: A miséria da Filosofia, Para além do Capital, A
Necessidade do Controle Social e Marx - A Teoria da Alienação, os últimos três de I.
Mészáros.
A necessidade de construir este texto ganhou força quando me deparei, no curso de
monitoria da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da Unicamp, com
alguns equívocos de interpretação do cooperativismo e muitas lacunas em nossa formação.
Em parte, pode-se atribuir estas falhas ao breve período do curso (6 meses), mas a falha
principal decorre de dois fatores: do viés ‘prático’ ou da grande necessidade de ‘botar a
mão na massa’ e da falta de embasamento histórico de nossos monitores-professores.
Talvez seja por isso que o viés ‘crítico-histórico’ do cooperativismo tenha sido desprezado.
No presente artigo, pretendo mostrar que a ES no Brasil deu muita atenção à caracterização
interna das cooperativas (‘parlamentarismo interno’) e/ou a democratização da propriedade,
1
2
Versão preliminar: Agosto de 2004.
Economista – Unesp Araraquara. Mestrando no DPCT-IGE-Unicamp. [email protected].
O autor agradece imensamente as contribuições de todos os seus amigos, especialmente o Professor Paulo
Lima, as infindáveis cartas do professor Felipe Silva, as respostas de Willian Higa, Renato Dagnino, Edi
Benini e os esclarecimentos teóricos de Adílson Gennari. Vale destacar que todos os equívocos interpretativos
são de responsabilidade do autor.
2
sem, no entanto, gastar tinta nos temas da ‘Anarquia da Produção Capitalista’ e da
‘Alienação’ em empreendimentos de trabalhadores.
Aproveitando o excelente conto de Machado de Assis intitulado “O alienista”, pretendo
mostrar, na primeira parte do texto, que apesar de algumas diferenças e peculiaridades dos
empreendimentos autogestionários, há uma limitação da “emancipação do trabalho
solidário diante do predomínio do capital” (Gaiger, s/d) e a persistência de muitas facetas
da alienação em empreendimentos coletivos.
Desta maneira, busca-se derrubar o argumento apontado por Singer (2002, p.91) de que o
trabalho deixa de ser “alienado” em cooperativas surgidas de empresas falidas, e também o
argumento de Tiriba (1994) de que os trabalhadores de empresas reabilitadas tornaram-se
‘senhores de seus produtos’ (Tiriba, 1994) e assim extinguem automaticamente a
‘alienação’ do trabalhado com a passagem da propriedade dos meios de produção de um
‘capitalista’ para os ‘trabalhadores’.
Assemelhando-se a Simão Bacamarte, os teóricos da ES buscam “em nome da ciência”,
‘classificar’ os trabalhadores de empreendimentos coletivos como sendo trabalhadores que
deixaram de ser ‘alienados’, separando-os dos trabalhadores de empresas convencionais3.
O argumento que se defende aqui é que mesmo havendo a possibilidade de extinção de uma
das facetas da alienação (através da possibilidade de controle do processo de trabalho4),
tanto trabalhadores de empresas falidas, cooperativas populares quanto de empresas
‘convencionais’ não serão ‘senhores de seus produtos’ enquanto produzirem para vender e
manipular os consumidores. Os trabalhadores poderão continuar produzindo mercadorias
de uma forma aparentemente diferente se ‘conquistarem os meios de produção’ mas não se
atentarem a necessidade imprescindível do controle unificado da produção, da mudança do
estilo de vida, e da possibilidade de geração de uma espécie de ‘autogestão do capital’.
Acredita-se que a falha das abordagens teóricas da Economia Solidária está relacionada
com o tema da Anarquia da Produção e Socialismo. Para nós, excluindo poucos
pesquisadores, pode-se dizer que a ES não vislumbra o planejamento socialista puxado
pelas necessidades materiais e imateriais, o que nos leva a crer que são adeptos da
3
Lembremos que enquanto a ES classifica ‘quem deixou de ser alienado’, Simão Bacamarte classificava os
‘alienados’ da cidade. No fim das contas, só restou ele como o único ‘são’.
4
Os entraves que a tecnologia capitalista pode criar para a emancipação humana deve ser também avaliados.
Maiores detalhes ver Feenberg (2002), Mészáros (2002), Bettelheim (1979) e Dagnino (2002).
3
‘concorrência cooperativista’ ou de alguma variante do ‘socialismo de mercado’. Para
debater este tema, iremos resgatar a posição do economista político J. Stuart Mill (1986),
abordar a proposição de Paul Singer e traçar uma breve crítica a contradição entre Anarquia
da Produção e Socialismo.
O artigo não optou por fazer uma comparação entre os pensadores da ES no Brasil, mas
dedicou-se a observação da produção teórica de Paul Singer, autor de maior renome no
Brasil.
Mesmo sabendo que a generalização das afirmações que partem da crítica a apenas um
autor é uma forma arriscada de abordar um tema, pode-se afirmar que a crítica feita a
Singer pode ser estendida em maior e menor grau aos pensadores da ES. Honrosas
exceções devem ser feitas a alguns pesquisadores. Da bibliografia observada, parece que
Gaiger, Dal Ri e Veitez entram por uma outra rota de análise ao não caracterizarem a ES
como sendo um ‘outro modo de produção’ e reconhecerem os conflitos que emergem nos
empreendimentos solidários por estarem diante do sistema produtor de mercadorias5.
Os caçadores de alienistas
De acordo com Tiriba (1994, p.158, grifo no original), a polivalência e a ausência de prédeterminação das tarefas “vem possibilitando que o trabalhador se torne senhor do
produto”, o que nos leva a crer que estamos diante do fim da alienação do processo de
trabalho e do produto em cooperativas autogestionárias surgidas de empresas falidas.
Singer também retira qualquer resquício de alienação quando relata as razões do sucesso de
empresas recuperadas. Senão vejamos:
Por surpreendente que seja, a grande maioria das tentativas de transformar firmas meio ou
inteiramente falidas em empresas solidárias tem tido sucesso. Isso é explicado, em primeiro
lugar, pelos sacrifícios feitos pelos cooperados, que se dispõem a trabalhar durante meses
por ganhos mínimos, algumas vezes apenas em troca de cestas básicas (...) Mas também
pela enorme dedicação e amor ao trabalho não mais alienado, do que resultam aumentos
inesperados de produtividade e grande redução de perdas e desperdícios. E, finalmente, pelo
aprendizado por parte dos novos administradores das técnicas e manhas da gestão de
comprar e vender, de receber e dar crédito, de inovar produtos e processos e de tecer
relações solidárias com outras autogestões (Singer, 2002, p.91 - grifo meu).
5
Não conseguimos concluir se estes autores compartilham de uma visão próxima a esboçada neste artigo para
o tema da alienação e se advogam a necessidade de uma coordenação da produção em oposição a
concorrência entre as unidades produtivas de num outro sistema.
4
Poderíamos então perguntar: As possibilidades que a polivalência e a ausência da prédeterminação das tarefas executadas pelos trabalhadores garantem, por si só, o fim da
alienação? A dedicação e o amor ao trabalho em empresas de massa falida garantem a
ruptura total do trabalho alienado ou persistem outros traços da alienação nestes
empreendimentos?
Para Marx (1994), o fenômeno da alienação pode ser entendido em seus quatro aspectos:
alienação do processo de trabalho (que realmente pode ser rompido tanto em empresas de
massa falida quanto em empresas convencionais), alienação do produto do trabalho, de si
mesmo e da civilização humana.
Ao invés de ser uma atividade magistral, consciente e livre, a atividade de trabalho, em
empreendimentos que visam a acumulação de capital, converte a atividade de trabalho do
ser humano em trabalho como um meio de subsistência, como o único meio de satisfação
de uma das necessidades do trabalhador, isto é, a necessidade de manter a sua existência
física e de seus posteriores.
Para Marx, o trabalho alienado6 reflete não só a relação do trabalhador com o objeto mas
também sua relação com os outros homens. Se nossa interpretação de Marx está correta, um
trabalhador de uma empresa coletivizada que aparentemente tornou-se senhor do seu
produto por saber todas as etapas de produção, por ter ajudado a reorganizar a divisão do
trabalho e por socializar seu saber, rompeu com o estranhamento do processo de trabalho,
mas não necessariamente rompeu com a alienação do produto do trabalho. Lembremos que
Marx criticava – para aquilo que aqui nos interessa - tanto a divisão do trabalho no
capitalismo quanto a Anarquia da produção.
Ora, se o controle e as determinações da produção estiverem nas mãos do capital, a
emancipação do trabalho frente ao sociometabolismo do capital é por conseqüência
incompleta.
Storch é um dos poucos brasileiros que interpreta corretamente o conceito de alienação aqui
tratado por nós. Senão vejamos
“A alienação, no pensamento marxista, é um fenômeno que transcende os limites da firma
individual. Mesmo que uma firma passe a ser de propriedade dos trabalhadores, a alienação dos
mesmos persistirá, porque o regime de propriedade privada no restante da economia continuará
determinando preços e salários, através das forças impessoais de mercado. Por exemplo, eis
6
Nos manuscritos econômicos filosóficos, Marx reconhece que a chave de toda Alienação – religiosa,
jurídica, moral, artística, política – é o trabalho alienado, a forma alienada da atividade prática do homem
(Mészáros, 1982).
5
uma crítica de tipo marxista a cooperativas de trabalho industrial isoladas (...) os trabalhadores
proprietários, mesmo que não tenham sentimentos de alienação no trabalho, podem tornar-se
impotentes perante as forças competitivas do mercado, que são as que determinam, em última
instância, as chances do sucesso da empresa e a qualidade de vida de seus membros” (Storch,
1987, p.145).
É justamente por isso que Storch acredita ser inconcebível o tratamento da alienação na
dimensão da empresa isolada, pois suas determinações estão no “nível” da sociedade.
Uma passagem de André Gorz sinaliza muito bem a outra dimensão da alienação (do
produto) aqui assinalada por nós:
“Se me dizem: ‘esta fabrica é tua, é do povo’, mas se eu obedeço cegamente às ordens dos
diretores, se eu nada entendo da minha máquina muito menos do resto das fábricas, se eu
não sei o que acontecera com o meu produto depois de concluído, nem porque foi
produzido; se trabalho rápido, bem rápido, buscando o prêmio de produção; se vivo
amolado, esperando a semana inteira pelo domingo e o dia inteiro pela hora da saída, se
depois de anos de trabalho, continuo a mesma pessoa sem cultura- então essa fabrica não é
minha ela não é do povo!” (Gorz, 1996, p.14 – grifou meu)
Mesmo sabendo que a análise de Marx em O trabalho Alienado e esta passagem de Gorz
nos dá dicas para decifrar a persistência de traços da alienação em cooperativas, onde os
trabalhadores aparentemente controlam os meios de produção, onde há possibilidades de
introdução de um novo processo de trabalho controlado pelos trabalhadores e onde este
perde o controle do produto de seu trabalho, acreditamos que a observação das sociedades
‘pós-capitalistas’ nos fornece melhores indícios para contra-argumentarmos as posições de
Singer e Tiriba. Vejamos então esta longa passagem de Bettelheim:
Nas semanas seguintes à Revolução de Outubro, o partido bolchevista tenta transformar a
atividade dispersa e anárquica de centenas e milhares de comitês de fábrica em um controle
operário coordenado, que possa conformar-se às exigências de uma política proletária.
A tarefa não é fácil, pois ao mesmo tempo em que cresce o número dos comitês de fábrica,
cada um deles tende a multiplicar suas prerrogativas e a tratar cada fábrica como uma
unidade de produção independente – propriedade coletiva de seus próprios trabalhadores -,
determinando por si mesma o que se produz, a quem vende e a que preço, isto quando a
dominação social da classe operária sobre os meios de produção exigiria que os poderes
atomizados e contraditórios desses comitês fossem subordinados a um fim político comum.
Uma coordenação social da produção é particularmente indispensável na indústria, onde
cada unidade de produção executa apenas um número limitado de processos de
transformação e representa somente um elo no meio de um processo de produção de
conjunto altamente socializado. A sobrevivência da indústria soviética e a luta contra as
forças de mercado e contra a predominância dos interesses particulares das diferentes
fábricas exige, portanto, um mínimo de coordenação a priori das atividades das diferentes
unidades de produção. Na falta de uma coordenação a priori, a coordenação se faz de
qualquer modo a posteriori, através do mercado, ou melhor, é o resultado das forças entre os
diversos ramos das indústrias ou diversas fábricas (Bettelheim, 1979, p.133 – grifo no
original).
6
Bettelheim adverte que os trabalhadores não estavam convencidos da necessidade de ver
limitados os poderes dos comitês de fábrica por sua subordinação a uma instância exterior
pois aos olhos de muitos trabalhadores, o estabelecimento de um controle mais ou menos
centralizado se apresenta como uma espécie de “confisco de poder” que eles acabaram de
arrancar à burguesia e esperam conservar no nível de sua própria fábrica. Adicionalmente, a
passagem para o controle operário e o abandono do tipo de “gestão descentralizada” e
anárquica para o qual se orientam os comitês de fábrica, chocam-se antes de tudo com a
presença, ainda profunda nas massas, da ideologia burguesa e pequeno-burguesa favorável
ao “cada um por si”, ao egoísmo de empresa e a uma concepção abstrata de “liberdade”
(Bettelleim, 1979, p.134).
Bettelheim acredita que a simples mudança da propriedade jurídica dos meios de produção
não garante uma ruptura com o sistema capitalista. Para ele, os elementos capitalistas das
relações de produção estavam profundamente inseridos no conjunto dos processos de
produção e reprodução, nas modalidades da divisão do trabalho dentro das empresas
estatais e nas maneiras de separar estas umas das outras. Assim se reproduzem, sobretudo,
relações mercantis e salariais que dão origem a um lucro monetário no nível das empresas
(Bettelheim, 1979, p. 456).
Muito longe de defender a aparente “liberdade” de controle da produção pelas fábricas,
Bettelheim reconhece que o controle fabril, a gestão descentralizada ou a autogestão em
algumas empresas individualmente – a partir de agora chamada por nós de Visão Míope –
ignora os condicionantes da produção externos à empresa.
É por isso que em contraposição a anarquia da produção, ao descontrole da produção e a
aparente ‘liberdade’ que se dá quando os trabalhadores adquirem os meios de produção,
Marx, Lênin, Bettelheim, Mészáros e tantos outros defendem o controle unificado da
produção ou mais precisamente o “controle operário em escala nacional”.
No entanto, a vertente de esquerda da Economia Política insiste em querer conservar o
‘lado bom do capitalismo’ – a concorrência - com o cooperativismo. John Stuart Mill, por
exemplo, acreditava que os interesses pessoais podem convergir com os interesses da
comunidade numa ética que ele chama de “espírito público”.
Apesar de Mill reconhecer a necessidade de uma mudança social que combine liberdade e
independência do indivíduo e que acabe com a divisão da sociedade entre trabalhadores e
7
ociosos, este autor defende a permanência da concorrência entre as associações, isso
porque esta beneficiaria os consumidores e porque, “onde não existe concorrência, existe
monopólio”. A última justificativa dada por Mill em defesa da concorrência, encontra-se na
seguinte passagem: “proteger alguém da concorrência é dar proteção à sua ociosidade”
(Mill, 1986, p. 279, vol II).
De uma forma muito próxima às teorias do senhor Mill e talvez pela crise encadeada pelos
insucessos do planejamento no período de ‘socialismo real’, os pesquisadores da Economia
Solidária no Brasil seguem propondo ‘uma contradição’: a conciliação de socialismo e
mercado, cooperação e competição, eficiência da cooperativa e anarquia da produção. A
melhor maneira de entender esta contradição em termos se dá pela análise do mais ilustre
de todos expoentes da Economia Solidária no Brasil: o professor Paul Singer.
A Proposição de Singer
“O colapso do socialismo realmente existente convenceu a maioria dos marxistas que o
progresso econômico e os direitos individuais não podem ser garantidos sem liberdade
econômica e algum grau de competição de mercado” (Singer, 1999, p.73).
“De todos os modos de produção conhecidos, só a servidão e a escravidão deveriam ser
proibidos” (Singer, 2000).
Com esta passagem, fica claro que Singer abandonou o marxismo e também deixou de lado
a proposta “original” que supunha “a plena integração social seria assegurada pela
propriedade social de todos os meios de produção e pelo planejamento centralizado da
atividade econômica”7.
Singer não vislumbra a sociedade socialista através de uma Revolução Política, conduzida
por um Partido revolucionário8. Para este pensador, a Economia Solidária está inserida no
âmbito de um processo histórico de revolução social, isto é, a transformação social se dará
em conseqüência de um processo histórico que se iniciou com as primeiras cooperativas
surgidas da revolução industrial e irá ganhar força até que se coloque em xeque outros
7
“Os marxistas conjecturam uma economia de mercado na qual a competição seria limitada por acordos extramercado de modo a garantir que todos tenham uma chance justa de integrar a economia através de emprego,
de contrato, de associação ou como operadores autônomos” (Singer, 1999, p.75) Singer deve estar falando de
uma vertente do marxismo que quer conciliar o irreconciliável – competição e socialismo.
8
Concordamos com Mészáros e Lima Filho que a mudança em direção a uma sociedade anti-capital não se
esgota na Revolução Política, mas esta faz-se necessária.
8
modos de produção através da “competição sistêmica”.Entende-se por competição
sistêmica a competição entre o modo de produção capitalista e aquele formado por redes de
solidariedade. Explicando melhor, nas palavras de Singer :
“Se a economia solidária se consolidar e atingir dimensões significativas, ela se tornará
competidora da grande capital em diversos mercados. O que poderá recolocar a competição
sistêmica, ou seja, a competição entre um modo de produção movido pela concorrência
intercapitalista e outro movido pela cooperação entre unidades produtivas de diferentes espécies
contratualmente ligados por laços de solidariedade”(Singer, 1999, p.139 – grifo meu)
Desta forma, com a consolidação e formação de um mercado integrado, basicamente
constituído por cooperativas autogestionárias, onde os trabalhadores, através da livre
iniciativa, assumiriam o controle coletivo dos meios de produção, daria origem a um
processo de revolução social, que mesmo coexistindo com o sistema capitalista, o colocaria
em xeque (Novaes, 2001).
Para Singer, a ES é inviável diante de formações sociais dominadas pelo capital privado.
Todos os exemplos de prosperidade do cooperativismo (Mondragon, Kibbutz, LETS no
Canadá e alguns distritos industriais na Espanha e Itália) se dão em virtude da autosuficiência (Singer, 1999b) e as crises e tendências degenerativas indicam que o socialismo
autogestionário construído dentro de sociedades capitalistas tem poucas possibilidades de
provocar uma transferência estrutural na economia inclusiva (Singer, 2000b).
Um exemplo bastante citado por Singer de cooperativismo que tende a degenerescência é o
caso de Mondragon. Em virtude de ter que competir na União Européia, Mondragon
diminuiu sua autonomia, houve aumento da participação do trabalho assalariado, aumento
das diferenças de recebimentos e aumento da distância entre os velhos cooperados e a base
dos operários.
No longo prazo, a melhor maneira de viabilizar e efetivar a Economia Solidária enquanto
modo de produção se dará através da formação de um mercado integrado e preferencial
constituído por um setor econômico formado por pequenas empresas e trabalhadores por
conta própria composto por ex-desempregados, que tenham um mercado protegido da
concorrência das grandes empresas.
Com a união das pequenas empresas e autônomos, busca-se quebrar o isolamento ao qual
estes empreendimentos estão submetidos na lógica competitiva do mercado capitalista. A
idéia básica de Singer é oferecer às pequenas empresas possibilidades de intercâmbio, que
aumentem suas possibilidades de êxito quando se assegura um mercado para seus produtos
9
e uma variedade de economias externas, de financiamento e orientação técnica, legal e
contábil através da solidariedade de produtores autônomos de todos os tamanhos e tipos.
A justificativa de Singer para a união destes empreendimentos se dá pela seguinte motivo:
“por não existir uma clientela formada para seus produtos e ainda, por enfrentar uma
competição desigual com as empresas capitalistas, a saída racional se dá através da
formação de um conjunto de produtores e consumidores organizados para trocar seus
produtos entre si”(Singer, 1999).
A posição de Singer se torna mais complexa em A Economia Socialista. Na última parte de
seu exame, Singer e João Machado buscam teorizar o projeto de socialismo pautado em
empreendimentos autogestionários. Nossa intenção é primeiramente expor, de forma breve,
o que estes autores entendem por socialismo e, em seguida, tecer alguns comentários.
A visão de socialismo de Singer está alicerçada em vários pilares. Tendo em vista o
desenvolvimento da Economia Solidária, Singer destaca a “ruptura do capital nas empresas
e a sua substituição pela gestão coletiva dos meios de produção exercida pelos produtores
livremente associados” onde a organização da produção se daria através “de um grande
número de empresas de diferentes tamanhos pertencentes aos trabalhadores associados ou a
uma associação de trabalhadores e consumidores (...)O ideal é que se formassem grandes
cooperativas de consumidores que pudessem se associar a um elevado número de
cooperativas de produtores”.
A visão de como poderemos construir a sociedade socialista está bem explícita nesta longa
passagem:
A economia socialista dificilmente será alcançada por meio do mero crescimento da Economia
Solidária, que abrange também o cooperativismo de crédito, bancos do povo, clubes de troca e
outras instituições. A importância dessas experiências é o aprendizado que proporcionam a
segmentos da classe trabalhadora de como assumir coletivamente a gestão de empreendimentos
produtivos e operá-los segundo princípios democráticos e igualitários(...)A conquista de uma
economia socialista será fruto, provavelmente, do avanço do movimento operário e socialista
em uma série de frentes: na extensão da democracia do âmbito político ao econômico e social,
da participação da população organizada na elaboração de orçamentos públicos e na gestão de
equipamentos escolares e de saúde, da conquista de governos locais e regionais de esquerda que
possam por em prática políticas socialistas, inclusive de apoio e fomento a empresas
autogestionárias; e por fim, mas não por último, a construção de um setor de Economia
Solidária nas cidades e no campo, inclusive em terras conquistadas pela reforma agrária em que
produção, distribuição, consumo, crédito e seguro formem um todo multiforme e harmonioso
em que se reforcem mutuamente (Singer, 2000,p.44/45).
10
Mesmo tendo sofisticado sua concepção (Novaes, 2001), é conveniente ressaltar novamente
que Singer não vislumbra a sociedade socialista através de uma revolução política
conduzida por um partido que emancipe as maiorias.
A mudança social para Singer está pautada no princípio da livre iniciativa, sendo, por esse
motivo que este pensador faz várias concessões às formas de gestão e relações de trabalho
nas sociedades contemporâneas, o que nos permite afirmar que ele não teoriza a
necessidade de extinção da empresa capitalista, do capital e do capitalismo. Quando afirma
que “todos os cidadãos devem ter o direito de organizar suas atividades econômicas de
acordo com suas preferências desde que não firam os direitos alheios”, Singer nos sinaliza a
possibilidade de convívio simultâneo de vários modos de produção9. Lembremos o que
disse Singer em uma entrevista: “de todos os modos de produção conhecidos, só a servidão
e a escravidão deveriam ser proibidos”(Singer, 2000).
Vale destacar que deve-se minimizar a exclusão sem almejar sua “total ausência”, num
processo de experimentação social através de “tentativa e erro” para combinar o melhor
atendimento do consumidor com a auto-realização do produtor (Singer, 1999, p.125).
Para Singer, a essência da idéia socialista exige sua “espontaneidade” ou adesão voluntária
pelos trabalhadores e cidadãos. De forma alguma o Estado poderá ‘impor’ uma nova forma
de se relacionar. Isso fica claro quando diz que “Nós temos de parar de apostar apenas na
luta política, por mais que ela seja importante. (...) Não se pode condicionar a autogestão à
vitória política” porque a tomada do poder não leva a autogestão. “Se criarmos uma
autogestão protegida pelo Estado, ela jamais será competitiva e não será eficiente”(Singer,
1999b, p.31).
Uma incoerência na obra de Singer deve ser mencionada. Se o capital é uma relação social,
como pode a ES ser “um outro modo de produção, cujos princípios básicos são a
propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual”? (Singer,
2002, p.10).
É verdade que a “formação de um conjunto de produtores e consumidores organizados para
trocar seus produtos entre si” ou –como se propõe atualmente – através da construção de
redes de comércio pode ser uma saída de curto prazo para a Economia Solidária. No
9
O professor Singer chegou a esta conclusão quando visitou um Kibbutz. Neste dia, um colega relatou sobre
a “liberdade para sair”. Ver maiores detalhes em Singer (2000).
11
entanto, o movimento de ES acredita que é possível blindar ou mesmo ‘criar muros’ que
impedem a chegada dos ‘efeitos negativos’ da concorrência sobre os empreendimentos
autogestionários. Através da construção de ‘fortes’ que buscam promover a ‘solidariedade
para dentro das portas dos empreendimentos solidários’, a ES acredita que é possível
neutralizar a ‘agressividade não-solidária’ do mercado concorrencial capitalista seja através
da criação de redes ou através da concorrência direta no mercado capitalista.
Diante disso, pode-se chegar à conclusão que ‘o mercado’ e ‘a concorrência’ não são
questionados. Ao contrário do que foi exposto acima, Fernando Haddad (2003) busca
resgatar, sob a perspectiva de Marx, a incoerência entre a Anarquia da Produção e
Cooperativismo. Se interpretamos corretamente, Haddad nos leva a crer que a Economia
Solidária vem observando a necessidade primordial do controle da propriedade pelos
trabalhadores sem levar em conta o Planejamento da Produção ou ao menos questionar a
anarquia da produção. É talvez por isso que se dê a convivência pacífica – sempre para a
ES - entre Anarquia da Produção e Cooperativismo, entre Mercado e Cooperativismo,
abordadas nas páginas anteriores.
Ao avaliarem a autogestão através de uma Visão Míope, desconsiderando ou minimizando
a ditadura de mercado ou os condicionantes externos à empresa coletivizada, a Economia
Solidária realiza uma crítica parcial, senão incompleta.
Para nós, os empreendimentos autogestionários não podem ser analisados sem se prestar
atenção ao em torno em que estão inseridos. Não pode haver uma teoria que se sustente
olhando apenas “para dentro das cooperativas”, celebrando a nova forma de decisão
democrática,
parlamentarista,
na
qual
os
trabalhadores
aparentemente
decidem
coletivamente os rumos de cada empresa sem se observar que a produção de mercadorias é
uma forma de ditadura, sem se prestar atenção que as cooperativas estão inseridas em
cadeias produtivas que lhes roubam a autonomia aparentemente conquistada ao adquirir os
meios de produção.
Visto que as condições de produção e controle muitas vezes são externas às empresas
industriais em particular, não se pode analisar os empreendimentos autogestionários sem
compreendê-los como pertencentes ao sistema produtor de mercadorias, como estando
inseridos num complexo de relações numa cadeia produtiva. Uma maneira de resolver este
problema teórico se daria através da investigação não só das relações de trabalho nas
12
cooperativas – análise na qual se centra a maioria das pesquisas na Economia Solidária desde a forma como se reparte o excedente, como se dá a divisão do trabalho, etc mas
também através da investigação da inserção dos empreendimentos autogestionários nas
cadeias produtivas, quem são os fornecedores, quem são os compradores, qual o tipo de
governança na cadeia, quais as imposições que se fazem, qual a margem de autonomia
etc10. Na falta disso, cairemos no postulado de que as unidades produtivas autogestionárias
são ilhas de socialismo num mar de capitalismo ou ilhas de democracia decisória
(parlamentarismo interno dentro das portas da fábrica) dentro do mar da ditadura do
mercado.
Um estudo realizado no RS parece bastante proveitoso para evidenciar o argumento aqui
esboçado.Apesar de reconhecer a possibilidade de criação de um processo coletivo de
organização e execução do trabalho, Assenburg (2004) deixa claro a “autonomia limitada”
das cooperativas investigadas frente a grande dependência das grandes empresas
contratantes.
Outro ponto a ser destacado tem a ver com a “extração de mais-valia” dos trabalhadores
sem precisar mantê-los dentro da fábrica (Oliveira, 2002). O exemplo citado pelo professor
Chico dos vendedores ambulantes de coca-cola, guaraná, cerveja e água mineral cabe aqui
para explicar que apesar de aparentemente não produzirem mais valia, estes trabalhadores
estão conectados ao circuito de acumulação de capital. Para o caso das cooperativas, temos
um caso bastante ilustrativo. Trata-se de uma associativa de seringueiros do município de
Xapuri – muito famoso por ter sido o palco de muitos “empates” promovidos por Chico
Mendes.11 Apesar do aumento da renda dos associados nos últimos anos, esses
trabalhadores -‘não produtores de mais-valia’ por serem ‘donos do próprio trabalho’- estão
plenamente conectados a uma imensa rede de empresas moveleiras que vai desde Xapuri a
São Paulo e Nova Iorque, onde geralmente ocupam as fases iniciais da cadeia de
distribuição do excedente econômico.
10
Gaiger, Dal Ri, Vieitez e Parra (2002) parecem caminhar por essa via. Vale destacar que a excelente
dissertação de Parra, não propõe nada além da máxima singeriana de permanência da concorrência num
‘outro’ modo de produção. Não obstante reconhecer as mazelas e as conseqüências da concorrência, Parra
deve estar contaminado pelas obras de Singer.
11
Tavares (1998) concebe a mais-valia enquanto um processo global, onde não se pode separar os momentos
da ‘produção’ e ‘realização’ a não ser para fins esquemáticos.
13
Mesmo sabendo da necessidade preponderante de se reavaliar a integração versus
autonomia das cooperativas frente ao sistema produtor de mercadorias e como se dá a
repartição do excedente, voltemos ao tema do nosso artigo. O que se busca enfatizar aqui é
a necessidade de planejamento descentralizado da produção em oposição a qualquer
vertente de ‘socialismo de mercado’. Acredita-se que os trabalhadores deverão caminhar
em busca da coordenação da produção que não caia nem na burocracia soviética nem na
anarquia da produção característica do capitalismo12.
Mészáros, o melhor herdeiro da teoria marxista, nos dá algumas pistas para a dialética entre
produção e consumo. É preciso lembrar inicialmente que toda a sua teoria segue na busca
das exigências qualitativamente mais elevadas de uma nova forma histórica ‘para além do
capital’: o socialismo onde o ser humano possa desenvolver sua “rica individualidade”.
Mészáros (2002, p.318) advoga a necessidade de reestruturação global do controle social
onde qualquer alternativa metabólica viável a ordem estabelecida exigirá a harmonização
das necessidades humanas com os recursos materiais e humanos conscientemente geridos.
Para Mészáros (987, p.55), os instrumentos de ação sócio-políticos verdadeiramente
adequados a emancipação humana só podem ser elaborados pela própria prática social
crítica e autocrítica no curso de seu efetivo desenvolvimento.
O programa de superação prática da alienação capitalista, para o tema aqui abordado, pode
ser concretizado como a substituição dos instrumentos incontroláveis, reificados do
capitalismo por instrumentos controláveis de intercâmbio humano. Mas essa é uma tarefa
sócio-histórica que requer um longo prazo de maturação onde se deve considerar a
possibilidade de reversões (Mészáros, 1982).
Para este autor, o caráter fetichista da mercadoria, da troca e do dinheiro, o trabalho
assalariado, a competição antagônica, as contradições internas mediadas pelo Estado
burguês, o mercado, e a reificação da cultura são resultado da ausência de controle humano,
o que nos leva a crer que devem ser superados radicalmente e substituídos por
12
É verdade que o capitalismo não é tão anárquico quanto parece ser. Dowbor (1998, p.85) afirma estima que
entre 500 ou 600 empresas transnacionais controlam de 20 a 25% do comércio mundial de bens e serviços, ao
invés do suposto mercado metafísico que aparece nos noticiários. Mesmo sabendo que o ‘mercado’ não está
totalmente desgovernado, acreditamos que a forma de controle que essas empresas assumem está longe de
representar qualquer avanço na coordenação da produção pelos trabalhadores. Para Dowbor (1998, p.429) o
Mercado é um “mecanismo indispensável, mas nunca suficiente, ao funcionamento da sociedade”. Mészáros
(2002, p.885 Nota 22) também reconhece que a Economia de Mercado capitalista é um tipo de “economia
dirigida”, mesmo que sua estrutura seja mais complicada e impessoal que a do sistema pós-capitalista.
14
“instrumentos e meios de intercâmbio humanos conscientemente controlados” (Mészáros,
1982, p.225).
A transcendência da alienação da produção poderia ser esboçada pela concepção de um
processo longo e complexo de modificação, caracterizado pela “continuidade na
descontinuidade” onde os produtores associados regulariam racionalmente o seu
intercâmbio com a natureza.
A necessidade de um controle social global consciente das condições de auto-realização
humana (Mészáros, 1993, p.201) é imprescindível para que os seres humanos rompam “a
tirania da base material”. Sabendo que o capitalismo é uma sociedade regida pelas forças
desumanas da competição antagônica e do ganho implacável, aliados a concentração de
riquezas e poder em um número menor de mãos, onde o trabalhador existe para satisfazer
as necessidades de auto-expansão dos valores existentes, ao invés da riqueza material
existir para satisfazer as necessidades de desenvolvimento do trabalhador, há a necessidade
de criação de mediações que permitam a intervenção humana consciente nos processos
materiais.
É nesse sentido que Mészáros confere aos Conselhos de Trabalhadores e outras formas de
mediação o papel na busca de um planejamento autêntico. Lembremos que os Conselhos
têm um potencial mediador e emancipador ao solucionar de forma racional os problemas
existenciais vitais dos trabalhadores, das preocupações cotidianas com moradias e trabalho,
as grandes questões da vida social de acordo com suas necessidades elementares de classe.
Entretanto, este autor faz algumas advertências:
(...) os Conselhos de Trabalhadores não deveriam ser considerados a “panacéia” para todos os
problemas da revolução, contudo sem alguma forma de auto-administração genuína, as
dificuldades e contradições que as sociedades pós-revolucionárias têm que enfrentar se
transformarão em crônicas, e podem ate mesmo trazer o perigo de uma reincidência nas práticas
produtivas da velha ordem, mesmo que sob um tipo diferente de controle pessoal. Quando da
sua constituição espontânea, em meio as importantes crises estruturais dos países envolvidos, os
Conselhos de Trabalhadores tentaram se atribuir em mais de uma ocasião na história,
precisamente o papel de auto-administrador possível, a par da responsabilidade auto-imposta que esta implícita no papel assumindo e é praticamente inseparável dele – de executar a
gigantesca tarefa de reedificar, em longo prazo, a estrutura produtiva social herdada (Mészáros,
2002, p.457).
Os Conselhos de Trabalhadores “ou qualquer outro nome” devem cumprir o papel de
mediadores materiais efetivos entre a ordem antiga e a ordem socialista almejada. Isso
porque o sistema do capital é um modo de controle global-universalista que não pode ser
15
historicamente superado exceto, por uma alternativa sócio-metabólica igualmente
abrangente (Mészáros, 2002, p.599).
Enquanto as funções controladoras vitais do sociometabolismo não forem efetivamente
ocupadas e exercidas autonomamente pelos produtores associados – ou o “controle social
do trabalho” por uma vida de reprodução anticapital nas palavras de Lima Filho (1996),
mas deixadas à autoridade de um pessoal de controle separado (ou seja, um novo tipo de
personificação do capital), o próprio trabalho continuará a reproduzir o poder do capital
contra si mesmo, mantendo materialmente e dessa forma estendendo a dominação da
riqueza alienada sobre a sociedade (Mészáros, 2002, p.601). Todas as funções de controle
do sociometabolismo devem ser progressivamente apropriadas e positivamente exercidas
pelos produtores associados pois, na falta disso, o comando das determinações produtivas e
distributivas da reprodução social continuarão sob a égide do capital.
É justamente por isso que Mészáros (2002, p.613) afirma que “A produção ou é
conscientemente controlada pelos produtores associados a serviço de suas necessidades, ou
os controla impondo a eles próprios imperativos estruturais como premissas da prática
social das quais não se pode escapar”.
É preciso lembrar, por último, que Mészáros reconhece que há planejamento no
capitalismo, ou mais precisamente, que a gigantesca corporação monopolista transnacional
regula e controla a produção mundial de mercadorias. No entanto, este planejamento
praticado pela grande empresa não deixa de ser parcial e está longe de representar o
controle sociometabólico da produção e distribuição pelos trabalhadores.
Critica
igualmente o equivocado planejamento que se deu no ‘socialismo real’ e conclui afirmando
que “a produção ou é conscientemente controlada pelos produtores associados a serviço de
suas necessidades, ou os controla impondo a eles próprios imperativos estruturais como
premissas da prática social das quais não se pode escapar” (Mészáros: 2002, p.613)13.
Socialismo Mickey Mouse
“Os conselhos, bem como as coletividades, podem ser compatíveis com uma concepção
capitalista das relações sociais, com a opressão e a exploração, com a não solidariedade. O
que deu caráter revolucionário e algumas coletividades foi uma nova concepção de vida e
13
Para saber sobre a concepção de planejamento da produção de outros pensadores tais como Ota Sik, Alec
Nove e Ernest Mandel, ver Marques (1998).
16
das relações humanas, uma nova escala de valores que alterava radicalmente as existentes
atualmente na sociedade capitalista” (Garcia, 1980, p. 31).
“O que penso que deveríamos ter em mente é que a questão básica não é a propriedade nem
o controle dos recursos econômicos. A discussão básica é a desmercantilização dos
processos econômicos mundiais. Cumpre salientar que desmercantilização não significa
desmonetização, mas eliminação do lucro como categoria. O capitalismo tem sido um
programa para a mercantilização de tudo. Os capitalistas não o implementaram totalmente,
mas já caminharam bastante nesta direção, com todas as conseqüências negativas que
conhecemos. O socialismo deve ser um programa para a desmercantilização de tudo. Daqui
a 500 anos, se trilharmos esse caminho, possivelmente ainda não o teremos percorrido
totalmente, mas poderemos ter avançado nesta direção” (Wallerstein, 2002, p.36).
Não diríamos que os conselhos e as coletividades não podem dar origem a mudanças
significativas no chão-de-fábrica, mas o que se busca enfatizar com a citação de Felix
Garcia é que os trabalhadores poderão continuar produzindo mercadorias se não
modificarem radicalmente seu estilo de vida e se não controlarem de forma unificada a
produção. Na falta destas e de outras modificações fundamentais, iremos criar uma espécie
de ‘autogestão do capital’, um ‘capitalismo operário’ ou ‘coletivo’. Três frases que ouvi em
encontros de Economia Solidária merecem atenção: um colega de uma prefeitura afirmou
certa vez “que o problema a ser resolvido é a democratização do capital”. Sabendo que o
capitalismo concentra riquezas e poder, este militante afirmava com um tom revolucionário
que os trabalhadores deveriam lutar pela gestão e pela democratização do capital. Outra
colega afirmou certa vez que as empresas de autogestão devem usar as mesmas armas que
empresas convencionais para vender seus produtos. As estratégias de marketing,
obsolescência planejada e desgaste moral dos produtos deveriam então ser utilizadas tanto
por capitalistas quanto por trabalhadores.
A última colocação que iremos interpretar é a de outra colega ao relatar de forma
esplendorosa o trabalho de cooperadas de uma favela no Rio de Janeiro. Na ocasião, ela
explicou que estas trabalhadoras vendiam camisetas ao custo de 80 Reais para o circuito da
moda de países europeus e eu questionei afirmando que mesmo gerando empregos para
trabalhadoras necessitadas, este exemplo de ‘sucesso’ era irreproduzível numa escala
‘atacadista’ justamente porque “não há comunismo sem estilo de vida comunista”. Se a ES
se pautar numa espécie de ‘auto-exploração’, onde se produz para vender e ‘ganhar
17
dinheiro’, onde se produz tendo em vista o ‘consumismo’ dos trabalhadores14, iremos
destruir os recursos naturais da ‘Espaço-Nave Terra’ e ainda estar sob a égide da produção
de mercadorias. É verdade que a produção voltada para valores de uso está fora da
governabilidade dos empreendimentos autogestionários individualmente. Quer concordem
ou descordem com as passagens acima, os empreendimentos autogestionários, na luta pela
sobrevivência e manutenção no mercado, vem utilizando as mesmas armas que o capital
seja através do circuito da moda ou outras formas de manipulação dos consumidores.
Wallerstein (2002), citado no início desta seção, mesmo não advogando a necessidade da
propriedade e do controle dos recursos econômicos, sinaliza corretamente a necessidade
primordial da “desmercantilização da vida”. Para Francisco de Oliveira (2002), a Economia
Solidária é “a única forma de fazer avançar a desmercantilização”. No entanto, esta só é
possível se os trabalhadores se organizarem como uma economia solidária, como um setor
à parte da competição. Ao invés de um ‘setor de Economia solidária’ deve-se seguir na
busca de um ‘setor socializado da economia’. O que mais nos interessa aqui é parte onde
Oliveira observa “as pessoas estão tentando produzir mais barato, mas produzir para
vender. O que não é realmente economia solidária” (Oliveira, 2002, p.102 – grifo meu).
Tudo isso nos leva a crer que Ignacy Sachs (1986) está correto ao afirmar que mesmo numa
sociedade socialista, se a economia e a produção estiverem nas mãos dos produtores, os
consumidores continuarão reféns dos produtores, levando a uma espécie de exploração
promovida por eles mesmos15.
Considerações Finais
Procurei elucidar neste artigo a imprescindível necessidade de se abordar o tema da
alienação em empresas de trabalhadores por uma outra ótica que não aquela ressaltada pela
ES, qual seja, o fim da alienação através da mudança de propriedade. Ao invés de
centrarmos nossa análise no fim da alienação do produto do trabalho quando se dá a
passagem dos meios de produção de um ‘patrão’ para os ‘trabalhadores’, nossa observação
14
Lembremos que no século XIX o trabalhador era ‘explorado’ apenas como força de trabalho. Já no século
XX os trabalhadores foram também ‘explorados’enquanto consumidores.
15
Pela via da educação para o consumo, Sachs (1986) reconhece também o papel preponderante do
“autocontrole das necessidades materiais”
18
trilhou o caminho da perda do controle do produto numa sociedade regida pela produção de
mercadorias. Para nós, o enfoque muitas vezes ignorado pela ES é o da necessidade de um
controle global da produção pelos produtores associados e a apresentação apressada do fim
da alienação. Se não houver uma radical reestruturação das relações de troca, o capital
poderá permanecer no controle pleno do processo de reprodução social (Lima Filho, 1996;
Mészáros, 2002). Na falta de um controle consciente da produção, bem-vindos a
Autogestão do Capital!
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