Vania Albuquerque Oliveira
O COMPORTAMENTO DE PHARMAKÓS
DO MÉDICO HOMEOPATA NA
EXPERIMENTAÇÃO PURA DE SUBSTÂNCIAS
MEDICINAIS SIMPLES
Belo Horizonte
Instituto Mineiro de Homeopatia
2008
Vania Albuquerque Oliveira
O COMPORTAMENTO DE PHARMAKÓS
DO MÉDICO HOMEOPATA NA
EXPERIMENTAÇÃO PURA DE SUBSTÂNCIAS
MEDICINAIS SIMPLES
Dissertação apresentada ao Serviço Phýsis
de Homeopatia para conclusão do Curso de
Formação de Especialistas e Docentes do
Instituto Mineiro de Homeopatia.
Área de Concentração: Laboratório
Hahnemanniano de Psicologia Experimental.
Orientador: Dr.Antônio Carlos Gonçalves
da Cruz
Belo Horizonte
Instituto Mineiro de Homeopatia
2008
Este trabalho é dedicado ao pequeno Pedro.
AGRADECIMENTOS
Ao Dr. Antônio Carlos Gonçalves da Cruz, pela orientação,
paciência, estímulo e grande auxílio na execução deste
trabalho. As suas reflexões e críticas muito contribuíram
para ampliar minha visão sobre o tema abordado.
Aos colegas do Serviço Pýisis-IMH que muito contribuíram
para que esse trabalho fosse possível, amigos que me
acolhendo nos momentos de aflição, permitiram que eu
concluísse essa etapa tão significativa para mim.
À minha família e amigos pelo apoio e compreensão durante
toda esta caminhada.
A todos meus sinceros agradecimentos.
A Deus, nosso bondoso criador.
“Tão verdadeiro é que o observador cuidadoso sozinho
pode se tornar um curador verdadeiro de doenças.”
Samuel Hahnemann
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 7
2
BASES HAHNEMANNIANAS DA AUTO-EXPERIMENTAÇÃO ... 12
3
3.1
3.2
3.3
O MITO
4
4.3
4.4
4.5
O PHARMAKÓS
Estudo da palavra pharmakós .........................................................................
O Ritual do pharmakós ...................................................................................
A História do pharmakós ................................................................................
O Mito de Édipo e o pharmakós ....................................................................
A Autopatogenesia e o pharmakós ................................................................
5
CONCLUSÃO ................................................................................................ 57
4.1
4.2
Considerações sobre Mito .................................................................................. 18
Autopatogenesia e o Mito ............................................................................... 21
O Mito de Édipo e a Autopatogenesia ............................................................ 25
35
37
40
44
49
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 60
ANEXOS ........................................................................................................... 65
7
1 INTRODUÇÃO
O desejo de realizar esse estudo se iniciou durante o Curso de Formação de
Especialistas e Docentes do Instituto Mineiro de Homeopatia. Reflexões feitas sobre
autopatogenesia1 a partir das proposições hahnemannianas e a experiência de autoexperimentações do autor motivaram este estudo.
O objetivo desse trabalho é buscar compreender o papel do médico
homeopata, como o melhor provando de efeitos dinâmicos de substâncias
medicamentosas, atualizada na figura do pharmakós ou bode expiatório, ao realizar
experimentação pura de substâncias medicinais simples.
O pharmakós era sacrificado em beneficio da coletividade, um ritual antigo
na experiência humana, interpretado como um meio de purificação da comunidade que
experimentava uma ameaça. Essa prática ritual ocorria durante as festas em honra a
Apolo, o deus purificador por excelência. Entre estas festas a que mais se destacava
era a das Thargélias que acontecia em Atenas (BRANDÃO, v. 2, 2003).
O ritual do pharmakós era inicialmente obrigatório e a partir talvez do
século VIII a. C passou a ser voluntário onde só se lançavam ao mar os que desejavam
uma purificação (BRANDÃO, v.2, 2003). O culto catártico a Apolo evoluiu, de acordo
com Cruz (2006a, p.121), para a autopatogenesia com Hahnemann, em que o próprio
médico voluntariamente se submete a provar substâncias medicamentosas, por amor à
Humanidade.
Assim como o pharmakós, o provando disponibiliza suas sensações
atualizadas em experiência de mundo, em beneficio da coletividade representada pelo
1
Experimentação que o próprio médico realiza em si mesmo.
8
enfermo. Segundo Cruz e Gouveia (2007, p. 14), “o provando que se promove em
modos na experiência de mundo ou do outro pela pedagogia catártica de depuração
dos sentimentos próprios supõe com mais poder de força ou virtude medicamentosa o
ressentimento do outro”.
Murray (Sydney, 2004) em sua tese aborda o pharmakós como a
experiência de “estar no meio”. Essa experiência foi despertada em Murray após um
período de reflexão depois de muitos anos trabalhando como líder e facilitadora de
diálogos na área da saúde e dos medicamentos.2 Esse interesse surgiu ao observar as
diversas maneiras de pensar sobre a saúde e sobre os medicamentos, estando em jogo
poder, interesse, responsabilidade e recursos.
Sua tese está embasada na interpretação do pharmakós feita por James
Frazer, Jane Harrison, Martin Nilsson, estudiosos clássicos de ritos, mitos e também
por René Girard, estudioso contemporâneo com o qual, segundo Murray, a figura do
pharmakós ou bode expiatório teve sua maior interpretação.
Ao estudar o mito do pharmakós torna-se necessário estudar o Mito de
Édipo, pois segundo alguns autores este é apresentado como um mito exemplar de
pharmakós ou bode expiatório (GIRARD, 2004; VERNANT, 2002). A proposta de
trazer este estudo para o laboratório de experimentação é que a compreensão do Mito
do Édipo pode auxiliar no entendimento dos fenômenos que ocorrem na revelação da
phýsis, universal (comum) de todas as coisas e individual (própria) de cada coisa,
através da experimentação de substâncias medicinais simples.
2
Participou no desenvolvimento de uma política nacional de drogas na Austrália e também na Filipinas, Vietnan
e Samoa. Consultora na OMS. Organizou “International Dialogue on Health and Medicines”. (1995)
9
Este estudo compara a autopatogenesia e o mito, visto que ambos são
poderosos instrumentos de revelação; falam a linguagem da natureza que está ávida a
se revelar. A linguagem da experimentação é linguagem sensorial da Natureza, assim como o
mito é a linguagem da manifestação, que varia ou respira, sendo que é aí que reside o poder
de comunicação de ambos (OLIVEIRA et al, 2006).
É necessário nesse momento resgatar o histórico do laboratório de
Psicologia Experimental de Autopatogenesias do Instituto Mineiro de Homeopatia, um
espaço criado no Instituto Mineiro de Homeopatia (IMH), desde 1988 quando iniciou
o Curso de Formação de Especialistas e Docentes em Homeopatia (CED). Em 1989 foi
realizado o primeiro protocolo experimental pelo CED e desde essa época até o ano de
1997, foram experimentados 26 medicamentos. No ano seguinte, em 1998 formou-se o
Grupo Paracelsus de Estudos Homeopáticos (GRUPEH) com o propósito maior de se
estudar Autopatogenesias.
No período de novembro de 1989 até outubro de 2008 foram realizadas 204
experimentações
de
substâncias
medicinais
simples,
incluindo
aqui
as
reexperimentações, algumas feitas pelo GRUPEH e a maioria pelos alunos do Curso
de Formação de Especialistas e Docentes em Homeopatia em regime de Fórum.
O laboratório de Psicologia Experimental de Autopatogenesias do Instituto
Mineiro de Homeopatia compreende o GRUPEH e o Serviço Phýsis (inicialmente
CED) sendo formado atualmente por: médicos homeopatas, veterinários homeopatas,
alunos do curso de formação e leigos. As atividades desse laboratório compreendem
experimentações puras de substâncias medicinais, onde são disponibilizados os
10
registros das experimentações em ambiente de discussão buscando o reconhecimento
das virtudes curativas dessas substâncias e estudos da fenomenologia.
Cruz e Gouveia ao falar em laboratório experimental dizem que:
O laboratório de Psicologia Experimental de Autopatogenesias do
Instituto Mineiro de Homeopatia em suas pesquisas sobre a
Physiologia, buscando a compreensão dos princípios que regem os
fenômenos, permite compreender a fenomenologia como experiência
ou expressão hermenêutica. Essas investigações evidenciam o quão
implicada é a Homeopatia com todas as demais áreas da ciência, da
filosofia e das artes.
(CRUZ; GOUVEIA, 2007, p.9)
Trabalhos têm sido desenvolvidos durante todos esses anos sobre
autopatogenesia,
tendo
como
marco
fundamental
o
trabalho
“A
Lei
da
Autopatogenesia (CRUZ, 1999). A partir desse momento investigou-se a influência da
autopatogenesia na formação do médico homeopata, a sua aplicação na clínica, as
vantagens do procedimento para o médico homeopata (BEIER, 2000), (LOPES, 2000),
(PEIXOTO, 2002) e estudos dos fenômenos que envolvem o processo experimental
continuam a ser feitos (CRUZ, 2006a,b,c),(CRUZ, 2007b), (CRUZ; GOUVEIA,2007).
No ano de 2005 foi feita uma pesquisa com 34 médicos homeopatas
enfatizando o laboratório de experimentação, através de um questionário (vide anexo),
que também veio auxiliar para o desenvolvimento deste trabalho. Os depoimentos dos
homeopatas foram úteis para o trabalho, no sentido de despertar para a observação do
papel do provando da sua condição de pharmakós ou bode expiatório. De acordo com
os relatos destes, observou que ao se disponibilizar para as provas o médico
homeopata poderia melhor auxiliar o outro, por semelhança, e compreender o que é
digno de curar em cada história.
11
Autopatogenesia é doar do que “é seu”, é “estar se doando por amor ao
próximo”, é permitir “medicar com a alma”; palavras de alguns dos entrevistados,
revelando aqui o médico homeopata “pharmakós”.
Os dados para que esse estudo fosse desenvolvido foram:
· O Laboratório de Psicologia Experimental de Autopatogenesias do Instituto
Mineiro de Homeopatia, através dos registros de provandos e das discussões
levantadas nas reuniões.
· Os ensinamentos de Samuel Hahnemann, através principalmente do estudo da
sua maior obra: Organon da Arte de Curar.
· Trabalhos desenvolvidos por integrantes do Serviço Phýsis e do GRUPEH, do
Instituto Mineiro de Homeopatia.
· Considerações sobre mito de acordo com alguns autores: Junito Brandão,
Everardo Rocha e Joseph Campbell.
· A pesquisa histórica e mítica do pharmakós ou bode expiatório e algumas
interpretações culturais feitas pelos seguintes autores: René Girard, Jean-Pierre
Vernant e Jacques Derrida.
· O Mito de Édipo segundo alguns autores: Junito Souza Brandão, Jean-Pierre
Vernant e Karl Kerényi.
· A leitura da tese de doutorado de Mary E. Murray (Sydney, 2004) intitulada:
“The pharmakós phenomenon”.
12
2 BASES HAHNEMANNIANAS DA AUTO- EXPERIMENTAÇÃO
“Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela”.
Albert Camus
A Homeopatia é fundamentada na criteriosa observação da natureza e na
experiência pura, segundo Samuel Hahnemann enuncia no parágrafo 52 do Organon
da Arte de Curar - 6ª edição. É uma arte de curar em conformidade com a natureza e
com a experiência.
Hahnemann reconhecia de boa vontade que Hipócrates havia sido o
primeiro a insistir sobre a primazia da observação e da experiência em Medicina.
Admirava em Hipócrates acima de tudo seu gênio de observação, dizendo que jamais
se fez tanto pela arte de curar quanto na época deste e que Hipócrates investigou a
natureza dentro da própria natureza descrevendo as doenças exatamente como eram,
sem fantasiar (HAHNEMANN, 2006).
Paracelsus disse que “experiência” é necessária para aprender a arte e
praticá-la. A arte é a própria experiência e sobre ela repousa toda a habilidade do
médico. Para Paracelsus experiência e natureza são largamente identificadas uma com
a outra, onde os dados adquiridos pelo homem através de seus sentidos são
transformados em conhecimento pela “luz da natureza” (DIAS, 1997, p. 21-23).
A phýsis ou natureza, conforme os autores hipocráticos, é ordenada em si
mesma e ordenadora dentro de si mesma; é sempre regular e encontra por si mesma os
caminhos, sem aprendizado faz o que convém, e se basta em tudo para tudo (BEIER,
1997, p.4). A natureza é sábia, simples e benevolente; que age como oráculo, indica se
indagada, sem falar e sem esconder A natureza obedece a leis eternas, realiza suas
curas de modo simples e através da sua observação deve-se tentar compreende-la para
13
assim poder imitá-la e segui-la (HAHNEMANN, 2006). Imitar em seu modo simples
de curar e não em seu modo de enfermar, baseando-se numa lei fundamental na qual o
semelhante cura o semelhante (BAETA, 1998, p.6).
Desse modo, a natureza ou a phýsis deve ser o guia supremo para o médico
homeopata e com ela poder caminhar eficazmente como um verdadeiro artista da cura
(Sobre a decência) (BEIER, 1997, p.39). Segundo Dias (1997, p.64) Paracelsus, como
os hipocráticos, defendia que: “A natureza é a mestra, mas o médico é o servo. E a
natureza é uma tal mestra que ela não se deixa ser prontamente comandada por
qualquer servo.”
A experiência demonstra que a Natureza é avessa à violência, como diz
Beier (1997, p.7): “O conceito de ‘violência’ aparece com certa freqüência nos escritos
hipocraticos: ‘o violento se opõe por uma parte ao natural’”. O principio de “favorecer
e não prejudicar” refere-se primeiro a que o médico deve cooperar tecnicamente com o
esforço de cura da phýsis e segundo, deve saber abster-se de toda ação em que pareça
arriscado ser excessivo (BEIER, 1997, p.3).
Ao dialogar com a natureza o médico homeopata aprende a reconhecê-la e
sua capacitação é essencialmente experimental (CRUZ, 2006a), tem-se aqui o outro
fundamento da Homeopatia que é a experimentação.
Hahnemann ensinou que não há nenhum outro caminho para se conhecer os
efeitos peculiares dos medicamentos sobre a saúde do Homem que não seja a
experimentação cuidadosa em pessoas sadias3; e que os melhores experimentos dos
3
HAHNEMANN, 1996, p.146, § 108.
14
efeitos puros dos medicamentos simples são aqueles realizados preferencialmente pelo
próprio médico, em regime de autopatogenesia, como está no parágrafo 141:
Porém, os melhores experimentos dos efeitos puros dos medicamentos
simples, na alteração do estado de saúde humana e dos estados
mórbidos e sintomas artificiais que eles podem produzir no indivíduo
sadio, são aqueles que o próprio médico sadio, sem preconceitos,
criterioso e sensível, realizar em si mesmo, com toda a prudência e
cuidados que lhe foram aqui ensinados. Ele sabe, com toda a certeza,
o que ele percebeu em si mesmo*.
(HAHNEMANN, 1996, p.162)
De acordo com Hahnemann este caminho é o mais seguro e o mais natural e
que ele foi o primeiro a trilhar através deste com a convicção de ser benéfico aos
homens 4. E aqueles desejosos de colaborar na elucidação dos efeitos peculiares dos
medicamentos e desse modo contribuir para aumentar o arsenal de substâncias
medicinais conhecidas, de modo que a escolha de um remédio para cada um dos casos
de doenças possa tornar-se ainda mais fácil e acurada, encontrarão as orientações no
Organon, parágrafos 105 aos 145 (HAHNEMANN, 1998).
Medicamento simples, de acordo com Hahnemann (1996, § 124, p. 154) é
“cada substância medicamentosa completamente só e perfeitamente pura, sem misturála com qualquer outra substância estranha”. Ainda ao se referir a uma substância
medicamentosa única e simples Hahnemann (1996, § 273, p.234) disse que ao
prescrever uma única substância medicamentosa simples e bem conhecida para um
caso de doença, o médico estará agindo mais de acordo com a natureza e é mais
racional.
4
HAHNEMANN, 1996, p.146, § 109.
15
Segundo Hahnemann (1996, § 25, p.83) a experiência pura é o único
oráculo infalível da arte de curar. No prefácio da 2ª edição do Organon Hahnemann
fala dessa arte de curar:
A verdadeira arte de curar é, por natureza, pura ciência experimental.
Pode e deve repousar em fatos claros e fenômenos perceptíveis,
pertencentes à sua esfera de ação, pois todos os elementos de que
trata são clara e satisfatoriamente cognoscíveis pelos sentidos,
através da experiência. O conhecimento da doença a tratar, o
conhecimento dos efeitos dos medicamentos, como empregar esses
efeitos, verificados, das drogas, na remoção das doenças – tudo isso
só a experiência adequadamente ensina. Seus elementos só podem
derivar de experiências e observações puras.
Leipzig, fins do ano de 1818
(HAHNEMANN, 2002, p.XVI)
A experiência pura envolve autenticidade, suavidade e simplicidade. Cruz e
Gouveia (2007, p.8) escrevem que “é a experiência do pouco ou do infinitesimal e
experiência do um, do medicamento simples”.
Os efeitos puros de cada substância medicamentosa, segundo Cruz e
Gouveia (2007, p. 7) “representam os efeitos sutis, porém notáveis, registrados na
disponibilização do psiquismo dos provandos, que não se justificam pela materialidade
corpórea das substâncias”.
Ainda no parágrafo 141 do Organon - 6ª edição é de suma importância as
vantagens que Hahnemann enumera para o médico homeopata que se disponibiliza em
regime de experimentação:
*Essas auto-experimentações feitas pelo médico também possuem
para ele outras vantagens inestimáveis. Em primeiro lugar, torna-se
para ele um fato indiscutível a grande verdade de que o efeito
medicamentoso de todos os medicamentos do qual depende seu poder
curativo reside nas alterações de saúde que sofreu em virtude dos
medicamentos experimentados e pelo próprio estado mórbido causado
pelos mesmos medicamentos. Além disso, através dessas observações
notáveis realizadas em si mesmo ele se torna, de um lado, apto a
compreender suas próprias sensações, seu modo de pensar, seu
16
tipo de psiquismo (o fundamento de toda verdadeira sabedoria: [...]) ;
por outro lado, e é o que não pode faltar a qualquer médico, ele
aprende a ser um observador. Todas as observações que fazemos
nos outros não apresentaram tanto interesse como aquelas que
efetuamos em nós próprios. Aquele que observa os outros deve
sempre temer que o experimentador não diga o que exatamente sente
ou que não descreva suas sensações nos termos mais apropriados.
Sempre fica a dúvida se não foi enganado, pelo menos em parte. Esse
obstáculo ao conhecimento da verdade, que jamais pode ser removido
completamente em nossas pesquisas dos sintomas mórbidos artificiais,
provocados em outras pessoas pela ingestão de medicamentos
desaparecem por completo nas auto-experimentações. Aquele que as
realiza em si mesmo sabe com certeza o que sentiu e cada
experimento é um novo estímulo à investigação das forças de outros
medicamentos. Assim, torna-se cada vez mais hábil na arte de
observar, arte de tão grande importância para o médico, quando ele
continuamente observa a si mesmo, em quem pode confiar e que
nunca o enganará. Isso ele o fará com tanto mais cuidado ao observar
que tais experimentos realizados em si mesmo lhe prometem um
conhecimento do verdadeiro valor e importância dos instrumentos
para a cura, que geralmente são escassos. Ele não deve imaginar que
tais ligeiras indisposições causadas pela ingestão de medicamentos
com o fim de experimentá-los podem ser de alguma forma prejudiciais
a saúde. A experiência ensina, ao contrário, que o organismo do
experimentador, mediante esses freqüentes ataques à sua saúde,
torna-se ainda mais apto a repelir todas as influências externas
hostis à sua constituição física e todos os agentes morbíficos
nocivos naturais e artificiais, tornando-se mais resistente a tudo o
que é nocivo mediante esses experimentos moderados nele realizados
com medicamentos. Sua saúde se torna mais inalterável, tornandose mais robusta, como o demonstram todas as experiências.
(HAHNEMANN, 1996, p.162-163, grifo nosso)
Benoît Mure (1809-1858), médico francês e importante personagem na
história da medicina brasileira especialmente no contexto da homeopatia, em seu livro
Patogenesia Brasileira ao falar da experiência pura disse que: “[...]. As doses
empregadas para uma experiência pura são em geral tão débeis que afetam menos a
saúde do que a mais leve alteração da dieta alimentar”, podendo afirmar que a
experimentação “é tão salutar em seus resultados quanta santa em seu princípio”
(MURE, 1999, p.3).
17
Autopatogenesia (CRUZ, 1999, p.55) não é simploriamente exercício de
experimentação feito pelo médico, nem processo técnico alternativo de se
experimentar a esmo. È um procedimento de eleição com o qual pode contar o médico
para ter certeza de que os melhores efeitos da experimentação de um medicamento
para reconhecimento de sua virtude curativa segundo a ordenação natural são os que
ele percebe em si mesmo. É o que ele sente, percebe e vê em si mesmo. Como
Hahnemann (1996, p.164) diz “tudo deve ser a pura linguagem da natureza, cuidadosa
e seriamente interrogada”.
Na observação sobre os efeitos puros dos medicamentos de acordo com
Hahnemann (1996, p.148) “as substâncias medicamentosas agem conforme leis
naturais definidas e imutáveis em virtude das quais são capazes de produzir sintomas
mórbidos, seguros e confiáveis, cada um de acordo com seu caráter peculiar”.
O provando médico se disponibiliza, ou seja, disponibiliza o seu próprio
modo de sentir e de pensar por amor à humanidade em serviço de experimentação de
medicamentos. O médico homeopata, servindo a natureza se capacita a comunicar
melhor com o enfermo, pois ao experimentar reconhece no outro o que tem em comum e se o caso de alteração de saúde deste for de doença natural poderá auxiliá-lo na
autocura, sob a influência do bem comum entre eles, fraternalmente. Desse modo pode
auxiliar o outro curativamente porque ao experimentar sua própria saúde melhora
(CRUZ, 2007a, p.4).
Para o hipocrático: “através da arte de que ele é servidor; o médico serve a
natureza, a divina “phýsis” e, nele está o seu dever, sua honra e a garantia de seu êxito”
(Epidemias I) (BEIER, 1997, p.39).
18
3 O MITO
“Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz
da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de
transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz.”
Joseph Campbell
3.1 Considerações sobre Mito
Mito é, em uma de suas definições, um relato de tradição oral, geralmente
protagonizado por seres que encarnam, sob a forma simbólica, as forças da natureza e os
aspectos gerais da condição humana. Etimologicamente do latim mythus significa ‘a história,
fábula’ e do grego muthos, isto é, ‘fábula, relato, discurso, palavra’ 5.
De acordo com Mircea Eliade, o mito é sempre a narrativa de como uma realidade
passou a existir:
"... o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em
outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes
Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,
o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a
narrativa de uma criação: ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser.”
(ELIADE,1986, p.11)
Junito Brandão (2002, p.36), ao falar sobre mito diz que representa sempre
algo coletivo, que transmitido através das gerações, traz uma explicação do mundo;
“mito é a parole, a palavra ‘revelada’, o dito. O mito pode se exprimir ao nível da
linguagem, ‘ele é antes de tudo uma palavra que circunscreve e fixa um
5
HOUAISS, 2001, p.1936.
19
acontecimento’6”. É possível, desse modo, se apropriar do mito no que se refere à
revelação.
Segundo Roland Barthes 7 “o mito não pode ‘ser um objeto, um conceito ou
uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma’. Assim, não se define o mito
‘pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como a profere”.
De acordo com Carl Gustav Jung, mito é a conscientização dos arquétipos
do inconsciente coletivo. Compreende-se inconsciente coletivo como algo que é
compartilhado por toda a humanidade, um denominador comum, que se mantém seja
qual for a época e o lugar. É a herança das vivências das gerações anteriores 8. Podese dizer que o mito se desloca livremente no tempo e no espaço.
O mito não está fixado numa forma definitiva, assumem roupagens
diferentes, em épocas diferentes, sendo então apropriado à representação. O mito tem
suas versões, “o pulmão do mito”, e segundo Junito Brandão (v. 3, 2002) para LéviStrauss o mito deve ser definido “pelo conjunto de todas as suas versões” uma vez que
o mesmo se compõe do conjunto de suas variantes.
Mitos, parábolas, fábulas, lendas e outros recursos orais nos contam
histórias. As histórias se atualizam de acordo com o potencial de cada um (CRUZ,
2006a, p.19). Do mesmo modo Campbell9 (2005, p.6) diz que “as imagens do mito
são reflexos das potencialidades espirituais de cada um de nós. Ao contemplá-las
evocamos os seus poderes em nossas próprias vidas”.
6
DER LEEUW, 1940 apud BRANDÃO, 2002, v.1, p.36.
BARTHES, 1970 apud BRANDÃO, 2002, v.1, p.36.
8
BRANDÃO, v.1, 2002.
9
CAMPBELL, Joseph, 1904-1987. Estudioso de mitologia e religião.
7
20
O mito é universal, abre-se como uma janela a todos os ventos, presta-se a
todas as interpretações, como nos diz Junito Brandão (v. 1, 2005) de modo que
qualquer um pode compreendê-lo, cada um a seu modo. De acordo com Rocha (2006,
p.7) o mito é múltiplo servindo para representar várias idéias, ser usado em diversos
contextos e que qualquer um pode, sem cerimônia, utilizar - se dele. E ainda diz que o
mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa, guarda uma mensagem cifrada,
ele precisa ser interpretado.
Campbell (2005, p.4) ao discorrer sobre o porquê estudar os mitos, diz
entender que os mitos são histórias que têm a ver com os temas que sempre deram
sustentação à vida humana, que construíram civilizações, que têm a ver com os
profundos problemas interiores, com os limiares da travessia, e se o indivíduo não
souber o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá que produzi-los por sua conta.
Mitos são, pois pistas permitindo-se ao indivíduo perceber e compreender
interiormente.
O mito é essencialmente fruto de uma tradição cultural. Por trás do mito
existe uma tradição, ou melhor, como diz Rocha (2006, p.9) “ele próprio é uma
tradição”. Um dos elementos do mito é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao
sagrado. De acordo com o pensamento mítico as causas dos fenômenos naturais,
aquilo que acontece ao homem, tudo é governado por uma realidade superior, divina.
Os sacerdotes, os rituais religiosos, os oráculos servem como pontes entre o mundo
humano e o mundo divino (MARCONDES, 1997). O mito é uma revelação divina, de
natureza inquestionável.
21
Junito Brandão cita as palavras de Bronislav Malinowski, um estudioso das
culturas indígenas, ao falar da função do mito em expressar o mundo e a realidade
humana:
[...]. O mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser
uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se
recorre incessantemente; não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou
uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião
primitiva e da sabedoria prática.
(BRANDÃO, 2002, v. 1, p.41)
3.2 A Autopatogenesia e o Mito
A Autopatogenesia é um instrumento universal da revelação da propriedade
que uma substância tem de ser medicamento; experimentação de fármacos a que o
próprio médico voluntariamente se submete, disponibilizando o seu psiquismo e seu
modo de sentir, através de atualizações de suas vivências e de suas reações. De acordo
com os ensinamentos hanemannianos esses experimentos devem ser realizados com
toda a prudência e cuidados, conforme o parágrafo 141 do Organon da Arte de Curar
(HAHNEMANN, 1996).
O experimentador escolhido para este fim necessita, antes de tudo, ser uma
pessoa fidedigna e conscienciosa10; que deve, de bom grado, dirigir uma atenção
cuidadosa sobre si mesmo, que deve possuir suficiente entendimento para ser capaz de
expressar e descrever suas sensações em expressões claras e também deve ser uma
pessoa moderada em todos os sentidos 11.
10
11
HAHNEMANN, 1996, p.155, §126.
HAHNEMANN, 1996, p.160, §137.
22
O médico homeopata, enquanto provando sente a linguagem da Natureza ou
phýsis, que apraz em se ocultar12, logo é susceptível de se revelar. A palavra phýsis
etimologicamente tem sua raiz no verbo “phylin” que significa nascer, brotar ou
crescer13.
O mito é também linguagem de manifestação da natureza e desse modo o
laboratório de experimentação pode se apropriar do mito para compreensão dos
fenômenos que ocorrem. O poder da autopatogenesia e do mito em se comunicar está
na revelação da natureza, que se apresenta de forma varia, reconduzindo um pelo
comum o que supõe a comunicação (OLIVEIRA et al, 2006).
A homeopatia fala do indivíduo e da circunstância; sendo que na
homeopatia não tem como conhecer o outro, o outro é a circunstância. O Mito fala do
indivíduo, do inconsciente coletivo e da circunstância (CRUZ, 2006a).
Na autopatogenesia cada provando vai fazer a sua representação, cada um
apresenta a sua versão, de acordo com o que sente, vê e percebe. E também um mesmo
provando não faz a mesma representação em todas as provas, sendo cada prova única.
E nem do mesmo medicamento em momentos diferentes ele faz o mesmo, ele faz o
semelhante. Isto é o que diz Hahnemann no parágrafo 134 do Organon14. Cada prova é
como uma viagem, sobre uma estrada particular, sempre re-novada e ele vai se instruir
reconhecendo as placas como indicações (CRUZ, 2006a).
Como na autopatogenesia o mito vive em variantes, podendo em épocas
diferentes e também em locais diferentes assumir uma representação. O mito com sua
natureza varia, como Cruz diz (2006a, p.19) “respira permanentemente e traduz a
12
Heráclito afirmou que “a natureza gosta de ocultar-se.”
BEIER, 1997, p.30.
14
HAHNEMANN, 1996, p. 158.
13
23
suposição da compreensão pelas explicações. Ele traduz a comunicação como uma
arquetipica força de campo realizando o espaço-tempo”.
No processo experimental, o provando vai registrar na prova, suas
sensações e sentimentos, suas imaginações, seu modo de pensar, seus sonhos, sua
relação com o outro e sua interação com a circunstância. Cada um vai contar uma
história, de acordo com que cada um pode se disponibilizar. Qualquer um, com seu
modo, pode contá-la sem deixar de comunicar verdade, porque o modo é unidade das
coisas (CRUZ, 2006a, p.148).
Decifrar o mito é, pois decifrar-se15 , assim como na experimentação, onde
o provando faz o caminho de volta para dentro de si mesmo, permitindo-se
autoconhecer. Em processo de autopatogenesia o medicamento homeopático evoca o
que cada um tem dentro de si, assemelhando-se ao mito em seu trabalho de despertar
autoconhecimento.
Na autopatogenesia cada um vai compreender um medicamento com a sua
própria verdade tornando-se inquestionável, pois é o que cada um sente. Ao
experimentar em si mesmo o provando reconhece cada substância a seu modo, é o
saber individual de certeza a que se refere Hahnemann na nota do parágrafo 141 do
Organon16 ao falar que “[...]. Aquele que as realiza em si mesmo sabe com certeza o
que sentiu [...]”.
O mito apresenta um caráter divino e sobrenatural não tendo como ser
questionado. Como diz Marcondes (1997, p.20) “o mito não se justifica, não se
fundamenta, nem se presta ao questionamento, a crítica ou à correção”.
15
16
BRANDÃO, v.1, 2002.
HAHNEMANN, 1996, p. 163.
24
O processo de Autopatogenesia é público, pois é da natureza, sendo que
qualquer indivíduo pode fazer dando seu testemunho. Cada um com a sua
individualidade pode participar do processo e para tal é suficiente que disponibilize
seu psiquismo com moderação e que seja amante da verdade. Como Cruz diz (2006,
p.36): “Todo homem é provando universal para qualquer prova infinitesimal [...]”.
Autopatogenesia é inclusiva, ou seja, o provando se inclui no processo, nem mais nem
menos que o outro, mas também. Hermenêuticamente, por sonoridade mito pode ser
“me too”, é a sua inclusão no processo (CRUZ, 2006a). Mito, etimologicamente em
grego é muthus, que pode ser também “mútuo” por sonoridade. Mútuo implica
reciprocidade, cooperação de parte a parte, há comunhão. No laboratório
Hahnemanniano de Psicologia Experimental permite-se a comunhão entre os
provandos, onde cada provando ao escutar o outro, vai se aproximar por semelhança,
ou seja, cada Um se torna o Todo.
A autopatogenesia compara-se aos debates públicos de Sócrates, onde o
papel do filosofo não era transmitir um saber pronto e acabado, mas fazer com que o
outro indivíduo, seu interlocutor, no curso do diálogo trouxesse à luz suas próprias
idéias; método denominado como maiêutica, que significa literalmente a arte de fazer
o parto, uma analogia com o oficio de sua mãe que era parteira. Sócrates também se
considerava um parteiro, mas de idéias (REALE, 1993). Os debates ocorriam na
Àgora, praça no centro comercial da antiga Atenas, limitada por feiras e mercados, por
onde passava todo tipo de pessoa e assim qualquer um podia participar
17
. Como
exemplo disto no diálogo Mênon de Platão (PLATÃO, 2005), Sócrates interroga um
escravo sobre elementos de geometria e diz que ninguém o ensinou geometria e ele
17
Paul Strathern, Sócrates em 90 minutos, 1998.
25
sabia responder. Ou seja, segundo Sócrates diz, as opiniões que eram do escravo, já
existiam e foram despertadas mediante um simples interrogatório.
As autopatogenesias nos contam histórias e como já citado, os mitos são
histórias contadas através dos tempos; ambos atualizando-se de acordo com o
potencial de cada um e com o momento. As histórias podem ser compreendidas como
recurso de promoção da saúde, como coloca Cruz (2006, p.40) ao falar do mito e da
autopatogenesia enquanto histórias: “A pedagogia, como denominador comum entre
história e saúde, torna a história recurso de promover saúde, que é exatamente
transferência de com-um-nhão de cada qual com tudo mais”.
A história de cada um, ou seja, reduzida ao registro, pode ser compreendido
como um mito, onde quem conta é o pharmakós.
3.3 O Mito de Édipo e a Autopatogenesia
O Mito de Édipo é, certamente, um dos mitos mais interpretados e como Rocha
(2006, p.46) fala, “é um mito exemplar por onde quer que se olhe. Exemplar pela sua força,
exemplar pelas suas mensagens.” Com base em alguns autores da mitologia grega
(BRANDÃO, v.3, 2002; KERÉNYI; VERNANT, 2002). É apresentado um resumo do Mito
de Édipo e, a seguir, algumas considerações são feitas com a intenção de mostrar como o
Mito de Édipo pode ressignificar o exercício da Medicina Homeopática fundamentada na
experiência de autopatogenesias.
Cadmo, filho de Agenor rei da Fenícia, parte em uma peregrinação pelo mundo em busca de sua
irmã Europa que tinha sido raptada por Zeus. Cadmo fixou-se na Trácia com sua mãe Telefassa
26
e depois que ela morreu consultou o oráculo e este lhe ordenou que abandonasse a procura da
irmã e fundasse uma cidade, ele deveria seguir uma vaca até onde ela caísse de cansaço. Cadmo
pôs-se a caminho, atravessou a Fócida, encontrou a vaca e a seguiu por toda a Beócia. Quando
esta se deitou compreendeu que ali deveria parar. Cadmo estando próximo a uma fonte de água
mandou seus companheiros buscarem água e estes foram mortos pelo dragão de Ares. A fonte
era consagrada a Ares18, filho de Zeus e Hera, dotado de coragem cega e brutal; representava a
desgraça, a violência. Cadmo após matar o Dragão de Ares semeou os dentes destes por
conselho de Atená nascendo os gigantes Spartoí, os “Semeados” 19. Ele atirou pedras no meio
dos dragões e estes se acusaram mutuamente e se mataram, sobrevivendo cinco20. Cadmo,
juntamente com estes gigantes, vão formar o núcleo ancestral da aristocracia de Tebas.
Por ter matado o dragão de Ares, Cadmo serviu ao deus por oito anos como escravo,
cumprindo-se a “expiação”, ou seja, a purificação do crime cometido. Após esse período, Zeus
concedeu a Cadmo como esposa Harmonia (filha de Ares) reinando por muitos anos em Tebas.
Em condições misteriosas Cadmo e Harmonia abandonaram Tebas e o trono, devido à tradição,
é ocupado por seu neto Penteu e não pelo seu filho Polidoro21. Após a partida de Cadmo e a
morte de Penteu, o trono e toda a ordem da cidade passam por transtornos.
Polidoro casa com Nicteis22 e nasce Lábdaco23, pai de Laio e avô de Édipo. Lábdaco, neto de
Ctônio um dos Spartói, tinha um ano quando seu pai Polidoro faleceu e Lico assumiu o poder
até que este atingisse a maioridade. O reinado de Lábdaco foi marcado por uma guerra
sangrenta contra Pandíon I, rei de Atenas. Lábdaco morre quando seu filho Laio tinha apenas
um ano e o trono é ocupado novamente por Lico, mas por pouco tempo, pois é assassinado por
seus sobrinhos Anfião e Zeto. Estes se apoderaram violentamente do trono e Laio fugiu de
Tebas buscando asilo na corte de Pélops, filho de Tântalo. Desrespeitando a sagrada
hospitalidade de Pélops, Laio se apaixona por seu filho Crisipo raptando-o. Laio cometeu grave
18
Figura de um homem jovem, de altura gigantesca, que lançava gritos medonhos.
“Nascidos da terra”. Representam a violência guerreira.
20
Equíon, Udeu, Ctônio, Peloro, Hiperenor
21
“o de muitos dons”
22
Também chamada de Antíope-“a noite”
23
Teria seu nome derivado de “lépein”, quer dizer esfolar.
19
27
harmatía (“um amor contra naturam”) e ofendeu Hera, a guardiã severa dos amores legítimos.
Na Grécia antiga, as faltas eram chamadas de harmatía, esse termo quer dizer “uma mancha que
se espalha”; contamina, portanto, tudo o que está em volta. Um dos membros do guénos (grupo
familiar) comete uma falta e todos os membros deste guénos são de uma forma ou de outra
culpados e deverão expiar pela falta (BRANDÃO, v.3, 2002).
Laio junto com seus antepassados Cadmo, que matou o dragão de Ares e Lábdaco, que se opôs
a introdução do culto de Dionísio em Tebas, vão gerar a maldição dos Lábdacidas.
Os primeiros momentos da soberania tebana como foram visto acima foram instáveis, marcados
por violência, desordem e nesse período o trono em vez de passar de pai para filho por uma
sucessão regular, passa de mão em mão devido às lutas e as rivalidades que opõem os Spartoí
entre si e ao poder legítimo.
Finalmente Laio subiu ao trono de Tebas casando-se com Jocasta ou Epicasta. Foi ameaçado
por três vezes pelo Oráculo de Delfos, que lhe dizia que ele deveria morrer sem filhos, se
quisesse salvar Tebas. Mesmo assim, Laio resolveu ter um filho com Jocasta. Numa variante,
Laio evita ter filhos com sua esposa, mas numa noite de embriaguez não toma cuidado e
engravida Jocasta . Nascido o menino, Édipo, o rei lembra da predição do oráculo e ordena que
um pastor, Menetes ou Menécio, o leve para o Monte Citerão onde deveria ser abandonado. No
Monte Citerão foi recolhido por um pastor, Forbas e levado para Corinto onde foi criado como
filho pelo rei Pólibo e Mérope.
Antes de ser levado Laio amarrou-o pelos tornozelos ou teria perfurado os calcanhares com um
gancho e amarrado os pés com uma correia para que a criança não fosse recolhida e educada.
Uma variante diz que Édipo foi colocado num cofre e lançado ao mar, o cofre chegou à praia de
Corinto e aí foi encontrado por Peribéia ou Merópe, sendo levado então para a corte do rei
Pólibo, seu marido.
Ao atingir a maioridade Édipo sai de Corinto, ele vai à busca de uns cavalos que haviam sido
furtados do reino de seu pai ou como é contado em outra variante, durante um banquete um
convidado lhe diz que ele era filho postiço e não se conformando, ele parte para Delfos para
28
consultá-lo sobre sua origem. O oráculo lhe disse que ele mataria o pai e se casaria com a
própria mãe e com temor que se cumprisse ele não voltou para Corinto dirigindo-se a Tebas.
Na encruzilhada de Pótnias, em um trivio, Édipo e Laio se encontram, cruzam em um lugar
estreito e disputam pela passagem. Laio estava indo a Delfos para consultar o oráculo a cerca de
um monstro que se abatia sobre Tebas. Édipo mata Laio cometendo o parricídio.
Édipo continua sua caminhada. Na entrada de Tebas, um monstro feminino se põe às portas da
cidade, a Esfinge24; enviavam a elite da juventude tebana, os rapazes mais belos, para enfrentála. Submetia-os ao seu enigma e, como não conseguiam decifra-lo, devorava-os. Assim Tebas
assistia a destruição de toda sua juventude.
A esfinge cantava para encantar, como um pharmakón. Estava ali na entrada de Tebas, no
monte Fíquion, sendo enviada por Hera, a protetora dos amores legítimos, para punir a cidade
do crime de Laio, o amor contra naturum de Laio por Crisipo.
A primeira versão do enigma era do início do século IV a. C é a mais antiga que se tem notícia
até o momento: “Existe um bípede sobre a terra e quadrúpede, com uma só voz, e um trípode, e
de quantos viventes que vagueiam sobre a terra, no ar e no mar, é o único que contraria a
natureza; quando, todavia, se apóia em maior número de pés, a rapidez se enfraquece em seus
membros”. A segunda versão, bem mais simples é: “Qual o animal que, possuindo voz, anda,
pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à tarde, com três?”. Édipo respondeu
corretamente que era o homem. Ele está muito sutilmente fornecendo não o seu nome
individual, mas o da espécie. Junito Brandão (2002, v.3, p.261) diz que Marie Delcourt chama a
atenção para o fato de que Oidípous (Édipo) em grego significa “dois pés”, logo o nome dele
expressaria o nome comum da espécie. E também que Oidípous (oîdos/pous) “o de pés
inchados” e por isso ele usava um bordão para se apoiar, daí ‘três pés’.
Numa outra versão, à pergunta da Esfinge, Édipo tocou a fronte e o monstro compreendeu que o
jovem designava a si próprio para responder ao enigma.
Édipo diante da Esfinge decifra seu enigma, derrotada ela precipita-se do alto do rochedo caindo
no abismo.
24
Monstro feminino, com rosto e seios de mulher e patas, peito e cauda de leão, e com asas.
29
Com a vitória de Édipo sobre a Esfinge, ele acaba com a peste que dizimava Tebas, ocupa o
trono e a seguir casou-se com Jocasta.
Há uma acalmia em Tebas, temporária e surge então um novo flagelo, “a peste” se abateu sobre
Tebas, ali estava as Erínias,25 em busca do parricida, o assassino de Laio que ainda não tinha
sido punido. O monstro vencido é substituído por um novo flagelo.
Édipo é novamente convocado para salvar Tebas. Enviou Creonte ao Oráculo de Delfos para
consultar e a resposta foi incisiva: “a nódoa que mancha Tebas é o assassino de Laio”. Não
tendo como descobrir quem matou Laio, ele mandou vir Tirésias, o adivinho cego de Tebas, “o
mántis”. Tirésias perdeu a visão física e ganhou o poder da visão intuitiva; é a visão de dentro
para fora, das trevas para luz, não tendo com duvidar. Tirésias procurou se esquivar do
interrogatório deste e só após ser acusado de se aliar ao Creonte para tomar-lhe o poder, é que
faz a revelação a Édipo de que ele matara o próprio pai e está casado com sua mãe. Édipo
coloca em dúvida o saber de Tirésias, e só se deu por vencido depois que falou com os dois
pastores, o de Tebas que o expusera e o de Corinto que o recolhera. Dirige ao palácio e rasga os
próprios olhos.
Édipo cego e condenado ao exílio, ainda permaneceu algum tempo em Tebas, o poder passou a
ser exercido por seus filhos Etéocles e Polinice; estes por duas vezes desacataram o pai e foram
amaldiçoados pelo pai, ambos morreriam violentamente lutando um contra o outro. Os irmãos
combinaram governar um ano cada um, alternadamente. Etéocles não cumpre o prazo, recusa a
entregar o poder a Polinice ao findar o primeiro ano; originando uma expedição chamada Sete
contra Tebas.
A cidade em apuros extremos se salva ainda pelo sacrifício de um homem; por conselho de
Tirésias, o filho de Creonte, Meniceu ou Megareu é condenado a morrer26. E assim os invasores
fogem. Mas Etéocles corre ao encontro do irmão e lança-se sobre ele. E assim ambos morreram
cumprindo-se a maldição de Édipo.
25
26
Divindades da vingança pelos crimes cometidos contra consangüíneos
Guimarães, Ruth; Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo, Cultrix.
30
Édipo foi expulso da cidade e guiado por sua filha Antígona chegam a Colono, nas vizinhanças
de Atenas; aí lhe informam que o chão que pisa está consagrado as Eumênides.
Chega como um estrangeiro, mas ele compreendeu e reconheceu que era este o local apontado
pelo Oráculo como término de seus sofrimentos e humilhações. Assume a dignidade de um
suplicante e declara que não o abandonará jamais, vem por vontade dos deuses e em beneficio
dos cidadãos de Atenas. Édipo reina em Colono como suposto, reina sob.
Teseu concedeu asilo a Édipo, e este lhe prometeu proteção de Atenas contra qualquer invasão
tebana, uma vez que possuir o sepulcro de um herói significava ter uma muralha inexpugnável
contra os inimigos externos.
Édipo se prepara para o grande mergulho, “sofrer para compreender”, como escreve Junito
Brandão (2002, p.270), encaminhando-se acompanhado apenas por Teseu para o seu leito de
morte.
Ao se estudar o Mito de Édipo foi possível distinguir duas fases e
posteriormente fazer um paralelo com a Homeopatia, baseado na experiência
vivenciada em autopatogenesias, de acordo com os ensinamentos de Hahnemann.
A primeira fase corresponde a uma visão de mundo sensível27 em que um
semelhante mais forte destrói um semelhante mais fraco. Édipo, nascido em Tebas é
exposto no Monte Citerão e depois foi levado para Corinto onde foi acolhido por
Peribéia ou Mérope
28
uma educação sensiva.
e seu esposo Pólibo29. Nesse primeiro momento, Édipo teve
Mais tarde Édipo deixa Corinto em direção a Tebas e
encontra-se com Laio no trívio, disputam a passagem e sendo semelhantes, Édipo mata
Laio, onde o mais jovem e o mais forte mata o semelhante mais fraco e o mais velho.
27
Primeira navegação, segundo Platão.
Mérope como visão dividida.
29
Pólibo: multiplicidade corpórea.
28
31
Depois Édipo decifra o enigma da esfinge que se colocava na entrada de Tebas, se
reconhecendo nele, através de sua memória sensiva, por imagem semelhante. Assim
ele passa a reinar em Tebas.
Trata-se de uma fase que privilegia experiências sensivas que se substituem
umas às outras, resistente a uma ordenação inteligível sob aparente arbritariedade.
Assim esse período pode ser considerado materialista e se realiza como o incesto
mítico e material (maternal) de reinado mundano, decorrente do parricídio: fratricídio
do semelhante. Esta fase se satisfaz com a objetivação que coisifica a manifestação.
Esta fase corresponde ao enfoque experimental havido por “patogenesia”,
que pode ser considerado como um processo em que se busca conhecer a verdade
através da verdade do outro. É naturalmente, um processo caracterizado pelo
comportamento que reifica a realidade e resulta, portanto, em reinado material.
Tomando-se o processo experimental por “patogenesia” a necessidade de assimilação
ou tratamento das diferenças por semelhança ainda é obstaculizada pela noção
positivista de repetição que valida o resultado da experiência, de forma que
significativas modalidades ou visões individuais de mundo, no transformismo de
“signaturas” que as atualiza (CRUZ, 1999), deixam de ser incluídas como historia da
experiência.
Também se pode ver que na Homeopatia, como na primeira fase do mito, o
mais forte e semelhante destrói o mais fraco e semelhante em regime de fratricida
(CRUZ, 2006a). É o que Hahnemann afirma no parágrafo 26 da 6ª edição do Organon
da Arte de Curar :
32
Tal fato se baseia naquela lei homeopática da natureza, desde sempre,
Fundamentalmente presente em toda verdadeira cura, pressentida,
certamente, vez por outra, mas desconhecida até agora:
Uma afecção dinâmica mais fraca é extinta de maneira duradoura
no organismo vivo por outra mais forte quando esta (de espécie
diferente) seja muito semelhante àquela em sua manifestação *.
(HAHNEMANN, 1996, p. 84)
Ao decifrar o enigma, Édipo ocupa o trono de Tebas, tornando-se rei.
Simbolicamente a figura do rei impõe sua verdade, através de um poder de
influenciação ou violência simbólica (BOURDIEU; PASSERON, 2001). Esse poder
representa a venereopatia mítica onde um “cresce” sobre o outro na vida de relação. O
rei, é também aquele que “emite” raios, irradia ofuscando a visão do outro. Essa luz
que cega é também ilusória, enganadora, buscando legitimar-se por encantamento. A
luz que modera é aquela que não cega, de vez que permanece oculta como ponto do
meio.
Após “destruir” a Esfinge, uma fugaz acalmia vige em Tebas e logo um
novo flagelo se instala ali. Trata-se de uma atualização do tormento “esfincteriano”
30
reconduzido por paliação. Assim a acalmia temporária é vista com uma paliação da
qual resulta a recondução do mal suprimido de modo mais forte desdobrando a
violência. Hahnemann no Organon, no parágrafo 58, afirma: “[...]. E todo observador
atento concordará que, após esse ligeiro alívio temporário (de curta duração) seguir-seá, sempre e sem exceção, uma agravação, [...].” Nesse caso corresponde a uma
agravação da doença e não uma agravação homeopática que fundamenta a cura.
A segunda fase do Mito do Édipo corresponde aquela onde ele adquire uma
visão de mundo inteligível, é o “cegar as próprias vistas”. A cegueira de Édipo tem um
30
Esfinge em grego Sphínks, que provém do verbo sphínguein, ‘envolver, comprimir, apertar,sufocar’.
33
sentido mais profundo do ponto de vista simbólico como diz Junito Brandão (2002,
v.3, p.269): mergulhado externamente nas trevas, o herói se encontrou, gerando luz
interna. A anagnórisis, “a ação de reconhecer”, o autoconhecimento começa
efetivamente a existir quando se deixa de olhar de fora para dentro e se adquire a visão
de dentro para fora.
Depois de se cegar, intuído pela anagnórisis, Édipo vai buscar asilo em
Atenas incluindo assim seus adversários atenienses. Recusando-se a continuar o
reinado matriarcal ele se confraterniza com o “outro” (CRUZ, 2006a), em processos de
resubjetivação de mundo, qualificando o desimpedimento do fluxo da vida (CRUZ;
IANNOTTI; GOUVEIA; BEIER, 2007).
Édipo chega ao Bosque das Eumênides, as verdadeiras medidas. Junito
Brandão (2002, v.3, p.285-286) escreve: “Essas deusas ‘benevolentes’ traduzem, na
realidade, um aspecto simbólico de dupla interpretação, cujo significado oculto tornase idêntico àquele dos olhos furados. [...] refugiando-se junto às Eumênides, cujo
santuário em Atenas possuía o mesmo poder salutar que o templo de Apolo com sua
divisa: Conhece-te a ti mesmo. [...].”
Esta segunda fase corresponde ao processo de autopatogenesia, onde
simbolicamente o médico homeopata enquanto provando “rasga as próprias vistas”,
mergulhando-se em anagnórisis e habilitando-se como “Eumênides”. Ao se capacitar
no processo de experimentação, o médico, com mãos e modos, disponibiliza sua
própria dor, mergulha para dentro de si mesmo é, pois um caminho reflexivo,
contemplativo (CRUZ, 2006a). Com suspensão de juízo, através de reconhecimento,
abstem-se de saber com a verdade de “outro”. O médico mede com a sua própria
34
memória, tornando-se verdadeira medida de mundo. Cruz (2006a, p.125) diz que: “O
homem não pode ultrapassar sua própria medida. Deve ele se autoconhecer, ele que é a
medida, meio-termo, síntese.”
Compreende-se então que o médico homeopata, segundo CRUZ (2006a,
p.27), ou se realiza com memória sensiva do “outro”, seja do outro provando ou outro
medicamento, enfatizando o fratricídio do semelhante mais fraco pelo semelhante mais
forte; ou através de procedimento fundamentado em auto-conhecimento para
reconhecimento do “outro”, processo em que se otimiza a humanização de mundo por
disponibilização da própria dor. A segunda fase é a experiência inteligível do próprio
psiquismo, inclusiva do regime de vida, que corresponde à cegueira de Édipo. A cura
que inclui a denominação pelo regime de vida corresponde ao desenvolvimento do
principio conveniente da cura31.
Cruz em Estro do Poeta32 fala: “A comunhão por intermédio do Ho-mem, que
está na origem, está na permanência e se reconduz no fim da fenomenologia. Esta é a
fundamentação da metodologia de assimilação para compreensão da realidade.
Observemos (...), se não é o poder do pouco, do UM, ou da simplificação que inspira a
simbologia de pharmakós que é tanto o bode expiatório da Pólis (ou dos caídos no
antro) quanto é o que interroga ou auxilia o parto do autoconhecimento; (...)”.
31
32
HAHNEMANN, 1996, p. 174, §163.
CRUZ, 2008, p. 9
35
4 O PHARMAKÓS
Cada pharmakós vem a ser “um phármakon personificado”
A. Mommsen
4.1 Estudo da palavra pharmakós
Entende-se pharmakós33 como o ‘mágico, feiticeiro, envenenador; aquele
que se imola em expiação das faltas de uma cidade’34, o bode expiatório. Bode
expiatório, de acordo com o dicionário
35
, tem as seguintes definições: pessoa sobre
quem se fazem recair as culpas de outros (ou outras coisas); pessoa a quem se
imputam ódios, reveses, desgraças; pessoa que é alvo favorito de troças e ataques de
todos.
Jean-Pierre Vernant (2002, p.284) escreve que “o pharmakós era um ‘bode
expiatório’ que a cidade expulsava anualmente do local como símbolo das máculas
acumuladas no decorrer do ano, em caso de necessidade, [...]”.
O termo pharmakós é reconduzido ao termo phármakon, que significa ao
mesmo tempo veneno e remédio. René Girard diz que:
[...] em grego clássico a palavra pharmakós significa ao mesmo tempo
o veneno e seu antídoto, o mal e o remédio, e finalmente qualquer
substância capaz de exercer uma ação muito favorável
ou muito
desfavorável, dependendo dos casos, das circunstâncias, das doses
empregadas ,[...] .”
(GIRARD, 1998, p.124)
Pedro Lain Entralgo (1970, p.326-339) ao falar dos sentidos que o termo
phármakon possui dentro do mundo histórico em que nasceu a medicina hipocratica,
33
Pharmakós é o singular e pharmakoís é o plural da palavra grega.
DERRIDA, 2005, p.84 – nota 4 (E. Boisacq, Dictionnaire étymologique de la langue grecque.).
35
HOUAISS, 2001, p. 475.
34
36
diz que além de um sentido estritamente médico, como “remédio curativo” ou
“medicamento”; de outro como mágico, o que encanta; tem um terceiro que é mágico
no sentido catártico que é como ele diz: “o pharmakós como “bode expiatório” para a
purificação das cidades”.
Jacques Derrida, em A Farmácia de Platão36 alinha os termos: phármakon –
pharmakéia – pharmakéus - pharmakós. Inicialmente o autor apresenta a escrita como
um phármakon, tendo como referência o dialogo Fedro de Platão.
Pharmakeía é o nome da ninfa que brincava com a jovem Orítias quando
esta foi precipitada no abismo, empurrada pelo vento boreal37; mas também é um
nome comum que “significa a administração do pharmakón, da droga”.
Pharmakéus é o feiticeiro, o mágico. Em diálogos de Platão, Sócrates é
apresentado freqüentemente como um pharmakéus, segundo Jacques Derrida. É
considerado como quem sabe executar a mágica com as palavras. Suas palavras agem
como um pharmakón, permeando a alma do ouvinte. E é justamente ao pharmakós que
o personagem designado nos diálogos de Platão como pharmakéus se identifica, antes
de qualquer coisa por ter nascido no dia 6 do mês Thargeliõn38 (maio, junho), período
em que os atenienses purificavam a cidade. De acordo com alguns atenienses, Sócrates
era considerado de influência moral e política má, sendo acusado de desrespeitar as
tradições religiosas da cidade e corromper os jovens. Sócrates assume as acusações,
dizendo-se coerente com o que ensinava. Foi sentenciado à morte, devendo beber uma
taça de veneno, a cicuta, de acordo com a prática da época. Atenas matou-o para
manter-se intacta; mata o pharmakós ou o bode expiatório.
36
DERRIDA, 2005, p. 77-84.
O Mito do rapto da virgem por Bóreas.
38
Primeiro dia da festa das Targélias.
37
37
Jacques Derrida apresenta a palavra pharmakós como sinônimo de
pharmakéus e diz que ela não aparece no texto de Platão, o que não quer dizer que
esteja necessariamente ausente.
4.2 O Ritual do pharmakós
Fragmentos que se referem ao ritual do pharmakós são remanescentes de
escritos da Grécia Antiga. Uma das principais fontes sobre o ritual do pharmakós é o
discurso de Lísias contra Andócides onde Lísias pede que se purifique a cidade dessa
mácula que é Andócides. Andócides foi implicado na profanação de estátuas do deus
Hermes e dos mistérios de Elêusis. Condenar Andócides “é purificar a cidade, libertála da polução39, expulsar o pharmakós” (VERNANT, 2002, p.88).
A prática do sacrifício do pharmakós pela comunidade, segundo Junito
Brandão, parece ter origem no salto do “rochedo de Lêucade”, templo famoso de
Apolo na ilha da Leucádia.
Do cume deste rochedo a vítima humana, isto é, o
pharmakós era lançado ao mar, prática essa chamada Katapontismós. O rito era
obrigatório e a partir talvez do século VIII a. C, este foi substituído pelo voluntário
onde só se lançavam ao mar os que desejavam uma purificação ou uma libertação
pessoal (BRANDÃO, v.2, p.102-103).
Segundo a lenda, o rito teria sua origem no assassinato ímpio cometido
pelos atenienses na pessoa de Androgeu40, o cretense: para expulsar o loimós
39
40
Etm lat pollutiõ, õnis ‘mancha, nódoa, mancha (do pecado)’
Filho de Minos e Pasífae. Visitando Atenas, combateu nos jogos com tanta habilidade e perícia que
conquistou todos os prêmios. Egeu, com inveja dele o enviou para matar o touro de Maratona e foi
morto por este. Uma variante diz que a juventude de Atenas e Megára, invejosa de seu sucesso o matou.
38
desencadeado pelo crime instituiu-se o costume de uma purificação constante pelos
pharmakoí (VERNANT, 2002, p.87).
Tzetzes41 nas suas Mil Histórias, referindo-se a alguns fragmentos do poeta
Hiponax, descreve a cerimônia assim:
“O (ritual do) pharmakós era uma dessas antigas práticas de purificação. Se uma
calamidade se abatia sobre a cidade, exprimindo a cólera de deus – fome, peste ou
qualquer outra catástrofe -, o homem mais feio era conduzido como que a um sacrifício
como forma de purificação e remédio para os sofrimentos da cidade. Procediam ao
sacrifício num local convencionado e davam (ao pharmakós), com suas mãos
queijo,bolo de cevada e figos, depois, por sete vezes, batia-se nele com peras e figos
silvestres e outras plantas silvestres. Finalmente, eles o queimavam com ramos de
árvores silvestres e esparramavam suas cinzas no mar e ao vento, como forma de
purificação, como eu disse, dos sofrimentos da cidade.”
Os ritos sacrificiais faziam parte do culto a Apolo, ocorrendo em muitas
das festas oferecidas a ele, destacando-se entre estas as Thargélias de Atenas
(BRANDÃO, v.2, 2003), (DERRIDA, 2005), (VERNANT, 2002), onde é descrito do
seguinte modo:
No primeiro dia da festa das Thargélias, no dia 6 do mês Thargeliõn (maio, junho)
fazia-se desfilar em procissão dois pharmakoí em vista da purificação, um para os
homens, outro para as mulheres. Os dois pharmakoí, usando colares de figos secos
pretos ou brancos segundo o sexo que representavam, desfilavam através de toda a
cidade. As vítimas eram perseguidas sem tréguas por toda a cidade, batia-se no sexo
41
DERRIDA, 2005, p.79-80.
39
deles, por sete vezes, com ramos de figueiras e réstias de cebolas, elementos tidos como
altamente catárticos; depois eram expulsos ou mortos. Á expulsão do pharmakós,
associavam um outro ritual que se desenrolava no dia 7 do mês, dia dedicado a Apolo,
em que se consagravam às divindades as primícias dos frutos da terra sob a forma de
thãrgelos 42,de uma bolacha e de um pote cheio de sementes de todas as espécies. Mas o
ponto central da festa era carregar a eiresióne, ramo de oliveira ou de loureiro amarrado
com fitas de lã, com doces, frutas e pequeno frasco de óleo e de vinho. Crianças e
jovens carregavam-nas pela cidade, algumas eram depositadas na entrada do templo de
Apolo, outras eram colocadas na porta das casas particulares. Ficavam aí, murchavam ,
secavam até o próximo ano. Consagrava o fim da velha estação e inaugurava o novo ano
sob signo do dom, da abundância e da saúde.
Com relação à escolha das vítimas, tudo leva a pensar que eles eram
recrutados na ralé da população, entre os malfeitores, condenáveis, pela sua maldade,
sua feiúra física, sua baixa condição, o que os designavam como seres inferiores
(segundo a versão de Héladio de Bizâncio) (VERNANT, 2002).
A versão de Díogenes Laércio e a de Ateneu falam que no tempo em que
Epimênides purificava Atenas (século VII) do lóimos43 causado pelo assassinato de
Cílon, dois jovens, dos quais um chamava-se Cratino, um belo adolescente, tinham se
oferecido voluntariamente para purificar a terra que os havia alimentado. E esses dois
jovens se apresentaram não como a escória da sociedade, mas como a flor da
juventude de Atenas (VERNANT, 2002).
42
43
Cozido de milho com frutas.
“Lóimos”,em grego, e “pestis”, em latim, eram expressões usadas para designar um flagelo geral, uma
fatalidade do que poderia haver de pior, isto é, todas as doenças contagiosas e mortais.
<www.cchla.ufpb.br/ppgs/politica/15-diniz.html>
40
Segundo Vernant (2002, p.92), ao falar sobre o duplo aspecto do
pharmakós, diz que o rito das Thargélias deixa ainda transparecer, na personagem do
pharmakós, certos traços que evocam a figura do soberano, o rei, senhor da
fecundidade. O pharmakós é mantido ás custas do Estado por um ano, alimentado de
pratos especialmente puros: frutas, queijos e bolacha consagrada de máza 44.
O ritual do pharmakós era uma prática regular que se fazia reproduzir todos
os anos e que tinha lugar nos momentos críticos (seca, peste, fome); onde primeiro se
realizava a expulsão da desordem humana através do sacrifício do pharmakós; e
depois a eiresióne simbolizando o retorno da boa ordem das estações, a renovação.
4.3 A História do pharmakós
A figura do pharmakós ou bode expiatório é encontrado, dentro do contexto
histórico-cultural, em vários momentos e de diversos modos.
Em tempos antigos na Grécia, ocorriam muitas festas em que se prestava o
culto a Apolo. Apolo é o deus kathársios, um purificador da alma, que a libera de suas
nódoas. Acreditava-se que toda “mancha” produzida por um crime de morte era com
uma “nódoa maléfica” que contaminava o génos45 inteiro e tinha que se purificar
através do exílio ou por meio de julgamentos e longos ritos catárticos. Ele próprio,
Apolo, se submeteu a uma catarse no vale de Tempe por um ano quando matou Píton,
o dragão que guardava o oráculo de Géia, a Mãe-Terra (BRANDÃO, v.2, 2003).
44
45
Espécie de pão ou farinha misturada com leite.
Descendência, família.
41
O sacrifício do pharmakós visava expulsar periodicamente as máculas
comportamentais acumuladas no decorrer do ano. A expulsão tinha lugar nos
momentos de crise como seca fome, peste, etc. Havia sempre um pharmakós à
disposição da coletividade.
O Levítico menciona na Bíblia o bode expiatório, quando por ocasião da
Festa da Expiação, eram oferecidos dois bodes ao Grande Sacerdote. De acordo com
um sorteio, um deles era imolado e o outro, carregado com os pecados do povo, era
mantido à porta do Tabernáculo. Este era submetido ao rito de expiação e em seguida
era levado para o deserto e abandonado. Segundo outras versões ele era atirado num
precipício. Assim eram purgadas as culpas da comunidade (CHEVALIER, 2006).
René Girard46 discorre sobre o tema “bode expiatório” em duas obras (1998;
2004) onde fala do processo de passagem da indiferenciação para a diferenciação
social, instituinte da cultura. A indiferenciação gera a rivalidade generalizada, que
ameaça o grupo social.
Concebendo as sociedades como eminentemente violentas, René Girard
(1998, p.184-185) tem como base para seu estudo a teoria do desejo mimético, que
consiste em que na relação dual sujeito-objeto ele insere um mediador; toda relação é
mediada por um outro. O sujeito deseja o objeto de um outro, e não o objeto em si
mesmo. Essa dinâmica ele chama de mimêsis de apropriação, imitação de apropriação.
A relação dos sujeitos estabelece a rivalidade mimética. E no desenrolar do processo,
essa rivalidade vai se tornar tão acentuada que a violência vai se incorporando no
núcleo do próprio desejo. Objeto, sujeito e desejo é uma coisa só; estão
indiferenciados. Essa indiferenciação é a gênese da violência.
46
Antropólogo e crítico literário. Nascido em Avignon, 1924.
42
A solução para a violência é o sacrifício vitimizador que polariza em uma
única vítima, o bode expiatório. Segundo Girard, essa solução não vem para acabar
com a estrutura do desejo mimético, que é imutável e universal, mas vem para
regulamentar ou racionalizar a violência. A vitima será sacrificada em nome do grupo.
Do “todos contra todos” para “todos contra um”. O bode expiatório é o cerne da
diferenciação primeira das sociedades: a comunidade de um lado e a vítima do outro
(GIRARD, 2004).
O bode expiatório morria por todos, no lugar de todos; através do sacrifício
todos se reconciliavam e poderia vigorar a paz. Através desse sacrifício fazia-se com
que a ordem que estava comprometida ou mesmo ausente se restabelecesse ou, mais
frequentemente, que uma nova ordem fosse estabelecida (GIRARD, 2004).
A dualidade presente no bode expiatório ou pharmakós reflete a
transformação onde a vitima ritual deve atrair toda a violência maléfica para
transformá-la, através de sua morte, em violência benéfica, sendo venerado, em paz e
fecundidade.
Girard (2004) aborda o que ele chama de “estereótipos de perseguição”,
para qualificar o bode expiatório e que seriam quatro esses estereótipos: uma crise
social e cultural, os crimes indiferenciadores, as marcas vitimarias e a própria
violência.
Uma crise social e cultural leva a uma perda do próprio social, o fim das
regras e das “diferenças” que definem as ordens culturais. As causas podem ser
externas como epidemias, inundação, seca extrema que acarretam uma situação de
fome; e também causas internas, como agitações políticas ou conflitos religiosos. De
43
acordo com o autor haverá desse modo uma circunstância favorável ao bode
expiatório, onde há uma indiferenciação generalizada.
Os crimes “indiferenciadores” ou faltas podem ser assassinatos, crimes
sexuais, incesto, violação, a bestialidade, crimes religiosos (como a profanação de
hóstias) e outros. Girard diz que:
“Todos esses crimes parecem fundamentais. Eles lesam os próprios
fundamentos da ordem cultural, as diferenças familiares e
hierárquicas sem as quais não haveria ordem social. Na esfera da ação
individual, eles correspondem, portanto, às conseqüências globais de
uma epidemia de peste ou qualquer outro desastre comparável.”
(GIRARD, 2004, p.22-23)
As marcas vitimárias dos autores desses crimes são apresentadas como um
critério de seleção vitimaria. Os traços universais de seleção da vítima seguem a
critérios culturais e religiosos e também físicos. As minorias étnicas e religiosas
tendem a polarizar com as maiorias. Temos aí um critério de seleção vitimaria relativo
a cada sociedade, mas que é transcultural em seu principio. Há uma pertinência das
vitimas a certas categorias particularmente expostas à perseguição, como por exemplo,
os judeus que na sociedade ocidental e moderna são frequentemente perseguidos
(GIRARD, 2004, p. 25-25).
Como já foi dito acima as marcas vitimarias podem ser físicas, como as
deformações genéticas, as mutilações acidentais, a doença, a loucura, e até as
enfermidades em geral. Mas não é só no domínio físico, como também em todos os
domínios do comportamento e da existência. A vítima é sempre alguém à margem da
sociedade, tanto de fora, dos miseráveis, como de dentro, dos ricos e poderosos47;
incluindo assim animal, criança, rei, estrangeiro, escravo, prisioneiro, bruxa, messias,
47
GIRARD, 2004, p.27.
44
indivíduos defeituosos ou ainda a escória da sociedade, como o pharmakós grego e
outros. A marginalidade representando uma característica da vítima.
E por fim como estereótipo a própria violência, o assassínio coletivo.
De acordo com René Girard não é necessário que os estereótipos estejam todos
presentes, três bastam ou até só dois, para concluir sobre a perseguição. O mesmo autor ainda
diz que os estereótipos de perseguição são indissociáveis, pois ao considerar a etimologia das
palavras crise, crime, critério e crítica, todas levam à mesma raiz, ao mesmo verbo grego,
Krino, que significa não só julgar, diferenciar, mas acusar e condenar uma vítima (GIRARD,
1998, p.32).
4.4 O Mito de Édipo e o pharmakós
O Mito de Édipo é considerado um mito exemplar na condição de bode
expiatório (pharmakós) segundo René Girard, onde os estereótipos persecutórios estão
presentes.
Há “uma crise” que, de acordo com Girard, se instala quando um novo
flagelo se abate sobre Tebas, ali estavam as Erínias48 em busca do parricida, pois o
assassino de Laio ainda não tinha sido punido. Vernant (2002, p.87) diz: “Tebas sofre
de um loimós49, que se manifesta por um esgotamento das fontes de fecundidade: a
terra, os rebanhos, as mulheres não geram mais; enquanto uma peste dizima os vivos.
Trata-se, portanto, de descobrir o criminoso que é a polução da cidade, seu agós, a fim
de expulsar o mal através dele, igual ao ‘ritual ateniense do pharmakós’ ”.
48
49
Divindades da vingança pelos crimes cometidos contra consagüineos.
Miasmas, também agós, áté, ará, Erinýs.
45
Mas também se pode ver uma crise no inicio do mito quando Laio afasta
Édipo com violência, de medo que seu filho tome seu lugar no trono de Tebas,
predição esta feita pelo oráculo. Laio trata logo de se livrar dele que de acordo com
uma versão, ele ordena que um pastor o leve para o Monte Citerão, onde deveria ser
abandonado. Mas este o entregou para um pastor de Corinto, Forbas, que o levou para a
corte de Pólibo, sendo por este criado como filho (7). Em outra variante, Édipo seria colocado
num cofre e lançado ao mar.
Os crimes indiferenciadores ou faltas, segundo Girard estão presentes em
Édipo no momento em que é responsável pela morte de seu pai, cometendo o
parricídio e ao desposar sua mãe, cometendo o incesto. Édipo ao atingir a maioridade,
parte de Corinto indo à busca de cavalos furtados do reino de seu pai Pólibo ou de
acordo com outra versão quando vai ao oráculo de Delfos para saber sobre sua origem.
A sacerdotisa Pítia50 do templo o expulsa dizendo-lhe que mataria seu pai e casaria
com sua mãe. Então Édipo não volta para Corinto e toma o caminho de Tebas. Aqui
aparece a figura da criança exposta, que têm também o sentido de ser abandonada e
que mais tarde vai querer conhecer sua origem, como Édipo fez.
Ao atingir um trívio na encruzilhada de Pótnias ele se encontra com uma
carruagem que vinha em sentido contrário. Era Laio e sua comitiva, este se dirigia
para o Oráculo de Delfos, pela quarta vez querendo saber como se livrar de uma
desgraça que abatera sobre Tebas, Eles disputaram a passagem e Édipo mata Laio
(BRANDÃO, v.3, 2002).
50
Pítia ou Pitonisa, a sacerdotisa de Apolo em Delfos, que transmitia os oráculos do deus.
46
Édipo continua sua caminhada e na entrada de Tebas dá o seu encontro com
a Esfinge, monstro feminino, que ao impor um enigma à juventude de Tebas a destruía
porque estes não conseguiam decifra-lo. Édipo vence a Esfinge e o povo de Tebas
exigiu que ele ocupasse o trono, casando-se em seguida com Jocasta. Édipo decifra o
enigma se reconhecendo nele, aí ele atualiza o bode expiatório.
Girard escreve que Édipo traz como marcas vitimarias a sua condição de
“coxo”, a qualidade de criança exposta, o fato de ser estrangeiro.
No Mito de Édipo destaca-se um traço comum às três gerações da linhagem
dos Labdácidas, que é um desequilíbrio do andar, um defeito em um dos pés, uma falta
de simetria entre os dois lados do corpo. Lábdaco51 o coxo; Laio52 o dissimétrico, o
torto; Édipo (Oidípous), aquele que tem o pé inchado. Segundo Vernant (2002, p.181)
ser “coxo” não está estritamente limitado a um defeito do pé, da perna ou do andar; se
estende simbolicamente a formas de condutas desviadas, desequilibradas. Na própria
marca vitimária se pode ver um “crime”.
Édipo, como filho de Laio vai se inserir na chamada “maldição dos
Labdácidas”, Laio herdou não só o trono de Tebas, mas principalmente as mazelas de
seus antepassados: Cadmo vivia com sua mãe Telefássa, depois Cadmo matou o
dragão de Ares; Lábdaco se opôs ao deus Díonisio do êxtase e do entusiasmo e Laio
que cometeu a harmatia ao raptar Crisipo (BRANDÃO, v.3,2002) .
Na Grécia antiga, as faltas eram chamadas de harmatía, esse termo quer
dizer “uma mancha que se espalha”; contamina, portanto, tudo o que está a sua volta.
Um dos membros do guénos (grupo familiar) comete uma falta e todos os membros
51
Segundo Marie Delcourt, seu nome estaria ligado a Labda, variante de lambda (l). Lambda quer dizer
‘cambaio, paralisado’, aquele que tem os pés voltados para fora.
52
De forma abreviada, Laio significa o mesmo que Laomedonte “rei do povo”.
47
deste guénos são de uma forma ou de outra, culpados e deverão expiar pela falta
(BRANDÃO, v.1, 2002).
A exposição, como fala Junito Brandão (2002, p.240) seria para sanar uma
hamartia ancestral, condição de bode expiatório nas origens, onde seu nascimento é
precedido de dificuldade, como a proibição de um Oráculo, ou como um castigo que
pese sobre a família; uma vez que põe em perigo a vida do pai ou do representante,
como uma ameaça ao poder constituído. A exposição da criança era feita no mar ou
numa montanha. No mar, seria o mergulho ou era colocado num cofre, cesto ou pote e
jogado ao mar. Na montanha era largado ali, e seria criado por pastores ou mesmo por
animais.
Girard (1998, p.125) diz que “segundo Marie Delcourt, Èdipo é exposto na
qualidade de bode expiatório por um pai que se chama Laio, ou seja, o Publius
(representante) do povo53”.
Édipo cego e condenado ao exílio, ainda permaneceu algum tempo em
Tebas, sendo expulso da cidade por seus filhos e foi guiado por sua filha Antígona.
Chegam a Colono, nas vizinhanças de Atenas; onde o informam que o chão que pisa é
consagrado as Eumênides54”. Como se vê, Édipo chega a Tebas após destruir a Esfinge
como um desconhecido de todos, é um estrangeiro e num segundo momento chega a
Atenas também na condição de estrangeiro, onde mesmo transformado em herói, ele
permanece à margem. Instala-se sobre uma fronteira, pois Colono é apresentado como
uma zona limite. Édipo cumpre seu destino, deixando de ser um “bode expiatório” do
guénos de Tebas para se tornar um “herói”, protetor de Atenas (VERNANT, 2002).
53
54
René Girard, A Violência e o Sagrado, 1998, p. 125 – nota 5.
O Bosque das Eumênides, divindades benévolas antes executoras da vingança divina.
48
Apresenta-se em seguida como outra marca vitimaria a cegueira de Édipo.
Girard (2004) não cita a cegueira ao falar de Édipo, mas inclui esta como um critério
de seleção da vitima. Édipo ao procurar o assassino de Laio para dizimar a peste,
manda vir até ele Tirésias, o adivinho; ao ouvir deste que ele era o assassino, não
aceita e só após falar com os dois pastores, o de Tebas que o expusera e o de Corinto
que o recolhera, ele se convence desta verdade. Como um louco dirigiu-se ao palácio,
onde pendia o corpo da mãe e esposa e, arrancando-lhe os alfinetes de ouro de suas
vestes, ele rasgou os próprios olhos.
A violência, como outro estereotipo que qualifica o bode expiatório, está
presente nos descritos anteriormente.
Segundo Vernant55, o Mito do Édipo mostra uma aproximação com o ritual
ateniense, uma vez que Édipo é apresentado de maneira explícita, como o agós, a
polução que é preciso expulsar. Diz que Édipo se define, sem querer, em termos que
evocam a personagem do bode expiatório: “Eu sei bem, diz ele aos suplicantes, que
vós sofreis, todos; e sofrendo assim, não há ninguém que sofra mais do que eu. Pois
vossa dor atinge cada um de vós, enquanto é um só, e ninguém mais, mas minha
pessoa (psykhé) geme ao mesmo tempo pela cidade, por mim e por ti”.
Vernant56 ainda fala da dualidade presente no pharmakós, sendo maléfico
enquanto encarna as potências do mal e benéfico suscitado pela reconciliação da
comunidade: “Édipo é duplo: rei “salvador” a quem, [...] todo o povo implora, como se
dirigisse a um deus que tem nas mãos o destino de sua cidade; mas também polução
55
56
Jean- Pierre Vernant, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 2002, p.91.
Jean- Pierre Vernant, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 2002, p.67.
49
abominável, que concentra em si todo o mal, e que é preciso expulsar como um
pharmakós, um bode expiatório, para que a cidade, de novo pura, seja salva”.
4.5 Autopatogenesia e o Pharmakós
A história da experimentação de substâncias medicinais simples e
infinitesimais, vivenciada pelo médico homeopata é como a história do pharmakós. O
provando pharmakós ao se submeter à autopatogenesia, disponibilizando suas próprias
sensações em espírito de serviço, assume um compromisso com o ideal comunitário de
confraternização com o outro. Ao se disponibilizar o provando vai se comungar, por
semelhança, com o outro. O pharmakós ou bode expiatório, como já foi dito era
sacrificado em beneficio da coletividade, chamando a catarse para si.
Bode expiatório na experimentação é o provando, enquanto corpo (body)
que se expia, ou expõe, catarticamente. Expiar é purificar, tornar-se puro de crimes ou
faltas, e ainda -pia é o sagrado, do latim sacráre, ‘dar caráter sagrado, dedicar’. Expor
é colocar-se à disposição de algo (ou alguém), é sujeitar-se à ação de algo (ou alguém),
é também tornar-se conhecido, revelar, apresentar 57. Expor é disponibilizar.
Autopatogensia é “sofrer a dor do outro”, sofrer no sentido de experimentar,
permitir. Permitir que a propriedade curativa de uma substância medicamentosa se
manifeste. Sofrer a dor do outro é comunicar com o outro por memória experimental, é
estar em comunhão com o outro.
57
HOUAISS, 2001, p. 1289.
50
Autopatogenesia é aprender em si mesmo, como o Centauro Quirão,
aprender a partir de seu próprio ferimento, se estabelecendo a partir do que o médico
homeopata, enquanto provando, percebe em si mesmo.
Vários foram os mestres dos heróis, mas o educador-modelo foi Quirão, o
mais justo dos Centauros, na expressão de Homero. Quirão, em grego Kheíron, nome
que é uma abreviatura de Kheirurgós, isto é, “o que trabalha ou age com as mãos, o
cirurgião” (BRANDÃO, v.2, 2003). O centauro Quirão, metade homem e metade
cavalo, era antes de tudo um médico famoso, mas o fato de ser um médico ferido, e
residir numa gruta evoca sua função mais nobre e indispensável aos jovens
“históricos”, sobretudo, aos heróis míticos, a saber, a ação de fazê-los passar por ritos
iniciáticos. Quirão fora ferido por uma flecha envenenada acidentalmente, por seu
amigo Herácles, e apesar de ser imortal, abriu-lhe uma ferida incurável e de
insuportável dor. A dor tornava-o mais sensível ao sofrimento dos homens, o que o
qualificava como prático curador. Quando o centauro pôde descansar, com a ajuda de
Prometeu que lhe cedeu seu direito à morte, a “mão” tornou-se céu a constelação de
Sagitário, que é termo relativo à seta, símbolo de indicação (CRUZ, 2006a).
Na autopatogenesia o médico homeopata se submete voluntariamente, é por
adesão e não por imposição; o sacrifício aqui é um ato livre e não como algo
obrigatório. Hahnemann em uma de suas cartas para E. Stapf, segundo Richard. Haehl
58
, diz que somente aqueles indivíduos imparciais para quem a verdade e a felicidade
da humanidade são de algum valor e que desejam sua própria liberdade “farão o
sacrifício necessário de trazer à luz aqueles tesouros impenetráveis” de efeitos de
58
Carta de 17 de Dezembro de 1816. Haehl, 1999, v. 1, p. 466.
51
medicamentos. Sobre a disponibilização não recaí quaisquer imposições e cada
provando deve se conservar livre; de acordo com a sua motivação - “emotion” – ele se
coloca segundo o “melhor possível”59 .
A disponibilização é um comportamento de saúde, como Cruz e Gouveia
falam: “A disponibilização do psiquismo capacita a saúde porque a saúde representa o
fluxo desimpedido da vida que por sua vez representa a emanação dinâmica que
continua o UM no Todo (2007, p.7 -8). E ainda dizem que “a disponibilização é o que
se pode chamar de experiência do suposto UM, como a disposição “aí” nas coisas, [...]
(2007, p. 8).
Em serviço de autopatogenesia, disponibilizar o próprio psiquismo é o
sofrer “na própria carne” miticamente. Tântalo serviu as carnes de seu filho em um
banquete aos deuses desejando testar a onisciência dos deuses sabendo que não
convinha aos deuses comer carne humana. Serviu o “outro” o que não agradou aos
deuses e foi então lançado no Tártaro e condenado para sempre ao suplício da sede e
da fome (BRANDÃO, v.1, 2002). O mito de Tântalo corresponde à patogenesia, ou
seja, a experiência do outro, que como já visto não é a melhor, não serve a
humanidade.
Disponibilização implica capacitação. Dispor é também preparar-se. A
capacidade de observação de um provando ao se disponibilizar nunca é completa como
uma faculdade inata devendo ser adquirida pela prática através do refinamento e ajuste
das percepções dos sentidos (HAHNEMANN, 1998, v.2, p.LXVIII).
O médico homeopata enquanto provando aprende a ser um observador e se
adestra em bem observar, ou seja, se capacita através da realização de
59
“Princípio do melhor” em Leibniz.
52
autopatogenesias como Mársias no mito (CRUZ, 2006a). Alguns autores dizem que
ele foi o inventor da flauta, outros dizem que a inventora da flauta foi Atena, esta a
atirou para longe quando viu num lago como sua face ficava feia e deformada ao tocar
a flauta. Mársias apanhou-a e aprendeu a tocar tão bem, que ousou desafiar Apolo. Ele
adquiriu grande habilidade e virtuosidade pelo exercício e esforço com a flauta
(BRANDÃO, v.2, 2003).
Hahnemann (1998, v.2, p.LXVIII) diz que para a capacitação do médico é
útil o conhecimento dos melhores escritos dos gregos e romanos, o que lhe permitirá
atingir “integridade” no pensar e no sentir e também simplicidade em expressar suas
sensações; também a arte de desenhar é proveitosa, ensinando a representar o que se
observa verdadeiramente e puramente, sem fantasias. E finalmente, um conhecimento
de matemática é útil, pois “dá a severidade necessária ao formar um julgamento”
(ROCHA; DEUSDARÁ, 2005).
O provando ao disponibilizar para o registro da prova, suas próprias
sensações, ele não deve julgar o que quer que seja, e tão pouco desprezar de vez que
tudo tem sempre seu proveito. Nada deve escapar de sua observação. Ao adquirir a
capacidade e o costume de perceber cuidadosamente e corretamente os fenômenos que
ocorrem no processo experimental o médico provando terá a mesma percepção ao lidar
com os fenômenos que ocorrem nas doenças naturais.
Na autopatogenesia cada provando se esclarece voltando para si mesmo;
deve-se conhecer com sua própria verdade, sendo que nenhum outro provando e nem
outro instrumento externo lhe revelará tão bem o suficiente a ser conhecido e que cada
53
provando deve ser compenetrar de que a revelação do saber é um processo de
descobrimento do que há de oculto nele mesmo (BEIER, 2000; CRUZ, 2006a).
A produção revelada nas autopatogensias é regular, podendo ser direta ou
indireta a revelação da virtude curativa do medicamento.
A revelação se dá
diretamente através de estados alterados de consciência do provando que a negam ou
que a positivam em sua própria consciência, de vigília ou de sono, com suspensão do
juízo.
Como síntese, a virtude curativa corresponde ao UM do medicamento.
Indiretamente ela ocorre através de roupagens ou máscaras sensíveis da síntese, que
dialeticamente podem ser reconhecidas avaliando-se semelhanças e diferenças em
busca dessa síntese. Como DOIS, corresponde a sintomas estruturais, comuns, que
ajudam na compreensão dinâmica do medicamento. A Autopatogenesia revela o UM,
ordenador e regular; e o DOIS do medicamento, estrutural e vário, que muitos
medicamentos podem compartilhar (CRUZ, 2006a).
A certeza matemática de que Hahnemann nos fala é a memória
experimental de cada um, é o que cada provando sente como ele afirma no final do
parágrafo 141: “Ele sabe, com toda a certeza, o que ele percebeu em si mesmo”.
Somente assim é possível para o provando fazer observações puras, corretas e sem
perturbações, pois como escreve Hahnemann (1998, v.2, p.LXIX) “ele sabe que não
enganará a si mesmo, que não há alguém para lhe dizer qualquer coisa que seja falsa, e
que ele próprio sente, vê e percebe o que acontece dentro e sobre ele.”
Aquele que experimenta sabe do verdadeiro valor do conhecimento de
certeza proporcionado pela experiência. Hahnemann, o único no início a fazer das
experimentações de substâncias medicinais puras a mais importante de suas atividades,
54
afirma que através de cuidadosas auto-experimentações se obtém os únicos e legítimos
ensinamentos sobre substâncias medicamentosas e que desse modo “a atividade
terapêutica, então, aproximar-se-á, no que tange à fidedignidade, das ciências
matemáticas” 60.
Hahnemann considerava indispensável que o próprio médico preparasse os
medicamentos com suas próprias mãos , em regime de auto - experimentação, para se
obter o conhecimento de certeza sobre o necessário a ser conhecido relativamente as
virtudes medicinais curativas (CRUZ, 2006a). Pode-se compreender “mãos” como
“modos”, ou seja, a necessidade do provando de estar atento à promoção dos próprios
modos. Nos modos dos provandos, de pensar e de sentir, é que residem os elementos
necessários para o reconhecimento da vocação de remédio das substâncias
medicamentosas experimentadas. Esse é o “Mito Hanemanniano da Mão”, conforme o
parágrafo 265 do Organon:
Para ele é uma questão de consciência estar convencido de que, em
cada caso, o doente está tomando o medicamento adequado, devendo,
portanto, ele mesmo dar ao doente o medicamento corretamente
escolhido e preparado por suas próprias mãos*.
(HAHNEMANN, 1996, p. 224)
O provando médico ao disponibilizar as próprias sensações satisfaz a
condição de pharmakós porque disponibiliza sua própria dor para configurar a matéria
médica com a qual auxiliará, mediante aplicação da memória sintética experimental
semelhante, no desimpedimento do fluxo da vida. Assim ele encontrará uma maneira
pela qual pode remover as enfermidades dos seus semelhantes, com precisão, rapidez e
permanentemente.
60
HAHNEMANN, 1996, p.165, § 145*.
55
Junto com a sua experimentação e sua aplicação clinica, o provando vai
construindo a sua Matéria Medica – verdadeira e pura, conforme o parágrafo 143:
Quando se tiver experimentado, desse modo, um número considerável
de medicamentos simples em pessoas sadias e cuidadosa e fielmente
registrado todos os elementos mórbidos e sintomas que eles próprios
são capazes de produzir, na qualidade de potências morbíficas
artificiais, somente então se terá uma verdadeira Matéria medica uma coletânea por si só dos legítimos, puros e fidedignos* modos de
ação das substâncias medicamentosas simples, um “Codex” da
natureza, em que, correspondendo a cada medicamento potente assim
pesquisado, está registrada uma série considerável de mudanças
peculiares da saúde e sintomas, tal como haviam sido revelados à
atenção do observador, nos quais existe semelhança com os
elementos mórbidos (homeopáticos) de várias doenças naturais a
serem curadas por eles no futuro e que, em uma palavra, contêm
estados mórbidos artificiais que proporcionam, por sua similitude com
os estados naturais, os únicos, verdadeiros, homeopáticos, isto é,
específicos meios de cura para um
restabelecimento certo e
duradouro.
(HAHNEMANN, 1996, p. 164)
O aprendizado com a experiência se equivale ao aprendizado com a
Natureza, onde os sintomas são vozes da Natureza. O médico prático sabe que a
Natureza, que ele experimenta, o habilita no conhecimento de meios de cura para
reconhecimento da doença natural individual. A autopatogenesia é por si só suficiente
para o médico provando, “suficiente” para que como homeopata aplique, sem
preconceitos, em sua clinica o medicamento experimentado. Desse modo é importante
valorizar os sintomas experimentais- o modo de pensar e de sentir do experimentador-,
mas infelizmente esta produção ainda hoje é menosprezada por exigências
protocolares e preconceitos teóricos61.
Fazer (“labor”- method of working) experimentação é um fenômeno natural
que encontra a regularidade na Natureza e pode ser apresentado como um modelo
61
CRUZ , 2006a, p.126.
56
universal. Assim pode existir em qualquer lugar, é comum, comunga. Desse modo a
homeopatia é sempre possível, é possível para todos. Aqui se insere o bode expiatório
ou pharmakós.
A Autopatogenesia é um recurso de autopromoção em autoconhecimento e
de melhoria do estado de saúde. (CRUZ, 1999, p.62) (PEIXOTO, 2002). Promove a
saúde, através da experiência, que é sensiva, recuperando memória ideal e também o
provando se beneficia quanto à melhoria da capacidade de conservação de sua saúde
(CRUZ, 2006a). A sensibilidade, os enfrentamentos, isso tudo torna o indivíduo mais
individualizado, mais centrado. É um exercício socrático, em que há um
“desnudamento da alma”, em que visa provar a alma e leva-la a dar conta de si, dar
conta de sua própria vida, conhecer com a sua verdade (REALE, 1993).
Em Mênon, Sócrates demonstra que nada aprendemos, mas apenas
recordamos de conceitos que já sabíamos através de nossa alma.
Em um trecho deste diálogo Sócrates diz:
E se a verdade das coisas que são está sempre na nossa alma, a alma
deve ser imortal, não é?, de modo que aquilo que acontece não saberás
agora – e isto é aquilo de que não te lembras – é necessário, tomando
coragem, tratares de procurar e de rememorar.
(MÊNON/ PLATÃO, 2005, p.67)
Cada um deve buscar em seu interior o conhecimento suficiente para
mediar o reconhecimento em sua prática; sendo necessário como Sócrates disse acima
ter coragem. Coragem de permitir que a linguagem da Natureza se revele em cada um,
de se expor como um pharmakós. Este deve ser o comportamento do médico
homeopata para que torne plena de arte a ciência de curar.
57
5 CONCLUSÃO
O pharmakós era sacrificado em beneficio da coletividade, um ritual antigo
na experiência humana, interpretado como um meio de purificação da comunidade que
experimentava uma ameaça. O médico homeopata pharmakós ao se disponibilizar se
sacrifica em beneficio da coletividade, em regime de comunhão, no sentido de “pôr-se
a serviço de”, de “dar-se ou doar-se”.
No contexto histórico-cultural, através de todos os tempos, havia sempre um
pharmakós à disposição da coletividade, pronto para servir. O médico provando
pharmakós também se coloca à disposição, ou seja, disponibiliza-se para o processo
colocando-se a serviço da prova. A qualificação do processo de autopatogenesia se
realiza com modos através da suspensão de juízo, onde o provando deve melhorar os
próprios modos e também a disponibilização. É um exercício de auto-reflexão, com
recondução permanente da observação.
A história de cada médico homeopata provando, ou seja, o seu registro pode
ser compreendido como um mito, contado pelo comportamento pharmakós. O mito e a
autopatogenesia são histórias contadas de acordo como o potencial de cada um e com
o momento. Mito e Autopatogenesia são poderosos instrumentos de revelação que
estão orientados à serviço do autoconhecimento.
Com base na experiência vivenciada pelo laboratório de Psicologia
Experimental de Autopatogenesias do Instituto Mineiro de Homeopatia e nos
ensinamentos hahnemannianos foi possível distinguir no Mito de Édipo, considerado
58
um mito exemplar na condição de bode expiatório ou pharmakós, duas fases e
posteriormente fazer um paralelo com a homeopatia.
A primeira fase corresponde a uma visão de mundo sensível em que
semelhante mais forte destrói semelhante mais fraco; esta equivale ao enfoque
experimental conhecido como “patogenesia”, que ainda pode ser considerado como
um processo em que se busca conhecer a verdade através da verdade do “outro”. A
segunda fase é aquela em que se adquire uma visão de mundo inteligível, é o “cegar as
próprias vistas”; correspondendo ao processo de autopatogenesia - a experiência em si
mesmo - fundamentado em auto-conhecimento (anagnórisis) para reconhecimento do
“outro”, processo em que se otimiza a humanização de mundo por disponibilização da
própria dor.
Ao realizar experimentações de substâncias medicinais simples, em regime
de autopatogenesia, o médico homeopata se torna melhor como individuo e melhora a
sua própria saúde, enquanto ele é o próprio medidor. A experiência pura não prejudica
a saúde e , ao contrário, a capacita exercitando o fundamento básico da fenomenologia
que disponibiliza o UM no mundo. É através da memória sintética experimental que o
médico vai se comunicar com o outro, com semelhança ou fraternidade, permitindo
desse modo a promoção da saúde em terceiros satisfazendo assim a condição de
pharmakós.
Convém que o médico homeopata seja um provando pharmakós, cada um a seu
modo; o suficiente para que através da memória sintética experimental semelhante possa
reconhecer e intervir em um caso particular de alteração de saúde e alcançar, de acordo com
Hahnemann, o mais alto ideal de cura que é o restabelecimento rápido, suave e duradouro
pelo caminho mais curto, mais seguro e menos prejudicial.
59
O provando deve permanecer confiante em si mesmo, livre o mais possível,
de qualquer influência normatizadora que possa afastar a autopatogenesia de sua
natureza universal, de sua simplicidade e de sua condição de legado a todo e qualquer
homeopata.
O médico provando pharmakós é aquele que está comprometido com a experiência
de “estar no meio” voluntariamente. Ele se submete a experiências puras de substâncias
medicinais simples e infinitesimais, em beneficio próprio e ao bem da humanidade,
racionalizando o empirismo da medição e mediação das perturbações de saúde.
60
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65
ANEXO
Questionário
Experiência de Médicos Homeopatas com a Autopatogenesia
a- Nome: ----------------------------------Telefone: ------------------------------E-mail: --------------------------------b- Cidade: ( ) Belo Horizonte
( ) Outra ------------------c- Onde foi sua formação como médico homeopata : -----------------------Desde quando pratica Homeopatia? ---------------------------------------d- Após a sua formação, fez alguma outra atividade dando continuidade ao seu
aprendizado:
( ) Docência - Quando ? ----------------- Concluiu ou não? -------------------------( ) Supervisão – Quando e por quanto tempo ? ----------- Ainda continua? -----( ) Outras - Quais ? -------------------------------------e- Locais onde atua como médico homeopata :
( ) consultório particular
( ) ambulatório serviço público
( ) hospital
( ) serviço de urgência
( ) outros
f- ( ) Já experimentou medicamentos e continua até o momento.
( ) Já experimentou medicamentos mas não experimenta mais.
g- No caso de continuar experimentando medicamentos:
( ) Participa de algum grupo de experimentação
Qual grupo? Como é formado? Qual a regularidade dessas experimentações? Como
escolhem os medicamentos a serem provados? Dose? Os registros são feitos
regularmente? São feitas reuniões para discussões dessas experimentações?
( ) Não participa de nenhum grupo de experimentação
Experimenta sozinho ou com mais pessoas? Qual a regularidade dessas
experimentações? Como você escolhe os medicamentos a serem experimentados ?
Dose? Os registros são feitos regularmente?
h- No caso de não experimentar mais, por que deixou de provar?
i- O que é ou foi para você participar de um grupo de experimentação?
j- Para você o que é Autopatogenesia?
k- Qual foi a motivação inicial que o levou a fazer experimentações de medicamentos?
66
l- Há interferência na sua capacitação (qualificação) devido à experiência de provar
medicamentos?
m- No que diz respeito à aplicação clínica de suas experimentações de medicamentos:
( ) Aplica muitas vezes ( ) aplica pouco ( ) aplica raramente ( ) não aplica
n- Para você há alguma diferença, quando aplica um medicamento de suas próprias
provas, em relação aos medicamentos de outras Matérias Médicas ? Se sim, quais são
essas diferenças?
o- Caso queira acrescentar mais comentários a respeito do tema o espaço está aberto.
Termo de Consentimento:
Essa pesquisa tem por finalidade conhecer dados sobre a experiência de médicos
homeopatas com Autopatogenesia, no que diz respeito à prática desta e sua aplicação na
clínica dos mesmos. Os dados que forem apresentados com essa pesquisa não identificarão a
pessoa que respondeu ao questionário. Qualquer dúvida entrar em contato com Vânia pelo
telefone (31) 3283-4092 ou com IMH pelo telefone (31) 3332-9417 ou ainda através do email: [email protected]
Eu, ------------------------------------------------ após ter sido esclarecido, aceito participar
dessa pesquisa, voluntária e livremente, e autorizo a plena publicação dos dados coletados,
sendo preservado sigilo e garantida minha privacidade.
Estou ciente que tenho total liberdade para participar ou não.
Belo Horizonte,
de
2005
Download

o comportamento de pharmakós do médico homeopata na