ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Configurações Estéticas – Setembro/2014
A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS EM INTERFACE COM A DANÇA
Tatiana WonsikRecompenza Joseph (UFSM)*
RESUMO: O texto é uma reflexão sobre a pesquisa “O gesto na dança e o corpo poético
na língua brasileira de sinais: interfaces possíveis”, realizada como Projeto de
Desenvolvimento Científico Regional, em Cuiabá e microrregião, com parceria entre a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Mato Grosso, CNPq e Universidade
Federal do Mato Grosso. Discutem-se interfaces entre a dança e a língua de sinais, gesto
e corporeidade. Os referenciais teóricos utilizados foram Merleau-Ponty, Rudolf von
Laban, Ronice Quadros, Nelson Pimenta.
PALAVRAS-CHAVE: Dança. Língua de Sinais. Gesto. Corporeidade.
THE BRAZILIAN SIGN LANGUAGE TO INTERFACE WITH THE DANCE
ABSTRACT: The textis a reflection on the survey "the gesture in dance and the poetic
body in Braziliansign language: possible interfaces", performed as Regional scientific
development project in Cuiaba and region, with a partnership between Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Mato Grosso, CNPq and Federal University of Mato
Grosso. It discusses interfaces between dance, signlanguage and gesture and corporality.
The theoretical references used were Merleau-Ponty, Rudolf von Laban, Ronice Quadros,
Nelson Pimenta.
KEYWORDS: Dance. Signlanguage. Gesture. Corporality.
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Apresentação
A pesquisa relatada aqui é parte de um mergulho na língua de sinais iniciado há
doze anos, em 2002, e que se mantém até os dias de hoje, sempre com o olhar para a
sua transformação poética em dança. Neste percurso, discussões sobre relações entre a
língua de sinais, gesto e corporeidade estiveram presentes, concomitantes aos processos
criativos experimentados, os quais articulam materialidade da LIBRAS com estudos da
dança. A maneira como isto é feito progride atualmente para uma metodologia de trabalho
em dança com a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), a qual conta com a elaboração e
aplicação de recursos visuais e gráficos que foram nomeados pela pesquisadora de
“jogos coreográficos”. A comunicação feita no Comitê de Dança em Configurações
Estéticas, em ocasião do III Congresso da Associação Nacional de Dança –ANDA 2014
foi uma ilustração com aplicações (possíveis) destes jogos. Do ponto de vista dos
resultados alcançados, faz-se um relato da pesquisa “O gesto na dança e o corpo poético
na língua brasileira de sinais: interfaces possíveis”, realizada como Projeto de
Desenvolvimento Científico Regional, em Cuiabá e microrregião, financiada pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Mato Grosso e Conselho Nacional de
Desenvolvimento e Pesquisa (CNPq) em parceria com a Universidade Federal do Mato
Grosso. Esta pesquisa teve duração de 18 meses1, devido à mudança de estado para o
Rio Grande do Sul (onde atualmente tem continuidade com novas reformulações).
Contexto da pesquisa
Esta pesquisa foi realizada em Cuiabá e microrregião, com surdos e ouvintes de
Cuiabá, Várzea Grande, Sinop, Campo Novo do Parecis, Pontes de Lacerda, Tangará da
Serra, Nova Xavantina, Vila Bela de Trindade e Poconé. Trata-se de um público que
forma parte importante da comunidade surda, com professores e alunos de escolas
inclusivas e escolas especiais, alunos da Universidade Federal de Mato Grosso
(ouvintes), intérpretes e instrutores da Língua Brasileira de Sinais. Contou com a oferta de
um curso de cem horas para surdos e ouvintes, e com duas oficinas de vinte horas para
surdos que viajavam do interior do Estado de Mato Grosso para a capital, dentro de várias
ações educativas realizadas pela Secretaria de Educação Especial/MT (Seduc). Os
1
Esta reconfiguração social refere-se à mudança de um status de pesquisadora bolsista pelo CNPq,
atuando junto ao Programa de Pós-Graduação Estudos Culturais do Contemporâneo (ECCO) para o status
de professora adjunta dentro da Universidade Federal de Santa Maria, como professora concursada.
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espaços físicos utilizados foram o Centro Estadual de Atendimento e Apoio ao Deficiente
Auditivo Profa. Arlete Pereira Migueletti (CEAADA), atualmente uma escola estadual
bilíngue, o Centro de Apoio e Suporte à Inclusão da Educação Especial (CASIES) –
ambos atendem a surdos de todo o Estado do Mato Grosso- e a Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).
A pesquisa foi realizada entre outubro de 2011 e abril de 2013, e contou diferentes
grupos: de surdos, de ouvintes e grupos mistos (surdos e ouvintes).
Um pouco sobre a Língua Brasileira de Sinais
A Língua Brasileira de Sinais –LIBRAS- é uma língua de modalidade visual-motora,
que foi reconhecida “como meio legal de comunicação e expressão “dos surdos pela Lei
10436, de 24 de abril de 2002. O texto da lei afirma, em parágrafo único, que
Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS a forma de
comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visualmotora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de
transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do
Brasil (Lei 10.436).
Trata-se de uma língua com estrutura própria, com uma gramática que se orienta e
se organiza espacialmente. Com a Lei 10.436 e o decreto 5626 que a regulamenta, houve
uma maior divulgação da LIBRAS devido à sua obrigatoriedade nos espaços da educação
como direito de acessibilidade ao surdo, que depende de sua língua natural para adquirir
conhecimento científico, cultural, humano, enfim, e todos os demais mecanismos sociais
que uma língua permite vivenciar. Existe uma grande divulgação da história da educação
dos surdos, resgatada como parte fundamental para a compreensão de seu processo
linguístico. É frequente, na literatura específica2
fazer-se referência ao Congresso
Mundial de Surdos em Milão, ocorrido em 1880, quando se definiu a corrente oralista para
a educação dos surdos. Desde aquela época as línguas de sinais foram proibidas e
estigmatizadas porque não eram reconhecidas como línguas. Em 1960 são iniciadas as
pesquisas linguísticas, com William Stokoe que demonstra ser a língua de sinais uma
língua genuína, no léxico e na sintaxe e na capacidade de gerar um número infinito de
proposições: “Stokoe convenceu-se de que os sinais não eram figuras, e sim complexos
símbolos abstratos com uma estrutura interna complexa.” (SACKS,1990, p.85). Stokoe
2
Ver Kojima e Segala (2008), Quadros eKarnopp (2004); Brito (1993), Quadros e Cruz (2011).
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reconheceu três partes independentes na formação dos sinais: a localização, a
configuração de mãos e o movimento executado. Em 2004, Ronice Quadros 3 esclarece
que atualmente são reconhecidos cinco parâmetros fonológicos na estrutura gramatical
da língua de sinais: configuração de mão, ponto de locação, movimento, orientação da
mão e expressão não manual. Isto apenas para falar de fonologia. A gramática da
LIBRAS oferece um cabal enorme de possibilidades que podem ser exploradas em
processos criativos em dança, como componentes da morfologia e da sintaxe, através de
diferentes tipos de textos como poesias, piadas, narrativas infantis, textos formais. Para
este trabalho escolhemos apenas alguns dos aspectos da gramática da LIBRAS, que
serão apresentados ao longo do caminho. Em 1971 aconteceu o Congresso Mundial de
Surdos em Paris; neste evento as línguas de sinais4 foram novamente valorizadas,
destacando-se o fracasso da educação oralista. Com os avanços dos estudos linguísticos
pôde-se comprovar que as línguas de sinais são naturais5: “As línguas de sinais são
visuoespaciais e fazem uso de recursos diferentes dos usados nas línguas orais; no
entanto, apresentam organização formal nos mesmos níveis encontrados nas línguas
faladas” (QUADROS e CRUZ, 2011, p.09).
Apesar da Lei supracitada e do seu consequente ingresso nas Universidades,
ainda há um grande desconhecimento da LIBRAS, o que demanda esclarecer, muitas
vezes, o ouvinte a respeito de suposições equivocadas sobre sua materialidade e,
portanto, de sua potencialidade poética para a dança como um caminho dentro dos
processos criativos. Em meu trabalho de doze anos de pesquisa com a língua de sinais
para sua transformação em dança, deparo-me com falas que tendem a relacionar o objeto
língua de sinais no contexto da dança como algo específico para processos inclusivos ou
como tema próprio da educação especial. Reitero, deste modo, que esta pesquisa é uma
pesquisa em processos criativos, e não em educação especial. Não deixo de considerar,
porém, os discursos provenientes desta e de outras áreas, como a linguística, assumindo
3
Linguista que estuda a sintaxe da LIBRAS e fez um importantíssimo estudo da Língua Brasileira de Sinais
a partir de uma comparação com a Língua de Sinais Americana.
4
Existem tantas línguas de sinais quanto línguas orais. É comum ouvintes que desconhecem a realidade do
surdo acreditarem que a língua de sinais é única; mas este é um equívoco fadado a ser esclarecido com a
própria Lei 10436, que está possibilitando a divulgação linguística da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).
5
As linguas naturais são aquelas que podem ser adquiridas pelas crianças, de forma natural e inconsciente,
através da interação com os seus falantes (no início da vida, principalmente com os pais), permitindo-lhes o
desenvolvimento linguístico e cognitivo e servindo de suporte para a aprendizagem de outras línguas e todo
o género de conhecimentos.
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um comprometimento ético mais do que um enquadramento estético. Do ponto de vista
artístico, não se trata de reproduzir a língua de sinais em cena, pura e simplesmente, ou
mesmo, neste momento, de utilizar da língua de sinais como espécie de citação estética
intercultural6. Minha proposta é uma reelaboração estética da língua de sinais em dança,
de modo que muitas vezes sequer se reconhece onde está a língua de sinais nos
resultados cênicos, mas cujo processo está imbricado em sua essência. Para tanto, é
impossível, para mim, entender como isso seria possível sem o mergulho na própria
língua e, portanto, sem a imersão na cultura surda. Ou seja, os surdos estão presentes na
pesquisa o tempo todo, em interface comigo e com os grupos de ouvintes com que
também trabalhei, sendo que foram aplicados os mesmos procedimentos
-os quais
contam com os elementos da gramática da LIBRAS.
Atualmente há um grande movimento em prol do respeito às línguas de sinais e da
educação
bilíngue,
que
garante
tanto
o
letramento
em português quanto
o
desenvolvimento em língua de sinais. O trabalho do ator e pesquisador surdo Nelson
Pimenta é uma referência, com o desenvolvimento de materiais especializados em
LIBRAS. Vale a pena ressaltar mais alguns aspectos expressivos da língua de sinais,
visto que muitos não conhecedores da mesma ainda confundem língua de sinais com
gestos e mímica. O gesto, no sentido comum, é parte integrante da língua e da expressão
humana: é melhor não confundirmos a língua de sinais com linguagem gestual, em
respeito à história do surdo e de sua árdua conquista pelo seu direito linguístico.
Considerar a língua de sinais como uma “forma de expressão artística” é uma ocorrência
desde o século XIX. Lucinda Ferreira Brito, uma das linguistas pioneiras na pesquisa com
língua de sinais no Brasil, conta que quando iniciou sua pesquisa em 1979 encontrava
“pessoas falando sobre mímica (e não língua de sinais), e o assunto era tido como tabu”
(BRITO, 1993, p.2). Segundo a autora, na época se considerava que o papel dos
psicólogos era mais importante do que o papel dos linguistas. Do ponto de vista
linguístico, a língua de sinais não é mímica, nem uma “expressão gestual”. Ela é
acompanhada por expressão gestual, como a fala oral, mas tende a se tornar gramática
através da expressão facial e corporal. De fato, este componente corporal e facial é
fundamental para a língua, e sem ele a língua não existe. A expressão facial e a direção
dos olhos complementam a organização do espaço e do tempo, além de todo o conjunto
6
Este recurso pode ser encontrado em trabalhos de grupos como Cia 9, entre outros.
5
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de significações oferecidas pela língua. Fazemos aqui uma diferença entre língua e
linguagem, entendendo a língua como um sistema estruturado e codificado, e a
linguagem como intercomunicação de múltiplas naturezas entre sujeito e mundo, sendo
língua uma delas, e dança, outra. Neste sentido, a linguagem abrange outras formas de
expressão (ou comunicação) e a língua refere-se ao sistema de comunicação verbal. No
entanto, língua e linguagem estão intimamente associados. Linguistas demonstram que a
língua de sinais não é gesto, e não é uma “mistura de pantomima e gesticulação concreta,
incapaz de expressar conceitos abstratos” (QUADROS & KARNOPP, 2004, pp.31-36). No
entanto, dentro do contexto da dança, os sinais passam a ter uma significação de gesto.
Muitos também confundem a língua de sinais com a mímica, devido à sua característica
corporal, expressiva e espacial. Em muitos contextos, trata-se de construir imagens no
espaço: como exemplifica Segala (2008), o surdo, ao escrever a lista (de supermercado)
pensa primeiro no arroz, na embalagem com as cores, a marca, o tamanho. Ele projeta,
em sua mente, a imagem. Para cada produto, vê antes suas formas, tamanhos, cores e
tipos. Dada esta característica, muitas das imagens construídas podem ser reconhecidas,
o que faz parte de um entendimento do léxico em LIBRAS. Pode ser citado como exemplo
o relato de uma surda, durante a pesquisa, sobre sua visita a um engenho, quando ela
narra todo o processo de fabricação da rapadura, desde a moagem da cana até a prova
do gosto do doce ao final. Foi impressionante o seu desempenho em LIBRAS, e a
maneira como se fez entender com naturalidade, apesar de sua vivência recente com a
LIBRAS. Isto se explica devido à experiência visual que faz parte da maneira particular
dos surdos receberem o mundo, em relação aos ouvintes, e de interferirem no mundo
com sua linguagem. Gramaticalmente, chama a atenção o uso dos chamados
classificadores na língua de sinais. Esta especificidade da língua de sinais é bastante
complexa, sobretudo para falantes de uma modalidade oral como a nossa. Não se
poderá, aqui, esclarecer ao leitor sobre a definição e o uso dos classificadores
plenamente do ponto de vista linguístico, pois que as informações linguísticas aqui
reunidas o foram para fomentar a reflexão sobre esta nova área da linguagem, já que são
novidades no campo de pesquisa em artes. Do ponto de vista da dança, aproxima-se da
relação effort/shape proposta por Laban, dado que um tipo de classificador é aquele
quando o sinalizador incorpora referenciais da fala. Por exemplo, em uma piada surda em
que o sinalizador conta sobre três espadachins chineses, e com o corpo ele demonstra
6
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cada um dos espadachins descrevendo-os através do uso deste próprio corpo: um é
gordo, com cabelo comprido e uma espada fina, o outro é forte, careca e com uma
espada com a lâmina larga, o terceiro tem uma faixa a cabeça, é magro e a lâmina de sua
espada é larga de um lado e estreita de outro. Todas estas informações são passadas
através do recurso em que o sinalizador incorpora cada uma das personagens, ou seja,
assume a forma de cada uma delas em seu próprio corpo e situa cada uma delas em um
ponto diferentes do espaço (campo de enunciação).
Compreender esta proposta de interface entre a dança e a língua de sinais é
completamente diferente do que se faz comumente, entre ouvintes com os corais de
surdos. Cabe sublinhar, a respeito da arte e cultura surda que, segundo Strobel (2008), a
música não faz parte da cultura surda, embora os sujeitos surdos possam e tenham o
direito de conhecê-la como informação e como relação intercultural. Não se quer aqui
reincidir no que, segundo a autora, tem acontecido com frequência, que é a apresentação
de danças, corais e balés próprias da cultura ouvinte. Strobel afirma que melodias e
ritmos harmoniosos não foram criados pela cultura surda e sim pelos grupos ouvintes.
Esta advertência vale para a formação de corais de língua de sinais, prática criticada pela
autora porque não representa a cultura surda e muitas vezes é a produção de um
português sinalizado e não de uma tradução de fato para a LIBRAS.
Passemos à pergunta do como transformar a língua de sinais em dança,
desconfigurando-a conscientemente enquanto língua para uma nova configuração
estética na dança? E como estabelecer as relações entre prática e teoria a partir de um
reconhecimento do corpo poético na própria língua de sinais? A resposta a estas
perguntas é o que resulta no presente artigo.
Interfaces entre a LIBRAS e a dança: dimensões do corpo no espaço
Uma das características mais presentes no desenvolvimento dos processos
criativos em dança com a gramática da LIBRAS, dentro desta pesquisa, é o procedimento
adotado com todos os grupos com que trabalhei está baseado em uma relação simples
de uma analogia entre a macro-estrutura do corpo na dança refletida por uma microestrutura do corpo na forma da mão na língua de sinais. Na dança, temos o corpo-espaço
como uma realidade expressiva que se estabelece de acordo com a contração ou
expansão da cinesfera, que é “a esfera de espaço em volta do corpo do agente na qual e
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com a qual ele se move. O centro da cinesfera é o centro do corpo do agente, e/ou o
corpo todo do agente* é a locação central da cinesfera”. (RENGEL, 2003,p.32). SILVA
(2002) esclarece, sobre a cinesfera, que
Pode-se entendê-la imaginando o corpo do sujeito envolvido por uma esfera na
qual a periferia pode ser atingida pela amplitude dos movimentos deste, tomando
por base a posição ereta, sem o deslocamento de seu ponto de suporte, que
poderá residir em uma das pernas. A kinesfera, de acordo com Laban e Arruda
(1988), entre outros, irá se formar com a união dos elementos Níveis, Planos e
Dimensões. Ampliando esta ideia de kinesfera, Serra in Soraia (1994) argumenta
que esta tem uma característica de elasticidade, que na vida cotidiana pode ser
relacionada aos aspectos emocionais (estados introspectivos e extropectivos do
ser humano) e que é variável de acordo com os movimentos executados pelo
corpo, por isso, a “ocupação” desta será realizada de acordo com a necessidade
de expressão de cada um (SILVA, 2002, p.121).
Na língua de sinais também temos o corpo-espaço que se organiza num contexto
de língua, em que entre o sinalizador e o interlocutor está o campo de enunciação. Os
sinais são realizados dentro deste campo, que se constitui pelos pontos possíveis que
incluem o próprio corpo do sinalizante e o espaço à frente de seu corpo (PIMENTA,
2006). Ronice Quadros e Lodenir Karnopp (2004) também esclarecem:
Na língua de sinais brasileira, assim como em outras línguas de sinais até o
momento investigadas, o espaço de enunciação é uma área que contém todos os
pontos dentro do raio de alcance das mãos em que os sinais são articulados
(QUADROS & KARNOPP, 2004, p.57).
Do ponto de vista da dança, podemos dizer que o que se refere ao campo de
enunciação na língua de sinais corresponde a uma ênfase do espaço da cinesfera do
sinalizador, pois ele irá se mover dentro deste espaço. As primeiras estruturas que
estabelecemos são, pois, espaciais, em que o corpo pode explorar um espaço amplo ou
restrito. Do ponto de vista da cena, também propomos uma analogia visual, como se o
campo de enunciação se expandisse a tal ponto que tomasse todo o espaço cênico, e o
corpo do agente passasse a representar as mãos do sinalizador. Na figura abaixo
mostramos o desenho de uma mão e sobre o mesmo um esquema em que se visualiza
ou imagina o dedo médio como a extremidade cabeça e pelve ou conexão cabeça-cauda
no sistema Laban/Bartenieff (FERNANDES, 2006). Os dedos indicador e anelar seriam
membros superiores ou inferiores dependendo da orientação da mão:
Figura 1-possível esquema do corpo representado na palma da mão
8
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Deste modo, para uma configuração de mão podemos criar uma posição de corpo
de acordo com a maneira como imaginarmos como seria fazer aquela forma com o corpo
inteiro. As 46 configurações de mão descritas pela linguística como um dos parâmetros
fonológicos da língua brasileira de sinais podem ser interpretadas pelo menos como 46
posições do corpo7.
Como dito, cinco são os parâmetros fonológicos que formam um sinal. É preciso
deixar claro que um sinal não é uma configuração de mão, mas a articulação entre a
configuração de mão, o movimento, o lugar no espaço em que é executado (ponto de
locação), a orientação da mão e a expressão não manual (facial e corporal). Quando
vamos brincar de imitar o sinal com o corpo todo, estamos admitindo o movimento que
vem do impulso interno para o sinal ampliando-se para um movimento executado por todo
o corpo. Seguindo o mesmo raciocínio, podemos entender o eixo da porta que secciona o
corpo em parte anterior e posterior como a orientação da mão entre palma-dorso. Já o
ponto de locação no espaço de enunciação pode ser compreendido o lugar ocupado pelo
corpo no espaço cênico8.
Outros aspectos da gramática da LIBRAS podem ser relacionados com
procedimentos de criação em dança. Por exemplo, muitos sinais são realizados com as
7
8
Ver JOSEPH (2010).
Mais detalhamento ver JOSEPH(2010).
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duas mãos, e a mesma lógica usada para um sinal criado em movimento para uma
pessoa pode ser aplicada para a criação de movimentos em duplas.
Deste modo, assim como o movimento da dança pode ser analisado e descrito em
termos dos fatores, propostos por Laban (peso, espaço, tempo e fluência), o sinal pode
ser analisado e descrito em cinco parâmetros fonológicos. Para cada sinal transformado
em corpo pode-se variar as combinações dos fatores de movimento, criando-se uma rica
gama de possibilidades criativas. De modo a visualizar esta potência de articulação, foram
desenvolvidos os materiais tanto a partir da análise gramatical da LIBRAS quanto da
análise do movimento de Laban:
Figura 2-exemplo de materiais Laban/LIBRAS
Acima, à esquerda, dentro de pequenas flores de E.V.A. temos a análise dos níveis
(alto, médio,baixo), dos eixos (porta, roda e mesa), das ações básicas (socar, pontuar,
sacudir, torcer, deslizar, chicotear, pressionar, flutuar). À direita, temos formas
correspondentes às configurações de mão 9. Pode-se, por exemplo, usar em combinação
a criação de uma configuração de mão com um sacudir do corpo todo, no nível baixo
seguida de um movimento com o corpo encolhido (como a mão fechada que representaria
dos dedos encolhidos tal qual as extremidades do corpo encolhidas) em salto (nível alto)
e assim sucessivamente.
Outros materiais foram desenvolvidos, a partir não só da Análise de Movimento de
Laban e da gramática da LIBRAS, mas de outros registros visuais provenientes de
práticas como o Lian Gong, a capoeira e outros. Esses materiais foram constituindo jogos
9
Material desenvolvido por LSB video.
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que podem ser articulados de diversas formas, incluindo dados, fichas de texto,
vocabulários, permitindo as possibilidades dos jogos coreográficos.10
Assim, muitas são as possíveis interfaces entre a língua brasileira de sinais e a
dança, a partir da compreensão da corporeidade que constitui o sujeito tanto surdo quanto
ouvinte.
Reflexões sobre gesto, corporeidade e língua de sinais em interface com a dança
Em 2002, foi a intuição pré-verbal que me motivou a buscar pelo ambiente da
língua de sinais entre os surdos. Sentia que a dissolução dos signos da língua de uma
situação de uso, em movimentos de dança em um contexto cênico, era a essência da
poética corporal que eu queria para a minha dança. A ideia é muito parecida à colocação
feita por Merleau-Ponty: “O movimento abstrato cava, no interior do mundo pleno no qual
se desenrolava o movimento concreto, uma zona de reflexão e de subjetividade, ele
sobrepõe ao espaço físico um espaço virtual ou humano.” (MERLEAU-PONTY, 1999,
p.160). E´ isso que foi proposto como um dos procedimentos-chaves de criação a partir
do uso de elementos da língua de sinais: desmanchar o signo, que neste caso é concreto,
na criação de outros movimentos e situações de dança cujo interesse está no processo,
que entre outras coisas integra surdos e ouvintes através das brincadeiras e aplicações
dos jogos coreográficos –os quais, por sua vez, são elaborados com conteúdo escrito
tanto da gramática da LIBRAS quanto da análise do movimento proposta por Rudolf
Laban (1987) e figuras e vocabulários de outras práticas corporais. Os jogos
coreográficos são disparadores de estruturas de movimentos que podem ser
transformadas no processo, de acordo com a direção que se deseje; para a comunicação
do III Congresso da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA 2014) foi
feita uma demonstração da aplicação desses jogos, que vieram dentro de uma caixa
chamada Caixa geradora de Criatividade., e que foram explorados com os grupos da
pesquisa em Cuiabá e microrregião. Em cada lateral da caixa, um jogo de ideias e
significações: na tampa, vem escrito A(s) gramática(s) da(s) ideias/A(s) ideia(s) da(s)
gramática(s); em um dos lados, vem escrito: Lingua(gem) (t)emMovimento; no outro lado,
lê-se Lingua (e)gen(te) em movimento. Os jogos oferecem caminhos de movimentos que
uma vez reconhecidos e integrados ao corpo, podem ser como referências a serem
10
Ver JOSEPH (2010), páginas 112 e 113, “Elementos que constituem a caixa geradora de criatividade”.
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apagadas para que o corpo faça o percurso que quiser neste espaço. Trata-se da
apreensão de uma significação, “mas apreensão motora de uma significação motora”.
(MERLEU-PONTY, 1999, p.198). Por exemplo, quando lidamos com o encadeamento
aleatório de sinais, sem a preocupação de seus significados linguísticos. Foram os
primeiros procedimentos que usamos: a seleção de um dado repertório de sinais
esvaziados de seu conteúdo gramatical para a composição de algumas frases de
movimento. Mas vale recuperar o sentido do gesto segundo a ótica fenomenológica.
Neste aspecto, antes de entrar na língua de sinais como sistema linguístico, entenda-se
gesto como a relação entremeada da percepção com o movimento, que “forma um
sistema que se modifica como um todo.” (MERLEAU-PONTY, 1999, pp143-204). O gesto,
nesta ótica fenomenológica, é uma expressão que integra o corpo ao seu contexto
espacial e situacional, na medida em que ele se dá espontaneamente em determinados
contextos, como uma ação aparentemente involuntária, ou seja, sem premeditação. Ao
olhar para uma pessoa sinalizando em LIBRAS, sentia um desejo de recuo linguístico:
que experiências do corpo no mundo poderiam levar àquela expressão corporal?
Façamos uma analogia com o que Merleau-Ponty coloca sobre os hábitos corporais como
o uso da bengala pelo cego, quando esta deixa de ser para ele um objeto porque sua
extremidade se torna uma zona sensível e torna-se o análogo de um olhar:
Os lugares do espaço não se definem como posições objetivas em relação à
posição objetiva de nosso corpo, mas eles inscrevem em torno de nós o alcance
variável de nossos objetivos ou de nossos gestos. Habituar-se a um chapéu, a um
automóvel ou a uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los
participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio. (MERLEAU-PONTY, 1999,
p.199).
Sobre a íngua de sinais, antes de se tomar consciência da espacialidade da
gramática na língua de sinais, há um uso do corpo no mundo –a própria vivência em que
mundo e corpo são espaços contíguos- que constitui o corpo do que é também as
condições para que a língua de sinais se desenvolva com sua gramática própria. Isto
porque mundo e língua não se dissociam como dois universos paralelos, mas são dados
envolvidos um no outro. Não devemos confundir, aqui, este sentido do gesto com uma
falsa ideia de que a língua de sinais não seria uma língua mas apenas a combinação de
gestos (ver BRITO :1979). É mais apropriado inverter a relação entre gesto e fala e
entendermos, como coloca Merleau-Ponty, que
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“(...)a palavra, longe de ser o simples signo dos objetos e das
significações, habite as coisas e veicule as significações. Assim a fala não traduz,
naquele que fala, um pensamento já feito, mas o consuma”. (MERLEAU-PONTY,
1999, p.242)
O gesto a que nos referimos é aquele que desenha o próprio sentido, indicando
uma relação entre o homem e o mundo sensível. Este gesto não deixa de estar presente
na fala oral, nem na sinalização (fala em língua de sinais) e nem na dança: pelo contrário,
é ele que, sendo a manifestação imediata da vida humana através da percepção imersa
no mundo será fala, expressão e dança em diferentes contextos.
Esta abordagem para o gesto permite reconhecer uma interface entre o corpo na
dança e o corpo na língua de sinais através da poética da corporeidade, que assume em
si, a impressão de diferentes qualidades do mundo como o volume, o desenho das
formas, o ritmo e os diferentes tipos de movimento, por exemplo, presentes na sinalização
e na realização da dança. Situações do cotidiano como comer, pentear-se, maquiar-se,
andar de ônibus, usar computador (máquina de escrever, antigamente), ou o gesto
emotivo baseado em estados emocionais e psicológicos como morder os lábios, esfregar
as mãos, torcer-se são exemplos do que comumente chamados de “gesto” para a dança,
e alguns destes poderão ser encontrados gramaticalizados pela língua de sinais. O effort
que será expresso em gesto de valor tangível ou intangível, como propõe Laban (1970)
em seu Domínio do Movimento, aparece como valor tangível nos sinais chamados
“manuais” pela gramática da LIBRAS (QUADROS e KARNOPP, 2004), que tornam visível
os contextos de ação corporal quando se necessita traduzir o verbo “pintar” (da língua
portuguesa) para a língua de sinais: esta tradução, em língua de sinais, vem junto ao seu
contexto como pintar uma parede ou pintar um quadro. O sinal muda em cada um destes
contextos.
No processo criativo com a língua de sinais, o trabalho pode dirigir-se para uma
diluição de seu significado literal. Ao seu articular o sinal com o trabalho com ênfase em
algum fator de movimento, o sinal se dissolve de seu signo ganhando outra significação.
O uso dos classificadores na língua de sinais também oferece a oportunidade de
experimentação de diferentes effort sem, no início, passar pela racionalização. O corpo
como que veste (ou se investe) de diferentes imagens do mundo, trazendo o referente
(sobre o que está falando) para sua corporeidade.
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Durante a pesquisa desenvolvida em Cuiabá, algumas questões valem a pena ser
destacadas no sentido de se visualizar uma dimensão do alcance do que se pôde levantar
como dado qualitativo e quantitativo. Do ponto de vista social, segundo os dados
oferecidos por esta Secretaria da Educação do Estado de Mato Grosso em 2012, estavam
registrados nas escolas estaduais inclusivas, distribuídos entre 22 municípios 11, o total de
283 surdos, sendo destes 126 locados no CEAADA e, em Cuiabá, 154, em Várzea
Grande, 43, correspondendo as cidades de Cuiabá e Várzea Grande a 69,6113074% ou,
arredondando para 70% dos surdos registrado nas escolas do Estado de Mato Grosso.
Durante as atividades de dança com os grupos, foi aplicado um questionário
com o objetivo identificar o conhecimento, por parte da comunidade surda pesquisada, a
respeito da dança, do que é a dança para o surdo, da arte e cultura surda e das possíveis
contribuições que pode haver entre surdos e ouvintes através da dança.
Foram recolhidos 24 questionários completos, o que corresponde a uma
amostra de aproximadamente 8,5% dos surdos do Estado e 12% dos surdos de Cuiabá e
microrregião. Infelizmente apesar de haver distribuído um maior número de questionários,
a interrupção da pesquisa em 18 meses antes de seu término previsto impediu uma coleta
mais representativa do ponto de vista quantitativo, porém, qualitativamente, permite dar
visibilidade a algumas características da comunidade surda jovem, contemporânea.
Foram coletadas mostras sobre o leque de repertório de textos em LIBRAS a que os
jovens haviam tido acesso, e resumidamente:

12,5% do total dos questionários ficaram em branco (provavelmente não foi
compreendido devido ao texto em língua portuguesa);

4,16% respondeu conhecer histórias infantis em língua de sinais (produzido
pelo Instituto Nacional de Educação do Surdo/INES);

37,5% conheciam Alice no País das Maravilhas, editado por Célia Regina
Ramos da Coleção Clássicos da Literatura em LIBRAS/Português, vol.I;
11
Arenápolis, Araputanga, Barra do Garças, Cáceres, Campo Novo do Parecís, Campo Verde, Canarana,
Confresa, Cuiabá, Denise, Nova Marilândia, Marcelândia, Nova Olímpia, Nova Xavantina, Peixoto de
Azevedo, Poconé, Pontes e Lacerda, Primavera do Leste, Rondonópolis, Sinop, Sorriso, Tangará da Serra,
Várzea Grande.
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
50% conheciam vídeos de poesias, histórias infantis, fábulas de Esopo
sinalizadas e números em LSB, produzidos pela LSB videos-produções;

16,6% conheciam o Dicionário Digital da Língua Brasileira de Sinais,
desenvolvido pelo Programa Acessa São Paulo, produzido em CD-rom;

16,6% conheciam de um a dois livros específicos de histórias de surdos;

37,5% conheciam pelo menos um e até quatro filmes com a temática da surdez;

58,33% já foram a um evento ou atividade da Cultura Surda;

33,33% já trabalhou com história em língua de sinais e teatro surdo;

25% já trabalhou com poesia surda;

50% já fez dança em algum momento.
Ao final do questionário, foi proposto aos participantes que assinalassem, a
respeito de determinados conteúdos, quais seriam próprios da dança, quais da gramática
da LIBRAS e quais estava presentes nas duas áreas de conhecimento (acuidade visual,
organização espacial, pensamento visual, expressão corporal, uso de gestos, estudo do
movimento, tipos de deslocamento, expressão facial, comunicação de idéias, contato
visual e texto corporal). Para esta questão, 54,16% deixaram em branco, 4,1%
estabeleceu relações entre os conteúdos, 4,1% reconheceu apenas a expressão facial
como própria da dança e não fez mais nenhuma marca, e 20,83% reconheceu os
conteúdos como da dança, sem marcas para os conteúdos de língua de sinais.
Dado como característica das respostas dos questionários o grande número de
respostas em branco, tende-se a desconfiar da compreensão, por parte do público com
que se trabalhou, da leitura do questionário.
Autores como Carlos Skliar (1988; 1989), Ronice Quadros (2004; 2006), Lodenir
Karnopp (2004), Magali Schmidt (2006), Nelson Pimenta (2008), Karin Strobel (2008)
entre outros, chamam a atenção para o fato de a sociedade em geral demonstrar
preponderante preocupação com o nível de desenvolvimento do surdo na produção de
texto em português, sem de fato reconhecer que a língua de sinais merece, em si, a
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mesma atenção, o mesmo planejamento curricular, o mesmo estudo aprofundado e o
mesmo trabalho estético, com um alcance poético que lhe é singular.
Este alcance poético acima referido é expresso cenicamente.
O trabalho cênico demanda tempo de estudo, de reflexão, de percepção, de
registro e de direção e, antes de se falar em cena, pode-se falar em corpo.
Considerações finais
Deste modo, a primeira interface possível entre o corpo poético na Língua
Brasileira de Sinais e o gesto na dança pode ser encontrado nos estudos de Laban (1978)
quando o autor parte da observação e do estudo do movimento humano, certo de que são
sempre os mesmos elementos que o constituem, seja na arte, no trabalho, na vida
cotidiana.
Porém, é necessário dizer que muitos destes elementos se configuram, na língua
de sinais, como gramática linguística. Não se quer aqui, em hipótese alguma, levar a
confundir o que é gramática e próprio da área da Linguística com o que é dança, e por
isso, em respeito à História dos Surdos, poder-se-á incorrer em uma repetição exaustiva
de que língua de sinais “é língua, não é dança” ou “mímica”.
Nesta pesquisa, no trabalho com os surdos, eles demonstraram um interesse maior
pelas imagens mais legíveis, em termos de criação cênica, do que pelas imagens
abstratas, da “dança pura”. Os surdos adolescentes e crianças gostam de contextos em
que o corpo assume a forma dos objetos do espaço, de maneira muito semelhante à
lógica da mímica e à lógica imagética das animações (desenhos animados). Mas tanto
entre surdos quanto entre ouvintes, jovens e adolescentes, permanece uma ideia de
dança associada à música, consistindo uma (de)formação do senso comum em relação
ao “que é dança”, sinalizando algumas marcas do próprio sistema escolar, que ainda
apresenta grande tendência ao não reconhecimento da dança como área de
conhecimento.
Pode-se afirmar que o objetivo geral apresentado no projeto de pesquisa foi
alcançado. Propôs-se, como tal, desenvolver uma metodologia de criação cênica baseada
nos elementos em comum entre a corporeidade da língua de sinais e o gesto na dança. A
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intenção é proporcionar a grupos heterogêneos e multiculturais condições de realizarem
uma criação coletiva em dança de modo que a experiência em si, de criar e vivenciar
dança, permita aos participantes ampliarem seus conhecimentos.
Para finalizar, pode-se estabelecer interfaces entre a dança e a língua de sinais ao
se observar que em ambos os contextos identificamos: importância no uso do olhar para a
LIBRAS e do foco para a dança; importância e consciência no uso dopeso de partes do
corpo de forma diferente (classificadores em LIBRAS, effort e fatores de movimento em
Laban); expressão corporal para emoções em ambos (valor não tangível); uso de
diferentes planos e direções espaciais. Estas foram algumas convergências possíveis que
podem ser exploradas sem prejuízo da compreensão linguística da língua de sinais, ou
seja, sem se cair na perigosa armadilha de minimizar a língua de sinais em seu hemisfério
linguístico.
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https://www.essr.net/drupal/?q=pt/book/export/html/503 acesso in 23/10/ 2014.
*Tatiana WonsikRecompenza Joseph é graduada em Letras (Bacharelado e Licenciatura), Dança
(Bacharelado e Licenciatura), Mestre e Doutora em Artes (todas as titulações pela Universidade Estadual de
Campinas). Bailarina e pesquisadora, atualmente é professora Adjunta do Curso de Dança-Bacharelado da
Universidade Federal de Santa Maria. Líder do Grupo de Pesquisa Composição Coreográfica e Processos
Criativos/Arte e Cultura Surda.
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