Zésouza
s
E
trabulega e V
2002
e
ntana
Noite escura, nublada, vento nordeste
soprando forte, o velho Ventana saiu do
galpão da leitaria segurando a caneca com
o leite e seguiu pela estreita trilha,
iluminando com a lanterna, caminhando
devagar e atento, pois já era tempo de
cobras, principalmente de cruzeiras, tão
abundantes ali. Passou pela frente da
casa principal da propriedade e foi para
o galpão das arrumações onde ficava o que
ele chamava de meu rancho, um pequeno
apartamento, quarto, cozinha e banheiro.
Esperou o leite ferver sobre o pequeno
fogão a lenha, lembrou que era sexta
feira, ou seja, noite que o guarda estava
de folga e como de costume nestas noites
ia até a casa principal conversar com seu
amigo Estrabulega e assim os dois ficavam
até a madrugada cuidando os movimentos.
Bateu na porta da cozinha gritou como o
amigo não veio atender, tirou a chave do
bolso, abriu a porta e entrou gritando:
-- Hei tche!
Não teve resposta, escutou o barulho
do
rádio
amador,
no
quarto
de
Estrabulega, o qual era ao lado da
cozinha, encontrou o amigo, vestido,
jogado sobre a cama, a mão na cabeça,
tonto e gemendo:
-- O que houve?!
Com dificuldade, Estrabulega, sentou
na cama, pediu a ele para desligar o
rádio, contou que tinha tido uma forte
dor de cabeça e ficado tonto. Ventana
agitou se dizendo:
-- Vou telefonar para Pelotas,
chamar o Tuca...
Estrabulega contorceu de dor, fez
sinal para ele parar e pediu:
-- Tem calma. Trás um copo com água.
Depois que bebeu um gole, falou com
calma:
-- Não te assusta, já passou. Que
dor! Fiquei cego...
-- Temos que ir ao médico. Eu chamo
o Tuca...
-- Não... Espera que pode passar...
-- Doença não se espera.
Estrabulega esfregou a cabeça,
respirou fundo e explicou:
-- Eu e tu vamos resolver isto...
Vai ali; no pedágio e pede o pessoal da
ambulância para vir aqui.
O posto de pedágio é próximo à
fazenda e logo chegou o enfermeiro que
ativo mediu pressão arterial, tirou febre,
fez perguntas, escreveu numa ficha e por
fim avisou:
- Nós vamos levar o senhor ao pronto
socorro em Pelotas...
-- Precisa?!
-- Sim senhor... Por favor, leve
documento.
O enfermeiro voltou-se para Ventana
e perguntou:
-- O senhor pode ir junto?
-- Mas é claro tche!
-- Então o senhor vai conosco para
acompanhar ele lá no pronto socorro.
Rápido e estava no pronto socorro, o
enfermeiro da ambulância de resgate da
praça de pedágio, encaminhou à ficha a
atendente e deixou os dois na sala de
espera. Enquanto aguardavam, Estrabulega
olhou firme para o amigo e disse:
-- Não vai telefonar para ninguém,
eu não quero que a minha família saiba...
O chamaram e ficaram vários minutos
no consultório, enquanto isto Ventana
caminhando de um lado para o outro pensava
se telefonava ou não.
-- Este velho tem que morrer.
Resmungou, em voz alta, o Tuca parado
diante do computador no escritório da
casa principal. Eloá, a empregada, que
estava
varrendo
a
casa,
escutou
e
perguntou:
-- Ta com raiva seu Tuca?
Sacudindo a vassoura foi até a porta
do escritório, sorrindo. Tuca arrependido
de ter falado alto, apontou o computador
e disse:
-- Seu Estrabulega mexeu aqui...
-- Com certeza veio jogar paciência...
-- Mas ele já tem o computador dele,
que, aliás, é só para ele brincar.
Eloá sacudiu a vassoura e voltou a
varrer repetindo:
-- O velho veio jogar.
Jogar porra nenhuma, ele veio foi
bisbilhotar as minhas planilhas, aquele
velho pensa que me engana, já ta na hora
dele partir para outra...
A Fazenda São Gonçalo conhecida como a
leitaria de Dona Cotinha localizada no
povoado; um lugarejo com uma dezena de
casas: uma venda, uma escola primária e
uma praça de pedágio na rodovia Pelotas
Rio Grande, do Capão Seco. A sede da
leitaria tinha dois galpões, a casa
principal e duas casas, menores, para os
empregados.
Ali
viviam
Estrabulega,
marido de Dona Cotinha, Ventana, um negro
velho, aposentado, amigo de Estrabulega
desde a infância. Maneca o encarregado da
leitaria, Rui Gordo empregado para todos
os serviços, o velho Juvêncio com quase
setenta anos que era o ronda noturno,
Eloá a esposa de Maneca e empregada da
casa principal. Não morava na leitaria,
mas ali trabalhava o Tuca, genro de Dona
Cotinha,
engenheiro
agrônomo,
o
administrador
da
fazenda
morava
em
Pelotas, de onde vinha todas as manhãs,
aliás, em Pelotas morava com a sogra.
Primavera chuvosa, tempo preocupante,
tempo de preparar as terras para plantar
e as chuvas atrapalhavam. Manhã de muita
tormenta; estavam os empregados no galpão
das
arrumações
quando
viram
o
seu
Estrabulega
sair,
correndo,
da
casa
principal e ir para a parada de ônibus.
Curioso, o Tuca, foi ao apartamento de
Ventana, o encontrou sentado perto do
pequeno fogão à lenha, tomando mate. Em
cima do fogão uma panela de ferro
fervendo soltando um cheiro apetitoso:
-- Bom dia Ventana.
O negro velho sacudiu a cuia:
-- É vamos dizer bom dia, mas esta
chuva já esta demais... Senta vamos tomar
um mate.
-- Obrigado, eu só tomo mate de
noite... O seu Estrabulega foi pegar o
ônibus, velho louco podia ter pedido que
eu o levasse.
Ventana despejou água na cuia, chupou
um gole de mate e disse:
-Ora
Tuca,
tu
sabes
que
o
Estrabulega é cheio de manias.
-- O que será que ele foi fazer em
Pelotas? Logo hoje que esta trovejando
deste jeito. Tu sabes?
-- Não sei.
Sabia mas não podia dizer afinal tinha
prometido
ao
amigo
não
contar.
Estrabulega foi fazer os exames que o
médico pediu.
O inverno com enchente, o canal de São
Gonçalo
transbordando,
os
banhados
cheios, os arames das divisas derrubados
pelas ressacas. Primavera chuvosa, muito
serviço a fazer além da chamada lida de
rotina, ou seja, o serviço da leitaria:
aparte de vacas, limpeza de galpão e
curral, lavar vasilhas e a ordenha.
Tinham arames para acomodar, capina na
sede da fazenda, distribuir esterco e
arar
as
terras
para
plantio
das
forrageiras de inverno. Tuca contratou
novo empregado. Rapaz novo com jeito e
maneiras atrevidas. Estrabulega ao ver o
novo empregado não gostou. No primeiro
dia o rapaz estava encilhando um cavalo,
no galpão, passava um avião agrícola, que
estava aplicando herbicida numa lavoura
de arroz próxima ao galpão, o cavalo se
assustou e nervoso o empregado começou a
dar
tapas
no
focinho
do
animal,
Estrabulega vinha entrando no galpão, viu
a cena e chamou a atenção do novo
empregado que olhou atrevido e resmungou
baixinho:
-- Não te atravessa no meu caminho
velho. Te dou um tiro.
A frente fria chegou ao anoitecer, sem
trovoadas, mas com rajadas fortes de
vento, nuvens negras corriam no céu
rumando
de
sudoeste
para
nordeste.
Juvêncio entrou no galpão das arrumações,
acendeu as luzes, tirou a chave do bolso,
abriu o cadeado da porta de um armário,
de onde tirou a lanterna as pilhas, o
revolver e a capa de chuva. Fechou o
armário e foi acender as luzes do pátio.
Voltou para dentro do galpão, ligou o
rádio e sentou perto da janela de onde
passava a noite vigiando.
Voltando do galpão da leitaria, onde
acabaram a ordenha, Maneca e Rui Gordo
chegaram ao galpão das arrumações e
Maneca pediu:
-- Seu Juvêncio, amanhã às quatro
horas o senhor abre a porteira. Que
amanhã o caminhão do leite vem mais cedo.
Juvêncio concordou, conversaram sobre
o tempo louco e Maneca saiu avisando:
-- Bueno; vou tomar um banho, estou
cansado, hoje tirei seiscentos litros.
Os dois saíram, Juvêncio sacudiu a
cabeça e resmungou:
-- Grande coisa! Seiscentos litros de
leite!
Com
ordenhadeira,
iluminação
elétrica, galpão de material com piso
cimentado. Em outros tempos, tempos que o
Capão
Seco
tinha
mais
de
duzentas
leitarias, num galpão de tábuas, cheio de
frestas por onde entrava frio e vento,
piso de terra o velho “Laudares Souza”
junto com o “Amarante Machado” tiravam a
mão da uma as cinco da madrugada, onze
tarros de cinqüenta litros: quinhentos e
cinqüenta litros. Aqueles eram os tempos
do "SL”.
Tempos do “SL” nome de um trem,
abreviatura de Serviço de Leite, manhã
fria do inicio dos anos quarenta, seis
horas da manhã marcava o relógio da
pequena estação do Capão Seco, hora do
trem do leite partir. Funcionários do
trem ajudados pelos da estação e mais
alguns leiteiros carregavam os tarros com
mais de quatro mil litros de leite. Dois
leiteiros chegaram atrasados: Estrabulega
e Ventana, o chefe de trem mandou que
carregassem os tarros, ligeiro, pois o
trem já estava saindo. Juvêncio correu
para ajudá-los. Três rapazes dispostos,
rápido abriram o vagão e num segundo
carregaram quatro tarros de cinqüenta
litros,
Estrabulega
fez
sinal
para
Ventana e empurrou Juvêncio para dentro
do vagão enquanto Ventana fechou a porta
rápido. O trem já estava saindo, os dois
ficaram dando gargalhadas. Ao chegarem a
Rio
Grande
os
funcionários
do
trem
abriram um dos vagões carregados no Capão
Seco e encontram Juvêncio espumando de
raiva. Com a roupa de trabalhar na
leitaria, fedorenta a esterco, mijo de
vaca e leite talhado, pés descalços e sem
dinheiro para pagar passagem de volta.
Pensou e prometeu: foi o Estrabulega, um
dia eu dou um tiro nele.
Estrabulega chegou de Pelotas no fim
do dia, pegou o grande envelope onde
estavam os resultados dos exames médicos
e escondeu no fundo do guarda roupas.
Encheu os olhos de lágrimas, suspirou.
Bem vamos continuar a vida enquanto vida
existir. Trocou de roupa, botou uma
bombacha velha, uma camisa de mangas
compridas, calçou chinelos, foi à cozinha
dar
jeito
em
preparar o
chimarrão.
Enquanto a água aquecia abriu o armário e
entre as garrafas escolheu uma: cachaça
composta
com
coquinhos,
frutos
do
coqueiro
jerivá,
muito
abundante
no
lugar. Era seu costume, desde moço, à
tardinha tomar chimarrão, fumar cachimbo
e beber cachaça composta ou com coquinhos
ou com ananás. Cuia, garrafa térmica com
água do mate, copo com cachaça, voltou
para o quarto e sentou onde ele mesmo
chamava de seu canto, diante do aparelho
de rádio amador. Perto do rádio o
cachimbo e o pacote de fumo. Encheu o
cachimbo, acendeu e ligou o rádio:
-- É o “PX” três; delta 3455 que chega
com um; boa noite... Atento a freqüência,
Estação Capão Seco chega?
Quem chegou foi seu amigo Ventana, que
pegou um pequeno banco e veio sentar
perto dele. Encheu a cuia, entregou a
Ventana e desligou o rádio reclamando:
-- Droga, ultimamente neste horário a
propagação de ondas anda uma merda. Não
se conversa com ninguém.
Ventana tomou um gole de mate e
perguntou:
-- E o resultado dos exames?
Tinha certeza que aquela seria a
primeira pergunta do amigo. Soprou uma
baforada do cachimbo, tomou um trago da
cachaça
composta
com
coquinhos
e
respondeu:
-- Deu tudo bem.
Ventana tomou outro gole de mate,
olhou bem para ele e insistiu:
-- Tudo bem como?
Sacudiu o cachimbo no ar respondendo:
-- Tudo bem é tudo bem.
-- Posso ver os resultados?
Nova baforada de fumaça, outro gole de
cachaça, riu e respondeu:
-- Ora vai à merda. O que tu entendes
de resultados de exames?!
Devolveu a cuia dizendo:
-- Pois o Juvêncio me disse que ontem
de noite tu andavas aí na cozinha tomando
remédio e passando a mão na cabeça. Dor
de cabeça?
Procurou manter a calma:
-- Que remédio?! Vim tomar água.
Passar a mão na cabeça não é sintomas de
dor de cabeça. Vamos esquecer doenças e
vamos trocar de assunto. O que há de
novidades?
-- Vai ter uma penca, sem ser neste
domingo que vem, no outro. Quem esta
organizando é os guris deste novo piquete
que tem aí... Piquete Lanceiros do Capão
Seco...
-- Já sábia, vi o cartaz lá na venda.
Até já resolvi que no dia das pencas vou
reunir a família. Já podes telefonar para
Porto Alegre e convidar tua filha e tua
mulher.
Enquanto
Estrabulega
despejava,
lentamente, água na cuia, Ventana o
olhava e notava que o amigo estava
diferente. Afinal eram amigos desde a
infância, eram setenta e quatro anos:
nasceram no outono de 1928.
Outono de 1928, numa choupana, feita
de junco, a margem do Canal de São
Gonçalo, pouco mais de dez horas da manhã
a
negra
Jacinta
ajudou
sua
filha,
Isolina, a dar a luz a seu primeiro neto.
Sentada no chão pelo lado de fora da
choupana a velha Gumercinda, escutou o
choro do recém nascido, seu bisneto,
sorriu levantou as mãos espalmadas; olhou
para o sol e resmungou baixinho pedindo
aos Orixás, proteção para a criança.
Naquele mesmo dia, pouco depois da hora
do almoço, escutaram os gritos dos tarrãs
e dos quero-queros: uma carroça a toda se
aproximava. Um empregado do velho Antenor
vinha buscar Jacinta para ajudar a patroa
dar cria. A velha Gumercida fez questão
de acompanhar a filha Jacinta. Seguiu a
carroça de volta a toda com as duas.
Passavam de três horas da tarde quando o
guri nasceu. A velha Gumercinda olhou a
criança,
sorriu,
saiu
para
a
rua,
levantou as mãos espalmadas para o sol,
fez uma oração aos Orixás pedindo bons
caminhos para a criança. Baixou as mãos,
lembrou do bisneto que havia nascido há
poucas horas: os dois do mesmo dia: vão
ser muito amigos, por amizade um até pode
matar o outro.
Juvêncio sentado dentro do galpão, o
vento soprando de sudoeste sacudindo as
árvores e assobiando no canto do galpão.
Olhava as luzes da praça de pedágio e o
movimento de carros. Os tempos tinham
mudado. Em seus tempos de moço àquela
hora as luzes que se viam eram pontinhos
luminosos, espalhados pela várzea, dos
lampiões a querosene das leitarias e nem
se escutava barulho de carros, apenas o
canto dos sapos e algum berro de vaca
chamando o terneiro. Os dois cachorros da
fazenda; Toquinho e Guarani latiram.
Escutou
barulho
na
casa
principal,
levantou, acendeu as luzes do galpão e
saiu para espiar. Estrabulega estava na
cozinha tomando água. Juvêncio fez sinal
com o foco da lanterna. Nervoso, abriu a
porta e disse:
-- Olha Juvêncio, estou só tomando
água. Tu não vai contar estórias para
aquele merda do Ventana. Ainda dou um
tiro em vocês.
Juvêncio voltou para dentro do galpão,
apagou as luzes, sentou pensando: tiro!
Eu é que devia ter te dado um tiro
naquela madrugada da corrida de carroças.
Corrida de carroças foi que Ventana
propôs a Juvêncio numa madrugada fria,
muito fria, a geada branqueava perto dos
trilhos onde refletiam os fracos raios de
luz do lampião da pequena plataforma da
estação de Capão Seco. Naquele tempo a
venda do povoado ficava bem perto da
estação. Nas madrugadas os leiteiros se
reuniam em grupos uns na estação outros
na
venda.
Ventana
e
Estrabulega
combinaram de armarem uma presepada a
Juvêncio.
O
desafio
da
carreira
de
carroças por uma dúzia de rapaduras de
palha. Ali quase todas as madrugadas eles
estavam inventando carreiras de carroças.
Naquela
madrugada
inventaram
uma
novidade. Os dois corredores deixavam as
carroças alinhadas defronte à venda e
ficavam
dentro
da
venda,
quando
o
caixeiro da venda desse um grito, eles
corriam subiam nas carroças e arrancavam.
Tudo combinado; botaram as carroças em
posição, Ventana e Juvêncio entraram para
a venda. Madrugada escura e fria. O
caixeiro da venda deu o grito: “já.” Os
dois correram: Juvêncio pulou dentro da
carroça e ao mesmo momento que segurava
as rédeas deu várias chicotadas no cavalo
que arrancou correndo. Quando ele segurou
as rédeas e quis firmar, se deu de conta
que
as
rédeas
estavam
rebentadas:
cortadas de propósito. O cavalo sentiu a
boca livre e disparou. Juvêncio gritava
assustado e a carroça gingando aos pulos
até que uma roda caiu dentro da valeta,
virou, ele mergulhou na água barrenta e
fria. Levantou tremendo de frio, medo e
raiva, mas pensou: foi o Estrabulega, eu
um dia vou matar este filha da puta.
Estrabulega casado com Maricota, que
não gostava do próprio nome e por isto
adotou o apelido de Cota que depois
passou a ser Cotinha: tinham três filhos,
todos casados, dois homens e uma mulher;
Júlio, Juan e Juliana. O primeiro a
chegar para o churrasco de fim de semana
foi Júlio, este morava em Brasília,
formado
em
veterinária,
funcionário
público, casado com uma baiana, tinham
dois filhos já moços.
Júlio chegou à manhã de sexta feira já
convocando o Ventana para ajeitar os
caniços e cavar minhocas para isca que
iriam pescar no açude grande. Ventana
avisou:
-- Não pode mais pescar no açude
grande.
Júlio deu uma risada e respondeu:
-- Ventana eu sou filho de dona
Cotinha, já telefonei para ela, ela já
falou com o dono do açude. Quero pescar
jundiá, hoje vamos comer uma “moqueca da
Torotama”. Já ando cansado das moquecas
baianas da minha mulher. Tu tens coentro
na tua horta?
-- Tenho.
Júlio passou a mão na cabeça, chegou
mais perto de Ventana e falou baixo:
-- Escuta: achei o pai bem mais magro.
Ele anda bem?
Ventana
ficou
vermelho,
indeciso.
Contava ou não contava? Sábia que Júlio
era o único dos filhos que Estrabulega
respeitava. Disfarçou, sacudiu a mão e se
afastou dizendo que iria ver caniços.
Vontade de dizer que o amigo estava
doente, mas um pacto o impedia: o pacto
da arapuca.
O pacto da arapuca foi como eles
apelidaram o compromisso mútuo de nunca
contarem os seus segredos. Os dois eram
guris, tinham sete anos, mas já eram
muito arteiros e até por sinal o velho
Romualdo, este era um homem velho que
morava na fazenda, pois o velho Romualdo
já
os
tinha
apelidado:
apelido
que
carregaram para o resto da vida. Os dois
viram atrás do galpão uma cobra cruzeira
e tiveram a idéia de pegá-la e botar
dentro de uma das arapucas que o velho
Romualdo costumava armar na chácara. Com
um pedaço de pau o Ventana apertou a
cabeça da cobra para ela não dar o bote,
Estrabulega a segurou por trás da cabeça
e pela ponta da cola. Com medo, correram
e a botaram debaixo da arapuca. À
tardinha quando o velho que enxergava
muito pouco foi tatear as arapucas, notou
aquela desarmada, estranhou não escutar
bater de asas, agachou e antes de enfiar
a mão por baixo da arapuca sentiu um
barulho diferente muito baixinho. Pediu
ajuda. Logo estava formada a confusão na
cozinha da leitaria do velho Antenor.
Cobra
cai
em
arapuca?
Nunca
vi.
Colocaram-na lá. Quem? Os dois moleques.
Não
teriam
coragem.
Alguém
botou.
Agachados, atrás do galinheiro, os dois
escutavam a conversa e combinaram, mesmo
que levassem castigo de não contarem.
Apertaram as mãos: um trato; de hoje em
diante a gente não conta nossos segredos.
Naquela noite de sexta feira reunidos
na grande cozinha da casa principal,
Estrabulega,
dona
Cotinha,
Ventana,
Júlio, sua esposa ali chamada de Baiana e
seus dois filhos; Júnior e José este
estudante
de
jornalismo
e
muito
interessado
em
tradição
e
folclore.
Júlio, sem camisa, junto ao fogão à lenha
preparava a moqueca de jundiá, alegre por
estar junto dos pais, contente por ter
caminhado nos campos onde se criou e
descontraído por estar bebendo cachaça
composta com ananás, contava:
-- Uma vez a gente estava em Salvador
e eu convidei os parentes da Baiana para
uma moqueca que eu ia preparar. Bah! Eles
acostumados com a moqueca deles, diga se
de passagem afogada no azeite de dendê
quando viram esta que eu chamo de
“moqueca da Torotama”, esta eu aprendi a
fazer aí na Ilha da Torotama. Quando a
baianada viu moqueca seca ah! Caíram na
gozação.
Dona Cotinha levantou pegou a garrafa
da cachaça olhou e foi guardar dizendo:
-- Já beberam demais; por hoje chega.
Estrabulega bateu na mesa dizendo:
-- A ditadora falou; esta falado.
Júlio,
riu,
sacudiu
a
cabeça
e
comentou:
-- Quantas vezes eu fui daqui a Ilha
da Torotama, a cavalo. Daqui lá é quatro
horas, o cavalo sendo bom. Uma noite eu
fui para uma festa de cantoria de
santinhos...
José interrompeu, olhando para o avô e
perguntando:
-- Vo, tu entendes desta cantoria de
santinhos?
Júlio levantou a mão olhou para os
pais, riu e avisou ao filho:
-- Nem fala nisto. Foi numa noite de
cantar santinhos que tudo começou.
Dona
Cotinha
olhou
firme
para
Estrabulega e disse:
-- Foi numa noite de São João...
Noite de São João na leitaria dos
Neves, vizinha da leitaria do velho
Antenor, fogueira grande armada no pátio,
na cozinha ainda preparavam pipocas,
canjicas,
pinhão
assado,
bolo
de
coalhada, pés de moleque e quentão. Na
sala
e
no
pátio
se
espalhavam
os
convidados. No Trem das Cinco tinham
chegado às duas filhas do senhor Neves
que estudavam em Pelotas, acompanhadas de
um grupo de colegas: moças de idades
entre os dezesseis e vinte anos, entre
elas a Maricota com dezoito anos, loira,
magra, alta, olhos azuis. Já ao descer do
trem chamou a atenção dos que estavam na
pequena estação. Ventana, que naquele
tempo já morava na leitaria do velho
Antenor, ao chegar a casa avisou ao amigo
Estrabulega
que
do
trem
tinha
desembarcado uma princesa. Estrabulega
sacudiu os braços dizendo:
-- Ora vai-te a merda.
Pra ti tudo
que é mulher que desce do trem, tu dizes
que é princesa.
Acenderam
a
fogueira,
soltaram
foguetes, os cachorros latiram, bateram
palmas, gritaram. As moças foram para a
sala prepararem adivinhações e promessas.
Na porteira do pátio chegou o grupo de
cantores de santinho, onde estavam os
dois
amigos:
Estrabulega
e
Ventana.
Pararam perto da porteira do pátio, os
músicos ajeitaram os instrumentos: Dois
violões, uma gaita, um pandeiro, duas
flautas. Em ritmo de toada tocaram e
cantaram:
Chegamos a vossa casa
Na beira de seu terreiro.
Para tocar e cantar.
Licença; peço primeiro.
Licença; peço primeiro.
Com prazer e alegria
Festejamos o São João
No seu verdadeiro dia.
No seu verdadeiro dia.
São João do céu desceu,
Guiado por uma estrela
Que Jesus lhe deu.
Por esta estrela guiado;
São João desceu do céu,
Numa escadinha de ouro
Sentadinho sem chapéu.
Sentadinho sem chapéu,
São João do céu desceu.
Veio levar as ofertas
Que o senhor lhe prometeu...
Depois de feita a cantoria os cantores
foram convidados a participarem da festa.
Foi a luz da fogueira que os bonitos
olhos azuis da jovem Maricota, que,
aliás, não gostava do seu nome e por isto
pedia para a chamarem de Cota. Mas foi a
luz da fogueira numa fria noite de São
João
que
os
olhos
azuis
de
Cota
encontraram os olhos pretos do jovem que
tinha o apelido de Estrabulega. Porque
Estrabulega? Por que era impossível,
sempre fazendo artes mesmo depois de
moço. Ele já estava com dezenove anos.
Reunidos na sala onde se serviam os comes
e
bebes
novamente
os
dois
trocaram
tímidos
olhares,
o
que
não
passou
despercebido a jovem Leonor, filha de um
próspero leiteiro do lugar, gente famosa
por serem muito brabos e viverem brigando
com os vizinhos. Leonor não escondia que
era apaixonada por Estrabulega para quem
seguido mandava bilhetes e recados, mas
ele ainda se achava novo para se envolver
com namoros. Quando Leonor viu os dois
trocando olhares a não teve duvidas pegou
uma bandeja cheia de copos com licor de
butiás
e
aproximou-se
de
Cota
e
disfarçada como se fosse um acidente,
chocou-se com Cota e despejou a bebida
por cima dela. Com ar de pouco caso,
debochada, pediu desculpas. Com classe,
Cota
sorriu
a
desculpou,
mas
tinha
entendido tudo: a guerra começou.
Finalmente no domingo se reuniu toda a
família. Bem cedo chegou Tuca e Juliana
com as duas filhas. De Porto Alegre
chegou à esposa de Ventana e amiga de
dona Cotinha, mais que amiga: irmã,
Eloisa, com a filha Carmem o genro e três
netos. O último a chegar foi o filho do
meio: Juan com a esposa e o único filho;
que era na família conhecido por Neto
simplesmente por ter muita semelhança
física e também ser arteiro como o velho
Estrabulega. Juan era o mais afastado da
família, talvez até por ter nascido e
tido a infância num período que o casal
brigava muito. Muito cedo saiu de casa
foi
para
Porto
Alegre,
trabalhar
e
estudar,
formado
em
agronomia,
era
professor universitário.
No
galpão
Juvêncio
preparava
o
churrasco, nos espetos carnes de rês e
ovelha
enquanto
o
Julio
e
Ventana
preparavam o guisado de carne de ovelha
com bastante cebola e salsa para misturar
num pirão de farinha de mandioca e fazer
bolos e assar numa grelha: pirão do Capão
Seco na brasa.
Juvêncio, alto magro, nariz grande,
ajeitando o fogo.
Na cozinha dona Cotinha e Eloisa,
lembrando
os
velhos
tempos;
tempos
difíceis de muito trabalho: levantar a
uma da madrugada para tirar o leite, a
manhã toda na beira do fogão fazendo
almoço, limpeza da casa, lavar roupas,
muito trabalho, mas mesmo assim sobrava
tempo para jogar víspora, jogar escova ou
espiar o Juvêncio comendo a égua tordilha
na taipa do açude. Chegou a Eloá e as
três deram de mão e começaram a preparar
o sarrabulho. Depois das lidas prontas
foram todos para o galpão onde formaram
uma grande roda para tomar chimarrão, foi
aí que o Neto perguntou ao avô:
-- O leite, daqui; esta indo para
onde?
Estrabulega chupou um gole de mate e
respondeu:
-- Vai para a cooperativa em Pelotas.
-- Tiram o leite de madrugada?
Estrabulega sorriu antes de responder:
-- Aqueles tempos acabaram. Agora
tiram o leite ao anoitecer, deixam dentro
de um resfriador elétrico, no outro dia o
caminhão pipa encosta no resfriador enfia
uma mangueira, uma bomba suga o leite
para o tanque e um marcador digital acusa
o numero de litros. Agora esta tudo
fácil. Os primeiros leiteiros, daqui,
levavam o leite de canoa para vender em
Pelotas, pois naqueles tempos aqui tinha
um arroio muito forte: o Passo Mau; que
agora ta quase todo tapado na grama e
junco. Depois foi aumentando a vila de
Pelotas e foi aumentando o numero de
leitarias
aqui,
aí
tinha
os
que
transportavam
o
leite
em
lombo
de
cavalos. Meu avô contava que levavam
tropa de até dez cavalos, com as latas na
garupa. Havia umas latas especiais com
arreio apropriado, botava duas latas, uma
de cada lado no lombo do cavalo. Depois
quando já havia a estrada de ferro o
leite daqui passou a ser vendido na
cidade do Rio Grande, aí ia de trem.
Quando terminaram com os trens, o leite
continuou a ser carregado em tarros e ia
de caminhão. Hoje vai no carro pipa.
Neto sorriu estudante de veterinária,
propôs ao avô:
-- Quando eu me formar, venho aqui
para o Capão Seco, trabalhar com o tio
Tuca. Aí a gente bota uma micro-usina e o
leite já sai daqui embalado pronto para o
consumo. O que o senhor diz?
Estrabulega sacudiu a cuia, apontou
para dona Cotinha, riu e disse:
-- Isto é com dona Cotinha. Aqui quem
manda é a tua avó.
Todos riram e dona Cotinha sacudiu a
cabeça dizendo:
-- Desde o inverno de 1952. Um dia
muito frio.
Um dia muito frio céu cinzento, nuvens
baixas, vento sul soprando, Cotinha e
Estrabulega já eram casados há quatro
anos, Júlio já tinha dois anos, os dois
tinham brigado, ele saiu foi para o
galpão, ela foi para a janela, e por trás
da vidraça ficou olhando os movimentos na
pequena estação onde um grupo de homens
descarregava vagões de pedras que estavam
sendo usadas na construção da rodovia
Pelotas-Rio Grande. Ela o viu passar a
cavalo e seguir margeando a ferrovia rumo
a Pelotas. Olhos cheios de lágrimas ela
teve uma certeza: não volta. Ventana já
era casado com a Eloisa e ele estava
doente, de cama, pois fazia poucos dias
que tinha quebrado uma perna quando junto
com
Estrabulega
estavam
treinando
paleteada. Morava numa casa de paredes de
barro, coberta de palha de Santa Fé, ao
lado do galpão. A leitaria naquele tempo
já era de Estrabulega, pois os pais dele
tinham morrido e ele como único herdeiro
tinha assumido tudo. A sede era muito
simples: uma casa velha, a cozinha feita
de alvenaria, dois quartos e uma sala;
feitos de madeira, o quarto de banhos era
separado da casa: uma peça feita de
tábuas ao lado da bomba de tirar água. O
galpão feito de paredes de barro, coberto
de palha e a casa do empregado, que era
onde
morava
Ventana.
Da
janela
ela
acompanhou o vulto dele ir sumindo no
rumo de Pelotas. Dali até Pelotas é uma
várzea plana e a ferrovia corta os dez
quilômetros numa reta. Quando o vulto
ficou
um
pontinho,
olhos
cheios
de
lágrimas ela saiu da janela foi ao quarto
espiar Júlio que dormia e saiu para ir à
casa de Eloisa. Ia com uma certeza: para
a
casa
dos
pais,
em
Pelotas,
não
voltaria, afinal o pai tinha sido contra
aquele casamento. Chorando se abraçou em
Eloisa e disse:
-- Tenho certeza que ele não volta.
Eloisa a fez sentar perto do fogão e
deu jeito em aquecer água para fazer um
chá com folhas de laranjeira. Sentada
junto ao fogão, as duas mãos no rosto ela
disse:
-- Pra Pelotas eu não vou. Eu vou
tocar esta leitaria.
-- Eu te ajudo.
Disse
sorrindo
à
mulata
Eloisa,
acostumada à vida dura e lutada nas
margens do Canal de São Gonçalo lá em
Santa Isabel dos Canudos, onde; pés
descalços, vestidos de pano vagabundo;
criou-se
caçando
ratão
do
banhado,
pescando jundiás, cortando palha e junco.
A ordenha que era manual começava às
três horas da madrugada, pois antes das
seis horas o leite tinha que esta na
estação. As duas auxiliaram o Ventana a
se deslocar até o galpão e o acomodaram a
um canto de onde podia as orientar e
naquela madrugada as duas tiraram o
leite: produziram menos da metade, mas
iniciaram uma nova fase naquela leitaria.
Duas semanas depois, Ventana já tinha
tirado a tala da perna quebrada, numa
manhã de muita chuva, encilhou o cavalo e
saiu dizendo que ia saber noticias de
Estrabulega. Paradas no portão do galpão,
as duas, viram o vulto sumir por cima dos
trilhos e foi Eloisa quem disse:
-- Outro que não volta... Mas não vai
fazer falta.
E não fez. Cotinha contratou dois dos
melhores
empregados
de
leitaria
do
povoado: Juvêncio e o tal de Dinarte.
Aumentou o numero de vacas na leitaria,
trocou a hora de iniciar a ordenha para
uma da madrugada. Ela e Eloisa sempre
junta no galpão. Mandou juntar esterco
para na primavera fazer hortas. Fez
hortas grandes para plantar cebola, que
naquela época era a riqueza agrícola do
município do Rio Grande, fez uma grande
horta para produzir verduras para o
consumo. Tinha um frigorífico americano
na cidade do Rio Grande que comprava
ervilha e tomates para fazer conservas.
Plantou ervilhas e tomates. Numa parte de
campo que era banhado, havia muito junco,
e naquele tempo à cebola era guardada em
réstias feitas com junco, contratou gente
para cortar junco para vender. Contratou
cortadores de palha que vendia para uma
fabrica de colchões em Pelotas. Como
naquele tempo a caça do ratão do banhado
era liberada para a venda do couro,
comprou ratoeiras e mandava armar nos
campos
de
banhado.
Conseguiu
vacas
emprestadas para aumentar a produção de
leite. Comprou vacas melhores. Uma hora
da
madrugada
as
duas
com
bombachas
velhas, calçando tamancos, um pano na
cabeça,
andavam
apojando
terneiros,
tirando leite, todas respingadas de mijo
e bosta de vaca.
Na primavera de 1956, Estrabulega
atravessou pela balsa o Canal de São
Gonçalo e com o coração aos pulos viu as
várzeas do Capão Seco.
Seguiu margeando
a nova rodovia. Hora da Ave Maria parou
olhando a casa que estavam construindo.
Apeou, cavalo pela rédea parou no portão
do galpão novo, feito de alvenaria e
coberto com telhas de barro. O empregado,
um diarista, novo que não o conhecia,
chegou ao galpão e perguntou:
-- O senhor quer alguma coisa, seu
chefe?
Sorriu e respondeu:
-- Quero dar um beijo na dona desta
leitaria.
Chegou o Dinarte trazendo queijo para
dona Cotinha e rapadurinhas de leite para
a Eloísa. Bombachas remangadas, calçando
tamancos e contando a ultima: na noite
passada roubaram as galinhas da alemoa
que
fabrica
ambrosias,
levaram
as
galinhas todas e deixaram só o galo com
um bilhete no pescoço: estou viúvo desde
as três horas.
Juvêncio virou um espeto, mexeu nas
brasas e avisou que o churrasco estava
pronto. Dona Cotinha, levantou, bateu
palmas dando ordens para sentarem a mesa.
Estrabulega foi buscar seus apetrechos de
churrasco, voltou com uma caneca de tomar
cerveja,
preta
e
vermelha
com
o
distintivo do “Grêmio Esportivo Brasil de
Pelotas” a faca cabo de prata onde estava
escrito; Lembrança de Irai, foi nesta
estância hidromineral que passou a lua de
mel, alias foi quando comprou a faca. O
prato era lembrança de um “CTG de
Canguçu”, vestindo uma camisa que Júlio
notou ser nova e comentou:
-- Oi! A camisa trocou.
Vestia a camisa do “Piquete Lanceiros
do
Capão
Seco”
a
nova
entidade
tradicionalista do povoado. José, que
vestia uma camisa onde se lia: Lembrança
da
Vaquejada
de
Serrinha
Bahia
se
interessou e pediu:
-- Vô eu quero uma camisa destas.
Júlio comentou:
-- Nesta mania, saiu igual ao avô.
Onde passa tem que levar uma lembrança.
Estrabulega sorriu e avisou ao José
que já tinha uma camisa do piquete para
ele. Juvêncio começou a cortar as carnes.
Dona Cotinha foi à cozinha avisando que
ia
buscar
o
sarrabulho.
Ventana
se
apresentou
para
servir
as
bebidas,
perguntou:
-- Alguém vai querer vinho?
Júlio levantou o braço e pediu:
-- Ventana, tu ainda tens água pé?
-- Tenho
-- Pois eu quero água pé. Outra coisa
arruma duas garrafas que eu vou levar.
Uma coisa que eu quero é que depois tu
vás lá à venda e me compres duas garrafas
de marafatinga, que também quero levar.
Marafatinga uma bebida artesanal feita
ali no povoado e água pé um vinho aguado
feito de bagaço de uvas, o ali consumido
era fabricado por Ventana. Estrabulega
despejou cerveja na caneca a levantou
dizendo:
-- Antes de fazer o brinde, quero
avisar que não comam muito e deixem
espaço para os pastéis das pencas...
Dona Cotinha interrompeu avisando:
-- Eu não vou às pencas. Eu nem gosto
de pencas.
Júlio levantou com as mãos apontando a
mãe, rindo e comentando:
-- Mas a senhora já fugiu para vir a
uma penca no Capão Seco...
Para vir a uma penca no Capão Seco,
Cota fugiu num domingo de primavera do
ano de 1947. Disse em casa que estava
saindo para ir à missa na Catedral de São
Francisco de Paula, junto com uma tia que
era sua vizinha, que naqueles tempos nem
a uma missa uma moça não tinha permissão
para ir sozinha. Nem a missa e nem a casa
da tia, correu a estação para embarcar no
trem das oito e às oito horas e dez
minutos desembarcar na pequena plataforma
do
Capão
Seco
decidida
a
ver
o
Estrabulega. Fugiu porque os pais não
permitiram que fosse às tais pencas,
exatamente para evitarem que ela se
encontrasse com o tal rapaz apelidado de
Estrabulega, já que o pai dela tinha tido
informações que tal rapaz era muito
levado da breca. Ela foi para ver o
Estrabulega e porque recebeu um recado,
desaforado de Leonor que mandou avisar
que no baile de ramada que iria acontecer
durante a penca nenhuma pelotense do
nariz
arrebitado
iria
dançar
com
Estrabulega. E foi no baile de ramada,
assim chamado porque se realizou debaixo
dos galhos de quatro grandes figueiras,
ao ar livre. Chão batido e molhado para
não levantar poeira: uma gaita e um
violão.
Inicio
muito
tímido.
Leonor
cuidando Cota e vigiando Estrabulega.
Cota foi esperta e conversou com Dinarte
que era quem estava animando o baile.
Dinarte mandou parar a musica e anunciou
a polca de versos. Polca de versos era um
costume dos antigos bailes no Rio Grande
do Sul onde as moças é quem convidavam os
rapazes para a dança e durante a dança o
animador da festa gritava para formarem
uma roda ao mesmo tempo em que escolhia
um par e mandava dançar no centro da
roda, depois mandava parar a música e aí
a moça dizia um verso ao moço e este
retribuía com outro verso. Quando Dinarte
anunciou a polca, Cota estava ao lado de
Estrabulega
e
o
convidou
a
dança,
aceitou. Leonor ficou vermelha, com olhos
vidrados, de raiva. Chegou à vez do verso
de Cora e Estrabulega, ela disse olhando
nos olhos dele:
Batatinha quando nasce
Bota rama pelo chão,
Ao dançar com este moço,
Sinto amor no coração.
Todos aplaudiram e chegou à vez de
Estrabulega responder. Disse:
Tico - tico do banhado,
Quando chove não se molha.
Onde tem moça bonita,
Para esta não se olha.
A gargalhada ,que Leonor deu ,retumbou
pelo povoado.
As pencas do Capão Seco sempre se
caracterizaram por sua irreverência e
pelos bons pastéis. O povoado nem nunca
teve um lugar definido, ou seja, uma
cancha, onde realizar as corridas. A
maioria das vezes foi feito na estrada
municipal. Era mais um motivo para os
moradores do lugar se reunir beberem
cerveja
e
comerem
pastéis.
Naquele
domingo,
a
penca
era
na
estrada
municipal, reunidos perto do galpão onde
vendiam pastéis e bebidas, a família de
Estrabulega
e
Ventana,
riam,
comiam
pastéis e conversavam fiado. É bom dizer
que os filhos obrigaram dona Cotinha os
acompanhar. Ventana foi buscar pastéis e
voltou
com
a
novidade:
depois
das
carreiras, tem baile aqui no galpão.
Estrabulega pegou a cerveja e avisou:
-- Desde que me prenderam; eu nunca
mais fui a baile de pencas.
Neto se admirou e perguntou:
-- Prenderam o meu avô?
Dona
Cotinha
deu
uma
risada
e
confirmou:
-- Prenderam o teu avô num baile de
galpão
Num baile de galpão no ano de l948,
Estrabulega já era noivo de Cota, houve
umas pencas e depois fizeram um baile num
galpão. Baile que entrou noite adentro,
galpão
iluminado
por
lampiões
a
querosene. Cota não foi e Estrabulega
estava bem a vontade, já tinha tomado
bastante, viu Leonor sentada num canto e
foi convidar para dançar. Muito bonita,
cheia de calor, uma tesão de fêmea, aliás
fogo vivo mas muito estúpida, gritou para
quem
quisesse
ouvir:
não
danço
com
qualquer um. Envergonhado ele saiu do
galpão,
respirou
fundo,
a
raiva
o
queimava
o
pensamento.
Imaginou
a
vingança, arrancou um punhado de capim
botou no bolso e voltou a onde Leonor
estava e tornou a convidar e ela tornou a
repetir a frase: não danço com qualquer
um. Ele tirou o punhado de capim do bolso
e jogou no colo dela dizendo:
-- Mais uma égua que me nega estribo.
Ao fim do dia os filhos se foram.
Antes de voltar para Pelotas, dona
Cota chamou o Tuca e junto vistoriaram os
galpões
e
ela
ordenou aumentarem
a
produção de leite; prender mais vacas,
caprichar nos testes de mastite e muito
cuidado com a higiene.
Ventana despediu-se dos netos, genro,
filha e de Eloisa, ficou triste olhando o
carro sair, estava cansado e foi deitar
cedo.
Juvêncio assumiu seu posto de guarda,
acendeu as luzes do pátio, recorreu os
galpões, estava cansado, sentou no seu
canto escutando rádio. Viu o brilho da
luz que correu barranca a baixo: seria
uma bola de fogo? De tempos em tempos ali
apareciam as ditas bolas de fogo. Foi no
ano de 1953 estavam no galpão; Juvêncio,
Dinarte, Cota, Eloisa e um empregado novo
um que tinha o apelido de “Culo Cravado”,
pois quando jogava o osso ali na cancha
ao lado da venda só botava culo, uma
madrugada muito escura e de repente as
vacas se assustaram e derrubaram baldes e
tarros, correram a se amontoar num canto
do galpão, uma bola de fogo parou no meio
do galpão, Eloisa deu um grito e o
empregado novo se borrou, aliás, no outro
dia bem cedo ele foi embora.
Juvêncio pegou a lanterna, saiu do
galpão, o canto triste dos sapos, uma
aragem fria, o céu estrelado, o barulho
de um avião a jato, no céu os dois
pontinhos luminosos piscando, a dez mil
pés de altura, vindos de sudoeste rumo a
nordeste, de Buenos Aires ou Montevidéu
para São Paulo ou Rio de Janeiro.
De madrugada ouviu barulho na cozinha
da casa principal, sem ligar a lanterna,
caminhou
devagar
e
foi
espiar:
Estrabulega estava sentado diante da mesa
às mãos no rosto, chorando aos prantos.
Juvêncio ficou sem saber o que fazer.
Voltou
para
seu
canto
no
galpão
preocupado: alguma coisa não estava bem
com o Estrabulega.
Ventana estava na pequena horta que
ele cultivava, lutando para matar as
formigas que estavam cortando os pés de
maxixe,
quando
Estrabulega
chegou
e
avisou:
-- Logo nós vamos jantar juntos. Eu
tenho um assunto pra combinar contigo.
Concordou e continuou botando veneno
nas formigas. Qual seria o assunto? Não
tinha a menor idéia. Mal anoiteceu os
dois foram para a cozinha da casa
principal preparem o jantar, aliás, coisa
que por milhares de vezes os dois já
haviam feito. Comida rápida e simples:
pirão do Capão Seco com ovelha gorda.
Enquanto preparavam o pirão, tomavam
cachaça
composta
com
os
frutos
do
coqueiro jerivá. Ventana conhecia muito
bem o amigo para já ter notado que alguma
coisa não estava normal com ele. Jantaram
beberam cerveja e depois foram para o
quarto
de
Estrabulega,
sentaram
no
chamado cantinho do Estrabulega, este
ligou o rádio amador, chamou algum colega
que por ventura estivesse na escuta: é o
“PX” três, Delta 3455 estação Capão Seco
que
chega
com
um;
boa
noite.
Foi
contestado por um colega da nona região
cidade de Rio Verde estado de Goiás.
Conversaram por cerca de dez minutos,
depois de se despedir do colega, baixou o
volume do rádio, pegou o cachimbo, encheu
de fumo, acendeu, tirou uma baforada,
olhou bem para Ventana e perguntou:
-- Te lembras quando nós fomos ao Rio
Grande visitar o tio Juvenal?
Ventana pensou por alguns minutos e
respondeu:
-- Lembro. Foi em 1945 numa tarde de
verão.
Numa tarde de verão os dois embarcaram
no “Bagé”, este era o apelido do trem de
passageiros que passava ali no Capão Seco
quatorze
horas
e
quarenta
minutos
procedente de Bagé com destino a cidade
do Rio Grande. Rapazes, ainda, embarcaram
e foram logo para o vagão bufete, tomar
gasosa de limão e comer sanduíche de pão
com mortadela: naquela época um lanche de
luxo servido nos trens de longo curso.
Embora as alegrias da viagem e do lanche
encontram a casa de tio Juvenal muito
triste. Havia um cheiro de mofo misturado
com cheiros de remédios. A esposa e os
filhos, cansados, tristes, a doença não
tinha cura. No quarto, quase na penumbra,
tio Juvenal estendido sobre a cama era
uma figura sem cor. Respiração ofegante,
olhos
embaçados,
muito
esforço
para
falar, mal fazia movimentos com braços e
pernas, a todo instante gemia de dores no
corpo. Ficaram com o doente até a hora de
correr para a estação e embarcar no
último trem às dezoito horas. Viajaram
calados, tristes, impressionados com o
que tinham visto. De Rio Grande ao Capão
Seco, cinqüenta quilômetros, as dezoito e
cinqüenta saltaram na pequena estação.
Estrabulega pegou o amigo pelo braço e o
levou para o grande eucalipto que tinha
perto da estação dizendo:
-- Vamos combinar um trato... O trato
do eucalipto...
Madrugada calma, lua crescente, céu
sem nuvens, pouco movimento na rodovia.
Ao longe o barulho de um trem. Juvêncio
desligou o rádio, levantou para esticar
as pernas. Os cachorros latiram: um
zorrilho passou correndo pelo pátio. O
apito do trem e logo o comboio passou
fazendo tremerem as janelas do galpão. Já
ia sentar quando viu o vulto passar
correndo rumo ao galpão da leitaria.
Pegou o telefone celular que estava perto
do rádio e botou no bolso do casaco,
bateu no cabo de revolver na cintura,
resolveu sair sem a lanterna. Com calma
chegou ao galpão da leitaria onde no
escuro
o
tal
empregado
novo
estava
procurando alguma coisa no armário onde
guardavam as vasilhas. Desapontado disse
que estava ali procurando um isqueiro,
pois
estava
com
vontade
de
fumar.
Juvêncio
nada
disse,
mas
ficou
desconfiado. De manhã, na hora do recreio
na Escola Alcides Maia, que as correrias
e gritos das crianças davam vida aquele
povoado habitado por velhos, Juvêncio foi
à casa principal contar para Estrabulega:
-- Este empregado novo. Hoje de
madrugada
andava
lá
no
galpão
da
leitaria, mexendo por lá no escuro. Já
vou te contando que se depois acontecer
alguma coisa...
E tem mais: todas as
noites ele sai a andar por aí e volta só
de madrugada.
Estrabulega coçou a cabeça e comentou:
-- Eu já vi mais de uma vez ele
judiando dos cavalos. O Maneca já disse
que nem gosta que ele ajude na leitaria
porque ele tem mania de bater nas vacas.
Nesta leitaria desde os tempos de meu avô
nunca se bateu nas vacas: o nosso
sustento. Eu nem sei de onde o Tuca tirou
este empregado.
Juvêncio sacudiu a mão explicando:
-Ele
apareceu
aí
na
casa
do
Dinarte... Quem sabe é ele o homem que o
Dinarte contratou para te matar.
Admirado Estrabulega perguntou:
-- Para me matar?!
Juvêncio deu uma risada:
-- Te lembras da noite do porongo?
A noite do porongo; foi no inverno de
1943. Dinarte tinha uma namorada que
morava na vila do Povo Novo e aos
domingos a noite voltava do Povo Novo
para o Capão Seco a pé por cima dos
trilhos, pois o último trem era o chamado
Trem
das
Sete.
Naqueles
tempos
as
estórias de assombrações eram muitas.
Havia gente que jurava de pés juntos ter
visto
mula
sem
cabeça,
lobisomem,
boitatá, Saci-Pererê e até fantasmas.
Dinarte famoso por duas coisas: uma era
ser fabricante de flautas de bambu,
outra; era muito assustado e acreditava
em todo o tipo de assombrações. Ora os
dois moleques: Estrabulega e Ventana
sabendo disto prepararam um susto ao
Dinarte.
Pegaram um porongo bem grande,
fizeram dois furos, botaram uma vela
dentro.
Escolheram
um
lugar
onde
a
ferrovia
cortava
o
mato,
botaram
o
porongo pendurado numa arvore bem perto
dos trilhos e esperaram, ao verem que
Dinarte vinha vindo acenderam a vela.
Quando o assustado Dinarte viu o vulto
redondo parecia uma cabeça com dois olhos
de fogo, quase se cagou de medo. Parou
respirou e gritou:
-- Sai filha da puta. Quem é o fresco
que esta aí?!
Não obteve resposta, quis avançar, mas
as
pernas
tremeram
e
pesaram.
Não
avançou, sentou sobre o trilho e esperou
o dia amanhecer. Quando soube que o autor
da brincadeira foi o Estrabulega, ali na
venda ele prometeu: um dia contrato um
homem para te matar.
Passou um grande trem rumo a Rio
Grande, quatro locomotivas e oitenta e
sete vagões. Juvêncio acordou com o
barulho e resmungou: trem de merda, era
cedo, mas levantou, lavou o rosto, olhou
as horas: oito horas, para quem tinha
passado à noite de ronda e deitado às
seis. Já que estava acordado foi para sua
pequena horta capinar e viu Estrabulega
montar a cavalo e sair. Pouco depois viu
o tal empregado novo sair do galpão com a
mala na cabeça dizendo que ia embora.
Perguntou:
-- Por quê?
-- Seu Tuca me mandou embora...
Intrigas deste velho Estrabulega... Um
dia eu acerto minhas contas com este
velho de merda... Até logo.
Meia hora depois viu Ventana arrumado
com uma sacola na mão saindo rumo à
rodovia, perguntou:
-- Vai passear?
-- Bom dia Juvêncio. Vou a Porto
Alegre passar uns dias na casa da minha
filha.
Seguiu capinando e pensando: estranho
que Estrabulega tivesse saído a cavalo e
não tivesse esperado para se despedir de
Ventana. Só se os dois estivessem de mal.
Mas nunca brigaram, ou seja, só brigaram
uma vez por causa do guarda-chaves.
O guarda-chaves era o funcionário da
estação
que
além
de
encarregado
de
movimentar as chaves de manobras das
linhas, fazia a limpeza do recinto e
o
encarregado
de
abrir
o
armazém
da
estação, todas as madrugadas para os
leiteiros tirarem as latas. Na década de
cinqüenta
teve
um
guarda-chaves
na
estação do Capão Seco que diante de tanta
fartura de leite resolveu comprar uma
vaca e vender leite. Comprou uma vaca da
raça jérsei já velha magra e que ele
mantinha atada perto dos trilhos, pois
ele não tinha campo. Vendia leite para
Rio Grande, todo o dia mandava de trinta
a quarenta litros. Tirados de uma vaca
magra? Na verdade ele tinha escondido
dentro do armazém uma caneca e durante a
madrugada roubava um pouco de cada lata
dos leiteiros que as iam deixando ali na
plataforma e iam para a venda. É lógico
que os leiteiros sabiam que aquela vaca
não dava nem dois litros de leite e
sabiam que sempre algum pouco era tirado
de suas latas, mas a grande maioria
levava a coisa na brincadeira até uma
madrugada que um grupo mais radical
resolveu combinar de cuidarem e quando o
vissem mexendo nas latas o pegarem e da
uma tunda de pau. Pois foi ali na venda
que estavam combinando e Estrabulega
concordou em ajudar, mas Ventana foi
contra: deixa o pobre do homem; fazer o
lado dele, o que é uma caneca de leite
para
quem
manda
oitocentos
litros?
Discutiram os dois e quase se pegaram a
socos. Foi à única vez que brigaram.
Eloá abriu a porta entrou na casa
principal,
estranhou
não
escutar
movimentos do seu Estrabulega, ele que
nunca levantava tarde. Abriu as janelas
da cozinha, pegou a vassoura. Ia varrer
os
quartos,
sensação
diferente,
curiosidade foi espiar o quarto de seu
Estrabulega.
Deu
o
grito
soltou
a
vassoura e correu para a rua, andou na
volta e correu ao galpão da leitaria onde
encontrou Tuca, abraçou se nele chorando
e a muito custo disse:
-- Seu Estrabulega morto... Vai lá...
Meu Deus do céu...
Tuca tremeu nervoso, gritou o Maneca
que estava laçando uma vaca. Os dois
correram até a casa principal. Deitado de
barriga para cima, destapado, vestindo
pijama com um feio ferimento no peito.
Maneca disse:
-- Um tiro no coração...
Os dois ficaram com cara de bestas sem
saber o que fazer. Eloá chegou e nervosa
tomou a iniciativa:
-- Avisem dona Cotinha, tem que chamar
a
policia...
O
Júlio!
Liguem
para
Brasília, de lá aqui ele tem que vir de
avião...
Um perito tirando fotos, um inspetor
de
policia
fazendo
perguntas.
Dona
Cotinha e Juliana, inconsoláveis. Juan
chegou
sem
derramar
uma
lágrima,
a
primeira coisa que fez foi procurar um
guia telefônico de Pelotas para encontrar
um detetive particular. Júlio, muito
abatido,
chegou
ao
fim
do
dia.
Telefonaram para Porto Alegre avisando
Ventana, mas este nem quis comparecer,
pois ficou muito chocado.
Já estava anoitecendo chegou, de moto,
um sujeito ruivo, sardento, gordo, mal
alinhado procurando pelo senhor Juan.
Apresentou se como sendo o detetive
Silva. Os dois saíram para o pátio e Juan
falou com muita autoridade e arrogância:
-- Quero que o senhor descubra o
assassino. Há uma herança nesta história.
Todos são suspeitos. Vou dar ordem aos
empregados
para
o
senhor
ter
livre
trânsito dentro da fazenda...
No momento que o enterro estava saindo
o velho Dinarte olhou o caixão e disse:
-- É Estrabulega, Leonor disse que tu
irias morrer com um tiro no coração...
Um tiro no coração foi o que Leonor
disse numa tarde de primavera do ano de
1948
quando
soube
que
o
autor
da
brincadeira tinha sido o Estrabulega. Na
verdade os autores foram os dois; pegaram
uma grande cobra, parelheira tinha um
metro e trinta centímetros. Arrumaram uma
caixa de sapatos, botaram a cobra, viva,
dentro da caixa e fizeram um pacote. De
tarde na hora do Trem das Cinco, Este era
o trem de passageiros que dava o maior
movimento de desembarque de passageiros
na pequena estação: gente do lugar que
tinham ido a Pelotas, fazer negócios,
compras,
resolver
problemas
e
até
passear. Do Trem das Cinco, naquele dia,
desembarcou Leonor carregada de pacotes
os
quais
deixou
sobre
o
banco
da
plataforma e entrou no escritório da
estação
para
pegar
jornais
e
correspondências. Foi neste instante que
os dois correram e deixaram o pacote com
a cobra perto dos pacotes dela. Ela saiu
do escritório viu aquele pacote, olhou
para todos os lados e muito metida à
esperta misturou com os pacotes dela.
Chegou à casa alegre porque tinha achado
um pacote, abriu louca de curiosa. A
cobra
parelheira
é
uma
cobra
muito
esperta e rápida, quando ela tirou à
tampa da caixa a cobra pulou e ela caiu
desmaiada.
No
pequeno
apartamento,
quarto,
banheiro e um cubículo apelidado de
cozinha, o detetive Silva entregou os dez
reais à mulher, gorda, pele manchada,
cabelos duros de sujeira. Ela agradeceu e
saiu. Detetive Silva sacudiu a cabeça:
que bagulho! Quando comecei a estudar
para detetive pensava que ia ser como os
detetives de cinema, só ia comer mulher
bonita... Bem Silva vai tomar um banho e
vamos à luta.
Banho tomado vestiu a roupa velha e
foi para o quarto remexer numa gaveta
cheia de papéis: bem hoje eu vou lá para
aquele povoado dos “remangados” começar a
mexer no caso Estrabulega. Todos são
suspeitos até que se provem quem é o
culpado. Meu instinto de detetive aponta
para o genro o tal de Tuca.
Tuca estava montado a cavalo quando o
indesejado detetive Silva chegou; montado
ficou e o recebeu sem estender a mão. O
detetive conhecia os cavacos do oficio e
nem se importou. Pensou e logo foi
dizendo:
-- O senhor desculpe se eu o incomodo,
mas o senhor sabe que estou contratado
por seu cunhado: o senhor Juan...
-- Eu sei! Pois já vou lhe dizer,
qualquer assunto converse com quem o
contratou.
O
detetive
Silva,
sorriu,
mas
respondeu firme:
-- Mas os assuntos que eu tenho estão
aqui. E eu tenho cartas brancas de um dos
herdeiros.
Tuca sacudiu os braços dizendo:
-- O senhor esta investigando o
assassinato de meu sogro... Problemas de
herança dona Cotinha esta resolvendo
junto com os filhos e isto é assunto de
família que ninguém deve meter o bedelho.
-- Senhor eu não meto o bedelho, eu
estou trabalhando... A fazenda tem dois
computadores?
-- Tem sim... Por quê?!
-- Eu posso ter acesso a eles?
Tuca empinou a cabeça, sacudiu o
chicote com raiva e respondeu:
-- Um dos computadores é de meu
serviço da administração na fazenda:
neste o senhor não vai mexer. O outro era
de meu sogro: neste o senhor só mexe com
autorização de minha sogra.
Detetive Silva tirou o bloco de
anotações do bolso, folheou, leu o nome
do guarda e perguntou:
-- O senhor permite que eu converse
com o senhor Juvêncio?
Tuca sacudiu os ombros, bateu com o
chicote no cavalo e afastou-se dizendo:
-- Por mim!
Detetive Silva guardou o bloco: seu
moço o senhor pode ser um assassino
amador. Eu sou um detetive profissional.
Enquanto o detetive foi ao galpão
procurar Juvêncio, Tuca entrou na casa
principal e ligeiro foi apagar alguns
arquivos do computador.
No galpão das arrumações, situado
perto
da
casa
principal
tinha
dois
pequenos apartamentos de quarto, cozinha
e
banheiro
onde
moravam
Ventana
e
Juvêncio e dois quartos que eram usados
por empregados temporários. Juvêncio de
mau humor convidou o metido detetive
Silva a entrar e apontou o banco:
-- Sente, seu.
Sentou no momento que o galpão era
invadido
pelo
barulho
de
um
trem.
Detetive Silva esperou o trem passar e o
usou para iniciar a conversa e tentar
quebrar um pouco a antipatia de Juvêncio:
-- Aqui passam muitos trens?
-- Poucos.
-- É as ferrovias estão mudadas. Eu
sei
disto
porque
sou
filho
de
ferroviário,
meu
pai
foi
agente
de
estação. Hoje no Rio Grande do Sul não
existem mais os trens de passageiros. Até
conto mais: não tem nem as estações;
Santa Maria deixaram tocar fogo. A de
Pelotas os pivetes tomaram conta. Estes
trens que passam aí são de uma empresa
privada.
Até
conto
mais:
eles
são
controlados através de computadores lá de
Curitiba com ajuda de satélites.
Juvêncio não queria saber de trens,
queria saber o que aquele enxerido ia
perguntar e mais queria era o ver indo
embora ali de seu apartamento. Detetive
Silva tirou o bloco de anotações do
bolso, leu e perguntou:
-- Naquela noite o senhor não estava
na ronda?
-- Tava de folga.
-- Quem sabia que o senhor estava de
folga?
-- Só eu e o finado.
-- Mais ninguém?
-- Porra! Já disse: só eu e o finado.
-Mas
o
senhor
Tuca
é
o
administrador. Ele não faz a escala do
guarda?
Juvenal
sacudiu
a
mão
resolveu
explicar para encurtar a conversa:
-- Quando eu vim trabalhar de ronda, o
Tuca ainda estava estudando em Pelotas e
quem cuidava isto aqui era o finado. E
meu serviço foi combinado com o finado. E
as noites que eu tirava a folga eu
combinava com o finado. A gente não
falava para ninguém que era para não se
espalhar por aí que na tal noite não iria
ter guarda. O senhor sabe que o povo tem
mania de falar o que não deve.
Detetive Silva olhou bem nos olhos de
Juvêncio e perguntou:
-- O senhor tem alguma bronca com o
senhor Tuca?
-- Não.
Detetive Silva folheou o bloco, leu e
perguntou:
-Aqui
mora
um
senhor
chamado
Dinarte. Ele já trabalhou aqui na fazenda
e foi muito amigo do falecido. Eles eram
muito amigos?
-- Acho que sim.
-- Eles nunca brigaram?
-- Ora se eles foram guris da mesma
época! Qual é o guri que não briga?
-- O senhor lembra alguma?
-- A briga da pandorga...
A briga da pandorga aconteceu no campo
da venda, que era o lugar onde a molecada
se reunia para brincar: jogar futebol com
bola de meia, jogar bolinhas de gude,
soltar pandorgas... Dinarte era muito
jeitoso
e
gostava
de
fazer
bonitas
pandorgas. Numa tarde de primavera bem
ventosa o Dinarte soltado uma pandorga
bem
grande
e
bonita
e
os
dois:
Estrabulega e Ventana chegaram cada um
com uma pandorga, só que nas pandorgas
deles eles tinham botado laminas de fazer
barba na cola. Ora naquela brincadeira de
sobe e desce com as pandorgas passavam à
cola das deles no barbante da do Dinarte
até que conseguiram cortar. Nervoso, o
Dinarte perdeu a calma, pegou um pau e
deu uma paulada no Estrabulega.
Detetive Silva anotou e perguntou:
-- E com o seu Ventana, o seu Dinarte
nunca brigou?
Juvêncio coçou a cabeça, sorrio e
respondeu:
-- Que eu me lembro, foi só na vez do
bilhete.
O bilhete: Dinarte tinha uma namorada
em Pelotas e pediu para o Ventana levar
um bilhete para a namorada, Ventana leu o
bilhete e deu uma risada, Dinarte ficou
brabo e brigou com ele. O bilhete estava
escrito
assim;
“Vem
nu
çãojuão
him
kpãocko”.
Na casa úmida, cercada de água, o
detetive Silva foi recebido na pequena
sala, onde uma televisão fanhosa, com
imagem tremida, transmitia um filme; pelo
dono o senhor Dinarte, que desligou a
televisão,
apontou
a
velha
poltrona
dizendo:
-- Sente e fique agosto seu... Não
repara a desordem, que depois que eu
fiquei viúvo... Os filhos cresceram e se
foram...
Detetive Silva notou que o homem
gostava de conversar e que com ele não
iria ter problemas em obter informações.
Começou bem à vontade perguntando:
-- O preço do leite esta bom?
-- Pois veja; não ta... O leite sempre
valeu pouco...
Detetive Silva quis agradar e disse:
-- É o governo não dá valor à
agricultura e pecuária... Eles só querem
roubar...
Rosto, redondo, olhos azuis, cabelo
preto, Dinarte deu uma risada e disse:
-- Mas até eu se estivesse lá eu
roubava... Todo o mundo é assim... Pois
veja em 1950 tombou, ali perto da estação
um vagão cheio de milho... De noite o
povo do lugar roubou o milho... Eu também
roubei... Quem começou a roubar foram os
mais honestos do povoado...
Detetive Silva, coçou a cabeça e
disse:
-- Mas podemos trocar de assunto...
Quero
informações
sobre
o
finado
Estrabulega...
O senhor tem a mesma
idade que o falecido Estrabulega?
Fazendo gestos, respondeu:
-- Pois veja: até sou mais velho. Eles
nasceram em 1928...
-- Desculpe: eles?
Dinarte riu:
-- É que aqui quando se fala num se
fala no outro. Estrabulega e Ventana...
Pois veja: eu sou de 1923. Mas eu to
registrado como se eu nasci em 1925. Que
naqueles tempos estas coisas de papéis
não eram, lá, levadas muito a sério. Mas
minha mãe dizia que eu nasci no ano da
revolução. E o ano da revolução foi 1923.
Pois veja: meu pai dizia que eu nasci
cinco anos depois que ele casou. Ele
casou no ano que aquele balão dos
portugueses, me parece que o nome, dum,
era Coutinho. Pois veja ele casou no ano
que este balão veio cair aqui no Capão
Seco, até sei que caiu na estrada ali
onde hoje tem aquela cabana bonita. Pois
veja, eu depois li no jornal, este balão
que até veio um trem especial de Pelotas,
cheio de gente para ver, caiu em 1918.
Pois veja que 1918 mais cinco anos é
1923, mas eu to registrado como nascido
em 1925. Que até eu foi pro quartel no
tempo que o Brasil tava mandando soldados
para a tal de segunda grande guerra, lá
pra Europa... Pois veja que botaram os
soldados em forma e o comandante disse:
quem não quiser ir para a guerra, que dê
um passo à frente... Eu dei o passo, pois
veja: eu não queria ir à guerra nenhuma,
sabe o que eles fizeram? Me expulsaram do
quartel. Mas sai dando risadas.
Tonto de tanta explicação o detetive
Silva respirou e perguntou:
-O
senhor
os
conhece,
desde
pequenos?
-- Pois veja o meu pai era peão de uma
leitaria vizinha da leitaria do pai de
Estrabulega e a gente se criou tudo
junto. Pois veja: Ventana nasceu na beira
do São Gonçalo, mas a falecida mãe de
Estrabulega, uma santa criatura que Deus
a tenha, era muito doente e fraca e, pois
veja: não tinha leite para o guri mamar
já a falecida Isolina, que era a mãe do
Ventana, com todo o respeito, tinha um
par de seios que era uma maravilha. Pois
veja que dava de mamar pra o Ventana e
sobrava muito leite. Aí acertaram de ela
dar leite para o Estrabulega e então o
pai do Ventana veio ser empregado do pai
de
Estrabulega
e
por
causa
desses
acertos; todos moravam ali onde hoje se
diz ser a leitaria de dona Cotinha. E os
dois se criaram juntos.
Detetive Silva coçou a cabeça para
perguntar:
-- Pouca gente os conhece pelo nome e
sim
pelos
apelidos.
Por
que
estes
apelidos?
--Pois
veja;
eles
sempre
foram
medonhos de arteiros, desde criança até
depois de homens velhos. Pois veja quem
botou este apelido neles foi o falecido
velho Romualdo, no dia em que eles
sumiram...
Sumiram numa tarde de domingo, era
verão, os dois tinham cinco anos de
idade. Andavam brincando perto do galpão
e viram Romualdo sair rumo à estação para
esperar o retorno de trem do leite, que a
tarde vinha de Rio Grande para Pelotas
distribuindo nas estações do trecho as
latas vazias. Por morar perto da estação
Romualdo trazia as latas na véspera para
o galpão e assim as podia lavar com
calma. Capricho sempre foi à lei naquela
leitaria. Os dois moleques seguiram o
velho e na estação ficaram escondidos
atrás de uma pilha de caixas que estava
na pequena plataforma. O trem do leite
conhecido por “SL” chegou e funcionários
apressados
descarregaram
as
latas.
Fecharam os vagões e o trem seguiu. Quem
deu falta foi à mãe de Ventana. E os
guris? E procura e pede ajuda aos
vizinhos. E faz orações. Choro. Caíram no
açude. Promessas. Gente procurando por
todo o lado. Duas horas, depois, da
estação de Pelotas chegou um telefonema
dizendo que os funcionários do “SL”
tinham
encontrado
duas
crianças
escondidas dentro de um vagão e que
provavelmente seriam de Capão Seco.
Dinarte foi à cozinha de onde voltou
com um copo na mão e entregou a Silva
dizendo:
-- Beba um golinho, faz bem para a
cabeça: pois veja é “barranca a baixo”;
vinho, suco de frutas e mel, invenção
minha.
Tomou o trago, olhou o bloco de
anotações, sem saber o que perguntar
apenas comentou:
-- Então os dois eram muito arteiros?
Foi o suficiente para Dinarte se
emocionar e continuar contado artes dos
amigos.
-- Pois veja: os dois eram medonhos,
uma vez eles ainda tinham cinco anos e
era tempo das criações botarem filhotes.
Na
fazenda
se
criava
perus,
patos,
galinhas. Eles viram os patinhos nadando
no açude, o que fizeram? Pegaram uma
galinha choca junto com os pintos e
jogaram no açude. Uma vez, eles já tinham
dez anos, na hora da sesta. Que sestear
aqui neste lugar era obrigado já que a
gente levantava de madrugada. Pois foi na
hora da sesta eles foram à cozinha
pegaram uma lata de banha e foram passar
banha em cima dos trilhos só para verem a
locomotiva do “Bagé” patinar. Naquele dia
levaram um castigo.
Ninguém viu, mas diziam que foram eles
que botaram a casa de abelhas no Trem da
Uma.
Casa de abelhas no Trem da Uma: causou
um transtorno naquela viagem no verão de
1940. Os dois descobriram uma casa de
abelhas perto dos trilhos, com muito
jeito e cuidados, cortaram o galho da
arvore onde ela estava e fizeram cair
dentro de um saco. Fecharam o saco, com
as abelhas furiosas, e esperaram o Trem
da Uma. O trem parou na estação eles
embarcaram pela ultima porta e deixaram o
saco cheio de abelhas debaixo de um banco
de um vagão de primeira classe, tiveram o
cuidado de deixar uma pequena fresta,
aberta, na boca do saco. Quando o trem
continua a rodar, o barulho e o sacudir
do
vagão
fizeram
as
abelhas
se
movimentarem e invadirem o vagão. Houve
até desmaios de passageiros.
Juvêncio acendeu as luzes do pátio,
examinou o galpão, largou o rádio e o
telefone em cima da mesa, pegou a
lanterna e saiu para olhar a volta da
casa principal. Noite triste cantoria de
sapos, um cachorro latiu e na praça de
pedágio uma fila de caminhões começou a
buzinar. Voltou para o galpão, sentou
pensativo: mais um que se foi. Da turma
deles quantos já tinham ido? Quase todos.
Daqueles conhecidos como a turma dos
tempos do “SL” restavam muito poucos.
Sacudiu
a
cabeça.
Lembrou
do
tal
empregado novo que até saiu dizendo que
um
dia
acertaria
as
contas
com
o
falecido: sem querer botar maldade em
ninguém, mas aquele cara tem alguma coisa
nesta confusão. Será que o tal detetive
Silva sabe do tal empregado novo? E tem
mais se foi o tal empregado novo ele fez
coisa mandada. Juvêncio para de pensar
tche!
No pequeno e sujo apartamento o
detetive Silva, que já havia sonhado em
ser detetive e ter boas mansões, carros
esporte, lanchas, iates e até aviões,
levantou, olhou as horas, vestiu a calça
desbotada, a camisa do Grêmio Esportivo
Brasil, foi à velha geladeira, pegou uma
lata de guaraná: hoje eu nem vou lá
naquele povoado. Hoje vou andar na cidade
e botar meus assuntos em dia. Passou uma
água nos dentes, saiu batendo a porta.
Passou pelo Mercado Público, rumou para o
Café Aquário. Estava distraído tomando o
café e escutou um corretor de imóveis
conversando com dois ricos criadores de
bois:
--... Mais uma herança, o campo de
dona Cotinha, aí no Capão Seco. Campo bom
para engordar. Herança que logo vai ser
mexida.
Os
filhos
não querem
saber
daquilo ali, estão bem empregados e o
genro, o Tuca, este ta loco para pegar em
dinheiro. O filho da puta tem uma
amante...
Detetive Silva empinou o café: tinha
ganhado o dia, as boas informações chegam
aos grandes detetives. Tuca o suspeito
numero um tinha uma amante. De tão
contente até se deu ao luxo de comprar um
charuto.
Juvêncio
capinando
o
canteiro
de
feijão de vagens de sua pequena horta
pensando: a leitaria de dona Cotinha
estava triste; Estrabulega falecido o
Ventana
continuava
em
Porto
Alegre.
Voltaria? Se voltasse iria tirar uma
dúvida com ele. Estavam eles junto com
Leonor naquela tarde em que ele ficou nu
no meio do mato?
Nu no meio do mato por causa de
Leonor.
Leonor tesão de fêmea que
deixava os guris do povoado ardendo de
desejo e a cabeça cheia de imaginações.
Tinha olhos pretos brilhantes, cabelos
compridos, sempre livres ao vento, boca
de lábios grossos, peito farto, cintura
fina,
bunda
redonda,
cochas
bem
torneadas. Caminhava na ponta dos pés,
requebrando a bunda que parecia que
flutuava.
Gostava
de
andar
de
pés
descalços. Na hora em que os mais velhos
estavam sesteando os guris do povoado iam
lá para perto da casa dela a espiar. Ela
gostava e ficava de longe jogando beijos
para eles, fazia gestos, virava de costa
e sacudia a bunda. Eles todos sentados na
cerca do curral loucos para chegarem
perto, mas não podiam, pois se chegassem
os cachorros latiriam, acordariam os pais
dela e acabava a festa. Até quem alertou
eles deste problema foi ela. Uma hora da
tarde, sol a pino, cigarras cantando no
mato ela perto de casa se requebrando,
aquele bando de guris sentados na cerca à
maioria de pau duro. Ela jogava beijos
por fim levantava o vestido mostrando as
calcinhas e corria para dentro de casa.
Eles desciam da cerca e iam sentar nos
trilhos para fazerem concurso de punheta.
Quem acaba primeiro; ganha uma rapadura.
Uma coisa eles não sabiam: ela corria,
subia
na
grande
figueira
e
ficava
espiando eles baterem punheta.
Nos fins
de semana o irmão dela que estudava em
Pelotas e lá morava com uma tia, vinha
para Capão Seco e aí os guris iam brincar
com ele, aí que ela provocava, pois tinha
a proteção do irmão. Iam para o curral
onde estavam os terneiros e ela inventava
gineteada em terneiros para ver quem
tinha
mais
coragem.
Montavam
nos
terneiros virados para trás, seguros na
cola, ora o terneiro começava a correr e
dar pulos até que o ginete se espatifava
no chão e ela dava gargalhada. Em tempos
de araçás, ela pedia para a gurizada
trazer araçá e fazia disputas, quem
ganhasse tinha direito a ir num canto do
galpão onde ela levantava o vestido e
mostrava à bunda. Lá iam eles para o meio
do mato colher araçá; só que as regras
ela definia depois que eles entregavam as
frutas: hoje ganha quem trouxe menos;
hoje ganha o que trouxe mais; hoje ganha
o que trouxe o maior. Ela provocava
todos, mas na verdade era louca pelos
dois: Estrabulega e Ventana. Nas noites
de calor por todo o corpo, quando
apertava o travesseiro entre as pernas ou
com fúria quase enlouquecendo esfregava
as duas mãos na xoxota; era pensando num
deles. Foi ela que ensinou a eles as
artes do sexo. Estrabulega ela deu o
primeiro beijo numa manhã muito fria em
que a geada branqueava na hora do
recreio, num momento em que os dois
ficaram sós dentro da sala de aula. Mas
foi numa tarde quente do verão, os dois
estavam no mato com bodoques jogando
pedras num cacho de cocos de jerivá.
Juntavam os cocos para chupar, quando ela
chegou pedindo coquinhos. Beijou os dois,
riu uma risada quente e gostosa. Abraçou-
os. Os dois ficaram tesudos ela deixou
Estrabulega passar o pau no meio das
pernas, depois deixou o Ventana. Depois
deixou os dois encostarem-se a ela, por
cima da roupa. Daquela tarde em diante os
três passaram a se encontrar no mato. No
meio das arvores, deitados na grama
faziam de tudo. Quase sempre a iniciativa
de
novas
brincadeiras
partia
dela.
Levantava o vestido e dizia: agora os
dois, um na frente e outro atrás. Devagar
seu bruto! Sem saber destas brincadeiras
dos três, mas com a cabeça cheia de
vontade Juvêncio, um dia criou coragem e
convidou ela para irem ao mato buscar
coquinhos. Naquele dia ela ficou braba e
disse um mundo de coisas para ele. Mas
dias
depois
ela
se
arrependeu
e
concordou. Combinaram a hora e lugar. Lá
estava ele nervoso, inquieto, sem dar a
mínima para a mutuca que sugava sua
testa. O coração aos pulos escutou o
ruído dela chegando entre as arvores.
Chegou, sorriu e disse que tinha que ser
ligeiro, rodopiou levantou o vestido
mostrou as coxas ele pulou para segurála, ela recuou e propôs: primeiro tu
tiras toda a roupa e bota ali na raiz da
figueira. Aquilo foi mais que um pedido,
foi uma ordem. Nervoso, tremendo de
desejo, tirou a roupa, ela riu e disse:
agora me pega. Disparou e ele correu
atrás, ela fugiu, ele voltou e não
encontrou a roupa. Ficou nu, escondido
dentro do mato, todo picado por mutucas,
até anoitecer.
Detetive Silva encostou a barulhenta
moto na parede, desligou, olhou o pátio;
um bando de gansos gritou, as marrecas
correram para a água, galinhas espalhadas
pelo terreiro, bem perto da casa um bando
de frangos da água, um casal, barulhento,
de jaçanãs que ali são chamadas de
saracuras do banhado e chegou à porta,
que estava aberta, gritando:
-- Oh de casa!
Dinarte
apareceu,
cuia
na
mão,
dizendo:
-- Bom dia seu detetive... Entre que a
casa é sua... Hoje o senhor vai almoçar
comigo, tem bifes de peito de ganso...
Quando tiver camarão vou lê convidar pra
comer camarão com berduega...
-- Pode ser... Aqui estou eu, de novo,
para fazer perguntas.
-- Pois veja: eu respondo. Dizem que
eu sempre tenho a resposta na ponta da
língua. Pois veja: eu não sou de uma
família que tem aqui neste lugar e que é
muito conhecida por casarem primos com
primas e de sempre terem a resposta na
ponta da língua. Pois veja: eu sou
Dinarte Souza, até dizem que este Souza
vem ser parente do tal general da guerra
dos farrapos, o tal de Antonio de Souza
Neto que é o filho mais ilustre deste
povoado, pois veja: esta gente Souza foi
tudo morar no Uruguai, mas eu nem ligo
para isto, afinal não vai me ajudar a
pagar as contas... Sente e fique a
vontade.
Sentou tirou o bloco de anotações do
bolso, leu e fez a pergunta:
-- O senhor nunca teve briga com o
finado?
-- Pois veja, se tive foi alguma briga
sem importância nos tempos de guri. Pois
veja que eu sou até muito agradecido ao
finado e a dona Cotinha. Pois veja que
esta casa e o pedacinho de campo, onde
crio umas vaquinhas das quais tiro uns
litros de leite, quem me ajudou a comprar
foram eles. Pois veja eu era um pobre
peão de leitaria e eles me deram coragem
e até emprestaram um pouco de dinheiro
pra eu fazer a compra. Pois, veja eles me
ajudaram porque eu também ajudei muito
eles. Que quando o finado Estrabulega e o
Ventana sumiram...
-- Desculpe: sumiram?!
-- É teve um tempo que os dois sumiram
e ninguém nunca descobriu onde eles
andavam. Mentiras apareceram às dúzias:
diziam que eles tinham se metido em
contrabandos
e
estavam
presos
na
fronteira.
Contavam
que
eles
tinham
brigado
numas
carreiras
em
Canguçu,
tinham matado gente e andavam fugindo. Um
ferroviário contou que uma noite os
encontrou na estação de Santa Maria. Era
muita estória! Naqueles tempos andavam
uns bugres de Mato Grosso percorrendo o
Brasil em caravanas, com cavalos, burros
de carga, dormiam em barracas, índios que
o governo tirava da selva e patrocinava
esta andança, pelo País, para ficarem
civilizados,
pois
veja,
era
para
aprenderem a beber, fumar, brigar, dizer
bandalheiras. Então diziam que os dois
tinham se juntado com umas bugras e
andavam numa destas caravanas.
Teve
gente que disse que os dois estavam aí em
Pelotas e que eram amantes da Leonor.
A verdade ninguém nunca soube.
-- Sim, mas o senhor estava dizendo
que eles o ajudaram...
-- É. Pois veja: quando os homens
sumiram. Dona Cotinha tomou conta da
leitaria e botou de empregados eu e
Juvêncio. E foi num tempo muito brabo e
perigoso, por aqui: é que tinha uma
quadrilha de ladrões de gado, andaram
arrombando a estação; apareceu um homem
morto na beira dos trilhos que nunca
ninguém soube quem era o morto e nem quem
matou,
pois
veja
que
fizeram
uma
sabotagem nos trilhos pra virar o carro
motor
que
naquele
tempo
viajava
de
Jaguarão para o Rio Grande e diziam que
carregava muito contrabando, foi um tempo
de medos e muito serviço. Fez nós
trabalharmos
bastante,
mas
foi
reconhecida.
Detetive Silva anotou e perguntou:
-- E Juvêncio? Eles ajudaram?
-- Pois veja: Juvêncio casou com a
filha de um tuco. Tuco era como a gente
chamava os ferroviários que ajeitavam as
linhas...
-- Desculpe: eu sei, meu pai era
ferroviário.
-- Então ta. Ele casou e a mulher
convenceu irem morar no Rio Grande. Lá
tiveram dois filhos e ela o traiu. Botou
guampas nele e fugiu de casa. Os filhos a
sogra criou e ele se jogou na cachaça.
Quando o finado e dona Cotinha souberam,
os dois foram ao Rio Grande e trouxeram,
ele. Pagaram o tratamento, ajeitaram
papeis de aposentadoria e encostaram, ele
neste serviço de guarda... O senhor
aceita um trago de barranca a baixo?
Detetive Silva, limpou a garganta,
aceitou o trago. Dinarte foi à cozinha
buscar o copo com a bebida enquanto o
detetive anotava em seu bloco. Bebeu o
gole, sacudiu a cabeça:
-- Boa... Seu Dinarte eu pergunto: O
finado Estrabulega brigava muito com o
Juvêncio?
-- Pois veja, nos tempos de guri...
Então nos tempos de colégio... Pois veja
que quando o Getulio Vargas espalhou
colégios por toda a campanha, fizeram
este
colégio
do
Capão Seco:
Escola
Alcides Maia, que eu nem sei quem é este
Alcides Maia...
-- Foi um escritor...
-Deste
tipo
de
gente
eu
não
entendo... Pois veja: a gente foi os
primeiros as estudar neste colégio. Pobre
da professora, que aqui ninguém era
acostumado com isto. Hoje tem um ônibus
pra trazer os alunos e tem até merenda
por conta do governo. Naquele tempo a
gente vinha a pé, de tamancos, alguns até
de pés descalços, os de mais longe vinham
a cavalo, todos de calças curtas seguras
por tirantes de pano. Na frente do
colégio ficava amarrado um mundo de
cavalos.
Na
hora
do
recreio,
pra
desespero da professora sempre se faziam
carreiras de cavalos e depois o castigo.
Pois veja nos tempos de colégio foi que o
finado Estrabulega muito brigou com o
Juvêncio. Teve a briga do bilhete e a
briga dos tamancos.
Briga do bilhete foi por causa de um
bilhete que o Juvêncio recebeu com a
assinatura de Leonor. Juvêncio vivia de
beiços caídos por Leonor e ela não
gostava dele, seguido os dois discutiam
ela dizia: vai te enxergar! Ora vai te
deitar vinagre! Mas numa manhã, estava em
cima da classe de Juvêncio o bilhete de
Leonor onde ela dizia que gostava dele e
que duvidava, na hora da saída, ele pegar
a mão dela. Ah na hora da saída,
Juvêncio,
brilhando
de
contentamento
chegou e segurou a mão dela que nem
vacilou virou um tapa no rosto dele. A
risada foi geral. Juvêncio descobriu que
quem escreveu o bilhete foi Estrabulega,
brigaram a socos, ponta pés e cuspidas.
A briga dos tamancos foi porque o
Juvêncio calçou os tamancos e caiu. É que
os alunos entravam na sala de aula de pés
descalços,
deixavam
os
tamancos
e
chinelos perto da porta. Coisas de guri,
apressado,
já
deixavam
os
calçados
virados para a saída, no momento que a
professora dizia podem ir, levantavam
ligeiro como um bando de bichos e quase
correndo enfiavam os pés nos calçados e
saiam contente para a liberdade. Uma
manhã,
Juvêncio
saiu
da
classe
já
correndo, enfiou os pés nos tamancos,
tropeçou
e
caiu.
Estrabulega
tinha
pregado os tamancos no assoalho.
Detetive Silva anotou e disse:
-- Brigas de guris... Nada de ódios.
-- É.
Dinarte rio e contou a briga do burro
tisnando.
Dia de chuva, a gurizada estava na
casa da Leonor, jogando o “burro tisnado”
e o Juvêncio perdeu, e quem foi tisnar a
cara dele foi o Estrabulega: passou óleo
misturado
briga...
com
merda
de
galinha.
Deu
Madrugada silenciosa, Juvêncio viu o
vulto passando debaixo dos poucos postes
de iluminação do povoado: Rui Gordo
voltando de mais uma pescaria. Chegou ao
galpão com um saco cheio de peixes:
-- Bom dia seu Juvêncio...
-- Bom dia, esta rendeu...
-- Tirei umas traíras... O senhor quer
umas?
-- Bah! Deixa umas duas ou três e eu
vou fazer uns filés.
Tirou quatro peixes do saco deixou no
chão
e
ia
saindo
quando
Juvêncio
perguntou:
-- Rui, este Tuca é parente da Leonor?
Rui olhou admirado e respondeu:
-- Mas claro! Pois o Tuca e filho do
irmão dela. O Tuca é sobrinho da Leonor.
Rui Gordo saiu e Juvêncio ficou
sacudindo a cabeça: nem me lembrava.
Gente ruim. Aquele tal empregado novo
quem contratou foi o Tuca. Deus me livre
de pensar injustiças, mas quem matou o
finado foi aquele empregado novo. Mas o
Tuca é sobrinho de Leonor. A Leonor como
era bonita! Quanta punheta bati pensando
nela...
Manhã
bonita,
joão
de
barro
( forneiro) cantando em cima do ninho.
Pousado
na
grande
figueira
o
sabiá
cantava a todo pulmão, o assobio do
cardeal. Um bando de anus passou voando.
Pousada no poste a branca viuvinha. Num
fio de arame o vermelho tico-tico rei.
Juvêncio parou de fazer o canteiro e
ficou olhando a natureza. Passou, voando
bem devagar, um bando de colhereiros, ao
longe o ronco dos tratores da granja de
arroz trabalhando para aproveitar o tempo
seco. Um tico-tico andando pelo campo
procurando comida para um chato filhote
de anu. O anu bota ovo no ninho dos
outros. Perto da parede do galpão um
grande lagarto caminhando sorrateiro. O
barulho da moto: Droga! Ai vem o detetive
chato.
-- Bom dia seu Juvêncio.
-- Bom.
-- Bonito o dia.
-- É.
-- Podemos conversar?
-- Já estamos conversando.
Sorriu, tirou o bloco de anotações do
bolso, folheou, leu e perguntou:
--Diga: Tuca, o genro do finado, é
daqui do povoado?
-- É.
-- A família de Tuca era amiga da
família do finado Estrabulega?
-- Olha diz os antigos que estas
famílias sempre andaram brigando isto
desde os tempos da Guerra dos Farrapos...
Assim: às vezes se davam, às vezes
brigavam...
Estava ali uma boa noticia, anotou,
pensou: aquele era assunto para conversar
com o velho Dinarte. Folheou o bloco e
perguntou:
-- Outra coisa: O senhor Dinarte era
amigo do falecido?
-- Sim.
-- Nunca brigaram?
-- Ora se brigaram! Foi quando eram
guris.
-- E algumas vezes brigaram a socos?
-- Uma vez foi na porrada. Quando
cagaram na manteiga...
Cagaram na manteiga do Dinarte numa
madruga,
na
hora
do
“SL”.
Muitos
leiteiros traziam o leite em carroças e
outros traziam nas chamadas latas de
garupa. Os que traziam em latas de garupa
aproveitavam que devido o trote dos
cavalos de carga a nata batia e em cima
do leite flutuava a manteiga, na hora de
despejarem o leite das latas de garupa
para as latas de viagem, recolhiam a
manteiga. Dinarte trabalhava numa grande
leitaria lá na beira da Lagoa dos Patos e
que para chegar da leitaria até a estrada
tinha
que
atravessar
mais
de
dois
quilômetros de banhado, por isto era mais
fácil trazer o leite no lombo de cavalos.
Muito leite; trazia dez cavalos de carga.
Leitaria de gente muito caprichosa trazia
uma escumadeira e um pano branco. Com a
escumadeira tirava a manteiga da lata e
enrolava no pano branco o qual, depois,
guardava dentro de uma das latas de
garupa para levar de volta. Estrabulega
roubou a manteiga, cagou no pano branco,
enrolou direito e tornou a botar dentro
da lata. Sem saber Dinarte chegou à
leitaria e alcançou para a esposa do
patrão a lata que tinha a manteiga.
Dinarte,
calças
remangadas,
sem
camisa, entrou em casa e voltou com duas
cadeiras dizendo:
-- Seu detetive; vamos sentar debaixo
da corticeira que esta mais agradável.
Sabiás cantando, o bem-te-vi pousado
no
arame,
gritando.
Detetive
Silva,
sentou, pegou o bloco de anotações:
-Aqui
ando
eu,
de
novo,
perguntando...
-- Veja bem: o senhor pergunta e eu
respondo.
-- Quem foi à dona Leonor?
Os olhos do velho brilharam e ele
sorriu, respondeu com entusiasmo:
-- Leonor foi uma das moças mais
bonitas deste povoado. Naqueles bons
tempos aos domingos à tardinha o passeio
aqui era ir ver os dois trens de
passageiros que passavam às sete horas da
tarde. Juntava gente na estação e as
moças iam todas enfeitadas. Veja bem;
Leonor deixava a rapaziada de queixo
caído.
--Me diga uma coisa: Dona Leonor se
dava com o falecido Estrabulega?
-- Veja bem foi à primeira namorada
dele. Até as velhas fuxiqueiras, quando
sentavam pra tomar mate doce e falar mal
da vida dos outros diziam que ele comia
ela. Mas veja bem: depois que Estrabulega
começou a namorar, com a Cotinha, as
famílias brigaram. Veja bem: a família da
Leonor era uma gente muito perversa e
viviam metidos em brigas com os vizinhos.
-- Outra pergunta: O Tuca, genro do
finado Estrabulega, é sobrinho de dona
Leonor?
-- Veja bem: filho do irmão dela. Que
até diziam que foi este irmão dela que
armou a confusão das misturas de gado,
num domingo de tarde, pra enredar o
Estrabulega e o Ventana...
-- Desculpe: que foi esta mistura de
gados?
-- Se o senhor quer ouvir eu vou
contar com minhas palavras. Veja bem: foi
num domingo que teve grandes carreiras na
vila do Povo Novo. Naquele ano a safra da
cebola foi boa e deu bom dinheiro. Veja
bem: veio gente de todo este município do
Rio Grande. Este nosso povoado ficou
vazio, foi todo mundo. Veja bem: no
serviço de leitaria tem uma coisa que se
chama apartar as vacas. De manhã a gente
separa as vacas dos terneiros, que é para
eles não mamar e na hora que a gente vai
tirar leite a vaca esteja com úbere cheio
de leite. O senhor entende?
--Sim, entendi...
-Meu
amigo
veja
bem:
naquele
domingo, bem de tardinha quando o pessoal
começou
a
voltar
das
carreiras,
encontraram as porteiras abertas, vacas
misturadas com os terneiros, gado andando
na
estrada,
alguns
galpões
estavam
revirados com muita desordem, tinha gado
de uns nos campos de outros. Veja bem:
confusão formada. Naquele dia muita gente
teve trabalhos dobrados e prejuízos, pois
não produziram o leite. Mas veja bem:
naquele tempo aqui neste povoado tinha um
costume muito feio, quando queriam falar
mal de alguém ou denunciar, escreviam
versos e deixavam ou na venda, na estação
e até no colégio. Pois botaram uns
versos, até pregaram o papel ali no
grande “ocalito” da estação...
-- O senhor diz o eucalipto?
-- Aqui a gente diz ocalito... Até me
lembro dos versos:
Neste lugar ordeiro
Bagunçaro os desordeiro.
Juntaro vacas com terneiro
Abriram as porteira,
De todas as mangueira.
Pura bagunceira.
Sim senhor.
Prejuízos ao trabalhador
Por dois impostor.
A ninguém eles engana,
Prendam, botem em cana
Estrabulega e Ventana.
-- Me diga uma coisa: Este caso deu
policia?
-- Sim... Veja bem: a polícia andou
aí, mas era tudo intrigas. Não provaram
nada contra eles. Veja bem: eles os dois
também desconfiavam da Leonor e o irmão
dela. Tanto é que em seguida a Leonor,
este irmão dela e mais uns primos
organizaram um baile aí no colégio.
Estrabulega e Ventana acabaram com o
baile. Sabe como?
-- Como?
-- Cortaram cabelo de cavalo bem
miudinho,
misturaram
com
pimenta,
torraram a mistura no forno e na noite do
baile, disfarçados, espalharam no salão.
Aquilo deu coceira nas pernas do pessoal,
só se via gente se coçando. O coça - coça
acabou o baile.
Detetive Silva anotou, leu, coçou a
cabeça e perguntou:
-- E as famílias nunca fizeram à paz?
Continuaram brigadas?
Dinarte coçou a cabeça, pensou:
-- Veja bem: depois esta gente da
Leonor vendeu o que tinham aqui e foram
morar em Pelotas. Mas enquanto moraram
aqui, nunca mais se deram. Veja bem: o
casamento do finado Estrabulega com dona
Cotinha, no principio foi muito cheio de
brigas e tinha gente que dizia que a
Leonor tinha feito feitiço grosso pra
atrapalhar a vida deles. Aqui tinha uma
gente que trabalhava na estrada de ferro
e eles faziam trabalho ruim e a Leonor
vivia junto desta gente. E tem mais,
Leonor vivia indo a casas de gente que
faz mandinga lá na cidade do Rio Grande.
Naquele
tempo
eu
era
empregado
na
leitaria de dona Cotinha e eu que levei
os dois numa mulher que desmanchava estes
trabalhos, em Rio Grande.
Detetive
Silva
leu
as
anotações,
perguntou:
-- Esta foi a primeira vez que as
famílias de dona Leonor e o finado
Estrabulega brigaram?
O velho Dinarte sacudiu a cabeça,
pensou, lembrou:
-- Tinham brigado outra vez, isto
quando eles ainda eram guris. Veja bem:
foi até por causa de um tiro de sal. Aqui
tem uma chácara muito antiga, coisa para
mais de cem anos. Veja bem: eu estou com
setenta e tantos anos e eu era guri e a
chácara dos pinheiros já era velha. Bom,
veja bem: a gente era guri e ia roubar
pinhão lá na dita chácara, até que o
velho que cuidava a dita chácara era
muito brabo e de madrugada quando ele
trazia o leite na estação ele ameaçava os
guris: se eu pego um guri, lá eu cago a
tiros, encho de tiros de sal...
-- Desculpe: sal?
-- É ele carregava os cartuchos com
pólvora e em vez de botar chumbo, botava
sal. O chumbo mata e o sal assustava e
feria. Ferida de tiro de sal é ferida
feia... Veja bem o velho ameaçava com
tiros de sal e umas quantas vezes ele nos
correu dando tiros. Numa tarde que a
gente tava roubando pinhão o velho nos
viu e saiu atrás de nós. A gente
correndo, o irmão da Leonor ia à frente
do Estrabulega, que gostava de passar
rasteiras e deu uma rasteira no guri.
Veja bem: enquanto caiu e levantou o guri
se atrasou e o velho acertou um tiro na
bunda dele. Por causa disto deu briga das
famílias.
-- No caso da mistura dos gados, o
senhor acredita que não foi o finado
Estrabulega?
-- Eu tenho quase certeza que não
foram eles.
O velho Dinarte riu, sacudiu os
braços:
-- O cavalo na procissão, sim foram
eles. O cavalo na procissão...
O cavalo na procissão num domingo de
maio. Dia de festa religiosa na vila do
Povo Novo. Eram famosas as festas do Povo
Novo, pela organização, pela alegria,
pelo
grande
numero
de
gente
que
comparecia e pela fartura de comidas nas
barracas;
leitão
assado
era
o
tradicional. A banda no coreto da pequena
praça,
o
povo
aglomerado
diante
da
pequena
igreja,
o
sacristão
batendo
sinos, o fogueteiro soltando rojões,
autoridades do município segurando o
andor com Nossa Senhora das Necessidades,
a padroeira da vila. A fila dos pagadores
de promessas. O senhor bispo acompanhado
do padre. Musica
e foguetes, sino
batendo, povo aglomerado, alguém deu um
grito: olha o cavalo! Um cavalo em louca
disparada,
com
um
mundo
de
latas
amarradas na cola, investiu contra o
povo. O maestro disparou a musica parou.
O senhor bispo gritou: aleluia!
Quase
derrubaram a santa. O subdelegado tomando
atitudes enérgicas. Gritos de mulheres
atrás de crianças. O cavalo abrindo povo
e arrastando as barulhentas latas que o
assustavam cada vez mais.
Sentado no galpão, escutando rádio e
vigiando os movimentos, Juvêncio avistou
um vulto indo rumo aos trilhos; levantou
para ver quem era; Rui Gordo, com
lanterna, mochila e um caniço no ombro:
porra! Vai gostar de pescar lá no
calcanhar do Judas. Em vez de sentar
caminhou até a janela e ficou olhando o
grande eucalipto; o eucalipto da estação:
só o que restou dos bons tempos. Tempo
dos trens, tempo que o Capão Seco tinha o
time de futebol chamado Primavera. Sentiu
cheiro de zorrilho afastou-se da janela
voltou a sentar, sorriu lembrando o caso
do sino.
O caso do sino foi assim que chamaram
a
bronca
que
aconteceu
com
um
telegrafista
da
estação.
O
tal
telegrafista chegou ao Capão Seco já
sabendo da fama que a estação tinha
durante a madrugada pela anarquia que os
leiteiros faziam. Como o tal telegrafista
veio para ser o encarregado dos serviços
da noite. Era o tempo da segunda grande
guerra e o Rio Grande do Sul o celeiro do
Brasil,
os
frigoríficos
do
estado
trabalhavam vinte e quatro horas por dia
para mandarem comida para a civilizada
Europa
que
se
destruía
numa
guerra
selvagem. Rumo ao porto do Rio Grande
corria
trem
noite
e
dia.
O
novo
telegrafista chegou anunciando que era
muito macho para impor a ordem e o
respeito na plataforma. Uma madrugada;
roubaram
o
sino
da
estação.
O
telegrafista foi obrigado a comunicar a
os chefes e passou telegramas para o
inspetor da quarta seção em Bagé, diretor
de patrimônio em General Câmara, diretor
de almoxarifado em Bento Gonçalves e
senhor diretor da ferrovia em Porto
Alegre: “roubaram o sino estação Capão
Seco”. Na outra madrugada colocaram o
sino
no
lugar.
Novos
telegramas:
“apareceu
sino
estação
Capão
Seco”.
Passados uns dias: “roubaram o sino
estação Capão Seco”. Recolocaram o sino e
mais telegramas: “apareceu o sino estação
Capão Seco”. Madrugada de vento e chuva;
tiraram
o
sino
e
mais
telegramas:
“roubaram o sino estação Capão Seco”.
Três
dias
depois:
“apareceu
o
sino
estação Capão Seco”. Na outra madrugada
levaram o sino e lá vai telegrama:
“roubaram sino estação Capão Seco”. A
tarde chegou um telegrama transferindo o
telegrafista para outra estação.
No pequeno e sujo apartamento o
detetive Silva abriu o pacote de baurus,
pegou um, foi na pobre geladeira pegou um
pote de mostarda, despejou mostarda sobre
o bauru, pegou uma lata de guaraná e
sentou
no
chão,
comendo,
bebendo
e
pensando: amanhã não vou ao Capão Seco
dos remangados. Amanhã minha meta é
descobrir onde mora a tal amante do
senhor
Tuca.
Amantes
alem
de
darem
despesas
são
ótimas
reveladoras
de
segredos. Já sei que aos sábados à tarde
o senhor Tuca não vai à fazenda. Aos
sábados à tarde ele passa no centro da
cidade, compra jornais e revistas, passa
no Café Aquário, toma um café e ruma para
a casa da sua bela e querida amante. O
senhor Tuca é um assassino amador e eu
sou um detetive profissional.
Manhã de domingo, algumas nuvens de
tormenta espalhadas, sem vento, quente;
iluminada. O canto dos passarinhos. Dona
Cotinha desceu do carro, ficou olhando a
várzea verde onde o gado esparramado
pastava.
O
bando
de
carriolas,
barulhento, posou na acácia, o grito dos
quero-queros; lá no fim da várzea; o
cinza dos edifícios de Pelotas. A casa de
Eloá fechada: domingo dia de ela visitar
a sogra. Da casa de Rui Gordo o som de um
rádio tocando música. Um galo cantou. O
vôo das andorinhas e o canto do sabiá.
Olhou a casa principal: muito capim na
volta, falar com o Tuca para mandar
capinar. Juvêncio chegou ao canto do
galpão:
-- Bom dia dona Cotinha.
-- Oh Juvêncio, fiz barulho e te
acordei... Tudo bem contigo?
-- Vai se levando... A coisa aqui anda
meio triste... Fazer o quê?
-- É a vida Juvêncio... Eloá saiu?
-- Saíram cedo, no primeiro ônibus...
Domingo; é infalível eles vão sempre... A
senhora queria a chave?
--Não... Eu trouxe a chave do Tuca.
Olhou para Juvêncio, sorriu, tirou a
chave da bolsa e foi abrir a porta, ele
voltou para o apartamento dizendo que se
ela
precisasse
dele
era
só
chamar.
Respirou fundo: coragem! Abriu a porta,
olhos cheios de lágrimas, entrou pela
cozinha:
a
porta
do
quarto
de
Estrabulega. Desde o dia que ele morreu
que Eloá não mais entrou ali para limpar.
Abriu a janela; na parede as fotos. O
grande armário dos livros e revistas, até
revistas do tempo que ela comprava do
revisteiro do Trem das Cinco. O cantinho
dele; rádio amador, o computador, o
cachimbo. Pegou o cachimbo: presente que
dei para ele última vez que fomos a
Brasília
visitar
Júlio;
comprei
no
aeroporto. Ao lado do rádio amador uma
bula de remédio onde estava escrito a
caneta, com letra apressada, o prefixo e
nome de um rádio amador de Salvador, mas
o que a interessou foi o nome do remédio.
Criou filhos, ajudou a criar netos e
quando
morava
ali
sempre
foi
muito
esperta e prestativa com os vizinhos em
situações de doença. Guardou a bula na
bolsa. No chão perto da cama um pedaço de
caixa de remédio: sonífero? Abriu o
guarda roupas e revirou procurando alguma
coisa mais. Respirou fundo passou a mão
na cabeça. Pendurada na parede a chave do
apartamento de Ventana, no lugar de
costume,
sacudiu
a
cabeça
e
sentiu
curiosidade. Pegou a chave. Entrou no
apartamento, olhos atentos. Em cima da
mesa uma nota de farmácia: aqueles dois
remédios?! Junto à nota um cartão de táxi
tendo escrito atrás, a caneta, a data:
Cotinha, Cotinha, para e pensa: táxi é
porque foi de noite, se fosse de dia o
Tuca saberia e tinha me contado. Fechou o
apartamento e foi bater no de Juvêncio:
-- Pronto; dona Cotinha.
Leu a data e perguntou se ele tinha
notado alguma coisa diferente naquela
noite. Ele pensou, pediu para ela repetir
a data, voltou-se para a parede onde
estava o calendário; ali marcava os dias
que já tinha tirado folga. Sacudiu a
cabeça dizendo:
-- Nesta noite eu tava de folga...
Aconteceu alguma coisa?
-- Não... Nada.
Voltou para a casa principal, foi
recolocar a chave do apartamento de
Ventana no lugar de costume. Novo exame
no quarto: ali entre o computador e o
rádio amador a imagem de São Gonçalo,
tocando sua viola, o santo da devoção de
Estrabulega. Saiu foi até o pé de jasmim,
na frente da casa, colheu umas flores e
foi enfeitar a imagem do santo. O canto
dos sabiás enchia a manhã de domingo.
Triste, olhos com lagrimas fechou a
janela do quarto. Não ia ver o resto da
casa, bastava de lembranças. Fechou a
casa. Um bando de caturritas, fazendo
algazarra, posou no grande eucalipto da
estação. Um bando de maçaricos, voando em
formação. O grito do quero-quero, assobio
de calandra, nos galhos da acácia o ninho
do tin-ti-ri, joão de barro bateu assas e
cantou. A música na casa de Rui Gordo.
Rui Gordo o eterno pescador, Rui Gordo
aquele que pouco dormia; Rui Gordo que
nos tempos em que o povoado tinha
bastantes
morador,
via
os
encontros
amorosos nas noites escuras, Rui Gordo
que sempre sabia quem estava botando
guampas em quem. Rui Gordo que muito
sabia e nada dizia. Dona Cotinha sorriu e
bateu na casa de Rui. Sem camisa,
atendeu:
-- Opa! Bom dia dona Cotinha.
Com Rui tinha que ter jeito para
descobrir qualquer coisa:
-- Bom dia Rui... Quero uma ajuda
tua...
Nada
de
importante,
só
uma
curiosidade.
Pegou o cartão, leu a data e perguntou
se naquela noite ele tinha visto o táxi
chegar. Rui coçou a barriga e sacudindo a
cabeça:
-- Bah! Assim por data? Eu nem sei o
que eu fiz ontem...
-- Rui, tu vais lembrar... Neste dia o
Juvêncio estava de folga...
Ele regalou os olhos e interrompeu:
-- Foi no dia que mataram o finado?
-- Viu como tu lembras as coisas...
Exatamente, mataram o finado num dia de
folga do Juvêncio...
E este dia que eu
estou te perguntando foi outra folga a
folga
anterior.
Entendeu?
Agora
te
lembras?
Coçou a barriga, olhou o bando de
maçaricos. Um avião agrícola da granja
sobrevoou o posto de pedágio e fez
algumas
piruetas,
era
o
piloto
que
namorava uma das atendentes, Rui gordo
sacudiu a cabeça e disse:
-- Vou desligar o rádio... Da licença.
Desligou o rádio, voltou vestindo uma
camisa saiu de casa, o avião continuava
sobrevoando o posto de pedágio; fez sinal
para dona Cotinha o acompanhar, pararam
na frente da casa principal de onde
enxergavam a várzea, os trilhos e os
edifícios de Pelotas. Apontou os trilhos
e contou:
-- Vou dizer por que é pra senhora...
Naquela
noite
eu
tava
pescando
no
primeiro bueiro ali dos trilhos... De lá
eu vi o movimento da ambulância aí do
pedágio chegando aqui... Depois quando eu
vinha vindo embora, foi que chegou o
táxi...O táxi trouxe o seu Estrabulega e
o seu Ventana... Só conto isto pra
senhora...
No posto de pedágio no prédio de
atendimento
do
usuário
a
bonita
e
sorridente recepcionista a convidou a
sentar enquanto chamava o enfermeiro. O
prestativo
enfermeiro
consultou
suas
fichas e concordou que tinham atendido o
senhor
Estrabulega.
Ficou
no
pronto
socorro em Pelotas. O nome do médico não
sabia.
Juvêncio viu o vulto chegando ao
pátio,
ligeiro,
levantou,
pegou
a
lanterna e saiu do Galpão. Ventana,
segurando uma sacola, olhos embaçados,
chegou. Apertaram as mãos e ficaram em
silencio. Há momentos em que o silencio
diz mais que palavras. Entraram para o
galpão e Juvenal comentou:
-- É bom que tu voltasses... Aqui anda
muito quieto.
Ventana sacudiu a cabeça:
-- Tive que fazer força para criar
coragem e voltar... Sem ele, isto aqui,
deve ta uma merda... Vou trocar de
roupa...
-- Depois volta, aqui, vem conversar.
Entrou
no
apartamento,
soltou
a
sacola, ficou parado: aquela era a hora
em
que
os
dois
estavam
sempre
conversando, tomando cachaça composta com
coquinhos, falando no rádio a amador ou
lembrando os bons tempos. Passou a mão na
testa: não devia ter voltado. Morar num
apartamento em Porto Alegre era uma
merda. Embaciou os olhos de lagrimas,
suspirou, olhou as fotos na parede: ele e
Estrabulega num torneio de laço na União
Gaúcha em Pelotas. Os dois numa penca...
Parou de olhar as fotos... Pegou a sacola
voltou para o galpão e diante do olhar
surpreso de Juvêncio avisou:
-- Tche eu vou voltar para Porto
Alegre...
-- Tu tas louco! Fica ai... No
primeiro dia é chato, mas depois...
-- Eu devia ter deixado passar mais
uns dias...
Juvêncio esfregou as mãos, precisava
de um companheiro para enfrentar aqueles
dias difíceis:
-- Tche fica aí, logo o Júlio já vai
vir passar as férias aqui... Outra coisa:
tens que cuidar as galinhas da fazenda,
depois que tu foste à coisa ficou uma
anarquia,
ninguém
recolhe
ovo,
tem
galinha choca com ninhos escondidos,
apareceu uma galinha cheia de pintos,
depois os pintos sumiram; com certeza os
caranchos comeram... O Tuca queria cortar
o bosque de sinas-sina, não deixei e
avisei a dona Cota... Aquelas sinas-sinas
têm mais de duzentos anos... E a tua
horta...
-- Minha horta deve ta suja...
-- Estes dias eu capinei...
Ventana soltou a sacola, caminhou na
volta, Juvêncio continuou:
-- Tu ficas aí e amanhã a gente vai
visitar o Dinarte. Eu até ando pensando
em a gente combinar com ele de no próximo
São João se fazer um terno para cantar
santinhos...
A
gente
pode
fazer
um
torneio de truco... Vamos lá comer um
arroz com marreca, ele diz que faz o
melhor arroz com marreca...
Ventana sacudiu os braços, suspirou,
segurou a sacola e concordou:
-- É, vou ficar... Vou preparar um
mate e venho pra cá tomar contigo.
Juvenal sorriu, olhou as horas e
comentou:
-- São onze horas da noite. Esta hora
nem dá para tu ires para Porto Alegre...
-- Passa um ônibus, aqui, às onze e
meia...
-- Aquele ônibus para aqui?
-- Claro que para...
-- Muito difícil alguém embarcar nele.
Porra, neste tempo que eu sou guarda,
aqui, eu nunca vi; ele parar. E dá pra ir
a Porto Alegre?
-- Claro que dá! Pego o ônibus das
onze e meia, aqui, quinze para a meia
noite chego na rodoviária de Pelotas.
Meia noite sai um ônibus de Pelotas para
Porto Alegre. Três horas, da madrugada,
chego
a
Porto
Alegre.
Dez
minutos,
depois, entro no apartamento da minha
filha. Eu tenho a chave da porta dos
fundos e eu durmo no quarto da área de
serviço. Chego lá e ninguém vê a hora que
eu chego.
No
pronto
socorro,
dona
Cotinha
entregou um papel à recepcionista: ruiva,
sardenta, óculos de grau. Perguntou:
-- Faz favor... Vê se nesta data vocês
atenderam esta pessoa que esta aí no
papel?
A recepcionista, ruiva e sardenta,
pegou
o
papel
e
voltou-se
para
o
computador. Olhou no monitor, alguns
minutos examinando as planilhas e voltouse dizendo:
-- Esta pessoa foi atendida aqui, sim
senhora...
-- Eu posso saber qual foi o médico
que o atendeu?
-- Pode... Um momentinho.
Tornou a mexer no computar, alguns
segundos e perguntou:
-- A senhora quer que eu anote aqui?
-- Por favor! Se tiveres o endereço do
consultório...
A recepcionista, ruiva e sardenta,
devolveu o papel dizendo:
-- Pronto; senhora, nome do médico,
endereço do consultório e numero do
telefone...
À tarde, vinham voltando da venda
Juvêncio e Ventana, combinando em jogarem
umas partidas de escova. Saiu o ônibus
com as crianças de colégio, o carro das
professoras. Um automóvel parou na frente
da
casa,
perto
do
colégio,
onde
fabricavam ótimos queijos. Tuca embarcou
na caminhonete, ligou o motor, pegou a
agenda eletrônica de dentro do porta
luvas, digitou um numero de telefone e
tornou a colocar no porta luvas. Passou
por Eloá que estava colocando flores e
acendendo velas na gruta de São Gonçalo,
perto do grande eucalipto da estação.
Neste momento o telefone chamou, parou a
caminhonete e atendeu:
-- Sim, pois não: Tuca
-- Oi Tuca, aqui é a Eloisa... Boa
tarde.
-- Boa tarde dona Eloisa.
-- Esta chovendo aí?
-- Não; mas esta muito nublada e o
vento nordeste esta bem forte...
-- Aqui em Porto Alegre esta chovendo
desde o meio dia... Tuca; estou ligando
para saber noticias do meu marido...
-- Seu Ventana esta bem. Faz quatro ou
cinco dias que ele chegou... Ainda anda
um pouco triste...
-- Pois é... Também foram setenta e
quatro
anos
juntos...
Eu
estava
preocupada, que ele saiu daqui muito
abatido,
aliás,
no
dia
em
que
o
Estrabulega morreu parecia até que o
Ventana estava adivinhando, pois naquele
dia ele levantou esquisito, ao meio dia
comeu pouco, e saiu para a rua de tarde e
só voltou de noite. A gente não viu a
hora que ele chegou, mas o porteiro do
edifício contou que ele chegou eram mais
de três horas da madrugada...
Perto do tronco da amoreira a grande
cobra parelheira, quieta, cabeça erguida
e
com
os
olhos
fixos
atraindo
a
carochinha que aos gritos vinha descendo
da arvore, pulando de galho em galho.
Ventana escutou os gritos da carochinha:
é cobra que ta atraindo passarinho. Pegou
uma vara e foi ver. Correu a parelheira,
que na fazenda de dona Cotinha não se
matava cobra parelheira; que esta come as
cruzeiras e ratos. Soltou a vara, foi à
lenheira
juntar
gravetos,
voltou
ao
apartamento. Fez fogo, botou a panela com
o feijão de remangado; feijão feito junto
com milho verde e guisado de carne.
Preparou o mate, encheu um pequeno copo
com marafatinga de butiá e sentou perto
do fogão pensando no tempo em que os dois
foram a Santa Isabel dos Canudos.
Santa Isabel dos Canudos, as margens
do Canal de São Gonçalo, que a nove de
maio de 1882 foi elevada à categoria de
cidade e que a cinco de dezembro de 1890
voltou à categoria de vila. Pois foi em
Santa Isabel que nasceu Eloisa. Quando
ela tinha nove anos na grande enchente do
Canal de São Gonçalo, em 1941, perdeu os
pais; uma canoa que naufragou. Acabou
sendo criada por uma tia. Tia por ter
sido casada com um irmão do pai dela e
este foi morto em 1941 numa briga que
aconteceu numas carreiras. Pois a tal tia
viúva tinha uma cambada de filhos homens;
seis. Eloisa mulata bonita, que o pai era
negro e a mãe era branca, se criou no
meio dos marmanjos e agüentando aquela
tia malvada e perversa que a botava no
serviço e ainda dava castigos. Ajudava a
cortar palha, com dez anos já armava
ratoeiras nos banhados para caçar ratão.
Cortava
junco
para
venderem
aos
plantadores de cebola. Limpava peixes
para salgar. Enquanto os primos andavam
na vila jogando pião, atirando pedras de
bodoques, ela carregava lenha, trazia
água na pipa, ajudava a malvada da tia a
lavar roupa. Roupa, coisa que ela nem
tinha, andava com camisas dos primos, às
vezes algum vestido velho que ela pedia
as moradoras mais endinheiradas da vila.
Eloisa que se criou tomando banhos no São
Gonçalo, sempre de pés descalços, andando
nos banhados, morando numa choupana de
pau a pique com paredes feitas de palha,
dormindo no chão, foi quem balançou o
coração de Ventana.
Estrabulega casou em março de 1948,
que a principio o pai de Cota era contra
o namoro dos dois. A fama de desordeiro
de Estrabulega era conhecida do velho.
Até que quando serviram no quartel, os
dois
serviram
em
Pelotas
no
Nono
Regimento
de
Infantaria,
na
Quarta
Companhia de Fuzileiros. Isto foi no ano
de 1946 e os dois , seguido estavam na
cadeia. Tinha nesta companhia um soldado
muito puxa saco cujo apelido era o
Bundinha. Pois na véspera de um exercício
de tiro, Estrabulega e Ventana pegaram o
fuzil do tal Bundinha e entupiram o cano
com pedaços de pano. No dia do exercício
o sargento perguntou quem era voluntário
para ser o primeiro. Claro que foi o
Bundinha; carregou a arma, ficou de pé no
estante de tiro, mirou o alvo, acionou o
gatilho e caiu de bunda jogando a arma
longe. Quem foi? Quem não foi? Os dois
para a cadeia.
Um dia Estrabulega entrou no Posto de
Comando da Companhia, pegou a túnica do
capitão que estava pendurada na cadeira,
vestiu e saiu a andar pelo quartel;
avistou três recrutas vindos da colônia,
chamou fez se apresentarem. Perguntou se
estavam com saudades de casa. Deu quinze
dias de folga com uma condição: na volta
tragam galinhas e ovos. Quinze dias,
depois, os três recrutas entraram no
Corpo da Guarda; carregados de galinhas.
Quem foi? Quem não foi? Trinta dias de
cadeia.
Fazer mosquito: atavam um tamanco na
mão
de
um
soldado,
que
estivesse
dormindo, durante a noite e acendiam um
fósforo, apagavam e botavam a ponta
quente do fósforo na testa do infeliz que
ao sentir a dor dava o tapa com o
tamanco.
Ventana jogou duas dúzias de rapadura
de palha que fazia mosquito no sargento
da guarda. Ganhou as rapaduras e trinta
dias de cadeia.
Pois junto com eles serviu um primo de
Cota que é bom que se diga o tal primo
era apaixonado pela prima e foi um dos
que, em 1947 quando a prima começou o
namoro,
andou
contando
e
aumentando
coisas do Estrabulega para o tio. Mas o
amor foi mais forte, aliás, foi até mais
forte que os feitiços que Leonor preparou
nas encruzilhadas. Pois o pai da noiva
que a principio era contra resolveu
apresar o casamento, com medo que o noivo
comesse a noiva e o pior; comesse,
deixasse para dar cria e se mandasse a lá
breca. Casamento na igreja e festa no
clube. O noivo tremeu: Bah tche! Igreja?!
Clube?! Este troço pode ser no Capão Seco
se faz um churrasco e umas ambrósias,
rapadura de leite umas gasosas, tudo sem
muita frescura. A festa de casamento quem
faz é o pai da noiva: igreja, clube e os
doces de Pelotas. Na Igreja do Porto numa
ponta do altar o padre e o sacristão, na
outra ponta o noivo esperando a noiva,
igreja cheia. No primeiro banco vestidos
a gaúcha, com as botas fedendo a bosta de
vaca;
Dinarte
e
Juvêncio.
O
noivo
nervoso, naquele tempo Estrabulega ainda
fumava, viu as velas no altar, tirou um
cigarro do bolso, acendeu na chama da
vela, tirou uma baforada, risadas na
igreja e o padre desesperado fazendo
sanha com os dedos para ele não fumar.
Viu o padre batendo com os dedos na boca:
ah o seu vigário também pita. Ofereceu um
cigarro ao padre.
Estrabulega casou no inicio de março
de 48 e no fim de março a tragédia.
Isolina a mãe de Ventana foi à lenheira
buscar lenha e uma cobra cruzeira a
mordeu; morreu ali na lenheira. O pai de
Ventana o negro Cacildo que em lida de
campo;
laçava,
pealava,
domava,
era
ginete dos bons, fazia arames, sabia arar
terra, leite até tirava pouco, era muito
guapo. Pois o Cacildo ao perder a
companheira caiu numa tristeza e se
atirou a beber cachaça, uma semana,
depois, muito bêbado caiu na frente do
Trem das Cinco. Com a morte dos pais,
Ventana, vestiu-se de preto e jurou tirar
luto um ano, nem nas estripulias na hora
do “SL” se metia. Mas, diziam que quando
colocaram o peixe nas latas, ele foi um
dos que. Tudo começou quando ali apareceu
um peão de leitaria, vindo do Rio Grande,
rapaz novo e muito metido: comigo ninguém
faz sacanagem que eu sou macho e rebento
a pau. A turma respeitou, tratou bem até
ele ganhar a confiança e ser desafiado
para uma carreira de carroças, valendo
cinco dúzias de rapaduras de leite.
Barbada que a outra carroça além ter
rodas frouxas era puxada por um cavalo
velho. Soltada da frente da venda. Os
safados tiraram as chavetas que seguravam
as rodas da carroça do tal peão metido a
ser mais macho. As carroças começaram a
correr e saiu uma roda para cada lado, a
carroça bateu no chão o cavalo assustou e
disparou esbodegando tudo. O peão perdeu
o emprego e na outra madrugada o dono da
carroça chegou à estação e na venda
estalando relho, espumando de brabo e
desafiando: quem foram os filhos das
putas? Não são homens seus putos de
merda?! E ia da venda para a estação e da
estação para venda. Estalando o relho,
revolver a mostra na cintura humilhando e
desafiando: cambada de filhas da puta!
Tirem as rodas da minha carroça se são
homens! A turma ficou quieta. Ele voltou
mais umas três ou quatro madrugadas até
que acalmou. Pois quando tudo estava
calmo é que o trem chegou à cidade do Rio
Grande e o fiscal da saúde destapou, para
examinar, as latas do homem brabo, e
nadando
no
leite
sapos
e
lambaris:
produtor sem escrúpulos bota água de
açude no leite: multa...
No inicio de 1949, ano que marcou o
povoado do Capão Seco devido que caiu o
vão móvel da ponte sobre o São Gonçalo;
os trens vinham de Rio Grande até ali,
dali passageiros e cargas seguiam pela
rodovia até Pelotas. Pois no inicio de 49
que embora ainda não fizesse um ano que
Ventana estava de luto, Estrabulega o
convenceu a irem umas carreiras em Santa
Isabel. Neste dia a moça Eloisa deixou
muito marmanjo de olho caído e entre eles
o Ventana que quando os olhos dele
encontram os olhos dela sentiu um tirão
no coração. Andou, rodeou, custou a
chegar perto da mulata que andava vigiada
pelo bando de primos. Aliás, estes primos
viviam de beiço caído por ela. Beiço
caído e pau duro. Mas conseguiu chegar
perto dela e até tirarem uma conversa.
Conversa
cujas
frases
tiveram
mais
vírgulas que palavras. No fim da festa
ele prometeu: eu volto pra te buscar.
Neste
momento
os
olhos
dela
se
iluminaram, o corpo tremeu de alegria e
ela disse; duvido! Aquele “duvido” soou
mais que um desafio, soou como um apelo.
Na viagem de volta o homem voltou triste,
pensativo
e
de
nada
adiantaram
as
brincadeiras
de
Estrabulega.
Ventana
comia pouco, não dormia, pensando em
Eloisa e mais a idéia fixa de ir buscála. Na sexta feira seguinte ele avisou a
Estrabulega que iria a Santa Isabel, mas
como o Estrabulega e outros já tinham
organizado uma carreira de carroças para
aquele fim de semana, o convenceu a
ficar. Domingo de tarde na carreira de
carroças
apareceu
uma
autoridade
do
distrito para manter a ordem na festa.
Baixinho, nariz empinado, peito estufado,
caminhando com muita pose, recebeu o
apelido;
Garnisé.
Pois
o
dito
cujo
gostava de montar no cavalo com este
andando. Batia na anca do cavalo este
caminhava e ele botava o pé no estribo,
meneava a outra perna e montava com
garbo. Mas, o tal Garnisé desmontou e foi
comer pastéis, que o bom das carreiras,
são
os
pastéis,
quando
voltou
para
montar; fez o de sempre, bateu na anca
deixou o cavalo apressar o passo, botou o
pé no estribo, ergueu o corpo e caiu com
os arreios por cima. Tinham cortado as
cinchas.
Ventana
ganhou
uma
corrida
de
carroça, mas nem ganhou nada porque o
pensamento dele estava muito longe, lá em
Santa Isabel dos Canudos e tinha nome:
Eloisa. Na segunda feira os dois vinham
voltando do banhado onde tinham ido
ajeitar uma cerca de arame. Queimados do
sol,
sem
camisa,
calças
remangadas,
montados em pelo. Na frente da venda
muitas carretas cheias de cebola. Pararam
os cavalos, desmontaram e entraram na
venda onde o Dinarte estava sentado num
barril.
Estrabulega
provocou
para
a
porfia:
-- Entrei
Dinarte respondeu:
-- Entrou na venda e eu atrás...
-- Atrás de conversa mole que eu mando
o duro...
-- Duro bastante tempo empurrando...
-- Empurrando cachaça, goela a baixo,
pra festejar enquanto eu enfio...
-- Enfia a cara no canto pra gemer
baixinho com o meu grande...
-- Grande vai ser tua alegria com o
meu gozo...
-- Gozo por trás o teu que pela frente
é o meu
-- Meu o teu já foi...
-- Foi o que tu imaginaste quando
sentou aqui...
-- Aqui é a venda, lugar de respeito.
É bom parar...
Riram os três, tomaram refresco de
groselha e comeram doce de abobora com
queijo. Estrabulega e Ventana montaram e
seguiram para a fazenda que ainda tinham
muito serviço a fazer. Juntaram o pequeno
rebanho de ovelhas e escolheram uma para
matar; carne para o consumo da fazenda.
Quando estava tirando o couro da ovelha,
Ventana avisou:
-- Esta noite eu vou a Santa Isabel.
Estrabulega
deu
uma
risada
e
respondeu:
-- Os “ratoneiros” vão te correr de
lá.
Ventana sacudiu a faca no ar, olhou
bem para o amigo e repetiu:
-- Eu vou esta noite.
Estrabulega conhecia o amigo e viu que
ele não estava brincando. Pensou e fez a
proposta:
-- A gente janta, deita pra descansar
um pouco, a meia noite a gente sai.
Amanhã à tardinha a gente chega lá.
Às vezes as coisas se preparam de
maneira que fica difícil entender o
motivo.
Naquela
segunda
feira
as
ratoeiras amanheceram todas com ratões, e
naquela
manhã
atracou
o
barco
do
comprador de couros de ratão. No cais um
barco encostado porque quebrou o motor
com dois tripulantes músicos; um tocador
de um violão desafinado e outro tocador
de uma gaita fanhosa. Com tanta carne de
ratão, dinheiro da venda dos couros a
turma dos ranchos beira rio (ou beira
canal?)
estava
alegre.
O
negro
Zé
Ratoneiro teve a idéia: vo aperparar um
fandango.
Estrabulega e Ventana chegaram do
outro lado do canal, olharam a vila; a
branca igreja, as velhas árvores da praça
as casas grandes, o cemitério e o
rancherio a beira da água. Fizeram sinal
chamando um canoeiro, tiraram os arreios
dos cavalos. Os dois com os arreios na
canoa e os cavalos a nado.
Quando os dois vinham entrando na
vila, Eloisa vinha da beira da água
puxando uma pipa cheia, enquanto ela
fazia força os primos, uns negros grandes
e fortes, iam dando risadas e conversando
com um ruivo alto metido a besta, Que
este tal ruivo lá estava para levar a
moça Eloisa a um trabalho em Pelotas.
Conte se que tudo era um acerto com a
malvada e safada tia. O trabalho em
Pelotas era levar a mulata bonita para
trabalhar num cabaré de quinta categoria
na zona do Porto em Pelotas. O safado do
ruivo
se
intitulava
empresário;
empresário, coisa nenhuma; o pilantra era
batedor de carteiras na Estação do Trem,
gigolô de alguma china pobre da volta do
Mercado Público e às vezes recolhia
listas do jogo do bicho. O ordinário já
tinha mil planos; na viagem até Pelotas
iria tirar os tampos da linda mulata, que
os primos aqueles, molóides não tinham
comido. Os primos viviam de queixo caído
e pau duro para os lados da prima.
Quantas punhetas batidas! Molóides não,
muito tentaram, mas a prima tinha unhas
grandes e sabia arranhar, outra coisa;
mordia bem demais e era muito ligeira. De
longe ela os viu, eles não a viram. Ela
sentiu alegria, sorriu e pulou.
Os dois amarraram os cavalos, só com o
buçal, na beira do canal, para pastarem e
seguiram com os arreios nas costas,
pararam numa venda onde souberam do
baile, comeram peixe frito e tomaram
vinho. A todo instante Ventana ia à porta
da venda e olhava a rua na esperança de
ver Eloisa. Estrabulega perguntou:
-- E se ela não mora mais aqui?
-- Mora... Tem uma coisa nas minhas
tripas que diz que ela mora.
Comeram, beberam, pagaram à despesa ,
saíram, deixaram os arreios junto à
parede, pelo lado de fora da venda e
foram caminhar pela vila entraram na rua
dos ranchos onde um grupo de homens
jogava a petisca. Crianças nuas rolavam
na areia. Dois ou três cachorros latiram.
No rancho paredes de torrão, coberto de
palha o negro Zé Ratoneiro aperparava o
baile. Ventana sentiu o peito tremer,
Eloisa e os primos estavam tirando peixes
salgados dos varais, ao vê-lo ela acenou
e gritou: tem baile. Um dos primos a
mandou ficar quieta. Coração pulando de
contente, os dois voltaram e foram sentar
na
porta
da
igreja.
Estrabulega
perguntou:
-- Como vai ser?
-- Na hora do baile eu convido ela...
A gente monta, ela na minha garupa e se
vamos...
-- Bah tche! Ta fácil demais... Tu
achas que aquele bando de negros que
andam na volta dela vai deixar?
-- Mas aqui nas tripas me ronca que
vai ser assim...
-- Para com este ronco de tripas e
bota os pés no chão... Outra coisa: e
atravessar o rio?
Ventana coçou a cabeça, preocupado.
Estrabulega continuou:
-- Nem dá pra pensar em varar o rio. A
gente fugindo não vai ter tempo de
conseguir canoeiro.
-- Bah tche! Eu nem tinha pensado.
Estrabulega olhou para os lados e
planejou:
-- Bueno... A gente pega esta estrada
que passa na frente do cemitério e entra
pra
dentro
da
noite...
Então
fica
acertado a gente sai por esta estrada...
E
se
formou
o
fandango
do
Zé
Ratoneiro, alguns trouxeram cadeiras, um
negro gordo com os pés descalços, roupa
fedendo a fumaça, respingou água no chão
batido pra não levantar poeira. Ajudado
por uma velha gorda que não parava de dar
risadas, Zé Ratoneiro improvisou a copa
num canto; dois fogareiros a carvão, duas
barricas com água onde mergulhou as
garrafas de gasosa e as de cerveja, que
naqueles tempos gelo só lá nos pólos do
planeta, uma mesa velha meio guenza. Dois
lampiões, a querosene, pendurados nas
paredes e um em cima da mesa era o que
iluminavam a espelunca. Aos poucos foi
chegando gente. Depois que respingaram
água as pulgas se alvorotaram. Antes de
começar a música começou a fumaça na copa
que a velha gorda fritava pedaços de
ratão do banhado a moda ratoneiro; ferve
a carne na água junto com os temperos,
depois escorre frita e depois de frita
mistura farinha de mandioca. Começou a
música e se alvorotou o pulguedo.
Afastados, segurando pelas rédeas, os
cavalos já encilhados, os dois cuidavam
os movimentos.
Acompanhada dos primos, dois deles de
adagas na cintura, o ruivo de sapatos
brancos, calças brancas encardidas de
sujeira e os cabelos emplastados de
brilhantina, Eloisa chegou.
Enquanto
amarravam
os
cavalos,
Estrabulega avisou que Ventana não podia
beber nada, que na hora da fuga tinham
que estar firmes. Entraram e por entre a
poeira os olhos de Ventana viram os olhos
de
Eloisa.
Era
cheiro
de
fritura
misturado com o da fumaça dos lampiões e
mais
o
da
poeira.
E
o
pulguedo
fervilhando.
E o safado do ruivo dançando com
Eloisa e quando os dois paravam os primos
os
cercavam.
Ventana
bateu
os
pés,
Estrabulega sentiu fome e foi comer ratão
frito e tomar cerveja morna. Notaram que
a coisa não ia ser fácil. Combinaram;
primeiro foi o Ventana e depois o
Estrabulega,
pegaram
as
adagas
que
carregavam nos arreios e botaram na
cintura, por dentro da roupa.
Que na
adaga não se apertavam não que fossem
desordeiros e brigões, mas no Capão Seco
no intervalo entre o Trem das Cinco e o
Trem das Sete (estes cinco e sete são da
tarde) era a hora que se juntavam ali na
venda para jogarem osso ou esgrima no
jogo do talho. Os dois eram bons neste
jogo. Jogavam conversa fora e é claro
bebiam
cachaça,
comiam
mortadela
ou
lingüiça que fritavam dentro do prato da
balança, botavam a lingüiça dentro do
prato da balança, despejavam álcool e
tocavam fogo, acabava o álcool a lingüiça
estava pronta; comiam com farinha de
mandioca. Aquela era a hora que mulher
não ia à venda, a hora que as fuxiqueiras
tomando mate doce chamavam de a hora dos
bêbados.
E seguia o baile e Ventana comeu um
pedaço de ratão frito a moda ratoneiro,
tomou um gole de cerveja morna, bateu no
braço de Estrabulega e se foi onde estava
Eloisa, segurada no braço pelo ruivo
metido a besta, mas nem bola deu pro
ruivo, convidou ela a dança e ela
aceitou.
Os
primos
meio
que
se
alvorotaram e Estrabulega ficou na ponta
dos
pés.
Dançaram
uma
música,
duas
musicas,
conversaram,
combinaram
e
pararam perto onde estava Estrabulega e
ligeiro
Ventana
contou
que
ia
ser
difícil, seguiram dançando, que ele não
podia soltar o par. Estrabulega chegou
perto dele e avisou: dança perto da porta
que eu arrumo confusão e vocês somem no
meio da noite. A gaita fanhosa, o violão
desafinado,
a
poeira
levantando,
as
pulgas subindo pelas pernas, o cheiro de
fritura e era o momento. Estrabulega
chegou perto da mesa guenza, pediu a
velha gorda uma cerveja, quando pegou a
garrafa fez um movimento brusco e bateu
no lampião, e na confusão virou a mesa e
correu para a porta por onde já tinham
saído Ventana e Eloisa. O ruivo metido a
besta quis segura-lo. Estrabulega deu lhe
com o bico da bota nos ovos, mas com
tanta força que ele deu um urro e caiu
gemendo. Ventana montou e com toda a
força do mundo levantou Eloisa para ela
se acomodar na sua garupa, gritou e fez o
cavalo atropelar uns dois ou três que
tentaram
o
atacar,
se
foram
noite
adentro. Na saída dois primos tentaram
deter Estrabulega a adagas, mas não teve
nem graça; deu um planchaço na nuca de um
que caiu gemendo e no outro deu meia
dúzia de planchaços, montou e rumou para
o meio da noite gritando; por aqui que
não tem espinhos.
No bairro da Várzea em Pelotas, no
inicio da Rua Álvaro Chaves, Dona Cota,
estava triste, ainda abalada pela perda
do companheiro. Mas era ela a líder da
família e tinha muita coisa para pensar.
Lá do quarto as vozes das duas netas que
jogavam vídeo game. Juliana, sua filha,
aprontou-se para sair, professora na
universidade ia até a secretaria entregar
as notas dos exames; gritou se despedindo
das filhas, beijou a mãe e saiu batendo a
porta. Dona cota foi ao escritório,
sentou
diante
do
computador,
passou
mensagens
aos
filhos:
Julio
e
Juan
avisando que enquanto fosse viva não iria
mexer
na
herança.
Foi
para
cozinha
preparar
um
coelho
a
capaõsequense,
comidas dos tempos que ela e Eloisa
tocavam a fazenda, naqueles anos difíceis
e elas criavam coelhos para terem fartura
de carne, depois uma peste atingiu a
criação e elas largaram os coelhos no
mato. Coelho temperado assim; polvilha
açúcar e canela em pó descansa uma meia
hora, bota sal e frita em óleo quente.
Deixou o coelho temperado saiu para o
alpendre, rodeado de pés de jasmim,
roseiras e um caramanchão de madre-silva.
Os dois viveiros grandes com periquitos,
canários e diamante de gould. Escutou as
risadas das netas, sentou olhando os
passarinhos
e
lembrou
a
redação
do
Estrabulega.
Em 1970 ela e Heloisa se mudaram da
fazenda e foram para aquela casa em
Pelotas para que os filhos pudessem
estudar na cidade. Estrabulega e Ventana
ficaram na fazenda. Em 1988 Estrabulega
resolveu ir para Pelotas para fazer um
curso intensivo e tirar o segundo grau,
que no colégio do Capão Seco ele mal e
parcamente aprendeu a ler e escrever. Os
filhos gostaram e apoiaram e muito o
ajudaram, estudou dois anos e ainda fez
um curso de radio técnico, pegou gosto
por ser rádio amador e como técnico
consertou
três
ou
quatro
rádios
e
estragou uns cinco ou seis. Três anos,
depois, abandonou os estudos e voltou
para a fazenda. Foi quando ele estava
estudando que escreveu a redação que ele
tirou nota máxima e contente mostrou a
Cota, a redação era a estória de dois
amigos que tinham um pacto que se um
soubesse que o outro iria sofrer em cima
de uma cama, mataria o amigo.
Ventana e Tuca saíram cedo, a cavalo
para recorrer os campos, trazerem vacas
com crias novas para a leitaria, trazerem
vacas alçadas para inseminar com bons
semens para melhorar o plantel. Dona
Cotinha estava se preparando para ir para
Brasília passar uns tempos na casa do
filho Julio, mas antes queria deixar a
fazenda organizada, ia mudar o sistema de
resfriamento do leite usando tanque a
granel
e
trocar
o
sistema
de
ordenhadeiras com o leite indo direto
para o tanque de resfriamento. Ia comprar
um moto gerador para as eventuais faltas
de energia e tudo isto pedia um aumento
na produção.
Juvêncio viu os dois saírem para o
campo e foi para a horta, roçar debaixo
dos pés de pitanga e colocar esterco nos
pés de jabuticabas, escutou o barulho da
moto, resmungou:
-- Porra... Ai vem o merda do tal
detetive.
Encostou a moto na cerca, desligou,
tirou o capacete e desmontou dizendo:
-- Bom dia seu Juvenal...
-- Opa tche!... Me troca as bolas mas
não troca o nome... É Juvêncio.
-- Oh desculpa... Ontem teve Brapel, o
Brasil perdeu pro Pelotas e eu hoje tou
besta.
-- Futebol... Desde que fecharam o
Primavera eu não dou mais bola.
Detetive Silva, tirou o bloco do
bolso, olhou a arvore e perguntou:
-- Que arvore é esta?
-- Jabuticaba.
Uma vaca berrou, um cachorro latiu,
Juvêncio soltou a foice, Silva disse:
-- O senhor pode seguir trabalhando,
eu não atrapalho...
-- Porra... Já ta atrapalhando...
-- Só uma pergunta... A dona Cotinha
nunca brigou com a dona Leonor?
-- Ué! Elas nunca se ligaram...
-- Sim... Mas brigaram de bater boca,
de se darem tapas?
Juvêncio bateu com a foice no chão
olhou firme para o detetive Silva e
disse:
-- Tche!... Dona Cotinha é mulher de
classe, não é mulher de lambanças...
-- Mas o seu Dinarte disse que teve um
caso dos pastéis de mingau...
-- Teve... Mas não deu bate boca e nem
tapa... Foi assim: que naquele tempo
tinha uma mulher, que o marido trabalhava
nos trilhos e eles tinham muitos filhos e
ele ganhava pouco e então pra ganhar um
dinheirinho à mulher fazia pastéis de
mingau pra vender nos trens, que o tal
mingau era feito de farinha de trigo,
leite e ovo, mas tinha um segredo que era
um mingau muito bom, que deixava o pastel
muito bom... Se na estação do Povo Novo
os
passageiros
compravam
araçás,
na
estação
do
Capão
do
Leão
compravam
bergamotas, na estação do Cerro Chato,
compravam
arroz
de
leite,
butiás
e
pasteis de carne, na estação do Capão
Seco era os bolos de coalhada e os
pastéis de mingau, e eram os melhores
pastéis de mingau do mundo. Como eu tou
lhe dizendo; a Leonor brigou com a tal
mulher, coisas de lambanças de mulheres
na hora do mate doce. A Leonor inventou
fazer pastel de mingau pra vender nos
trens e vendia pela metade do preço,
coisa de bandida, só pra atrapalhar o
negócio da outra. Ai o finado Estrabulega
e o Ventana inventaram de atrapalhar o
negocio de pasteis da Leonor. E quem fez
os pastéis foi dona Cota e a Eloisa.
Perto da hora do trem que a Leonor chegou
na estação com o tabuleiro cheio de
pastéis, o Estrabulega distraiu ela,
inventou um segredo e ela deixou o
Ventana cuidando o tabuleiro. E o Ventana
trocou os pasteis do tabuleiro. Leonor
não se deu de conta que tinham trocado os
pastéis e quando o trem chegou foi à
bronca, o freguês mordia o pastel e
ficava com a boca cheia de algodão... O
recheio era algodão.
Detetive Silva, calças desbotadas,
camisa
do
Brasil
de
Pelotas,
tênis
furados,
pegou
o
dinheiro
que
dona
Cotinha deu, agradeceu e saiu. Foi ao
Café Aquário, tomou um cafezinho e se deu
ao luxo de comprar um charuto. Dona
Cotinha dispensou os seus serviços: logo
agora que o crime estava descoberto, mas
eu entendo estes ricos. Dispensaram meus
serviços, que eu modéstia a parte sou um
bom
profissional,
para
evitarem
um
escândalo de família. Sim porque para
mim, um profissional, o criminoso é um
amador chamado Tuca...
Maneca e Rui Gordo terminaram a
ordenha. Maneca tirou as mangueiras da
ordenhadeira e colocou dentro do tanque
com água e sabão, para ficarem de molho e
no outro dia ser lavadas. Tiraram as
luvas e os aventais, apagaram as luzes do
galpão e seguiram para casa. Uma vaca
berrou, um sorro gritou lá perto do mato.
Maneca entrou reclamando a janta. Eloá
correu a pôr a mesa, tirou o prato com os
bolos fritos de jundiá do forno e botou
em cima da mesa. Sentou para jantar, ela
olhou para os lados e disse em voz baixa:
-- Maneca: uma coisa que ninguém nunca
me perguntou... Nem a policia... Nem o
tal detetive Silva... Aquela manhã que eu
encontrei o falecido Estrabulega, Deus o
tenha, a casa tava toda fechada... A
porta tava chaveada... Só quem tem chaves
da casa principal é eu, Tuca e seu
Ventana.
Maneca abriu os braços e falou brabo:
-- Cala a boca... Nunca fala isto pra
ninguém... Vamos jantar que eu quero ver
a novela...
Na confeitaria em Pelotas; sentadas
diante de uma bandeja cheia de doces;
camafeus, pastéis de Santa Clara, olhos
de sogra, quindins, figos cristalizados,
banana
em
passas,
bem
casados
e
queijadinhas. Dona Cotinha e Eloisa. Uma
fina chuva de verão caindo. Dona Cotinha
limpou o canto da boca e continuou
contando:
--... Câncer... Ele tinha câncer...
Ele tinha muita coragem, mas tinha um
medo... Medo de um dia ficar apodrecendo
em cima de uma cama e vendo os filhos
sofrerem por causa disto...
Um bando de maçaricos, o João-grande
em seu vôo lento, o casal de tarãs, o
grito dos quero-queros, outro bando de
maçaricos, pousado no arame um martinpescador, um bando de pintassilgos, dois
cardeais do banhado. Rui Gordo jogou a
linha na água, sentou e ficou pensando:
Deus me livre que eu vá contar para
alguém, mas aquela noite que mataram o
finado Estrabulega eu tava pescando ali
naquele açude, pequeno, que tem perto do
pedágio. Eu vi quando parou um táxi,
antes do pedágio, desceu um homem que
passou por trás do pedágio. Depois este
mesmo homem, pegou o ônibus das onze e
meia da noite para Pelotas...
Armazém Cardoso; escrito no luminoso
da venda. O homem velho desceu do cavalo
e entrou na venda onde um sujeito
magrinho, vestindo a camisa do Piquete
Lanceiros do Capão Seco, estava recostado
no balcão. Disse bom dia e pediu ao dono
da venda para servir um copo de cachaça,
olhou para o sujeito magrinho e disse:
-- Subiu o preço do leite.
O
magrinho
sacudiu
a
cabeça
e
respondeu:
-Agora
que
ta
acabando
as
leitarias... No Capão Seco, hoje, só tem
cinco leitarias...
O homem velho pegou o copo tomou um
gole, sacudiu a cabeça e disse:
-- Trocando de conversa: quem matou o
Estrabulega?
FIM
Capão Seco outubro de 2003
[email protected]
[email protected]
josé freitas de souza
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Noite escura, nublada, vento nordeste soprando forte, o velho