Zésouza s E trabulega e V 2002 e ntana Noite escura, nublada, vento nordeste soprando forte, o velho Ventana saiu do galpão da leitaria segurando a caneca com o leite e seguiu pela estreita trilha, iluminando com a lanterna, caminhando devagar e atento, pois já era tempo de cobras, principalmente de cruzeiras, tão abundantes ali. Passou pela frente da casa principal da propriedade e foi para o galpão das arrumações onde ficava o que ele chamava de meu rancho, um pequeno apartamento, quarto, cozinha e banheiro. Esperou o leite ferver sobre o pequeno fogão a lenha, lembrou que era sexta feira, ou seja, noite que o guarda estava de folga e como de costume nestas noites ia até a casa principal conversar com seu amigo Estrabulega e assim os dois ficavam até a madrugada cuidando os movimentos. Bateu na porta da cozinha gritou como o amigo não veio atender, tirou a chave do bolso, abriu a porta e entrou gritando: -- Hei tche! Não teve resposta, escutou o barulho do rádio amador, no quarto de Estrabulega, o qual era ao lado da cozinha, encontrou o amigo, vestido, jogado sobre a cama, a mão na cabeça, tonto e gemendo: -- O que houve?! Com dificuldade, Estrabulega, sentou na cama, pediu a ele para desligar o rádio, contou que tinha tido uma forte dor de cabeça e ficado tonto. Ventana agitou se dizendo: -- Vou telefonar para Pelotas, chamar o Tuca... Estrabulega contorceu de dor, fez sinal para ele parar e pediu: -- Tem calma. Trás um copo com água. Depois que bebeu um gole, falou com calma: -- Não te assusta, já passou. Que dor! Fiquei cego... -- Temos que ir ao médico. Eu chamo o Tuca... -- Não... Espera que pode passar... -- Doença não se espera. Estrabulega esfregou a cabeça, respirou fundo e explicou: -- Eu e tu vamos resolver isto... Vai ali; no pedágio e pede o pessoal da ambulância para vir aqui. O posto de pedágio é próximo à fazenda e logo chegou o enfermeiro que ativo mediu pressão arterial, tirou febre, fez perguntas, escreveu numa ficha e por fim avisou: - Nós vamos levar o senhor ao pronto socorro em Pelotas... -- Precisa?! -- Sim senhor... Por favor, leve documento. O enfermeiro voltou-se para Ventana e perguntou: -- O senhor pode ir junto? -- Mas é claro tche! -- Então o senhor vai conosco para acompanhar ele lá no pronto socorro. Rápido e estava no pronto socorro, o enfermeiro da ambulância de resgate da praça de pedágio, encaminhou à ficha a atendente e deixou os dois na sala de espera. Enquanto aguardavam, Estrabulega olhou firme para o amigo e disse: -- Não vai telefonar para ninguém, eu não quero que a minha família saiba... O chamaram e ficaram vários minutos no consultório, enquanto isto Ventana caminhando de um lado para o outro pensava se telefonava ou não. -- Este velho tem que morrer. Resmungou, em voz alta, o Tuca parado diante do computador no escritório da casa principal. Eloá, a empregada, que estava varrendo a casa, escutou e perguntou: -- Ta com raiva seu Tuca? Sacudindo a vassoura foi até a porta do escritório, sorrindo. Tuca arrependido de ter falado alto, apontou o computador e disse: -- Seu Estrabulega mexeu aqui... -- Com certeza veio jogar paciência... -- Mas ele já tem o computador dele, que, aliás, é só para ele brincar. Eloá sacudiu a vassoura e voltou a varrer repetindo: -- O velho veio jogar. Jogar porra nenhuma, ele veio foi bisbilhotar as minhas planilhas, aquele velho pensa que me engana, já ta na hora dele partir para outra... A Fazenda São Gonçalo conhecida como a leitaria de Dona Cotinha localizada no povoado; um lugarejo com uma dezena de casas: uma venda, uma escola primária e uma praça de pedágio na rodovia Pelotas Rio Grande, do Capão Seco. A sede da leitaria tinha dois galpões, a casa principal e duas casas, menores, para os empregados. Ali viviam Estrabulega, marido de Dona Cotinha, Ventana, um negro velho, aposentado, amigo de Estrabulega desde a infância. Maneca o encarregado da leitaria, Rui Gordo empregado para todos os serviços, o velho Juvêncio com quase setenta anos que era o ronda noturno, Eloá a esposa de Maneca e empregada da casa principal. Não morava na leitaria, mas ali trabalhava o Tuca, genro de Dona Cotinha, engenheiro agrônomo, o administrador da fazenda morava em Pelotas, de onde vinha todas as manhãs, aliás, em Pelotas morava com a sogra. Primavera chuvosa, tempo preocupante, tempo de preparar as terras para plantar e as chuvas atrapalhavam. Manhã de muita tormenta; estavam os empregados no galpão das arrumações quando viram o seu Estrabulega sair, correndo, da casa principal e ir para a parada de ônibus. Curioso, o Tuca, foi ao apartamento de Ventana, o encontrou sentado perto do pequeno fogão à lenha, tomando mate. Em cima do fogão uma panela de ferro fervendo soltando um cheiro apetitoso: -- Bom dia Ventana. O negro velho sacudiu a cuia: -- É vamos dizer bom dia, mas esta chuva já esta demais... Senta vamos tomar um mate. -- Obrigado, eu só tomo mate de noite... O seu Estrabulega foi pegar o ônibus, velho louco podia ter pedido que eu o levasse. Ventana despejou água na cuia, chupou um gole de mate e disse: -Ora Tuca, tu sabes que o Estrabulega é cheio de manias. -- O que será que ele foi fazer em Pelotas? Logo hoje que esta trovejando deste jeito. Tu sabes? -- Não sei. Sabia mas não podia dizer afinal tinha prometido ao amigo não contar. Estrabulega foi fazer os exames que o médico pediu. O inverno com enchente, o canal de São Gonçalo transbordando, os banhados cheios, os arames das divisas derrubados pelas ressacas. Primavera chuvosa, muito serviço a fazer além da chamada lida de rotina, ou seja, o serviço da leitaria: aparte de vacas, limpeza de galpão e curral, lavar vasilhas e a ordenha. Tinham arames para acomodar, capina na sede da fazenda, distribuir esterco e arar as terras para plantio das forrageiras de inverno. Tuca contratou novo empregado. Rapaz novo com jeito e maneiras atrevidas. Estrabulega ao ver o novo empregado não gostou. No primeiro dia o rapaz estava encilhando um cavalo, no galpão, passava um avião agrícola, que estava aplicando herbicida numa lavoura de arroz próxima ao galpão, o cavalo se assustou e nervoso o empregado começou a dar tapas no focinho do animal, Estrabulega vinha entrando no galpão, viu a cena e chamou a atenção do novo empregado que olhou atrevido e resmungou baixinho: -- Não te atravessa no meu caminho velho. Te dou um tiro. A frente fria chegou ao anoitecer, sem trovoadas, mas com rajadas fortes de vento, nuvens negras corriam no céu rumando de sudoeste para nordeste. Juvêncio entrou no galpão das arrumações, acendeu as luzes, tirou a chave do bolso, abriu o cadeado da porta de um armário, de onde tirou a lanterna as pilhas, o revolver e a capa de chuva. Fechou o armário e foi acender as luzes do pátio. Voltou para dentro do galpão, ligou o rádio e sentou perto da janela de onde passava a noite vigiando. Voltando do galpão da leitaria, onde acabaram a ordenha, Maneca e Rui Gordo chegaram ao galpão das arrumações e Maneca pediu: -- Seu Juvêncio, amanhã às quatro horas o senhor abre a porteira. Que amanhã o caminhão do leite vem mais cedo. Juvêncio concordou, conversaram sobre o tempo louco e Maneca saiu avisando: -- Bueno; vou tomar um banho, estou cansado, hoje tirei seiscentos litros. Os dois saíram, Juvêncio sacudiu a cabeça e resmungou: -- Grande coisa! Seiscentos litros de leite! Com ordenhadeira, iluminação elétrica, galpão de material com piso cimentado. Em outros tempos, tempos que o Capão Seco tinha mais de duzentas leitarias, num galpão de tábuas, cheio de frestas por onde entrava frio e vento, piso de terra o velho “Laudares Souza” junto com o “Amarante Machado” tiravam a mão da uma as cinco da madrugada, onze tarros de cinqüenta litros: quinhentos e cinqüenta litros. Aqueles eram os tempos do "SL”. Tempos do “SL” nome de um trem, abreviatura de Serviço de Leite, manhã fria do inicio dos anos quarenta, seis horas da manhã marcava o relógio da pequena estação do Capão Seco, hora do trem do leite partir. Funcionários do trem ajudados pelos da estação e mais alguns leiteiros carregavam os tarros com mais de quatro mil litros de leite. Dois leiteiros chegaram atrasados: Estrabulega e Ventana, o chefe de trem mandou que carregassem os tarros, ligeiro, pois o trem já estava saindo. Juvêncio correu para ajudá-los. Três rapazes dispostos, rápido abriram o vagão e num segundo carregaram quatro tarros de cinqüenta litros, Estrabulega fez sinal para Ventana e empurrou Juvêncio para dentro do vagão enquanto Ventana fechou a porta rápido. O trem já estava saindo, os dois ficaram dando gargalhadas. Ao chegarem a Rio Grande os funcionários do trem abriram um dos vagões carregados no Capão Seco e encontram Juvêncio espumando de raiva. Com a roupa de trabalhar na leitaria, fedorenta a esterco, mijo de vaca e leite talhado, pés descalços e sem dinheiro para pagar passagem de volta. Pensou e prometeu: foi o Estrabulega, um dia eu dou um tiro nele. Estrabulega chegou de Pelotas no fim do dia, pegou o grande envelope onde estavam os resultados dos exames médicos e escondeu no fundo do guarda roupas. Encheu os olhos de lágrimas, suspirou. Bem vamos continuar a vida enquanto vida existir. Trocou de roupa, botou uma bombacha velha, uma camisa de mangas compridas, calçou chinelos, foi à cozinha dar jeito em preparar o chimarrão. Enquanto a água aquecia abriu o armário e entre as garrafas escolheu uma: cachaça composta com coquinhos, frutos do coqueiro jerivá, muito abundante no lugar. Era seu costume, desde moço, à tardinha tomar chimarrão, fumar cachimbo e beber cachaça composta ou com coquinhos ou com ananás. Cuia, garrafa térmica com água do mate, copo com cachaça, voltou para o quarto e sentou onde ele mesmo chamava de seu canto, diante do aparelho de rádio amador. Perto do rádio o cachimbo e o pacote de fumo. Encheu o cachimbo, acendeu e ligou o rádio: -- É o “PX” três; delta 3455 que chega com um; boa noite... Atento a freqüência, Estação Capão Seco chega? Quem chegou foi seu amigo Ventana, que pegou um pequeno banco e veio sentar perto dele. Encheu a cuia, entregou a Ventana e desligou o rádio reclamando: -- Droga, ultimamente neste horário a propagação de ondas anda uma merda. Não se conversa com ninguém. Ventana tomou um gole de mate e perguntou: -- E o resultado dos exames? Tinha certeza que aquela seria a primeira pergunta do amigo. Soprou uma baforada do cachimbo, tomou um trago da cachaça composta com coquinhos e respondeu: -- Deu tudo bem. Ventana tomou outro gole de mate, olhou bem para ele e insistiu: -- Tudo bem como? Sacudiu o cachimbo no ar respondendo: -- Tudo bem é tudo bem. -- Posso ver os resultados? Nova baforada de fumaça, outro gole de cachaça, riu e respondeu: -- Ora vai à merda. O que tu entendes de resultados de exames?! Devolveu a cuia dizendo: -- Pois o Juvêncio me disse que ontem de noite tu andavas aí na cozinha tomando remédio e passando a mão na cabeça. Dor de cabeça? Procurou manter a calma: -- Que remédio?! Vim tomar água. Passar a mão na cabeça não é sintomas de dor de cabeça. Vamos esquecer doenças e vamos trocar de assunto. O que há de novidades? -- Vai ter uma penca, sem ser neste domingo que vem, no outro. Quem esta organizando é os guris deste novo piquete que tem aí... Piquete Lanceiros do Capão Seco... -- Já sábia, vi o cartaz lá na venda. Até já resolvi que no dia das pencas vou reunir a família. Já podes telefonar para Porto Alegre e convidar tua filha e tua mulher. Enquanto Estrabulega despejava, lentamente, água na cuia, Ventana o olhava e notava que o amigo estava diferente. Afinal eram amigos desde a infância, eram setenta e quatro anos: nasceram no outono de 1928. Outono de 1928, numa choupana, feita de junco, a margem do Canal de São Gonçalo, pouco mais de dez horas da manhã a negra Jacinta ajudou sua filha, Isolina, a dar a luz a seu primeiro neto. Sentada no chão pelo lado de fora da choupana a velha Gumercinda, escutou o choro do recém nascido, seu bisneto, sorriu levantou as mãos espalmadas; olhou para o sol e resmungou baixinho pedindo aos Orixás, proteção para a criança. Naquele mesmo dia, pouco depois da hora do almoço, escutaram os gritos dos tarrãs e dos quero-queros: uma carroça a toda se aproximava. Um empregado do velho Antenor vinha buscar Jacinta para ajudar a patroa dar cria. A velha Gumercida fez questão de acompanhar a filha Jacinta. Seguiu a carroça de volta a toda com as duas. Passavam de três horas da tarde quando o guri nasceu. A velha Gumercinda olhou a criança, sorriu, saiu para a rua, levantou as mãos espalmadas para o sol, fez uma oração aos Orixás pedindo bons caminhos para a criança. Baixou as mãos, lembrou do bisneto que havia nascido há poucas horas: os dois do mesmo dia: vão ser muito amigos, por amizade um até pode matar o outro. Juvêncio sentado dentro do galpão, o vento soprando de sudoeste sacudindo as árvores e assobiando no canto do galpão. Olhava as luzes da praça de pedágio e o movimento de carros. Os tempos tinham mudado. Em seus tempos de moço àquela hora as luzes que se viam eram pontinhos luminosos, espalhados pela várzea, dos lampiões a querosene das leitarias e nem se escutava barulho de carros, apenas o canto dos sapos e algum berro de vaca chamando o terneiro. Os dois cachorros da fazenda; Toquinho e Guarani latiram. Escutou barulho na casa principal, levantou, acendeu as luzes do galpão e saiu para espiar. Estrabulega estava na cozinha tomando água. Juvêncio fez sinal com o foco da lanterna. Nervoso, abriu a porta e disse: -- Olha Juvêncio, estou só tomando água. Tu não vai contar estórias para aquele merda do Ventana. Ainda dou um tiro em vocês. Juvêncio voltou para dentro do galpão, apagou as luzes, sentou pensando: tiro! Eu é que devia ter te dado um tiro naquela madrugada da corrida de carroças. Corrida de carroças foi que Ventana propôs a Juvêncio numa madrugada fria, muito fria, a geada branqueava perto dos trilhos onde refletiam os fracos raios de luz do lampião da pequena plataforma da estação de Capão Seco. Naquele tempo a venda do povoado ficava bem perto da estação. Nas madrugadas os leiteiros se reuniam em grupos uns na estação outros na venda. Ventana e Estrabulega combinaram de armarem uma presepada a Juvêncio. O desafio da carreira de carroças por uma dúzia de rapaduras de palha. Ali quase todas as madrugadas eles estavam inventando carreiras de carroças. Naquela madrugada inventaram uma novidade. Os dois corredores deixavam as carroças alinhadas defronte à venda e ficavam dentro da venda, quando o caixeiro da venda desse um grito, eles corriam subiam nas carroças e arrancavam. Tudo combinado; botaram as carroças em posição, Ventana e Juvêncio entraram para a venda. Madrugada escura e fria. O caixeiro da venda deu o grito: “já.” Os dois correram: Juvêncio pulou dentro da carroça e ao mesmo momento que segurava as rédeas deu várias chicotadas no cavalo que arrancou correndo. Quando ele segurou as rédeas e quis firmar, se deu de conta que as rédeas estavam rebentadas: cortadas de propósito. O cavalo sentiu a boca livre e disparou. Juvêncio gritava assustado e a carroça gingando aos pulos até que uma roda caiu dentro da valeta, virou, ele mergulhou na água barrenta e fria. Levantou tremendo de frio, medo e raiva, mas pensou: foi o Estrabulega, eu um dia vou matar este filha da puta. Estrabulega casado com Maricota, que não gostava do próprio nome e por isto adotou o apelido de Cota que depois passou a ser Cotinha: tinham três filhos, todos casados, dois homens e uma mulher; Júlio, Juan e Juliana. O primeiro a chegar para o churrasco de fim de semana foi Júlio, este morava em Brasília, formado em veterinária, funcionário público, casado com uma baiana, tinham dois filhos já moços. Júlio chegou à manhã de sexta feira já convocando o Ventana para ajeitar os caniços e cavar minhocas para isca que iriam pescar no açude grande. Ventana avisou: -- Não pode mais pescar no açude grande. Júlio deu uma risada e respondeu: -- Ventana eu sou filho de dona Cotinha, já telefonei para ela, ela já falou com o dono do açude. Quero pescar jundiá, hoje vamos comer uma “moqueca da Torotama”. Já ando cansado das moquecas baianas da minha mulher. Tu tens coentro na tua horta? -- Tenho. Júlio passou a mão na cabeça, chegou mais perto de Ventana e falou baixo: -- Escuta: achei o pai bem mais magro. Ele anda bem? Ventana ficou vermelho, indeciso. Contava ou não contava? Sábia que Júlio era o único dos filhos que Estrabulega respeitava. Disfarçou, sacudiu a mão e se afastou dizendo que iria ver caniços. Vontade de dizer que o amigo estava doente, mas um pacto o impedia: o pacto da arapuca. O pacto da arapuca foi como eles apelidaram o compromisso mútuo de nunca contarem os seus segredos. Os dois eram guris, tinham sete anos, mas já eram muito arteiros e até por sinal o velho Romualdo, este era um homem velho que morava na fazenda, pois o velho Romualdo já os tinha apelidado: apelido que carregaram para o resto da vida. Os dois viram atrás do galpão uma cobra cruzeira e tiveram a idéia de pegá-la e botar dentro de uma das arapucas que o velho Romualdo costumava armar na chácara. Com um pedaço de pau o Ventana apertou a cabeça da cobra para ela não dar o bote, Estrabulega a segurou por trás da cabeça e pela ponta da cola. Com medo, correram e a botaram debaixo da arapuca. À tardinha quando o velho que enxergava muito pouco foi tatear as arapucas, notou aquela desarmada, estranhou não escutar bater de asas, agachou e antes de enfiar a mão por baixo da arapuca sentiu um barulho diferente muito baixinho. Pediu ajuda. Logo estava formada a confusão na cozinha da leitaria do velho Antenor. Cobra cai em arapuca? Nunca vi. Colocaram-na lá. Quem? Os dois moleques. Não teriam coragem. Alguém botou. Agachados, atrás do galinheiro, os dois escutavam a conversa e combinaram, mesmo que levassem castigo de não contarem. Apertaram as mãos: um trato; de hoje em diante a gente não conta nossos segredos. Naquela noite de sexta feira reunidos na grande cozinha da casa principal, Estrabulega, dona Cotinha, Ventana, Júlio, sua esposa ali chamada de Baiana e seus dois filhos; Júnior e José este estudante de jornalismo e muito interessado em tradição e folclore. Júlio, sem camisa, junto ao fogão à lenha preparava a moqueca de jundiá, alegre por estar junto dos pais, contente por ter caminhado nos campos onde se criou e descontraído por estar bebendo cachaça composta com ananás, contava: -- Uma vez a gente estava em Salvador e eu convidei os parentes da Baiana para uma moqueca que eu ia preparar. Bah! Eles acostumados com a moqueca deles, diga se de passagem afogada no azeite de dendê quando viram esta que eu chamo de “moqueca da Torotama”, esta eu aprendi a fazer aí na Ilha da Torotama. Quando a baianada viu moqueca seca ah! Caíram na gozação. Dona Cotinha levantou pegou a garrafa da cachaça olhou e foi guardar dizendo: -- Já beberam demais; por hoje chega. Estrabulega bateu na mesa dizendo: -- A ditadora falou; esta falado. Júlio, riu, sacudiu a cabeça e comentou: -- Quantas vezes eu fui daqui a Ilha da Torotama, a cavalo. Daqui lá é quatro horas, o cavalo sendo bom. Uma noite eu fui para uma festa de cantoria de santinhos... José interrompeu, olhando para o avô e perguntando: -- Vo, tu entendes desta cantoria de santinhos? Júlio levantou a mão olhou para os pais, riu e avisou ao filho: -- Nem fala nisto. Foi numa noite de cantar santinhos que tudo começou. Dona Cotinha olhou firme para Estrabulega e disse: -- Foi numa noite de São João... Noite de São João na leitaria dos Neves, vizinha da leitaria do velho Antenor, fogueira grande armada no pátio, na cozinha ainda preparavam pipocas, canjicas, pinhão assado, bolo de coalhada, pés de moleque e quentão. Na sala e no pátio se espalhavam os convidados. No Trem das Cinco tinham chegado às duas filhas do senhor Neves que estudavam em Pelotas, acompanhadas de um grupo de colegas: moças de idades entre os dezesseis e vinte anos, entre elas a Maricota com dezoito anos, loira, magra, alta, olhos azuis. Já ao descer do trem chamou a atenção dos que estavam na pequena estação. Ventana, que naquele tempo já morava na leitaria do velho Antenor, ao chegar a casa avisou ao amigo Estrabulega que do trem tinha desembarcado uma princesa. Estrabulega sacudiu os braços dizendo: -- Ora vai-te a merda. Pra ti tudo que é mulher que desce do trem, tu dizes que é princesa. Acenderam a fogueira, soltaram foguetes, os cachorros latiram, bateram palmas, gritaram. As moças foram para a sala prepararem adivinhações e promessas. Na porteira do pátio chegou o grupo de cantores de santinho, onde estavam os dois amigos: Estrabulega e Ventana. Pararam perto da porteira do pátio, os músicos ajeitaram os instrumentos: Dois violões, uma gaita, um pandeiro, duas flautas. Em ritmo de toada tocaram e cantaram: Chegamos a vossa casa Na beira de seu terreiro. Para tocar e cantar. Licença; peço primeiro. Licença; peço primeiro. Com prazer e alegria Festejamos o São João No seu verdadeiro dia. No seu verdadeiro dia. São João do céu desceu, Guiado por uma estrela Que Jesus lhe deu. Por esta estrela guiado; São João desceu do céu, Numa escadinha de ouro Sentadinho sem chapéu. Sentadinho sem chapéu, São João do céu desceu. Veio levar as ofertas Que o senhor lhe prometeu... Depois de feita a cantoria os cantores foram convidados a participarem da festa. Foi a luz da fogueira que os bonitos olhos azuis da jovem Maricota, que, aliás, não gostava do seu nome e por isto pedia para a chamarem de Cota. Mas foi a luz da fogueira numa fria noite de São João que os olhos azuis de Cota encontraram os olhos pretos do jovem que tinha o apelido de Estrabulega. Porque Estrabulega? Por que era impossível, sempre fazendo artes mesmo depois de moço. Ele já estava com dezenove anos. Reunidos na sala onde se serviam os comes e bebes novamente os dois trocaram tímidos olhares, o que não passou despercebido a jovem Leonor, filha de um próspero leiteiro do lugar, gente famosa por serem muito brabos e viverem brigando com os vizinhos. Leonor não escondia que era apaixonada por Estrabulega para quem seguido mandava bilhetes e recados, mas ele ainda se achava novo para se envolver com namoros. Quando Leonor viu os dois trocando olhares a não teve duvidas pegou uma bandeja cheia de copos com licor de butiás e aproximou-se de Cota e disfarçada como se fosse um acidente, chocou-se com Cota e despejou a bebida por cima dela. Com ar de pouco caso, debochada, pediu desculpas. Com classe, Cota sorriu a desculpou, mas tinha entendido tudo: a guerra começou. Finalmente no domingo se reuniu toda a família. Bem cedo chegou Tuca e Juliana com as duas filhas. De Porto Alegre chegou à esposa de Ventana e amiga de dona Cotinha, mais que amiga: irmã, Eloisa, com a filha Carmem o genro e três netos. O último a chegar foi o filho do meio: Juan com a esposa e o único filho; que era na família conhecido por Neto simplesmente por ter muita semelhança física e também ser arteiro como o velho Estrabulega. Juan era o mais afastado da família, talvez até por ter nascido e tido a infância num período que o casal brigava muito. Muito cedo saiu de casa foi para Porto Alegre, trabalhar e estudar, formado em agronomia, era professor universitário. No galpão Juvêncio preparava o churrasco, nos espetos carnes de rês e ovelha enquanto o Julio e Ventana preparavam o guisado de carne de ovelha com bastante cebola e salsa para misturar num pirão de farinha de mandioca e fazer bolos e assar numa grelha: pirão do Capão Seco na brasa. Juvêncio, alto magro, nariz grande, ajeitando o fogo. Na cozinha dona Cotinha e Eloisa, lembrando os velhos tempos; tempos difíceis de muito trabalho: levantar a uma da madrugada para tirar o leite, a manhã toda na beira do fogão fazendo almoço, limpeza da casa, lavar roupas, muito trabalho, mas mesmo assim sobrava tempo para jogar víspora, jogar escova ou espiar o Juvêncio comendo a égua tordilha na taipa do açude. Chegou a Eloá e as três deram de mão e começaram a preparar o sarrabulho. Depois das lidas prontas foram todos para o galpão onde formaram uma grande roda para tomar chimarrão, foi aí que o Neto perguntou ao avô: -- O leite, daqui; esta indo para onde? Estrabulega chupou um gole de mate e respondeu: -- Vai para a cooperativa em Pelotas. -- Tiram o leite de madrugada? Estrabulega sorriu antes de responder: -- Aqueles tempos acabaram. Agora tiram o leite ao anoitecer, deixam dentro de um resfriador elétrico, no outro dia o caminhão pipa encosta no resfriador enfia uma mangueira, uma bomba suga o leite para o tanque e um marcador digital acusa o numero de litros. Agora esta tudo fácil. Os primeiros leiteiros, daqui, levavam o leite de canoa para vender em Pelotas, pois naqueles tempos aqui tinha um arroio muito forte: o Passo Mau; que agora ta quase todo tapado na grama e junco. Depois foi aumentando a vila de Pelotas e foi aumentando o numero de leitarias aqui, aí tinha os que transportavam o leite em lombo de cavalos. Meu avô contava que levavam tropa de até dez cavalos, com as latas na garupa. Havia umas latas especiais com arreio apropriado, botava duas latas, uma de cada lado no lombo do cavalo. Depois quando já havia a estrada de ferro o leite daqui passou a ser vendido na cidade do Rio Grande, aí ia de trem. Quando terminaram com os trens, o leite continuou a ser carregado em tarros e ia de caminhão. Hoje vai no carro pipa. Neto sorriu estudante de veterinária, propôs ao avô: -- Quando eu me formar, venho aqui para o Capão Seco, trabalhar com o tio Tuca. Aí a gente bota uma micro-usina e o leite já sai daqui embalado pronto para o consumo. O que o senhor diz? Estrabulega sacudiu a cuia, apontou para dona Cotinha, riu e disse: -- Isto é com dona Cotinha. Aqui quem manda é a tua avó. Todos riram e dona Cotinha sacudiu a cabeça dizendo: -- Desde o inverno de 1952. Um dia muito frio. Um dia muito frio céu cinzento, nuvens baixas, vento sul soprando, Cotinha e Estrabulega já eram casados há quatro anos, Júlio já tinha dois anos, os dois tinham brigado, ele saiu foi para o galpão, ela foi para a janela, e por trás da vidraça ficou olhando os movimentos na pequena estação onde um grupo de homens descarregava vagões de pedras que estavam sendo usadas na construção da rodovia Pelotas-Rio Grande. Ela o viu passar a cavalo e seguir margeando a ferrovia rumo a Pelotas. Olhos cheios de lágrimas ela teve uma certeza: não volta. Ventana já era casado com a Eloisa e ele estava doente, de cama, pois fazia poucos dias que tinha quebrado uma perna quando junto com Estrabulega estavam treinando paleteada. Morava numa casa de paredes de barro, coberta de palha de Santa Fé, ao lado do galpão. A leitaria naquele tempo já era de Estrabulega, pois os pais dele tinham morrido e ele como único herdeiro tinha assumido tudo. A sede era muito simples: uma casa velha, a cozinha feita de alvenaria, dois quartos e uma sala; feitos de madeira, o quarto de banhos era separado da casa: uma peça feita de tábuas ao lado da bomba de tirar água. O galpão feito de paredes de barro, coberto de palha e a casa do empregado, que era onde morava Ventana. Da janela ela acompanhou o vulto dele ir sumindo no rumo de Pelotas. Dali até Pelotas é uma várzea plana e a ferrovia corta os dez quilômetros numa reta. Quando o vulto ficou um pontinho, olhos cheios de lágrimas ela saiu da janela foi ao quarto espiar Júlio que dormia e saiu para ir à casa de Eloisa. Ia com uma certeza: para a casa dos pais, em Pelotas, não voltaria, afinal o pai tinha sido contra aquele casamento. Chorando se abraçou em Eloisa e disse: -- Tenho certeza que ele não volta. Eloisa a fez sentar perto do fogão e deu jeito em aquecer água para fazer um chá com folhas de laranjeira. Sentada junto ao fogão, as duas mãos no rosto ela disse: -- Pra Pelotas eu não vou. Eu vou tocar esta leitaria. -- Eu te ajudo. Disse sorrindo à mulata Eloisa, acostumada à vida dura e lutada nas margens do Canal de São Gonçalo lá em Santa Isabel dos Canudos, onde; pés descalços, vestidos de pano vagabundo; criou-se caçando ratão do banhado, pescando jundiás, cortando palha e junco. A ordenha que era manual começava às três horas da madrugada, pois antes das seis horas o leite tinha que esta na estação. As duas auxiliaram o Ventana a se deslocar até o galpão e o acomodaram a um canto de onde podia as orientar e naquela madrugada as duas tiraram o leite: produziram menos da metade, mas iniciaram uma nova fase naquela leitaria. Duas semanas depois, Ventana já tinha tirado a tala da perna quebrada, numa manhã de muita chuva, encilhou o cavalo e saiu dizendo que ia saber noticias de Estrabulega. Paradas no portão do galpão, as duas, viram o vulto sumir por cima dos trilhos e foi Eloisa quem disse: -- Outro que não volta... Mas não vai fazer falta. E não fez. Cotinha contratou dois dos melhores empregados de leitaria do povoado: Juvêncio e o tal de Dinarte. Aumentou o numero de vacas na leitaria, trocou a hora de iniciar a ordenha para uma da madrugada. Ela e Eloisa sempre junta no galpão. Mandou juntar esterco para na primavera fazer hortas. Fez hortas grandes para plantar cebola, que naquela época era a riqueza agrícola do município do Rio Grande, fez uma grande horta para produzir verduras para o consumo. Tinha um frigorífico americano na cidade do Rio Grande que comprava ervilha e tomates para fazer conservas. Plantou ervilhas e tomates. Numa parte de campo que era banhado, havia muito junco, e naquele tempo à cebola era guardada em réstias feitas com junco, contratou gente para cortar junco para vender. Contratou cortadores de palha que vendia para uma fabrica de colchões em Pelotas. Como naquele tempo a caça do ratão do banhado era liberada para a venda do couro, comprou ratoeiras e mandava armar nos campos de banhado. Conseguiu vacas emprestadas para aumentar a produção de leite. Comprou vacas melhores. Uma hora da madrugada as duas com bombachas velhas, calçando tamancos, um pano na cabeça, andavam apojando terneiros, tirando leite, todas respingadas de mijo e bosta de vaca. Na primavera de 1956, Estrabulega atravessou pela balsa o Canal de São Gonçalo e com o coração aos pulos viu as várzeas do Capão Seco. Seguiu margeando a nova rodovia. Hora da Ave Maria parou olhando a casa que estavam construindo. Apeou, cavalo pela rédea parou no portão do galpão novo, feito de alvenaria e coberto com telhas de barro. O empregado, um diarista, novo que não o conhecia, chegou ao galpão e perguntou: -- O senhor quer alguma coisa, seu chefe? Sorriu e respondeu: -- Quero dar um beijo na dona desta leitaria. Chegou o Dinarte trazendo queijo para dona Cotinha e rapadurinhas de leite para a Eloísa. Bombachas remangadas, calçando tamancos e contando a ultima: na noite passada roubaram as galinhas da alemoa que fabrica ambrosias, levaram as galinhas todas e deixaram só o galo com um bilhete no pescoço: estou viúvo desde as três horas. Juvêncio virou um espeto, mexeu nas brasas e avisou que o churrasco estava pronto. Dona Cotinha, levantou, bateu palmas dando ordens para sentarem a mesa. Estrabulega foi buscar seus apetrechos de churrasco, voltou com uma caneca de tomar cerveja, preta e vermelha com o distintivo do “Grêmio Esportivo Brasil de Pelotas” a faca cabo de prata onde estava escrito; Lembrança de Irai, foi nesta estância hidromineral que passou a lua de mel, alias foi quando comprou a faca. O prato era lembrança de um “CTG de Canguçu”, vestindo uma camisa que Júlio notou ser nova e comentou: -- Oi! A camisa trocou. Vestia a camisa do “Piquete Lanceiros do Capão Seco” a nova entidade tradicionalista do povoado. José, que vestia uma camisa onde se lia: Lembrança da Vaquejada de Serrinha Bahia se interessou e pediu: -- Vô eu quero uma camisa destas. Júlio comentou: -- Nesta mania, saiu igual ao avô. Onde passa tem que levar uma lembrança. Estrabulega sorriu e avisou ao José que já tinha uma camisa do piquete para ele. Juvêncio começou a cortar as carnes. Dona Cotinha foi à cozinha avisando que ia buscar o sarrabulho. Ventana se apresentou para servir as bebidas, perguntou: -- Alguém vai querer vinho? Júlio levantou o braço e pediu: -- Ventana, tu ainda tens água pé? -- Tenho -- Pois eu quero água pé. Outra coisa arruma duas garrafas que eu vou levar. Uma coisa que eu quero é que depois tu vás lá à venda e me compres duas garrafas de marafatinga, que também quero levar. Marafatinga uma bebida artesanal feita ali no povoado e água pé um vinho aguado feito de bagaço de uvas, o ali consumido era fabricado por Ventana. Estrabulega despejou cerveja na caneca a levantou dizendo: -- Antes de fazer o brinde, quero avisar que não comam muito e deixem espaço para os pastéis das pencas... Dona Cotinha interrompeu avisando: -- Eu não vou às pencas. Eu nem gosto de pencas. Júlio levantou com as mãos apontando a mãe, rindo e comentando: -- Mas a senhora já fugiu para vir a uma penca no Capão Seco... Para vir a uma penca no Capão Seco, Cota fugiu num domingo de primavera do ano de 1947. Disse em casa que estava saindo para ir à missa na Catedral de São Francisco de Paula, junto com uma tia que era sua vizinha, que naqueles tempos nem a uma missa uma moça não tinha permissão para ir sozinha. Nem a missa e nem a casa da tia, correu a estação para embarcar no trem das oito e às oito horas e dez minutos desembarcar na pequena plataforma do Capão Seco decidida a ver o Estrabulega. Fugiu porque os pais não permitiram que fosse às tais pencas, exatamente para evitarem que ela se encontrasse com o tal rapaz apelidado de Estrabulega, já que o pai dela tinha tido informações que tal rapaz era muito levado da breca. Ela foi para ver o Estrabulega e porque recebeu um recado, desaforado de Leonor que mandou avisar que no baile de ramada que iria acontecer durante a penca nenhuma pelotense do nariz arrebitado iria dançar com Estrabulega. E foi no baile de ramada, assim chamado porque se realizou debaixo dos galhos de quatro grandes figueiras, ao ar livre. Chão batido e molhado para não levantar poeira: uma gaita e um violão. Inicio muito tímido. Leonor cuidando Cota e vigiando Estrabulega. Cota foi esperta e conversou com Dinarte que era quem estava animando o baile. Dinarte mandou parar a musica e anunciou a polca de versos. Polca de versos era um costume dos antigos bailes no Rio Grande do Sul onde as moças é quem convidavam os rapazes para a dança e durante a dança o animador da festa gritava para formarem uma roda ao mesmo tempo em que escolhia um par e mandava dançar no centro da roda, depois mandava parar a música e aí a moça dizia um verso ao moço e este retribuía com outro verso. Quando Dinarte anunciou a polca, Cota estava ao lado de Estrabulega e o convidou a dança, aceitou. Leonor ficou vermelha, com olhos vidrados, de raiva. Chegou à vez do verso de Cora e Estrabulega, ela disse olhando nos olhos dele: Batatinha quando nasce Bota rama pelo chão, Ao dançar com este moço, Sinto amor no coração. Todos aplaudiram e chegou à vez de Estrabulega responder. Disse: Tico - tico do banhado, Quando chove não se molha. Onde tem moça bonita, Para esta não se olha. A gargalhada ,que Leonor deu ,retumbou pelo povoado. As pencas do Capão Seco sempre se caracterizaram por sua irreverência e pelos bons pastéis. O povoado nem nunca teve um lugar definido, ou seja, uma cancha, onde realizar as corridas. A maioria das vezes foi feito na estrada municipal. Era mais um motivo para os moradores do lugar se reunir beberem cerveja e comerem pastéis. Naquele domingo, a penca era na estrada municipal, reunidos perto do galpão onde vendiam pastéis e bebidas, a família de Estrabulega e Ventana, riam, comiam pastéis e conversavam fiado. É bom dizer que os filhos obrigaram dona Cotinha os acompanhar. Ventana foi buscar pastéis e voltou com a novidade: depois das carreiras, tem baile aqui no galpão. Estrabulega pegou a cerveja e avisou: -- Desde que me prenderam; eu nunca mais fui a baile de pencas. Neto se admirou e perguntou: -- Prenderam o meu avô? Dona Cotinha deu uma risada e confirmou: -- Prenderam o teu avô num baile de galpão Num baile de galpão no ano de l948, Estrabulega já era noivo de Cota, houve umas pencas e depois fizeram um baile num galpão. Baile que entrou noite adentro, galpão iluminado por lampiões a querosene. Cota não foi e Estrabulega estava bem a vontade, já tinha tomado bastante, viu Leonor sentada num canto e foi convidar para dançar. Muito bonita, cheia de calor, uma tesão de fêmea, aliás fogo vivo mas muito estúpida, gritou para quem quisesse ouvir: não danço com qualquer um. Envergonhado ele saiu do galpão, respirou fundo, a raiva o queimava o pensamento. Imaginou a vingança, arrancou um punhado de capim botou no bolso e voltou a onde Leonor estava e tornou a convidar e ela tornou a repetir a frase: não danço com qualquer um. Ele tirou o punhado de capim do bolso e jogou no colo dela dizendo: -- Mais uma égua que me nega estribo. Ao fim do dia os filhos se foram. Antes de voltar para Pelotas, dona Cota chamou o Tuca e junto vistoriaram os galpões e ela ordenou aumentarem a produção de leite; prender mais vacas, caprichar nos testes de mastite e muito cuidado com a higiene. Ventana despediu-se dos netos, genro, filha e de Eloisa, ficou triste olhando o carro sair, estava cansado e foi deitar cedo. Juvêncio assumiu seu posto de guarda, acendeu as luzes do pátio, recorreu os galpões, estava cansado, sentou no seu canto escutando rádio. Viu o brilho da luz que correu barranca a baixo: seria uma bola de fogo? De tempos em tempos ali apareciam as ditas bolas de fogo. Foi no ano de 1953 estavam no galpão; Juvêncio, Dinarte, Cota, Eloisa e um empregado novo um que tinha o apelido de “Culo Cravado”, pois quando jogava o osso ali na cancha ao lado da venda só botava culo, uma madrugada muito escura e de repente as vacas se assustaram e derrubaram baldes e tarros, correram a se amontoar num canto do galpão, uma bola de fogo parou no meio do galpão, Eloisa deu um grito e o empregado novo se borrou, aliás, no outro dia bem cedo ele foi embora. Juvêncio pegou a lanterna, saiu do galpão, o canto triste dos sapos, uma aragem fria, o céu estrelado, o barulho de um avião a jato, no céu os dois pontinhos luminosos piscando, a dez mil pés de altura, vindos de sudoeste rumo a nordeste, de Buenos Aires ou Montevidéu para São Paulo ou Rio de Janeiro. De madrugada ouviu barulho na cozinha da casa principal, sem ligar a lanterna, caminhou devagar e foi espiar: Estrabulega estava sentado diante da mesa às mãos no rosto, chorando aos prantos. Juvêncio ficou sem saber o que fazer. Voltou para seu canto no galpão preocupado: alguma coisa não estava bem com o Estrabulega. Ventana estava na pequena horta que ele cultivava, lutando para matar as formigas que estavam cortando os pés de maxixe, quando Estrabulega chegou e avisou: -- Logo nós vamos jantar juntos. Eu tenho um assunto pra combinar contigo. Concordou e continuou botando veneno nas formigas. Qual seria o assunto? Não tinha a menor idéia. Mal anoiteceu os dois foram para a cozinha da casa principal preparem o jantar, aliás, coisa que por milhares de vezes os dois já haviam feito. Comida rápida e simples: pirão do Capão Seco com ovelha gorda. Enquanto preparavam o pirão, tomavam cachaça composta com os frutos do coqueiro jerivá. Ventana conhecia muito bem o amigo para já ter notado que alguma coisa não estava normal com ele. Jantaram beberam cerveja e depois foram para o quarto de Estrabulega, sentaram no chamado cantinho do Estrabulega, este ligou o rádio amador, chamou algum colega que por ventura estivesse na escuta: é o “PX” três, Delta 3455 estação Capão Seco que chega com um; boa noite. Foi contestado por um colega da nona região cidade de Rio Verde estado de Goiás. Conversaram por cerca de dez minutos, depois de se despedir do colega, baixou o volume do rádio, pegou o cachimbo, encheu de fumo, acendeu, tirou uma baforada, olhou bem para Ventana e perguntou: -- Te lembras quando nós fomos ao Rio Grande visitar o tio Juvenal? Ventana pensou por alguns minutos e respondeu: -- Lembro. Foi em 1945 numa tarde de verão. Numa tarde de verão os dois embarcaram no “Bagé”, este era o apelido do trem de passageiros que passava ali no Capão Seco quatorze horas e quarenta minutos procedente de Bagé com destino a cidade do Rio Grande. Rapazes, ainda, embarcaram e foram logo para o vagão bufete, tomar gasosa de limão e comer sanduíche de pão com mortadela: naquela época um lanche de luxo servido nos trens de longo curso. Embora as alegrias da viagem e do lanche encontram a casa de tio Juvenal muito triste. Havia um cheiro de mofo misturado com cheiros de remédios. A esposa e os filhos, cansados, tristes, a doença não tinha cura. No quarto, quase na penumbra, tio Juvenal estendido sobre a cama era uma figura sem cor. Respiração ofegante, olhos embaçados, muito esforço para falar, mal fazia movimentos com braços e pernas, a todo instante gemia de dores no corpo. Ficaram com o doente até a hora de correr para a estação e embarcar no último trem às dezoito horas. Viajaram calados, tristes, impressionados com o que tinham visto. De Rio Grande ao Capão Seco, cinqüenta quilômetros, as dezoito e cinqüenta saltaram na pequena estação. Estrabulega pegou o amigo pelo braço e o levou para o grande eucalipto que tinha perto da estação dizendo: -- Vamos combinar um trato... O trato do eucalipto... Madrugada calma, lua crescente, céu sem nuvens, pouco movimento na rodovia. Ao longe o barulho de um trem. Juvêncio desligou o rádio, levantou para esticar as pernas. Os cachorros latiram: um zorrilho passou correndo pelo pátio. O apito do trem e logo o comboio passou fazendo tremerem as janelas do galpão. Já ia sentar quando viu o vulto passar correndo rumo ao galpão da leitaria. Pegou o telefone celular que estava perto do rádio e botou no bolso do casaco, bateu no cabo de revolver na cintura, resolveu sair sem a lanterna. Com calma chegou ao galpão da leitaria onde no escuro o tal empregado novo estava procurando alguma coisa no armário onde guardavam as vasilhas. Desapontado disse que estava ali procurando um isqueiro, pois estava com vontade de fumar. Juvêncio nada disse, mas ficou desconfiado. De manhã, na hora do recreio na Escola Alcides Maia, que as correrias e gritos das crianças davam vida aquele povoado habitado por velhos, Juvêncio foi à casa principal contar para Estrabulega: -- Este empregado novo. Hoje de madrugada andava lá no galpão da leitaria, mexendo por lá no escuro. Já vou te contando que se depois acontecer alguma coisa... E tem mais: todas as noites ele sai a andar por aí e volta só de madrugada. Estrabulega coçou a cabeça e comentou: -- Eu já vi mais de uma vez ele judiando dos cavalos. O Maneca já disse que nem gosta que ele ajude na leitaria porque ele tem mania de bater nas vacas. Nesta leitaria desde os tempos de meu avô nunca se bateu nas vacas: o nosso sustento. Eu nem sei de onde o Tuca tirou este empregado. Juvêncio sacudiu a mão explicando: -Ele apareceu aí na casa do Dinarte... Quem sabe é ele o homem que o Dinarte contratou para te matar. Admirado Estrabulega perguntou: -- Para me matar?! Juvêncio deu uma risada: -- Te lembras da noite do porongo? A noite do porongo; foi no inverno de 1943. Dinarte tinha uma namorada que morava na vila do Povo Novo e aos domingos a noite voltava do Povo Novo para o Capão Seco a pé por cima dos trilhos, pois o último trem era o chamado Trem das Sete. Naqueles tempos as estórias de assombrações eram muitas. Havia gente que jurava de pés juntos ter visto mula sem cabeça, lobisomem, boitatá, Saci-Pererê e até fantasmas. Dinarte famoso por duas coisas: uma era ser fabricante de flautas de bambu, outra; era muito assustado e acreditava em todo o tipo de assombrações. Ora os dois moleques: Estrabulega e Ventana sabendo disto prepararam um susto ao Dinarte. Pegaram um porongo bem grande, fizeram dois furos, botaram uma vela dentro. Escolheram um lugar onde a ferrovia cortava o mato, botaram o porongo pendurado numa arvore bem perto dos trilhos e esperaram, ao verem que Dinarte vinha vindo acenderam a vela. Quando o assustado Dinarte viu o vulto redondo parecia uma cabeça com dois olhos de fogo, quase se cagou de medo. Parou respirou e gritou: -- Sai filha da puta. Quem é o fresco que esta aí?! Não obteve resposta, quis avançar, mas as pernas tremeram e pesaram. Não avançou, sentou sobre o trilho e esperou o dia amanhecer. Quando soube que o autor da brincadeira foi o Estrabulega, ali na venda ele prometeu: um dia contrato um homem para te matar. Passou um grande trem rumo a Rio Grande, quatro locomotivas e oitenta e sete vagões. Juvêncio acordou com o barulho e resmungou: trem de merda, era cedo, mas levantou, lavou o rosto, olhou as horas: oito horas, para quem tinha passado à noite de ronda e deitado às seis. Já que estava acordado foi para sua pequena horta capinar e viu Estrabulega montar a cavalo e sair. Pouco depois viu o tal empregado novo sair do galpão com a mala na cabeça dizendo que ia embora. Perguntou: -- Por quê? -- Seu Tuca me mandou embora... Intrigas deste velho Estrabulega... Um dia eu acerto minhas contas com este velho de merda... Até logo. Meia hora depois viu Ventana arrumado com uma sacola na mão saindo rumo à rodovia, perguntou: -- Vai passear? -- Bom dia Juvêncio. Vou a Porto Alegre passar uns dias na casa da minha filha. Seguiu capinando e pensando: estranho que Estrabulega tivesse saído a cavalo e não tivesse esperado para se despedir de Ventana. Só se os dois estivessem de mal. Mas nunca brigaram, ou seja, só brigaram uma vez por causa do guarda-chaves. O guarda-chaves era o funcionário da estação que além de encarregado de movimentar as chaves de manobras das linhas, fazia a limpeza do recinto e o encarregado de abrir o armazém da estação, todas as madrugadas para os leiteiros tirarem as latas. Na década de cinqüenta teve um guarda-chaves na estação do Capão Seco que diante de tanta fartura de leite resolveu comprar uma vaca e vender leite. Comprou uma vaca da raça jérsei já velha magra e que ele mantinha atada perto dos trilhos, pois ele não tinha campo. Vendia leite para Rio Grande, todo o dia mandava de trinta a quarenta litros. Tirados de uma vaca magra? Na verdade ele tinha escondido dentro do armazém uma caneca e durante a madrugada roubava um pouco de cada lata dos leiteiros que as iam deixando ali na plataforma e iam para a venda. É lógico que os leiteiros sabiam que aquela vaca não dava nem dois litros de leite e sabiam que sempre algum pouco era tirado de suas latas, mas a grande maioria levava a coisa na brincadeira até uma madrugada que um grupo mais radical resolveu combinar de cuidarem e quando o vissem mexendo nas latas o pegarem e da uma tunda de pau. Pois foi ali na venda que estavam combinando e Estrabulega concordou em ajudar, mas Ventana foi contra: deixa o pobre do homem; fazer o lado dele, o que é uma caneca de leite para quem manda oitocentos litros? Discutiram os dois e quase se pegaram a socos. Foi à única vez que brigaram. Eloá abriu a porta entrou na casa principal, estranhou não escutar movimentos do seu Estrabulega, ele que nunca levantava tarde. Abriu as janelas da cozinha, pegou a vassoura. Ia varrer os quartos, sensação diferente, curiosidade foi espiar o quarto de seu Estrabulega. Deu o grito soltou a vassoura e correu para a rua, andou na volta e correu ao galpão da leitaria onde encontrou Tuca, abraçou se nele chorando e a muito custo disse: -- Seu Estrabulega morto... Vai lá... Meu Deus do céu... Tuca tremeu nervoso, gritou o Maneca que estava laçando uma vaca. Os dois correram até a casa principal. Deitado de barriga para cima, destapado, vestindo pijama com um feio ferimento no peito. Maneca disse: -- Um tiro no coração... Os dois ficaram com cara de bestas sem saber o que fazer. Eloá chegou e nervosa tomou a iniciativa: -- Avisem dona Cotinha, tem que chamar a policia... O Júlio! Liguem para Brasília, de lá aqui ele tem que vir de avião... Um perito tirando fotos, um inspetor de policia fazendo perguntas. Dona Cotinha e Juliana, inconsoláveis. Juan chegou sem derramar uma lágrima, a primeira coisa que fez foi procurar um guia telefônico de Pelotas para encontrar um detetive particular. Júlio, muito abatido, chegou ao fim do dia. Telefonaram para Porto Alegre avisando Ventana, mas este nem quis comparecer, pois ficou muito chocado. Já estava anoitecendo chegou, de moto, um sujeito ruivo, sardento, gordo, mal alinhado procurando pelo senhor Juan. Apresentou se como sendo o detetive Silva. Os dois saíram para o pátio e Juan falou com muita autoridade e arrogância: -- Quero que o senhor descubra o assassino. Há uma herança nesta história. Todos são suspeitos. Vou dar ordem aos empregados para o senhor ter livre trânsito dentro da fazenda... No momento que o enterro estava saindo o velho Dinarte olhou o caixão e disse: -- É Estrabulega, Leonor disse que tu irias morrer com um tiro no coração... Um tiro no coração foi o que Leonor disse numa tarde de primavera do ano de 1948 quando soube que o autor da brincadeira tinha sido o Estrabulega. Na verdade os autores foram os dois; pegaram uma grande cobra, parelheira tinha um metro e trinta centímetros. Arrumaram uma caixa de sapatos, botaram a cobra, viva, dentro da caixa e fizeram um pacote. De tarde na hora do Trem das Cinco, Este era o trem de passageiros que dava o maior movimento de desembarque de passageiros na pequena estação: gente do lugar que tinham ido a Pelotas, fazer negócios, compras, resolver problemas e até passear. Do Trem das Cinco, naquele dia, desembarcou Leonor carregada de pacotes os quais deixou sobre o banco da plataforma e entrou no escritório da estação para pegar jornais e correspondências. Foi neste instante que os dois correram e deixaram o pacote com a cobra perto dos pacotes dela. Ela saiu do escritório viu aquele pacote, olhou para todos os lados e muito metida à esperta misturou com os pacotes dela. Chegou à casa alegre porque tinha achado um pacote, abriu louca de curiosa. A cobra parelheira é uma cobra muito esperta e rápida, quando ela tirou à tampa da caixa a cobra pulou e ela caiu desmaiada. No pequeno apartamento, quarto, banheiro e um cubículo apelidado de cozinha, o detetive Silva entregou os dez reais à mulher, gorda, pele manchada, cabelos duros de sujeira. Ela agradeceu e saiu. Detetive Silva sacudiu a cabeça: que bagulho! Quando comecei a estudar para detetive pensava que ia ser como os detetives de cinema, só ia comer mulher bonita... Bem Silva vai tomar um banho e vamos à luta. Banho tomado vestiu a roupa velha e foi para o quarto remexer numa gaveta cheia de papéis: bem hoje eu vou lá para aquele povoado dos “remangados” começar a mexer no caso Estrabulega. Todos são suspeitos até que se provem quem é o culpado. Meu instinto de detetive aponta para o genro o tal de Tuca. Tuca estava montado a cavalo quando o indesejado detetive Silva chegou; montado ficou e o recebeu sem estender a mão. O detetive conhecia os cavacos do oficio e nem se importou. Pensou e logo foi dizendo: -- O senhor desculpe se eu o incomodo, mas o senhor sabe que estou contratado por seu cunhado: o senhor Juan... -- Eu sei! Pois já vou lhe dizer, qualquer assunto converse com quem o contratou. O detetive Silva, sorriu, mas respondeu firme: -- Mas os assuntos que eu tenho estão aqui. E eu tenho cartas brancas de um dos herdeiros. Tuca sacudiu os braços dizendo: -- O senhor esta investigando o assassinato de meu sogro... Problemas de herança dona Cotinha esta resolvendo junto com os filhos e isto é assunto de família que ninguém deve meter o bedelho. -- Senhor eu não meto o bedelho, eu estou trabalhando... A fazenda tem dois computadores? -- Tem sim... Por quê?! -- Eu posso ter acesso a eles? Tuca empinou a cabeça, sacudiu o chicote com raiva e respondeu: -- Um dos computadores é de meu serviço da administração na fazenda: neste o senhor não vai mexer. O outro era de meu sogro: neste o senhor só mexe com autorização de minha sogra. Detetive Silva tirou o bloco de anotações do bolso, folheou, leu o nome do guarda e perguntou: -- O senhor permite que eu converse com o senhor Juvêncio? Tuca sacudiu os ombros, bateu com o chicote no cavalo e afastou-se dizendo: -- Por mim! Detetive Silva guardou o bloco: seu moço o senhor pode ser um assassino amador. Eu sou um detetive profissional. Enquanto o detetive foi ao galpão procurar Juvêncio, Tuca entrou na casa principal e ligeiro foi apagar alguns arquivos do computador. No galpão das arrumações, situado perto da casa principal tinha dois pequenos apartamentos de quarto, cozinha e banheiro onde moravam Ventana e Juvêncio e dois quartos que eram usados por empregados temporários. Juvêncio de mau humor convidou o metido detetive Silva a entrar e apontou o banco: -- Sente, seu. Sentou no momento que o galpão era invadido pelo barulho de um trem. Detetive Silva esperou o trem passar e o usou para iniciar a conversa e tentar quebrar um pouco a antipatia de Juvêncio: -- Aqui passam muitos trens? -- Poucos. -- É as ferrovias estão mudadas. Eu sei disto porque sou filho de ferroviário, meu pai foi agente de estação. Hoje no Rio Grande do Sul não existem mais os trens de passageiros. Até conto mais: não tem nem as estações; Santa Maria deixaram tocar fogo. A de Pelotas os pivetes tomaram conta. Estes trens que passam aí são de uma empresa privada. Até conto mais: eles são controlados através de computadores lá de Curitiba com ajuda de satélites. Juvêncio não queria saber de trens, queria saber o que aquele enxerido ia perguntar e mais queria era o ver indo embora ali de seu apartamento. Detetive Silva tirou o bloco de anotações do bolso, leu e perguntou: -- Naquela noite o senhor não estava na ronda? -- Tava de folga. -- Quem sabia que o senhor estava de folga? -- Só eu e o finado. -- Mais ninguém? -- Porra! Já disse: só eu e o finado. -Mas o senhor Tuca é o administrador. Ele não faz a escala do guarda? Juvenal sacudiu a mão resolveu explicar para encurtar a conversa: -- Quando eu vim trabalhar de ronda, o Tuca ainda estava estudando em Pelotas e quem cuidava isto aqui era o finado. E meu serviço foi combinado com o finado. E as noites que eu tirava a folga eu combinava com o finado. A gente não falava para ninguém que era para não se espalhar por aí que na tal noite não iria ter guarda. O senhor sabe que o povo tem mania de falar o que não deve. Detetive Silva olhou bem nos olhos de Juvêncio e perguntou: -- O senhor tem alguma bronca com o senhor Tuca? -- Não. Detetive Silva folheou o bloco, leu e perguntou: -Aqui mora um senhor chamado Dinarte. Ele já trabalhou aqui na fazenda e foi muito amigo do falecido. Eles eram muito amigos? -- Acho que sim. -- Eles nunca brigaram? -- Ora se eles foram guris da mesma época! Qual é o guri que não briga? -- O senhor lembra alguma? -- A briga da pandorga... A briga da pandorga aconteceu no campo da venda, que era o lugar onde a molecada se reunia para brincar: jogar futebol com bola de meia, jogar bolinhas de gude, soltar pandorgas... Dinarte era muito jeitoso e gostava de fazer bonitas pandorgas. Numa tarde de primavera bem ventosa o Dinarte soltado uma pandorga bem grande e bonita e os dois: Estrabulega e Ventana chegaram cada um com uma pandorga, só que nas pandorgas deles eles tinham botado laminas de fazer barba na cola. Ora naquela brincadeira de sobe e desce com as pandorgas passavam à cola das deles no barbante da do Dinarte até que conseguiram cortar. Nervoso, o Dinarte perdeu a calma, pegou um pau e deu uma paulada no Estrabulega. Detetive Silva anotou e perguntou: -- E com o seu Ventana, o seu Dinarte nunca brigou? Juvêncio coçou a cabeça, sorrio e respondeu: -- Que eu me lembro, foi só na vez do bilhete. O bilhete: Dinarte tinha uma namorada em Pelotas e pediu para o Ventana levar um bilhete para a namorada, Ventana leu o bilhete e deu uma risada, Dinarte ficou brabo e brigou com ele. O bilhete estava escrito assim; “Vem nu çãojuão him kpãocko”. Na casa úmida, cercada de água, o detetive Silva foi recebido na pequena sala, onde uma televisão fanhosa, com imagem tremida, transmitia um filme; pelo dono o senhor Dinarte, que desligou a televisão, apontou a velha poltrona dizendo: -- Sente e fique agosto seu... Não repara a desordem, que depois que eu fiquei viúvo... Os filhos cresceram e se foram... Detetive Silva notou que o homem gostava de conversar e que com ele não iria ter problemas em obter informações. Começou bem à vontade perguntando: -- O preço do leite esta bom? -- Pois veja; não ta... O leite sempre valeu pouco... Detetive Silva quis agradar e disse: -- É o governo não dá valor à agricultura e pecuária... Eles só querem roubar... Rosto, redondo, olhos azuis, cabelo preto, Dinarte deu uma risada e disse: -- Mas até eu se estivesse lá eu roubava... Todo o mundo é assim... Pois veja em 1950 tombou, ali perto da estação um vagão cheio de milho... De noite o povo do lugar roubou o milho... Eu também roubei... Quem começou a roubar foram os mais honestos do povoado... Detetive Silva, coçou a cabeça e disse: -- Mas podemos trocar de assunto... Quero informações sobre o finado Estrabulega... O senhor tem a mesma idade que o falecido Estrabulega? Fazendo gestos, respondeu: -- Pois veja: até sou mais velho. Eles nasceram em 1928... -- Desculpe: eles? Dinarte riu: -- É que aqui quando se fala num se fala no outro. Estrabulega e Ventana... Pois veja: eu sou de 1923. Mas eu to registrado como se eu nasci em 1925. Que naqueles tempos estas coisas de papéis não eram, lá, levadas muito a sério. Mas minha mãe dizia que eu nasci no ano da revolução. E o ano da revolução foi 1923. Pois veja: meu pai dizia que eu nasci cinco anos depois que ele casou. Ele casou no ano que aquele balão dos portugueses, me parece que o nome, dum, era Coutinho. Pois veja ele casou no ano que este balão veio cair aqui no Capão Seco, até sei que caiu na estrada ali onde hoje tem aquela cabana bonita. Pois veja, eu depois li no jornal, este balão que até veio um trem especial de Pelotas, cheio de gente para ver, caiu em 1918. Pois veja que 1918 mais cinco anos é 1923, mas eu to registrado como nascido em 1925. Que até eu foi pro quartel no tempo que o Brasil tava mandando soldados para a tal de segunda grande guerra, lá pra Europa... Pois veja que botaram os soldados em forma e o comandante disse: quem não quiser ir para a guerra, que dê um passo à frente... Eu dei o passo, pois veja: eu não queria ir à guerra nenhuma, sabe o que eles fizeram? Me expulsaram do quartel. Mas sai dando risadas. Tonto de tanta explicação o detetive Silva respirou e perguntou: -O senhor os conhece, desde pequenos? -- Pois veja o meu pai era peão de uma leitaria vizinha da leitaria do pai de Estrabulega e a gente se criou tudo junto. Pois veja: Ventana nasceu na beira do São Gonçalo, mas a falecida mãe de Estrabulega, uma santa criatura que Deus a tenha, era muito doente e fraca e, pois veja: não tinha leite para o guri mamar já a falecida Isolina, que era a mãe do Ventana, com todo o respeito, tinha um par de seios que era uma maravilha. Pois veja que dava de mamar pra o Ventana e sobrava muito leite. Aí acertaram de ela dar leite para o Estrabulega e então o pai do Ventana veio ser empregado do pai de Estrabulega e por causa desses acertos; todos moravam ali onde hoje se diz ser a leitaria de dona Cotinha. E os dois se criaram juntos. Detetive Silva coçou a cabeça para perguntar: -- Pouca gente os conhece pelo nome e sim pelos apelidos. Por que estes apelidos? --Pois veja; eles sempre foram medonhos de arteiros, desde criança até depois de homens velhos. Pois veja quem botou este apelido neles foi o falecido velho Romualdo, no dia em que eles sumiram... Sumiram numa tarde de domingo, era verão, os dois tinham cinco anos de idade. Andavam brincando perto do galpão e viram Romualdo sair rumo à estação para esperar o retorno de trem do leite, que a tarde vinha de Rio Grande para Pelotas distribuindo nas estações do trecho as latas vazias. Por morar perto da estação Romualdo trazia as latas na véspera para o galpão e assim as podia lavar com calma. Capricho sempre foi à lei naquela leitaria. Os dois moleques seguiram o velho e na estação ficaram escondidos atrás de uma pilha de caixas que estava na pequena plataforma. O trem do leite conhecido por “SL” chegou e funcionários apressados descarregaram as latas. Fecharam os vagões e o trem seguiu. Quem deu falta foi à mãe de Ventana. E os guris? E procura e pede ajuda aos vizinhos. E faz orações. Choro. Caíram no açude. Promessas. Gente procurando por todo o lado. Duas horas, depois, da estação de Pelotas chegou um telefonema dizendo que os funcionários do “SL” tinham encontrado duas crianças escondidas dentro de um vagão e que provavelmente seriam de Capão Seco. Dinarte foi à cozinha de onde voltou com um copo na mão e entregou a Silva dizendo: -- Beba um golinho, faz bem para a cabeça: pois veja é “barranca a baixo”; vinho, suco de frutas e mel, invenção minha. Tomou o trago, olhou o bloco de anotações, sem saber o que perguntar apenas comentou: -- Então os dois eram muito arteiros? Foi o suficiente para Dinarte se emocionar e continuar contado artes dos amigos. -- Pois veja: os dois eram medonhos, uma vez eles ainda tinham cinco anos e era tempo das criações botarem filhotes. Na fazenda se criava perus, patos, galinhas. Eles viram os patinhos nadando no açude, o que fizeram? Pegaram uma galinha choca junto com os pintos e jogaram no açude. Uma vez, eles já tinham dez anos, na hora da sesta. Que sestear aqui neste lugar era obrigado já que a gente levantava de madrugada. Pois foi na hora da sesta eles foram à cozinha pegaram uma lata de banha e foram passar banha em cima dos trilhos só para verem a locomotiva do “Bagé” patinar. Naquele dia levaram um castigo. Ninguém viu, mas diziam que foram eles que botaram a casa de abelhas no Trem da Uma. Casa de abelhas no Trem da Uma: causou um transtorno naquela viagem no verão de 1940. Os dois descobriram uma casa de abelhas perto dos trilhos, com muito jeito e cuidados, cortaram o galho da arvore onde ela estava e fizeram cair dentro de um saco. Fecharam o saco, com as abelhas furiosas, e esperaram o Trem da Uma. O trem parou na estação eles embarcaram pela ultima porta e deixaram o saco cheio de abelhas debaixo de um banco de um vagão de primeira classe, tiveram o cuidado de deixar uma pequena fresta, aberta, na boca do saco. Quando o trem continua a rodar, o barulho e o sacudir do vagão fizeram as abelhas se movimentarem e invadirem o vagão. Houve até desmaios de passageiros. Juvêncio acendeu as luzes do pátio, examinou o galpão, largou o rádio e o telefone em cima da mesa, pegou a lanterna e saiu para olhar a volta da casa principal. Noite triste cantoria de sapos, um cachorro latiu e na praça de pedágio uma fila de caminhões começou a buzinar. Voltou para o galpão, sentou pensativo: mais um que se foi. Da turma deles quantos já tinham ido? Quase todos. Daqueles conhecidos como a turma dos tempos do “SL” restavam muito poucos. Sacudiu a cabeça. Lembrou do tal empregado novo que até saiu dizendo que um dia acertaria as contas com o falecido: sem querer botar maldade em ninguém, mas aquele cara tem alguma coisa nesta confusão. Será que o tal detetive Silva sabe do tal empregado novo? E tem mais se foi o tal empregado novo ele fez coisa mandada. Juvêncio para de pensar tche! No pequeno e sujo apartamento o detetive Silva, que já havia sonhado em ser detetive e ter boas mansões, carros esporte, lanchas, iates e até aviões, levantou, olhou as horas, vestiu a calça desbotada, a camisa do Grêmio Esportivo Brasil, foi à velha geladeira, pegou uma lata de guaraná: hoje eu nem vou lá naquele povoado. Hoje vou andar na cidade e botar meus assuntos em dia. Passou uma água nos dentes, saiu batendo a porta. Passou pelo Mercado Público, rumou para o Café Aquário. Estava distraído tomando o café e escutou um corretor de imóveis conversando com dois ricos criadores de bois: --... Mais uma herança, o campo de dona Cotinha, aí no Capão Seco. Campo bom para engordar. Herança que logo vai ser mexida. Os filhos não querem saber daquilo ali, estão bem empregados e o genro, o Tuca, este ta loco para pegar em dinheiro. O filho da puta tem uma amante... Detetive Silva empinou o café: tinha ganhado o dia, as boas informações chegam aos grandes detetives. Tuca o suspeito numero um tinha uma amante. De tão contente até se deu ao luxo de comprar um charuto. Juvêncio capinando o canteiro de feijão de vagens de sua pequena horta pensando: a leitaria de dona Cotinha estava triste; Estrabulega falecido o Ventana continuava em Porto Alegre. Voltaria? Se voltasse iria tirar uma dúvida com ele. Estavam eles junto com Leonor naquela tarde em que ele ficou nu no meio do mato? Nu no meio do mato por causa de Leonor. Leonor tesão de fêmea que deixava os guris do povoado ardendo de desejo e a cabeça cheia de imaginações. Tinha olhos pretos brilhantes, cabelos compridos, sempre livres ao vento, boca de lábios grossos, peito farto, cintura fina, bunda redonda, cochas bem torneadas. Caminhava na ponta dos pés, requebrando a bunda que parecia que flutuava. Gostava de andar de pés descalços. Na hora em que os mais velhos estavam sesteando os guris do povoado iam lá para perto da casa dela a espiar. Ela gostava e ficava de longe jogando beijos para eles, fazia gestos, virava de costa e sacudia a bunda. Eles todos sentados na cerca do curral loucos para chegarem perto, mas não podiam, pois se chegassem os cachorros latiriam, acordariam os pais dela e acabava a festa. Até quem alertou eles deste problema foi ela. Uma hora da tarde, sol a pino, cigarras cantando no mato ela perto de casa se requebrando, aquele bando de guris sentados na cerca à maioria de pau duro. Ela jogava beijos por fim levantava o vestido mostrando as calcinhas e corria para dentro de casa. Eles desciam da cerca e iam sentar nos trilhos para fazerem concurso de punheta. Quem acaba primeiro; ganha uma rapadura. Uma coisa eles não sabiam: ela corria, subia na grande figueira e ficava espiando eles baterem punheta. Nos fins de semana o irmão dela que estudava em Pelotas e lá morava com uma tia, vinha para Capão Seco e aí os guris iam brincar com ele, aí que ela provocava, pois tinha a proteção do irmão. Iam para o curral onde estavam os terneiros e ela inventava gineteada em terneiros para ver quem tinha mais coragem. Montavam nos terneiros virados para trás, seguros na cola, ora o terneiro começava a correr e dar pulos até que o ginete se espatifava no chão e ela dava gargalhada. Em tempos de araçás, ela pedia para a gurizada trazer araçá e fazia disputas, quem ganhasse tinha direito a ir num canto do galpão onde ela levantava o vestido e mostrava à bunda. Lá iam eles para o meio do mato colher araçá; só que as regras ela definia depois que eles entregavam as frutas: hoje ganha quem trouxe menos; hoje ganha o que trouxe mais; hoje ganha o que trouxe o maior. Ela provocava todos, mas na verdade era louca pelos dois: Estrabulega e Ventana. Nas noites de calor por todo o corpo, quando apertava o travesseiro entre as pernas ou com fúria quase enlouquecendo esfregava as duas mãos na xoxota; era pensando num deles. Foi ela que ensinou a eles as artes do sexo. Estrabulega ela deu o primeiro beijo numa manhã muito fria em que a geada branqueava na hora do recreio, num momento em que os dois ficaram sós dentro da sala de aula. Mas foi numa tarde quente do verão, os dois estavam no mato com bodoques jogando pedras num cacho de cocos de jerivá. Juntavam os cocos para chupar, quando ela chegou pedindo coquinhos. Beijou os dois, riu uma risada quente e gostosa. Abraçou- os. Os dois ficaram tesudos ela deixou Estrabulega passar o pau no meio das pernas, depois deixou o Ventana. Depois deixou os dois encostarem-se a ela, por cima da roupa. Daquela tarde em diante os três passaram a se encontrar no mato. No meio das arvores, deitados na grama faziam de tudo. Quase sempre a iniciativa de novas brincadeiras partia dela. Levantava o vestido e dizia: agora os dois, um na frente e outro atrás. Devagar seu bruto! Sem saber destas brincadeiras dos três, mas com a cabeça cheia de vontade Juvêncio, um dia criou coragem e convidou ela para irem ao mato buscar coquinhos. Naquele dia ela ficou braba e disse um mundo de coisas para ele. Mas dias depois ela se arrependeu e concordou. Combinaram a hora e lugar. Lá estava ele nervoso, inquieto, sem dar a mínima para a mutuca que sugava sua testa. O coração aos pulos escutou o ruído dela chegando entre as arvores. Chegou, sorriu e disse que tinha que ser ligeiro, rodopiou levantou o vestido mostrou as coxas ele pulou para segurála, ela recuou e propôs: primeiro tu tiras toda a roupa e bota ali na raiz da figueira. Aquilo foi mais que um pedido, foi uma ordem. Nervoso, tremendo de desejo, tirou a roupa, ela riu e disse: agora me pega. Disparou e ele correu atrás, ela fugiu, ele voltou e não encontrou a roupa. Ficou nu, escondido dentro do mato, todo picado por mutucas, até anoitecer. Detetive Silva encostou a barulhenta moto na parede, desligou, olhou o pátio; um bando de gansos gritou, as marrecas correram para a água, galinhas espalhadas pelo terreiro, bem perto da casa um bando de frangos da água, um casal, barulhento, de jaçanãs que ali são chamadas de saracuras do banhado e chegou à porta, que estava aberta, gritando: -- Oh de casa! Dinarte apareceu, cuia na mão, dizendo: -- Bom dia seu detetive... Entre que a casa é sua... Hoje o senhor vai almoçar comigo, tem bifes de peito de ganso... Quando tiver camarão vou lê convidar pra comer camarão com berduega... -- Pode ser... Aqui estou eu, de novo, para fazer perguntas. -- Pois veja: eu respondo. Dizem que eu sempre tenho a resposta na ponta da língua. Pois veja: eu não sou de uma família que tem aqui neste lugar e que é muito conhecida por casarem primos com primas e de sempre terem a resposta na ponta da língua. Pois veja: eu sou Dinarte Souza, até dizem que este Souza vem ser parente do tal general da guerra dos farrapos, o tal de Antonio de Souza Neto que é o filho mais ilustre deste povoado, pois veja: esta gente Souza foi tudo morar no Uruguai, mas eu nem ligo para isto, afinal não vai me ajudar a pagar as contas... Sente e fique a vontade. Sentou tirou o bloco de anotações do bolso, leu e fez a pergunta: -- O senhor nunca teve briga com o finado? -- Pois veja, se tive foi alguma briga sem importância nos tempos de guri. Pois veja que eu sou até muito agradecido ao finado e a dona Cotinha. Pois veja que esta casa e o pedacinho de campo, onde crio umas vaquinhas das quais tiro uns litros de leite, quem me ajudou a comprar foram eles. Pois veja eu era um pobre peão de leitaria e eles me deram coragem e até emprestaram um pouco de dinheiro pra eu fazer a compra. Pois, veja eles me ajudaram porque eu também ajudei muito eles. Que quando o finado Estrabulega e o Ventana sumiram... -- Desculpe: sumiram?! -- É teve um tempo que os dois sumiram e ninguém nunca descobriu onde eles andavam. Mentiras apareceram às dúzias: diziam que eles tinham se metido em contrabandos e estavam presos na fronteira. Contavam que eles tinham brigado numas carreiras em Canguçu, tinham matado gente e andavam fugindo. Um ferroviário contou que uma noite os encontrou na estação de Santa Maria. Era muita estória! Naqueles tempos andavam uns bugres de Mato Grosso percorrendo o Brasil em caravanas, com cavalos, burros de carga, dormiam em barracas, índios que o governo tirava da selva e patrocinava esta andança, pelo País, para ficarem civilizados, pois veja, era para aprenderem a beber, fumar, brigar, dizer bandalheiras. Então diziam que os dois tinham se juntado com umas bugras e andavam numa destas caravanas. Teve gente que disse que os dois estavam aí em Pelotas e que eram amantes da Leonor. A verdade ninguém nunca soube. -- Sim, mas o senhor estava dizendo que eles o ajudaram... -- É. Pois veja: quando os homens sumiram. Dona Cotinha tomou conta da leitaria e botou de empregados eu e Juvêncio. E foi num tempo muito brabo e perigoso, por aqui: é que tinha uma quadrilha de ladrões de gado, andaram arrombando a estação; apareceu um homem morto na beira dos trilhos que nunca ninguém soube quem era o morto e nem quem matou, pois veja que fizeram uma sabotagem nos trilhos pra virar o carro motor que naquele tempo viajava de Jaguarão para o Rio Grande e diziam que carregava muito contrabando, foi um tempo de medos e muito serviço. Fez nós trabalharmos bastante, mas foi reconhecida. Detetive Silva anotou e perguntou: -- E Juvêncio? Eles ajudaram? -- Pois veja: Juvêncio casou com a filha de um tuco. Tuco era como a gente chamava os ferroviários que ajeitavam as linhas... -- Desculpe: eu sei, meu pai era ferroviário. -- Então ta. Ele casou e a mulher convenceu irem morar no Rio Grande. Lá tiveram dois filhos e ela o traiu. Botou guampas nele e fugiu de casa. Os filhos a sogra criou e ele se jogou na cachaça. Quando o finado e dona Cotinha souberam, os dois foram ao Rio Grande e trouxeram, ele. Pagaram o tratamento, ajeitaram papeis de aposentadoria e encostaram, ele neste serviço de guarda... O senhor aceita um trago de barranca a baixo? Detetive Silva, limpou a garganta, aceitou o trago. Dinarte foi à cozinha buscar o copo com a bebida enquanto o detetive anotava em seu bloco. Bebeu o gole, sacudiu a cabeça: -- Boa... Seu Dinarte eu pergunto: O finado Estrabulega brigava muito com o Juvêncio? -- Pois veja, nos tempos de guri... Então nos tempos de colégio... Pois veja que quando o Getulio Vargas espalhou colégios por toda a campanha, fizeram este colégio do Capão Seco: Escola Alcides Maia, que eu nem sei quem é este Alcides Maia... -- Foi um escritor... -Deste tipo de gente eu não entendo... Pois veja: a gente foi os primeiros as estudar neste colégio. Pobre da professora, que aqui ninguém era acostumado com isto. Hoje tem um ônibus pra trazer os alunos e tem até merenda por conta do governo. Naquele tempo a gente vinha a pé, de tamancos, alguns até de pés descalços, os de mais longe vinham a cavalo, todos de calças curtas seguras por tirantes de pano. Na frente do colégio ficava amarrado um mundo de cavalos. Na hora do recreio, pra desespero da professora sempre se faziam carreiras de cavalos e depois o castigo. Pois veja nos tempos de colégio foi que o finado Estrabulega muito brigou com o Juvêncio. Teve a briga do bilhete e a briga dos tamancos. Briga do bilhete foi por causa de um bilhete que o Juvêncio recebeu com a assinatura de Leonor. Juvêncio vivia de beiços caídos por Leonor e ela não gostava dele, seguido os dois discutiam ela dizia: vai te enxergar! Ora vai te deitar vinagre! Mas numa manhã, estava em cima da classe de Juvêncio o bilhete de Leonor onde ela dizia que gostava dele e que duvidava, na hora da saída, ele pegar a mão dela. Ah na hora da saída, Juvêncio, brilhando de contentamento chegou e segurou a mão dela que nem vacilou virou um tapa no rosto dele. A risada foi geral. Juvêncio descobriu que quem escreveu o bilhete foi Estrabulega, brigaram a socos, ponta pés e cuspidas. A briga dos tamancos foi porque o Juvêncio calçou os tamancos e caiu. É que os alunos entravam na sala de aula de pés descalços, deixavam os tamancos e chinelos perto da porta. Coisas de guri, apressado, já deixavam os calçados virados para a saída, no momento que a professora dizia podem ir, levantavam ligeiro como um bando de bichos e quase correndo enfiavam os pés nos calçados e saiam contente para a liberdade. Uma manhã, Juvêncio saiu da classe já correndo, enfiou os pés nos tamancos, tropeçou e caiu. Estrabulega tinha pregado os tamancos no assoalho. Detetive Silva anotou e disse: -- Brigas de guris... Nada de ódios. -- É. Dinarte rio e contou a briga do burro tisnando. Dia de chuva, a gurizada estava na casa da Leonor, jogando o “burro tisnado” e o Juvêncio perdeu, e quem foi tisnar a cara dele foi o Estrabulega: passou óleo misturado briga... com merda de galinha. Deu Madrugada silenciosa, Juvêncio viu o vulto passando debaixo dos poucos postes de iluminação do povoado: Rui Gordo voltando de mais uma pescaria. Chegou ao galpão com um saco cheio de peixes: -- Bom dia seu Juvêncio... -- Bom dia, esta rendeu... -- Tirei umas traíras... O senhor quer umas? -- Bah! Deixa umas duas ou três e eu vou fazer uns filés. Tirou quatro peixes do saco deixou no chão e ia saindo quando Juvêncio perguntou: -- Rui, este Tuca é parente da Leonor? Rui olhou admirado e respondeu: -- Mas claro! Pois o Tuca e filho do irmão dela. O Tuca é sobrinho da Leonor. Rui Gordo saiu e Juvêncio ficou sacudindo a cabeça: nem me lembrava. Gente ruim. Aquele tal empregado novo quem contratou foi o Tuca. Deus me livre de pensar injustiças, mas quem matou o finado foi aquele empregado novo. Mas o Tuca é sobrinho de Leonor. A Leonor como era bonita! Quanta punheta bati pensando nela... Manhã bonita, joão de barro ( forneiro) cantando em cima do ninho. Pousado na grande figueira o sabiá cantava a todo pulmão, o assobio do cardeal. Um bando de anus passou voando. Pousada no poste a branca viuvinha. Num fio de arame o vermelho tico-tico rei. Juvêncio parou de fazer o canteiro e ficou olhando a natureza. Passou, voando bem devagar, um bando de colhereiros, ao longe o ronco dos tratores da granja de arroz trabalhando para aproveitar o tempo seco. Um tico-tico andando pelo campo procurando comida para um chato filhote de anu. O anu bota ovo no ninho dos outros. Perto da parede do galpão um grande lagarto caminhando sorrateiro. O barulho da moto: Droga! Ai vem o detetive chato. -- Bom dia seu Juvêncio. -- Bom. -- Bonito o dia. -- É. -- Podemos conversar? -- Já estamos conversando. Sorriu, tirou o bloco de anotações do bolso, folheou, leu e perguntou: --Diga: Tuca, o genro do finado, é daqui do povoado? -- É. -- A família de Tuca era amiga da família do finado Estrabulega? -- Olha diz os antigos que estas famílias sempre andaram brigando isto desde os tempos da Guerra dos Farrapos... Assim: às vezes se davam, às vezes brigavam... Estava ali uma boa noticia, anotou, pensou: aquele era assunto para conversar com o velho Dinarte. Folheou o bloco e perguntou: -- Outra coisa: O senhor Dinarte era amigo do falecido? -- Sim. -- Nunca brigaram? -- Ora se brigaram! Foi quando eram guris. -- E algumas vezes brigaram a socos? -- Uma vez foi na porrada. Quando cagaram na manteiga... Cagaram na manteiga do Dinarte numa madruga, na hora do “SL”. Muitos leiteiros traziam o leite em carroças e outros traziam nas chamadas latas de garupa. Os que traziam em latas de garupa aproveitavam que devido o trote dos cavalos de carga a nata batia e em cima do leite flutuava a manteiga, na hora de despejarem o leite das latas de garupa para as latas de viagem, recolhiam a manteiga. Dinarte trabalhava numa grande leitaria lá na beira da Lagoa dos Patos e que para chegar da leitaria até a estrada tinha que atravessar mais de dois quilômetros de banhado, por isto era mais fácil trazer o leite no lombo de cavalos. Muito leite; trazia dez cavalos de carga. Leitaria de gente muito caprichosa trazia uma escumadeira e um pano branco. Com a escumadeira tirava a manteiga da lata e enrolava no pano branco o qual, depois, guardava dentro de uma das latas de garupa para levar de volta. Estrabulega roubou a manteiga, cagou no pano branco, enrolou direito e tornou a botar dentro da lata. Sem saber Dinarte chegou à leitaria e alcançou para a esposa do patrão a lata que tinha a manteiga. Dinarte, calças remangadas, sem camisa, entrou em casa e voltou com duas cadeiras dizendo: -- Seu detetive; vamos sentar debaixo da corticeira que esta mais agradável. Sabiás cantando, o bem-te-vi pousado no arame, gritando. Detetive Silva, sentou, pegou o bloco de anotações: -Aqui ando eu, de novo, perguntando... -- Veja bem: o senhor pergunta e eu respondo. -- Quem foi à dona Leonor? Os olhos do velho brilharam e ele sorriu, respondeu com entusiasmo: -- Leonor foi uma das moças mais bonitas deste povoado. Naqueles bons tempos aos domingos à tardinha o passeio aqui era ir ver os dois trens de passageiros que passavam às sete horas da tarde. Juntava gente na estação e as moças iam todas enfeitadas. Veja bem; Leonor deixava a rapaziada de queixo caído. --Me diga uma coisa: Dona Leonor se dava com o falecido Estrabulega? -- Veja bem foi à primeira namorada dele. Até as velhas fuxiqueiras, quando sentavam pra tomar mate doce e falar mal da vida dos outros diziam que ele comia ela. Mas veja bem: depois que Estrabulega começou a namorar, com a Cotinha, as famílias brigaram. Veja bem: a família da Leonor era uma gente muito perversa e viviam metidos em brigas com os vizinhos. -- Outra pergunta: O Tuca, genro do finado Estrabulega, é sobrinho de dona Leonor? -- Veja bem: filho do irmão dela. Que até diziam que foi este irmão dela que armou a confusão das misturas de gado, num domingo de tarde, pra enredar o Estrabulega e o Ventana... -- Desculpe: que foi esta mistura de gados? -- Se o senhor quer ouvir eu vou contar com minhas palavras. Veja bem: foi num domingo que teve grandes carreiras na vila do Povo Novo. Naquele ano a safra da cebola foi boa e deu bom dinheiro. Veja bem: veio gente de todo este município do Rio Grande. Este nosso povoado ficou vazio, foi todo mundo. Veja bem: no serviço de leitaria tem uma coisa que se chama apartar as vacas. De manhã a gente separa as vacas dos terneiros, que é para eles não mamar e na hora que a gente vai tirar leite a vaca esteja com úbere cheio de leite. O senhor entende? --Sim, entendi... -Meu amigo veja bem: naquele domingo, bem de tardinha quando o pessoal começou a voltar das carreiras, encontraram as porteiras abertas, vacas misturadas com os terneiros, gado andando na estrada, alguns galpões estavam revirados com muita desordem, tinha gado de uns nos campos de outros. Veja bem: confusão formada. Naquele dia muita gente teve trabalhos dobrados e prejuízos, pois não produziram o leite. Mas veja bem: naquele tempo aqui neste povoado tinha um costume muito feio, quando queriam falar mal de alguém ou denunciar, escreviam versos e deixavam ou na venda, na estação e até no colégio. Pois botaram uns versos, até pregaram o papel ali no grande “ocalito” da estação... -- O senhor diz o eucalipto? -- Aqui a gente diz ocalito... Até me lembro dos versos: Neste lugar ordeiro Bagunçaro os desordeiro. Juntaro vacas com terneiro Abriram as porteira, De todas as mangueira. Pura bagunceira. Sim senhor. Prejuízos ao trabalhador Por dois impostor. A ninguém eles engana, Prendam, botem em cana Estrabulega e Ventana. -- Me diga uma coisa: Este caso deu policia? -- Sim... Veja bem: a polícia andou aí, mas era tudo intrigas. Não provaram nada contra eles. Veja bem: eles os dois também desconfiavam da Leonor e o irmão dela. Tanto é que em seguida a Leonor, este irmão dela e mais uns primos organizaram um baile aí no colégio. Estrabulega e Ventana acabaram com o baile. Sabe como? -- Como? -- Cortaram cabelo de cavalo bem miudinho, misturaram com pimenta, torraram a mistura no forno e na noite do baile, disfarçados, espalharam no salão. Aquilo deu coceira nas pernas do pessoal, só se via gente se coçando. O coça - coça acabou o baile. Detetive Silva anotou, leu, coçou a cabeça e perguntou: -- E as famílias nunca fizeram à paz? Continuaram brigadas? Dinarte coçou a cabeça, pensou: -- Veja bem: depois esta gente da Leonor vendeu o que tinham aqui e foram morar em Pelotas. Mas enquanto moraram aqui, nunca mais se deram. Veja bem: o casamento do finado Estrabulega com dona Cotinha, no principio foi muito cheio de brigas e tinha gente que dizia que a Leonor tinha feito feitiço grosso pra atrapalhar a vida deles. Aqui tinha uma gente que trabalhava na estrada de ferro e eles faziam trabalho ruim e a Leonor vivia junto desta gente. E tem mais, Leonor vivia indo a casas de gente que faz mandinga lá na cidade do Rio Grande. Naquele tempo eu era empregado na leitaria de dona Cotinha e eu que levei os dois numa mulher que desmanchava estes trabalhos, em Rio Grande. Detetive Silva leu as anotações, perguntou: -- Esta foi a primeira vez que as famílias de dona Leonor e o finado Estrabulega brigaram? O velho Dinarte sacudiu a cabeça, pensou, lembrou: -- Tinham brigado outra vez, isto quando eles ainda eram guris. Veja bem: foi até por causa de um tiro de sal. Aqui tem uma chácara muito antiga, coisa para mais de cem anos. Veja bem: eu estou com setenta e tantos anos e eu era guri e a chácara dos pinheiros já era velha. Bom, veja bem: a gente era guri e ia roubar pinhão lá na dita chácara, até que o velho que cuidava a dita chácara era muito brabo e de madrugada quando ele trazia o leite na estação ele ameaçava os guris: se eu pego um guri, lá eu cago a tiros, encho de tiros de sal... -- Desculpe: sal? -- É ele carregava os cartuchos com pólvora e em vez de botar chumbo, botava sal. O chumbo mata e o sal assustava e feria. Ferida de tiro de sal é ferida feia... Veja bem o velho ameaçava com tiros de sal e umas quantas vezes ele nos correu dando tiros. Numa tarde que a gente tava roubando pinhão o velho nos viu e saiu atrás de nós. A gente correndo, o irmão da Leonor ia à frente do Estrabulega, que gostava de passar rasteiras e deu uma rasteira no guri. Veja bem: enquanto caiu e levantou o guri se atrasou e o velho acertou um tiro na bunda dele. Por causa disto deu briga das famílias. -- No caso da mistura dos gados, o senhor acredita que não foi o finado Estrabulega? -- Eu tenho quase certeza que não foram eles. O velho Dinarte riu, sacudiu os braços: -- O cavalo na procissão, sim foram eles. O cavalo na procissão... O cavalo na procissão num domingo de maio. Dia de festa religiosa na vila do Povo Novo. Eram famosas as festas do Povo Novo, pela organização, pela alegria, pelo grande numero de gente que comparecia e pela fartura de comidas nas barracas; leitão assado era o tradicional. A banda no coreto da pequena praça, o povo aglomerado diante da pequena igreja, o sacristão batendo sinos, o fogueteiro soltando rojões, autoridades do município segurando o andor com Nossa Senhora das Necessidades, a padroeira da vila. A fila dos pagadores de promessas. O senhor bispo acompanhado do padre. Musica e foguetes, sino batendo, povo aglomerado, alguém deu um grito: olha o cavalo! Um cavalo em louca disparada, com um mundo de latas amarradas na cola, investiu contra o povo. O maestro disparou a musica parou. O senhor bispo gritou: aleluia! Quase derrubaram a santa. O subdelegado tomando atitudes enérgicas. Gritos de mulheres atrás de crianças. O cavalo abrindo povo e arrastando as barulhentas latas que o assustavam cada vez mais. Sentado no galpão, escutando rádio e vigiando os movimentos, Juvêncio avistou um vulto indo rumo aos trilhos; levantou para ver quem era; Rui Gordo, com lanterna, mochila e um caniço no ombro: porra! Vai gostar de pescar lá no calcanhar do Judas. Em vez de sentar caminhou até a janela e ficou olhando o grande eucalipto; o eucalipto da estação: só o que restou dos bons tempos. Tempo dos trens, tempo que o Capão Seco tinha o time de futebol chamado Primavera. Sentiu cheiro de zorrilho afastou-se da janela voltou a sentar, sorriu lembrando o caso do sino. O caso do sino foi assim que chamaram a bronca que aconteceu com um telegrafista da estação. O tal telegrafista chegou ao Capão Seco já sabendo da fama que a estação tinha durante a madrugada pela anarquia que os leiteiros faziam. Como o tal telegrafista veio para ser o encarregado dos serviços da noite. Era o tempo da segunda grande guerra e o Rio Grande do Sul o celeiro do Brasil, os frigoríficos do estado trabalhavam vinte e quatro horas por dia para mandarem comida para a civilizada Europa que se destruía numa guerra selvagem. Rumo ao porto do Rio Grande corria trem noite e dia. O novo telegrafista chegou anunciando que era muito macho para impor a ordem e o respeito na plataforma. Uma madrugada; roubaram o sino da estação. O telegrafista foi obrigado a comunicar a os chefes e passou telegramas para o inspetor da quarta seção em Bagé, diretor de patrimônio em General Câmara, diretor de almoxarifado em Bento Gonçalves e senhor diretor da ferrovia em Porto Alegre: “roubaram o sino estação Capão Seco”. Na outra madrugada colocaram o sino no lugar. Novos telegramas: “apareceu sino estação Capão Seco”. Passados uns dias: “roubaram o sino estação Capão Seco”. Recolocaram o sino e mais telegramas: “apareceu o sino estação Capão Seco”. Madrugada de vento e chuva; tiraram o sino e mais telegramas: “roubaram o sino estação Capão Seco”. Três dias depois: “apareceu o sino estação Capão Seco”. Na outra madrugada levaram o sino e lá vai telegrama: “roubaram sino estação Capão Seco”. A tarde chegou um telegrama transferindo o telegrafista para outra estação. No pequeno e sujo apartamento o detetive Silva abriu o pacote de baurus, pegou um, foi na pobre geladeira pegou um pote de mostarda, despejou mostarda sobre o bauru, pegou uma lata de guaraná e sentou no chão, comendo, bebendo e pensando: amanhã não vou ao Capão Seco dos remangados. Amanhã minha meta é descobrir onde mora a tal amante do senhor Tuca. Amantes alem de darem despesas são ótimas reveladoras de segredos. Já sei que aos sábados à tarde o senhor Tuca não vai à fazenda. Aos sábados à tarde ele passa no centro da cidade, compra jornais e revistas, passa no Café Aquário, toma um café e ruma para a casa da sua bela e querida amante. O senhor Tuca é um assassino amador e eu sou um detetive profissional. Manhã de domingo, algumas nuvens de tormenta espalhadas, sem vento, quente; iluminada. O canto dos passarinhos. Dona Cotinha desceu do carro, ficou olhando a várzea verde onde o gado esparramado pastava. O bando de carriolas, barulhento, posou na acácia, o grito dos quero-queros; lá no fim da várzea; o cinza dos edifícios de Pelotas. A casa de Eloá fechada: domingo dia de ela visitar a sogra. Da casa de Rui Gordo o som de um rádio tocando música. Um galo cantou. O vôo das andorinhas e o canto do sabiá. Olhou a casa principal: muito capim na volta, falar com o Tuca para mandar capinar. Juvêncio chegou ao canto do galpão: -- Bom dia dona Cotinha. -- Oh Juvêncio, fiz barulho e te acordei... Tudo bem contigo? -- Vai se levando... A coisa aqui anda meio triste... Fazer o quê? -- É a vida Juvêncio... Eloá saiu? -- Saíram cedo, no primeiro ônibus... Domingo; é infalível eles vão sempre... A senhora queria a chave? --Não... Eu trouxe a chave do Tuca. Olhou para Juvêncio, sorriu, tirou a chave da bolsa e foi abrir a porta, ele voltou para o apartamento dizendo que se ela precisasse dele era só chamar. Respirou fundo: coragem! Abriu a porta, olhos cheios de lágrimas, entrou pela cozinha: a porta do quarto de Estrabulega. Desde o dia que ele morreu que Eloá não mais entrou ali para limpar. Abriu a janela; na parede as fotos. O grande armário dos livros e revistas, até revistas do tempo que ela comprava do revisteiro do Trem das Cinco. O cantinho dele; rádio amador, o computador, o cachimbo. Pegou o cachimbo: presente que dei para ele última vez que fomos a Brasília visitar Júlio; comprei no aeroporto. Ao lado do rádio amador uma bula de remédio onde estava escrito a caneta, com letra apressada, o prefixo e nome de um rádio amador de Salvador, mas o que a interessou foi o nome do remédio. Criou filhos, ajudou a criar netos e quando morava ali sempre foi muito esperta e prestativa com os vizinhos em situações de doença. Guardou a bula na bolsa. No chão perto da cama um pedaço de caixa de remédio: sonífero? Abriu o guarda roupas e revirou procurando alguma coisa mais. Respirou fundo passou a mão na cabeça. Pendurada na parede a chave do apartamento de Ventana, no lugar de costume, sacudiu a cabeça e sentiu curiosidade. Pegou a chave. Entrou no apartamento, olhos atentos. Em cima da mesa uma nota de farmácia: aqueles dois remédios?! Junto à nota um cartão de táxi tendo escrito atrás, a caneta, a data: Cotinha, Cotinha, para e pensa: táxi é porque foi de noite, se fosse de dia o Tuca saberia e tinha me contado. Fechou o apartamento e foi bater no de Juvêncio: -- Pronto; dona Cotinha. Leu a data e perguntou se ele tinha notado alguma coisa diferente naquela noite. Ele pensou, pediu para ela repetir a data, voltou-se para a parede onde estava o calendário; ali marcava os dias que já tinha tirado folga. Sacudiu a cabeça dizendo: -- Nesta noite eu tava de folga... Aconteceu alguma coisa? -- Não... Nada. Voltou para a casa principal, foi recolocar a chave do apartamento de Ventana no lugar de costume. Novo exame no quarto: ali entre o computador e o rádio amador a imagem de São Gonçalo, tocando sua viola, o santo da devoção de Estrabulega. Saiu foi até o pé de jasmim, na frente da casa, colheu umas flores e foi enfeitar a imagem do santo. O canto dos sabiás enchia a manhã de domingo. Triste, olhos com lagrimas fechou a janela do quarto. Não ia ver o resto da casa, bastava de lembranças. Fechou a casa. Um bando de caturritas, fazendo algazarra, posou no grande eucalipto da estação. Um bando de maçaricos, voando em formação. O grito do quero-quero, assobio de calandra, nos galhos da acácia o ninho do tin-ti-ri, joão de barro bateu assas e cantou. A música na casa de Rui Gordo. Rui Gordo o eterno pescador, Rui Gordo aquele que pouco dormia; Rui Gordo que nos tempos em que o povoado tinha bastantes morador, via os encontros amorosos nas noites escuras, Rui Gordo que sempre sabia quem estava botando guampas em quem. Rui Gordo que muito sabia e nada dizia. Dona Cotinha sorriu e bateu na casa de Rui. Sem camisa, atendeu: -- Opa! Bom dia dona Cotinha. Com Rui tinha que ter jeito para descobrir qualquer coisa: -- Bom dia Rui... Quero uma ajuda tua... Nada de importante, só uma curiosidade. Pegou o cartão, leu a data e perguntou se naquela noite ele tinha visto o táxi chegar. Rui coçou a barriga e sacudindo a cabeça: -- Bah! Assim por data? Eu nem sei o que eu fiz ontem... -- Rui, tu vais lembrar... Neste dia o Juvêncio estava de folga... Ele regalou os olhos e interrompeu: -- Foi no dia que mataram o finado? -- Viu como tu lembras as coisas... Exatamente, mataram o finado num dia de folga do Juvêncio... E este dia que eu estou te perguntando foi outra folga a folga anterior. Entendeu? Agora te lembras? Coçou a barriga, olhou o bando de maçaricos. Um avião agrícola da granja sobrevoou o posto de pedágio e fez algumas piruetas, era o piloto que namorava uma das atendentes, Rui gordo sacudiu a cabeça e disse: -- Vou desligar o rádio... Da licença. Desligou o rádio, voltou vestindo uma camisa saiu de casa, o avião continuava sobrevoando o posto de pedágio; fez sinal para dona Cotinha o acompanhar, pararam na frente da casa principal de onde enxergavam a várzea, os trilhos e os edifícios de Pelotas. Apontou os trilhos e contou: -- Vou dizer por que é pra senhora... Naquela noite eu tava pescando no primeiro bueiro ali dos trilhos... De lá eu vi o movimento da ambulância aí do pedágio chegando aqui... Depois quando eu vinha vindo embora, foi que chegou o táxi...O táxi trouxe o seu Estrabulega e o seu Ventana... Só conto isto pra senhora... No posto de pedágio no prédio de atendimento do usuário a bonita e sorridente recepcionista a convidou a sentar enquanto chamava o enfermeiro. O prestativo enfermeiro consultou suas fichas e concordou que tinham atendido o senhor Estrabulega. Ficou no pronto socorro em Pelotas. O nome do médico não sabia. Juvêncio viu o vulto chegando ao pátio, ligeiro, levantou, pegou a lanterna e saiu do Galpão. Ventana, segurando uma sacola, olhos embaçados, chegou. Apertaram as mãos e ficaram em silencio. Há momentos em que o silencio diz mais que palavras. Entraram para o galpão e Juvenal comentou: -- É bom que tu voltasses... Aqui anda muito quieto. Ventana sacudiu a cabeça: -- Tive que fazer força para criar coragem e voltar... Sem ele, isto aqui, deve ta uma merda... Vou trocar de roupa... -- Depois volta, aqui, vem conversar. Entrou no apartamento, soltou a sacola, ficou parado: aquela era a hora em que os dois estavam sempre conversando, tomando cachaça composta com coquinhos, falando no rádio a amador ou lembrando os bons tempos. Passou a mão na testa: não devia ter voltado. Morar num apartamento em Porto Alegre era uma merda. Embaciou os olhos de lagrimas, suspirou, olhou as fotos na parede: ele e Estrabulega num torneio de laço na União Gaúcha em Pelotas. Os dois numa penca... Parou de olhar as fotos... Pegou a sacola voltou para o galpão e diante do olhar surpreso de Juvêncio avisou: -- Tche eu vou voltar para Porto Alegre... -- Tu tas louco! Fica ai... No primeiro dia é chato, mas depois... -- Eu devia ter deixado passar mais uns dias... Juvêncio esfregou as mãos, precisava de um companheiro para enfrentar aqueles dias difíceis: -- Tche fica aí, logo o Júlio já vai vir passar as férias aqui... Outra coisa: tens que cuidar as galinhas da fazenda, depois que tu foste à coisa ficou uma anarquia, ninguém recolhe ovo, tem galinha choca com ninhos escondidos, apareceu uma galinha cheia de pintos, depois os pintos sumiram; com certeza os caranchos comeram... O Tuca queria cortar o bosque de sinas-sina, não deixei e avisei a dona Cota... Aquelas sinas-sinas têm mais de duzentos anos... E a tua horta... -- Minha horta deve ta suja... -- Estes dias eu capinei... Ventana soltou a sacola, caminhou na volta, Juvêncio continuou: -- Tu ficas aí e amanhã a gente vai visitar o Dinarte. Eu até ando pensando em a gente combinar com ele de no próximo São João se fazer um terno para cantar santinhos... A gente pode fazer um torneio de truco... Vamos lá comer um arroz com marreca, ele diz que faz o melhor arroz com marreca... Ventana sacudiu os braços, suspirou, segurou a sacola e concordou: -- É, vou ficar... Vou preparar um mate e venho pra cá tomar contigo. Juvenal sorriu, olhou as horas e comentou: -- São onze horas da noite. Esta hora nem dá para tu ires para Porto Alegre... -- Passa um ônibus, aqui, às onze e meia... -- Aquele ônibus para aqui? -- Claro que para... -- Muito difícil alguém embarcar nele. Porra, neste tempo que eu sou guarda, aqui, eu nunca vi; ele parar. E dá pra ir a Porto Alegre? -- Claro que dá! Pego o ônibus das onze e meia, aqui, quinze para a meia noite chego na rodoviária de Pelotas. Meia noite sai um ônibus de Pelotas para Porto Alegre. Três horas, da madrugada, chego a Porto Alegre. Dez minutos, depois, entro no apartamento da minha filha. Eu tenho a chave da porta dos fundos e eu durmo no quarto da área de serviço. Chego lá e ninguém vê a hora que eu chego. No pronto socorro, dona Cotinha entregou um papel à recepcionista: ruiva, sardenta, óculos de grau. Perguntou: -- Faz favor... Vê se nesta data vocês atenderam esta pessoa que esta aí no papel? A recepcionista, ruiva e sardenta, pegou o papel e voltou-se para o computador. Olhou no monitor, alguns minutos examinando as planilhas e voltouse dizendo: -- Esta pessoa foi atendida aqui, sim senhora... -- Eu posso saber qual foi o médico que o atendeu? -- Pode... Um momentinho. Tornou a mexer no computar, alguns segundos e perguntou: -- A senhora quer que eu anote aqui? -- Por favor! Se tiveres o endereço do consultório... A recepcionista, ruiva e sardenta, devolveu o papel dizendo: -- Pronto; senhora, nome do médico, endereço do consultório e numero do telefone... À tarde, vinham voltando da venda Juvêncio e Ventana, combinando em jogarem umas partidas de escova. Saiu o ônibus com as crianças de colégio, o carro das professoras. Um automóvel parou na frente da casa, perto do colégio, onde fabricavam ótimos queijos. Tuca embarcou na caminhonete, ligou o motor, pegou a agenda eletrônica de dentro do porta luvas, digitou um numero de telefone e tornou a colocar no porta luvas. Passou por Eloá que estava colocando flores e acendendo velas na gruta de São Gonçalo, perto do grande eucalipto da estação. Neste momento o telefone chamou, parou a caminhonete e atendeu: -- Sim, pois não: Tuca -- Oi Tuca, aqui é a Eloisa... Boa tarde. -- Boa tarde dona Eloisa. -- Esta chovendo aí? -- Não; mas esta muito nublada e o vento nordeste esta bem forte... -- Aqui em Porto Alegre esta chovendo desde o meio dia... Tuca; estou ligando para saber noticias do meu marido... -- Seu Ventana esta bem. Faz quatro ou cinco dias que ele chegou... Ainda anda um pouco triste... -- Pois é... Também foram setenta e quatro anos juntos... Eu estava preocupada, que ele saiu daqui muito abatido, aliás, no dia em que o Estrabulega morreu parecia até que o Ventana estava adivinhando, pois naquele dia ele levantou esquisito, ao meio dia comeu pouco, e saiu para a rua de tarde e só voltou de noite. A gente não viu a hora que ele chegou, mas o porteiro do edifício contou que ele chegou eram mais de três horas da madrugada... Perto do tronco da amoreira a grande cobra parelheira, quieta, cabeça erguida e com os olhos fixos atraindo a carochinha que aos gritos vinha descendo da arvore, pulando de galho em galho. Ventana escutou os gritos da carochinha: é cobra que ta atraindo passarinho. Pegou uma vara e foi ver. Correu a parelheira, que na fazenda de dona Cotinha não se matava cobra parelheira; que esta come as cruzeiras e ratos. Soltou a vara, foi à lenheira juntar gravetos, voltou ao apartamento. Fez fogo, botou a panela com o feijão de remangado; feijão feito junto com milho verde e guisado de carne. Preparou o mate, encheu um pequeno copo com marafatinga de butiá e sentou perto do fogão pensando no tempo em que os dois foram a Santa Isabel dos Canudos. Santa Isabel dos Canudos, as margens do Canal de São Gonçalo, que a nove de maio de 1882 foi elevada à categoria de cidade e que a cinco de dezembro de 1890 voltou à categoria de vila. Pois foi em Santa Isabel que nasceu Eloisa. Quando ela tinha nove anos na grande enchente do Canal de São Gonçalo, em 1941, perdeu os pais; uma canoa que naufragou. Acabou sendo criada por uma tia. Tia por ter sido casada com um irmão do pai dela e este foi morto em 1941 numa briga que aconteceu numas carreiras. Pois a tal tia viúva tinha uma cambada de filhos homens; seis. Eloisa mulata bonita, que o pai era negro e a mãe era branca, se criou no meio dos marmanjos e agüentando aquela tia malvada e perversa que a botava no serviço e ainda dava castigos. Ajudava a cortar palha, com dez anos já armava ratoeiras nos banhados para caçar ratão. Cortava junco para venderem aos plantadores de cebola. Limpava peixes para salgar. Enquanto os primos andavam na vila jogando pião, atirando pedras de bodoques, ela carregava lenha, trazia água na pipa, ajudava a malvada da tia a lavar roupa. Roupa, coisa que ela nem tinha, andava com camisas dos primos, às vezes algum vestido velho que ela pedia as moradoras mais endinheiradas da vila. Eloisa que se criou tomando banhos no São Gonçalo, sempre de pés descalços, andando nos banhados, morando numa choupana de pau a pique com paredes feitas de palha, dormindo no chão, foi quem balançou o coração de Ventana. Estrabulega casou em março de 1948, que a principio o pai de Cota era contra o namoro dos dois. A fama de desordeiro de Estrabulega era conhecida do velho. Até que quando serviram no quartel, os dois serviram em Pelotas no Nono Regimento de Infantaria, na Quarta Companhia de Fuzileiros. Isto foi no ano de 1946 e os dois , seguido estavam na cadeia. Tinha nesta companhia um soldado muito puxa saco cujo apelido era o Bundinha. Pois na véspera de um exercício de tiro, Estrabulega e Ventana pegaram o fuzil do tal Bundinha e entupiram o cano com pedaços de pano. No dia do exercício o sargento perguntou quem era voluntário para ser o primeiro. Claro que foi o Bundinha; carregou a arma, ficou de pé no estante de tiro, mirou o alvo, acionou o gatilho e caiu de bunda jogando a arma longe. Quem foi? Quem não foi? Os dois para a cadeia. Um dia Estrabulega entrou no Posto de Comando da Companhia, pegou a túnica do capitão que estava pendurada na cadeira, vestiu e saiu a andar pelo quartel; avistou três recrutas vindos da colônia, chamou fez se apresentarem. Perguntou se estavam com saudades de casa. Deu quinze dias de folga com uma condição: na volta tragam galinhas e ovos. Quinze dias, depois, os três recrutas entraram no Corpo da Guarda; carregados de galinhas. Quem foi? Quem não foi? Trinta dias de cadeia. Fazer mosquito: atavam um tamanco na mão de um soldado, que estivesse dormindo, durante a noite e acendiam um fósforo, apagavam e botavam a ponta quente do fósforo na testa do infeliz que ao sentir a dor dava o tapa com o tamanco. Ventana jogou duas dúzias de rapadura de palha que fazia mosquito no sargento da guarda. Ganhou as rapaduras e trinta dias de cadeia. Pois junto com eles serviu um primo de Cota que é bom que se diga o tal primo era apaixonado pela prima e foi um dos que, em 1947 quando a prima começou o namoro, andou contando e aumentando coisas do Estrabulega para o tio. Mas o amor foi mais forte, aliás, foi até mais forte que os feitiços que Leonor preparou nas encruzilhadas. Pois o pai da noiva que a principio era contra resolveu apresar o casamento, com medo que o noivo comesse a noiva e o pior; comesse, deixasse para dar cria e se mandasse a lá breca. Casamento na igreja e festa no clube. O noivo tremeu: Bah tche! Igreja?! Clube?! Este troço pode ser no Capão Seco se faz um churrasco e umas ambrósias, rapadura de leite umas gasosas, tudo sem muita frescura. A festa de casamento quem faz é o pai da noiva: igreja, clube e os doces de Pelotas. Na Igreja do Porto numa ponta do altar o padre e o sacristão, na outra ponta o noivo esperando a noiva, igreja cheia. No primeiro banco vestidos a gaúcha, com as botas fedendo a bosta de vaca; Dinarte e Juvêncio. O noivo nervoso, naquele tempo Estrabulega ainda fumava, viu as velas no altar, tirou um cigarro do bolso, acendeu na chama da vela, tirou uma baforada, risadas na igreja e o padre desesperado fazendo sanha com os dedos para ele não fumar. Viu o padre batendo com os dedos na boca: ah o seu vigário também pita. Ofereceu um cigarro ao padre. Estrabulega casou no inicio de março de 48 e no fim de março a tragédia. Isolina a mãe de Ventana foi à lenheira buscar lenha e uma cobra cruzeira a mordeu; morreu ali na lenheira. O pai de Ventana o negro Cacildo que em lida de campo; laçava, pealava, domava, era ginete dos bons, fazia arames, sabia arar terra, leite até tirava pouco, era muito guapo. Pois o Cacildo ao perder a companheira caiu numa tristeza e se atirou a beber cachaça, uma semana, depois, muito bêbado caiu na frente do Trem das Cinco. Com a morte dos pais, Ventana, vestiu-se de preto e jurou tirar luto um ano, nem nas estripulias na hora do “SL” se metia. Mas, diziam que quando colocaram o peixe nas latas, ele foi um dos que. Tudo começou quando ali apareceu um peão de leitaria, vindo do Rio Grande, rapaz novo e muito metido: comigo ninguém faz sacanagem que eu sou macho e rebento a pau. A turma respeitou, tratou bem até ele ganhar a confiança e ser desafiado para uma carreira de carroças, valendo cinco dúzias de rapaduras de leite. Barbada que a outra carroça além ter rodas frouxas era puxada por um cavalo velho. Soltada da frente da venda. Os safados tiraram as chavetas que seguravam as rodas da carroça do tal peão metido a ser mais macho. As carroças começaram a correr e saiu uma roda para cada lado, a carroça bateu no chão o cavalo assustou e disparou esbodegando tudo. O peão perdeu o emprego e na outra madrugada o dono da carroça chegou à estação e na venda estalando relho, espumando de brabo e desafiando: quem foram os filhos das putas? Não são homens seus putos de merda?! E ia da venda para a estação e da estação para venda. Estalando o relho, revolver a mostra na cintura humilhando e desafiando: cambada de filhas da puta! Tirem as rodas da minha carroça se são homens! A turma ficou quieta. Ele voltou mais umas três ou quatro madrugadas até que acalmou. Pois quando tudo estava calmo é que o trem chegou à cidade do Rio Grande e o fiscal da saúde destapou, para examinar, as latas do homem brabo, e nadando no leite sapos e lambaris: produtor sem escrúpulos bota água de açude no leite: multa... No inicio de 1949, ano que marcou o povoado do Capão Seco devido que caiu o vão móvel da ponte sobre o São Gonçalo; os trens vinham de Rio Grande até ali, dali passageiros e cargas seguiam pela rodovia até Pelotas. Pois no inicio de 49 que embora ainda não fizesse um ano que Ventana estava de luto, Estrabulega o convenceu a irem umas carreiras em Santa Isabel. Neste dia a moça Eloisa deixou muito marmanjo de olho caído e entre eles o Ventana que quando os olhos dele encontram os olhos dela sentiu um tirão no coração. Andou, rodeou, custou a chegar perto da mulata que andava vigiada pelo bando de primos. Aliás, estes primos viviam de beiço caído por ela. Beiço caído e pau duro. Mas conseguiu chegar perto dela e até tirarem uma conversa. Conversa cujas frases tiveram mais vírgulas que palavras. No fim da festa ele prometeu: eu volto pra te buscar. Neste momento os olhos dela se iluminaram, o corpo tremeu de alegria e ela disse; duvido! Aquele “duvido” soou mais que um desafio, soou como um apelo. Na viagem de volta o homem voltou triste, pensativo e de nada adiantaram as brincadeiras de Estrabulega. Ventana comia pouco, não dormia, pensando em Eloisa e mais a idéia fixa de ir buscála. Na sexta feira seguinte ele avisou a Estrabulega que iria a Santa Isabel, mas como o Estrabulega e outros já tinham organizado uma carreira de carroças para aquele fim de semana, o convenceu a ficar. Domingo de tarde na carreira de carroças apareceu uma autoridade do distrito para manter a ordem na festa. Baixinho, nariz empinado, peito estufado, caminhando com muita pose, recebeu o apelido; Garnisé. Pois o dito cujo gostava de montar no cavalo com este andando. Batia na anca do cavalo este caminhava e ele botava o pé no estribo, meneava a outra perna e montava com garbo. Mas, o tal Garnisé desmontou e foi comer pastéis, que o bom das carreiras, são os pastéis, quando voltou para montar; fez o de sempre, bateu na anca deixou o cavalo apressar o passo, botou o pé no estribo, ergueu o corpo e caiu com os arreios por cima. Tinham cortado as cinchas. Ventana ganhou uma corrida de carroça, mas nem ganhou nada porque o pensamento dele estava muito longe, lá em Santa Isabel dos Canudos e tinha nome: Eloisa. Na segunda feira os dois vinham voltando do banhado onde tinham ido ajeitar uma cerca de arame. Queimados do sol, sem camisa, calças remangadas, montados em pelo. Na frente da venda muitas carretas cheias de cebola. Pararam os cavalos, desmontaram e entraram na venda onde o Dinarte estava sentado num barril. Estrabulega provocou para a porfia: -- Entrei Dinarte respondeu: -- Entrou na venda e eu atrás... -- Atrás de conversa mole que eu mando o duro... -- Duro bastante tempo empurrando... -- Empurrando cachaça, goela a baixo, pra festejar enquanto eu enfio... -- Enfia a cara no canto pra gemer baixinho com o meu grande... -- Grande vai ser tua alegria com o meu gozo... -- Gozo por trás o teu que pela frente é o meu -- Meu o teu já foi... -- Foi o que tu imaginaste quando sentou aqui... -- Aqui é a venda, lugar de respeito. É bom parar... Riram os três, tomaram refresco de groselha e comeram doce de abobora com queijo. Estrabulega e Ventana montaram e seguiram para a fazenda que ainda tinham muito serviço a fazer. Juntaram o pequeno rebanho de ovelhas e escolheram uma para matar; carne para o consumo da fazenda. Quando estava tirando o couro da ovelha, Ventana avisou: -- Esta noite eu vou a Santa Isabel. Estrabulega deu uma risada e respondeu: -- Os “ratoneiros” vão te correr de lá. Ventana sacudiu a faca no ar, olhou bem para o amigo e repetiu: -- Eu vou esta noite. Estrabulega conhecia o amigo e viu que ele não estava brincando. Pensou e fez a proposta: -- A gente janta, deita pra descansar um pouco, a meia noite a gente sai. Amanhã à tardinha a gente chega lá. Às vezes as coisas se preparam de maneira que fica difícil entender o motivo. Naquela segunda feira as ratoeiras amanheceram todas com ratões, e naquela manhã atracou o barco do comprador de couros de ratão. No cais um barco encostado porque quebrou o motor com dois tripulantes músicos; um tocador de um violão desafinado e outro tocador de uma gaita fanhosa. Com tanta carne de ratão, dinheiro da venda dos couros a turma dos ranchos beira rio (ou beira canal?) estava alegre. O negro Zé Ratoneiro teve a idéia: vo aperparar um fandango. Estrabulega e Ventana chegaram do outro lado do canal, olharam a vila; a branca igreja, as velhas árvores da praça as casas grandes, o cemitério e o rancherio a beira da água. Fizeram sinal chamando um canoeiro, tiraram os arreios dos cavalos. Os dois com os arreios na canoa e os cavalos a nado. Quando os dois vinham entrando na vila, Eloisa vinha da beira da água puxando uma pipa cheia, enquanto ela fazia força os primos, uns negros grandes e fortes, iam dando risadas e conversando com um ruivo alto metido a besta, Que este tal ruivo lá estava para levar a moça Eloisa a um trabalho em Pelotas. Conte se que tudo era um acerto com a malvada e safada tia. O trabalho em Pelotas era levar a mulata bonita para trabalhar num cabaré de quinta categoria na zona do Porto em Pelotas. O safado do ruivo se intitulava empresário; empresário, coisa nenhuma; o pilantra era batedor de carteiras na Estação do Trem, gigolô de alguma china pobre da volta do Mercado Público e às vezes recolhia listas do jogo do bicho. O ordinário já tinha mil planos; na viagem até Pelotas iria tirar os tampos da linda mulata, que os primos aqueles, molóides não tinham comido. Os primos viviam de queixo caído e pau duro para os lados da prima. Quantas punhetas batidas! Molóides não, muito tentaram, mas a prima tinha unhas grandes e sabia arranhar, outra coisa; mordia bem demais e era muito ligeira. De longe ela os viu, eles não a viram. Ela sentiu alegria, sorriu e pulou. Os dois amarraram os cavalos, só com o buçal, na beira do canal, para pastarem e seguiram com os arreios nas costas, pararam numa venda onde souberam do baile, comeram peixe frito e tomaram vinho. A todo instante Ventana ia à porta da venda e olhava a rua na esperança de ver Eloisa. Estrabulega perguntou: -- E se ela não mora mais aqui? -- Mora... Tem uma coisa nas minhas tripas que diz que ela mora. Comeram, beberam, pagaram à despesa , saíram, deixaram os arreios junto à parede, pelo lado de fora da venda e foram caminhar pela vila entraram na rua dos ranchos onde um grupo de homens jogava a petisca. Crianças nuas rolavam na areia. Dois ou três cachorros latiram. No rancho paredes de torrão, coberto de palha o negro Zé Ratoneiro aperparava o baile. Ventana sentiu o peito tremer, Eloisa e os primos estavam tirando peixes salgados dos varais, ao vê-lo ela acenou e gritou: tem baile. Um dos primos a mandou ficar quieta. Coração pulando de contente, os dois voltaram e foram sentar na porta da igreja. Estrabulega perguntou: -- Como vai ser? -- Na hora do baile eu convido ela... A gente monta, ela na minha garupa e se vamos... -- Bah tche! Ta fácil demais... Tu achas que aquele bando de negros que andam na volta dela vai deixar? -- Mas aqui nas tripas me ronca que vai ser assim... -- Para com este ronco de tripas e bota os pés no chão... Outra coisa: e atravessar o rio? Ventana coçou a cabeça, preocupado. Estrabulega continuou: -- Nem dá pra pensar em varar o rio. A gente fugindo não vai ter tempo de conseguir canoeiro. -- Bah tche! Eu nem tinha pensado. Estrabulega olhou para os lados e planejou: -- Bueno... A gente pega esta estrada que passa na frente do cemitério e entra pra dentro da noite... Então fica acertado a gente sai por esta estrada... E se formou o fandango do Zé Ratoneiro, alguns trouxeram cadeiras, um negro gordo com os pés descalços, roupa fedendo a fumaça, respingou água no chão batido pra não levantar poeira. Ajudado por uma velha gorda que não parava de dar risadas, Zé Ratoneiro improvisou a copa num canto; dois fogareiros a carvão, duas barricas com água onde mergulhou as garrafas de gasosa e as de cerveja, que naqueles tempos gelo só lá nos pólos do planeta, uma mesa velha meio guenza. Dois lampiões, a querosene, pendurados nas paredes e um em cima da mesa era o que iluminavam a espelunca. Aos poucos foi chegando gente. Depois que respingaram água as pulgas se alvorotaram. Antes de começar a música começou a fumaça na copa que a velha gorda fritava pedaços de ratão do banhado a moda ratoneiro; ferve a carne na água junto com os temperos, depois escorre frita e depois de frita mistura farinha de mandioca. Começou a música e se alvorotou o pulguedo. Afastados, segurando pelas rédeas, os cavalos já encilhados, os dois cuidavam os movimentos. Acompanhada dos primos, dois deles de adagas na cintura, o ruivo de sapatos brancos, calças brancas encardidas de sujeira e os cabelos emplastados de brilhantina, Eloisa chegou. Enquanto amarravam os cavalos, Estrabulega avisou que Ventana não podia beber nada, que na hora da fuga tinham que estar firmes. Entraram e por entre a poeira os olhos de Ventana viram os olhos de Eloisa. Era cheiro de fritura misturado com o da fumaça dos lampiões e mais o da poeira. E o pulguedo fervilhando. E o safado do ruivo dançando com Eloisa e quando os dois paravam os primos os cercavam. Ventana bateu os pés, Estrabulega sentiu fome e foi comer ratão frito e tomar cerveja morna. Notaram que a coisa não ia ser fácil. Combinaram; primeiro foi o Ventana e depois o Estrabulega, pegaram as adagas que carregavam nos arreios e botaram na cintura, por dentro da roupa. Que na adaga não se apertavam não que fossem desordeiros e brigões, mas no Capão Seco no intervalo entre o Trem das Cinco e o Trem das Sete (estes cinco e sete são da tarde) era a hora que se juntavam ali na venda para jogarem osso ou esgrima no jogo do talho. Os dois eram bons neste jogo. Jogavam conversa fora e é claro bebiam cachaça, comiam mortadela ou lingüiça que fritavam dentro do prato da balança, botavam a lingüiça dentro do prato da balança, despejavam álcool e tocavam fogo, acabava o álcool a lingüiça estava pronta; comiam com farinha de mandioca. Aquela era a hora que mulher não ia à venda, a hora que as fuxiqueiras tomando mate doce chamavam de a hora dos bêbados. E seguia o baile e Ventana comeu um pedaço de ratão frito a moda ratoneiro, tomou um gole de cerveja morna, bateu no braço de Estrabulega e se foi onde estava Eloisa, segurada no braço pelo ruivo metido a besta, mas nem bola deu pro ruivo, convidou ela a dança e ela aceitou. Os primos meio que se alvorotaram e Estrabulega ficou na ponta dos pés. Dançaram uma música, duas musicas, conversaram, combinaram e pararam perto onde estava Estrabulega e ligeiro Ventana contou que ia ser difícil, seguiram dançando, que ele não podia soltar o par. Estrabulega chegou perto dele e avisou: dança perto da porta que eu arrumo confusão e vocês somem no meio da noite. A gaita fanhosa, o violão desafinado, a poeira levantando, as pulgas subindo pelas pernas, o cheiro de fritura e era o momento. Estrabulega chegou perto da mesa guenza, pediu a velha gorda uma cerveja, quando pegou a garrafa fez um movimento brusco e bateu no lampião, e na confusão virou a mesa e correu para a porta por onde já tinham saído Ventana e Eloisa. O ruivo metido a besta quis segura-lo. Estrabulega deu lhe com o bico da bota nos ovos, mas com tanta força que ele deu um urro e caiu gemendo. Ventana montou e com toda a força do mundo levantou Eloisa para ela se acomodar na sua garupa, gritou e fez o cavalo atropelar uns dois ou três que tentaram o atacar, se foram noite adentro. Na saída dois primos tentaram deter Estrabulega a adagas, mas não teve nem graça; deu um planchaço na nuca de um que caiu gemendo e no outro deu meia dúzia de planchaços, montou e rumou para o meio da noite gritando; por aqui que não tem espinhos. No bairro da Várzea em Pelotas, no inicio da Rua Álvaro Chaves, Dona Cota, estava triste, ainda abalada pela perda do companheiro. Mas era ela a líder da família e tinha muita coisa para pensar. Lá do quarto as vozes das duas netas que jogavam vídeo game. Juliana, sua filha, aprontou-se para sair, professora na universidade ia até a secretaria entregar as notas dos exames; gritou se despedindo das filhas, beijou a mãe e saiu batendo a porta. Dona cota foi ao escritório, sentou diante do computador, passou mensagens aos filhos: Julio e Juan avisando que enquanto fosse viva não iria mexer na herança. Foi para cozinha preparar um coelho a capaõsequense, comidas dos tempos que ela e Eloisa tocavam a fazenda, naqueles anos difíceis e elas criavam coelhos para terem fartura de carne, depois uma peste atingiu a criação e elas largaram os coelhos no mato. Coelho temperado assim; polvilha açúcar e canela em pó descansa uma meia hora, bota sal e frita em óleo quente. Deixou o coelho temperado saiu para o alpendre, rodeado de pés de jasmim, roseiras e um caramanchão de madre-silva. Os dois viveiros grandes com periquitos, canários e diamante de gould. Escutou as risadas das netas, sentou olhando os passarinhos e lembrou a redação do Estrabulega. Em 1970 ela e Heloisa se mudaram da fazenda e foram para aquela casa em Pelotas para que os filhos pudessem estudar na cidade. Estrabulega e Ventana ficaram na fazenda. Em 1988 Estrabulega resolveu ir para Pelotas para fazer um curso intensivo e tirar o segundo grau, que no colégio do Capão Seco ele mal e parcamente aprendeu a ler e escrever. Os filhos gostaram e apoiaram e muito o ajudaram, estudou dois anos e ainda fez um curso de radio técnico, pegou gosto por ser rádio amador e como técnico consertou três ou quatro rádios e estragou uns cinco ou seis. Três anos, depois, abandonou os estudos e voltou para a fazenda. Foi quando ele estava estudando que escreveu a redação que ele tirou nota máxima e contente mostrou a Cota, a redação era a estória de dois amigos que tinham um pacto que se um soubesse que o outro iria sofrer em cima de uma cama, mataria o amigo. Ventana e Tuca saíram cedo, a cavalo para recorrer os campos, trazerem vacas com crias novas para a leitaria, trazerem vacas alçadas para inseminar com bons semens para melhorar o plantel. Dona Cotinha estava se preparando para ir para Brasília passar uns tempos na casa do filho Julio, mas antes queria deixar a fazenda organizada, ia mudar o sistema de resfriamento do leite usando tanque a granel e trocar o sistema de ordenhadeiras com o leite indo direto para o tanque de resfriamento. Ia comprar um moto gerador para as eventuais faltas de energia e tudo isto pedia um aumento na produção. Juvêncio viu os dois saírem para o campo e foi para a horta, roçar debaixo dos pés de pitanga e colocar esterco nos pés de jabuticabas, escutou o barulho da moto, resmungou: -- Porra... Ai vem o merda do tal detetive. Encostou a moto na cerca, desligou, tirou o capacete e desmontou dizendo: -- Bom dia seu Juvenal... -- Opa tche!... Me troca as bolas mas não troca o nome... É Juvêncio. -- Oh desculpa... Ontem teve Brapel, o Brasil perdeu pro Pelotas e eu hoje tou besta. -- Futebol... Desde que fecharam o Primavera eu não dou mais bola. Detetive Silva, tirou o bloco do bolso, olhou a arvore e perguntou: -- Que arvore é esta? -- Jabuticaba. Uma vaca berrou, um cachorro latiu, Juvêncio soltou a foice, Silva disse: -- O senhor pode seguir trabalhando, eu não atrapalho... -- Porra... Já ta atrapalhando... -- Só uma pergunta... A dona Cotinha nunca brigou com a dona Leonor? -- Ué! Elas nunca se ligaram... -- Sim... Mas brigaram de bater boca, de se darem tapas? Juvêncio bateu com a foice no chão olhou firme para o detetive Silva e disse: -- Tche!... Dona Cotinha é mulher de classe, não é mulher de lambanças... -- Mas o seu Dinarte disse que teve um caso dos pastéis de mingau... -- Teve... Mas não deu bate boca e nem tapa... Foi assim: que naquele tempo tinha uma mulher, que o marido trabalhava nos trilhos e eles tinham muitos filhos e ele ganhava pouco e então pra ganhar um dinheirinho à mulher fazia pastéis de mingau pra vender nos trens, que o tal mingau era feito de farinha de trigo, leite e ovo, mas tinha um segredo que era um mingau muito bom, que deixava o pastel muito bom... Se na estação do Povo Novo os passageiros compravam araçás, na estação do Capão do Leão compravam bergamotas, na estação do Cerro Chato, compravam arroz de leite, butiás e pasteis de carne, na estação do Capão Seco era os bolos de coalhada e os pastéis de mingau, e eram os melhores pastéis de mingau do mundo. Como eu tou lhe dizendo; a Leonor brigou com a tal mulher, coisas de lambanças de mulheres na hora do mate doce. A Leonor inventou fazer pastel de mingau pra vender nos trens e vendia pela metade do preço, coisa de bandida, só pra atrapalhar o negócio da outra. Ai o finado Estrabulega e o Ventana inventaram de atrapalhar o negocio de pasteis da Leonor. E quem fez os pastéis foi dona Cota e a Eloisa. Perto da hora do trem que a Leonor chegou na estação com o tabuleiro cheio de pastéis, o Estrabulega distraiu ela, inventou um segredo e ela deixou o Ventana cuidando o tabuleiro. E o Ventana trocou os pasteis do tabuleiro. Leonor não se deu de conta que tinham trocado os pastéis e quando o trem chegou foi à bronca, o freguês mordia o pastel e ficava com a boca cheia de algodão... O recheio era algodão. Detetive Silva, calças desbotadas, camisa do Brasil de Pelotas, tênis furados, pegou o dinheiro que dona Cotinha deu, agradeceu e saiu. Foi ao Café Aquário, tomou um cafezinho e se deu ao luxo de comprar um charuto. Dona Cotinha dispensou os seus serviços: logo agora que o crime estava descoberto, mas eu entendo estes ricos. Dispensaram meus serviços, que eu modéstia a parte sou um bom profissional, para evitarem um escândalo de família. Sim porque para mim, um profissional, o criminoso é um amador chamado Tuca... Maneca e Rui Gordo terminaram a ordenha. Maneca tirou as mangueiras da ordenhadeira e colocou dentro do tanque com água e sabão, para ficarem de molho e no outro dia ser lavadas. Tiraram as luvas e os aventais, apagaram as luzes do galpão e seguiram para casa. Uma vaca berrou, um sorro gritou lá perto do mato. Maneca entrou reclamando a janta. Eloá correu a pôr a mesa, tirou o prato com os bolos fritos de jundiá do forno e botou em cima da mesa. Sentou para jantar, ela olhou para os lados e disse em voz baixa: -- Maneca: uma coisa que ninguém nunca me perguntou... Nem a policia... Nem o tal detetive Silva... Aquela manhã que eu encontrei o falecido Estrabulega, Deus o tenha, a casa tava toda fechada... A porta tava chaveada... Só quem tem chaves da casa principal é eu, Tuca e seu Ventana. Maneca abriu os braços e falou brabo: -- Cala a boca... Nunca fala isto pra ninguém... Vamos jantar que eu quero ver a novela... Na confeitaria em Pelotas; sentadas diante de uma bandeja cheia de doces; camafeus, pastéis de Santa Clara, olhos de sogra, quindins, figos cristalizados, banana em passas, bem casados e queijadinhas. Dona Cotinha e Eloisa. Uma fina chuva de verão caindo. Dona Cotinha limpou o canto da boca e continuou contando: --... Câncer... Ele tinha câncer... Ele tinha muita coragem, mas tinha um medo... Medo de um dia ficar apodrecendo em cima de uma cama e vendo os filhos sofrerem por causa disto... Um bando de maçaricos, o João-grande em seu vôo lento, o casal de tarãs, o grito dos quero-queros, outro bando de maçaricos, pousado no arame um martinpescador, um bando de pintassilgos, dois cardeais do banhado. Rui Gordo jogou a linha na água, sentou e ficou pensando: Deus me livre que eu vá contar para alguém, mas aquela noite que mataram o finado Estrabulega eu tava pescando ali naquele açude, pequeno, que tem perto do pedágio. Eu vi quando parou um táxi, antes do pedágio, desceu um homem que passou por trás do pedágio. Depois este mesmo homem, pegou o ônibus das onze e meia da noite para Pelotas... Armazém Cardoso; escrito no luminoso da venda. O homem velho desceu do cavalo e entrou na venda onde um sujeito magrinho, vestindo a camisa do Piquete Lanceiros do Capão Seco, estava recostado no balcão. Disse bom dia e pediu ao dono da venda para servir um copo de cachaça, olhou para o sujeito magrinho e disse: -- Subiu o preço do leite. O magrinho sacudiu a cabeça e respondeu: -Agora que ta acabando as leitarias... No Capão Seco, hoje, só tem cinco leitarias... O homem velho pegou o copo tomou um gole, sacudiu a cabeça e disse: -- Trocando de conversa: quem matou o Estrabulega? FIM Capão Seco outubro de 2003 [email protected] [email protected] josé freitas de souza