1
Isabel Noemi Campos Reis
Pontes a ser-viço das margens
Dissertação apresentada ao Programa
de
Pós
Mestrado
Graduação
da
Fluminense,
para
Campo
Educação/
Universidade
como
obtenção
de
em
de
requisito
grau
Confluência:
de
Federal
parcial
mestre.
Movimentos
Instituintes e Políticas Públicas em
Educação.
Orientadora: Professora Doutora Célia Frazão Soares
Linhares
Niterói
Rio de Janeiro
2006
2
Isabel Noemi Campos Reis
Pontes a ser-viço das margens
Dissertação apresentada ao Programa
de
Pós
Mestrado
Graduação
da
Fluminense,
para
Campo
Educação/
Universidade
como
obtenção
de
em
de
requisito
grau
de
Confluência:
Federal
parcial
mestre.
Movimentos
Instituintes e Políticas Públicas em
Educação.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Célia Frazão Soares Linhares – UFF / orientadora
Professora Doutora Valdelúcia Costa – UFF
Professor Doutor Sílvio Gallo – Unicamp e Unesp
Professora Doutora Nanci Nóbrega – UFF
3
Dedicatória
4
Agradecimentos:
5
Resumo
Na problematização das narrativas de sujeitos excluídos – que não
puderam permanecer ou entrar na Escola formal – e que hoje são idosos,
moradores das ruas ou moradores de casas de recolhimento, esta pesquisa
intitulada Pontes a ser-viço das margens, busca destacar ligações conectoras de
diálogos entre Escolas formais e a escola da vida, através do entrelaçamento de
narrativas de sujeitos excluídos e de sujeitos de algumas instituições
educacionais formais.
Mas como buscar mecanismos de compartilharmos formas instituintes de
políticas e pedagogias mais abertas, atentas para que escolas da rede pública
não se isolem em verdades estáticas, desconectadas das complexidades da vida?
Pensando na importância de refletirmos a escola imbricada com questões
complexas do próprio viver, pergunto: Como a Escola foi se constituindo,
muitas das vezes, separada da vida? O que faz com que em algumas Escolas,
prevaleçam recorrências ao pensamento único e hegemônico? Como fazer dos
silêncios dos oprimidos, vozes que nos apontem caminhos para a prevalência de
Experiências Instituintes nas escolas formais, em direções de incluir a todos e a
todas como sujeitos do pensar, do fazer, do expressar e do ressignificar
conceitos, estéticas e óticas como movimentos éticos de criação e de superação,
tanto no âmbito da individualidade quanto da coletividade?
Essas são algumas questões tencionadas nesta pesquisa, através de
reflexões e narrações polifônicas entre sujeitos – e instituições – que estão
dentro e que estão fora da Escola.
6
Abstract
7
SUMÁRIO
Parte I
10
cap. 1
Rumos iniciais - os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder
político no fechamento e abertura das portas sociais.
Introdução
29
cap. 2
Soltando as velas, mas para onde ir?
Justificativas
55
cap. 3
Alguns portos e um horizonte que se alarga!
Objetivos
59
cap. 4
Pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da Escola.
Metodologia
79
cap. 5
Companheiros de travessias e de travessuras.
Revisão de Literatura
Parte II
82
cap. 6
Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo com os sujeitos da pesquisa.
87
cap. 7
Mão na massa, buscando raízes e alvoradas.
100
cap. 8
Buscando caminhos
8
113
cap. 9
Vida em retalhos
125
cap. 10
No tabuleiro do Brasil – entre versos e reversos
149
cap. 11
Outras formações
182
cap. 12
Laços que enlaçam
Parte III
253
cap. 13
Concluir. É preciso?
263
cap. 14
Fontes inspiradoras
Referências bibliográficas.
78
Parte IV
Algo mais
Anexos
9
Pontes a ser-viço das margens
10
Rumos iniciais
capítulo 1.
11
Os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder no
fechamento e na abertura das portas sociais:
Introdução
Penso nas diversas configurações que constituem a vida social no Brasil,
onde há portas que se fecham e portas que se abrem. E nesse fechar e nesse
abrir, são produzidas grandes desigualdades que estão nos acompanhando há
cinco séculos, dando poucos sinais de serem amenizadas.
A última estatística resultante do PNAd (Pesquisa Nacional por
Amostragem Domiciliar), mostrou uma queda na desigualdade sócioeconômica
de aproximadamente 18%.
Lembro-me dos tantos pesquisadores que vão analisando essas
desigualdades do ponto de vista quantitativo, na busca de algumas respostas
resultantes da reflexão sobre algumas afirmações. Agradeço a esses estudos,
dos quais também me alimento; mas como problematização desta pesquisa,
considerando também análises qualitativas, parto de algumas perguntas que
têm instigado meu fazer reflexivo, como educadora e como artista que sou.
Através desta investigação, proponho um olhar complexo que possa
abarcar algumas instituições que, apesar de serem aparentemente diferentes
entre si, têm significativas confluências sociais e políticas. Distâncias e
aproximações que não se limitam a fronteiras, a pontes físicas e geográficas.
.
.
.
Para perceber algumas das portas que se abrem e refletir sobre suas
complexidades, escolho como metodologia trazer a narração de experiências
capazes de aproximar a instituição pública de ensino a outras instituições que,
por serem também responsáveis pela formação do humano, não podem abrir
mão dos sonhos passados que alimentam os devires.
Neste sentido, parece relevante destacar que um dos aspectos que
caracteriza o humano é o fato de que, muito embora um indivíduo tenha 80
12
anos ou esteja até mesmo à beira da morte, é um aprendiz e nessa condição, fazse vida pulsante.
Compreendendo-me como pesquisadora aprendente, indago:
Como se abrem e se fecham portas na escola?
Quais as portas que se abrem e as que se fecham na Fundação Leão XIII –
instituição que abriga miseráveis marginalizados?
Que portas foram e são abertas e fechadas, na Comunidade Cruzada São
Sebastião – favela de asfalto situada em bairro representativo da elite carioca?
Existem portas que abrem e que fecham oportunidades para aqueles que
estão morando nas ruas? Como reconhecê-las na sua multiplicidade?
.
.
.
Ao trazer juntas, experiências da Fundação Leão XIII1; da comunidade da
Cruzada São Sebastião, aqui representada por um grupo de senhoras da terceira
idade; das 13 escolas da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro e de
moradores de ruas dessa mesma cidade – organizações que poderiam não ter
relação alguma entre si, busco refletir sobre estas realidades tão específicas,
trazidas pelos discursos dos que as habitam –estudantes; educadores;
abrigados; cursistas, ou os que falam “fora” das instituições aqui pesquisadas –
tentando descobrir confluências e correspondências entre suas falas, suas
opressões e, sobretudo, confirmar os inesperados e as ações instituintes, que de
todos os lados tecem a vida social.
Ou seja, procuro perspectivas comuns dessas inter-relações, na afirmação
desses espaços como formadores e, portanto, exigentes de pedagogias e práticas
metodológicas afirmadoras da vida.
Entrando nesse mar revolto – porque populoso e complexo – busco
confrontar algumas instituições sociais, não com o uso de réguas ou armas de
Conservatório Brasileiro de Música Centro Universitário - CONDE, Cecília e CHAGAS, Marly. Buscando
Caminhos através da arte, Projeto desenvolvido na Fundação Leão XIII - Governo do Estado do Rio de
Janeiro. 2002 – 1ª fase; 2003/2004 – 2ª fase.
1
13
instrumentos demolidores, mas através de aproximações da escuta reflexiva e
amorosa dos sujeitos que constituem essas organizações.
Sabedora de que grandes problemas que estão dentro das escolas não
constituem exclusividade delas, ocorreu-me ações que possam ajudar a
tensionar essas organizações em suas práticas e realidades complexas,
acreditando que ao distanciarmos o olhar através de estranhamentos causados
por outros espaços – que também são nossos – será possível voltar aos nossos
espaços com um olhar mais desacostumado e, portanto, mais atento, mais
perspicaz, menos naturalizado e, portanto, mais sensível.
Por essa razão, acredito serem necessárias ações múltiplas que focalizem
e articulem a política educacional com as políticas sociais e econômicas: uma
intersetorialidade que promova conecções, ligamentos em problematizações
produzidas por uma sincronia de esferas que urge serem transformadas.
As mídias expressam com euforia a queda do risco país e apresentam os
demais indicadores econômicos como favoráveis ao crescimento econômico e
social.
Qual a lógica que une e que equilibra essas análises, se diante de tantos
panoramas otimistas, a desigualdade se corporifica em formas cada vez mais
complexas e ambíguas? Que mecanismo é esse capaz de criar equilíbrios
assimétricos?
O que há com as desigualdades no Brasil? Por que crescemos, enquanto
economia, para todos os lados, e as desigualdades sociais crescem conosco?
Precisamos de instrumentos que trabalhem, que operem sobre essas
dimensões políticas, sociais, educacionais. Será premente fazer suscitar
movimentos que viabilizem a equilibração do acesso a portas sociais. Portas
políticas.
Qual o lugar da escola na perspectiva de ações que favoreçam
transformações sociais, no ensejo de um presente e de futuros mais justos e
14
democráticos? Em que aspecto essa instituição pública – que é a escola – tem
mostrado resistência à sua recriação democrática (sua e da sociedade)?
Existem portas controladoras, mas também existem portas libertadoras
nesses mesmos espaços e organizações, de modo que estes movimentos me
levam a perguntar:
Como as experiências podem nos aproximar das complexidades dessas
portas sociais?
Há
muitos
veios;
entretanto,
através
desta
pesquisa,
estamos
precisamente no eixo em que a educação se articula com a arte.
Será necessário entrar em sintonia com algumas dimensões que nos
levem a perceber mecanismos aprisionadores e libertadores na instituição
escolar, para que possamos vislumbrar tempos melhores naquilo que há de
mais ético, amoroso e criador.
Qual o lugar de importância das instituições escolares nas tantas
desigualdades existentes no mundo, mas particularmente no Brasil?
Na investigação que fundamenta esta dissertação, a preferência se dá
pelo caminho da escuta daqueles que sobraram e que não couberam na escola e,
na aproximação a esses sujeitos – em suas diferentes instituições – buscou-se
perceber algumas dimensões que possibilitem entender mecanismos opressivos
e torná-los públicos, abrindo possibilidades de se criar outras políticas.
Propõe-se, portanto, através do confronto de narrativas, o encontro do
discurso marginal dos rejeitados com o discurso do professorado atuante na
rede pública do ensino fundamental.
Partindo de um desconforto, de um mal-estar em relação a essa
instituição escolar, que tem como objetivo contribuir para a formação de
sentidos para a vida – mas que, com freqüencia expropria a presença da
experiência no cotidiano escolar – destaco a importância de refletirmos sobre
práticas e relações que tantas vezes se escondem nas dificuldades de
transformar, de tocar e de ser tocado.
15
Todavia, ao mesmo tempo, essas mesmas instituições responsáveis pela
formação de crianças, de jovens e de adultos, se fazem imersas em contextos de
vitalidade que, entre tensões, revelam a existência de movimentos que buscam
reconfigurar a escola e a sociedade.
Por mais que o discurso pareça estanque e inoperante, um rápido
panorama da realidade escolar no país revela um Brasil que se alinha a outros
países considerados desenvolvidos, com aproximadamente 90% de suas
crianças matriculadas em escolas em idade constitucional.
No entanto, de 1991 a 2000, a taxa de mortalidade de jovens entre 15 e 24
anos de idade, por homicídio de armas de fogo, aumentou em 50%, somente na
cidade do Rio de Janeiro, segundo dados do Ministério da Saúde – DATASUS –
divulgados pelo IBGE no ano de 2004.
Nesta mesma pesquisa em que o IBGE divulga uma Síntese de
Indicadores Sociais (2003), é possível verificar que na cidade do Rio de Janeiro a
taxa de freqüência escolar na área urbana, no ano de 2002, é de 97,1% entre
jovens de 7 a 14 anos, de 85,7% entre jovens de 15 a 17 anos, de 54,7% entre
jovens de 18 e 19 anos, de 31,2% entre jovens de 20 a 24 anos, enquanto na área
rural, a taxa constatada é de 100% entre jovens de 7 a 14 anos, de 100% entre
jovens de 15 a 17 anos, de 75% entre jovens de 18 e 19 anos, de 10% entre jovens
de 20 a 24 anos.
Com base nos limites expressos pelas estatísticas, reflito sobre os
possíveis motivos que fazem com que esta criança e este jovem permaneçam na
escola até os 14 anos de idade. Como se dá essa permanência e a não
permanência? O que precisaria ser reconfigurado nas escolas formais para que
possam dialogar com as necessidades sociais desse jovem, que aos 15 anos
começa a se evadir do ensino formal?
Como bem observa Reguera, a aprendizagem da carência e da
desvalorização seriam semelhantes a qualquer outra aprendizagem porque
deixam marcas. A criança e o jovem aprendem o que lhes é ensinado
socialmente nas relações que se fazem plurais, mas no caso de muitos dos
16
meninos moradores de rua, herdeiros de uma democracia que deprime e que
enfraquece, essas marcas esfarelam potencialidades.
A aprendizagem da desvalia, da submissão, da desqualificação que deixa
marcas geralmente indelévies, leva a pensar nas ações possíveis de parecer
espertezas maliciosas para uns, mas que, para o outro que age nesta outra
lógica e parâmetro, podem significar maneiras possíveis de sobreviver.
Como a escola formal pode contribuir no sentido de que a formação de
pessoas se faça sustentada pela ética, pela afetividade, pela curiosidade, pela
criticidade e pelo respeito ao outro, como estéticas potencializadoras de
experiências?
Como essa escola fortalece (ou atrofia) a esperança favorecedora de
qualidade de vida? Como conceituar qualidade de vida num espaço
democrático e plural?
Ainda abraçada a Reguera, penso na importância dos limites, nas
fronteiras, como possibilidades de sociabilidade com o outro. Limite não como
impotência, mas algo que pode nutrir outras lógicas que tensionem e alarguem
verdades até então almejadas ou afirmadas/ sustentadas.
Esta dissertação empregou a metodologia da pesquisa-ação e da
pesquisa-intervenção, no sentido de problematizar os limites, as fronteiras, os
engessamentos, dinamizando-os na abertura de outros devires, lógicas,
configurações e demandas.
A instabilidade é aqui entendida, como possibilidade de movimento. O
ato de acolher o estranhamento, o desconforto, a rejeição etc., como movimentos
dos quais podem emergir lógicas e experiências libertadoras de gessos, de
vícios, de estereótipos, de verdades e objetivos hegemônicos. E neste sentido,
assinala-se a importância de problematizar a instabilidade coletivamente.
Destaco, então, o papel da transdisciplinaridade como um sistema aberto,
em que o ato de interceder favorece a polifonia, podendo dinamizar e
17
desestabilizar dicotomias como sujeito / objeto; professor / aluno; o saber / o
não saber; o específico / a universalidade etc.
Não basta articular sujeito e objeto; professor e aluno etc., através de
diálogos e trocas. É preciso ir além disso, atentos ao fato de que aquilo que
outrora era entendido dicotomicamente, se constitui em processo de implicação:
um se faz e se refaz ao estar consigo e com o outro e, este outro pode
representar uma situação; pode ser um ou vários sujeitos; pode ser uma ou
várias experiências estéticas; pode ser uma experiência conceitual que
intervenha em algo ou em alguém, na dinamização daquilo que antes fora
adquirido, ou configurado, como organização acomodada.
O significado da provocação da provocação do ato de criar como ato do
pensar; do fazer; do sentir; do ousar; do perceber; do re-fazer; do estranhar,
enfim atos do existir que nos possibilitam o estar consigo mesmo, sem a
negação do outro.
Daí, propor uma metodologia que apresenta depoimentos e descrições
de experiências aqui narradas pelos próprios sujeitos que as vivenciaram,
esperando que elas tragam desafios ao pensar.
Ao escolher essa metodologia, acredito estar investindo na experiência,
embora desde os gregos a ela tenham sido reservados espaços de menor
relevância para a elaboração do conhecimento e, ainda hoje, a experiência tem
sido atingida pela expropriação dos sentidos.
Ao trazer retalhos e materialidades de narrações coloquiais, me
entrelaço, também de maneira prosaica, a essas pessoas que estão exiladas,
empilhadas em instituições homônimas, e junto a narrativas de instituições
escolares, busco brechas, lampejos e forças que ajudem a tecer, de alguma
maneira, esperanças de vida.
Mostrar os abrigados – desabrigados que são de tantas necessidades –
junto com os estudantes e com os professores, em contraste um com o outro,
ajuda a perceber como a política, o poder, a violência, o amor, a compartilha, a
alegria são dosados de diferentes formas. Mais explícitas ou mais sutis.
18
Na mesma pesquisa já mencionada aqui, divulgada pelo IBGE no ano de
2004, a UNESCO considera como alfabetizada a pessoa capaz de ler e de
escrever um bilhete simples, no idioma de seu conhecimento. Considera
também que a alfabetização é um parâmetro mais eficaz de medição de
aprendizagem que a matrícula, uma vez que reflete um nível mínimo de
escolaridade completa bem sucedida.
No entanto, essa pesquisa reconhece que o conceito de alfabetizados,
adotado pela UNESCO, pode estar considerando – segundo a própria UNESCO
– pessoas funcionalmente alfabetizadas como tal. Complementando essas
reflexões, o IBGE e a UNESCO destacam o conceito de alfabetizados funcionais,
ou seja, pessoas que possuem menos de quatro anos de estudos completos.
A afirmação acima pede ressalvas, e é o professor e pesquisador Jader de
Britto que me relembra que Aristóteles, por exemplo, em seu realismo crítico enfatiza a
construção do conhecimento a partir de experiência, de informação obtida através dos sentidos.
Em 2002 – ano dessa pesquisa que expressa a síntese de indicadores
sociais do ano de 2003 (IBGE/ 2004), o Brasil apresentava um total de 32,1
milhões de analfabetos funcionais (com 15 anos de idade ou mais) ou 26% da
população (nesta mesma faixa etária). Na cidade do Rio de Janeiro – nesse
mesmo ano – 23,1% da população domiciliada na área rural e 15,7% domiciliada
na área urbana foram considerados analfabetos funcionais.
Os índices acima são registrados considerando os indivíduos
domiciliados. Mas se estendermos essa mesma pesquisa feita pelo IBGE àqueles
que moram na rua, o que acontece à leitura da realidade brasileira? Aqueles que
não aparecem nessa pesquisa dão margem à indagação: Quem constitui a
sociedade civil brasileira?
Como pensar as necessidades sociais, se não são incluídos esses sujeitos
que encontramos nas esquinas, nas calçadas, nos viadutos - pessoas que não
aparecem nas pesquisas sociais oficiais realizadas pelos censos?
Como escutar aqueles que não tocamos?
19
Muitos falam que a escola precisa se aproximar mais da vida de seus
sujeitos. Quando se discute essa questão, é sabido que a fonte da ciência, a fonte
dos conhecimentos é a própria vida e estes serão tão mais vivos quanto mais
entrelaçados às necessidades do próprio viver.
A instituição escolar será tão mais efetiva à medida que responder a
problemáticas sociais vitais, em diálogos multiformes com as respectivas
demandas.
Esta pesquisa de mestrado se propõe escutar professores, estudantes,
diretores de escola e também aqueles que não tiveram escola (ou escolha) e,
quando conseguiram entrar na instituição escolar, passaram por ela
rapidamente. Hoje, já adultos, estes senhores e senhoras revelam, nos diálogos
que estabelecemos, uma nostalgia da escola. Como essa falta de escola se
apresenta na vida dessas pessoas em seus sonhos?
Qual a escola sonhada pelos professores e que escola estes professores
pavimentam em suas práticas pedagógicas?
Proponho o exercício de coletar imagens, nostalgias, sonhos,
necessidades que às vezes fragilizam o indivíduo que, por lhe ter faltado a
oportunidade de freqüentar a escola, acredita-se muitas vezes como um ser
menor. E com esses sonhos, essas esperanças e essas desesperanças, pretendo
fazer-me atenta na busca de aprendizados que apontem caminhos possíveis
para ajudar a refletir questões sociais e políticas, que possam vir a assegurar a
qualidade de vida como um direito para todos e para todas.
Não é de uma hora para outra que se produzem instituições, assinala Linhares. Não
se institui uma outra infância, uma outra escola de uma hora para outra. Os processos
instituintes são históricos, têm percursos, duração, embora – apesar da longa duração – eles
possam irromper em determinado momento, mudando seus rumos.2
Através de ações pedagógicas subsidiadas pela escuta sensível, pela
transdisciplinaridade, pela intervenção critico/ afetiva e pela restituição da
pesquisa aos co-autores que participam desta experiência, espero que estas
2
Reflexão da professora Célia Linhares - orientação coletiva, 2006.
20
experiências se façam em processos reflexivos catalizadores de transformações,
no sentido colaborar para a produção de políticas públicas favorecedoras de
processos que se exercitem em continuidades não lineares, ainda que se façam
entre laços e entrelaces.
Como pesquisadora, atriz e educadora busco, através desta pesquisa de
dissertação, o exercício de ajudar a emergir e circular os saberes, as éticas, os
valores, as estéticas, como convites e reforços para que possamos alavancar
espaços, capazes de favorecer exercícios de idéias, de práticas democráticas e
inclusivas, em que a esperança se faça para todos, como um sonho que caminha, como
bem propõe Aristóteles.3
O que me leva a escutar pessoas moradoras de ruas e de abrigos
públicos, que não tiveram oportunidade de escola, pelo fato de que em algum
momento de extrema importância, suas questões pessoais não foram
consideradas pela instituição escolar como questões coletivas e portanto,
políticas e educacionais?
Mas como as narrativas dessas pessoas, viventes das beiradas, podem
viabilizar caminhos que possibilitem intervir em mecanismos de fechamentos e
de aberturas das portas sociais e políticas?
Ao mesmo tempo em que me entrelaço a pessoas que moram nas
margens, proponho a escuta de professoras da rede municipal da cidade do Rio
de Janeiro, tentando uma aproximação de seus conflitos e também de seus
sonhos de professoras, que tantas vezes transbordam das burocracias escolares.
Essas questões me levam a perguntar:
Como pavimentar pontes entre esses Brasis que vivem juntos e muitas
vezes não convivem, não trocam?
Penso na importância de trazermos o passado para que possamos nos
encontrar com o presente. E o presente, como uma filigrana, só se revela
quando o olhamos à distância. Aí está o eterno ponto de partida: olhar o
3
In: cartão publicitário – Johnnie Walker, 2003. Distribuição gratuita.
21
passado para que sejamos capazes de nos aproximar do presente. E com os pés
no presente, quem sabe, construir hipóteses sobre o futuro.
Busco na raiz de minha origem formativa meu esteio metodológico e
abraço Brecht, quando propõe o distanciamento como ação fundamental para a
instigação da criticidade. Junto à Brecht, entendo--me como artesã que acredita
ser fundamental dar passos além do discurso, atenta às maneiras pelas quais
configuramos idéias e valores, através de ações geradoras de atividades
intelectuais e de atividades imaginárias reflexivas, que se exercitem como
produtoras de sentidos para a vida.
Nessa perspectiva, asseguro-me ainda junto a esse dramaturgo, diretor
teatral e poeta, por acreditar na importância de tensionarmos jogos e dinâmicas
das contradições, inerentes aos sistemas sociais. Organizações que se fazem e
desfazem em continuidades e descontinuidades que jamais podem ser lidas, ou
narradas em linearidade, sob pena de sufocar a complexidade de seus sistemas.
E, ainda que a realidade posta pareça aparentemente estática, a
imaginação, os sentimentos e os sentidos se movem continuadamente, em
movimentos também complexos, o que aponta a emergência de se pensar e repensar o conjunto das relações sociais, para que se possa reorganizar a
sociedade, à medida em que cada um se re-organiza como indivíduo único e
coletivos.
O distanciamento, como categoria social, tem seu efeito politizante à
medida em que se retro-alimenta de reflexões que se renovam e que são
renovadoras de sentidos. Uma reconstrução política do olhar, que ao se
distanciar do vivido, olha este mesmo vivido do qual faz parte, como um
espelho que reflete a si mesmo como se fora um outro. Liberto de
engessamentos emotivos e plásticos, experienciamos o aprendizado de outros
olhares àquela realidade que constituímos e, que nos constitui.
Com Brecht, entrelaço-me a Benjamin e busco aproximar-me do presente
e do passado, mediada pelo distanciamento critico, como atitude reflexiva de
outras ordens e configurações históricas do ontem e do agora, na desconstrução
22
de tantas imagens que tentam reforçar em cada um de nós, o fantasma da
inércia, que geralmente se acredita herdar daqueles tantos sujeitos vistos como
perdedores.
Homens e mulheres afogados pelos avalanches de verdades únicas,
silenciadoras de óticas e de experiências plurais, são, anti-heróis necessários
para que haja aproximação do presente com outros olhos e, configurando
outros sentidos, sonharmos com futuros possíveis, na perspectiva de se incluir
todos como atores protagonistas desta história polifônica, de narradores e
narradoras.
O distanciamento, como possibilidade de reinventar o presente e o
passado, ressalta o valor e o sentido da plasticidade humana, na busca de
historicizar as estéticas dominantes, tensionando-as e contrapondo-as àquelas
vozes e formas escondidas nos porões da história e abafadas nos calabouços dos
homens.
Quando me utilizo da primeira pessoa do presente do indicativo, o faço
em estado de alegria, pela consciência de que as reflexões aqui propostas –
sempre em termos de convite – fazem-se através de exercícios coletivos,
sustentados e tensionados por encontros.
Percebo-me constantemente acompanhada por tantas elaborações
reflexivas que teço com a orientadora desta pesquisa - Célia Linhares; com os
colegas que se encontram nas orientações coletivas realizadas na Universidade
Federal Fluminense e, com tantos outros interlocutores com os quais aprendo a
reconfigurar-me, tornando-me leitora mais atenta da amplitude das realidades,
à medida em me amplio com outros.
Apresento aqui outros companheiros como Freire, Ecléa Bosi, Bauman,
com os quais dialogo as tantas questões experienciadas nesses encontros
múltiplos.
Na busca de reflexão sobre essas várias narrativas, venho me
aproximando de 13 escolas da rede municipal do Rio de Janeiro, como co-
23
autora4 e coordenadora de um projeto de formação continuada de professores –
Projeto Janelas Cruzadas.
O Janelas Cruzadas é um espaço laboratório de experiências que refletem o
pensar/ fazer educação no sistema público escolar. Quatro são os pilares do
projeto:
→ a memória;
→ as múltiplas linguagens;
→ o processo de problematizar;
→ a ética/ estética.
Tais eixos são trabalhados como elementos pulsantes de todas as ações
do projeto.
Através de visitas às escolas parceiras e de reuniões com gestores e
professores que participam da formação continuada proposta pelo Janelas
Cruzadas; questões educacionais que integram o cotidiano das treze escolas se
fazem como materiais impulsionadores do planejamento dessa formação.
O Janelas Cruzadas convida profissionais da educação, que abordam de
forma entrecruzada e transdisciplinar, temas que possam tensionar questões da
educação em geral e outras que, mesmo representando especificidades do
cotidiano dessas 13 escolas, não se restringem a estas unidades escolares.
Outra ação do Janelas Cruzadas é a escuta de um grupo de senhoras,
moradoras de um conjunto habitacional popular situado na Zona Sul da cidade
do Rio de Janeiro: a Cruzada São Sebastião.
Esse conjunto habitacional foi construído a partir da ação instituinte de
um líder social, Dom Hélder Câmara, ao possibilitar que famílias fossem
retiradas de suas moradias, organizadas até a década de 50 em um lamaçal
povoado por casas feitas de caixas de madeiras ou barracos úmidos, que
4
Isabel Reis e Helena Jacobina são autoras do projeto Janelas Cruzadas.
24
constituíam a favela da Praia do Pinto, no Leblon. Estruturas que não contavam
com saneamento básico em suas passagens tortuosas, água encanada, luz
elétrica ou qualquer outra composição de urbanismo, como ação planejada
garantida como direitos pelos poderes públicos.
No entanto, um dos diferenciais desta ação instituinte, que felizmente
não é única em nossa história, é que a remoção da comunidade efetuou-se para
um conjunto habitacional construído destinado à própria comunidade, no
propósito de manter seus sujeitos perto do ambiente de trabalho, garantindo a
continuidade dos vínculos já conquistados.
Que outros diferenciais resultaram dessa experiência instituinte?
Haveria indícios que indicassem a possibilidade das senhora habitantes
desse conjuntos se fazerem protagonistas de sua história?
Como essas histórias compartilhadas podem viabilizar experiências, na
afirmação da estética criadora como dimensão ética?
Que seria dos moradores da comunidade da Cruzada São Sebastião, se
na década de 50 tivessem sido removidos para bairros periféricos que não
oferecessem transporte público, estruturas comerciais, atendimentos de saúde e
empregos nos arredores?
Na Comunidade Cruzada São Sebastião, não é raro os apartamentos de
quarto e sala abrigarem gerações e gerações que moram juntas, com famílias de
15 pessoas convivendo num apartamento de um só quarto. Contudo são elas
mesmas que agradecem todos os dias pela possibilidade de um teto e de um
trabalho – ainda que muitas vezes, estas se façam através de vínculos informais.
Como estas experiências podem tornar viável uma escola que se faça
mais larga, onde todos e todas possam perceber-se incluídos?
Na intenção de colaborar para que a reestruturação da escola se faça
como um gerúndio constante, busco maneiras de aproximar-me de pessoas que
vivem na rua ou em casas de recolhimento públicas, e através de ações
realizadas com esse público, vou problematizando e tensionando suas
25
narrativas com o cotidiano escolar daquelas unidades escolares participantes do
projeto Janelas Cruzadas.
Esses movimentos me fazem estas perguntas:
Como estas ações com pessoas que estão na escola e com pessoas que lá
permaneceram por pouquíssimo tempo – ou que nunca estiveram por lá –
podem nos ajudar a pensar a escola de hoje e de amanhã?
Que questões se fazem presentes nas instituições que abrigam pessoas
sem teto, desempregadas, marginalizadas, e que metamorfoseadas, surgem também
em instituições públicas de ensino, como questões do cotidiano escolar?
Como esta pesquisa pode contribuir para a qualidade do ensino das
escolas públicas, mas também para a qualidade das instituições públicas que
acolhem pessoas marginalizadas?
Como pensar políticas educacionais democráticas, se crianças e jovens
que não têm endereço fixo, não podem matricular-se em unidades escolares
públicas, visto que se trata de exigência legal para que a matrícula seja
efetivada?
No propósito de realçar a importância da aproximação a essas pessoas
plurais, atenta aos seus modos de existir e de desistir, me proponho a estabelecer
diálogos com as narrativas de educadores, estudantes e, também de sujeitos que
além de estrangeiros, foram exilados como pessoas que, com freqüência, não
tiveram maior significação para a escola e, ainda hoje, enquanto
marginalizados, pouco representam para a sociedade.
Aproximo-me, então de senhores e senhoras idosos que se encontram
confiados ou confinados aos cuidados da Fundação Leão XIII (em abrigos
sociais públicos da rede estadual do Rio de Janeiro). Senhores marginalizados
sem lugares que lhes assegure o direito a uma vida de qualidade, o direito ao
atendimento das necessidades básicas e ao direito de sonhar.
Qual o lugar de importância das instituições educacionais nesse quadro
de desigualdades sociais e como a experiência se faz presente nessas
26
instituições, visto que não experimentar politicamente é não instituir, como bem
assinala a professora Linhares.
No sentido de tocar uns aos outros através de experiências com voz
própria – e que apresentem estéticas plurais, através de seus modos, suas
pausas, suas flexões, suas ênfases e suas linguagens – tento escrever
polifonicamente, realidades que são de todos e de todas.
E nestes movimentos, contextos plurais com os quais vivencio o
complexo ato de pesquisar, reflito questões expressas através da narração de:
a) experiências de professores, de diretores, de estudantes e de familiares
representantes de 13 escolas da rede Municipal da cidade do Rio de
Janeiro; instituições participantes do projeto Janelas Cruzadas;
b) experiência de senhoras moradoras da comunidade da Cruzada,
também participantes do Janelas Cruzadas;
c) experiências de senhores e de senhoras moradores do CRS – Centro de
Recuperação Social – unidade Campo Grande/ Fundação Leão XIII;
d) experiências de senhores e de senhoras que estão morando nas ruas.
Ao encontrar-me mergulhada em um oceano de experiências, perguntome:
Como a aproximação e a escuta de questões particulares, podem se fazer
exercícios de reflexão das questões coletivas que buscam assegurar uma comum
qualidade de vida?
Como as conquistas miúdas das relações sociais, podem se fazer presentes
na reflexão e na elaboração de políticas públicas?
Volto-me para as idéias de Zygmunt Bauman quando afirma a
importância de assegurar idéias, caminhos e ações significativas, para que o
aniquilamento da miséria e da desigualdade social se faça como um bem público.
Valores partilhados que urge serem validados como patrimônios públicos e
portanto, como responsabilidades de todos e de todas.
O que faz com que práticas sociais desarticulem e fragilizem (ou
reforcem) os saberes plurais?
27
Como a aproximação das maneiras complexas de se pertencer
socialmente, pode interferir para que a questão da aprendizagem se faça como
processo libertador e portanto, criador de sentidos para a vida de todos?
Percebo na Fundação Leão XIII a recorrência de pessoas vindas da área
rural do Estado do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros. No Brasil,
segundo o IBGE (indicadores sociais de 2003), apesar de ter sido constatada
uma diminuição da taxa de analfabetismo, na última década, equivalente na
área urbana a 26,6% e na área rural a 22,61%, importa destacar que as taxas de
analfabetismo nas áreas rurais brasileiras são – em média – quase três vezes
maiores que nas áreas urbanas. Realidade que, desde 1992, não se altera.
A maioria das pessoas que se encontra nos abrigos da Fundação Leão
XIII é oriunda da área rural e, vem confirmar a taxa de analfabetismo brasileira
divulgada por pesquisas oficiais (no que se refere à leitura letrada). Mas,
sabendo que grande parte dessas pessoas foi moradora de ruas e, portanto não
se fez presente nas pesquisas oficiais, indago:
Como me aproximar a essas pessoas, na perspectiva de escutá-las e
possibilitar que suas reflexões e leituras de mundo sejam validadas como
indicadores de caminhos para uma sociedade mais justa, representada por
políticas públicas que expressem necessidades emergentes de grupos plurais?
Que questões se fazem presentes na cultura social expressa tanto pelas
dinâmicas dos moradores de ruas, quanto pelos mecanismos administrativo/
pedagógicos da Fundação Leão XIII e que se repetem, ou se confirmam, na
cultura escolar?
Como a escola pode ajudar a instigar, a des-engessar, a lubrificar
mecanismos sociais e políticos, de modo que aqueles que não exercem direitos
políticos passem a exercê-los?
Das pessoas com quem tenho interagido nesse abrigo público, fui levada
às ruas, no intuito de me aproximar àqueles que resistem a essas instituições
sociais que afirmam recuperar pessoas marginalizadas, na busca de integrá-las
ao sistema social vigente.
28
Porém, quais os interesses, os objetivos e as maneiras desse nosso sistema
social para o qual tantas instituições e tantos profissionais trabalham?
Na busca de me aproximar um pouco desses sistemas complexos, trago
nesta pesquisa, senhores e senhoras que, apesar de serem vistos pelas pesquisas
oficiais como analfabetos ou como alfabetizados funcionais, vivem como
leitores perspicazes e sensíveis, que analisam criticamente o mundo que os
cerca.
Acredito que as leituras plurais de mundo são fundamentais para que
possamos aprender a ler o Brasil de maneiras mais amplas e mais complexas.
O ponto de partida de toda essa problematização é a minha percepção de
que a escola tem sido ‘objeto’ de muitas pesquisas voltadas para políticas
educacionais e, muitas vezes, soluções de questões são buscadas em
perspectivas centradas somente nas escolas. Longe de mim negar através desta
pesquisa – ou de qualquer outra ação reflexiva – a especificidade do trabalho
escolar, nem tampouco espero que os problemas escolares se resolvam apenas
quando construirmos paraísos territoriais.
Mas, por acreditar que a solução dos problemas escolares não depende
só da escola – pois são várias as frentes que tecem a infreqüência, a evasão, a
reprovação, a não aprendizagem – é que me proponho a apresentar, através
desta pesquisa de mestrado, depoimentos e narrativas, recolhidos por mim em
algumas instituições nas quais trabalhei como arte-educadora, na busca de
pistas que permitam uma aproximação às complexidades da escola, em
benefício de uma melhor compreensão daquilo que acontece nas políticas
educacionais e nas políticas sociais.
Neste sentido, pergunto-me: Como favorecer espaços de experiências
para que as histórias possam quebrar nosso desencanto, renovando a
esperança?
29
soltando as velas, mas para onde ir?
capítulo 2.
30
Soltando as velas, mas para onde ir?
Justificativas
“A minha escola foi da vida. Eu nunca tive na escola, nunca botei
uma blusinha branca com saia azul marinho. Tudo que eu aprendi foi na
escola da vida. Aprendi a ler, a escrever, eu faço conta e faço tudo que a escola
da vida deu. Na minha opinião a escola da vida é a mais importante. Os gibis,
as estórias em quadrinhos que eu ia juntando com os amiguinhos, ia catando
as letras, batendo cabeça, ia juntando, e através das histórias em quadrinhos
eu fui conhecendo o alfabeto, eu aprendi ali a ler sozinha. Eu e Deus. Fui
ficando mais madura e a vida foi me ensinando o resto.”
O que aprendemos com essa experiência narrada por Dona Virgínia – 71
anos, moradora da Cruzada São Sebastião – Leblon/RJ?
É possível que a Escola escute seus alunos, suas memórias e narrações ou
ao tentar fazê-lo, mais das vezes, permanece num monólogo, imbuído de
certezas e fechamentos dogmáticos?
Como as trocas e os aprendizados construídos pela escola da vida podem
se presentificar num diálogo franco na Escola formal?
Entendo por escola da vida os processos de ensino e aprendizagem que se
dão nas múltiplas relações e interações cotidianas. Escola de tempos e espaços
plurais, espaços de convivências educacionais constituídos em rede, sem um
seqüenciamento linear ou uniforme - ou seja, sempre disparado por frustração e
surpresas e portanto, irrepetível. Espaços que instigam o sujeito nas suas
múltiplas potencialidades, nos seus modos de ser e viver. Escola vida, que no
seu existir, lida naturalmente com diferentes linguagens entrelaçando-as às
tensões e ambivalências do cotidiano.
Ao me referir à escola formal, estarei representando-a com ‘E’ maiúsculo,
como forma de diferenciá-la de espaços informais de educação. Neste sentido,
apresentarei a Escola como instituição, entendendo-a como espaço social de
referência educacional que tanto pode instigar o processo criador e
31
proporcionar a socialização na construção de conhecimentos e de superações,
como pode alimentar a reprodução e a mesmice. Como instituição, a Escola é
sempre cenário possível de ser estremecido por Experiências Instituintes.1
Consciente da existência de tensões nesta instituição, que tem como um
dos seus objetivos sistematizar pedagogias de superações dos sujeitos e das
realidades que a constituem, pergunto-me: Como a Escola foi se constituindo
separada da vida? O que faz com que em algumas Escolas, prevaleçam
recorrências ao pensamento único e hegemônico?
Apesar de anos de reflexões e propostas formuladas no intuito de
garantir legalmente a viabilização de uma sociedade e processos educativos que
tenham como parâmetro não o mercado, o capital e interesses internacionais, mas o ser
humano, organizações científicas e sindicais dos educadores encontram resistências
na participação de reformas educativas – como as Leis de Diretrizes e Bases e o
Plano Nacional de Educação.2
Apesar de sabermos que o patrimônio natural e científico e os processos
culturais e educacionais não podem estar subordinados ao mercado e ao capital, mas ao
conjunto de direitos que configuram a possibilidade de qualificar a vida de todos os seres
humanos, como nos afirma Gaudêncio, vivemos hoje a conseqüência de uma
história que se constitui, desde a Grécia antiga, no fortalecimento de
articulações políticas e ideologias sustentadoras do bem estar de pequenos
grupos de sujeitos privilegiados.
Desde épocas remotas, regalias econômicas, benefícios como políticas de
educação e saúde, são asseguradas como direitos não democráticos, mas
sustentadores de controles potencializadores de dominações. Esta realidade histórica
ainda vigente e com força na atualidade, não se dá sem tensões entre
contradições, conflitos e movimentos também libertadores. São estes últimos os
1 Entendemos por Experiências Instituintes na educação, como práticas e relações pedagógicas que trabalham
no rompimento dos padrões de racionalidade e políticas hegemônicas. Estas Experiências buscam caminhos na
educação em prol da construção das solidariedades, da valorização das singularidades históricas, numa concepção de
tempo e espaço não lineares. Na contramão dos maniqueísmos; competições; homogeneizações; opressões, as
Experiências Instituintes buscam uma educação mais humana e includente.(Resumo realizado a partir de
LINHARES, 2002 e de texto de Eugênia Foster, Doutora em Educação pela UFF e integrante do grupo de
pesquisa Aleph).
2 FRIGOTTO, Gaudêncio. 2002, p. 58 e 65.
32
responsáveis pela busca de caminhos para a construção de uma sociedade e
processos educativos que tenham como foco, não apenas humanizar a Escola,
mas revitalizá-la.
Esta pesquisa busca caminhos para articular Escola não somente com
humanidade em princípios éticos, mas reintegrar a Escola na vida. Neste
sentido, porque faz-se importante a aproximação sensível aos sujeitos que não
couberam, que não chegaram na escola? Como alimentar e revitalizar a Escola
com desejos e necessidades daqueles que estão fora desta instituição?
A Escola, como reflexo da sociedade e de sua historicidade, também
reflete este mesmo mecanismo de poder do controle na afirmação de verdades
hegemônicas; na exclusão de sujeitos que se diferenciam dos modelos únicos
impostos socialmente; na não democratização do processo de ensino e
aprendizagem com qualidade técnica, científica, ética, estética, criadora e
humana; no temor à reflexão crítica e à formação de sujeitos autônomos.
Não podemos deixar de nos remeter ao embricamento entre processos e
interesses históricos/ políticos e, a educação escolar. Convido Linhares para
elucidar este entrelaçamento de lógicas e mecanismos também opressores,
quando nos diz que:
Revoluções políticas e tecnológicas estouraram na França e na Inglaterra, no
final do século XVIII e no início do século XIX, respectivamente, de onde foram
espargidas e repatriadas para todo o mundo ocidental. As interdependências das relações
sociais iam se tornando cada vez mais complexas e competitivas, e as disciplinas sociais
e humanas passaram a constituir importantes estratégias políticas.
O projeto de industrialização não podia prescindir do disciplinamento dos
saberes, submetendo-os a um regime severo que operava no sentido de uma produção
que atingia o corpo, enquadrando-o em tempos e espaços modelados pelos regimes de
poder.
Uma intensa reciprocidade entre a disciplinarização da sociedade, produzindo a
disciplinarização dos saberes e vice-versa, foi se aprofundando e se traduzindo numa
33
organização acumulativa e seqüencial de saberes, submissa a uma lógica fragmentária e
hierárquica, ao serviço de controladores de mercadorias.3
A
excludência
vem
crescendo
dentre
os
tempos,
ampliando
desigualdades históricas no Brasil. Esta concentração de bens culturais e
materiais revela os processos de barbárie crescentes com a nossa cultura de
controle.
Por reconhecer que a situação escolar atual é grave, apresentando
expressividade na evasão escolar e na formação de um percentual elevado de
alfabetizados funcionais, acredito ser importante a escuta daqueles que estão fora
da Escola. Nesta mediação de pontes de comunicação, poder perceber e
entender mecanismos de exclusão, assim como mecanismos que freiam a
criação, que banalizam o ensino e que massificam professores e estudantes.
Esta grave realidade cobra de nós movimentos instituintes, constituintes
de uma outra cultura escolar e social, que possibilite aos seus sujeitos a
estruturação
da
autonomia
individual
e
coletiva,
como
exercício
e
potencialização da capacidade de criar; de transformar; de inscrever-se e
intervir no mundo, em processo de superação de si – como sujeito, e de
superação da realidade – esta como reflexo de ideologias, ações, éticas e
políticas humanas.
Neste sentido, faz-se necessário que a Escola seja um laboratório de
experiências vivas e estimulantes, num trabalho contínuo de reflexão e
superação de si mesma como instituição e, com os indivíduos que a constituem.
Proponho a aproximação a algumas escolas da rede municipal da cidade
do Rio de Janeiro, com as quais interajo, na busca de diálogos que apontem
caminhos e instrumentos que possibilitem o fortalecimento da escola formal,
que nos dias atuais se mantém - muitas vezes - dogmatizada e distante da vida.
Como Escolas dogmatizadas e distantes da vida convivem com suas
contradições?
3
- LINHARES, Célia Frazão Soares. Setembro de 2000. Publicação semestral. p. 40.
34
Como perceber brechas e fendas existentes no pensar e agir
hegemônicos, sobretudo naqueles que irrompem na Escola?
Como articular pontes e laços entre duas partes, muitas das vezes,
irreconciliáveis: os que estão fora da escola e os que estão dentro da escola e
nesta possível comunicação, perceber instrumentos para elaboração de políticas
públicas, políticas sociais e políticas educacionais includentes e democráticas?
Através de uma metodologia que se propõe interativa, esta pesquisa
buscará estar atenta a indícios que possibilitam diálogos entre os que estão
dentro e os que estão fora da Escola e, nesta mediação reflexiva e crítica, a
pesquisa estará atenta a ações e sinais que apontem caminhos de construção de
outras formas de convivências pedagógicas4. Neste sentido, faz-se fundamental a
procura de pistas que indiquem ações no asseguramento desta Escola vida, como
espaço de aprendizagens, trocas, transformações e superações.
Compartilho com Walter Benjamin que nos aponta a necessidade da
escuta, atitude fundamental na interação com o outro e, vou me debruçando nas
narrativas colhidas nesta escola da vida, na busca de lógicas e espaços múltiplos
de construção de conhecimentos e aprendizagens. Saberes de um tempo aberto
que vai ao passado e volta ao presente, ressignificando-o e preparando-nos para
interagirmos com imprevisibilidades e complexidades. E como nos diz Linhares
é urgente aprofundar perspectivas do passado para agrandar o presente.5
Novamente, apoio-me em Benjamin e em Linhares, para falar das
tradições esquecidas, dos saberes fecundos no cotidiano interativo e pergunto:
Como os movimentos instituintes vêm contribuindo na construção de
Escolas mais largas, que desmontem políticas de favores e terrores6, silenciadoras
das memórias não hegemônicas?
Através das narrativas de adultos e idosos que - em outros tempos e hoje
- não conseguem permanecer em escolas formais, vou interagindo na busca de
LINHARES, Célia. 2000.
Idem. p.30.
6 Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria:
Experiências Instituintes em Educação.
4
5
35
pistas, sinais e propostas que em diálogo com sujeitos escolares, possam nos
ajudar a localizar e compreender travas e frestas sociais7 por onde podem passar
pontes e canais a conectar Escola à vida.
Na valorização da escuta e da aproximação de pessoas que não tiveram
vez nem voz e fizeram da vida a sua escola de formação crítica, ética, estética,
afetiva... busco localizar instrumentos que apontem caminhos para uma Escola
maior, de compartilha com os estudantes; os familiares; os professores; os
funcionários da escola, trabalhando demandas e necessidades destes sujeitos
como conteúdos a serem valorizados e socializados, em troca constante entre
comunidade escolar, familiar e social no que estas demandas tem de mais ético
e avançado politicamente.
Diálogo entre escola formal e escola da vida, como possibilidade de
interação nas complexidades vitais e sociais8. Buscar na Escola, espaços de
intercâmbios entre os professores, os estudantes e outros grupos. Enfatizar no
ambiente escolar, a importância do idoso, sua expressão e voz, como guardiões
de conhecimentos - acervos vivos que precisam ser valorizados para que
possam ressignificar saberes. Neste sentido, faz-se importante registrar a
cidadania como um exercício social que não pode excluir nenhuma fase da vida
humana.9
7 Sugestões realizadas pela professora e orientadora Célia Linhares, na orientação coletiva – 2o semestre de
2004.
8 Idem.
9 Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria:
Experiências Instituintes em Educação.
36
Ao levantar esta questão das narrativas e da memória entrelaçadas na
construção do fazer pedagógico, recorro à minha própria relação com a Escola.
Experiência esta que foi se alargando com algumas convivências que tive e
tenho tido em espaços educacionais diversos. São muitos os sentimentos e
aprendizados, mas trago uma lembrança da minha ‘Escola primária e ginasial’
para impulsionar esta conversa:
Viver em família foi a minha primeira escola significativa. Das Escolas
que permearam todo este período de infância e adolescência ficam os convívios
de amizade, os passeios, os encontros sociais. Às vezes penso que o fazer
criativo não esteve localizado para mim, nestes espaços formais de educação.
Lembro-me de um professor de matemática que ao explicar uma equação
no quadro negro, perguntou se algum aluno tinha dúvidas. Levantei o dedo e
quando me foi cedido o direito à palavra, respondi que tinha uma dúvida. O
professor
rapidamente
respondeu
que
aluno
bolsista
não
podia
ter
questionamentos. Marcada por ser bolsista, silenciei profundamente sem saber
o que faria naquele lugar que me exigia certezas impossíveis e entendimentos
imediatos.
Como diz Sá de Miranda10, comigo me desavim, e finalmente encontrei
possibilidade de transformações na aula de Língua Portuguesa. Ali, em vez de
darmos conta de muitas leituras autoritárias, nossa turma convenceu a
professora a realizar encenações com os textos que estávamos estudando.
Fizemos cenários, dividimos o espaço em ambientes diversos... e os textos
literários eram vividos por nós e discutidos de formas múltiplas.
Quantos
saberes
estavam
sendo trabalhados
neste
aprendizado
transdisciplinar que o teatro nos permitia, ao lidar com a não fragmentação,
podendo nos levar a exercitar a consciência do interligamento e embricamento
entre as disciplinas, entre os saberes.
Ginzburg me surpreende quando usa o rigor científico nos seus estudos e
ao mesmo tempo propõe ser diferente do modelo que acredita na repetição, no
10
MIRANDA, Sá de. Citado por Augusto Rodrigues. 1971.
37
previsível e no distanciamento do sujeito e do objeto. Apresenta então, um rigor
científico aberto e confirma o valor da interação, na crença da importância de
perseguir sinais; marcas; detalhes; pormenores, em proximidade ao objeto de
estudo.
São as marcas da minha história, intercâmbios com pessoas e contextos
diversos, que me levam a apurar o olhar para que possa estar atenta à leitura de
gestos; de silêncios; de falas; de olhares; de pistas; de cartas; de desenhos; de
fotografias; de guardados; de textos; etc. Quando propicio que os sujeitos com
os quais interajo - na condição de educadora - tragam estes acervos como
conteúdos a serem problematizados, intercambiados e ressignificados,
percebemos diante de nós, questões escondidas e sutis, que podem se
transformar em narrações.
Borges, nos fala que nosso passado é nossa memória e essa memória pode ser
uma memória latente, ou errônea, mas não importa; está aí. Pode mentir, mas essa
mentira já é então, parte da memória; é parte de nós.11 Benjamin, nos provoca a
perceber a importância do ato de contar histórias e ressignificá-las, quando nos
diz que contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve a história.12
E assim fortalecida, na condição de caçadora e narradora, não somente
com Ginzburg e Borges, mas também com Benjamin e Linhares, continuo a
minha história.
Como filha de artista/ educador e de educadora/ artista, minha infância
e adolescência foram privadas de confortos... de tranqüilidades... mas também
enriquecidas de um inundar de processos criativos... conversas desafiadoras...
escutas instigantes... convívios antagônicos... e, é claro, preconceitos nas Escolas
que freqüentava.
11
12
BORGES. s/d
BENJAMIN. 1994, p. 205
38
Através dessas experiências complexas, fui exercendo a sensibilidade e
aprendendo a tentar habitar o mundo com um olhar estético e poético, estando
atenta à leitura de diferenças, às construções de generosidades, atenta também
às desconstruções de imediatismos individuais.
Escolher como profissão o teatro - primeira Academia formal - foi
importantíssimo por me estruturar; arrumar o meu devaneio sem perder o
desejo de criar e conviver com os mistérios da vida. O teatro me possibilitou o
exercício da perseverança, da pesquisa, da crença na utopia, fazendo-me crer
ser mais possível um impossível crível, do que um possível não acreditado.
Como a minha vida inteira tem sido de labuta, e até mesmo a primeira
Academia que freqüentei foi a academia da labuta, na Escola de Teatro da UFBA,
pude fortalecer este ofício: o de estudar trabalhando e o de trabalhar estudando.
Aprendi a trabalhar sendo atriz, pois o ator se põe em luta diariamente,
na tentativa de afinar seu corpo, lidando diretamente com suas dificuldades e
limites, buscando tornar-se um instrumento expressivo, cada vez mais claro.
O ator é movido pela necessidade de expressar-se, de dizer algo
significativo de forma não repetitiva. Fugindo ao estereótipo, o teatro ensina
que você, ator, fala com alguém e para alguém (o público e o outros atores),
promovendo o exercício fundamental do diálogo - daquilo que mesmo
trabalhando, burilando, pesquisando, não se fecha. A linguagem teatral, ainda
que estruturada entre ensaios e roteiros ou textos dramaturgicos, ao possibilitar
o encontro de um sujeito com outro, ainda modifica sua estrutura.
Freire me faz lembrar o compromisso e a responsabilidade que
assumimos como educadores, participantes de movimentos sociais ou
fomentadores de idéias e conceitos, quando enfatiza que falar, por exemplo, em
democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é
uma mentira.
39
Não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria
essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca,
como já vimos, não se faz no isolamento, mas na comunicação entre os homens...13
Aprendi também com o ofício de atriz e com o próprio Freire, que
dialogamos não apenas com pessoas... mas com objetos... com silêncios... Como
nos sinaliza Ginzburg, vou me apurando na busca de tornar-me uma leitora
mais atenta a mim e ao outro, às várias óticas e, jeitos de ser e de expressar.
Quase sempre sem apoios, sem espaços, sem financiamentos... o ator,
como o educador, diversas vezes dá continuidade ao seu ofício por crença e
necessidade vital de criar, expressar e transformar. Aprendi então, a perseverar.
Ainda em Salvador, aluna da Universidade Federal da Bahia, onde
freqüentava o curso de Bacharelado em Artes Cênicas – Interpretação Teatral,
fui convidada a realizar oficinas de dramaturgia para adolescentes de uma
favela chamada de Saramandaia, projeto realizado pela Prefeitura da Cidade de
Salvador/ BA,14 em convênio com a UFBA.
Ao chegar na comunidade, o projeto tinha contratado mais professores e
planejado mais oficinas do que o espaço físico comportava. Abri mão do uso da
sala, que já significava objeto de conflitos e disputas. Sem saber o que fazer com
a turma, dialoguei com os estudantes, buscando soluções. Ao ver seus olhinhos
brilhando e solicitando que não os dispensasse, perguntei-lhes:
O que podemos fazer?
Como posso dar aula para vocês?
Existe algum lugar, alguém aqui na comunidade que possa nos ouvir, nos ceder
um local?
Nossas aulas passaram a acontecer a partir desta busca de espaço. Os
estudantes tinham 12, 13, 14 anos e eu por volta dos 20, como se fora um deles.
FREIRE, Paulo. 2002, p. 57.
Este trabalho realizado por mim sobre a orientação da professora de dicção Meran Vargens, foi
absorvido pela pesquisa do CNPq – A apreciação do espetáculo teatral como elemento fundamental da
Arte-Educação. Na pesquisa citada, obtive orientação do professor Sérgio C. B. Farias. Universidade
Federal da Bahia, Salvador/Bahia, 1994 e 1995.
13
14
40
A intuição indicava-me os caminhos do diálogo. Somente anos depois, pude ter
clareza destas minhas ações como educadora. Na época em que trabalhava
neste projeto, sofria conflitos por não estar cumprindo um programa, fugindo à
proposta que o projeto previra ao convidar-me para exercer oficinas de
dramaturgia.
Precisava trabalhar exercícios respiratórios, projeção de voz, consciência
corporal, etc. Nossas aulas estavam sendo tomadas pelo cotidiano e se eu não o
absorvesse, não conseguiria dar aulas. Neste diálogo conflituoso comigo
mesma, fomos de porta em porta, de bar em bar, nas escolas da comunidade e
cada aula passou a acontecer num ambiente diferente.
Este percurso já era a aula com suas próprias problemáticas, negociações
e aprendizados. Se acontecia num bar da comunidade, tínhamos que iniciar a
aula fazendo uma faxina para limpar as bebidas derramadas no chão, na noite
anterior. Se era na laje da casa de alguém, tínhamos que ter cuidado com nossas
encenações, o meio ambiente, o entorno, como por exemplo o neném dormindo
na parte de baixo da casa.
Com o tempo, este cotidiano foi sendo presentificado nas nossas
representações dramáticas. Conteúdos trazidos pelas questões e contextos dos
adolescentes, foram sendo encenados.
*
*
*
No Rio de Janeiro tenho realizado desde 1998 um trabalho na Cruzada São
Sebastião – Leblon, com o Projeto Janelas de Cada Um.15 Através do apoio da Fundação
Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, do Programa Crer para Ver e da
Natura Cosméticos, o projeto
15 Projeto Janelas de Cada Um (anos 1 e 2) e Janelas Cruzadas (ano 1 e 2) – autoria de Isabel Noemi
Campos Reis e Helena Jacobina Campos. Coordenação dos projetos: Isabel Noemi Campos Reis (1998 2005) e Helena Jacobina Campos (1998 - julho/ 2004). Entre as páginas 12 e 15, os textos referentes ao
projeto Janelas de Cada Um e Janelas Cruzadas que se encontrarem em itálico, foram aqui retrabalhados a
partir de textos elaborados pelas autoras do projeto para a 1a e 2a proposta do projeto Janelas de Cada Um
(em 1998 e 2000 / realização institucional: Grupo Confabulando Contadores de Histórias) e 1a proposta do
projeto Janelas Cruzadas (2004 – 2005 / realização institucional: Instituto Pé no Chão - IPC). Os textos
referentes ao projeto que se encontrarem sem itálico, foram escritos por Isabel Reis a partir das interações
realizadas nas atividades e reuniões com os sujeitos parceiros do projeto.
41
iniciou suas atividades na Escola Municipal Santos Anjos, localizada na cidade do Rio
de Janeiro no bairro do Leblon – circunvizinha da comunidade Cruzada São Sebastião.
Construída em meio a dois bairros que acolhem os favorecidos – Ipanema/
Leblon, a Cruzada foi idealizada por D. Hélder Câmara [1957], para abrigar os
moradores da antiga Favela do Pinto. Considerada uma favela de asfalto, apesar de ter
sua estrutura na forma de prédios, totalizando 10 blocos, esta comunidade sofre os
mesmos problemas que encontramos nos morros da cidade do Rio de Janeiro. Tráfico,
mortes, roubo, famílias atravancadas num só apartamento que não oferece espaço para
tantas gerações conviverem juntas, são alguns aspectos que fazem parte da memória e do
cotidiano desses moradores.
Ao longo de sua história, a Escola Municipal Santos Anjos passou por
momentos conturbados na relação com a comunidade. Depredações, insultos e agressões
foram constantes nas primeiras gestões da Santos Anjos. Mas já há alguns anos a
diretora atual conseguiu modificar a situação e melhorar a qualidade desta relação.
Contudo, barreiras foram estabelecidas e acreditamos que o projeto tem ajudado a escola
a fortalecer elos que significam ganhos para ambos: escola e comunidade.
O primeiro público alvo do projeto foi a Escola Municipal Santos Anjos e seus
sujeitos - crianças, professores, funcionários, direção e pais dos estudantes. Trabalhamos
o resgate da identidade, na valorização das histórias dos sujeitos participantes do projeto
e de seus familiares. Nos grupos de estudos dos professores, refletíamos os retornos que
esta abordagem com a memória pessoal e social traz para o dia-a-dia da sala de aula e a
importância de utilizarmos as diferentes linguagens artísticas no processo educacional.
Os resultados ao fim de um ano do projeto Janelas de Cada Um foram
animadores, o número de crianças repetentes tinha caído consideravelmente; foi possível
também perceber uma potencialização qualitativa das produções textuais dos estudantes.
O uso das múltiplas linguagens e do corpo como linguagem, no processo de pensar e
expressar subjetividades em interação com o mundo e com o outro; a reflexão crítica; a
afetividade, foram se fazendo presentes na sala de aula e no espaço escolar.
O projeto reforçou a relação dos familiares dos estudantes com a Escola, de
maneira a favorecer que os pais estivessem mais presentes na vida escolar de seus filhos,
também quando refletida no cotidiano familiar e social.
42
Em 1998, iniciamos também ações na comunidade Cruzada São Sebastião com
crianças e jovens. Conhecemos, através da Associação de Moradores, a professora
Márcia Ferreira, que por ser moradora da comunidade mostrou entusiasmo em trabalhar
conosco. Márcia virou nossa agente comunitária e grande parceira ao longo de todo o
projeto.
Através das crianças matriculadas na Escola Municipal Santos Anjos –
moradoras da comunidade – e seus familiares que participavam das atividades realizadas
pelo projeto na Escola Santos Anjos, estabelecemos vínculos com a comunidade e
iniciamos uma ação dentro deste espaço a partir da doação de uma caixa de livros
infantis. Neste momento, inauguramos na comunidade um espaço para atividades que
visavam atender às crianças que já conhecíamos da escola, mas principalmente aquelas
que não freqüentavam nenhuma escola e que perambulavam pelos blocos, sem rumo
certo.
Com as atividades propostas na comunidade, crianças e jovens de 1 a 15
anos convivem juntos e nesta socialização entre tensões e aconchegos exercitam
aspectos como o respeito ao ritmo, às necessidades, aos valores às maneiras, à
cultura, às lógicas de cada sujeito que, integrados a este espaço, convivem
exercícios de solidariedades, de respeito às diferenças e de compartilhas. Em
1999 crianças que freqüentaram as ações do projeto na comunidade e não estavam
matriculadas em escolas formais foram incluídas em unidades escolares formais.
A direção da Escola Municipal Santos Anjos, assim como também a coordenação
e algumas professoras da fase inicial do ciclo à 4a série16, assumiram o projeto, como
possibilidade de pensar educação, refletindo ideologias e metodologias no
entrelaçamento da prática à teoria. Em janeiro de 2000, o projeto deu início na
comunidade a um trabalho com os idosos, resgatando a história local e
construindo meios que valorizassem e viabilizassem a interação entre jovens e
idosos.
Janelas de Cada Um, foi um título escolhido como uma metáfora afinal,
janelas são espaços que permitem visões múltiplas. Nas janelas nós vemos e
Em 1998 a Escola Municipal Santos Anjos ainda funcionava com a referência à CA (alfabetização); 1a e 2a
séries.
16
43
somos vistos. Não podemos esquecer que uma só construção pode trazer várias
janelas na sua composição. E cada uma delas, ainda que componha um mesmo
objeto, guarda ou revela imagens diferentes por não se encontrarem num
mesmo ângulo de visão.
Foi ouvindo e conversando com freqüência que o projeto foi
descortinando algumas janelas dos sujeitos participantes, no exercício contínuo
de conhece-los e sintonizar as propostas do projeto aos desejos e necessidades
dos sujeitos participantes, sem perder o foco dos objetivos e propostas do
Janelas de Cada Um.
No intuito de sabermo-nos parte que constitui o mundo, podendo
interagir de forma construtiva e respeitosa com o meio, é importante atuarmos
como sujeitos, conhecermos nossa história e suas complexidades de relações.
Na tentativa de entendermos nosso contexto com suas ambivalências, podemos
exercitar na socialização, ações transformadoras; educativas; sociais e políticas.
Neste sentido, Benjamim nos chama a atenção para as tensões, para o não
esgotamento de significados nas relações e acontecimentos do mundo, que nos
exigem olhos atentos para não sucumbirmos ao pensamento único, ao modelo e
racionalidade hegemônica. Poeticamente, ele nos diz que a arte do narrador é
também a arte de contar, sem a preocupação de ter que explicar tudo; a arte de reservar
aos acontecimentos sua força secreta, de não encerra-los numa única versão.17
Foi com este objetivo que desenvolvemos em 2003, com o apoio de doadores
individuais e da Fundação Abrinq/ Programa Crer para Ver e Natura Cosméticos, uma
publicação na forma de um Almanaque.
A valorização dos saberes e da memória dos sujeitos que convivem na Escola
Municipal Santos Anjos e na comunidade Cruzada São Sebastião, foi sistematizada
num registro que se propõe significativo não somente para aqueles que têm suas
histórias narradas e reconhecidas como valorosas, mas por possibilitar que outras
pessoas possam se identificar; fazer consultas de questões cotidianas, consultas
17
GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p. 59.
44
históricas como o registro da memória local sob a ótica dos moradores; intercambiar
crenças, sabedorias construídas na vida, remédios caseiros, costumes... como também
possibilitar que sujeitos diversos relembrem suas próprias memórias, ressignificando-as
nos contextos das atualidades.
É importante ressaltar que este Almanaque traz registradas histórias dos sujeitos
da Escola Municipal Santos Anjos e da comunidade Cruzada São Sebastião e neste
sentido, faz-se fundamental, viabilizar a circulação destes acervos, retornando-os para o
espaço escolar e para a comunidade, como material pedagógico.
A idéia do Almanaque surgiu quando eu cursava uma especialização em
Leitura: Teoria e Práticas, sob a coordenação de Eliana Yunes e Vera Souza
Lima, na Universidade da Cidade, no ano de 2000/ 2001. Francisco Gregório
Filho, orientador da Multigrafia18 – texto de conclusão do curso, sugeriu-me que
escrevesse o trabalho final na forma de um Almanaque.
Como o tema escolhido para a Multigrafia era o registro reflexivo da
experiência com o grupo de idosas da Cruzada São Sebastião através das ações
do Projeto Janelas Cruzadas, sugeri ao orientador da pesquisa que
escrevêssemos o trabalho de finalização da especialização numa linguagem o
mais poética/ reflexiva e simples possível, atentos na organização de um
documento que mais tarde seria usado como fonte para a construção do
Almanaque, atendendo assim ao nosso desejo de fazer na academia um
trabalho que pudesse ser devolvido aos sujeitos co-autores da pesquisa.
Sabendo que para realizar o Almanaque necessitávamos de uma
estrutura que viabilizasse profissionais para, em equipe, realizar o projeto
gráfico, a realização de fotolitos e a impressão, as coordenadoras do projeto
Janelas de Cada Um – Isabel Reis e Helena Jacobina – aproveitaram recursos do
próprio projeto e doações de amigos, para junto a Francisco Gregório Filho
18 Isabel Noemi Campos Reis propôs ao curso de especialização chamar o trabalho de finalização de curso
de Multigrafia, por acreditar que ao refletir e organizar vivências realizadas por um grupo, na forma de um
trabalho monográfico, cria-se uma dicotomia entre a afirmação de uma grafia feita por uma única autoria e
escrita e, a crença de que ao organizar reflexões coletivas, faz-se impossível localizar a autoria em apenas
um nome. Também, a estudante propõe a grafia do texto através de imagens, fotografias, cartas, bilhetes,
etc. Daí o termo multigrafia, pela autoria em várias vozes e escrita em diversas grafias. Título do trabalho:
Marcas e Marcos – Cruzando a vida de mulheres idosas da Comunidade da Cruzada São Sebastião/ ações
de mediar.
45
realizar em 2003 o Almanaque Janelas Cruzadas – no 1, aproveitando textos e
reflexões da Multigrafia.
Este impresso foi feito numa estética que propõe um movimento
interativo entre o leitor e o texto de forma não linear, possibilitando iniciar e
retomar a leitura em qualquer página, brincando com os espaços/ tempos não
lineares que se fazem corporificados pelos diversos narradores que dialogam
óticas, éticas, épocas e estéticas plurais.
Também o Almanaque faz parte da vida de muitas das senhoras
participantes do projeto. Algumas destas senhoras tiveram neste estilo literário
seus primeiros contatos com as letras. O Almanaque lida com diversos
assuntos, em diálogo com o cotidiano. Assim, através de jogos, histórias,
horóscopos, receitas, memórias... fomos contando a vida, os valores, as crenças,
os saberes, os sabores e os des-sabores destas senhoras, dos seus vizinhos da
comunidade Cruzada São Sebastião e dos sujeitos da Escola Municipal Santos
Anjos.
A partir de 2004, o projeto passa a chamar-se Janelas Cruzadas por sua
necessidade de cruzar janelas, criando uma rede de interações com o objetivo de
proporcionar o fortalecimento do espaço de educação informal na Cruzada São
Sebastião e a disseminação da experiência realizada na Escola Municipal Santos
Anjos para outras unidades, outras realidades e outras necessidades escolares
da rede municipal.
Neste sentido, desde 2004 o Janelas Cruzadas tem realizado uma parceria
com a Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro,
fortalecendo uma gestão que se faz na coletividade entre a assessoria Especial
da Secretária de Educação do Município do Rio de Janeiro; as Diretorias de
Educação Infantil e de Ensino Fundamental e entre a 2a CRE, coordenadoria
responsável por 13 escolas municipais parceiras do projeto. Esta gestão se
efetiva na interação continua entre projeto, SME, 2a CRE e diretoras, professoras
e coordenadoras pedagógicas das escolas parceiras.
46
O projeto Janelas Cruzadas tem como Eixos Referenciais as Múltiplas
Linguagens, as Problematizações e a Memória. Estes eixos pretendem permear
todas as propostas e ações. Através das Múltiplas Linguagens, buscamos
trabalhar diversas maneiras de lidar com problematizações acerca do cotidiano
da sala de aula, do cotidiano escolar, do cotidiano da comunidade, do cotidiano
familiar e social.
A valorização de Linguagens Plurais, como instigação de outras formas
de interagir, utilizando o corpo inteiro para pensar, construir idéias, perceber e
interpretar o mundo, integrando as Memórias pessoais e sociais ao processo de
ensino/ aprendizagem, à construção de conceitos e saberes e ao exercício
reflexivo de valores humanos éticos.
As múltiplas linguagens como instrumentos potentes no alargamento do
olhar às peculiaridades do estudante, das suas produções e suas relações com o
outro e com o meio. Linguagens e lógicas plurais que não são acessadas quando
se trabalha apenas a racionalidade e as verdades hegemônicas.
No exercício de problematizar questões referentes ao espaço escolar;
como também problematizar as reminiscências dos atores desta instituição
entrelaçando-as ao currículo e construção de conceitos e saberes, buscamos
vitalizar a escola e seus sujeitos na busca de ações que reintegrem a escola à
vida.
Estes três eixos referenciais – Múltiplas Linguagens; Problematizações e
Memória – são instrumentos que viabilizam multiplicidades de percepções e
expressões através do exercício da escuta, do olhar, do tato, da observação, do
olfato... como formas de interagir com a diversidade e com o pensamento
plural.
A possibilidade do sujeito exercitar - nos seus diversos modos de pensar;
expressar; comunicar; refletir - a afetividade; a valorização de si e do outro; a
reflexão critica, através da ludicidade e da superação na consciência também de
que não escutamos tudo, não olhamos tudo e que cada sujeito tem uma
experiência própria ao interagir com o mundo e suas relações.
47
O projeto Janelas Cruzadas busca o fortalecimento dos sujeitos
participantes das ações propostas nas Escolas parceiras e na comunidade
Cruzada São Sebastião, através da prática da cidadania que remete à tomadas
de posições e exercícios de solidariedades. Faz-se importante uma ênfase à
formação continuada de professores e educadores, para que atentos às
complexidades, às subjetividades e às delicadezas do trabalho com crianças,
jovens e idosos de realidades distintas, estes profissionais possam lidar com
questões e sujeitos plurais em diálogo constante.
Ao referir-me ao professor, considero este quando em exercício de sua
plena docência em escolas formais. Ao referir-me ao educador, penso no sujeito
da educação quando em exercício da mediação de espaços educacionais
informais, como por exemplo as atividades freqüentemente desenvolvidas na
comunidade da Cruzada São Sebastião junto às crianças, aos jovens, aos idosos
e aos seus familiares.
Todas as ações do projeto têm como meta o exercício da autonomia, da
criticidade, da afetividade, na formação de sujeitos atentos às complexidades e
diversidades da rede social. Acreditamos que essa formação se dá não apenas
no espaço da escola, mas também em outros espaços sociais.
Ressaltamos então, a importância de espaços educacionais comunitários
extra-escolares inseridos em contextos carentes de referências construtivas e
positivas, que favoreçam o exercício de aspectos como a ética, incluindo nesta
exercícios de solidariedades; de respeito à diversidade, de criticidade; de auto
estima; de cidadania. Espaços educacionais não formais que podem também
ajudar no processo de inclusão de crianças e jovens em escolas formais,
estabelecendo elos entre famílias de crianças e jovens e escolas formais
circunvizinhas.
Os saberes, para manterem suas vitalidades, nos sinaliza Linhares, não podem
isolar-se nem da história das escolas, nem muito menos das práticas sociais, políticas e
48
econômicas e, sobretudo, da vida dos aprendentes e dos ensinantes que, afinal de contas,
alternam e confluem posições.19
As ações do projeto Janelas Cruzadas visam estimular professores e
educadores a utilizarem a potência dessa pluralidade de linguagens. Torná-los
mais íntimos da mediação de práticas transdisciplinares, na reflexão do Como
introduzir atividades provocadoras da curiosidade; da criticidade; das
múltiplas formas de perceber e expressar a si próprio e ao mundo, num
entendimento de sujeito como ser integral.
Na consciência crítica do Para quê / Com Quem / Porque / Quando, refletir o
Como e potencializar o professor na reflexão de possibilidades do pensar
metodologias, planejamentos e projetos que proporcionem à criança; ao
estudante; aos familiares; aos idosos; ao educador... o exercício de diferentes
formas de pensar, interagir e se expressar.
Na comunidade Cruzada São Sebastião, trabalhamos com dois grupos
específicos: um grupo de senhoras idosas e um grupo de crianças e
adolescentes.
Nos primeiros encontros com as senhoras idosas, quando o projeto ainda
se chamava Janelas de Cada Um, perguntávamos:
Qual o desejo do grupo?20
A resposta era quase uma unanimidade. Aprender a ler e escrever. O
grupo foi sendo instigado com questões que o levasse a concretizar o sonho da
Escola. Num exercício de constituírem-se sujeitos ativos e emancipadores21, fomos
provocando as senhoras para que conseguissem instrumentos favoráveis à
realização deste sonho de Escola. O grupo conquistou um espaço e uma
professora através da Paróquia da comunidade e há três anos está aprendendo
a ler e escrever.
LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades, p.18.
O grupo dos idosos começou com a presença de 3 ou 4 senhoras que freqüentavam o projeto
alternadamente. Hoje são 41 senhoras idosas que convivem em forma de encontros realizados em oficinas
diversas.
21 LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades, p. 19.
19
20
49
Mas a questão do projeto Janelas de Cada Um era uma leitura mais ampla.
Leitura de mundo, leitura crítica que instiga a participação do sujeito no meio em
que vive, com o pronunciamento de sua voz e gesto.
É importante registrar que foram estas senhoras que impulsionaram uma
nova metodologia ao Projeto Janelas de Cada Um (hoje Janelas Cruzadas)
transformando os encontros com as idosas - que aconteciam na sala da
Associação de Moradores da Cruzada São Sebastião - em oficinas volantes.
Aos poucos, necessidades dessas senhoras emergiram: o brincar, o
divertir-se em passeios, ao invés de ‘ficarem presas em uma sala fazendo coisas com
as mãos, fechadas e conversando sobre suas lembranças tão doídas.’22 Fomos
percorrendo vários espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, visitando
centros de cultura e arte não como turistas, mas produzindo conhecimentos,
conceitos, ampliando acervos e repertórios, rememorando e ressignificando o
passado.
Fomos construindo uma escola maior, rica de mundo. O tempo e as
experiências foram nos levando a construir novas necessidades: voltar à
comunidade da Cruzada para trocar com os jovens, com as crianças da Escola
Municipal Santos Anjos. Se reunir para refletir sobre o visto e revisto, nestes
encontros perambulantes.
Faz-se importante registrar que estas senhoras tiveram em suas histórias
de vida, um mediador na pessoa de D. Hélder Câmara. Sujeito atento ao
próprio compromisso político e social no papel de líder religioso. Garantiu-lhes
a possibilidade de continuarem morando perto de seus trabalhos, no bairro do
Leblon, onde elas e seus familiares eram porteiros, costureiras, babás,
domésticas das residências da elite/ Leblon e Ipanema.
Num momento político em que a intenção era deslocar os moradores da
atual Cruzada São Sebastião (antigos moradores da favela Praia do Pinto) para
uma periferia distante e sem estruturas, D. Hélder assegurou-lhes a
Informações retiradas de depoimentos das idosas, moradoras da Comunidade da Cruzada São
Sebastião.
22
50
possibilidade de manter seus espaços de trabalho e de moradia, fortalecendo
estes sujeitos também com a democratização e valorização da importância da
educação neste projeto de comunidade, desenvolvido e concretizado por ele a
partir da construção da comunidade Cruzada São Sebastião, em 1957 e do
Ginásio Comercial Papa João XIII - hoje Escola Municipal Santos Anjos. Ações
sociais realizadas em parceria da igreja Santos Anjos, onde D. Hélder
trabalhava como pároco e líder religioso/ social.
A luta de Dom Hélder, em contraposição à negação da possibilidade de
trabalho e estudo, me faz pensar na importância de pessoas atentas às
problemáticas e necessidades dos sujeitos que representam a classe baixa do
nosso país e do mundo, ou dos sujeitos outros que como aqueles, precisam de
mediadores para que retomem a potência de suas vozes e inscrevam suas
versões em circularidade. Ambivalências que tencionem a realidade hegemônica
através de narrativas de experiências sufocadas em mudez e esquecimento.
Como educadora e sujeito político, abraço-me a Benjamin e fotaleço-me
nas reminiscências de Jeanne Marie Gagnebin, quando nos fala das reflexões de
Walter Benjamin: A verdade do passado reside antes no leque dos possíveis que ele
encerra, tenham eles se realizado ou não. A tarefa crítica materialista será justamente
revelar esses possíveis esquecidos, mostrar que o passado comportava outros futuros
além deste que realmente ocorreu. Trata-se para Benjamin, de resgatar do esquecimento
aquilo que teria podido fazer da história uma outra história... tirar do silêncio um
passado que a história oficial não conta.23
Os males sociais, nos conta Barbier, alguns inexpurgáveis e trágicos, atirandonos para o abismo, imporão aos homens, movidos por esse ‘evangélio de perdição’ (...),
estarem cada vez mais preocupados e cada vez mais aptos a trabalharem juntos para
reduzi-los, exorcizá-los ou simboliza-los. (...) Eles estarão aí para incomodar os
pesquisadores que acreditam poder apreende-los com os seus pobres instrumentos
metodológicos e teóricos.24
*
23
24
GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p. 52.
BARBIER, René. 2002, p. 63 e 64.
*
*
51
No ano de 2002, recebi um convite do Conservatório Brasileiro de
Música/ Centro Universitário – RJ, para participar do projeto Buscando
Caminhos Através da Arte, realizado em algumas sedes da Fundação Leão XIII:
localizadas em Campo Grande, Itaipu e Fonseca. São albergues do Governo do
Estado do Rio de Janeiro, que acolhem adultos e idosos provenientes das ruas.
O projeto Buscando Caminhos Através da Arte aconteceu entre março e
novembro de 2002. Em agosto de 2003, o mesmo projeto retorna a estas três
áreas de atuação da Fundação Leão XIII num fortalecimento e continuidade das
ações iniciadas em 2002. Este retorno foi uma resposta às solicitações feitas
pelos próprios moradores da Fundação.
Oficinas de musicoterapia, artes plásticas, dramatização, corpo e
narrativas, são planejadas e realizadas em atividades com a coordenação, a
direção, os funcionários, os plantonistas e os moradores da instituição ou os
exilados de suas origens e histórias. 25 Estas oficinas são propostas de diálogos com
a Fundação Leão XIII e o seu funcionamento cotidiano.
No projeto Buscando Caminhos Através da Arte, meu trabalho como
educadora, artista e contadora de histórias, é trabalhar com a oralidade e as
narrativas que se fazem em múltiplas linguagens. A partir de histórias contadas
e trocadas, tento estabelecer diálogos com os moradores desses albergues, que
se encontram numa realidade desumana e desvitalizada.
Muitos desses senhores e senhoras tomam remédios que os deixam com
olhos caídos; outros nunca falam e, é comum que não tenham um fazer lúdico
ou expressivo no seu viver. Ficam em salas olhando as paredes vazias ou nas
áreas abertas com olhares perdidos, sem foco, sem atividade, sem construção.
Impotências afirmadas em gestos de solidão, em convívios naturalizados entre
tuberculoses, sífilis, aids que não são, em muitos casos, nem reconhecidos, nem
medicados ou acompanhados. Assistir à televisão ininterruptamente, sem
conversar sobre o visto e o revisto, faz-se como uma rotina.
25 Os funcionários da Fundação chamam os moradores deste estabelecimento de clientes ou usuários.
Quando me reportar a eles neste trabalho, estarei localizando-os como sujeitos exilados ou moradores (da
Fundação - CRS).
52
Pergunto-me constantemente: O que eles querem na vida? O que quero com
eles?
Percebo, que quero que eles possam deitar-se e sonhar, trocar com quem
está ao seu lado, alimentar-se de humanidade, de vida, de afeto, de expressão,
de significações, de respeito e não apenas comer e dormir. Espero vê-los
suavizando seus cotidianos, injetando vida naquilo que parece ser uma via de
morte. Mas também ajudá-los a reconstruírem a necessidade e vontade do eu
caçador de mim26, como um constructor social, histórico – existente como
possibilidade em cada um. Ainda que como Fênix, possamos refazermo-nos das
cinzas e potencializarmo-nos naquilo que há de mais ético e criador em nós
mesmos.
O meu objetivo neste trabalho com a Fundação Leão XIII/ Campo
Grande, é a interação com estes senhores e senhoras e, com esta instituição que
os acolhe ou os recolhe. Dialogar com suas dores e limites. Percebê-los e estar
atenta para saber quando introduzir histórias, brincadeiras, músicas, jogos,
desenhos, poemas... trabalhando o imaginário, os sonhos... no intuito de que
possam fazerem-se orgulhosos de si por recordarem-se construtores de saberes
e de vida.
O diálogo não é apenas uma técnica para conseguir melhores resultados, não é
uma tática para fazer amigos ou conquistar alunos. Isso não seria diálogo e sim
manipulação. Para Paulo Freire, o diálogo faz parte da própria natureza humana. Os
seres humanos se constroem em diálogo. Para ele, o momento do diálogo é o momento
em que os homens se encontram para transformar a realidade e progredir.27
Neste diálogo, faz-se fundamental estar atenta às brechas que
possibilitam o encontro da delicadeza com o rigor da não omissão. Tenho
aprendido e, confesso ser exercício constante, buscar formas delicadas e firmes
de dialogar com esta instituição e estes sujeitos exilados, na tentativa da
construção de convívios mais humanos e significativos.
26
27
Referência à canção do compositor Milton Nascimento.
GADOTTI. 1989, p. 46.
53
Como educadora e artista, quero realizar um trabalho de educação, onde
não só exercite meu olhar, mas empregue meu corpo e sentidos em favor do
outro. Um trabalho onde a consciência crítica esteja presente e a transformação
seja uma meta.
*
*
*
Em 2002, chegou até as minhas mãos uma carta escrita por um andarilho
que percorre o bairro de Copacabana, num trajeto entre a rua Hilário de
Gouveia e a Av. Atlântica. Este senhor foi criado por uma família judia
abastada, estudou em instituições educacionais até certa época e aprendeu com
fluência o inglês por ser umas das línguas de uso no convívio familiar.
Sr. Luiz, um andarilho que hoje vive nas imediações do bairro de
Copacabana, morou também nas ruas de São Paulo, Curitiba e há alguns anos
mora nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Dorme na praia durante a manhã,
passa as noites acordado e estuda em bibliotecas públicas. Gosta muito de
literatura e especialmente de Dostoievski. Diz ser a rua o seu lugar de maior
aprendizado.
O andarilho, Senhor Luiz, escreveu uma carta para a administração da
paróquia que freqüenta: Paróquia de Nossa Senhora de Copacabana – Missão
Popular, reivindicando a distribuição de alimentos para os miseráveis e,
aproveitou este documento escrito, para oferecer seus serviços como tradutor.
Os membros da paróquia lhe ofereceram um lugar em um albergue, para que
ele se retirasse da rua. Ele preferiu continuar na sua condição de andarilho a
estar em casas de recolhimento.
Em anexo, coloco a carta citada. Foi esta correspondência que estabeleceu
o primeiro contato direto entre o andarilho e a paróquia. A carta revela formas
de viver daqueles que estão na rua e suas necessidades. Traz também o outro
mundo, o dos homens civilizados. Lendo o seu texto, identifico uma polifonia de
vozes. Lembro-me do autor citado como um de seus preferidos e, penso na
complexidade que vivemos. A carta do Sr. Luiz faz com que me volte, numa
54
atitude de escuta, interação sensível e troca, às pessoas que se encontram nas
ruas, resistindo aos albergues.
55
alguns portos e um horizonte que se alarga
capítulo 3
56
Alguns portos e um horizonte que se alarga:
Objetivos
Acreditando que a formação de professores não se dá exclusivamente
pelas passagens institucionais, volto a me interrogar:
Como nossas memórias pessoais e sociais podem nos ajudar a dialogar
com a vida e a construir Escolas onde todos e todas possam empenhar-se
numa inclusão crescente? O que significa incluir a todos?
No avesso dessas procuras, que fecham na escola e nos professores os
saberes docentes, talvez pudéssemos indagar se nestes não estariam
incorporados tanto os saberes dos que já foram à escola, como daqueles
outros que nunca estiveram nela. Tanto os saberes populares, domésticos,
familiares, religiosos e políticos, como os eruditos, científicos, filosóficos,
artísticos, tecnológicos...28
Pretendo fazer um entrelace entre os interlocutores desta pesquisa que
pensam/ vivem educação em seus fazeres profissionais (aqui representados
por professores e gestores das 13 Escolas parceiras do projeto Janelas
Cruzadas e SME – RJ) e senhores e senhoras que se encontram exilados na
Fundação Leão XIII, como também moradores de rua que resistem aos abrigos
e casas de recolhimento.
Proponho, utilizar-me destas experiências colhidas e construídas em
polifonia com estes senhores e senhoras que aqui representam uma das tantas
formas de exclusão social, para problematiza-las em textos que possam servir
de instrumento de favorecimento, a reflexões referentes ao sistema escolar; à
gestão de abrigos públicos e a outros sujeitos e espaços institucionais que
possam se interessar por este trabalho aqui sistematizado em reflexões
dialógicas.
LINHARES, Célia Frazão Soares. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. In:
Movimento: revista da faculdade de educação da universidade federal fluminense. Profissão docente:
teoria e prática no 2, setembro de 2000. Publicação semestral. P. 37.
28
57
No ensejo de que esta pesquisa possa colaborar na ação de repensar
estruturas administrativas, pedagógicas, metodológicas, humanas e políticas
em escolas formais e abrigos, proponho debruçar-me às narrativas dos que
não puderam entrar ou permanecer na escola formal, atenta a percepção de
ambigüidades e contradições, na busca de pontes entre os que estão dentro e
os que estão fora da Escola. O que falam estas pessoas excluídas e como
suas narrativas podem ser problematizadas de maneira que ecoem reflexões e
ações de transformação ética, criadora e inclusiva, nas escolas.
Nas frestas da instituição escolar, a Escola procura outros sentidos para
se organizar e se legitimar socialmente: A escola da vida, está aí, penetrando e
pedindo espaços na Escola.29
Em interação com memórias, acervos, narrativas, reminiscências de
sujeitos aqui representantes da exclusão Escolar, estarei à procura de fissuras
presentes nesta instituição, na busca de favorecer a construção de propostas e
práticas de uma educação inclusiva e plural.
E como nos sinaliza Nanci Nóbrega, precisamos estar atentos e
cuidadosos com trabalhos que exigem complexidades, já que como
educadores/ pesquisadores somos conhecedores de que é um trabalho
maldito/ bendito este com acervos: implica competência científica e clareza
política. Implica refletir e praticar competentemente a preservação e a
organização, aquilo que dá origem aos registros, às marcas do caminhar
humano – o atributo técnico deste fazer. E, ao mesmo tempo, refletir e praticar
seu potencial modificador, o de transformar a realidade – seu atributo político.30
Nesta interligação entre os que estão fora e os que estão dentro da
Escola, busco pistas e caminhos que possam sugerir e apoiar políticas públicas
voltadas para a importância da criança e da velhice. Esta, no que diz respeito
aos abrigos; aquela, no que diz respeito à Escola.
A minha trajetória de vida como educadora, será assumida como um
instrumento de mediação deste diálogo em circularidade de vozes. Como apoio
reflexivo e critico, estarei atenta a instigações e ponderações provocadas pelos
29
30
LINHARES, Célia. Observações da orientação coletiva/ 2o semestre de 2004.
NÓBREGA, Nanci. 2002, p. 127.
58
estudos dos teóricos e pensadores que se fazem presentes nesta pesquisa
dialógica.
O projeto desta pesquisa tem como objetivo fazer-se escuta,
observação, percepção de complexidades, na tentativa de encontrar rumos,
direções, pistas que instituam caminhos para outras formas de se educar e de
constituir Escolas plurais e includentes, em interação com a vida.
Como estas histórias compartilhadas podem flagrar caminhos para o
fortalecimento de Experiências Instituintes na educação popular?
59
pontes entre os que estão fora e os que
estão dentro da escola formal
capítulo 4.
60
Pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da Escola:
Metodologia
Quais conectivos me levariam a uma metodologia aberta, plástica;
originária do barro por se metamorfosear entre diálogos com os movimentos
multiformes e multidirecionais da vida?
Procurando respostas para os mistérios da existência, o homem, já na
pré-história, caminha e interage com o entorno, movido por uma pergunta
primordial que atravessa toda a existência humana.
Questão esta, que experienciada entre gerações e gerações, através de
modos plurais, se mantém a mesma, por milênios e milênios:
Qual o sentido do - por que - e do - como - das coisas?
Na tentativa de respondê-la, o homem vai configurando formas e se reconfigurando, através de numerosas tentativas de perceber os sentidos da vida.
E são justamente eles – os sentidos – que nos possibilitam contemplar
hoje, as obras rupestres feitas há 50.000 anos pelos nossos ascendentes e,
percebermo-nos comovidos, tocados e re-ligados em nosso misterioso âmago.
Penso na beleza, que ultrapassa os aspectos funcionais mesmo naquelas
configurações oriundas das necessidades as mais pontuais. Esta beleza
fundamental, como nos diz Ostrower (1998), capaz de redimensionar nossas
relações e vínculos.
Volto-me às nossas cavernas e galerias, magicamente gravadas por
imagens que acreditávamos ajudar-nos na difícil e fundamental tarefa da caça e,
inspirada por Fayga, penso na extrema beleza desses registros.
A necessidade de o Homo Sapiens capturar o outro como fonte de
alimento vital e, a admiração e respeito pelo vigor, pela graciosidade, pelos
mistérios e pela força deste outro, dá a estas gravuras, a dimensão da beleza que
61
carrega vínculos, afetos, necessidades, respeitos e mistérios. A beleza que
acorda em nós o senso estético, como conseqüência de uma ética.
E é apoiada nesta plasticidade que nos re-configura a cada instante, que
busco uma metodologia atenta aos sentidos expressos e impressos; escritos e
inscritos em mim e, nos sujeitos e espaços com os quais me faço em
interlocução.
Metodologia aberta porque se metamorfoseia, atenta à importância de
refletir a produção dos sentidos, em cada gesto possível de ser reelaborado, resignificado ou afirmado, através de encontros e relações polifônicas.
Metodologia que nos convida a entranharmo-nos e a estranharmos os
nossos próprios movimentos. Para que isso se faça possível, destaco a
importância em nos distanciarmos de nossa emotividade crua, ainda que
extremamente ligados a ela, nos façamos ligados ao outro. Mas, através deste
distanciamento, a possibilidade de contemplarmos a nós mesmos e ao entorno,
na perspectiva da contemplação como uma ação que reflete, que afeta e que se
possibilita afetar-se.
Neste sentido, como instrumentos metodológicos e pedagógicos, tenho
organizado encontros com entrevistas, contação de histórias, bate papos informais
e dinâmicas que utilizem múltiplas linguagens como formas de promover
interações com os sujeitos interlocutores desta pesquisa, na busca de estimular a
expressão do fluxo de rios contidos, onde se coagulam memórias, narrações e vozes de vários
tons e matizes.31
Na busca de espaços de interlocução entre as realidades plurais com as
quais interajo, proponho-me a interagir com os sujeitos e com os espaços
institucionais interlocutores, sustentada em alguns aspectos, tais como:
→ a importância da memória como possibilidade de historicizar a
história oficial, recontada, à medida em que tencionamos verdades e
Sugestões realizadas pela professora e orientadora Célia Linhares, na orientação coletiva – 2o semestre
de 2004.
31
62
acrescentamos à esta história, narrativas de experiências muitas das vezes
desconsideradas como valorosas.
→ a inclusão, na perspectiva da escuta e do pronunciamento de todos e
de todas e, o respeito pelos pontos de vista, experiências, lógicas e demandas
plurais, de maneira que as hierarquias sociais possam experienciar seus papeis,
em convite para que este outro se faça presente com sua voz, ótica, linguagem e
acervos próprios.
→ o exercício de problematizar o cotidiano, tencionando questões, ações
e acontecimentos no sentido de podermos ressignificá-las e a partir delas, estar
atentos à importância de se re-configurar metodologias, pedagogias, idéias e
procedimentos, alertos às tantas demandas que se nomeiam como importantes
e que outrora, eram desapercebidas pela possível imposição de questões que
não diziam respeito às demandas reais de cada grupo.
→ as múltiplas linguagens, como possibilidade de lançar perguntas à
nós, ao outro e ao nosso cotidiano, em convite para que as reflexões possam ser
feitas através de instâncias que instiguem o sujeito a vivenciar experiências
inteligíveis através da suas múltiplas potencialidades sensoriais, ordenando-se
e expressando-se em dimensões que expandam o pensar para além da
racionalidade.
→ a importância da estética, como dimensão ética que dá materialidade à
sensibilidade ordenadora e significadora do ser humano, em respeito às formas
plurais pelas quais são experienciadas a capacidade humana de criar formas
expressivas.
→ a consciência de que a própria natureza do ato de criar é a
possibilidade de correr riscos, o que torna imprescindível a compreensão desta
categoria do risco como uma intenção primordial: arriscar-se sempre, como um
exercício ético frente às implicações do viver.
→ a incompletude que nos leva a ampliarmo-nos e refazermo-nos com o
outro, em convites de aprendizados, de cuidados e de atenções para con-
63
fiarmos na importância dos processos – como construções e devires – e nas
pessoas, como relações afetuais imprescindíveis.
→ os limites como áreas indicativas de urgências e de demandas. Sem
eles, talvez se fizesse mais difícil percebê-las, por estarem - estas demandas e
urgências – muitas das vezes invisíveis diante das tantas acomodações
cotidianas. Também a importância do limite como fonte inesgotável para a
criação de outros modos e de outras perspectivas.
→ as entrevistas ou depoimentos registrados foram reflexos das ações
pedagógicas realizadas por Isabel Reis através dos projetos Janelas Cruzadas e
Buscando Caminhos Através da Arte e, portanto, foram sempre realizadas após
vínculos serem estabelecidos entre a arte-educadora pesquisadora e os
interlocutores.
No sentido de melhor compreender as complexidades da relação com
cada interlocutor, as próprias interações se faziam como indicativos de quais
questões poderiam e deveriam ser propostas
aprofundamento
desses
mesmos
vínculos.
como instigadoras
Questões
que
de
indicavam
possibilidades de refletir e de tensionar a realidade de cada interlocutor, sempre
atenta aos limites indicados pelos interlocutores e pelo espaço do qual fazem
parte. Desta maneira, as questões geradoras das entrevistas e das atividades
propostas, iam se configurando durantes as próprias ações pedagógicas dos
nossos encontros.
→ a retidão para que a pesquisa de dissertação de mestrado não se faça
protagonista, visto que a metodologia desta pesquisa é uma conseqüência dos
objetivos de cada ação pedagógica experienciada entre mim, como educadora/
artista e, os espaços nos quais trabalho, através de diálogos polifônicos com os
sujeitos interlocutores. E são todos esses, os protagonistas que sinalizam
demandas para que a metodologia se re-configure através de formas grávidas
de sentidos.
64
→ Nesta mesma perspectiva, faz-se imprescindível registrar que, as
instituições parceiras e interlocutoras5 se empenharam para que transformações
não fossem programadas, mas resultassem de processos transformadores das
partes e do todo. Ao invés de programações, deixar que as demandas dos
professores; dos estudantes; das instituições; dos senhores e senhoras
moradores dos abrigos, das ruas e da comunidade Cruzada São Sebastião e, a
própria vida, programassem cada passo metodológico.
→ atentos à questão da autonomia, os professores; os estudantes; os
senhores e senhoras moradores do abrigo CRS e as senhoras moradoras da
comunidade Cruzada São Sebastião, tiveram respeitado, o direito de serem os
primeiros a terem acesso aos relatórios e aos textos que registravam
reflexivamente questões referentes às ações pedagógicas dos projetos Janelas
Cruzadas e Buscando Caminhos Através da Arte.
Da
mesma
maneira
eram
estabelecidas
relações
com
outros
interlocutores, como as ações realizadas nas ruas pela educadora Isabel Reis,
por serem importantes na ampliação da compreensão da educadora em relação
a problemáticas que surgiam nas interações com senhores e senhoras da Leão
XIII, ações estas realizadas de forma voluntária independente.
Apenas depois que cada uma dessas pessoas – co-autoras – tiveram
acesso a cada texto elaborado (a partir dos seus depoimentos) e após os ajustes
sugeridos pelo co-autor serem realizados, estes textos, quando liberados por
estes co-autores, eram transformados em capítulos para a pesquisa dissertativa
ou, em relatórios mensais e semestrais para o projeto Janelas Cruzadas.
Somente após este processo se efetivar, os capítulos e relatórios são6
apresentados para as instituições parceiras (Secretaria Municipal de Educação,
2ª CRE, Fundação Leão XIII, Conservatório Brasileiro de Música e UFF).
Programa Crer para Ver; Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente; Natura
Cosméticos; Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro; 2ª Coordenadoria Regional de
Educação-RJ; Conservatório Brasileiro de Música; Fundação Leão XIII e Instituto Pé no Chão
6 Ainda hoje a SME-RJ e a 2ª CRE, aguardam a leitura e reflexão dos relatórios por parte das professoras,
para então ter acesso aos mesmos. Em comum acordo com as partes, foi estabelecido um prazo para que a
leitura das docentes e possíveis correções e ajustes se façam.
5
65
A cada texto escrito nesta dialogicidade, procuro meios que garantam o
respeito à vontade de cada co-autor ter – ou não – ter seus escritos coletivos em
circularidade, entre os diversos espaços de interlocução e entre os diversos
sujeitos co-autores desta pesquisa. Quando autorizada a circulação, após o
intercambiamento e a reflexão dos textos apresentados nos diversos espaços
interlocutores se efetivar, eles retornam aos espaços de origem com outros
olhares reflexivos que podem se somar ao texto e mais uma vez, circular, na
busca de que essas narrativas possam reverberar no cotidiano de cada
espaço/sujeito participativo e co-autor.
A única exceção foi o Programa Crer para Ver que, antes de todos os
demais parceiros, teve acesso aos relatórios mensais e semestrais organizados
por mim, na condição de coordenadora do projeto Janelas Cruzadas7. Material
este que reúne reflexões dos professores e estudantes, parceiros do projeto
Janelas Cruzadas, e de membros da equipe do projeto. Isto se deu, visto que
sempre estávamos com as agendas tensionadas por prazos de prestações de
contas que caso não fossem cumpridos junto ao financiador, poderia ter
interrompido – ainda que temporariamente – o desembolso dos recursos e
conseqüentemente, comprometido a realização do projeto. Mas esta exceção foi
feita em acordo com as professoras parceiras e com o órgão responsável pelas
escolas públicas parceiras do Janelas Cruzadas.
Embasada nestes aspectos metodológicos optei por dividir a dissertação
em três partes, que se organizam da seguinte maneira:
Parte I
cap. 1. Rumos iniciais - os que não couberam na escola
querem
abertura
entrar:
das
relações
portas
de
sociais.
poder
no
Introdução.
Coordenação do projeto Janelas Cruzadas:
1º semestre de 2004: Isabel Noemi Campos Reis e Helena Jacobina Campos.
2 semestre de 2004; ano de 2005 e ano de 2006: Isabel Noemi Campos Reis.
7
fechamento
e
na
É apresentada a
66
problematização da pesquisa como proposta de refletir a política educacional
brasileira através da aproximação de algumas instituições que lidam com
idosos marginalizados - hoje moradores de abrigos públicos e de ruas - na
perspectiva de tensionar as complexidades destas organizações com questões
hoje presentes no cotidiano escolar. Através do confronto destas realidades,
buscar dimensões que ajudem a compreensão de mecanismos opressivos no
sentido de abrir portas ou brechas favorecedoras de políticas inclusivas de
qualidade.
cap.
2.
Soltando
as
velas,
mas
para
onde
ir?
Justificativas. Reflexões sobre algumas complexidades da escola formal
e das escolas que são os movimentos cotidianos da informalidade do viver. A
partir da relação da pesquisadora com estes contextos que se fazem como
espaços de aprendizagens, são apresentados também o Projeto Janelas Cruzadas
e Buscando Caminhos Através da Arte, como espaços que favorecem a interlocução
desta pesquisa com educadores e estudantes de 13 escolas da rede Municipal da
cidade do Rio de Janeiro, como também com senhores e senhoras moradores de
abrigos públicos do estado do Rio de Janeiro; moradores das ruas; e moradores
da comunidade da Cruzada São Sebastião, favela situada no bairro do Leblon.
cap. 3. Alguns portos e um horizonte que se larga.
Objetivos.
O porque dessas narrativas plurais como matéria prima
fundamental, para refletir a respeito das políticas públicas educacionais.
cap. 4. Pontes entre os que estão fora e os que estão
dentro da escola formal. Metodologia. A pesquisadora apresenta
os pilares metodológicos desta pesquisa e das ações pedagógicas realizadas
com os espaços/ sujeitos interlocutores: co-autores desta pesquisa.
cap. 5. Companheiros de travessias e de travessuras.
Revisão de literatura. São apresentados alguns teóricos que também se
farão presentes como interlocutores, dentre os quais: Célia Linhares, Paulo
Freire, Zygmunt Bauman, Benjamin, Giorgio Agamben, Ecléa Bosi, Adélia
Prado, Carlo Ginzburg, Fayga Ostrower, dentre outros.
67
Parte II
caps. 6, 7 e 8. *Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo
com
os
raízes
sujeitos
e
da
pesquisa
alvoradas
/
/
*Mão
*Buscando
na
massa,
caminhos.
buscando
Narração
e
problematização de algumas experiências vivenciadas com senhores e senhoras
do Centro de Recuperação Social/ Campo Grande - Fundação Leão XIII.
caps. 9. Vida em retalhos. Aqui é o próprio sujeito que pega a
caneta e narra a sua história que vai deste passagens por escolas, trabalhos
informais e formais, até a estada pela rua e pelo CRS (abrigo público), como
moradas.
caps. 10. No tabuleiro do Brasil – entre versos e
reversos. Narrativas de senhores abrigados e de funcionários do CRS –
unidade Campo Grande, se entrelaçam no sentido de refletir aspectos políticos
referentes a esta instituição.
caps.
11.
Outras
formações.
Experiências vividas por um
senhor, morador de rua há 40 anos, nos mostra peculiaridades de um sistema
precário no que diz respeito às condições básicas de vida, mas que ao mesmo
tempo se faz como sistema vanguardista, no que diz respeito à reinvenção de
metodologias e de aprendizagens sustentadas pela arte e por redes de
solidariedades. Caminhos para escolas e abrigos repletos de pontes, de ruelas
de estradas e de vielas entrelaçadas com a vida. Ao mesmo instante, este
capítulo traz conversas entre uma educadora e um inspetor policial, revelando
estratégias para a formação militar da atualidade, sustentada pelo terror e pelo
medo oriundos do poder e influência da cultura do tráfico, que junto a indícios
de desejos e possibilidades de uma escola maior, plena de vida e acolhimentos,
nos fortalece na busca da afirmação da escola formal como referência
fundamental para a formação.
caps. 12. Laços que enlaçam. Fazendo-se como um fio que
convida entrelaces de experiências como tessituras, a pesquisadora Isabel fia
68
especificidades de sua própria história em consonância com saberes, sabores e
dissabores de sujeitos e de instituições plurais, na busca de sentidos para uma
conversa polifônica que sonha com a vida como possível para todos e todas.
Parte III
caps. 13. Para não concluir o bordado. Inspirada por uma
carta dirigida a uma igreja e escrita por um morador de rua que reivindica
cuidados para os cidadãos moradores das calçadas, a pesquisadora Isabel Reis
vai pinçando questões destacadas por este senhor, como urdimento das tantas
questões explicitadas pelos interlocutores desta pesquisa, no sentido de
debruçarmo-nos a complexidades que envolvem a questão da aprendizagem;
da evasão escolar; dos conteúdos escolares; das práticas metodológicas... como
vias que nos convidam e nos instigam a estarmos mais alertas, abertos e
fortalecidos na pavimentação de outras escolhas que possam configuram outras
escolas e pedagogias.
.
.
.
Fortalecida por estas experiências polifônicas, debruço-me, como
educadora e artista, ao potencial da arte, como instrumento poderoso para tocar
as sutilezas do ser, inscritas em seu corpo, alma, espírito e expressas ou impressas
no imaginário pulsional32, no imaginário social, no imaginário sacral, como bem nos
lembra o Barbier. E é ele mesmo quem me reafirma o sentimento de
pertencimento a um grupo – como artista e pessoa do sensível que busco ser –
Freud se refere às pulsões sexuais: o recalcamento (defesas do eu / pulsões do eu – pulsões sexuais recalcadas e
pulsões sexuais recalcantes); a sublimação (desviar o trajeto da pulsão, mudando seu objetivo: substituição do objetivo
sexual ideal – incesto – por outro objetivo, não sexual, de valor social. Ex. as realizações culturais e artísticas, as
relações de ternura entre pais e filhos, os sentimentos de amizade e os laços sentimentais do casal) e a fantasia
(consiste não numa mudança de objetivo, como no caso da sublimação, mas numa mudança de objeto. No lugar de um
objeto real, o eu instala um objeto fantasiado, como se, para deter o ímpeto da pulsão sexual, o eu contentasse a pulsão
enganando-a com a ilusão de um objeto fantasiado. Dando seguimento a estas reflexões, Freud mais tarde irá
falar das pulsões de vida e pulsões de morte em lugar das pulsões do eu que desaparecem da sua teoria
com a descoberta do narcisismo. In Nasio, Juan-David,1999. p. 54-56 e 69-72.
32
69
quando lembra que a poesia, como ressalta Edgar Morin, é palavra do Arqué-Espírito33,
liberada simultaneamente do mito e da razão, trazendo em si mesma a união de ambos.34
No intuito de expor um pouco as experiências metodológicas aqui
expostas, destaco uma conversa que ocorreu entre mim e Ana Lúcia, a diretora
da escola Municipal Júlia Kubitschek – uma das escolas parceiras do Janelas
Cruzadas – quando refletíamos sobre o estranhamento de uma atividade
vivenciada por professores regentes desta escola de Educação Infantil. Proposta
realizada com o enfoque de tensionar ações naturalizadas do cotidiano, através
de algumas instigações feitas por jogos e problematizações da linguagem
dramática.
O estranhamento foi percebido quanto à possibilidade do uso das
múltiplas linguagens na metodologia de professores regentes que, não tiveram
formação específica em artes. Neste sentido, fomos falando eu e a diretora –
Ana Lúcia Machado – sobre conflitos e sobre dúvidas que visitam os
professores e os gestores desta escola e, juntas, fomos buscando a aproximações
das múltiplas linguagens às relações do cotidiano escolar e especificamente, da
sala de aula.
Esta conversa surgiu após o projeto Janelas Cruzadas realizar atividades
no 2º semestre de 2004, em parceria com a SME-RJ, mediações feitas também
por professoras de Artes (regentes), da rede municipal, na dinamização de
Grupos de Estudos de algumas Escolas parceiras do projeto.
Após a realização de um encontro que enfocou o olhar, trabalhando o
corpo na sua totalidade, muitas questões instigaram a diretora e o grupo de
professoras da Escola Júlia Kubtschek.35 Ao perguntar a Ana Lúcia qual o
motivo das aflições que ela expressava para mim, obtive resposta cuidadosa na
33 Arqué ou arché, segundo Barbier, é palavra grega que significa, segundo Aristóteles, princípio ou fonte
ou causa. In BARBIER, René. 2002. p. 70.
34 Idem. p. 70.
35 Márcia Ferreira é professora desta escola e foi a educadora responsável – junto à coordenação do projeto
Janelas de Cada Um – pela realização de atividades com crianças, jovens e idosos da comunidade Cruzada
São Sebastião na época do projeto Janelas de Cada Um. Ela integra há 10 anos a equipe docente da Escola
Municipal Julia Kubtschek e foi a responsável pelos contatos iniciais da gestão do Janelas Cruzadas com
esta Escola, quando em 2004 o projeto expandiu suas ações a outras unidades escolares da rede municipal.
(coordenação do projeto Janelas de Cada Um: Isabel Noemi Campos Reis e Helena Jacobina Campos. 1998
e 1999 / 2000 e 2001)
70
intenção de afirmar o quanto o grupo docente tinha gostado do trabalho, pela
maneira como a mediadora – Patrícia Alves Silva – se integrou com todos e
como propôs as dinâmicas. Mas foi também com intensidade, que a diretora da
escola foi expondo aflições que não eram apenas dela:
- Ficamos pensando ontem o dia todo e, ainda hoje:
Como podemos utilizar estas práticas na sala de aula?
Também pensamos que o trabalho proposto com o olhar funcionou, porque o
nosso grupo tem uma cumplicidade e afetividade muito grandes.
Como seria trabalhar esta questão do olhar com um grupo que tem divergências e
conflitos de relações?
Como tudo isso que vivemos pode ser trabalhado com crianças de Educação
Infantil? Para que vivenciamos e como iremos aproveitar essas práticas na sala de aula?
Para vocês artistas, tudo isso é natural. Mas vejo essas coisas tão distantes da
gente. Foi maravilhoso, mas deixou muitas questões e dúvidas na gente.
Então, fomos conversando: o cuidado de enfocar a importância dos
conflitos que podem emergir ao vivenciarmos algo que instiga e que desloca
algumas questões, de lugares antes acomodados; a importância das dúvidas
que sinalizam buscas e inquietações de cada um e do grupo; os desafios das
dúvidas promovem diálogos e interações com o proposto e o vivido,
experiências que não se esgotam no término da atividade.
Também importante pensarmos que nós educadores somos pessoas e,
portanto, experienciamos como sujeitos e não como professores que irão
aprender práticas a serem replicadas. Sujeitos que são tocados, instigados nas
suas complexidades e subjetividades, exatamente como os estudantes nas suas
questões peculiares e/ou coletivas. Assim, fomos nos aproximando da questão
inicial:
“Para que vivenciamos e como iremos aproveitar essas práticas na sala de aula?”
71
E neste sentido, juntas, fomos refletindo a potência destas experiências
mexerem e instigarem maneiras diversas de sentir, de ler e de expressar o
mundo. Interagir, pensar, criar através de corporeidades antes não exercitadas,
ou exercitadas intuitivamente, sem a consciência da sua existência ou
importância.
Poderão os processos vivenciados durante e após as dinâmicas
propostas, fazerem-se presentes nos planejamentos dos professores? Creio que
sim, de forma direta ou indireta, nas várias maneiras de cada um se apropriar,
fortalecer seus caminhos já traçados, refletir, ampliar horizontes na descoberta
de outras lógicas e possibilidades. E sendo tocado, o professor poderá tocar o
outro. Mais uma vez salta à conversa, a questão grávida de dúvidas e
movimentos:
“Como seria trabalhar a questão do olhar, com um grupo que tem divergências e
conflitos de relações?”
Fomos refletindo sobre o dia a dia da sala de aula e os planejamentos que
freqüentemente encontram-se com outras necessidades emergentes, sinalizadas
pelo grupo. Esta imprevisibilidade, tão natural no cotidiano do professor, ao
mesmo tempo é tratada, às vezes, de forma artificial, forçada; pela maneira do
professor e da escola relacionar o planejamento à vida.
Acredito que a proposta planejada pela mediadora, que se propõe em
trabalhar o olhar, não difere em nada das relações do cotidiano do professor,
seja na Educação Infantil; seja no Ensino Fundamental; no Ensino Superior ou
no trabalho com outros grupos e instituições que assumam a responsabilidade
de dialogar com complexidades da relação humana e do ser individual/
coletivo.
Poderia dizer que planejar significa perceber a necessidade de ações e
destacar possíveis desdobramentos a serem instigados?
Significa pensar objetivos oriundos de necessidades?
De onde vêm estas necessidades?
72
Como refletir, atenta às complexidades que trançam demandas e
objetivos dos gestores e dos diversos sujeitos que interagem nas instituições de
convívios, de aprendizagens e de superações?
Como lidar com a proposta planejada e com necessidades que, na
socialização, apontam outros caminhos e/ou afirmam caminhos pensados?
Volto-me à questão pronunciada por Ana Lúcia, em questionamento da
possibilidade de se planejar um trabalho com o olhar - por exemplo - e brinco
de imaginar o momento de propor e experienciar a aula, percebendo que o
grupo apresenta problemas de divergências e conflitos de relações.
Penso ser possível preparar o grupo para que se faça possível
experienciar a percepção do olhar. Pode-se também deixar esta proposta para
um outro momento. A sensibilidade reflexiva e a atenção do professor ao
grupo, como um leitor constante de si e do outro, indicarão maneiras de lidar
com o planejamento. Neste sentido, movida pelas instigações trazidas pela
diretora desta escola, pergunto:
Quais as similaridades: da maneira do gestor lidar com a instituição e
com os sujeitos que a compõem; da maneira do professor lidar com a sala de
aula/ cotidiano escolar e sujeitos que nela convivem; e da maneira como o
mediador/ pesquisador lida com os sujeitos/ objetos de estudo, da pesquisa?
Neste sentido, percebo o próprio mediador como objeto.
As reflexões da diretora e dos professores regentes desta Escola
Municipal ampliaram a vivência com a mediadora que propunha atividades e,
assim, os encontros e desencontros vão cumprindo o seu destino, graças à
generosidade e comprometimento da gestora da Escola, que não somente
constrói con-fiança e afetividade com o grupo, mas compartilha construções
também com o projeto Janelas Cruzadas, expondo suas questões e as do grupo
que representa, pela crença no movimento. Crença naquilo que constantemente
se faz e se refaz através da interação.
Neste sentido, percebo ser a metodologia proposta nesta pesquisa de
mestrado, reflexo da minha trajetória profissional e de vida, quando ainda
73
adolescente – movida pela intuição, pela crença no diálogo e pela crença na
gestão democrática – pude experienciar os primeiros passos daquilo que hoje
localizo como pesquisa-ação e como pesquisa-intervenção.
Conforme narrado no capítulo anterior a este, ainda adolescente no curso
ginasial, em busca de perceber as minhas necessidades de estudante e de
conhecer as necessidades dos colegas, fui, junto aos companheiros de turma,
negociando com a professora de língua portuguesa outras formas pedagógicas
para aquela escola na qual estudava.
Sem saber explicitar as razões, exercitava aquilo que hoje se faz vital na
caminhada que estabeleço como educadora e artista: imbricar-me aos
interlocutores – que por ora apresento aqui como objetos de interação ou sujeitos
co-autores desta pesquisa de mestrado – ressignificando-nos em diálogo
constante com o viver.
Também junto às crianças da favela Saramandaia – experiência narrada
também no capítulo anterior – pude não somente dar continuidade a este
exercício de percepção fina imbricada à interação entre sujeitos, vida e
complexidades, mas fundamentalmente, comecei a processar de maneira
consciente, esta metodologia sensível que acredita na importância do
desenvolvimento humano tanto no plano individual como no grupal, como nos lembra
Barbier36 e, neste sentido, como mediadora, me incluo como eterna aprendiz
nos dois planos.
É em escuta ao próprio Barbier que me fortaleço, ao saber que a pesquisaação integral de André Morin (1992) trata-se de um tipo de pesquisa por, para, sobre e –
sobretudo – com os atores, amplamente implicacional, sem excluir o rigor metodológico.
Escrita propositadamente numa linguagem simples, a obra sobre a P-AI [pesquisa ação
integral] visa a que os atores de todas as condições sociais possam planejar, organizar e
realizar eles mesmos as mudanças de um modo consciente, livre e inteligente com o
máximo possível de reflexão37 e de sensibilidade.
36
37
BARBIER, René. 2002, p. 71.
Idem. p. 77.
74
Vejo nas múltiplas linguagens, a possibilidade de estabelecer diálogos na
tríplice escuta-ação, que enfatiza a importância dos planos científico, filosófico e
mitopoético38, na crença do ser humano como ser total, integrado a todos os seus
sentidos como potencialidades das linguagens do viver.
Numa avaliação constante e permanente, vou estruturando os
procedimentos metodológicos ao dia-a-dia, através dos sinais; das respostas; das
não respostas, que tanto respondem.
Indicadores de caminhos, de maneiras, de necessidades que clamam por
serem cuidadas, refletidas, atendidas – no sentido de dar atenção, de debruçar o
olhar e a alma de pesquisadora implicada nestas tantas relações e contextos com
os quais busco interagir em atitude política; pedagógica; reflexiva e sensível.
Como a escuta e a percepção de peculiaridades de cada um destes
espaços com os quais interajo, podem representar contribuições para que a
escola formal hoje possa constituir-se mais includente, no sentido de não negar
o ser humano e de lidar com sua diversidade na forma de ensino, de
aprendizado e de superação?
Como a escuta (percepção – ação) dos sujeitos que compõem o complexo
espaço da Fundação Leão XIII (CRS – unidade Campo Grande), pode significar
avanços reais na gestão desta instituição e, no amadurecimento reflexivo das
metodologias assumidas pela instituição junto aos abrigados?
Como a escuta (percepção – ação) de pessoas que resistem em estar nas
instituições responsáveis pelo abrigo de sujeitos considerados como marginais
sociais e, também a escuta de pessoas que vivem e convivem em abrigos e casas
de recolhimento, pode refletir construtivamente, nas escolas formais, nos
abrigos sociais e nas políticas públicas, possibilitando reflexões e ações políticas,
ideológicas, sociológicas, metodológicas face à problemática dos sujeitos
excluídos?
38
Idem. p. 69.
75
Como a mediação de pontes de diálogos entre os sujeitos interlocutores
desta pesquisa, pode fazer-se em polifonia de vozes produtora de sentidos?
A metodologia do trabalho que realizo, é uma metodologia aberta, por
pretender eixos referenciais e objetivos claros – citados anteriormente – ao
mesmo tempo em que se faz e se re-estrutura continuamente no ato da
interação com os sujeitos participantes, que são ao mesmo tempo interlocutores
e co-autores desta pesquisa.
Não é uma interpretação metodológica que proponho – uma
metodologia a ser interpretada e aplicada – nem me proponho a estar
analisando os sujeitos com os quais interajo. Mas faço-me sim, atenta e disposta
a uma reflexão metodológica que se faça sustentada no diálogo com os sujeitos
e com os indicativos percebidos.
Desta maneira, através da interlocução pautada na troca de experiências
em espaços institucionais plurais, proponho uma pesquisa que possa fazer-se
um instrumento significativo na política, no poder público, na educação e em
cada instituição aqui presente, como convite para uma conversa polifônica
transformadora.
Como ponto de partida para avaliarmos e refletirmos polifonicamente
esta metodologia, convido aqui, algumas professoras das escolas parceiras,
quando no primeiro semestre de 2004, o projeto Janelas Cruzadas – após cinco
meses de atividades – perguntou num determinado encontro de Formação
Continuada de Professores sobre a questão da avaliação. Neste período, as
professoras trouxeram questões que têm nos acompanhado, por se fazerem
também norteadoras de caminhos reflexivos.
O que você avalia como professora?
“Sem perder o foco que é a criança, o que se avalia no contexto escolar depende
do papel que você exerce na escola.”
76
“Como direção, eu focalizo mais o andamento da escola, o desempenho da escola,
meu foco vai para tudo.”
“Eu avalio se a criança gosta de estar na escola, se gosta de participar das
atividades propostas, se existe entre eles um clima de harmonia, apesar das ‘desavenças’
que acontecem vez por outra! A partir daí, se torna mais fácil perceber porque alguns
absorvem mais rapidamente determinados conceitos e outros não. Quando utilizo
mecanismos de avaliações maçantes e sinto que algumas crianças não ‘conseguem’, ou
melhor, não se sentem bem fazendo uma prova, por exemplo, eu as tranqüilizo
mostrando que aquilo é necessário, mas não é o mais importante. É preciso que haja
interesse por parte de todos.”
“Eu avalio as conversas que ouço entre os alunos, a postura, a movimentação em
sala, o olhar, a participação, a escuta, o desenho e outras formas de expressão, a família e
a relação do aluno com esta, minha relação com os alunos, meu trabalho, minha idéias e
as deles. Avalio também a escola, sua estrutura e as pessoas que direta ou indiretamente
influenciam no meu trabalho.”
“A própria escola (espaço).
As pessoas que trabalham nela.
Os alunos:
-
emocionalmente
-
socialmente (onde mora, as oportunidades que têm).
A família:
-
se é presente e atuante.
E principalmente:
os vínculos criados entre esses três vértices (escola – aluno – responsável)”
“Estamos o tempo todo avaliando, não só os alunos, mas a nós mesmos. No meu
aluno avalio o comportamento, as atitudes e também o conteúdo, para poder estar
tentando ajudá-lo, a ser alguém melhor. A mim, avalio se fui justa ou não, se fui
77
compreensiva, se estou dando ouvidos a ele e se estou me tornando uma pessoa melhor a
cada dia também.”
“Vejo a avaliação como um processo complexo, onde tanto o avaliado como o
avaliando são personagens. A resposta desta avaliação servirá de parâmetro para a
retomada de novas ações / relações e de abertura de novos caminhos atendendo às
perspectivas planejadas.”
“Avalio, valorizando o dia a dia. As respostas para as vivências diárias.”
“Ouvindo, sentindo, pensando, lendo, fazendo junto, refletindo.”
Desdobrando estas questões, o Janelas Cruzadas continuou indagando:
O que é um bom estudante?
“É aquele que contribui.”
Pensando na amplitude da palavra contribuir, algumas palavras saltam
na perspectiva de refletir a respeito deste estudante que ajuda à aula se fazer.
Creio então que todos nos lançam desafios constantes para que possamos fazer
de nossas pesquisas e de nossas propostas metodológicas, diálogos dinâmicos
que pavimentem pontes entre a escola e a vida dos sujeitos da escola.
E para pensarmos um pouco mais o sentido desta palavra – contribuir –
convido as próprias professoras para nos ajudar a tensionar questões como
conteúdo, aprendizagem, participação... e estas questões me levam a outras
palavras, tais como: concordar; tensionar; silenciar...
“Bom aluno é aquele que te faz crescer, que amplia seus horizontes, a partir
daquilo que aprende e do que não aprende, porque este último faz com que você não
adormeça em seu trabalho, busque alternativas, estude. Enfim, para mim, sinceramente,
todos são bons alunos, porque depende deles eu ser boa professora.”
“O bom aluno, pode ser aquele que muitas vezes não sai do nosso pensamento.”
78
Penso no que significaria um bom professor, aquele que nos marca e que
fortalece em nós o que há de mais ético e criador. Seria o professor que traz
todos os estudantes em seu pensamento?
Na acuidade de atentarmo-nos às especificidades e maneiras de cada um,
destaco mais uma reflexão feita por uma professora parceira que sinaliza para
nós que o bom estudante é o aluno participativo, questionador, atento e feliz! Que
gosta de estar na escola e que aproveita o tempo, para aprender e também para ensinar.
Esta reflexão, me aproxima àqueles estudantes que se mostram infelizes
e que, muitas das vezes, questionam os desencontros através de profundos
silêncios. São estes sujeitos que me convidam a perguntar:
Precisamos aproveitar o tempo para quê?
79
companheiros de travessias e de travessuras
capítulo 5.
80
Companheiros de travessia e de travessuras:
Revisão de literatura
Penso em convidar como interlocutor desta pesquisa Paulo Freire, por
acreditar em uma Escola séria, porém alegre e transformadora; pela crença no
diálogo; pelos círculos de cultura; pela criticidade; pela ênfase nas trocas de
saberes e de poderes; pela aposta na incompletude, na busca de ser mais.
Recorro a Bakhtin pela palavra em movimento e pela polifonia de vozes;
pelo seu estudo com a ambivalência; a valorização do riso; a dialogicidade, a
circularidade, a incompletude. Por acreditar e defender que um dos grandes
desejos do ser, é comunicar-se.
Junto a Benjamin, quero caminhar no empenho de me aproximar às
complexidades no sentido de me fortalecer no possível reconhecimento e
enfrentamento às barbáries, sempre presentes nos artefatos culturais. Dar ênfase
à valorização das tradições no asseguramento das narrativas, para que estas não
morram e, buscar trançar passado, presente e futuro em movimentos não
lineares – ricos em experiências e sentidos – que ressignificam valores e saberes
em circularidade. Movida pela crença da necessidade de uma escuta sensível e
do reconhecimento da arte expressão e reflexão dos momentos históricos e
políticos, busco fazer-me atenta à importância dos acervos e coleções.
Debruço-me sobre Ecléa Bosi, por seu enfoque à memória não apenas
como reminiscências, mas por considerá-la trabalho, que ressignifica as
experiências na busca de sentidos para a vida.
Aproximo-me de Linhares por suas intensas pesquisas sobre
Experiências Instituintes e, pela costura que faz na sua prática como professora,
pesquisadora e escritora, às questões aqui trazidas, tensionando diálogos com
os teóricos mencionados nessa dissertação e, com tantos outros pensadores
também atentos à construção de uma educação instituinte, mais viva e mais
humanizadora que se faz afirmativa das singularidades e das diversidades
81
como óticas necessárias para o pronunciamento coletivo, reflexivo e includente.
Ressalto a importância da oportunidade de acompanhar suas ponderações
prático-teóricas, que se fazem corporificadas em gestos de coerências que
amalgamam o pensar e o agir desta professora pesquisadora.
Instigada por Ginzburg, exercito o olhar a cada pormenor, na tentativa de
aguçar meus sentidos a outras lógicas e, com elas e a partir delas, me aproximar
de cada sujeito interlocutor, na busca de melhor entender os contextos diversos,
refletindo e re-organizando continuamente cada passo previsto, no diálogo
também com a imprevisibilidade.
Junto a Barbier e a Regina Benevides, organizo minha intuição e
fortaleço-me na linguagem e na ótica das reflexões apresentadas na
sistematização da pesquisa-ação e da pesquisa-intervenção, feitas por estes autores.
Comungo com Ferreira Gullar que sabiamente, me conduz com leveza e
densidade, à importância de voltar não somente o olhar, mas todos os sentidos,
na construção e na afirmação de espaços sociais e educacionais democráticos e
diversos, quando poeticamente nos diz que: E a história não se desenrola apenas nos
campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre
plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas
usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e
humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e
só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz.8
São muitos os nomes que dialogam com as tantas narrações aqui
impressas, mas não posso deixar de citar, ainda que brevemente, Zygmunt
Bauman e Giorgio Agamben, que aproximara um pouco mais os meus sentidos
às tantas dimensões políticas que configuram complexidades sociais.
Assumindo a impossibilidade de falar especificamente sobre cada um que me
insere nesta dialogia, convido Fayga Ostrower e Adélia Prado por reforçarem o
quão vital é para a sociedade, a consciência da autoridade da dimensão poética
da vida, que tece mistérios e criações constantes.
8
GULLAR, Ferreira. 1978, p. 15.
82
sujeitos ou sujeitados?
aprendendo com os encontros da pesquisa
capítulo 6.
83
Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo com os encontros da pesquisa.
Sr. Manuel da Silva foi recolhido na Avenida Atlântica, em Copacabana,
quando estava sem documentos conversando com amigos, trazendo em seu
corpo marcas que o qualificavam como representante da classe popular - faço
questão de destacar - dignamente humilde. Mas foi sem dignidade, que um
ônibus foi recolhendo pessoas humildes que estavam na madrugada deste dia,
dormindo, andando, conversando...
E como deixar de comover nossos olhos e nossa alma, na lembrança de
Chico Buarque quando canta: É gente humilde, que vontade de chorar...
Sr. Manuel a partir deste momento não teve mais acesso ao mundo.
Dormiu exilado, convivendo com sujeitos doídos, afastados, esvaziados,
marcados, sem voz. Pessoas que muitas vezes já não podem perceber a
existência de outros ao lado e vivem mutilados, esquecidos. O que me difere de
Sr. Manuel a ponto do meu corpo trazer marcas nas suas composições gestuais e
expressivas, impedindo que o ônibus me recolha quando caminho nas noites de
Copacabana, bairro em que moro?
Porque o meu corpo se impõe sem maiores trabalhos para mim?
O que faz com que apenas com um fiapo de voz, não escutada, seja dada
a importante notícia que Manuel da Silva tem casa, endereço, mora com a irmã e
que, ao menos, esta precisa ser comunicada da sua recolha?
Em dezembro de 2003 conheci esse senhor, sentadinho, chorando suave e
doidamente num desses espaços onde são levados os sujeitos recolhidos nas
ruas. O Sr. Manuel, ao se referir à sua condição, contou que há um ano vivia no
meio de horrores. Aproximei-me em escuta, sentada bem próxima e ele revelou
que um colega, vizinho de cama, o acusara de ladrão. Chorava por alguém
pensar algo assim dele que sempre fora tão honesto.
Procurei informar-me melhor e soube que ele ajudava muito, no
cotidiano, os outros que estavam em condições semelhantes à sua; fazia serviços
84
de ajuda na cozinha coletiva e na limpeza, por necessidade pessoal em amparar
o outro e, não tem hábitos como aqueles de que fora acusado. Soube também
que este senhor não bebe, não cheira, não injeta nenhuma droga em seus sonhos
ou dores, como fazem muitos dos sujeitos que convivem neste local. Traz ainda
olhos doces, fala meiga, com sinais de respeito pelo outro e por si.
Ainda surpresa por conhecer a maneira como este senhor chegou à esta
condição de exílio e convívio com uma realidade cruel, comunguei a alegria de
saber que uma jovem psicóloga, com seus vinte e poucos anos, escutou o Sr.
Manuel, que já não mais sabia o que significava uma conversa. E foi em
conversa que esta psicóloga soube da presença de Sr. Manuel na Fundação Leão
XIII/ Campo Grande, há três meses e, que este senhor tinha casa juntamente
com sua irmã. Esta afirmação me levou a indagações.
O que faz com que o tempo de exílio para este senhor, seja alterado
internamente no seu sentir/ interagir com o tempo real?
O que faz com que os três meses vividos neste lugar, sejam
experienciados como se fora um ano?
Durante a conversa, a jovem psicóloga anotou o nome e o endereço da
irmã e foi possível contatá-la. Estava ansiosa por notícias e em dezembro de
2003, o Sr. Manuel40 passou o Natal e Ano Novo com a irmã, em sua casa, no seu
próprio quarto, na sua própria cama. No dia em que o conheci, perguntei-lhe
qual seria a primeira coisa que iria fazer quando chegasse em casa.
Prontamente respondeu-me: conversar com minha irmã, conversar. Esta fala
vinha carregada de afetos. Então continuou: eu gostava muito de ir para a Escola. A
professora era boazinha comigo. Ela escutava a gente. Estudei até a 1a série. Saí da
Escola porque não tinha quem me levar. Minha mãe trabalhava, não podia levar. Tive
40 Quando conheci este senhor em 2003, ele já estava aguardando a data de seu retorno para casa. Este
texto foi escrito para um seminário na UFF como resultado da matéria oferecida pela professora Célia
Linhares: Experiências Instituintes em Educação. No dia da apresentação do seminário, este senhor
voltava para a sua casa. Como não houve tempo para ler o texto para ele em interação e solicitação de
autorização para problematizar sua história em texto dialógico, então, por cuidados à sua exposição, o seu
nome foi trocado por outro fictício.
85
que sair. Era em São Gonçalo, em Rio Bonito. Eu não estudo hoje que minha vida não
dá. Se desse, eu ia acabar de aprender a leitura e depois aprendia outras coisas.
Os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder
político no fechamento e abertura das portas sociais. Este é o tema deste
projeto que desenvolvo no Mestrado em Educação da UFF – Movimentos
Sociais e Políticas Públicas, iniciado no ano de 2004.
Debruçando-me na fala de Sr. Manuel, mais uma vez pergunto-me:
É possível que a Escola escute seus alunos, suas memórias e narrações ou
ao tentar fazê-lo, mais das vezes permanece num monólogo, imbuído de
certezas e fechamentos dogmáticos?
Como as trocas e aprendizados, construídos pela escola da vida, podem se
presentificar num diálogo franco na Escola formal?
Como os que não couberam na Escola, podem nos ajudar a instituir uma
outra instituição escolar, sempre aprendente e, portanto, instituinte?
E instigados por Paulo Freire com suas questões: quando a palavra autorizada
poderá surgir de todos nós?41
Apoio-me em Sr. Manuel que, sedento de Escola, nos aponta a
importância da escuta como definidora de transformações. Volto à pergunta
inicial deste capítulo:
O que me difere de Sr. Manuel a ponto do meu corpo trazer marcas, que
impedem o ônibus de me recolher quando caminho nas noites de Copacabana?
Porque o meu corpo se impõe sem maiores trabalhos para mim?
O que faz com que Sr. Manuel, apenas com um fiapo de voz - não
escutada - dê a importante notícia de que ele, Manuel da Silva tem casa,
endereço, mora com a irmã e que ao menos, esta precisa ser comunicada da sua
recolha?
Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria:
Experiências Instituintes em Educação.
41
86
E continuo esta conversa com aquilo que mais me move: as questões.
Levanto-as aqui, na espera de compartilhá-las entre colegas, em construção
constante.
Como estar atento às falas invisíveis que saltam cotidianamente dos
professores, alunos, muros e espaços escolares?
Como aparecem as relações de poder nestes códigos submersos?
Como se dá a cultura do silenciamento42 dentro da Escola e na escola da vida,
nesta sociedade capitalista, globalizada, que atravanca as portas para excluir
sujeitos e a própria vida?
Neste mesmo local onde conheci Sr. Manuel, convivo semanalmente com
pessoas não mais caçadoras de si. Pessoas depositadas sobre tetos guardadores de
chuvas, que alguém supôs ser importante guardar, para preservar a saúde de
pessoas recolhidas na rua. O que acontece para que estes mesmos tetos
guardem amores, trocas, sonhos... como tijolos lacrados por cimentos cinza?
Então agradeço ao Senhor Manuel e a tantos outros, por me instigarem
questões. Nessas buscas de poucas certezas, trago em mim a gratidão pela
clareza de que são estes vários mundos que me fazem mais gente a cada dia,
ensinando-me a complexidade de ser humana.
Cultura do silenciamento é uma reflexão trazida pela professora Célia Linhares nas aulas da matéria Experiências
Instituintes em Educação.
42
87
mãos na massa
buscando raízes e alvoradas
capítulo 7.
88
Mãos na massa, buscando raízes e alvoradas. 43
Como fazer pesquisa com grupos sociais, sempre tão plurais, se as
condutas são heterogêneas e os conflitos nem sempre são visíveis?
É apoiada em problematizações e através da sensibilidade, que realizo
um trabalho em instituições estaduais que exilam e confinam pessoas adultas ou
idosas retiradas das ruas; pessoas que tiveram seus barracos desabados,
perdendo todos os seus bens; pessoas com problemas com alcoolismo; pessoas
que sofreram acidentes com carros, ônibus... e foram removidas de hospitais
públicos para estas instituições, permanecendo nestes espaços por 2, 5, 10, 25,
40, 50 anos.
Através de histórias; canções; poesias; imagens diversas; brincadeiras,
vou me aproximando desses sujeitos – senhores e senhoras – na intenção de
favorecer a reconstrução de espaços de afetividade, ao valorizar histórias desses
sujeitos. Volto-me a eles no sentido de que suas crenças, saberes, valores
possam ser escutados em diálogo.
Muitas dessas pessoas vivem, dormem, comem juntas... e estão em
absoluto silêncio, pelos cantos da Fundação... fitando e desbotando paredes
manchadas de tempo, em solidão. São mutiladas de diversas maneiras: alguns
não têm pernas, braços, são bastante doentes... e raras as pessoas que chegam
perto deles em escuta ou carinho. Vivem juntas e - muitas das vezes - sem
convívios, diálogos ou construções.
Penso na gestão desses espaços sociais e junto-me a Ecléa Bosi, em
indagação: Por que decaiu a arte de contar histórias? E sintonizando-se com
Benjamim, Ecléa afirma:Talvez porque tenha decaído a arte de trocar experiências”44
43
44
Os relatos presentes neste capítulo, foram registrados a partir de encontros realizados em 2004.
BOSI, Ecléa. 1994, p. 28.
89
Neste sentido, faz-se fundamental, como educadora, ter um repertório
plural que possibilite o diálogo fazer-se significativo, ressignificando o ontem
no tempo presente e construindo assim, um hoje e um amanhã mais humanos.
Para muitos desses sujeitos, existe o desejo de uma vida perdida há anos.
Benjamin, nos alerta para o perigo de permanecermos prisioneiros do passado e
nos leva a refletir, ao lembrar que devemos fazer emergir as esperanças não
realizadas desse passado, para que possamos inscrever em nosso presente seu apelo por
um futuro diferente e assim, construirmos ligações entre um passado submerso, o
presente e o futuro. Isto não significa simplesmente, impedir que a história dos vencidos
se passe no silêncio... é necessário, ainda, atender suas reivindicações, preencher uma
esperança que não pôde cumprir-se. O passado comporta elementos inacabados, e além
disso guardam uma vida posterior, e somos nós os encarregados de faze-los reviver.45
Estas pessoas moram isoladas em instituições e são para mim, como
caixas de surpresa: quando em interação com elas através da afetividade,
respeito e valorização de seus saberes, muitas vezes voltam a sonhar, a ter
brilhos nos olhos ainda esperançosos.
Outro dia estava olhando um senhor que fica juntando folhas com um
galho de árvore. Todas as manhãs acorda cedo e trabalha, juntando folhas e
gravetos até o horário do almoço. Sempre usa o mesmo galho para juntar. São
muitos os montinhos de folhas e gravetos que encontro no chão, em frente da
casa onde me reúno com os assistentes sociais que também trabalham nesta
instituição, já tantas vezes referida anteriormente.
Num desses dias, aproximei-me dele enquanto juntava os montes.
Tivemos uma conversa, enquanto era realizada esta sua ação cotidiana. Depois
soube que ele se mantém bastante discreto. Os assistentes sociais já tentaram
aproximação e ele quase não fala.
45
GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p 58; 62 e 63. (referências: parágrafo escrito a partir de)
90
sinais de Sr. Peixoto
Trago aqui sabedorias que este senhor de 80 anos trocou comigo, em
conversas de voz terna e doce, quase em sussurro. Fala suave em delicadeza,
potente em vida e firmeza. Esta conversa aconteceu graças às histórias - puras
magias que desemudecem pessoas.
Nos conta o Senhor Peixoto:
- Já trabalhei muito com as mãos na terra e as mãos na massa e hoje continuo
com as mãos na terra e as mãos na massa... [faz menção aos montinhos de folhas e
gravetos que costuma catar]. Diz o ditado que o prazer no trabalho aperfeiçoa a obra.
Conversamos um pouco... O gesto do Sr. Peixoto me lembrou a infância,
quando via senhoras no interior da Bahia varrerem o quintal com vassouras
feitas de galhos e folhas. Varrer o quintal significava, na minha infância, juntar
as folhas e gravetos que em seguida viravam brinquedos para nós crianças.
Esta lembrança me fez recordar a história de um homem que varria um
pátio e cantava. Um dia, este homem descobriu que as letras de suas canções
tocavam profundamente o coração de muita gente. Estas canções que
fortaleciam pessoas eram compostas enquanto ele varria, pensando e
elaborando seus conflitos.
Conversamos então, eu e o Sr. Peixoto, sobre esta história, sobre a vida...
e ele disse:
- O livro tem um sentido muito profundo para mim. Em 28 de janeiro de 1983
passei pela triagem46 e passei por um abuso. Me tiraram o livro. 1o livro que eu tive...
comprei por acaso. Um sábio disse que o acaso favorece apenas as pessoas de mente bem
Triagem é o local onde são enviadas as pessoas retiradas da rua. É lá que é decidido o que fazer e para
onde enviar essas pessoas.
46
91
preparadas. O 1o livro. Foi em 29 de maio de 1969, em letras douradas e um outro nome
especial em carimbo.
A partir da reflexão proposta pelo Sr. Peixoto pergunto-me:
Como a Escola, pode ser fiel aos livros imaginários escritos com letras
douradas por alimentarem sonhos de liberdade?47
O que serão mentes bem preparadas, como nos situa o Senhor Peixoto?
Mentes que dialogam com surpresas e com imprevisibilidades?
Estas perguntas me levam a registrar aqui a definição sobre teoria e
prática feita por Sr. Antônio48 - outro senhor morador da instituição. Tem 63
anos. Ao indagar-lhe sobre os ensinamentos que a rua lhe proporcionou nos 20
anos vividos entre calçadas, catando papelão cedo para sobreviver com a sua
venda, Sr. Antônio prontamente respondeu-me:
Não aprendi nada na rua. Se tivesse 1 dia de coisa boa, tive 20 de coisa ruim. Eu
não sei tudo. Ainda tem coisas que vou aprender. Você se formou estudando [se refere a
mim]. A teoria que aprendi em 30 anos de trabalho... Por exemplo: A prática está mais
forte... pois você se formou estudando. O outro [se refere a si próprio] tem a teoria do
aprendizado do dia-a-dia na carteira assinada.
O senhor Antônio cria uma situação hipotética para explicar-me seu
conceito de teoria e prática e me explicita um diálogo ficcional: Nós dois
trabalhamos em uma farmácia e atendemos às pessoas. Todo dia aqueles mesmos casos.
Mas se vier outro caso diferente daquele que se está acostumado a tratar, só quem tem
prática é que pode atender, pois estudou. Eu só saberia atender aqueles casos que me
passaram as informações, pois eu [refere-se a si próprio] só tenho a teoria.
Este senhor me aponta a importância da teoria estar articulada à prática
da vida para que tenha significado de ser revestida de experiência, de
autonomia. Sr. Antônio não esquece de registrar o esvaziamento desta mesma
LINHARES, Célia. Observações da orientação. 1o semestre de 2005.
Quando procurei este senhor para ler o texto que tinha escrito a partir de nossas interações, soube pela
assistente social desta Fundação que ele havia evadido. Esta notícia me foi dada como algo que não deveria
ter sido feito por parte do senhor, como se fora uma inconseqüência. Pelo motivo de não ter compartilhado
com ele esta leitura e por cuidados à sua exposição, o seu nome foi trocado por outro fictício. Também por
este motivo não estarei anexando fotografia com seu registro.
47
48
92
teoria quando apenas informativa. Em suas reflexões, me sinaliza a importância
da escuta e da observação sensível, para que possa me aproximar de suas
lógicas, óticas e necessidades, fazendo do meu trabalho uma construção
significativa de aprendizados para mim, para eles e quem sabe, para a
instituição. Me sinaliza a possibilidade da teoria se fazer em experiência.
Penso então em Morin e na teoria da complexidade, quando nos diz que
Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os meios objetivos de
conhecimento, que são, porém, insuficientes para compreender o ser objetivo.49
Em exercício de abrir meus poros e sentidos na busca de melhor
experienciar, compartilhar gestos, silêncios e textos múltiplos como os do Sr.
Peixoto que entre gravetos e folhas me aproxima a Ginzburg - na condição de
caçadora de pormenores negligenciados - vou agrandando-me em leituras que
estabeleço na percepção de óticas e vivências plurais.
Então, em diálogo com estes senhores e senhoras, fortaleço-me na busca
de compreender seus embates, suas vidas, para estabelecer interações e
construções. Debruço-me novamente, em escuta, diante das reflexões do Sr.
Peixoto:
- A comunidade é outra coisa importante na vida porque a comunidade é
terapêutica. A terra e a massa hoje tem um sentido diferente para mim. Diz-se que a
massa é homogênea. Ela tem sido homogênea, mas precisa ser mais homogênea e falta
muito para ela ser homogênea. A união exterior depende da união interior. A
Afetividade e a Efetividade. Juntando as folhas estou sendo Efetivo, mas a Afetividade é
mais difícil. Vem boas idéias trabalhando, minha mente fica mais ativa com o trabalho,
aí gosto do trabalho mental [se refere à cata de gravetos e folhas como trabalho
que faz diariamente]. Antes de vir para aqui eu vivia em uma comunidade. Tive uma
reunião na comunidade, no Centro do Rio e a discussão de uma questão muito
importante – desemprego.
49
MORIN, Edgar. 2000, p. 51.
93
Em algum momento de nossa conversa permeada de crônicas, canções,
lembranças... eu sorri para ele que imediatamente agradeceu-me pelo sorriso e
continuou:
- De 1974 para cá eu passei a entender a questão de desemprego. O que é o
desemprego e o que é o emprego? Naquela reunião com a comunidade não achei graça de
nada. Era uma 4a feira, 9 de janeiro de 74. Naquele ano foi a última vez que eu vi as
pessoas da comunidade. Dali para cá a coisa mais difícil que tenho é sorrir. Às vezes eu
sorrio, mas um sorriso tênue quando estou sozinho. O livro que comprei, em 29 de
setembro de 1969, foi o primeiro livro que tive. Passei e comprei por acaso. Eu ia
andando pela rua e um conhecido meu me vendeu. Eu estava abonado [faz um gesto
como quem recebe uma grana incomum]. E continua:
- Da triagem vim para cá. Tinha começado um serviço aqui... naquela obra.
[Aponta para uma construção que está sendo feita para melhorar as condições
de alojamento de alguns senhores.] Tinha um grilo cantando e isso me sensibilizou,
me lembrou o livro. Sentei e fiz um verso:
No recanto da Fazenda
Um grilo cantava no chão
Quando eu meditava
Contemplando a solidão
Pois faziam 30 anos
Que eu entrei no meu sertão
Ao comprar por dois cruzeiros
Um livro de precisão.
- O senhor tem isso escrito? Perguntei-lhe, me referindo ao verso.
- Mentalmente. Não sai da minha lembrança... Eu perdi uma coisa de precisão,
mas creio que ganhei uma coisa mais preciosa. A preciosidade é mais valiosa que a coisa
preciosa. Comparando a preciosidade com a coisa preciosa que é o livro – a pessoa é mais
importante que o livro. Tive o livro por 14 anos, até 1983. O livro sumiu na triagem. Eu
estava muito ligado a ele. Lembrei do trecho de Maria e José [da Bíblia] e não quis ser
rigoroso com o livro. Dia 1o de janeiro de 1983 ele sumiu. Já faz 21 anos este ano. O
94
livro era o testamento. A vida é um diálogo, é um relatório. Muita coisa para falar. A
vida é um livro aberto.
Sr. Peixoto me leva a um metro de distância, onde estão enfileirados 1
bolsa de papelão e 2 sacos de supermercado cheios de jornais, revistas velhas,
algumas peças de roupa e objetos pessoais:
- Aqui está meu mundo de atrações... e como ele é rico. É o meu equipamento. A
peça mais importante do equipamento é o suporte, onde eu carrego a coisa mais
importante: O Livro. Este Livro que guardo é outro: há alguns anos ganhei o livro de
um senhor que vinha sempre aqui, mas este senhor já morreu.
equipamento e galho utilizado para trabalhar
equipamento e gravetos
suporte, local onde guarda o Livro
Retirou do equipamento uma página pequena e me deu dizendo:
95
-
Sabe o que eu achei ali? [apontou para uma árvore perto onde
estávamos]. 8 de agosto de 2001, encontrei uma página de livro. Livro
de Gênesis. E o mais importante: Era o capítulo 25. Fala de um homem
que morreu em ditosa velhice aos 175 anos de idade. Fiquei
maravilhado com aquilo. Eu nunca tinha observado esse trecho. Fui
observar aqui na Fazenda Velha [Fundação Leão XIII - Campo
Grande]. Fui botar mais sentido foi aqui.
pequeno trecho das páginas 29 e 30, encontradas por Sr. Peixoto
Gênesis 24 / 25
Deu-me o papel para que levasse para casa e lesse. Prometi devolver-lhe
outro dia. Ele me agradeceu muito pela conversa, dizendo em sorriso tênue:
-
Hoje aconteceu um milagre. É muito raro eu me deparar na presença de
alguém por tanto tempo. Eu agradeço à senhora. A convivência é um
prêmio. A amizade é um privilégio.
O senhor Peixoto trabalha constantemente com seus gravetos, pensando,
refletindo e como ele próprio diz: com o trabalho, eu tenho boas idéias e vou
melhorando a cada dia. Assim como o Sr. Peixoto pôde inventar uma maneira de
não sucumbir neste sertão, também uma senhora, chamada Dona Vanda, 74
96
anos, preenche sua vida com bonecos feitos por suas mãos. Cada boneco, um
personagem e histórias vividas no mundo fora e dentro da instituição. Dona
Vanda vai mostrando os bonecos e falando da vida que se mistura em diversos
tempos e espaços.
Surge a lembrança da Escola e Dona Vanda destaca dois aprendizados ali
construídos:
- Primeiro, a Escola me ensinou que a rebeldia que eu tive era adiantamento. Eu
tava crescendo.
- Segundo, a Escola me ensinou que a pessoa falando demais não sabia de nada.
Era melhor ficar calada e ficar na posição de ninguém.
Na rebeldia, Dona Vanda me aponta um apelo para o exercício da
autonomia. É esta mesma senhora quem sinaliza que sem pensamento critico
reflexivo a fala se faz excessiva como uma ação mecânica, como um ativismo reprodutor,
uma tagarelice, como diz Heidegger.50 Dona Vanda e Sr. Peixoto, buscam maneiras de
permanecerem na posição de pessoas que se reinventam a cada instante através
de ações que permitam vida, diante de tanta negação. Estes senhores me levam
a pensar na Escola que emudece, que desfalece e nas brechas que clamam por
movimentos instituintes.
50
LINHARES, Célia. Observações da orientação. 1o semestre de 2005.
97
Assim como o Sr. Peixoto e a Sra. Vanda potencializam diversas
possibilidades de diálogos com a realidade e consigo mesmo, em construção
transformadora, penso então neste movimento latente criador, que precisa ser
alimentado, instigado e valorizado para que possa germinar não apenas em
crianças ou professores, mas em seres humanos. Movimentos que pedem
processos sociais, pedagógicos e políticos de com-partilhar.
Ao me apresentar seu equipamento, Sr. Peixoto me fala da época em que a
instituição recolhia todos os pertences dos senhores e senhoras que convivem
neste espaço. Lembrou de cada época que teve seus sacos recolhidos para nunca
mais vê-los.
Hoje, para onde vai, este Senhor leva consigo seu equipamento – seja no
banheiro, refeitório ou entre as árvores, folhas e galhos. Quando conversamos e,
sem perceber, nos distanciamos um pouco do equipamento e do suporte, Sr.
Peixoto não demora em relembrar e aproximar-se deles, como guardião de suas
histórias e referências.
Em contato com Sr. Peixoto, lembro-me de uma história chamada
Guilherme Augusto Araújo Fernandes. 51 Ela conta que uma senhora de 95 anos,
moradora de um asilo, perdera a memória e é um garotinho vizinho e amigo da
senhora, quem consegue reavivar a memória de Dona Antônia.
Ao escutar uma conversa de adultos, o garoto chamado Guilherme
Augusto Araújo Fernandes descobre que sua amiga, Sra Antônia Maria Diniz
Cordeiro perdera a memória. Para saber o significado desta nova palavra, o
garoto parte em busca da leitura de pontos de vista diversos, ao escutar seus
pais e de cada morador do asilo.
A partir destes depoimentos, o garoto vai buscando maneiras de
presentear Dona Antônia com suas próprias memórias – aquelas mais valiosas
em significados e sentidos. Dona Antônia recebe um a um os presentes do
amigo e vai ressignificando cada objeto em interação de afetividades
atemporais, tecendo um diálogo entre suas próprias memórias e as memórias
51
FOX, Mem. 1995.
98
do amigo. E assim, a memória perdida de Dona Antônia é encontrada, por um menino
que nem era tão velho assim.
Instantaneamente penso na necessidade que o Sr. Peixoto tem em
registrar as datas de cada acontecimento que se faz significativo para ele. Em
uma de nossas conversas, comentou que ainda não tinha o calendário de 2004, o
que dificultava seus registros mentais. Imediatamente retirei da bolsa um
calendário e lhe dei. O Sr. Peixoto, muito grato, falou da importância de marcar
as datas para não perdê-las.
Volto-me então para a Sra Vanda, com os seus bonecos guardados em
uma bolsa de pano. Junto a eles, linhas coloridas, retalhos e agulha. Costuras
que mantém vivos o pensar/ refletir/ existir desta senhora e do Sr. Peixoto, que
leva consigo seus alinhavos em folhas, gravetos, datas, livros, lembranças... para
não perderem-se de suas referências e atos de criar.
Como bem nos enfatiza Benjamim, o Sr. Peixoto e a Sra Vanda bem
conhecem a força germinativa das sementes.52 São eles próprios que mantém latente
e em movimento, através de fazeres significativos, a sua própria existência na
busca da superação de si mesmo e dos contextos que os cercam. Neste processo,
me encontro com o Sr. Peixoto, o Sr. Antônio, a Sra. Vanda e, tantas outras
pessoas com quem converso nesta instituição e que se abrem em falas preciosas,
oportunizando que narrativas possam ser intercambiadas em construções que
favoreçam a aproximação entre pessoas, instituições e vida.
A busca de convívios mais humanos em afetividades e trocas de saberes,
nos possibilitam entrelaçar a teoria e a prática, ampliando conceitos, idéias,
óticas, ações e políticas. Para levar suas narrativas a outros espaços e
interlocutores, sento-me individualmente com cada sujeito com quem interajo e
leio o texto tecido entre nossas trocas. Neste momento, eles corrigem detalhes e
quando autorizam, trago os textos para a Universidade Federal Fluminense
como outra possibilidade de interlocução nas matérias do curso de mestrado e
em seminários.
52
BENJAMIN, Walter. 1994.
99
Trabalho conjunto, de várias autorias. Estes senhores e senhoras com os
quais dialogo nesta instituição estadual, não são queimados em fogueiras como
forma oficial e lícita de silenciar a transgressão que ultrapassa o pensamento
único - conforme acontecia no século XVI na Itália, por exemplo, como bem nos
coloca Ginzburg. Mas outras são as chamas, que ardem em seus peitos
queimados pelo abandono, pela desvalorização e esvaziamento de suas
referências e saberes. Formas oficiosas de fogueira, em pleno século XXI. Meu
objetivo não se restringe a trazer suas vozes a diversos espaços, mas fortalecêlos para que pronunciem-se sem intermediários e percebam-se autores de
idéias, conceitos, valores e saberes.
100
buscando caminhos...
capítulo 8.
101
Buscando caminhos...
É certo que não temos garantias de que as instabilidades, as desorganizações sejam
aproveitadas para mudar o rumo civilizatório. Até mesmo em face dessa reversibilidade,
ambivalência e hibridismo que acompanham os movimentos da história, podemos tanto nos
endereçar a uma sociedade em que prevaleça um modo mais justo, mais horizontal, mais
includente, enfatizando os processos de coesão sobre os de coerção, quanto nos dirigirmos ao
oposto de tudo isso, com um agravamento de desigualdades, com a preponderância de
pressões e opressões coercitivas.
De qualquer maneira, não podemos minimizar esse potencial que faz com que as
instituições sociais, tomadas em si ou em seu conjunto, sejam permanentemente confrontadas
às dinâmicas instituintes que perigosa e permanentemente as desafiam, com suas ameaças de
homogeneizações e continuísmos, mas também, com seus convites por diferir e criar.53
Fortalecida com Linhares, junto-me a Freire em alerta para a função de
educadora/ pesquisadora assumida por mim - não somente no trabalho, como
principalmente na vida: pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo
e me educo.”54
Entrar nesta Fundação é uma ação que exige cuidados, delicadezas e,
interações
com
durezas.
Exercícios
constantes
de
Ética,
Respeito
e
Compromisso.
Sinto-me desafiada a resistir à barbárie que avança e que está presente
em muitos. Faço-me conhecedora de uma realidade e de relações políticas que
exigem diálogos entre a instituição e seus moradores, entre o poder público e o
mundo.
Ao mesmo tempo em que me faço ciente das complexidades deste
contexto, me misturo a ele com consciência de que há uma extrema confiança
LINHARES, Célia. Texto retirado de artigo da Revista eletrônica – produção do grupo Aleph –
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/ Ano I – ISSN 1807-6211 http://www.uff.br/aleph/
53
54
FREIRE, Paulo. 2002, p. 32.
102
depositada em mim pelo gestor desta instituição e uma extrema necessidade de
construir diálogos entre os sujeitos que moram neste espaço, os funcionários e a
equipe gestora.
No ano de 2003, o coordenador da Fundação Leão XIII – sede de Campo
Grande, ao abrir suas portas e me possibilitar diálogos com os sujeitos que se
encontram confinados neste espaço, autoriza gravações de entrevistas e
registros de imagens, ainda que com a ressalva da impossibilidade de se
fotografar e a filmar os espaços internos dos alojamentos onde se encontram os
moradores deste local.
Após algumas conversas entre nós dois, me comprometo em utilizar este
material com cuidado e com consciência do poder das informações recolhidas.
Comprometo-me, então com a nossa busca - minha como ser humano e
educadora; dele, como gestor e como ser humano. Busca de caminhos para uma
gestão que possibilite a construção de um espaço de convivência coletiva mais
humana. Que esta parceria se dê na procura de reinventar a forma também histórica de
luta.55
Numa sociedade que entende luta como cultura de guerra, cultura
belicista de estratégias de destruição, aniquilamento, competição... é possível
reinventar este processo histórico na construção de lutas entre compartilha,
ética, amor, generosidade, escuta?
É fácil denunciar e encontrar culpados, mas não é esta a escolha desta
pesquisa. Afirmamos uma racionalidade que não encontra na guerra e no
enfrentamento raivoso seu único e mais poderoso instrumento, mas acredita e
promove ações construtivas e reflexivas que invistam numa crítica à razão e à
política hegemônica.
Volto-me à Linhares que orienta-me no sentido de buscar caminhos para
culturas da solidariedade, da troca, do respeito, da transformação ética e neste
percurso nos diz: Como sabemos que a paz nunca se chega pelo terror, recrudescem os
movimentos germinadores de uma cultura em que os dissensos necessários e fertilizadores das
55
FREIRE, Paulo. 2002, p. 76.
103
diferenças possam fecundar momentos de consensos, como ações provisórias, políticas. Uma
cultura em que a educação nos ajude a diferir, a distinguir, mas também a atuar em conjunto, a
amar a vida e os viventes.56
Como repolitizar processos históricos na busca de uma Escola mais
includente que reveja práticas, discursos, lógicas e compromissos com a
sociedade?
Neste sentido, me comprometo a escutar e aproximar-me dos oprimidos
desta Fundação (e de outros espaços), atenta às brechas que possibilitam
exercícios de diálogos, pequenos exercícios políticos que potencializados podem
contribuir na construção de um mundo mais humano, democrático, ético e
solidário.
E neste sentido faz-se necessário ouvir os oprimidos... Encontrar o olhar daqueles
que foram feitos invisíveis.57
É preciso uma atenção constante nestas interações onde vou
estabelecendo cuidados. Na minha atuação junto ao referido abrigo, fui
pedindo autorização para registrar diálogos e imagens não apenas à
coordenação, mas também a cada sujeito com quem eu interajo. Sujeitos que se
percebem co-autores desta pesquisa.
Fui observando nestes encontros com os senhores moradores da
Fundação, que muitos me chamam de senhora, apesar de terem mais do que o
dobro da minha idade. Apesar de falar e vestir-me de maneira simples quando
encontro-me com eles. Então, interrogo-me:
O que representa esta forma de tratamento?
Respeito pela minha pessoa?
Poder que eu represento?
56
57
LINHARES, Célia. Órfãos de Guerra? A Educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos.
LINHARES, Célia e NAZARET, Maria Trindade (orgs.). 2003, p. 58.
104
Ao ler este capítulo para os senhores Alfredo e José Rosa, este me
interrompe a leitura falando:
- Eu tenho para mim que é uma educação que o cara tem de chamar a senhora de
senhora, de senhor. Eu penso que é um respeito, né?
Esta é a ótica do senhor José Rosa. Com estas questões, fui movida a
entender o que significa a palavra Poder e Respeito, na ótica destes senhores e,
mais uma vez instigada por Paulo Freire, me pergunto:
Por que estudo?
Em favor de que estudo?
Em favor de quem?
Em favor da liberdade; da dignidade; do amor; da esperança; do
respeito; do direito ao pronunciamento, convido os senhores da Fundação para
dialogarem conosco e juntos refletirmos estas questões.
Ao me ver passar, o senhor Alfredo me chamou, perguntado se nos
reuniríamos naquele dia em grupo. Sentei-me ao seu lado. Ele lembrou algumas
histórias, inclusive a do peixe mágico, história que tem como título Pescadinha e
que representa meu repertório de infância.
Resumo da história Pescadinha: Era um pescador casado com Maninha.
Fazia muito tempo que não levava peixe para casa. Um dia ele puxa o anzol e
consegue trazer à margem, o rei dos peixes, que promete ao pescador realizar
qualquer desejo, se o devolver ao mar. O pescador faz acerto com o peixe, que
permite-lhe consultar à esposa qual o desejo a ser atendido.
Antes do pescador chegar em casa para ter com sua mulher, aproveito
para dar a voz aos senhores e às senhoras. Pergunto-lhes suas opiniões sobre
que pedido Maninha irá fazer.
105
Neste instante no qual estava sentada com o senhor Alfredo que
relembrou o dia em que contei a história da Pescadinha para o grupo, aproveito
para perguntar-lhe quais seriam seus pedidos, se estivesse no lugar do
pescador. Conversamos sobre diversas questões a partir da história.
Sr. Alfredo segurando seus objetos pessoais para que não se percam
-
Lembra do peixe? (da história que contei) Você tinha direito a fazer três
pedidos para o peixe... você só fez um: voltar para sua casa. Outro
pedido que você pudesse fazer para mudar aqui (a Fundação) para
melhor, o que você mudava?
-
Comida boa e remédio. Pessoa para cuidar da gente. Dar banho. Olhar a gente.
Cuidar de nós todos. Dela, dele, de mim. Cuidar mesmo, cuidar. Só, mais nada.
-
E como seria esse cuidar?
Pergunto ao Sr. Alfredo sobre o significado do Cuidar para ele.
Provocado por esta pergunta, este senhor começa a falar que gosta de cantar, de
dançar, de bater palmas... Que sabe tocar piano e que toca várias músicas de
ouvido.
Conversamos mais um pouco e eu pergunto sobre a Escola. Ele diz que
lembra de uma professora, D. Ruth, que já se aposentou e se parece comigo.
Perguntei o que ela tinha de especial e ele respondeu: ela tocava piano. Ensinou
106
o senhor Alfredo a tocar chocalho, triângulo, piano. Ao falar da sua professora,
este senhor nos remete a Paulo Freire quando afirma:
Sonhava-se uma pedagogia alegre, boêmia, como eu, tropical, uma pedagogia de
riso, uma pedagogia da pergunta do amanhã pelo hoje, uma pedagogia que acreditava na
possibilidade de transformação do mundo, que acredita na história como possibilidade.59
A possibilidade me faz voltar à questão do Poder e, movida a entende-la
sob a ótica desses senhores e senhoras, me remeto a Freire quando diz que para
mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os
outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem ‘tratar’
sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar
da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o
mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem
ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível.60
-
O que é Poder para você? Pergunto ao senhor Alfredo.
-
Poder é fé, muita fé. Tem que pedir a Deus. Tem que tomar remédio.
-
Porque você acha tão importante tomar remédio?
-
Eu rezo na hora de dormir, na hora de deitar. Muita fé, muita paz, saúde. Só.
Poder é fé. Muita fé. Tem que pedir a Deus. Só Deus pode me tirar daqui. Mais
ninguém.
-
Você disse que ajuda muito às pessoas aqui. O que te faz ajudar as
pessoas?
-
Ninguém me ajuda... alguns me ajuda, outros não. Eu ajudo muito. Ajudo.
-
Se o senhor não tomar remédio, como é que fica?
-
Eu fico calmo. Tomando remédio ou não tomando. Acho importante tomar o
remédio. Ficar bom pra ir embora. Prá mim sair daqui. Tomar remédio mesmo.
Todo mundo toma. De manhã e de tarde. De manhã e de tarde, todo dia.
59
FREIRE, Paulo. 1994, p. 145.
60
FREIRE, Paulo. 2002, p. 64.
107
Remédio como promessa de cura? Garantia de saída? Passe para a
liberdade? Cura de quê?
Estas questões me remetem à Escola. Espaço grávido de esperanças por
parte de tantos pais que sonham por futuros melhores, por oportunidades para
seus filhos. E outras questões são geradas:
A Escola é a promessa da cura?
Cura de quê?
Precisamos nos curar das diferenças que nos constituem e homogenizarnos em pensamentos únicos? Em favor de quem e do quê?
Num convite à reflexão sobre os significados da palavra liberdade, trago
um diálogo com o Sr. Alcino, que ao perguntar-lhe sobre o que é Poder, me diz:
-
O que é Poder. Uma pessoa poderosa. O que é Poder, hoje
em dia? Pergunto.
-
Não sei.
-
Por exemplo: uma pessoa que manda aqui em tudo, tem
Poder. E uma pessoa que vive aqui, tem Poder? O que é Poder?
-
Tem até um hino que diz: Jesus Cristo tem poder, né?
-
E o que é Poder? Quem tem Poder? Quem tem Poder tem o
que? Prá ter Poder, precisa ter o quê?
-
Se for procurar muitas coisas, milhões de pessoas não têm poder.
A pessoa, principalmente que tem liberdade, ele tem um certo poder. A pessoa
que tem riqueza, ele tem um certo poder. A pessoa que é um artista, ele tem um
certo poder. Quem não sabe nada, não tem nada. Quem de nada tira nada, é
nada. Concorda?
-
E se eu perguntar para o senhor qual é o seu Poder? Qual é
o Poder que o senhor tem? O senhor acha que o senhor tem?
-
Olha, nós tivemos conversando sobre no tempo da escravidão e eu
falei que a princesa Isabel, ela fez uma coisa com Amor e com Poder. Mas quase
108
tudo que ela fez não valeu nada. Sabe por causa de que? Porque a senhora cava
uma escravidão aqui e diz: pronto vocês estão livres. Se eu não tenho uma
enxada. Se eu não tenho um cavalo. Se eu não tenho terra. Pra quê que eu quero
ficar livre? Eu vou fazer o que, livre? Então tinha ser uma espécie de uma
reforma agrária, não é isso? Que liberdade é essa? Adianta alguma coisa o cara
ser livre?
Reforço as reflexões do Sr. Alcino com Paulo Freire, que nos afirma que
ou somos agentes da emancipação das pessoas oprimidas, ou agentes de sua domesticação.
Não há uma zona neutra.61
Este compromisso que a educação tem com a emancipação do sujeito,
nos dá a dimensão da sua importância como ação política, formadora de
sujeitos críticos. E para sermos livres, precisamos saber quem somos, para que
possamos entender e dialogar com nossos contextos. Precisamos saber do outro,
para aprendermos com as diferenças. Precisamos pronunciar nossa voz, para o
amadurecimento de nossos diálogos e articulações conosco e com outros.
Para dar continuidade a esta conversa, convido mais uma vez os
senhores que vivem na Fundação. Senhores que sabem a força da palavra
Opressão, por viverem mutilados de maneiras diversas. Mas também sabem o
61
FREIRE, Paulo. 2002, p. 86.
109
poder da palavra Esperança que sustenta tantas pessoas em pé, na busca de
brechas para a transformação dos espaços áridos de amor, humanidade e
respeito. Senhores trabalhadores, que hoje aos 70, 80, 90 anos de idade, esperam
pela prometida aposentadoria.
Outro dia, enquanto conversava com o senhor Edvar - um dos tão
referidos senhores - passou por nós uma assistente social. Este senhor que
dialogava comigo comentou:
-
Eles falaram que iam vê o dinheiro da gente, a aposentadoria, mas não fazem
nada. Pelo tempo que disseram que iam fazer alguma coisa, alguém já tinha que ter
recebido.
Respondi:
-
Mas sr. Edvar, as coisas não são tão simples. Elas trabalham muito, mas
não depende só do trabalho delas. Existe um processo burocrático que passa
por muitas pessoas. As assistentes sociais estão trabalhando e já conseguiram
algumas mudanças aqui dentro. Mudanças importantes.
Quase em interrupção este senhor me afirmou com veemência:
-
A gente fala com a coordenação, mas não tô vendo eles fazerem. Porque quando
eu trabalhava, diziam que eu precisava pegar um boi. A gente ia lá e trazia o boi. Era
complicado. O boi se escondia no mato, corria. Passava por cima da gente e podia matar.
Mas a gente tinha que levar o boi vivo. Levava o boi. Não tô vendo eles trabalharem.
Este senhor me aponta a existência de vários tempos. O tempo caduco
das burocracias que se confirmam entre gerações. O tempo destas jovens
assistentes sociais, que conseguem, com árduo trabalho, realizar conquistas que
deveriam ter acontecido em outros tempos e, agora, chegam em tempos ainda
necessários, mas desumanos e injustos. O tempo de Isabel Reis que não vive
diariamente neste contexto, não faz parte dele de maneira oficial e tem
consciência de que qualquer deslize seu, pode interromper estes diálogos e
interações de construções. O tempo deste senhor, que espera há tantos anos
pela escuta das tantas necessidades fundamentais e mínimas, para que o sujeito
110
seja tratado com dignidade. Ele me aponta coisas que mudaria na Fundação
caso tivesse o Poder.
-
O que é Poder? Pergunto.
-
O Poder é você fazer uma coisa, e aquilo é difícil. E, você que faz
aquilo. Então é um Poder . Qualquer um troço é poder, mas só você que faz
aquilo.
-
Se o senhor virasse o presidente daqui da Fundação...
-
Mas eu não viro.
-
... se tivesse poder...
-
Mas eu não tenho. Ainda mais que isso aqui é péssimo.
-
Péssimo?
-
É, isso, eu tô doido pra ir embora. Não quero nem saber de ficar
aqui. Quando soltar minha aposentadoria. Eu (gesto de ir embora).
-
Mas o que é que o senhor acha que a pessoa que tivesse
poder aqui dentro, podia estar fazendo para melhorar?
-
Aqui, ninguém faz nada prá melhorá. Os olho deles aí são grande.
Eles querem tudo pra eles. O olho grande deles aqui é demais.
-
Mas o que é que o senhor acha, que seria importante mudar
aqui dentro? O que é que o senhor mudaria aqui dentro?
-
Mudar aqui dentro? Tem muita coisa pra se mudar, muita coisa
mesmo. Por exemplo? A chefia por exemplo, tinha que tá mudando toda ela. A
chefia daqui é péssima.
-
E o que é que a chefia poderia estar fazendo de diferente?
Que é que você faria de diferente?
-
Vir uma pessoa que gostasse da gente e começasse a fazer as coisas
pra agradar todo mundo. A pessoa que quer agradar aqui, que quer agradar você,
é tudo falsidade.
-
Outra coisa que precisava mudar.
111
-
Imagine você, que aqui você não pode dar um Boa Tarde, que nêgo
pode chamar você de bobo. Você pode dar um Boa Tarde, nós conversando
assim... pensa que nós tamos fazendo bobiça. Não sabe nem falar com a gente, o
pessoal. Eles acham que ninguém aqui sabe nada. Todo mundo é doido, ou tá
maluco, ou tá não sei o quê. Se você fala um troço, aí o outro lá já compreende
outro troço errado.
-
Então uma coisa importante é que gostem de vocês, outra
coisa importante é que percebam que vocês sabem muitas coisas.
-
É isso.
-
E outra coisa importante?
-
As coisas pra nós. Nós temos que gostar de uns aos outros prá
poder o troço engrenar e ir pra frente. Se eu pego pra puxar de um jeito e você
pega para puxar de outro, a corda não anda, isso aqui não anda. (...)
-
E outra coisa importante, que precisava aqui?
-
Quem que reúne aqui? Junto? Eu pedi pra fazer uma reunião prá
que tivesse caneca por exemplo. Eu por exemplo quero a minha separada. Eu
gosto de dar o café pra você, mas na sua caneca. Na minha não. Eu tenho esse
hábito comigo, eu faço assim. Ninguém quis. Vai fazendo café, vai vindo as
caneca pronta. Ali de novo, ali... que nem outra vez. Não é errado isso? Aparece
uma doença em uma pessoa lá por causa disso. É porque eu tô doido pra ir
embora. Por causa disso, coisa assim não serve.
Este senhor vive num espaço onde convivem doentes com aids,
tuberculose, sífilis, hepatite... Na sua experiência de convívio neste espaço
complexo, este senhor nos aponta questões fundamentais: Que eles sejam
amados. Que permaneçam vivos. Que seja de conhecimento de todos que estes
sujeitos têm saberes, valores, culturas, idéias e precisam ser ouvidos com
respeito. Que a Fundação Leão XIII, precisa assumir-se como órgão responsável
por ações de educação social e neste sentido, construir espaços para a interação
e pronunciamento político desses sujeitos.
112
Estas reflexões feitas entre sujeitos que pensam seu viver/ construir entrelaçados a uma instituição, nos levam a enfocar a importância dos saberes,
convívios, solidariedades, construções de códigos e regras de convívios em
grupo.
Convido Arendt como ajuda para que eu possa elucidar estas reflexões
que me acompanham. Ela me instiga a pensar no ser humano sem esquecer-me
da diversidade de culturas, de modos, de etnias, de ideologias, de necessidades
como instrumentos mediadores de diálogos constantes com a política pública,
no asseguramento de que as necessidades do mundo e seus sujeitos plurais
possam e devam ser escutadas, olhadas e transformadas em políticas e ações
democráticas e includentes.
Neste sentido, afirmo-me com Hannah Arendt quando nos diz que a vida
activa, ou seja, a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo, tem
raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens, um mundo que
ela jamais abandona ou chega a transcender completamente. As coisas e os homens constituem
o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e,
no entanto, este ambiente, o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que o
produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de
cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma
vida humana, nem mesmo a vida eremita em meio à natureza, é possível sem um mundo que,
direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos.
Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens
vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade
dos homens. 62
A presença de pessoas e culturas heterogêneas aponta necessidades e
lógicas plurais que me remetem à Escola e levam-me à seguinte questão:
Como assegurar que a Escola possa acompanhar os movimentos do
mundo, tornando-se mais larga e includente?
62
ARENDT, Hanah. 1995. p. 31.
113
Vida em retalhos
capítulo 9.
114
Trazer a diversidade da vida do sr. Wanderley é uma maneira de narrar
a vida de tantas famílias da classe popular, que sustentam a vida aproveitando
brechas que materializam possibilidades de sobrevivência, ampliadas como
formas de existir.
Dinâmicas como estas precisam estar presentes nas escolas, visto que
este mundo – veloz e mutante – define, com freqüência, as maneiras de muitos
estudantes de instituições públicas constituírem suas redes de aprendizado.
Trago aqui o relato do sr. Wanderley em forma densa, por perceber que
esta rede de relações – complexa – é bastante comum também, entre os muitos
senhores e senhoras que vivem hoje na Fundação Leão XIII.
Falar do sr. Wanderley pode significar falar das tantas famílias
brasileiras, hoje pais dos estudantes das redes estadual e municipal que, ao se
tornarem idosos – em muitos dos casos – exilam-se da família, terminando a
vida em abrigos públicos; ou por, a partir de certo momento, não mais
conseguirem produzir e corresponder às necessidades impostas pela vida; ou
ainda, por terem sido vítimas de imprevisibilidades que lhes tomam barracos,
casas, empregos, ou por tantos outros motivos, também emaranhados.
Acontecimentos e circunstâncias que na maioria das vezes impõem a
delicada decisão de entregar os filhos a quem possa criar, enquanto que os pais,
são engolidos por condições de vida negadoras e inviabilizadoras da própria
vida.
A seguir transcrevo o depoimento do senhor Wanderley Marques, para
que ele mesmo, ao se apresentar, narre sua trajetória de apropriação de saberes.
115
Minha Vida em Retalhos
Wanderley Marques
Quando perdi meu pai, falecido de pneumonia (eu com quase oito de idade), uma
parenta distante de minha mãe, que morava no Rio de Janeiro, foi a passeio visitar
parentes em Santa Catarina.
Minha mãe – D. Otília – ficara viúva. Quatro filhos pequenos e muita miséria.
Meu pai, nada me lembro, apenas o que escutei comentar: era magro, alto, funcionário
da Prefeitura, trabalhava digamos, como gari, conservava as laterais da estrada, roçando
mato e limpando os bueiros. Pois bem, minha mãe, pobre e viúva, filhos para criar e não
tinha as mínimas condições.
Essa parente, D. Juventina Marques Agostinho, conversando com minha mãe,
resolveu levar uma das crianças para criar no Rio de Janeiro e, não sei porque, eu fui o
escolhido.
Assim, no dia sete de setembro de 1951, partimos. Antes passamos em visita por
cidades catarinenses como Lages, Urubici e Campos Novos. Depois, Rio de Janeiro.
Recordo que fiz oito anos quando estávamos em Lages.
Chegamos no Rio dia 20 de setembro de 1951, exatamente à meia noite, pois o
relógio “cuco” da sala anunciou. Eu barrigudo – cheio de vermes – pequenino, agarrado
à saia de D. Juventina. Entramos no escuro, sem acender as luzes para não surpreender
o marido dela, Sr. Abel Canosa Torres, gordo, com seus cento e tantos quilos, que estava
dormindo.
Ela acendeu a luz, ele acordou, olhou-a nos olhou e disse: – velha, quem é este
homem? Este era o adjetivo usado entre eles – velho e velha – e ela respondeu: – este
menino é filho de uma parente viúva e muito pobre, eu o trouxe para criarmos. Ele
emendou: – homem na minha casa só come se trabalhar. Então, ela foi para a máquina de
costura, fez um mini-macacão para mim e, exatamente às 7 horas da manhã levantamos,
tomamos café e fomos para a oficina onde deveríamos estar, pontualmente, às 8 horas.
Foi então com oito anos de idade, às 8 horas daquele dia, que comecei a jornada
de trabalho que veio a me acompanhar a vida por quase um sempre.
116
De casa até a oficina, era pertinho. Morávamos na Travessa do Mosqueteiro, nº
25, aptº 20, na Lapa e, a oficina logo adiante, na rua Teotônio Regatas 27, também na
Lapa.
Ele era o proprietário de tudo aquilo que víamos: uma garagem muito grande
servia de estacionamento; outro galpão eram as bombas de óleo diesel e gasolina; outro
era borracharia e o outro, a oficina mecânica. Vários funcionários corriam pra todos os
lados, principalmente, quando chegávamos.
No primeiro dia fui instruído que deveria ficar com bastante estopa na mão, para
que quando o dono do carro viesse buscar o veículo, eu seria avisado, qual então, eu
passaria estopa no carro para ganhar gorjetas e, toda semana – pois o pagamento era
semanal – eu também aguardava na fila, minha vez de receber meu pagamento. Não sei
exatamente quanto era, talvez uns cinqüenta reais de hoje, mas havia uma condição:
estes cinqüenta eram divididos: trinta para ajuda nas despesas de casa e vinte guardados
em um cofrinho globo (minha poupança).
Fui matriculado na escola pública – Colégio Marechal Deodoro – ali próximo, na
Glória. Fiz a primeira e segunda séries. Fiz bom aprendizado com boas notas.
Na época, as notas máximas eram 100. Eu tirei no primeiro ano nota 85
(segundo lugar), professora Dona Marina Patti e, no segundo ano, nota 90 (segundo
lugar), professora dona Maria da Glória. Sei da pontuação e colocação porque havia na
parede o quadro de honra, onde apontava: 1°, 2° e 3° colocados.
No período de férias, íamos os três para a estação de águas em Águas da Prata,
Cambuquira ou Lindóia; lá nos divertíamos, tirávamos muitas fotos e brincávamos, sem
deixar de estudar para o próximo ano.
Acontece que, ao terminar o segundo ano, tudo mudou. Dona Juventina tinha
sua mãe velhinha, morava sozinha em Magé, Estado do Rio. Fora operada e precisava de
companhia para ajudá-Ia a criar seus animais, cachorros, gatos, galinhas, patos,
marrecos etc.; então fui morar com ela. Tia Bilica, assim a chamava.
Mulher difícil e de pouca fé, metida a curandeira, benzedeira e macumbeira.
Tinha um cachorro vira-latas branquinho, chamado Príncipe.
De vez em quando íamos os dois pescar siri na praia e, quando saíamos, ela
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entregava a casa aos cuidados do Príncipe e seus caboclos de macumba. Dizia que sua
casa ficava bem guardada; no entanto, quando chegávamos, a casa tinha sido arrombada,
levando quase tudo.
Muitas vezes, à meia noite, me acordava e íamos fazer despacho nas
encruzilhadas, com sapos, punhal virgem, nome da pessoa a quem queria mal (espetado)
e uma série de coisas abomináveis, além do livro (O legítimo livro da cruz de caravaca) –
livro satânico, que era obrigado a ler todas as noites antes de dormir.
Logo que cheguei a Magé fui matriculado na escola pública Grupo Escolar
Visconde de Sepetiba, para cursar a 3ª série. Assim, de manhã estudava e a tarde, saía
para vender, em um carrinho de mão, frutas e verduras como: banana, alface, quiabo,
mandioca, salsa, cebolinha verde etc., que nós dois plantávamos do outro lado do rio,
num terreno pertencente à marinha, onde o pessoal cercava uma parte e tomava posse,
podendo desfrutar do terreno. Só não podia vender.
Assim, era a vida, estudava de manhã e trabalhava a tarde, vendendo as coisas.
Não sobrava tempo para brincar; portanto não soube o que é brincar, não tive infância.
Era uma criança em regime de adulto.
Na escola, sempre fui bem, passei todos os anos: 3ª, 4ª e 5ª séries (admissão ao
ginásio) com boas notas. Aí não me recordo as notas, nem os nomes das professoras.
Nessa época, houve um caso que bem me recordo:
Senhor Abel, além de todos os seus bens, como oficina; carro; apartamento de
aluguel, outro no qual morava, sítio em Guapimirim, também tinha um avião teco-teco
(quatro lugares) prefixo PP-DMD, código Delta mega Delta, que ficava no hangar do
aeroporto de Manguinhos. Uma curiosidade: ele não guardava sua fortuna em bancos e
sim em casa, em um cofre, no quarto e, nem dona Juventina sabia o segredo, era muito
egoísta e avarento, ou seja: mão de vaca.
Em 1954, ele fez uma excursão, que na linguagem dos pilotos se chama de
revoada, desta vez para a Argentina. Foi só, em seu avião, na volta trouxe de carona
uma mulher de nome Ednéia Bessoni, sua amante. Por infelicidade pegaram uma
tempestade muito forte e o avião caiu entre a mata fechada no Paraná, isto aconteceu dia
27 de agosto de 1954, três dias depois da morte de Getúlio Vargas.
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Ficaram sete dias perdidos, ambos bem machucados, porém vivos. Ele, como era
um homem inteligente, bolou um meio de gritar por socorro: com um pedaço de lona fez
uma espécie de funil. Então subia nas árvores e gritava socorro, com isso. O eco ia longe
no silêncio da mata. Isso repetia todos os dias. Até que no sexto dia, já cansados,
famintos e descrentes, à espera da morte, resolveram fazer uma promessa a Nossa
Senhora de Aparecida: se fossem salvos, dariam uma vela do tamanho de cada um à
Santa. Por coincidência – mesmo dia, mesma hora (18 horas) (hora da Ave Maria) –
dona Juventina na casa deles, fazia a mesma promessa.
No dia seguinte, o sétimo, de manhã, como de costume, subiu em uma árvore e
gritou por socorro. Na terceira tentativa, teve resposta. Tornou a gritar e confirmou,
alguém respondia longe e, a cada grito a resposta se aproximava mais. Até que chegou
uma canoa com dois pescadores, eram genro e sogro, pescadores que nunca haviam
pescado naquelas bandas e, naquele dia, simplesmente resolveram entrar naquele rio que
nem sequer dava pesca.
Durante aqueles dias, nós no Rio, acompanhávamos as notícias pelo rádio no
Repórter Esso, sobre o avião desaparecido com os dois tripulantes a bordo.
Dizia: Avião Cesna, PP-DMD - desaparecido desde o dia 27, com poucas
chances de haver sobreviventes - esta era a notícia diária.
Assim, foram encontrados e levados para o hospital em Curitiba.
Depois de alguns dias, já recuperado, voltou pra casa, lembro bem: era um
batalhão de repórteres de rádio à sua espera para entrevistá-lo.
(detalhe) Pouco tempo depois, foram pagar a promessa em Aparecida do Norte,
Sr. Abel, dona Ednéia Bessoni, dona Juventina e eu, todos juntos.
Três anos depois houve separação. Então resolveram me levar de volta à minha
mãe.
Quando cheguei, minha mãe que ficara viúva, já não estava só, havia um
padrasto e, uma semana depois, ela me falou que eu não podia ficar em casa porque o
Orlando (padrasto), não queria.
Assim, eu iria trabalhar em uma casa de família em Biguaçu, cidadezinha
próxima e, a partir daí, eu passei a administrar minha vida por conta própria. Neste
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lugar fiquei pouco tempo, pois tinham dois filhos do casal, maiores, que me batiam. Daí,
por volta dos 14 anos de idade, fui pra casa de outro casal, em outro local, para vender
doces, cocada, sonho, Mané da Bahia (doce de fubá com coco), roscas e outros, fiz uma
freguesia certa – debaixo da ponte Ercílio Luz – onde atracavam navios para carregar
madeira e barcos de pesca. Tinha freguês a quem eu vendia até fiado, pois me pagavam
direitinho. Feita a freguesia, não retornava com a sobra, pois eu comia tudo para sobrar
um tempinho para brincar. O que comia era descontado do meu pequeno salário no fim
do mês.
Depois fui trabalhar em casa do Salvito Gonzaga, família rica: ele, esposa e uma
filha, linda jovem, que fora eleita rainha do clube mais chique do lugar e veio a casar com
um cara, dono de uma autorizada - Simca (marca de automóvel da época). O velho
senhor Salvito, era médico do INPS e professor de Inglês. O filho Salvito Junior, era
delegado de Barreiros, bairro do Continente.
Depois, passei a trabalhar em casa de dona Carmem Whendausem de Brito (D.
Carminha), viúva, duas filhas moças, sobrinha do senador Celso Ramos, falecido
naquela época, se não me engano, em desastre de avião.
Nessas casas o que eu fazia era varrer quintal, ir à padaria, quitanda, regar as
plantas do jardim etc.
Depois, passei a vender sorvete em carrinho, pelas ruas de Florianópolis; aí eu
pagava vaga em pensão pra comer e dormir; assim fui até a idade madura. Dos 18 aos 20
anos trabalhei com um carrinho (tipo de pipoca) estacionado na rua Conselheiro Mafra,
no Centro da Capital, fazendo e vendendo amendoim (japonês). Ganhava um bom
dinheiro, pois vendia bastante e ganhava comissão.
A partir daí minha vida mais uma vez mudaria, pois conheci a bela Iza, rainha
do bairro Coloninha, no estreito (ainda Florianópolis). Namorávamos mais por minha
imposição pois ela era muito bonita, muito disputada pelos rapazes: uma bela morena,
olhos azuis, andar provocante, pura tentação. Eu levei a melhor na disputa, porque não
cansei de insistir: fazia versos, com rimas de amor e, aos poucos, fui conquistando a
beldade, até que resolvemos fugir. Esta era a solução quando os pais da moça não
aceitavam o namoro e os pais dela sabiam que eu não tinha condições de casar, vendendo
amendoim. Além do mais minha fama não me recomendava, eu vivia na orgia em boates
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e cabarés.
A mãe dela correu comigo várias vezes em que nos encontramos, simplesmente
me detestava. Até que um dia convenci a moça e a levei para um hotel próximo a
rodoviária. Meu cunhado, o mais moço, nos ajudou na fuga e a carregar mala. No dia
seguinte, fomos pra casa de minha mãe em três Riachos. Uma semana depois a mãe dela
descobriu onde estávamos e foi atrás, porém depois de muita conversa, ela aceitou nossa
relação e se propôs a ajudar-me, tanto que convidou-me a morar em uma parte da casa
dela. Arrumou emprego pra mim em uma madeireira (serviço braçal), mas eu era jovem,
forte, visto que na época pesava 62 quilos, cheio de saúde. (Hoje, com 62 anos, peso 45
quilos). Logo nasceu minha filha Andréia, hoje com 40 anos, funcionária pública,
formada em direito, casada, tem um filho, meu neto Pablo, com 17 anos.
Quando saí da madeireira fui trabalhar em um frigorífico embaixo da ponte,
chamado La Serena. Camarão congelado. Ali, trabalhava dentro da câmara frigorífica a
20 graus negativos, batendo caixa (pregando as caixas dentro das câmaras). Quando
sentíamos estar quase congelados, saíamos pra tomar sol e depois retornávamos. Isso
durante oito horas por dia; as mãos entre os dedos em feridas, visto o ácido do camarão e
o cheiro muito forte a ponto de ferver as roupas com sabonete. O banho de uma hora
debaixo do chuveiro não era suficiente para tirar o mau cheiro que exalava.
Andréia tinha 2 anos quando resolvi vir para o Rio de Janeiro tentar melhor
sorte, isso era 1966. Aqui chegando, fui trabalhar na padaria da Lapa, juntinho onde
morei em 1951. Trabalhando, ali mesmo dormia em cima dos tabuleiros. Almoçava e
jantava pão com mortadela, para juntar uns trocados e mandar para Iza e Andréia. Aqui
vale lembrar, que tinha no Rio uma cunhada (irmã de Iza), a Olga, que era solteira,
morava na Cândido Benício em Jacarepaguá, casa alugada. De acordo, juntei minhas
economias e com a ajuda da Olga, trouxemos Andréia e a Iza de avião para o Rio.
Fomos morar com a Olga, que contratou uma babá para cuidar de Andréia, para
que a Iza trabalhasse no salão de beleza que ela tinha em Cascadura (Av. Ernani
Cardoso, 186). Quanto a mim, trabalhei em várias padarias como a São Luiz, no Largo
do Machado; Danúbio, na Vila Izabel; Imperato e Bonaza, no Méier, na rua Dias da
Cruz; outra na rua Bento Lisboa; outra na rua Marquês de Abrantes, no Botafogo; outra
na rua Bolívar, em Copacabana. Em todas essas era balconista, ajudante ou entregador
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de pão. Por fim, trabalhei na confeitaria Rio 400, nas Laranjeiras; nesta, era gerente no
período da tarde: eu fazia o caixa e fechava a casa, além de comandar os funcionários e
controlar todo o serviço da confeitaria.
Durante esse tempo as coisas tomaram outro rumo. A Iza conheceu outras
pessoas e, como não admito traição, tive que deixá-la. A Olga casou-se com o Dr. Jaeder
Soares, mudou-se para o Espírito Santo e levou Andréia para criar. Assim sendo, tudo
pareceu desmoronar o castelo que havia construído. Fiquei só, fui para Brasília, pouco
tempo depois da fundação (cinco anos), mas não consegui emprego em padarias. Então
fui para Belo Horizonte tentar uma colocação. Como estava difícil e, as economias
acabando, fui trabalhar em um circo que estava armado na Av. Presidente Antonio
Carlos, bairro São Cristóvão.
Quando entrei no circo entrei como amarra cachorro – serviço braçal –
trabalhador de serviços gerais. É bater estaca, fazer limpeza, dar comida aos animais,
limpar a jaula dos animais. Igual na construção civil em que o ajudante de pedreiro é o
João de Barro. O servente é Cavalo de Aço. Tudo apelido para a função braçal.
Trabalhava, ganhando micharia que mal dava pra comer. Mas um ano depois fazia parte
do trapézio do Grande Circo Norte-Africano, por intermédio do treinador do trapézio,
senhor Pipo, que também era o palhaço Potó, além de dono do circo. Foi ele quem me
ensinou, me treinou e me fez estrear na cidade de Montes Claros em Minas Gerais, isto
porque eu namorava a filha dele de nome Mércia. Ela era contorcionista e o irmão,
Marcos, era malabarista e também trapezista voador.
Aí minha vidinha mudou. Porque eu dormia em cima do picadeiro, debaixo
daquelas lonas frias, danadas. Como amarra cachorro, comíamos aquela gororoba que a
gente fazia embaixo das lonas do circo. Porque se comêssemos lá no restaurante com os
artistas, comer um PF, o dinheiro não dava para a janta. Aí, depois que passei para o
trapézio já ganhava um ordenado por mês. Já comia no lugar que eles comiam. Já
chegava a ficar em uma pensão, um hotelzinho, lugar bom para dormir. Para viajar a
mesma coisa. Uma diferença enorme.
Daí veio a minha chance de ganhar bem, comer e dormir bem, além de ser muito
aplaudido quando nos apresentávamos. Era uma vida cheia de encantos, como viajar
bastante e ser assediado pelas meninas. Fiquei no circo por três anos e oito meses, viajei
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bastante. Cada semana em uma cidade. Só nas capitais é que ficávamos durante um mês.
Depois, voltei ao Rio, trabalhei com táxi da frota Santarém, no Engenho de
Dentro; em seguida comprei uma Kombi velha e fui fazer frete em uma transportadora
em Caxias, de nome Alagoana. Nessa época, morava em Padre Miguel, na Vila Vintém,
casa de D. Juventina, mais uma vez.
Naquela ocasião havia reatado com Iza, isto por várias vezes, eram idas e vindas
continuas. Numa última separação, mudei para São Paulo. Lá trabalhei na construção
do metrô em duas estações: Liberdade, com a Camargo Corrêa e a estação do Paraíso,
com a Metrag (Consórcio Metropolitana e Andrade Gutierrez), onde era apontador de
produção e apropriação.
Nesse tempo conheci a Lindomar, mulher com a qual viria a me casar
legalmente. Antes da união legal, fomos trabalhar, os dois, com o Ely Barbosa: edições
comerciais, cinema e televisão. Ele é irmão do Benedito Rui Barbosa, escritor de novelas.
Éramos caseiros, morávamos no próprio local. Eu era motorista, ela, serviços gerais. Aí,
foi que – por influência do Ely e sua esposa, dona Teresa – casamos ali mesmo. Ele
pagou todas as despesas, inclusive fez festa no próprio estúdio.
Ali conheci muita gente da televisão e do rádio. Fui várias vezes nos canais de
televisão assistir programas como o do Bozo no SBT; Mulheres em desfile, na Gazeta;
Hebe Camargo, na Bandeirantes. Foi lá que conheci o Maguila em início de carreira,
entre outros. O Sérgio Reis e Agnaldo Rayol que foram padrinhos de casamento do filho
do Benedito e muitos outros, como Jô Soares, para quem fizemos a gravação de um
comercial da pinga "oncinha" e muitos mais.
Infelizmente só ficamos um ano, pois a Lindomar era muito ciumenta, além de
nós dois bebermos. Por isso não ficávamos muito tempo no mesmo lugar: discutíamos
hoje, amanhã ela pedia demissão. Dali fomos tomar conta de uma mansão em
Caraguatatuba, litoral de São Paulo, mas pelos mesmos motivos ficamos apenas alguns
meses. Depois fomos trabalhar, também de caseiros, na firma Playland do grupo do
Playcenter: eu motorista. Também saímos. Então desisti dessa função em conjunto; fui
trabalhar em uma firma de acrílicos: a Polifibrás. Eu motorista de caminhão, fazia
entregas.
123
Nesta época me separei da Lindomar. Dois meses depois conheci Iracy, que era
empregada do patrão e, passamos a viver juntos. Na ocasião saí da Polifibras e fui
trabalhar com a firma Lombardi, prestando serviço na Caixa Econômica Federal. Fazia
malotes (entrega). Ali trabalhei por três anos. Depois fiquei parado pois havia terminado
o contrato; no entanto a firma me mandou para casa, aguardar a chamada por seis
meses, mas me pagava o salário regularmente. Até que voltei a ser convocado para
prestar serviço no Banco do Brasil, como motorista de ambulância, onde fiquei todo o
tempo do contrato: três anos. Outros lugares trabalhei, mas sem carteira assinada.
Desde 1995 não tive mais um bom emprego.
Para finalizar, digo que estou separado da Iracy; com ela tive dois filhos – o
Layon, menino de 13 anos e Luara, menina de 10 anos. Vivo só, cheio de saudades das
crianças, morando na Fundação Leão XIII e tentando tratar vários problemas de saúde,
após ter morado por seis meses na rua. Assim, contei em retalhos, parte de minha vida
conturbada.
Meu sonho na juventude,
era de muitos filhos ter;
hoje, os poucos que eu tenho,
mal consigo os ver.
124
Depoimento
Wanderley Marques
Rio, 09/09/2006.
Geralmente escrevo por impulso, coisa de momento. É como preparar um prato
simples, caseiro: o segredo é o tempero. O fim acontece quando termina a proposta que
me veio como um lampejo.
Transmito minha escrita da maneira mais simples possível. Linguagem popular
e de fácil entender, ou seja: com poucas palavras muito pode ser dito.
Não me preocupo em agradar gregos e troianos. O importante é tentar fazer o
melhor.
Não me considero um poeta, mas devo ter uma veia de inspiração. Tenho pouca
instrução, mas faço bom proveito.
Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono e, como tal, também sonho um
dia ter o nome conhecido, trabalho reconhecido e quem sabe, editado.
O ato de escrever é como o ato de amar. Você se deixa levar por inteiro, buscando
a amada inspiração. Por isso, a cada trabalho concluído, de mim ganho um abraço, bato
palmas para mim mesmo e parabenizo o que faço.
Feliz seria, saber que meu modesto escrito ocupa suas mãos e me faço merecedor
da atenção dos teus olhos – leitor – que devoram com voracidade cada página virada,
pois tudo que fiz foi no intuito de agradar teu seleto bom gosto, aguçando teu paladar
apurado.
Porventura queiram me contactar, basta este número ligar:
21 2410-7008. Recados para o poeta.
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no tabuleiro do Brasil
entre versos e reversos
capítulo 10.
126
Tudo tenho, nada quero,
tudo quero e nada tenho,
sou como água pouca,
que não move engenho.
A potência dessas águas que deságuam, versadas pelo senhor
Wanderley, se abrem em corredeiras oriundas, muitas das vezes, dos silêncios
que desejam brotar, mas acreditando-se poças escorregadias, de limo verde e
maduro, nos afugentam com receio das fragilidades. Convites para a
desistência.
Não foram poucas as vezes em que cheguei nessa instituição como
educadora que integrava a equipe do projeto Buscando Caminhos Através da
Arte e sentei-me em um batente para observar o que movia os olhos dos outros.
Ali ficava um bom tempo, parecendo não fazer nada, para muitos, mas
fazia-me atenta a uma folhinha que caía, acompanhada por um olhar
comentador; curiosa por uma pedrinha catada, como preciosa e, depois de
analisada a sua forma, cor, peso, já polida entre dedos e camisa, percebia que
essa mesma pedra aguardava no bolso, embaladinha em papel de bala
encontrado no chão: destino de afeto e de lembranças.
Assim, também me sentia acolhida por silêncios e olhares quase duros,
como aqueles do senhor Célio que assim que me avistava, gritava de sua
cadeira de rodas com veemência:
- Vai morrer. Você vai morrer! Xingando-me com nomes pesados.
Quando eu me encontrava sentada num batente, num meio fio ou numa
pedra de construção, conversando, cantando, recitando com alguém com quem
construía relação, aquele sr. silenciava seus gritos, em respeito.
Mas se meu olhar se descolasse por um instante daquele interlocutor
com o qual dialogava e, insinuasse um olhar para o Sr. Célio, ele – que me fitava
– virava o rosto enfaticamente, com tamanha precisão e rapidez que definia a
127
impossibilidade de aproximações entre eu e ele, ou de laços tecidos entre
olhares.
Bastava levantar-me, em despedida daquele momento no qual me
encontrava com algum senhor ou senhora, que o Célio gritava e me xingava
novamente.
Nunca provoquei um embate de olhos, exercitando-me em cuidados
para que não alterasse expressões em meu rosto e corpo, mesmo naqueles
momentos nos quais fui pega de surpresa com seu falar enfurecido. Continuava
meu trabalho, sem evitar passar ao lado do sr. Célio, visto que sua cadeira
sempre estava na passagem do caminho.
Mas já o conheci assim, havendo eleito esse ponto como seu local
preferido para estacionar a cadeira de rodas e banhar-se ao sol. Também
exercitava-me para não enfatizar atitudes catadores de brechas favorecedoras
de aproximações forçosas.
Fui percebendo que, nos encontros coletivos nos quais muitos dos
cadeirantes precisavam de ajuda para locomover-se até o local onde nos
reuníamos, sr. Célio fazia-se presente cim regularidade. Enquanto eu trafegava
com algumas cadeiras de rodas que levava para a sala, era surpreendida com a
presença do Célio, sempre imóvel. Atento e circunspeto, participava à sua
maneira.
Eu não fingia que não o via, mas também não o fitava, por assim intuir
que o Célio queria. Mas quando sentia que podia, passava um olhar por ele e,
por breves 2 segundos, me permitia – quase que de maneira invisível – assumir
uma alegria minha, pela sua presença.
Assim passaram-se meses, nos encontros em duplas, volta e meia
visitados por suspiros e olhares de vizinhos passantes, ou nos encontros mais
amplos, uns e outros banhados por histórias, canções, poesias que acordavam
desejos de trocas. Nunca houve uma palavra do senhor Célio, jamais ocorreu
uma presença assumida.
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Até que um dia, caminhando pela Fundação, sua ausência aparente
tornou-se forma confiada e com uma voz precisa, me grita:
- Hei. Venha cá.
Procurei de onde vinha e era o senhor Célio a me chamar.
- Hesitei um pouco, precisando confirmar entre gestos, se era para mim o
chamado.
- Venha cá, confirmou o Célio.
Quando perto um do outro estávamos, Célio fez um gesto decidido,
levando a mão direita ao peito e, dali retirou um guardado entre as blusas.
Trouxe, então, um papel antigo e bem dobrado, apresentando-o a mim.
- Tome, rasgue um pedaço, e leve com você.
Abri o bilhete como quem abre um segredo e me deparei com alguém –
presente no papel – nesse escrito de tempos:
Célio, você é um cara muito legal. Dizia o bilhete amigo.
Não poderia rasgar, nem levá-lo comigo.
Por um impulso, toquei em suas mãos perguntando se poderia levar o
bilhete de um outro jeito.
Sr. Célio ficou apenas me olhando, aguardando-me.
Abri minha bolsa e mostrei-lhe a máquina fotográfica, já bem conhecida
dele, visto que sempre a uso nos meus encontros. Pedi permissão para tirar uma
foto do bilhete. Isso feito, disse-lhe que também adoraria tirar um retrato no
qual ele estivesse presente, para levá-lo também comigo.
Sr. Célio posou alegremente.
Dias depois, levei lhe a foto que revelava o bilhete e outra foto dele, bem
posudo e belo.
Sr. Célio guardou a foto na qual posava e hoje, de vez em quando, nos
cumprimentamos gentilmente.
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Quando com ele me encontrei para ler esse escrito, neste ano de 2006,
ano e meio após o episódio narrado, ele mostrou gostar do texto. Lembrou-se
da época dos gritos e xingamentos e silenciou entre orgulhos serenos e
concordantes com o caminhar das palavras lidas. Contou-me que a foto fôra
enviada, por carta, para sua mãe, naquela mesma época. E disse-me que
autorizava a narrativa, mas que para isso se efetivar, gostaria deste texto
impresso em papel também para ele, proporcionando-me importante
aprendizado ao falar-me de maneiras diversas, que, ainda que estes senhores e
senhoras façam de tudo para que desistamos deles, não podemos fazê-lo.
Também, o senhor Célio me mostrou o quanto as experiências podem
nos encolher, levando-nos a nos proteger de encontros que possam vir a afirmar
e presentificar dores e fragilidades.
Descobri, neste senhor – chamado por muitos de cabeção, por seu
aspecto físico diferente – um homem doce, risonho.
Lembro-me de alguns ensinamentos que recebi quando me dirigi pela 1ª
vez à Fundação Leão XIII, unidade de Campo Grande. Recomendações para
que não conversasse de perto com os senhores e senhoras; que não ficasse
sozinha com nenhum deles; que toques ou apertos de mão nem pensar e que
jamais me descuidasse de meus pertences que deveriam estar sempre na mão:
eram avisos vindos de toda parte.
São estes senhores e senhoras que me ensinam que, ao resolver trabalhar
num local como este, faço-me implicada às complexidades presentes e,
tornando-se impossível construir relações verdadeiras sem tocar e ser tocada,
sem afetar e ser afetada.
Relações afetuais ressaltam uma constatação que vem se afirmando, a
cada dia, como fundamental nesta metodologia: a necessidade de explorar a
dimensão do risco, visto que precisei intencionalmente assumi-lo como
imprescindível, fundamental como o risco, por exemplo, de me relacionar com
o senhor Célio, de ser enfrentada, agredida por ele.
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Risco de que preciosidades não possam ser registradas ou mostradas
para outras pessoas, se assim for o desejo daqueles que me revelaram reflexões
entre trocas con-fiadas.
Risco de contrair alguma doença, apesar de cuidar-me atentamente,
lavando o rosto, as mãos e os braços, sempre que tenho discreta oportunidade.
Risco de ter meus objetos pessoais e instrumentos de trabalho
desaparecidos.
Mas não posso arriscar-me, jamais, a fazer-me como mais negação uma
na vida das pessoas. E neste sentido, o delicado respeito e me silenciar quando
a outra parte sinaliza ser a sua possibilidade de convivência comigo.
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.
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Volto-me então ao senhor Wanderley que, entre conversas, contou-me
com orgulho sobre sua estada na escola.
- Quando eu cheguei na escola eu era bem caipira, vinha lá de dentro do mato
mesmo. Caipira, não sabia nem o que é que ia falar.
E as crianças gozavam, me chamavam de caipira, de matuto.
E a senhora que me criava comentou com as amigas: - primeiro ano, acho que o
Wanderlei não vai nem conseguir passar da primeira série, porque ele não sabe nada.
Nada. Absolutamente nada. Matuto, veio lá do mato, lá do interior.
Moral da história – conta-me o sr. Wanderley – segundo colocado na primeira
série; segundo colocado na segunda série e uma boa colocação na terceira série.
Depois fiquei uns seis meses sem ir à escola porque fui morar em Majé, com a tia
Bilica. No dia dos exames a senhora Juventina – que me criou – me buscou em Majé e
levou ao Rio de Janeiro para fazer os exames de final de ano. Me saí bem e passei em 3º
lugar.
Pergunto-me se é sempre que esse dito matuto consegue libertar-se dos
títulos impostos como rótulos e garantir espaços coletivos onde o fazer, o trocar,
o refletir, o amar, o afetar e ser afetado possam se fazer práticas cotidianas.
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E esse rótulo marcante me traz à lembrança outro senhor, morador da
Leão XIII, Luis Carlos pessoa, com quem tive o prazer de conversar algumas
vezes. Encontrava-o sempre sentado em um monte de pedras amontoadas
como sobras da construção de um pavilhão novo, que estava sendo erguido
para melhoras na acomodação dos senhores. Construção que muitos deles
afirmam contar com mais de 10 anos de realização, ainda que continuasse em
processo de construção em 2005 e em constante promessa de breve
inauguração.
Neste sentido, certa vez estava procurando o senhor Luis Carlos, quando
constatei, pela primeira vez, sua ausência entre as pedras e solicitei ajuda a uma
das assistentes sociais – pessoa delicada no trato com os usuários e querida por
eles. Foi ela que me noticiou o falecimento do senhor Luis, que se desconhecia
estar tuberculoso.
Extremamente tocada, contei-lhe que tinha levado uma foto dele sentado
em seu mirante, junto a seus pertences e, uma outra foto na qual aparece com
um amigo, um fazendo a barba do outro. Levei a foto para presentear-lhe.
Atônita, confidenciei à assistente social notícias das últimas vezes que tínhamos
conversado – eu e o senhor Luis – comentando sua criticidade aguda.
A assistente mostrou-se perplexa, sem acreditar que falávamos da
mesma pessoa. Mostrando-lhe a foto, confirmou ser ele mesmo. Ainda surpresa,
ela comentou com sentimento carinhoso reflexivo:
- Olha só, eu não dava nada por ele.
.
.
.
Os senhores Luis Carlos, Wanderley e Célio juntos à assistente social, e
tantos outros, me fazem pensar em quantos estudantes são considerados
problemáticos em sala de aula, crianças e jovens rotuladas nas escolas
institucionais e nas escolas da vida, da mesma maneira inconseqüente.
E o próprio sr. Luis Carlos me despertava os sentidos, quando entre
conversas, refletíamos.
132
- Sr. Luis, pergunta Isabel, quando eu cheguei aqui o senhor estava
comentando alguma coisa, há algo em que eu possa ajudar?
- A refeição está péssima.
Arroz cola, com um pouquinho de feijão e algumas fatias de tomate.
Os funcionários têm que reclamar aos chefes, para os chefes tomar uma
iniciativa. Reclamar à sede e a sede fazer o complemento que está faltando.
- Que reclamações o senhor acha que deveriam chegar até o chefe e à
sede?
- A refeição está péssima. Isso não é refeição para um homem, nem para uma
senhora. Nem para interno nenhum.
Um arroz grude – cola – com um pouquinho de feijão e uns pedaços de tomate.
Cadê a carne?
- O que significa poder, para o senhor?
- Poder é... falarmos da comida... falarmos de tudo e eles têm que agir.
Têm que tomar uma iniciativa e botar em dia o que está faltando.
- O senhor mora aqui há quanto tempo?
- Dessa vez eu faço 51 anos. Já rodei por isso tudo.
- Se o senhor pudesse me dizer o que é que o senhor aprendeu aqui
nestes 51 anos, o que é que o senhor me diria?
- Aqui eu não aprendi nada. Aqui não tem nada para aprender não. Aqui nós
temos é que ensinar.
- E o que é que o senhor, então, pode estar nos ensinando?
- Eu não tô ensinando nada não.
Eu só estou falando o que muita gente não tem coragem de falar.
Eles morrem passando fome, comendo esse grude horrível e continuam de bico
calado.
- Que outros assuntos necessitam de mudança, aqui na instituição?
133
- O resto está agindo, tudo andando direitinho. Só aí, está essa graça.
Acordar de madrugada para tomar um gole de café frio com biscoito. E agora, na
hora da refeição, comer essa cola braba.
- Mas se o senhor fosse diretor da Fundação, o único item a ser mudado
seria a alimentação? Ou haveria outras questões também?
- Ah! teria outras. As coisas iam correr a rigor. Não ia ser esse patriotismo.
- O senhor acha que os senhores que moram aqui se ajudam uns aos
outros?
- Em que sentido?
- Aí, eu é que pergunto ao senhor: em que sentido há ajuda?
- Ninguém ajuda ninguém aí não. Quando se usa um favor, é como
correspondência de um cigarro ou um pacote de fumo.
- Quem é que dá o pacote de fumo?
- A pessoa que está pedindo o favor.
- Não existe mesmo ajuda, por uma vontade de ajudar?
- Não.
- Então, não seria este, um outro ponto que precisaria estar melhorando,
mudando aqui na Fundação: a forma da gente estar se relacionando um com o
outro?
Silêncio.
- Eu tenho 34 anos, o senhor tem 80. Um conselho para a minha vida,
qual seria?
- Fazer pela sua parte.
- O que o senhor acha que pode facilitar esse nosso viver, para que não
seja um viver afirmado na negociação, no qual, a fim de fazer alguma coisa para
o outro precise estar oferecendo algo material, como um comércio?
- Gratuitamente?
134
Não existe isso. Eles querem escravizar os outros com um pacote de fumo.
Penso nas palavras, tantas vezes tratadas de modo a falar das
representações populistas que permeiam a idéia de Pátria.
O que é preciso fazer para que a gente possa lidar com o outro em
formas amorosas?
Convido Carmélia, funcionária da Leão XIII por 26 anos e, por 22 anos
atuando na CRS - unidade de Campo Grande, no sentido de aprofundar
algumas questões enfocadas e tensionadas pelo Sr. Luis Carlos e por outros
senhores, usuários desse Centro.
Carmélia: - Nossos usuários,9 hoje foram população de rua ontem. Totalmente
desprovidos de todas aquelas necessidades básicas. Há um descompromisso dos governos
que não têm uma política voltada para eles, sem que haja envolvimentos políticos.
Eu me lembro de uma colocação que fiz no Seminário que vocês – do projeto
Buscando Caminhos Através da Arte – realizaram conosco. Sabe por que que eu fiz essa
colocação lá? Porque lá estava toda a maioria dos dirigentes da Fundação. Então, na
Fundação, não são os funcionários que respondem, e sim os governantes.
A realidade é feia, a ponto dos usuários (os abrigados) passarem fome. Essa é a
grande realidade. Choca. Mas choca feio. Aqueles melhores de saúde foram para a vila
dos idosos e lá no CRS [Centro de Recuperação Social], na unidade de Campo Grande,
ficam os idosos que não podem caminhar, que precisam de fisioterapia. É uma população
que te deixa triste. Uma falta total de expressão.
Foi este o motivo de eu ter chegado ao ponto da depressão. Eu tive que me afastar
agora em 2006, porque o meu psiquiatra exigiu como recomendação médica.
Sobre as minhas colocações, eu fiz, faço e farei em benefício deles, porque alguém
precisa falar alguma coisa. Porque a partir do momento em que eu me omitir estarei
sendo conivente. E eu nunca fui conivente principalmente com este nosso trabalho. Meu
Os funcionários da Fundação Leão XIII e os próprios senhores e senhoras moradores dos CRS – Centros
de Recuperação Social se referem a esses senhores e senhoras abrigados como usuários.
Essa palavra cria me incomoda por levar-me a associá-la, nesse contexto, a pessoas que se utilizam de algo
ou de alguém; quando me referir a estes senhores e senhoras, estarei optando por outras expressões como
os abrigados, os senhores e senhoras exilados etc. No entanto, sempre que em uma entrevista essa palavra
surgir, estarei respeitando a cultura e a implicação daquele que a citou.
9
135
trabalho lá – você percebeu, Isabel, eu me dediquei muito a eles e, se tiver que voltar, vou
continuar me dedicando. Porque eles precisam de muita afetividade. Acho que o único
recurso que nós temos lá, para trabalhar, é a nossa afetividade. É isso que mantém eles,
ainda.
Isabel: - E essa afetividade vem de onde, de quem?
- Da gente. Do profissional. Mas do profissional que é comprometido. Porque os
usuários estão acostumados a conviver muito com a perda e as perdas para eles são
muito dolorosas.
Esta perda não tem previsão. Acontece de repente. Eu sou contra isso. Porque
eles perdem o vínculo repentinamente. As pessoas vão para lá, criam vínculos – vêm
profissionais bons como você, como as assistentes sociais, como as psicólogas – a gente
cria esse vínculo com o nosso dia-a-dia e, esse dia-a-dia é cortado pela política de alta
rotatividade que traz e leva profissionais através de projetos de grande importância para
a população e que não podem ser interrompidos, mas, infelizmente, são. Eu sempre
questionei isso.
Tem que haver projeto não de interesse político, partidário, do momento.
Não há verba para realizar atividades com os usuários. O que eu realizava era
por conta própria. O improviso também desgasta. O lanche deles, os aniversariantes do
mês, eu fazia, com a colaboração de muita gente. Tinha bolo, refrigerante. Tinha tudo.
Fazia contatos. Recursos da Fundação não tinha, mas de grupos amigos do CRS. No
início do ano de 2005, o que eu fiz: liguei para todos os grupos colaboradores e fiz uma
escala, cada mês um grupo assumia, grupos de fora que apóiam.
Tem um ex-funcionário que todo ano leva 400 sorvetes. É gente que tem o
compromisso com eles. Com a minha saída eu tenho a certeza de que deixei os contatos
dessas pessoas lá, tudo organizado. O benefício é para a comunidade.
- A gente estava conversando sobre o tempo que eu tenho estado no CRS,
de 2002 para cá, e o quanto fico perplexa com a quantidade de coordenadores
136
que presenciei nesse período. Entre 5 e 7 coordenadores em tão pouco tempo.
Por que isso?10
- Política.
Mas, será preciso atentar para as várias acepções da palavra política.
Como politicagem, percebo que pratica a manutenção dos tantos privilégios
mediante cargos e remunerações diferenciadas como premiações àqueles que,
obedientes, cumprem ordens que se acreditam inquestionáveis e trabalham com
afinco para que realidades díspares não sejam refletidas, ou quiçá
transformadas no que diz respeito a recursos injustamente alocados, porque
massacradores de experiências.
Penso na política como sistema também capaz de desmontar limites,
reconfigurando ações no investimento de espaços sociais múltiplos, que
investindo na criticidade e na participação dos sujeitos sociais, favoreça
repensarmos coletivamente os laços de sociabilidade e as práticas
configuradoras de inclusões e de exclusões.
Política que vislumbra um porvir democrático, porque se acredita como
ferramenta favorecedora de que todos e todas possam participar da gestão
pública como sistema de decisões e de práticas coletivas.
Política que acredita que apenas na participação efetiva da sociedade
como agente de reflexão e de decisões coletivas, faz-se possível reestruturarmos sistemas para que todos e todas possam fazer da vida uma
experiência duradoura, porque criadora de sentidos que não se fazem como
privilégios, mas como direitos, oportunidades e realizações de todos.
Pensando a política como práticas complexas, volto a dialogar com
Carmélia: - Ter compromisso com a política significa o quê?
- Existem uns coordenadores que têm compromisso com a população de usuários,
outros que têm compromisso com a política. Quando acontece de ter compromisso com a
10 Isabel trabalhou na Leão XIII dede 2002, como educadora que integrava a equipe do projeto Buscando
Caminhos Através da Arte. A partir do ano de 2005, o projeto termina e Isabel continua seu trabalho,
mantendo o vínculo com todos os senhores e senhoras com os quais estabeleceu relações, como
profissional voluntária.
137
população e enfrenta a política, o coordenador fica por pouco tempo, porque perde o
emprego. Começa a incomodar e se incomodar muito...
- E ter compromisso com a política, significa mesmo o quê?
- Prejuízo para a população carente. Porque a pessoa não está comprometida com
o desenvolvimento, mas com a manutenção do seu cargo.
A instituição tem que ter compromisso com a população atendida. Através de
projetos e de uma equipe séria. Abrir concurso público. Formar uma equipe para não
quebrar este vínculo. Tem que haver comprometimento.
Por exemplo, eu fiquei muito pouco como coordenadora lá. Minha indicação não
foi política. Eu fui praticamente intimada para assumir a coordenação. Mas eu estava
com muito gás, hoje estou desgastada devido àquele trabalho lá. Como coordenadora a
partir de 1996, eu tive respaldo aqui em baixo, porque o meu diretor – na sede – era da
própria Fundação, não era indicação política. Então as decisões que eu tomava no CRS
de Campo Grande, havia um funcionário diretor que acatava. Eu não tinha um
compromisso político e nem ele, que também era funcionário. Eu fiquei quatro anos e
pouco.
O vínculo político não passa por uma avaliação. A assessoria legal da Fundação
faz uma avaliação para ver se você – funcionário – pode assumir aquele cargo. Uma
avaliação séria.
As observações de Carmélia me levam a ressaltar a importância da
necessidade de ações que possibilitem institucionalizar os vínculos, que
oferecem condições a exercícios profissionais comprometidos com as reais
demandas sociais.
Instigada pelas reflexões, continuo a entrevista:
- Carmélia, quando você testemunhou gestões com este vínculo e
aprisionamento político, quais foram as marcas desses coordenadores? Quais
eram os reais interesses e ações?
- Muitos conflitos entre funcionários e usuários. Porque eles vêm com uma
cobrança, não em benefício da população e sim no benefício de mostrar um trabalho em
138
que os chefes – cargos de confiança – fiquem cada vez melhores em relação à política,
para manter o cargo deles. A política partidária, infelizmente, atrapalha nosso trabalho.
- Qual é o objetivo da Fundação Leão XIII, no seu ponto de vista?
- Se existe objetivo, ele não se faz. Por que falta tudo. Como estão os
funcionários? Completamente desestruturados e doentes. Na Fundação, hoje, nós
estamos doentes. A Fundação está morrendo, de acordo com a morte dos funcionários.
Eles vão morrendo e a instituição vai morrendo também. Quando eu entrei nós éramos
quatro mil e poucos funcionários. Hoje, não chegamos a mil. Não tem concurso interno,
externo, não tem nada. Cabide político. Isso é lamentável, isso é muito triste.
O objetivo da Fundação, mesmo, é o atendimento às pessoas carentes em regime
aberto e regime fechado. O que é regime aberto? Centros Sociais. Unidades fechadas: é
abrigar o desabrigado. Mas como não tem mais recurso...
- Você disse que houve um período em que foi coordenadora do CRS de
Campo Grande e afirmou que teve um respaldo. Como foi essa gestão e que
respaldo era esse?
- Não era um respaldo financeiro, mas um respaldo de trabalho, por exemplo, de
decisões, como eu há pouco mencionei. Eu tomava uma decisão – custava a tomar – mas
quando tomava, não deixava que ninguém boicotasse.
- Quais as grandes dificuldades que você teve e quais as principais
realizações que você conseguiu fazer?
- Eu tive todas as dificuldades, a maior responsabilidade foi conseguir levar o
trabalho. Mas eu recebi muita ajuda. Eram mil e pouco usuários, sem uma ambulância e
nós não tínhamos recurso nenhum. Os funcionários levavam usuários no carro e eu
levava no meu quando algum usuário precisava ser hospitalizado em órgão público.
Hoje, as coisas são assim: é do Estado é do Estado. É do Município é do
Município. Parece que o ser humano tem rótulo, você é do Estado; você é do Município.
Eu fiz com que isso não existisse no meu trabalho como equipe gestora.
Quando eu assumi o cargo, eram 30 óbitos por mês e fechei o semestre com 34.
Eu respeitei o compromisso e tive ajuda.
139
- Hoje a problemática da Fundação continua?
- Continua. Está melhor porque a Fundação Leão XIII pegava todo mundo da
rua, não tinha um perfil. Hoje tem um perfil. Em Campo Grande, é o idoso. Mesmo
assim continua sem recurso.
- Hoje, o que é mais urgente na Fundação que precisa ainda ser
conquistado?
- Alimentação, saúde... Falta tudo.
- A metodologia da equipe como se desenvolve? Por exemplo, a limpeza
do armário dos usuários, feita sem que eles participem; as roupas que após
serem lavadas pela lavanderia da própria sede não retornam ao mesmo senhor
ou senhora que estava usando aquelas peças; os objetos deles que são
recolhidos e jogados fora, sem o consentimento e participação dos abrigados
nas decisões e ações.
Seria um processo metodológico consciente e, portanto, a par das
implicações desses atos, mas que, no mesmo instante, se finge surpreso com
suas seqüelas, como conseqüências inesperadas, até que ponto essas ações
seriam atos inconseqüentes ou se trata de uma ingenuidade, de um despreparo
nos procedimentos adotados?
- Acho que é por ignorar. Mas nesse ponto eu responsabilizo a equipe técnica.
Porque nós temos essa visão, mas precisamos brigar por isso. Acho covardia de nossa
parte, enquanto profissionais, não bancarmos essas reflexões e o cumprimento delas.
Como, por exemplo, as canequinhas individuais, coisa que eles tanto pedem.
- Essa questão pedagógica que é tão importante dentro do CRS, se faz
como?
- Quase não existe.
- O que de riqueza você traz em si, considerando como aprendizado
constituído nessas experiências na Leão XIII?
- Valorizar a vida. Valorizar a família. Valorizar tudo que eu tenho na vida.
Quantos idosos morrem lá abandonados no hospital. Vão para o hospital e ficam lá. A
140
gente aqui esperando o comunicado da morte. Isso é o abandono. Tem que ter um olhar
mais atencioso com o ser humano.
Eu cresci muito na Leão XIII. Recebi muito amor. E venho de uma estrutura
familiar de muito amor; então pude dar amor a essa gente. A gente dá o que tem.
- Que portas sociais você vê abertas e, que portas você vê fechadas na
Fundação?
- Difícil. Fechada é a falta de recursos. E a aberta é que tem muita gente
querendo ajudar. Com o mínimo de recursos e o mínimo de comprometimento, consegue.
- O que você não gostaria que esta pesquisa fizesse?
- Prejudicasse eles. Essa pesquisa tem que ser em benefício deles. Se você fizer
uma matéria que seja em benefício deles, ficarei feliz.
- Uma pesquisa para beneficiar os abrigados, precisa de que?
– Bom, eu vou falar do CRS. Primeiro definir o perfil real de lá de Campo
Grande: é o idoso. Para fazer um trabalho voltado para o idoso, é preciso contar com
fisioterapia, com a alimentação própria para eles. Não é arroz e feijão. Mas uma
alimentação voltada para o idoso desnutrido. A parte da saúde é fundamental e eles não
têm.
Existe um ambulatório que atende entre aspas e quando algum usuário está
muito ruim é encaminhado ao hospital para morrer.
É preciso ter um compromisso real.
É importante o atendimento com psicólogo, com assistente social, com médicos,
com terapeutas, com pedadogos. Mas não por estagiários.
Musicoterapeutas. Eles – os usuários – adoram cantar. A maior alegria deles é a
música.
Como eles se sentiram gente no Seminário realizado por vocês do projeto
Buscando Caminhos Através da Arte. Se sentiram gente. Gente! Eles falaram tanto.
Até hoje eles falam da alegria do Seminário. Primeiro, eles passearam pela
cidade; segundo, eles adoram cantar e terceiro, eles tiveram receptividade.
141
Participaram do Seminário na platéia e no palco. Você lembra daquele almoço?
As mesas forradinhas. Foi preparado um ambiente. Serviu-se strogonoff, batata palha e
arroz. Muitos nem podem comer isso porque são idosos, mas foi tão importante para
eles! Estão acostumados com arroz e feijão, sempre.
Estão acostumados a pegar uma fila para buscar a comida para almoçar. É um
sofrimento. Ficam numa fila ao sol. Lá tem uns que vão às 10 horas da manhã para a fila
do almoço. Vão com doença para a fila – aqueles que não são acamados. Os acamados
recebem a refeição nos alojamentos.
De manhã, às vezes, recebem um cafezinho sem pão. Esperam dar meio dia para
comer uma refeição. Pessoas idosas que ficam intervalos longos sem comer alguma coisa.
É um sofrimento.
Eles esperam ansiosos bater o ferro. Bater no ferro é o nome que eles dão ao sinal
feito por um usuário que a gente tem lá, que acha que o trabalho dele é esse: bater num
ferro pendurado em uma árvore para sinalizar a todos que já está na hora do almoço, do
lanche, do jantar.
- A comida dá para todos?
- Dá, mas é a política da boa vizinhança, lá também. Os protegidos recebem a
comida primeiro. Outros ficam prejudicados, na fila imensa ao sol. Até que entram no
refeitório e são servidos. Na falta de funcionários, alguns usuários colaboram nos
serviços relativos aos setores e nesses casos, cada usuário recebe do setor, ao qual ajudou,
uma gratificação como um lanche melhorado, um pacote de fumo... Mas isso não é uma
ação da Fundação Leão XIII, são maneiras internas de lidar com as questões de
defasagem funcional.
Políticas de Favor e de Terror, expressão utilizada pela professora Célia
Linhares, aí tão bem exemplificadas por Carmélia. Aliás, um dos abrigados já
havia se referido a esse tipo de política.11
Carmélia prossegue: - O mercado de trabalho não pode ser aqui na Fundação.
A Fundação tem que ajudar a eles, inserindo aqueles usuários, que têm condições, no
LINHARES, Célia; SILVA, Waldeck Carneiro da. Formação de professores: travessia crítica de um
labirinto legal. Brasília: Ed. Plano, 2003.
11
142
mercado de trabalho em algum lugar que não seja o CRS, onde ele mora. Aqui no CRS, é
preciso que ele seja igual a todos em direitos e responsabilidades. Não pode haver esse
privilégio.
- Por que as feridas dos usuários nunca saram, Carmélia?
- Diabete. Hoje tem remédio, amanhã não tem. Alcoolismo que tira a noção da
necessidade de fazer curativo e corta o efeito de alguns medicamentos.
- Aquele pavilhão que em 2002, quando eu entrei no CRS, estava em fase
de construção, sendo inaugurado em 2005, mas os usuários vieram a ocupá-lo
somente em 2006 e já nesse ano o pavilhão foi embargado por perigo de
desabamento. Por que isso?
- Aquela obra que se inaugurou em 2005, começou na minha gestão. Em 94. Na
gestão anterior à minha, a Leão XIII de Campo Grande estava um caos. Aí eu assumi.
Fui lá na televisão e falei a verdade na TV Globo. Houve um impacto. Começou a ir todo
tipo de fiscalização lá.
Fêz-se o projeto de reestruturação do CRS de Campo Grande, em todos os
pavilhões. Fomos buscar a verba, mas você sabe que tudo demora. Isso aconteceu quando
eu tinha um ano de gestão. Três anos após a aprovação do projeto, quando já estava
acabando o tempo de minha gestão, conseguimos que a verba saísse. Começou nessa
época a realização do projeto de reforma dos pavilhões. Eles liberaram verba para um
projeto alto.
Quando a unidade de Campo Grande foi aberta pela primeira vez em
atendimento à população de rua e de pessoas carentes, aquilo lá era horrível. Tinha sido
uma granja, um galinheiro, antes de se transformar na Leão XIII. Então a estrutura era
de um galpão com camas, beliches, uma sujeira horrível e cheiro forte. Também, os
usuários não tinham privacidade nos alojamentos que eram um grande galpão com
camas e beliches. Essa reconstrução dos pavilhões foi projetada para dar mais conforto,
privacidade e condições higiênicas aos usuários.
Você perguntou se a Fundação mudou. Mudou muito, mas precisa mudar mais
ainda. Como, por exemplo, essa obra que foi recém-inaugurada e já foi embargada por
problemas na qualidade da construção.
143
Aqueles senhores estão hoje esperando a morte. Eles precisam viver, o pouquinho
que lhes resta, com dignidade.
Teve um projeto da Delegacia Legal – ação do Governo do Estado (a equipe foi
embora na semana passada) e, eles não puderam ficar mais que cinco anos trabalhando
para não constituir vínculo empregatício. Ai é que vem a falta de compromisso.
Esse grupo que saiu documentou gente que estava na unidade de Campo Grande
há vinte e tantos anos e não tinha um documento de registro como interno. Não tinha
nem prontuário. Esta equipe conseguiu muito benefício para os usuários como, por
exemplo, registro tardio; 2ª via de certidão de nascimento e de casamento, através da
busca cartorial; documento de identidade e de CPF.
Foi um grupo de compromisso. Muito bom. Sem documentos os usuários não
conseguem o benefício do LOAS que é uma lei orgânica da assistência social que
possibilita a todo idoso acima de 65 anos – quem não recebe nenhum outro benefício ou
aposentadoria – a receber um salário mínimo mensalmente como benefício legal. É
importante saber que as famílias de crianças e adolescentes deficientes também têm
direito a esse mesmo beneficio.
Alguns usuários são amparados com esse benefício através de ações do serviço
social que assegura o encaminhamento para o LOAS para que seja avaliado o pedido.
Mas é preciso estar atento à questão de que quando se tenta o benefício para uns e não se
tenta para outros – que estão na mesma situação – cria-se outro problema.
Desde que a lei ampare – porque os usuários estão sob a tutela da instituição –
faz-se necessário pensar que, ao agirmos em benefício de um, temos que agir em beneficio
de todos.
Mas esta é uma ação realizada pelos assistentes sociais, não é uma ação própria
da Fundação como um procedimento formal. Essa equipe da Delegacia Legal fortaleceu
esse tipo de ação que já existia há muito tempo, em ritmo lento, devido à falta de
recursos.
- Os usuários têm espaço para se expressar criticamente?
- Tem o Centro de Referência e o Serviço Social. Eles buscam muito, são os
setores em que eles confiam.
144
- Conheci um senhor que ficticiamente chamo de sr. Manuel. Ele estava
em Copacabana à noite, passeando sem documentos, o carro da recolha passou
e o pegou, levando-o para a triagem que o encaminhou à unidade de Campo
Grande.
Mesmo avisando que tinha casa e não era mendigo, ele foi levado para o
CRS de Campo Grande. Dava seu endereço, seu telefone. Comunicou que
morava com a irmã, mas apenas quatro meses depois, quando uma psicóloga
estagiária o escutou, descobriu que tudo que ele falava era verdade. Ela mesma
checou as informações do senhor e providenciou, com ajudas, o retorno dele
para sua residência.
Estes senhores não têm o direito de ir e vir? O direito de falar e serem
escutados?
- O que você contou faz com que alguns usuários em condições parecidas fiquem
no CRS por anos e anos, perdendo sua identidade, o vínculo familiar e o direito de viver
com suas próprias referências. A triagem é muito importante para que esses senhores e
senhoras não sejam prejudicados.
Eles não são obrigados a ficar na Leão XIII. A gente tem que respeitar o direito
deles de ir e de vir. Aí é que eu falo sobre a falta de compromisso profissional, porque o
ato da entrevista inicial é para isso, para você peneirar. Quando eles falam que não
querem ficar, que têm para onde ir, que têm família – sendo fantasia ou não – nós temos
o dever de checar.
- Mas uma coisa é o que deve ser, outra coisa é o que é.
- Você, por exemplo, Isabel. Na visão da maioria dos funcionários, quando você
está ali conversando com eles, não está fazendo nada. É até uma falta de visão da
maioria. A falta de visão não traz a valorização do outro.
.
.
.
Aproveito essas análises de Carmélia, para convidar a Luciane, jovem
psicóloga que conheci na Leão XIII de Campo Grande. Instigada pelo seu
comprometimento e cuidado, pude conhecer o sr. Manuel e sua história, visto
145
que ela, Luciane, foi a pessoa que desempenhou a simples ação de escutar e
checar aquilo que o outro contava, como foi o caso desse senhor que,
finalmente, pôde ser ouvido quando esta jovem se fez disponível e disposta a
entender suas demandas.
Luciane, que fazia parte da equipe da Delegacia Legal, conta em seu
relato, aspectos importantes dessa experiência, a partir de aprendizados e
pontos de vista dela própria.
Trajetória na instituição abrigo: da exclusão ao aprendizado
Luciane Marequito
Instituição fechada, com altos muros, cercada por uma mata e afastada, muito
afastada do centro urbano. Em seu interior, 240 pessoas, 240 sujeitos de infinitas
multiplicidades. Contrariando todos os esforços de coerção e controle, caracterizados
pela atuação dos mais diferentes profissionais, das mais diversas áreas, a diversidade
vive naquele espaço. Porém, apesar da diversidade, esse espaço não é diferente daquilo
que constitui os abrigos ao longo da história: instituição de afirmação da exclusão dos
pobres, dos loucos, dos negros, dos sem residência, dos sem referência, dos sem
documentos e dos sem possibilidade de reinserção social.
Quando trabalhei na Fundação, através do projeto realizado pela Delegacia
Legal, o mau cheiro que exalava dos alojamentos (locais onde os usuários dormiam), as
roupas surradas, os pés descalços, o silêncio de alguns, os gritos de outros, a loucura
estampada ou velada – nada disso foi capaz de me causar incômodo. O maior incômodo,
que posso até chamar de desconforto, tal foi a sensação ruim que senti, me foi causado
por pessoas que a princípio cumpririam o papel de – no exercício de suas funções –
garantir o bem-estar dos usuários na instituição: os profissionais.
Meu desconforto estava em ver dezenas de pessoas sendo medicadas, sem lhes
serem oferecidos tratamentos para seus verdadeiros males. O que me incomodava era
ouvir de profissionais com atuação de mais de 30 anos na instituição: “Se (determinado
usuário) sair da instituição, ele morre!”. E havia uma grande possibilidade desse
146
usuário em questão, vir a falecer mesmo, caso fosse desinstitucionalizado. Nesse caso,
quem seria o maior dependente da estrutura do abrigo, o usuário, que se sair morrerá,
ou o profissional, que ao longo dos anos construiu essa relação de quase simbiose e não
permitiu que esse sujeito se abrisse para as possibilidades que o mundo lhe oferece?
Mas, o mundo do abrigo é um mundo de exclusão cotidiana, de crueldade, de
negligência, de perversidade e de violência. A ausência de espaço de escuta e o silêncio
dos sujeitos, quando tal espaço lhes era oferecido, revelava o medo e a coerção presentes
na instituição e que era efeito presente tanto nos usuários quanto nos funcionários. A
ausência de políticas me veio como incômodo, a partir da minha atuação em um projeto
com população em situação de rua. Projeto de fina elaboração, com objetivos belíssimos e
que se propunha a atender às demandas do público-alvo. Nas ruas, ouvi histórias belas e
tristes assim como discursos sedentos por respostas que não pude dar, que o projeto não
pôde dar. Acredito até que havia uma política, que me incomodava e que prefiro chamar
de “politicagem”.
Poderia descrever quadros e mais quadros das mais duras e cruéis faces de uma
instituição, como este abrigo. Histórias que poderiam até dar origem a livros com
infinitas edições e exemplares de infinitas páginas mas, faço a partir deste ponto, uma
escolha que me leva por caminhos que percorri, deparando-me com os mais belos quadros
pintados pelos usuários e que levarei comigo por toda a minha atuação como profissional
e como ser vivente neste mundo de exclusão.
Sempre me acompanharão relatos das histórias mais diferentes, cheias de
significados e sentidos, de sujeitos que somente tinham o desejo de contá-la. Assim como
estará na minha lembrança o agradecimento destes sujeitos pelo meu simples ato de têlos ouvido. Jamais me esqueci de frases sobre a vida, vinda de pessoas que eram tratadas
em sua maioria por profissionais da instituição como seres desprovidos de inteligência e
que se revelaram para mim como as pessoas mais sábias que já conheci em minha vida.
Levarei a experiência de observar a sagacidade de sujeitos que eram tratados como
tutelados por funcionários (falo de adultos, em sua maioria idosos tutelados).
Tais sujeitos criavam uma movimentação na qual a tutela lhes caía muito bem,
para obter o que necessitavam, às vezes com os requintes da sedução. Era como se
houvesse uma inversão: os tutores passavam a ser os tutelados. Conheci grandes
147
políticos – pessoas que entendiam os meandros da governabilidade (algo que até hoje não
compreendo). Conheci grandes economistas – que criaram e compreendiam novas
formas de comércio e monetarização. Conheci excelentes professores que me ensinaram
algumas coisas sobre a disciplina mais complexa: a VIDA.
Levo quadros com sorrisos sinceros e que mesmo em um ambiente de tanto
sofrimento, puderam em determinado momento de nossa convivência, se delinear em
alegria. Levo olhares sinceros, que muitas vezes quiseram me dizer que as trocas que
havia em nosso relacionamento, seriam importantes e que poderiam até transformar
apatia em esperança e às vezes em luta, em mudança.
Levo lágrimas de despedidas, porém sempre com um sorriso de esperança ao final
do choro. Experiência relevante e importante, sujeitos importantes e inesquecíveis.
Aprendizado essencial para o meu viver.
.
.
.
Trago aqui o Wanderley que em meio a um denso exílio, lampeja
esperança e vida, tão merecidas, ainda que constantemente arrancadas,
ultrajadas. Os versos deste senhor, o presenteiam com leveza capaz de tornarlhe firme, fazendo surgir em suas próprias brechas, a perdida esperança,
persistente como as tiriricas que quando podadas, apontam novamente a
existência de vida – mesmo nos solos mais acanhados ou gastos – re-surgindo
aqui ou acolá e se expandindo como força propulsora do ato de transformar.
Só, sozinho, solidão;
desprezo, desrespeito, sem jeito;
desafeto, oco, vazio;
sem gosto, desgosto, despeito.
Olhar vago, distante;
semblante cerrado, franzino;
mostra dissabor, amargura;
lembrando o tempo perdido.
Vê a lua, com inveja;
da sua claridade lunar;
desdenha do sol que brilha;
com seus raios – solar.
148
Das estrelas, não vê o brilho;
que o azul do céu ilumina;
na distância, lindos, brilhantes;
nosso olhar, preso – fascina.
É tudo que ele vê;
é tudo que ele sente;
se inferioriza e menospreza;
sua avaliação como gente.
Os astros, com sua beleza;
seus raios, vêm nos tocar;
uns aquecem, outros iluminam;
e fazem o céu estrelar.
A lua, dizem ter o São Jorge;
com o dragão, fogo lançado;
arma em punho, lança na mão;
com a fera, gladiando.
Um lindo dia de sol;
uma noite enluarada;
salpicada de estrelas;
tão lindas e iluminadas.
São alvo dos trovadores, poetas;
escritores, amantes da natureza;
que usam sua importância astral;
seu charme, fulgor e beleza.
Tudo isso é muito lindo;
nos enche de inspiração;
para escrever, poetizar;
buscar no fundo, a emoção.
Veja isso, com bons olhos,
subtraia o pessimismo;
some ao que há de melhor;
e o resultado é o otimismo.
Junte todos os ingredientes;
mais uma pitada de amor.
Que dará várias poções,
cheias de aroma e sabor.
149
Outras Formações
capítulo 11.
150
Os depoimentos de Luciane Marequito e do sr. Wanderley Marques me
convidam a entrelaçar experiências formativas formais e experiências
formativas informais, sistematizadas nas ruas, no sentido de vislumbrar – com
o apoio dessas múltiplas experiências – caminhos para reinventarmos
metodologias que possam se fazer inclusivas, trabalhando com as diferenças na
valorização do ser humano e da qualidade de vida – e do viver – para todos e
todas, tanto na instituição escolar, quanto em todo e qualquer espaço formativo
responsável pelo bem estar comum.
De volta da Cruzada São Sebastião – comunidade onde desenvolvo ações
junto ao grupo de senhoras idosas, crianças e jovens, participantes do Projeto
Janelas Cruzadas e, junto a professoras de uma das escolas parceiras, localizada
nessa comunidade – ainda dentro do ônibus que me conduz à minha residência,
observo todos os dias que por ali transito, uma cena inebriante na calçada da
Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Um senhor deitado sob um colchão velho – arrodeado por belíssimos
desenhos de delicados e expressivos detalhes – cria quadros que vão sendo
expostos ao redor do colchão como uma colcha que aquece os sentidos sociais
do Bairro e da Cidade. Por vezes passo de ônibus, e sem perceber, esse senhor
me chama o coração. Em maio de 2005 sou arrebatada por este cotidiano,
repetido inúmeras vezes; finalmente, salto do ônibus em seu encontro. Seu
nome é Antônio Rufino da Silva. Com seus 71 anos de idade, mora na rua há 40
anos aproximadamente.
Sr. Rufino me conta que desenhava a turma da Mônica para vender aos
turistas, mas quando ia desenhar o cabelo do Cebolinha – personagem das
histórias de quadrinhos brasileiros – o cabelo do Cebolinha não queria ser cabelo
e... virava peixe. Então Sr. Rufino começava tudo novamente, em outro papel,
mas o cabelo do cebolinha só queria ser peixe. Assim foram surgindo os peixes
que hoje, junto às complexidades da rua, tornam a vida do Sr. Rufino multicor.
Dos peixes, o Sr. Rufino foi se lembrando dos casebres de Palmeiras dos
Índios, sua cidade natal, situada em Alagoas, divisa com Pernambuco, de onde
151
saiu há mais de 40 anos. Dos casebres, foi se lembrando das igrejas. E assim, o
cabelo do Cebolinha foi levando este senhor... Fio de cabelo que ao ser traçado,
convidou gestos a fazerem-se memória, tecendo e re-tecendo seu viver.
Sr. Rufino lembra então da Fundação Leão XIII, local onde esteve por
diversas vezes, levado pelas pessoas que recolhem aqueles que estão nas ruas...
ou quando estava adoentado e internado, precisando de cuidados. Era o
próprio hospital público que o encaminhava à Fundação Leão XIII. - De lá, fugi
várias vezes , conta o Sr. Rufino. E continua sua fala localizando, para mim, o
porque de viver na rua: lá na Fundação não posso trabalhar e vender meus quadros.
Do seu trabalho, é possível a compra do papel, das canetinhas, da
comida, do colchão, da pilha para o radinho portátil... enfim, das necessidades
básicas deste senhor. Deitado no colchão sobre a calçada, Sr. Rufino me conta
que, apesar de ter perdido os movimentos dos braços e pernas por causa de
uma bala que o achou, desenha todos os dias; e é com a venda de seus quadros
que administra suas necessidades ajudando também a muita gente.
Ao destacar algumas de suas necessidades básicas, aproveita o ensejo
para apresentar-me seus quadros, assinalando a importância do trabalho e da
vida presentes na rua... e me conta também as inúmeras relações que tece e
administra nessa complexa rede de solidariedades. Morando há mais de 40 anos
no mesmo ponto, este senhor vai acompanhando a vida do bairro e um rapaz
de 19 anos, que conhecera desde criancinha na rua, é um dos grandes ajudantes
do Sr. Rufino. Também uma garota de 16 anos vem do bairro da Rocinha para
ajudá-lo, ajeitando seu colchão ao lado da loja de colchões Ortobom.
Nesta loja, são guardados pelo gerente e alguns vendedores, alguns
pertences do Sr. Rufino como, por exemplo, as canetinhas hidrocor. Numa caixa
de papelão, são guardados o dinheiro, o radozinho de pilha e um pouco de
água. Na caixa, seus bens podem se ajustar sob os braços do próprio senhor
Rufino durante a noite, como um cofre lacrado.
Numa sexta feira, pude presenciar o rapaz – hoje engraxate – vindo
providenciar a compra de um suco reforçado, um caldinho quente, ou algo mais
152
que atenda ao gosto do sr. Rufino. Estendendo-lhe o lençol sobre o colchão, o
rapaz preparava o senhor para a chegada da noite. O jovem atento aparece em
tempo de guardar os pertences na loja Ortobom e na caixa cofre.
Atenciosamente, sr. Rufino oferece ao rapaz e à garota, que cuidam dele,
as mercadorias que recebe de presente. Numa semana bolsas com mantimentos
são reservadas para o rapaz, que já sabe que na semana seguinte será a menina
a levar os mantimentos. Mas o engraxate, ex-morador de rua, aparece todos os
dias, independente de ser a sua semana de levar mantimentos. Já a menina, que
mora com sua família, aparece às vezes, quando pode.
Enquanto eu conversava com o sr. Rufino, ele recebeu uma sacolinha
plástica com um 1 kg de feijão, 2 kg. de arroz, 1 pacote de biscoito bis e 1 caixa de
bombons finos. Pude então presenciar o cuidado deste senhor ao avaliar tudo
que tinha na sacola, feliz pela fartura que ofereceria aos jovens ajudantes;
orgulhoso por poder passar adiante os mantimentos recebidos como presente e
conquista.
Também pude constatar a paciência e a delicadeza do engraxate atento
às necessidades do Rufino, que sabe muito bem o que quer e exige que tudo seja
arrumado em detalhes.
De madrugada, a 1 hora da manhã, são outros os colaboradores. Alguns
porteiros doam baldes de água e outros ajudantes aparecem para dar banho
nele, que, ali mesmo, ao lado da loja fechada, se banha. Quando os porteiros
não conseguem providenciar os baldes – é ele mesmo, Rufino – quem
providencia que os ajudantes comprem garrafas de água com a garantia do
banho.
Sr. Rufino pergunta onde moro. Ao escutar que somos vizinhos de
bairro, me pergunta sobre a chuva repentina da última semana. Comentamos e
percebo que aquilo que para mim tinha sido uma chuva rápida, para ele tinha
sido um longo martírio. Sr. Rufino comenta que rapidamente a Avenida Nossa
Senhora de Copacabana ficou alagada e foi preciso ele ficar em pé, escorado na
parede por cinco horas, até que fosse possível alguém arrumar seu colchão e
153
pertences novamente na calçada. É importante lembrar que este senhor tem 71
anos e é com muita dificuldade que fica em pé, sem no entanto conseguir
movimentar nenhuma das pernas.
Foi com delicadeza que o senhor Rufino me contou brevemente a
experiência que vivera com a chuva, como um comentário cotidiano, atento
para não me deixar constrangida pelo fato de eu morar em apartamento e, não
viver experiências equivalentes. Não houve queixa em nossa conversa, mas
diálogo. Conversa na qual posso perceber uma mistura de delicadeza, humor,
firmeza e dureza – tão comum a todo ser humano. Mas me chama a atenção a
alegria deste senhor que me afirma optar por morar na rua, apesar das
intempéries e imprevistos.
Questiono se morar na rua é uma opção, quando a outra possibilidade é
estar confinado em abrigos. Pergunto-me se essas são as únicas possibilidades
de moradia e indago sobre o que estamos fazendo, neste sistema complexo, e o
que é possível fazermos para que portas sejam abertas na pavimentação de
outros modos possíveis de habitar o planeta. Percebo em cada gesto e fala do sr.
Rufino a importância do trabalho, das relações humanas, das solidariedades, da
autonomia.
De onde vem a força que sustenta o eticamente?
Penso na família. Penso na escola. Hoje, a família do senhor Rufino me
parece ser as relações afetivas construídas entre os passantes; os moradores da
vizinhança que o conhecem há anos; os porteiros; os vendedores das lojas
circunvizinhas; os meninos de rua com quem construiu uma relação afetiva de
aprendizagens – como o amigo engraxate.
Relações complexas que nos revelam outros arranjos de estruturação
familiar, organizações favorecedoras do exercício de valores, de éticas, de
aprendizagens, de afetos e de trabalhos, apesar de todas as implicações e
complicações presentes na rua, quando esta se faz como morada. São outras
compreensões de organização familiar que vão sendo resgatadas, inclusive por
154
políticas públicas, no sentido de estar atenta a essas configurações que não se
dão restritas aos laços consangüíneos.
Conversa vai... conversa vem... e pergunto sobre um professor que lhe
tenha marcado a vida.
- Me marcou não, me marca, afirma-me Sr. Rufino com rapidez, e continua:
É o Geraldo do Norte. Tudo que ele fala acontece na vida da gente. Ontem foi dia de
negro e o Geraldo do Norte nos apresentou músicas da escravidão, falou que lugar de
comprar escravo era na Praça Mauá. Contou cada coisa que eu nunca escutei na vida...
Coisa importante.
Ouvi ele dizer que o preto velho era a caneta do patrão. Quando a caneta perdeu
a tinta, o patrão mandou o negro embora. A tinta era a força dele. E o negro dizia: O que
é que eu vou fazer, meu Deus, sem força pra trabalhar? O Geraldo do Norte vai tirando
do baú músicas que a gente nunca ouviu falar. Contou também sobre a construção de
Brasília: a escola não aceitou o filho do trabalhador que ajudou a fazer Brasília. Ficou
pronta a escola... mas não deixou o filho do trabalhador estudar.
A gente vai aprendendo com as histórias, as músicas, as poesias que o Geraldo do
Norte vai apresentando. Cada coisa que ele fala, toca num fio de cabelo, porque tudo que
ele fala pertence a gente. O negócio dele é a educação. Meu professor, é o Geraldo do
Norte. O chefe de todos os violeiros e todos os repentistas. Ele é locutor do programa
Tabuleiro do Brasil, na Rádio Nacional. A senhora precisa escutar. Vai aprender
muito. É das 4 às 6 horas da manhã, estação 1.140. Eu escuto todo dia músicas de todas
terras e todas as cantigas brasileiras que você imaginar. Fala da vida dos cantores, conta
piada e histórias com o mesmo assunto da música tocada. A gente aprende muito. A
senhora manda um e-mail para ele – eu não tenho, mas o rádio diz – e conversa com ele.
.
.
.
Numa outra visita que fiz ao senhor Rufino, encontrei-o emocionado por
ter recebido neste mesmo dia o seu mestre, Geraldo do Norte que, ao sair do
hospital de onde estava internado por alguns dias, pediu ao motorista do seu
carro para estacionar na calçada da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no
155
quarteirão entre a rua Miguel Lemos e a rua Xavier da Silveira, ao lado da loja
Ortobom.
O poeta e locutor, que já foi pião de obra, queria conhecer o senhor
Rufino, de quem já tinha ouvido falar através de um amigo comum, visto que
este amigo de 89 anos tem muitos conhecimentos na rádio MEC e é vizinho do
sr. Rufino, morando também em Copacabana. O Geraldo do Norte, levou de
presente um gravador de fita K7 e uma fita – gravada cuidadosamente por esse
amigo – reunindo nesta gravação diversos programas do Tabuleiro do Brasil.
O senhor Rufino mostrou-me o gravador e prometeu gravar uns
programas do seu professor, preparando – ele mesmo – uma fita para que eu
pudesse conhecer o Geraldo do Norte. Mas em 2006, em uma das visitas que fiz,
descubri que a fita fora entregue para alguém que pediu emprestada e, nunca
mais devolveu. Perguntei-lhe se seria possível eu mesma eu comprar uma fita
virgem para ele gravar o programa para mim, conforme ele mesmo tinha
sugerido há algum tempo. Ele me falou sobre os arruaceiros que passam nas
madrugadas e que, por perigo de assalto, ele escuta o programa num
radiozinho velho, guardando o rádio/ gravador presenteado delo Geraldo. Mas
me fala de um amigo que pode gravar em estúdio e, orienta-me a comprar a fita
e fazer um cartãozinho escrito.
Quando retorno com as fitas, leio o cartão no qual me apresento, falando
sobre o meu interesse por conhecer o programa Tabuleiro do Brasil. Aproveito
para comentar a respeito da fita emprestada e perdida, solicitando também uma
cópia gravada para o senhor Rufino. No momento em que leio o cartão em voz
alta, fico sabendo por ele, que esse amigo que talvez gravará a fita solicitada por
mim é o mesmo senhor que gravou a tal fita perdida. E me diz: – Ainda não te dei
uma entrevista. Primeiro a senhora precisa escutar o Tabuleiro do Brasil, e então a gente
conversa.
Este senhor, mutilado de tantas formas no corpo e na alma, me favorece
aprendizados sobre necessidades especiais.
156
De que escola, professor e educação o senhor Rufino nos fala e, como este
senhor trata em seu cotidiano a categoria inclusão?
São questões que me visitam enquanto dialogo com este morador de rua,
que tão bem conhece a importância da metodologia usada pelo Geraldo do
Norte.
Ao dialogar com seus ouvintes do rádio, me conta o senhor Rufino que o
professor Geraldo busca nortes alimentadores de éticas, criticidades, superações
e sonhos, semeando com a poesia, a música, as artes, as histórias oficiais e as
oficiosas, a escuta de um vasto repertório num convite para a reflexão sobre
preconceitos e óticas absolutas em verdades. Instigadas e tensionadas por vozes
oriundas de todas as partes e de estéticas, as mais diversas, estas realidades e
preconceitos vão re-escrevendo outras histórias.
E é Célia Linhares, minha orientadora nesta pesquisa, quem me conta um
pouco mais sobre este senhor, que recebe tantas visitas nesta precária morada
respeitada por vizinhos e amigos – conquista de um ofício que embeleza a
calçada e de um senhor rico em maneiras sábias e delicadas de lidar com os
passantes e vizinhos.
FOTO
- Benjamin fala tanto da pobreza de experiências, nos conta Linhares. E tenho
visto moradores de ruas com experiências fantásticas. Eu tenho até um quadro desse
Antônio Rufino e quando cheguei lá, adorei ver o orgulho deste senhor quando me
contou:
(Olhe, a senhora compre porque amanhã chega um navio da Holanda. Não vai
ficar nenhum dos meus trabalhos. A senhora pode entrar aqui nessa casa de turismo ao
lado e, mandar embrulhar. Porque eles são meus amigos. Eles me pedem favores.)
- E ele me disse quais são os favores. Porque, graças a ele, os turistas entram na
loja e, enquanto as obras do Sr. Rufino são embrulhadas, os turistas fazem compras na
loja. Isso é fantástico. Como ele se reconhece!
157
No momento da compra, ele me ajuda a escolher o quadro e comenta:
- Veja esse navio, esse é o único que tem chaminé, de toda a minha obra.
.
.
.
São muitas as escolas paralelas em nossa sociedade. Nelas, as queixas e
os limites das instituições formais são também expressas. Mas também por aí,
nas calçadas, em condições de extrema precariedade, o homem produz e
embeleza sua vida, nossa vida.
Enfim, seu Rufino dá aulas de como reinventar os abrigos e as escolas,
ampliando espaços de liberdade, de autonomia e de vínculos sociais.
.
.
.
Na busca de aproximar-me um pouco mais desses outros poderes que
são também organizações formativas, convido o detetive Antônio de Souza, no
sentido de ajudar a tensionar aspectos que se fazem presentes nas escolas,
muitas das vezes por maneiras sutis, quase invisíveis; outras vezes, por
maneiras evidentes, mas sempre como formas brutais.
Isabel: Hoje é dia 11 de setembro de 2006, eu estou com Antônio Ferreira
de Souza, inspetor de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro que trabalha na
divisão de fiscalização de armas e explosivos da polícia civil deste Estado.
Há quanto tempo você trabalha como policial?
Antônio: Mais ou menos uns 16 anos.
- Que funções você já exerceu, Antônio?
- Quando eu entrei era detetive. Trabalhava na rua, o que a gente chama de
ronda. Depois trabalhei em delegacia especializada com o meio ambiente. E atualmente,
estou controlando explosivos.
- No dia que eu vim aqui trazer alguma coisa para você entregar para
Riso, sua esposa – consultora do projeto Janelas Cruzadas e que trabalha em
parceria comigo no projeto – eu cheguei em sua sala, vi na sua mesa uma arma
e fiquei assim...
158
- Assombrada... deslumbrada, com uma simples arminha.
- Por que uma simples arminha?
- Porque é uma arma banal, foi apenas uma senhora que tinha uma arma, não
queria mais ficar com ela e veio fazer uma doação. Isso é muito comum, as pessoas doam
muito.
- Então, você me falou justamente puxando por esse fio da simples
arminha. E você apresentou outras questões, falando um pouco dessa relação de
vocês – polícia civil – com o desarmamento. Você poderia me falar novamente
sobre essa questão?
- Nós temos um depósito com algumas centenas de milhares de armas, aqui no
andar embaixo, aguardando para serem destruídas. Essas armas são todas apreendidas
nas ruas, são armas usadas nos crimes. Todo dia há apreensão e entra aqui uma
quantidade monstruosa. A mídia dá essa impressão de que os bandidos estão
suplantando a polícia, como se nada estivesse acontecendo, mas se você ficar agora lá
embaixo, só uns cinco minutinhos, você vai ver a quantidade de armas pesadas que
entram. Armas que não estão nas ruas, estão aqui dentro.
- O que você chama de arma pesada?
- Fuzis, metralhadoras, pistolas, granadas – o que você quiser, lá dentro tem.
- De que alcance?
- Ah, essas armas são armas de guerra, usadas para batalhas. Para serem usadas
em conflitos mundiais. São para destruição em massa. Não é um revólver, uma pistola,
uma coisa mais limitada. Estamos falando das armas de grande alcance. São essas as
balas perdidas, que o cara dá um tiro no morro e vai atingir alguém há 200, 500 metros.
Mas é arma de guerra. Não é arma para ser usada no dia-a-dia. Inclusive temos basuca
apreendida aqui também, que é uma arma para destruir tanque de guerra.
- E que é que está sendo desarmado com esta ação de vocês?
- O que está lá dentro, mais de 99% vêm dos traficantes, de combates nos
morros. De uma forma ou de outra é ligado ao tráfico, mesmo quando vem de um assalto
a banco. Sempre ligado a alguma coisa violenta.
159
- Mas existem as armas de doação também.
- Só que a doação não entra neste grupo. Ela vai direto para o uso, não vai para o
depósito. No depósito, as armas vieram de apreensões. Agora tem mais de cem mil
armas. Abaixo de cem mil, nunca. Você pode destruir cem mil, que amanhã serão cem
mil novamente. Esse tipo de arma entra aqui todo dia, toda.
- E porque vocês não reutilizam esse armamento?
- Porque são armas pesadas. São armas presas ainda a processos. E quando o
processo termina, geralmente mandam destruir e passam aquele rolo compressor para
amassar. Atualmente vão para o Exército a fim de serem destruídas.
- Como é a ideologia de vocês, a metodologia do policial no uso desse
armamento?
- O que ocorre é o seguinte: Fuzil é uma arma de guerra. Achar que vai dar um
tiro de fuzil na rua, ou numa favela, num morro e que será bala direcionada, restringida
com nome escrito na ponta, não será. Porque o bandido está brincando, ele atira de
qualquer maneira, não sabe para onde a bala vai. Dá um tiro em um barraco e ele vai
atingir lá o 5º barraco, se não encontrar algum obstáculo pela frente. Daí as balas
perdidas. Então, o agente policial, tem que fazer de tudo para não usar essas armas.
Achar que é bom o uso dessas armas é péssimo. Você não tem o controle de um tiro
desses. Então, a gente usa uma arma de curto alcance; o tiro dela a gente chama de stop
power, porque tem a capacidade de parar uma pessoa. São os 38, os calibres normais, os
revólveres, as pistolas. E não trazem tantos danos quanto um fuzil.
- Toda captura do bandido é feita através de armas?
- Não. A melhor forma de agir é aquela em que você não dá um tiro. É aquela
forma em que você levanta quem é a pessoa que você quer prender, onde a pessoa está e
então você faz um plano para prendê-la, de tal forma, que não envolva ninguém.
Nenhum transeunte, nenhuma pessoa corra risco.
Sendo algo planejado, você pode criar uma situação que favoreça você travar um
embate corporal com ele. Esta é a forma melhor. Sem tiro, que é a última coisa a ser feita.
160
- E é uma conduta usual nesse momento, vocês deixarem o bandido fugir
pensando nesse entorno, ou o que acontece normalmente é a polícia partir para
o tiro?
- Este é o bom senso. Se você vê que não tem essa condição de prender a pessoa,
vai ter que dar tiro e existe uma multidão, então você é louco se partir para o tiro. Você
tem que deixar o cara partir ou seguir até um local, que você sinta que não tenha risco
para ninguém. O policial precisa aprender a perder, quando há o risco de comprometer
pessoas inocentes.
- A mídia nos passa como se o cotidiano da ação policial fosse
exatamente esse que não deve acontecer. Então, você que está aqui dentro
vendo essa porcentagem representativa do modo de agir, o que é que acontece
mais? Essa ação que a mídia divulga ou a ação mais refletida, avaliada?
- O que acontece mais é esta ação que você vê na mídia. É o tiro trocado e pessoas
feridas. Não que a pessoa tivesse alguma intenção em não proteger os transeuntes, mas
acontece que a coisa é muito rápida.
- Qual o perfil desse bandido de hoje, pensando em nossos estudantes
das escolas públicas? Você acredita que grande parte desses marginais que
vocês prendem, seriam pais de estudantes que estão nas escolas públicas?
Seriam os próprios estudantes?
- A maioria esmagadora é o pessoal de baixa renda. Tem o marginal de colarinho
branco, mas a baixa renda é o que engrossa o número desse tipo de público. Muitos deles
estudam, são adolescentes que estudam nas escolas públicas. Muitos dos ladrões e dos
traficantes. A maioria deles. A maioria dos rapazes de 16 e 17 anos que pegamos estão
na escola. De noite ou de dia, dependendo da hora em que ele estuda, está no tráfico ou
está roubando carro; praticando assalto e pequenos furtos a mão armada. Usualmente
pedidos feitos por traficantes. Isso acontece direto.
- Qual a idade mínima que vocês costumam ver com arma na mão?
- No tempo em que eu estava na rua e, hoje não muda muito, com arma na mão
eu tive oportunidade de ver moleque com 10 anos. Mas hoje em dia a gente pode dizer
que a média estaria na faixa de uns 13, 14 anos. Está tudo armado.
161
- Que quantidade de adolescentes e crianças vocês vêm com arma na
mão e que tipo de arma eles usam? Qual o tipo de abordagem que vocês fazem
com eles? Como vocês diferenciam a abordagem a uma criança armada; a um
adolescente armado e a um adulto armado?
- Aí está uma coisa interessantíssima. Quando você está diante de uma criança
com arma na mão você olha para o camarada com dó, com piedade, porque é criança. É
uma coisa instintiva você quer proteger. Não quer abordar. Mas é uma coisa complicada
porque esta criança com uma arma na mão, automaticamente passa a ter 18 anos. O
efeito do tiro é o mesmo, mata da mesma forma, não há diferença.
- A firmeza da criança ao segurar a arma, é como a segurança de um
adulto ou ela titubeia?
- Ela não tem ainda essa segurança, ela vai talvez por modismo, por querer
aparecer diante dos outros. Querer mostrar que já é homenzinho. Então às vezes essas
crianças usam requintes demais em crueldade para matar. Dá o tiro, e depois dá diversos
tiros para confirmar que morreu.
- Isso é feito por criança?
- Por criança. Os colegas ficam ao redor incitando e ele vai lá confirmar o ato.
Isso dá credibilidade a ele no grupo.
- O adulto não faz isso?
- Faz também. São relações de poder. Queima o corpo sem que necessariamente
ele esteja morto. Isso é uma crueldade e o tráfico vive em cima do terror. Se não inspirar
o terror e o medo, ele não é respeitado. Ele vive como uma antiga máfia italiana. Se não
houver terror, não há respeito. Então eles precisam instaurar o terror no coração das
pessoas, para que as pessoas pensem duas vezes antes de fazer qualquer coisa contra eles.
Sem o terror, eles não sobrevivem.
- Pensando na sociedade hoje, que é uma sociedade de diversas escolas e
de diversos poderes, como é que você acha que se dá a organização e a
competência desse sistema complexo que é o tráfico, na instauração de ações
162
voltadas para a formação de crianças e de adolescentes no sentido de afirmar
valores e afirmar práticas centradas na valorização do terror?
- Eu me lembro de uma propaganda que mostrava uma criança largada, sem
atenção e cuidados, até que aparecia uma mensagem escrita: já que vocês não cuidam
dele, eu cuido. E aparecia o traficante. Então nós temos uma família hiper carente, uma
família esgotada, que bebe, desempregada e com todos os problemas que a gente possa
imaginar. O adolescente mal tratado, sem nenhum amparo, vivendo num meio hostil
com fuzil passando em sua frente dia e noite, está em um lugar de conflito. Só em paises
em guerra há isso. Então é um ambiente totalmente pernicioso. A família não cuida
porque passa fome, está cheia de problemas. O traficante está ali para acolher essa
criança ou jovem e irá fazer com que ele integre uma das facções. Para isso, vai ter um
treinamento.
- Como se dá esse treinamento? Quais são as seduções?
- As seduções se ligam sempre a essa questão do status. Geralmente eles escolhem
aquele garoto que sempre foi preterido. Que não era respeitado. Apanhava dos outros.
Um garoto pobre, que nunca teve nada e que quer ter. Então, o garoto vê nesse lugar
uma possibilidade de ganhar por dia, o que o pai e a mãe dele não ganham em um mês.
O garoto vai ter respeito, em cima do terror, porque pelo terror as pessoas vão passar a
respeitá-lo. Eu vi uma vez um garotinho que tinha 5 anos e ninguém tocava nele. Os
adultos passavam de lado. Ele tinha 5 anos, o molequinho. Um medo total do garoto e ele
era mau. Para você ver o pânico que exerce o tráfico. O nome dele era Boiú.
- E ele andava armado?
- Não. Mas os traficantes encomendavam serviços e garantiam o respeito dele.
As pessoas tinham medo de uma represália deste garotinho.
- E que represália um menino de cinco anos pode fazer?
- Ele pode arranhar seu carro todo e tacar fogo; ele pode quebrar seus vidros de
casa; ele pode pegar uma arma e te dar um tiro: o que der na veneta dele e inspirações
não lhe faltam.
- E um menino de cinco anos faz isso?
163
- Faz.
- Um menino de cinco anos pode ter firmeza na mão para dar um tiro
certo?
- Pode fazer isso sim, não é uma questão de força. Ele pode ter uma pistola muito
macia. Ele pode te espetar com uma boa faca, de corte fácil. O medo daquilo que está por
trás, é tanto que o que está na frente já abre todas as portas. Se você tiver o vizinho
ligado ao tráfico da redondeza, você não denuncia. Vai ter um respeito imenso só por
você achar que ele tem uma ligação. As pessoas estão vivendo de lendas e as lendas estão
se aperfeiçoando.
- Isso acontece muito ou é uma exceção?
- Com uma criança de cinco anos é uma exceção, mas acontece.
- Você falou que muitas crianças e jovens envolvidas no tráfico são
estudantes das escolas públicas. O que ocorre mais, essas crianças e jovens
serem estudantes ou não?
- Serem estudantes. Mas a criança e o adolescente que trafica, você não pode
dizer que estão na escola, porque tanto estão, como não estão. Faltam muito. Chegam
atrasados, são os primeiros a sair. Então têm uma vida escolar muito deturpada. É
aquele cara que não faz um dever de casa. Essas crianças e adolescentes representam um
volume grande. Eles estão ali para serem pescados. Os pais e o entorno deles é que os
oferecem aos bandidos. Não tem ninguém que fique preocupado com o que eles trazem
no bolso, qual a hora que chegam em casa ou na escola, a hora que ele sai. Ele quer as
coisas e não tem como. Então só resta que alguém o apadrinhe. E quem o apadrinha é o
tráfico.
- O que é que ainda o mantém na escola, na sua ótica?
- Acho que é a cobrança de alguns pais e o garoto precisa de alguma maneira,
ainda que frágil, comprovar. É muito difícil achar que ele está indo porque está
almejando algo melhor para ele. Ele não se alimenta direito, não tem ninguém para lhe
dar auxílio, dorme em condições precárias. Em sonho, ele pode até falar: eu gostaria de
ser isso ou aquilo. Mas entre este gostaria e a força para tentar ser efetivamente, o garoto
164
passa por um caminho muito difícil. O tráfico é um veículo mais possível para ele do que
a escola.
- Então quando esse adolescente ou essa criança sonha com profissões e
ofícios futuros, este sonho não tem forças para se sustentar através da escola
formal?
- É um tecido todo esgarçado. Porque às vezes ele está repetindo coisas que ele
ouviu, que ele ouve. Então, tudo para ele tem um valor representativo: eu quero ser
médico porque médico ganha muito. Eu quero ser aquilo pelo que aquilo representa.
Esses símbolos podem ser substituídos facilmente, para favorecer a realização do sentido
que está por traz daquela representação. E aí, ser traficante também ganha muito e é
mais possível do que ser médico. O valor é o dinheiro como algo que possibilita fazer
coisas. O valor não está em outras questões. O meio, no qual a criança e o jovem vivem,
não deixa eles serem formados em outros sentidos, com outros valores.
- E você acha que a escola pode estar fazendo um trabalho que crie um
vínculo com essa criança e com esse jovem no fortalecimento desse outro
desejo?
- Ah sim, acho. Mas acho que nos dias de hoje a realidade está muito ligada
também com a sorte dessa criança ou desse adolescente ter este ou aquele professor. Se
tiver a sorte de pegar um professor sensível, que realmente esteja ligado à realidade dele
– um professor compreensivo, que esteja disposto a compreender aquele rompante,
aquela diabrura, aquele não faço, aquela maneira dele, aluno, ser e veja neste aluno um
determinado potencial, alguma coisa que ele possa desenvolver – se o professor estimular
o potencial do aluno, aí sim eu acredito que seja possível.
Tendo o ego massageado, eu acredito que ele possa vir a caminhar para outros
lados. Mas é muito comum – a gente ouve muito relato sobre alunos que vislumbravam
essa possibilidade, tiveram esses professores, mas quando ele voltava para a sua
realidade aquilo desabava. Então aquele mundo da escola se torna um mundo de faz de
conta, porque quando ele volta para casa, para a realidade, na porta dele é o bandido
passando e dando tiro; a polícia dando tiro; o pai dele bebendo; a mãe dele com fome;
quando chove cai o telhado em cima dele, dorme no chão frio; não tem o que comer.
Então ele vai vender drops no sinal, passa alguém e oferece drogas.
165
É como aprender uma língua: se você passa três horas por semana falando aquela
língua e as outras 21 horas fala a sua língua materna, você vai falar a outra língua? Ele
passa aquele tempo na escola e as outras tantas horas, muito significativas, ele passa
com pessoas batendo nele e dizendo de diversas maneiras: não é nada disso, não é nada
disso, a realidade é outra. Se sentindo humilhado e frágil, começa a perder de vista
aquele horizonte dele. É um conflito muito grande.
Ele tem que sair do meio. Aquela realidade não pode permanecer. O pai dele
bebendo e desempregado. A mãe apanhando e com fome, acaba batendo na criança. Isso
precisa mudar com um apoio legal.
- O que você chama de apoio legal? O que seria fundamental para esse
apoio legal acontecer?
- Uma realidade estruturada. Se existe a criança, o jovem e o adolescente na
escola, o ideal seria que a família dele tivesse o respaldo para poder se estruturar um
pouco mais. Possibilitar que estes pais cultivem mais amor pelo seu filho; sejam mais
compreensivos; tenham mais responsabilidade com seu filho. Acordar a necessidade
desse pai investir nele próprio. Animar os pais a isso. Oferecer tratamento para a bebida,
para as drogas. Não tem como a criança chegar em casa com a mochilinha falando do
mundo de maravilha da escola e o pai cheirando droga ou estar com uma mulher ou um
homem estranho dentro de casa, com armas.
- Então, poderíamos dizer que a escola hoje em dia, com a realidade de
nossa organização social, ela – a escola – não teria como trabalhar essa criança
sem estar trabalhando também essa família? Pensando que a escola não pode
ser tutora dessa criança e tirá-la do contexto dela, uma maneira da escola estar
ajudando a reorganizar esse contexto seria funcionar em tempo integral e
assumir como sujeito escolar o estudante e seus familiares?
- Exatamente. Se a escola quiser realmente transformar este problema, precisa
adotar os dois. O aluno, a família e aqueles que estão à volta. Tem que haver um jeito de
integrar, porque trabalhar com uma ponta é descobrir a outra. Não adianta trabalhar
aqui uma coisa e chegando em casa tudo aquilo se desfazer. Tem que haver o interesse
das duas partes e este interesse precisa ser trabalhado. Então o Estado, o Município –
166
não estou falando da escola particular – teriam que investir na criança que está na
escola, e para cada criança matriculada na escola deveria ter uma assistência que
pudesse ir para a casa desse aluno e isso ser condição para a criança estudar. Como uma
ação regularizada, este assistente teria a liberdade de ir às casas fazer um
acompanhamento junto às famílias e ter um retrato desses lares. Mas ao lado disso,
trabalhar com essa família na escola de alguma maneira.
Se não for assim, o menino é esculachado em casa e incompreendido na escola,
porque a professora não sabe o porque dele não fazer nenhum dever de casa. A mãe bate
nele e o traficante está lá de braços abertos para receber e cuidar dele. É isso o que
acontece. O que não falta é candidato ao tráfico. Cai um, sobem dez. isto é: morre um e
dez assumem postos. Há lista de espera. O que não falta são candidatos, se quisessem
poderiam fazer um exército. Não fazem porque precisam dividir o bolão. Quanto mais
cabeças, mais pagamentos e gastos, e eles precisam avaliar o retorno desse exército, ao
tráfico. É uma empresa que se movimenta através da distribuição de renda, ninguém
está lá de graça.
.
.
.
Lembro-me de Bauman, quando enfatiza o aumento da impotência coletiva na
medida em que as pontes entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem
foram construídas; ou, colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil
de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente, de discernir e apontar
o que é público nos problemas privados.12
Inspirada em Bauman, vou refeltindo sobre pontes culturais que criam
laços entre a vida pública e a privada: penso no tráfico, que atua na sedução de
jovens e de crianças, através de desejos instigados. Instigada, pergunto a
Antônio:
- Esses desejos são realizados, essa criança e esse jovem vivem essas
condições que lhes são prometidas?
- Aí é que está, em sua ótica – a criança e o jovem –- se iludem com uma suposta
respeitabilidade que eles não tinham em casa, não tinham na escola, não tinham com o
12 12
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.p.10.
167
vizinho. Da noite para o dia o camarada passa a ser respeitado, automaticamente. É
promovido de simples cidadão, a presidente, na mesma hora. É como ganhar na loteria
sozinho, não importa a idade. Isso já dá um afago enorme no ego do camarada. O
dinheiro que o pai e a mãe dele ganham em um mês, ele passa a ganhar em uma semana.
- Isso acontece de fato? Eles sempre são remunerados?
- De fato. Então o cara fica seduzido. Todos são assalariados, quando não
ganham em grana, ganham em drogas, mas porque preferem. Eles são organizadíssimos.
Sempre têm os caderninhos com registros dos pagamentos e das vendas com nomes e
datas em detalhes.
É assim que a gente pega um monte de gente. É assim que pegamos os colarinhos
brancos. Vem escrito: para o deputado tal, tanto, em tal data. Para o advogado tal: tanto,
em tal dia. Todo bando e toda quadrilha têm o livro caixa com tudo. Com o nome deles
nos caderninhos, nós vamos investigar. E o cara que consumir algo pelo qual não pague,
este será eliminado. O chefe nunca é consumidor. Por exemplo, o Fernandinho Beiramar
se usou drogas, não usa mais. Se usar ele irá bobear em algum momento e ele sabe disso.
Os chefes não usam drogas e, quando usam, fazem de uma maneira bem controlada.
Penso nos chefes de família e nos chefes das escolas que precisam de
espaços favorecedores de trocas e, lembro-me de Amélia Bampi, técnica do
Programa Crer para Ver que sistematicamente acompanhava o projeto Janelas
Cruzadas e, ainda que morasse em São Paulo, fazia-se presente ora por telefone,
ora por visitas que de tão significativas pareciam ser constantes há ponto de
dissolver distâncias geográficas e alargar o tempo. Convido essa parceira
quando nos assinala que hoje, trabalhando no terceiro setor – Programa Crer para
Ver (Fundação Abrinq e Natura Cosméticos) – considera que a escola precisa se
apropriar das múltiplas oportunidades de dialogar com os mecanismos do entorno – as
comunidades – como forma de tornar melhor a qualidade de vida.
Fortalecida por Amélia, dou continuidade aos diálogos:
168
- Antônio, pensando nessa pessoa que mora na rua, nessa criança e nesse
adulto da rua, o que você acha importante destacar dessa complexidade que é a
rua?
- Uma vez eu estava conversando com a Riso (esposa) e falei para ela o seguinte:
Riso, você sabe qual é a diferença entre o rato que fuça o lixo e a pessoa, o ser humano,
que fuça o lixo? Ela falou: não, qual é? Eu disse: é que o rato luta pela sobrevivência e a
pessoa desistiu de viver. A pessoa que está na rua, em princípio, ainda que pareça que
ela luta pela sobrevivência, dentro dos nossos padrões do que a sociedade oferece é uma
pessoa que desistiu de viver. Ela não está mais lutando pela sobrevivência.
- O que é viver, para você?
- O viver nessa minha perspectiva seria: você usufruir daquilo que a sociedade
também lhe oferece de bom. Isto é viver. Você buscar meios para fazer ou ter aquilo. O
animal no mato, ele não luta pela sobrevivência, ele simplesmente vive, porque a moda
dele viver é: dorme, acorda, está com fome e, mata um animal e come. Aí a gente diz: ele
luta pela sobrevivência. Não acredito que ele lute pela sobrevivência, ele está vivendo.
Ele vive daquela forma. Sobreviver para ele é outra coisa: é quando acontece uma seca
horrível na região onde ele mora e o bicho que ele come desaparece, o mato pega fogo, a
água some. Aí ele vai procurar alguma coisa que dê para ele sobreviver.
Se você pegar uma pessoa na rua, você vai ver que para ela o mato queimou, a
água secou, ela não tem uma caverna para se esconder, está debaixo de uma marquise,
está largada no chão à mercê. Tanto, que tem gente que o vê e joga gasolina, executa as
pessoas, como na Candelária.
- Pensando o viver, ainda nesse desejo de um porvir, de ser mais, essa
pessoa da rua, nessa perspectiva, não tem mais desejo de viver?
- Ela está sublimada ou está em vias de se sublimar. Por isso que ela se entorpece
o tempo todo, bebe. Passa sebo no corpo para não sentir frio, não sentir os bichos. Tem
dia que come e dia que não come, então bebe para apagar a fome. Está exposta a doenças
várias.
Medito então neste não sentir: seja desejos, seja um porvir, seja a
presença do entorno... e, mais uma vez, penso na escola, na família e em nossas
169
maneiras de nos organizarmos e nos afetarmos socialmente. Nesse exercício
reflexivo, sou visitada por Bauman que nos diz que tanto a nação como a família são
soluções coletivas para os tormentos da mortalidade individual. As duas transmitem mensagem
semelhante: minha vida, ainda que curta, não foi inútil ou sem sentido se modestamente
contribuiu para a durabilidade de uma entidade maior do que eu (ou que qualquer outro indivíduo
como eu), uma entidade anterior à minha vida e que sobreviverá a mim, por mais que eu viva; é
essa contribuição que confere um papel imortal à vida mortal. Dada a mensagem, parece menos
sinistra a questão do que acontece após a minha morte: eu morrerei, mas minha nação, minha
família vão permanecer – e permanecerão em parte porque dei a minha contribuição.13
Bauman enfatiza movimentos afirmadores do sentido de pertencer, de
estar ligado. Reflito sobre as tantas pessoas aspiradas, como partes do nosso
próprio corpo que por não reconhecemos como nossa, separamos de nós.
Pessoas e mundos que nos arriscamos a julgar através de movimentos de
negação, sem muito buscar formas de aproximação para melhor conhecê-los e,
quem sabe, reconhecê-los como universos nossos.
Convido o sr. Wanderley para dividir conosco um pouco do seu sentir
sobre essa rua, quando se faz como morada de tantos sujeitados:
Cidadão Excluído
Wanderley Marques
Sobre o povo de rua,
minha rima tem sentido,
por isso dei o titulo,
de cidadão excluído.
São coitados que vivem na rua,
com a sociedade de lado,
sem chances no social,
e nela ser englobado.
Juntando latinha nas praias,
nas ruas e calçadão,
levam a cascuda14 com eles,
pra pedir um arroz e feijão.
Nas noites quentes ou frias,
e o anoitecer chegar,
em cima de um papelão,
o coitado vai deitar.
13
14
Idem.p.45.
Cumbuca usada para colocar alimento.
170
Geralmente embriagados,
homem e mulher ao luar,
quando estão já bem mamados,
desabam em qualquer lugar.
A noite mais um sopão,
pela igreja doado,
na Serzedelo Correa,
sai bem mal alimentado.
Correm todo tipo de risco,
nesta hora cheios de cana,
risco de ser espancado,
ou virar uma tocha humana.
Depois então procuram,
uma marquise, como abrigo,
aquele corpo cansado,
exposto, correndo perigo.
Sim, porque já aconteceu,
os bárbaros não têm dó,
inclusive com um índio,
em Brasília, um patachó.
Dia seguinte a mesma coisa,
as migalhas procurar,
café, almoço e jantar,
e nem sempre encontrar.
Vivendo em pares na rua,
imagine como é,
tratam a companheira de esposa
e não simplesmente, mulher.
Passar fome pra esse povo,
sem comer, é rotina,
e onde dormiram ontem, hoje,
jogaram creolina.
Muitos são menores,
na idade adolescente,
cheiram tiner, cola, esmalte,
é claro ficam doentes.
Nas ruas de movimento,
pedindo esmolas,charcando,
implorando uma moeda,
conseguindo vêz em quando.
Uns, andam a noite toda,
nas ruas pra-lá e pra-cá,
de dia nas areias da praia,
é que tentam descansar.
O pouco que conseguem,
já sabem como gastar,
é pra comprar cachaça,
ou maconha pra fumar.
De manhã filam o café,
na rua real grandeza,
às onze um sopão,
que irmã zoé serve à pobreza.
Esse viver mal viver,
todo dia se repete,
o mal do mal, continua,
e não toca a quem compete.
Entre as três e quatro horas,
procurando o que almoçar
com a cascuda na mão,
nun self-service buscar.
Esse é o retrato falado,
desse mundo conhecido,
está a pobreza de lado,
à procura dum abrigo.
Sobra de comida,
que por acaso sobrava,
com as sobras dos clientes,
sua fome saciava.
Quem sabe um dia,
acaba esse penar
que esse povo viva a vida,
e não tenha que mendigar.
171
Tocada pela sensibilidade deste senhor poeta, volto a pensar em casos
como o da Candelária e o do índio queimado e pergunto a Antônio:
- estes são casos terríveis ou são acontecimentos absurdos que se
sucedem?
- São muitos os acontecimentos, mas não há divulgação para a maioria. Só
quando acontece em uma situação peculiar, como foi o caso na Candelária e em Brasília.
Mas nas calçadas da vida, acontece muito isso. A pessoa da rua não vê meios de voltar a
qualquer outra realidade.
- Se ela não vê, você vê?
- Eu acho que tudo que foi criado pelo homem – e essas tragédias foram criadas
pelo homem – tudo é reversível. Mas hoje, vivemos uma utopia se imaginarmos um
Estado comprometido. Reversível é. O que não pode é a gente perder a esperança. Mas
como fazermos para reverter é complexo. Um trabalho de gigante.
Este trabalho hercúleo me instiga a trazer Bauman que nos apresenta
dois estudiosos em economia – Hans Peter Martin e Harald Schuman –
pesquisadores que calculam que se a tendência atual persistir irrefrada, 20% da força de
trabalho global (potencial) bastará “para manter a economia funcionando”. (o que quer que isso
signifique), o que tornará economicamente supérfluos 80% da população mundial capacitada.15
Tocada por Bauman, continuo a entrevista:
- Antônio, você acredita que há possibilidade da política estar fazendo
algo?
- A política existe para uma minoria que governa. Ela não se interessa por esse
cara da marquise, porque essa minoria não mora ali. É como se uma pessoa fosse viajar
para a Índia e se comovesse com a pobreza mas, ao retornar, esquece daquilo e quando
lembra é como um exemplo: - olha meu filho, você estude para não se tornar aquilo, mas
não diz: - olhe meu filho, estude, quem sabe você pode ajudar a reverter aquilo? Esse
político voltado para o próprio umbigo vai usar essa realidade como exemplo daquilo
que, se o camarada não se esforçar, poderá vir a se tornar. Mas poderia usar como
15
Idem.p.27.
172
exemplo de alguma coisa que precisa de pessoas para ajudar a melhorar essa realidade. A
pessoa já cresce na ótica do – eu não quero ser – ao invés de crescer na ótica de: aquilo
me tocou, vou me formar para tentar transformar.
- Você falou da questão da esperança. Onde você vê essa ação real que
trabalha na busca de possibilidades e de mudança?
- Eu vejo isso na cobrança da população consciente. Quando há cobrança, a
política muda, a gente derruba presidente; senadores caem; deputados são expulsos,
quando há a cobrança. Então a população precisa se conscientizar disso. Ainda que ela
não haja diretamente, quando ela cobra, os mecanismos públicos podem se sentir
cobrados e terão que apresentar algum resultado. Os projetos dos políticos hoje são
segurança, saúde e educação. Porque há cobrança da população em relação a essas
questões. Eu não vejo os políticos falando em programas e projetos voltados para a
população de rua. E esta ainda não é uma cobrança da população.
O político trabalha em cima daquilo que lhe é cobrado. Por isso tantos programas
investindo na questão da segurança. Eu penso que o dinheiro não deve ser gasto para a
segurança. É um equívoco. Para resolver a questão do tráfico, pensam em comprar mais
armas, invadir. É o programa da força contra a força. E força contra força vira cabo de
guerra. Se houver equidade nestas duas forças vai romper o cabo.
- Na perspectiva da polícia, o que significa um preparo mais efetivo no
sistema policial. Como deveria ser entendido esse investimento na segurança
pública?
- Literalmente, a ação ideal da polícia é ficar ociosa. Mas isso, na seguinte
condição: que realmente não haja nada para fazer. Nós queremos socorrer gatinho que
subiu na árvore e não sabe descer. Dar atenção e socorrer aquele camarada que desmaiou
ali na rua com o sol quente. Porque essa questão de dar mais arma à polícia, mais carros
e a desgraça continuar, isso não vai mudar nada. Mais armamento para a polícia
combater uma quantidade cada vez maior de marginais que surgem? Não acaba nunca.
Precisa ir lá no âmago do problema e tentar reverter. Esse dinheiro imenso gasto
com armamento precisa ser investido em outro setor. Quanto menos tivermos pessoas
caminhando para o crime, mais vamos resolver estas questões.
173
- Então pelo que estou entendendo, você afirma que há um erro quando a
política destaca a necessidade de aplicar recursos para armamento? Você está
afirmando que o dinheiro público não deve ser investido ferozmente neste setor
para assegurar a segurança através de armas?
Na tentativa de tentar situar qual a urgente necessidade pública, você
concorda que poderíamos investir este recurso que seria gasto para armar o
Estado, no sentido de desarmá-lo, através do investimento em ações voltadas
para a educação, para a saúde e para as pessoas desassistidas, que estão nas
ruas e em abrigos públicos?
– Eu acho. Armamento é o pior lugar para se investir o dinheiro público.
Quando há uma guerra, um foguete desses que sobe, mata 10 pessoas. Quantos foguetes
são lançados e não atingem os alvos? E quando atingem, quem são os alvos? O custo de
um foguete desses é 1 milhão de dólares. Quantos foguetes são lançados em uma guerra?
Então, em um dia, num país pobre e que não está em conflito de guerra, morrem 100
pessoas por dia. A questão é usar mais a inteligência e, menos a força. A força é a
confirmação da desordem. Quando você usa a força, você assume que fracassou.
O bandido receber status de presidente da república. Descer do avião e nem
algema usar. Nenhum policial poder tocar nele. Ir para o presídio e lá matar não sei
quantos – que estão dentro e fora do cárcere – aparecendo todo embecado com pose e
exigências absurdas que são atendidas. Então, as pessoas assistem a isso pela televisão e
desejam essa condição. O cara precisa ser tratado conforme sua condição de preso, que
matou tantas pessoas.
A roupa xadrez é importante, porque ninguém quer aquela roupa xadrez, aquele
pijaminha que só deixa você andar se for com os pés juntos. Ele precisa ser tratado
conforme sua condição, conforme o perigo que representa para a sociedade. Não é tratar
com desumanidade. Não é torturar, mas o sistema acaba afirmando um imaginário que
ajuda a sustentar toda esta problemática.
– Como você pensa a questão do cárcere?
– Se você se iludir e achar que devemos jogar os grilhões fora, fechar os cárceres e
fazer cerrarias dentro dos presídios para eles trabalharem, só se for para fazerem
174
porretes, para dar na cabeça dos guardas – e deles próprios – porque isso é o que irá
acontecer. A gente ainda precisa lidar com esse lado feio. Por enquanto você precisa do
presídio, porque a situação é caótica. Esse lado feio existe, precisamos de cárceres sim,
mas precisam ser feitas ações concomitantes, numa proporção muito maior. Se você faz
um presídio para 1000 pessoas, é necessário que se façam ao mesmo tempo 1000 escolas.
É preciso 1000 empregos gerados. É preciso brecar esse crescimento da marginalidade.
Hoje, você ainda consegue andar na rua, vir até aqui conversar comigo, porque
bem ou mal, a polícia está na rua. Hoje, a marginalidade precisa da polícia em seu
imaginário. É a consciência da existência da polícia que ainda possibilita você transitar
na rua. Tenha certeza. Quando esse marginal de hoje tirar a polícia do seu imaginário
como algo que o amedronta, você tenha a certeza de que não conseguirá mais andar na
rua. Porque nesta rua o marginal não se sente à vontade como na casa dele, onde anda
com fuzil livremente e é temido por todos. O assalto tem que ser rápido, a arma precisa
estar escondida. Por causa desse temor à polícia.
– O que você considera como um bom cárcere?
– Você deve respeitar os direitos da pessoa, na sua condição humana; mas a
pessoa tem que ser detida de acordo com seu grau de periculosidade. O cara que é um
chefão de quadrilha, que mesmo preso está controlando todo um sistema criminal do lado
de fora e que está liderando mortes, como é que eu vou permitir que esse cara tenha
celular porque tem direito de se comunicar? Como é que eu vou permitir que ele receba
visitas que levam para ele televisão e roupas das melhores lojas? Esses líderes não
comem a comida do presídio, só comem a comida que vem para eles. Tudo especial para o
camarada e ele vive lá dentro como rei? Ele errou gravemente e a sociedade cobra dele. A
pena é a seguinte: ele não pode ser tratado como se estivesse em sua própria casa.
As palavras de Antônio me remetem mais uma vez a Bauman, quando
nos afirma que a arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à
liberdade dos cidadãos; mas é também a arte da autolimitação: a de libertar os indivíduos para
capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos.16
Antônio continua sua reflexão enfatizando que a mídia confirma toda essa
inversão de valores, ajudando a formar o imaginário da criança, do adolescente e do
16
Idem.p.12.
175
adulto com valores distorcidos. Nada disso pode acontecer. As condições têm que ser
aquelas dadas pelo governo. Agora, se estas condições precisam ser melhoradas, então
vamos recorrer para que seja possível transformar estas condições legalmente. Mas
jamais permitir que ele tenha esse acesso fácil com o exterior. Jamais permitir que ele use
coisas que não são permitidas pelo Estado.Tem que haver eqüidade entre os presos, senão
gera uma hierarquia.
O bandidão, anda lá dentro de uma maneira que parece que está indo para a
praia. Este bandidão vai ser sempre um espelho afirmando que o crime compensa. Ele
tem que ter esse sistema dele desmoralizado, não com tratamentos desumanos, mas com
limitações de direitos que façam com que ele tenha consciência de sua condição.
Colocar esse tipo de pessoa numa oficina de marcenaria para reintegrá-lo à
sociedade, com certeza ele vai roubar o formão para espetar alguém e planejar uma fuga.
O cara que não matou, que não é um assassino, não há nem o que recuperar nele,
porque ele é um cara bom. Para esse cara, você pode dar a marcenaria, uma horta.
Enquanto ele está ali, vai estar melhor, fazendo algo significativo e separado dos
bandidos. Esse camarada vai cumprir os anos dele em condições melhores e, vai sair.
Mas sair é outro problema, porque não tem emprego para quem está livre e vai
ter emprego, nesse nosso sistema, para quem carrega o rótulo de ex-presidiário
recuperado?
É preciso trabalhar socialmente esses estigmas também.
Ladrão de varal, aquele camarada que não tem coragem de matar ninguém, ele
por si só já tem uma boa índole. É um descuidista, como a gente diz aqui dentro.
- O que é um descuidista?
– É aquele ou aquela camarada que se aproveita do descuido do outro. Aquele que
se você der uma bobeira, ele está atento e vai lá rapinar. Mas não usa de arma, ele tem
uma paixão porque é um bom profissional no que faz. Tem uma habilidade e se vangloria
disso. Esse cara pode se contemplar na marcenaria ou em outro ofício que lhe seja
oferecido. Ele pode se acordar para um outro fazer. Mas o lado dele do rapinar é muito
forte, porque é uma habilidade muito grande. Ele gosta dessa habilidade, dessa
adrenalina de fazer, na sua cara, algo quase impossível, sem que você perceba.
176
- Então eu poderia dizer que o sistema carcerário deveria que ter uma
inteligência sensível para oferecer ofícios e fazeres que lidem com essas
especificidades de cada pessoa?
Esta pessoa, por exemplo, que tem uma necessidade da adrenalina do
risco no seu fazer e que tem essa habilidade motora extremamente fina, ela
precisa ter conhecimento e oportunidade de experienciar outros fazeres que
favoreçam que esta realização pessoal e profissional se façam de outras
maneiras diferentes do rapinar.
Neste sentido, para pensar o sistema carcerário e o sistema escolar será
preciso repensar ideologica e metodologicamente o sistema pedagógico e
político, em diálogo fino e firme com as complexidades do sistema
organizacional da sociedade, tendo como sustentação parâmetros e práticas, o
exercício de valores que possibilitem a responsabilidade de todos pelo bemestar individual e coletivo.
Então pergunto:
- Como possibilitar que esses valores se façam no indivíduo como
experiências que, por diferirem da catequese e da repetição de orações morais
esvaziadas de sentidos, são capazes de se constituirem em aprendizados
fundamentais na formação do caráter?
- A pergunta que eu faço é a seguinte: a quem interessa essa situação caótica?
Porque deve interessar a alguém. Dinheiro é gasto em quantidade, mas nada que
realmente seja voltado para o povo. É possível reverter essa situação, mas desde que seja
feito esse trabalho de gigante que é preciso ser feito sem descontinuidades.
- Antônio, eu já te falei outras vezes o quanto me toca esta sua
inteligência sensível. Então gostaria de perguntar se sua formação policial tem
um papel marcante nesta sua característica que integra sensibilidade e
inteligência?
- A formação policial não te dá isso não, porque ela é meio imposta. É aquilo que
você está vendo ali naquele quadro: CÓDIGO DE ÉTICA NA EXECUÇÃO DA LEI.
177
Isso representa o ser policial: jamais farei... tudo que eu fizer será... Mas a formação de
todos que usam farda é muito técnica. Não lhe dá muito direito de filosofar. O
comportamento é esse e pronto. Então, na formação policial, a maneira como você vai ser
enquanto profissional é a seguinte: cada um é de acordo com os valores que traz de
berço. O berço é fundamental para a formação de valores que irão fazer com que você
reflita certas ordens a serem cumpridas como um ser autômato.
Os documentos – ofícios – chegam de alguns juízes assim: é para ser cumprida a
ordem e não para ser questionada. Se você tem o berço que te leve a refletir sobre
comprometimento com valores, você vai correr o risco de ter que responder pela sua ação
de desobedecer a ordem, mas irá refletir. Como policial, nossa formação é feita para que
as ordens das autoridades sejam cumpridas e ponto.
- Se você fosse escolher hoje a sua profissão, seria um policial?
- Bem, sabendo daquilo que eu tenho vivido na polícia, eu com certeza escolheria
ser um policial. Mas se eu desconhecesse, fatalmente não escolheria.
- Como se deu o fato de você tornar-se um policial?
– Um colega me chamou para acompanhá-lo, pois ele iria se inscrever como
policial. Eu vim acompanhá-lo. Depois da inscrição desse amigo, ele me falou: - Inscrevi
você também. Eu disse: - O quê? A partir daí, para todos os testes e provas eu era levado
por ele, porque eu nem me lembrava. Passei e, então pensei: vou ver o que é isso. De
início, não simpatizava, mas a minha curiosidade é muito grande e eu fui tendo a
oportunidade de ver e fazer coisas que eu jamais faria na vida.
Ter acesso a material de pesquisa, a informações que, em outro lugar, eu não
teria acesso. Estou dentro de uma panela que me seria escondida. Então é um lugar
fantástico. Essa matéria prima que é apresentada em números que nem sempre
representam a realidade, é a matéria dessa panela. E ter acesso a isso é muito instigante.
Ter acesso às engrenagens que estão por trás é maravilhoso, você passa a ter um outro
entendimento das coisas.
Mas somente depois de exercer a profissão foi que eu soube o que é essa profissão.
Então, eu escolheria ser policial novamente, se eu soubesse realmente o que é essa
profissão, que é diferente daquilo que muitas vezes pensam que ela seja.
178
Sempre estou disposto a contribuir com pesquisa. Se eu puder colaborar de
alguma maneira com o meu trabalho, eu colaboro. Sou completamente favorável à
ciência. Acredito na ciência. Acho que o ser humano precisa da ciência em seus vários
aspectos. Ela nos trouxe até aqui e não pode parar.
- O que você entende por ciência?
- Essa capacidade de buscar no desconhecido, de questionar. Essa coisa de
perguntar. A ciência é pergunta.
Inspirada no convite do inspetor Antônio, pergunto-me sobre a formação
dos profissionais da educação, mas ao fazer este exercício, lembro-me de
Carmélia quando lembra o cansaço do improviso, que se repete
constantemente, dada a falta de recursos.
Penso então, nessa escola cansada, neste professor exausto que precisa
romper os espaços da sala de aula, mas com freqüência, se encontra enrolado
em estereótipos que, aprisionadores do criar e da produção de sentidos para a
vida, fazem desse produzir, um aborto da afirmação da identidade do sujeito e
da religação deste com as necessidades existenciais do ser humano.
Lembro-me das visitas e convívios experienciados nas unidades
escolares parceiras do Janelas Cruzadas e, sou re-visitada pelo encantamento
que sentia ao perceber que mesmo sendo escolas pertencentes a um sistema
comum, com parâmetros comuns, cada uma delas tem um respirar próprio,
uma estética particular, uma identidade como corpo escolar.
Penso então nos mecanismos que cada escola escolhe como exercício de
éticas e de estéticas e, me vêm à lembrança os diversos modos de gestão que se
fazem às vezes compartilhadas, outras vezes de maneira pseudo democrática e
ainda outras, assegurando a gestão desse corpo escolar na pedagogia do terror.
Lembro-me dos períodos eleitorais e das práticas plurais que
desenhavam em cada escola uma história complexa:
No convite para que a comunidade escolar refletisse e avaliasse esse
corpo escolar, que se reconhecia como patrimônio de todos;
179
Na ameaça a aqueles que se diferiam da decidida perpetuação do poder
daquela voz, desejosa de solidão;
Na busca da ajuda daqueles que ainda não se reconhecem como grupo
de compartilhas responsáveis por decisões.
Mas essa complexidade que ora me enternecia; ora me exigia delicada
metodologia - que para alguns poderia assemelhar-se a um nada fazer - essa
identidade por mim percebida e que afirmava a autonomia de cada corpo
escolar, também me levava a pensar nessa mesma autonomia, que tantas vezes
urge ser alimentada por maneiras tocantes, possíveis de entrelaçar
aprendizagens à vida e respeito à singularidade de cada sujeito.
Penso então, nas práticas de formação de professores e me pergunto para
quem elas trabalham e qual a sua matéria prima?
Inspirada por Antônio, penso na importância do berço como momento
formativo potente, presente em todo o viver. Com que cantigas estará a escola
embalando nossos sonhos e urgências? Que valores experienciamos neste
sonhar?
Lembro-me do Sr. Wanderley, quando me confidenciou nunca ter escrito
texto grande, visto que antes de encontrar-se na Leão XIII sua escrita fazia-se
exclusivamente por quadrinhas. E foi nesse espaço de exílio que encontrou uma
pedagoga de nome Neuza, que o convidou a escrever por mostrar-se encantada
pelo seu fazer, no mesmo instante em que instigava novas trovas. Foi o próprio
Wanderley quem me narrou o acontecido: as quadrinhas expandiram-se e pela
primeira vez um texto denso se viu surgindo.
Este seu primeiro escrito denso, trazido aqui como abertura do capítulo
Vidas em retalhos – quisera eu, que jamais retalhadas – traz à nossa presença um
pouco da admirável Fayga Ostrower, quando assinala que o conflito pessoal
não pode ser visto como uma condição para o criar, como pensamos muitas
vezes, ele pode instigar temas e questões, mas nunca se fazer como metodologia
afirmadora de desencontros.
180
Lembro-me do susto que tomei quando vi a arma na mesa do Antônio e
penso nas tantas armas vistas, quando estou na Cruzada São Sebastião. Mas por
que será que não me faço tão chocada com revólveres sustentados por mãos de
moradores e de policiais que transitam pela comunidade e, me desespero
quando encontro esta arma na mesa do Antônio?
Vejo o Antônio me recebendo em seu trabalho, nas tantas visitas que faço
e, recordo-me dos detalhes do prédio barroco, que abriga os policiais. Penso nos
vitrais coloridos que convidam matizes a pintar portas, paredes e chão, quando
o sol anuncia presença e me percebo em repetida despedida desse amigo, que
sempre me acompanha até o elevador panorâmico, patrimônio tombado que
nos remete a passeios e histórias, todas estas, contadas pelo Antônio que ao me
receber em seu trabalho, atento às belezas do entorno, não dá tempo para que
eu lembre a dureza de sua profissão.
Nessa ambiência criada por este anfitrião, o revólver me arranca e
presentifica instantaneamente uma realidade por ora esquecida, ainda que
diante de mim, tantos avisos e placas de explosivos e de bombas se estampem
entre vidraças e paredes daquela casa.
E mais uma vez, recorro ao senhor Wanderley quando confessa:
181
Casas de Árvores
Wanderley Marques
No meu morrer, quero sentir o que sente a árvore, quando cortada pela serra
elétrica ou pelo machado que freneticamente invade suas entranhas – impulsionado
pelas mãos calejadas do lenhador, ou seja: sem dor, sem sangue e sem lágrimas.
Simplesmente desabar sobre as outras, que ficarão a perpetuar.
Assim sendo, terei fim, mas do fim eu recomeço. Me desmembrarão, me dividirão
em tábuas e construirão muitos ninhos de amor.
Casas. Casas. Casas...
.
.
.
E as casas institucionais que através dos tempos se fazem tão
importantes como referências de aprendizados e de trocas, o que elas desejam
fazer perpetuar através de suas práticas escolares?
O que nos contam as janelas e as paredes de nossas escolas formais?
182
laços que enlaçam
capítulo 12.
183
Desde pequena aprendi a reverenciar a vida, visto que me entendia como
milagre, não somente dessa magia que é o gestar, mas também por ter recebido
a vida por duas vezes, desde muito cedo.
Sou filha de dois apaixonados por aquilo que hoje mais movimenta o
meu pensar-fazer: o encantamento pelo ser humano, por seu potencial de criar e
de fazer-se processo constante de transcender seus limites.
E foi essa paixão comum que levou Maria Dolores Coni Campos e Echio
Reis a serem convidados em 1963 para integrarem a equipe de educadores do
Centro Educacional Carneiro Ribeiro (1950). Projetado pelo professor Anísio
Teixeira, o Centro desenvolvia uma proposta de tempo integral que
incorporava a expressão artística ao aprendizado formal. Num turno, o da
manhã, o educando freqüentava a Escola-Classe, escola regular; em outro turno,
o da tarde, esse mesmo estudante participava de oficinas regulares de artes e
ofícios que compunham o currículo da Escola-Parque.
Inicialmente essa experiência se desenvolveu da 1ª a 4ª série do então
chamado curso primário. Posteriormente, com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (lei 5.692/ 61), implantou-se o 1º grau que, na época,
abrangia da 1ª à 8ª série (primário a ginásio), correspondentes ao ensino
fundamental. No bairro da Liberdade, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro
atendia a 4.000 crianças e jovens da periferia da cidade de Salvador/ BA.
O Centro, atribuía especial importância à natureza da experiência em que
educandos tinham no currículo oportunidades e meios de empregar os
conhecimentos que estavam sendo produzidos nas inter-ações de uma complexa
rede de convivências. Ações diversas integravam aprendizados, arte e vida,
através de práticas educativas que envolviam teatro, biblioteca, educação física,
artes plásticas, jornal, banco e pavilhão de trabalhos/ ofícios.
Enquanto Anísio Teixeira ocupava a direção do INEP, sua irmã –
Carmem Teixeira – se responsabilizava pela coordenação do Centro
Educacional, tendo como ponto alto da metodologia, o investimento na
184
formação continuada dos docentes das Escolas-Classe, bem como das
atividades artísticas, esportivas, recreativas e sociais da Escola-Parque.
Mediante convênios celebrados com o INEP, o Centro Educacional
promovia intercâmbio constante com a Escolinha de Arte do Brasil, em sua fase
áurea reunia expressivos profissionais da educação e da arte, como o próprio
Anísio Teixeira e outros como Augusto Rodrigues, Helena Antipoff, Noemia
Varela, Durmeval Trigueiro, Zoé Chagas Freitras, Osvald Goeldi, Nise da
Silveira, Lívio Abramo17, Cecília Conde, Ilo Krugli, Fayga Ostrower, Ferreira
Gullar, Laís Aderne, Mestre Vitalino, Darcy Ribeiro, Jader de Britto, Iara
Rodrigues18, Maria Lúcia Freire, Silvia Aderne, Bartolomeu Campos Queirós,
Maria Bonumá, Pedro Turom, Fernando Lébeis, Paulo Freire19, Isabel Carvalho
Vieira, dentre outros inquietos artistas educadores. Era neste cenário que
professores do Centro Educacional Carneiro Ribeiro pavimentavam pontes
entre Rio e Bahia, empenhados em construir outros caminhos para a educação.
Outra referência importante para o Centro Educacional fortalecer a
formação do seu corpo docente estava na promoção de intercâmbios com o
SESC – RJ, investindo na integração de ofícios às artes.
Foi nesse contexto – no início da década de 60 – que a professora
Carmem Teixeira, conheceu Maria Dolores Coni Campos, educadora que
estagiava e trabalhava na Escolinha de Arte do Brasil, convidando-a a integrar a
equipe de professores do Centro Educacional Carneiro Ribeiro.
17 No Paraguai, Lívio Abramo integrava o grupo fundador da Escolinha de Arte junto a Olga Blinder e
Maria Adela Solano Lopez, seguindo os mesmos parâmetros da Escolinha de Artes do Brasil/RJ.
Em Portugal a fundação da Escolinha de Arte ficou sob responsabilidade de Cecília Menano, dentre
outros. VARELA, Noêmia. Fazendo Artes 13. p.7.
18 No Rio Grande do Sul, Iara Rodrigues, junto a Lia Achutti, fundou a Escolinha de Arte do Instituto de
Arte da UFRGS, mantendo diálogos freqüentes com Augusto Rodrigues e Noêmia Varella, além continuar
freqüentando a Escolinha de Artes do Brasil/ RJ. CAMPOS, Maria Dolores Coni. Encontros hoje,
encontros ontem; cartas que vão, cartas que vêm, entre na roda você também. Niterói: Universidade
Federal Fluminense, 2003. Or.: Edwiges Zaccur.
19 A partir desta experiência na Escolinha de Arte do Brasil do Rio de Janeiro – experiência matriz, Paulo
Freire integra equipe fundadora da Escolinha e Artes do Recife. Nos conta Ana Mãe Barbosa: Poucos sabem
que Paulo Freire esteve ligado à Arte-Educação desde os inícios de sua ação educacional. Foi presidente da Escolinha
de Arte do Recife, nos anos 50 e, sua primeira mulher, Elza Freire, pode ser considerada uma das pioneiras da
integração da Arte na Escola pública, dando ênfase às produtivas implicações do fazer artístico do fazer artístico com
a alfabetização. BARBOSA, Ana Mãe. Paulo Freire e a arte-educação. In: GADOTTI, Moacir (org.). Paulo Freire
– uma bibliografia. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire; UNESCO, 1996.p.637.
185
Cedida por tempo limitado à Escolinha de Arte do Brasil, com sede no
Rio de Janeiro, como funcionária pública do Estado da Bahia, Dolores20 aceitou
convite de Carmem Teixeira para integrar a equipe do Centro Educacional em
Salvador, visto que, coincidentemente, estava a concluir o 3º e último ano do
estágio que cumpria como professora da rede estadual de ensino da Bahia.
Maria Dolores retorna a Salvador com o objetivo de levar sua experiência da
Escolinha de Arte para o Centro Educacional Carneiro Ribeiro.
Neste Centro, em 1963, Dolores começa a trabalhar na Escola-Parque, em
oficinas de desenho que integravam pintura, gravura e outras técnicas, tendo a
oportunidade de expandir a experiência vivida na Escolinha de Arte do Brasil.
Ela nos conta:
Eu trabalhava no pavilhão de trabalho. Este pavilhão tinha a ala masculina e a
feminina, mas havia interação. O meu setor ficava no começo da ala feminina, com
muitas mesas onde todas as crianças desse complexo educacional passavam por nós para
pintar, desenhar, fazer gravura em xilo e metal, expressando-se livremente.
As meninas e meninos vivenciavam, escolhiam o que queria fazer. Eram muitas
possibilidades de ofícios. Por três meses eles ficavam ali naquele ofício e depois faziam
um rodízio de novo. A ala feminina oferecia corte e costura, bordado criador, bordado
branco fino, crochê, tapeçaria, confecção de bonecas e almofadas, bordados variados,
entre outros fazeres. Os meninos aprendiam o ofício da sapataria, alfaiataria, funilaria,
encadernação, marcenaria, cestaria, modelagem em barro e forno, entre outras técnicas.
Não tinha o objetivo de formação de mão-de-obra, mas experienciar várias possibilidades
para que pudessem se enriquecer com esses diferentes fazeres.
O setor artístico era um setor muito bonito, onde se oferecia a esses meninos e
meninas música, dança, teatro. A música tinha um coral e havia uma banda de música
com um dos grandes maestros da Bahia, Vivaldo Conceição. A parte de teatro era a
dramatização e a dicção. A dança era a moderna. Depois tinha um grande pavilhão com
Dolores, funcionária pública na Bahia, estava no Rio de Janeiro cedida por três anos em resposta a uma
solicitação do professor Augusto Rodrigues – um dos fundadores da Escolinha e seu diretor técnico –
através de carta dirigida ao governador da Bahia, no sentido de garantir que a professora tivesse uma
estada mais prolongada na Escolinha de Arte do Brasil, a fim de familiarizar-se melhor com sua filosofia e
sua prática pedagógica.
20
186
um setor de esportes. Havia uma grande biblioteca e um banco. Padaria. Os meninos
administravam tudo.
No fim do ano se promovia uma exposição e acredito que o dinheiro da venda da
produção feita na Escola-Parque ia para o banco que os meninos ajudavam a
administrar. O resultado dos trabalhos dos meninos, nos diferentes ofícios, era oferecido
para a população comprar. Uma grande feira, da melhor qualidade. Começamos, nessa
época, a entrosar o desenho, a pintura com os diferentes ofícios na modelagem, na
tapeçaria, no bordado, na boneca, na marcenaria, no teatro.
Às vezes a menina fazia uma boneca que ela mesma tinha desenhado, e ela
mesma fazia o vestidinho no corte e costura. Aquele vestidinho que seria bordado –
possivelmente por ela – em outra aula. Então havia um entrosamento muito grande dos
fazeres e a exposição era extremamente elogiada. O bordado criador, as almofadas, era
tudo desenho dos meninos, numa época em que o desenho da criança não era valorizado.
Na parte artística, o teatro começou também a nos procurar. Então eu tive um
papel muito importante. Os meninos pintavam, traziam os conteúdos que estavam
sendo trabalhados e, cenários, adereços, vestimentas, iam tomando forma. Parecia até
um milagre. Uma vez eu levei uns desenhos para Arquibaldo que era o chefe do setor
masculino e disse: Arquibaldo seria tão interessante se esse desenho fosse ampliado pelos
meninos. Na mesma hora ele me apareceu com tudo cerrado pelos estudantes da
marcenaria. Tudo grandioso, parte do cenário surgia com as crianças e jovens
trabalhando, criando.
Havia uma aproximação dos diversos ofícios e fazeres. No Pastoril que nós
fizemos – e no bumba meu boi – as roupas eram costuradas no corte e costura, mas os
desenhos e pinturas das roupas e cenários eram feitos conosco, para as alegorias e
cartazes. A xilogravura presente nessa produção, junto a desenhos e pinturas, se
transformariam em convites, folders, cartazes. Era uma coisa esplendorosa. Não faltava
material.
Eu ficava impressionada porque a Escolinha de Arte do Brasil, no Rio, tinha todo
esse ideal, mas não dispunha de recursos para comprar as coisas. Na Parque eu dizia: eu
quero isso, e tinha. Um rolo de tinta para cada cor.
187
Era assim na época de Dr Anísio Teixeira. Ele era o idealizador dessa escola,
antes de qualquer CIEP, porque CIEP e escola integral foram inspirados nessa
experiência de Dr. Anísio. Ele foi o grande realizador. E aí, como diretor do INEP21 –
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, conseguia dinheiro. Então a escola Parque
era estadual, porque os professores eram do Estado, mas havia um turno federal. Nós
recebíamos recursos federais também.
Tínhamos um micro-ônibus que ia nos buscar em casa quem morava distante.
Fazíamos a refeição lá na Parque. Entre um turno e outro, nós professores tínhamos
uma sala com espreguiçadeiras, para descansarmos e começarmos o turno seguinte. Era
uma experiência muito inovadora para a época.
“Em vida, Dr. Anísio Teixeira foi um grande entusiasta do trabalho que a
Escolinha de Arte do Brasil desenvolvia. Era presença constante em cursos,
conferências, exposições, almoços, festividades...
Fazia parte de um grupo de educadores, artistas, pensadores, pessoas que,
inquietas com o processo educacional brasileiro, buscavam alternativas visando a uma
educação mais humana que viesse contribuir para uma interação mais harmoniosa entre
as pessoas e grupos sociais.
Dr. Anísio mobilizava recursos humanos e financeiros a favor da Escolinha de
Arte do Brasil, que no Rio de Janeiro, passava por dificuldades constantes. Era
necessário ajudá-la para que o seu trabalho não sofresse descontinuidade. Em um de
seus pronunciamentos, Dr. Anísio comenta:
‘Na imensa aridez da paisagem das escolas nacionais, paisagem que lembra aspectos
de nossos desertos, as escolinhas de arte são oásis de sombra e luz, em que as crianças se
encontram consigo mesmas e com a alegria de viver, tão ‘deliberadamente’ banida das ‘escolas’
convencionais de ‘retalhos de informação’, secos e duros como a vegetação habitual das zonas
áridas. Mas não é somente a escolinha de arte uma inovação pedagógica. É também inovação
do próprio conceito da arte, pois esta já não é a atividade especial de criaturas excepcionais,
mas a atividade inerente ao senso humano da vida que, felizmente, ainda se pode encontrar nas
21
Ultimamente passou a chamar-se Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira.
188
crianças que não foram completamente deformadas pelos condicionamentos inevitáveis da
instrução morta e fragmentada das escolas convencionais.22’
Vivemos, na Escolinha de Arte do Brasil e na Escola Parque, uma proposta
inovadora de educação e participamos de efervescência de idéias e de estudos onde o foco
maior sempre foi a criança, o professor e o potencial criador, inerente à condição
humana.
Trabalhando nessa perspectiva com aquela meninada do bairro da Liberdade –
pessoas marcadas pela pobreza e carências múltiplas – eu testemunhava um outro lado:
o da riqueza do poder de expressão dos meninos em suas pinturas, recortes, colagens,
desenhos. Nas formas largas, fluentes e nas cores esparramadas, livres, de quem trabalha
sem pressão e com alegria.”23
Uma escola em que o presidente da UNESCO ao visitá-la, testemunhou:- faz-se
no Brasil o que não se faz no mundo. Também a rainha Elizabeth quando esteve na
Bahia quis vê-la.
Após a morte de Anísio Teixeira, os recursos federais cessaram, e as pessoas que
já eram efetivas ficaram ligadas à reitoria da Universidade. Foi um estímulo.
.
.
.
Ao mesmo tempo em que Dolores vivia esta experiência na EscolaParque, artistas baianos que expressavam em Salvador trabalhos de vanguarda
– comprometidos com a democratização da cultura e com a valorização da
cultura local bem como das diferentes possibilidades de expressão – foram
convidados a integrar também a equipe docente da Escola-Parque.
Foi assim que Echio Reis se aproximou do Centro Educacional Carneiro
Ribeiro, como professor de teatro. Será importante destacar que Echio – junto a
outros quatro atores baianos – tinha rompido, na condição de estudante, com a
escola de teatro da cidade de Salvador por discordar da postura dessa escola
22 TEIXEIRA, Anísio. Escolinha de Arte do Brasil. Coordenação de Augusto Rodrigues/INEP/MEC – Série
Estudos e Pesquisa 6. Brasília, AGGS – Indústrias Gráficas S/A, 1980.p.64.
23 CAMPOS, Maria Dolores Coni. Encontros hoje, encontros ontem; cartas que vão, cartas que vêm, entre
na roda você também. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003. Or.: Edwiges Zaccur.
189
que, ao adotar uma ideologia elitista, montava textos exclusivamente europeus
e convidava atores estrangeiros, internacionais e cariocas, para ocuparem os
papéis principais de suas montagens, deixando para os estudantes da escola o
exercício constante em papéis secundários.
A problemática experienciada na escola de teatro – hoje, Escola de Teatro
da Universidade Federal da Bahia – levou esses cinco atores a formarem o
Grupo dos Novos e construir um teatro em Salvador com recursos oriundos de
campanhas populares e apresentações em ruas e praças.
Nesses espaços populares o grupo foi ganhando notoriedade, o que
possibilitou – com muita persistência e audácia – a construção do Teatro Vila
Velha, oferecendo à cidade de Salvador um espaço cultural importante por
garantir seu palco para o desabrochar e a afirmação da dramaturgia brasileira,
como também, espaço de pesquisa e de expressão de talentos novos, até então
desconhecidos pela impossibilidade que tinham de se organizar, produzir e
viabilizar a circulação de seus trabalhos artísticos.
Com o Teatro Vila Velha, os cinco atores passam a ter espaço livre para
suas pesquisas e, no intercâmbio com artistas locais e outros artistas, o Grupo
dos Novos desencadeia – através do Teatro Vila Velha e de suas produções –
significativas transformações no cenário artístico baiano, além de ajudar a
lançar jovens talentos como Tom Zé, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria
Bethânia, que encontravam no Vila Velha um espaço aberto para laboratório e
pesquisa musical, literária, dramática, política e social.
Como artistas de vanguarda que constituíram o Grupo dos Novos e
fundaram o Teatro Vila Velha, aceitaram o convite de dona Carmem Teixeira
para integrar a equipe da Escola-Parque, onde Echio Reis se responsabilizou,
junto a seus companheiros, pelas oficinas sistemáticas de teatro e dicção.
No Centro Educacional Carneiro Ribeiro, Dolores Campos e Echio Reis
se conhecem e através deles, produções da Escola-Parque estabelecem mais que
diálogos, funcionando intensamente integradas. Fazeres e pensares
190
materializavam casamentos entre linguagens e saberes que estendiam pernas e
braços pelos muros, pátios, pisos, ares da Parque.
Lembra Dolores Campos:
Ao ver a estrutura da Parque e do Setor de Trabalho, Echio se entusiasmou com
o que acontecia na área de desenho. Volta e meia ele estava lá solicitando alguma coisa.
Então passei a trabalhar muito com ele, no teatro. Eu tinha vindo da Escolinha de Arte e
trazia comigo seu germe. Então, comecei a fazer os cenários para ele... os nossos meninos
e os dele. Nós fazíamos um trabalho de diálogo neste sentido. E as roupas... Echio
montou o Pastoril e outras peças com nossa meninada. Foi se entusiasmando.
No final do ano, a Escola-Parque tinha o costume de apresentar uma grande
exposição de trabalhos e esse peso maior ficava conosco do Setor de Trabalho. Echio
descia do setor Artístico para me ajudar. Ele fez Álbuns enormes com os meninos,
colocou cordas, uma coisa que eu jamais faria. Uma estrutura pesada, de homem, para
reunir todos os trabalhos da criançada. Echio, que também desenhava na sua profissão
de artista, parecia estar meio fascinado com a história que estava vivendo e descobrindo,
com o desenho espontâneo e livre da criança.
.
.
.
O casamento se intensifica durante três anos de parceria no Centro
Educacional, até que Echio e Dolores ritualizam este encontro entre bênçãos de
amigos e mistérios. Dolores traz Echio ao Rio de Janeiro, apresentando-o à
Escolinha de Arte do Brasil e a uma escola particular onde trabalhara – Instituto
Silo Meireles. Agora, os dois passavam a dar aulas de artes nessa escola da rede
privada, inebriando o espaço e os meninos com o processo criador.
Neste mesmo período Caetano Velloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria
Bethânia já moravam no Rio de Janeiro e através das relações estreitadas com
Echio no Teatro Vila Velha, os artistas – e outros amigos da época – têm na casa
do casal baiano um ponto de encontro de finais de semana, sempre regados
com a culinária da Bahia que magicamente surgia das mãos de Dolores, apesar
dos parcos recursos de todos. Foi nesse clima, de magia e alegria, que Dolores e
191
Echio foram vivendo também tristezas e desencontros enquanto companheiros
de travessia.
Os sinais do cotidiano há muito anunciavam o porvir, mas por vezes, é
preciso experienciar o viver, como aprendizado de escolhas.
Narrar a vida de meu pai e de minha mãe é, para mim – neste instante –
narrar a vida de muitos brasileiros, na tentativa de destacar elementos vivos da
nossa história coletiva que, por serem significativos para mim, podem elucidar
aqui problematizações emergentes de serem tensionadas com a
contemporaneidade, na busca de caminhos para uma educação de qualidade,
comprometida com ações reflexivas – éticas e políticas – na afirmação de
qualidade de vida para todos e todas, em quaisquer fases da vida.
Echio e Dolores, em dois anos de casamento, já com uma filhinha –
Andréa – quase não se encontravam, ainda que morassem na mesma residência.
Surpreendentemente, em meio a desencontros, Dolores que desejava outro filho
impactou-se.
E é ela quem assume aqui a narrativa, mais uma vez:
Andréa tinha dois anos e meu casamento se anunciava não ser um casamento
que ia durar. Tinha problemas sérios. E pedi ao Echio que queria um outro filho. Bem,
eu sei que engravidei. Para mim foi uma coisa meio milagrosa essa segunda gravidez,
porque eu já estava muito distante do meu marido. Sentia-me muito só. Ele tinha a vida
dele. E não me procurava, até como mulher. Vivíamos sérios conflitos. Algumas vezes
tive que ir trabalhar com óculos escuros para esconder o arroxeado dos olhos.
Mas faltou a regra. Naquele momento eu estava bastante debilitada. Debilitada
fisicamente. Estava muito magra, sofrida, triste. O sinal, é o da regra. Então, eu não
tinha a mínima idéia de que poderia estar grávida. Mas o exame de urina acusou
gravidez.
.
.
.
Com sete meses, Dolores resolve retornar a Salvador por sentir-se
fragilizada, com intenso mal-estar que embora vivido em silêncio, não
192
conseguia ocultar. Sem ter feito nenhum exame pré-natal – em virtude da
carência financeira e por não contar com apoio de benefícios de saúde, como
professora da rede particular no Rio de Janeiro –, Dolores chega novamente à
cidade do Senhor do Bonfim em 1969. A ditadura militar se fazia mais violenta.
Porém o que afligia Dolores era sobretudo a reação da família, então, esconde
suas dores, como recorda em seu testemunho:
Cheguei a Salvador com uma inflamação. Então a primeira coisa que eu fiz foi ir
a um médico: Alain. Ele me atendeu sem cobrar – era um excelente médico da família,
irmão de meu cunhado. Eu tinha meu plano de saúde como funcionária pública e
naquele momento delicado, conseguia usá-lo, o PASEP, sem ter que aguardar datas
longínquas, dadas minhas facilidades familiares e urgências reclamadas por meu estado.
Allain observou que eu estava com um abscesso no ouvido, necessitando de uma
cirurgia, mas como estava grávida, ele não aconselhava tratamento cirúrgico.
Então fui obrigada a lancetar o ouvido sem anestesia. Não sei se este fato – o
susto – contribuiu para que eu tivesse a criança oito dias depois. Você, Isabel, nasceu de
sete meses, o que talvez tenha sido provocado por aquela inflamação ou por aquela dor.
Lembro-me que houve então um show no Teatro Castro Alves e Rodrigo Velloso
– grande amigo – me convidou para ver o último show de seu irmão Caetano Velloso,
antes de se exilar em Londres. Um espetáculo muito bonito. E nesse show eu tive que me
levantar algumas vezes porque sentia uma dor atravessada embaixo. No dia seguinte,
fiquei deitada, porque quando me levantava, a dor era muito forte. Bastava colocar o pé
no chão... era uma coisa violenta. Aí eu me deitava e passava.
Naquele mesmo dia, meu pai – Osvaldo – chegou do trabalho, às seis horas da
tarde e quando me viu, achou que eu estava em trabalho de parto. Telefonou para um
amigo, médico também, o Dr. Antônio Nascimento – que era do PASEP – e pediu que
me atendesse com urgência.
Papai era médico clínico. Era considerado no interior da Bahia como um grande
parteiro. Ele morava no interior e naquele momento se encontrava em Salvador, cidade
193
onde tínhamos um apartamento comprado por mamãe e papai, a fim de que as seis filhas
e o único filho homem estudassem em cidade grande.
Papai então mais velho, achou que eu estava bem entregue aos cuidados do Dr.
Nascimento. Eu fui chegando ao hospital e a criança foi nascendo.
Era você, com cerca de 1 quilo e 200 gramas. Você nasceu quase sem dor. Sem
precisar de anestesia. Então de certa forma você veio como eu esperava que fosse na
primeira filha: Andréa. Um parto natural, sem que precisasse tomar anestesia. Ficou
dois dias na encubadeira e fomos juntas, de volta para a casa de mamãe.
No primeiro mês você viveu tranqüila. Mas depois de um mês você começou a ter
manifestações diferentes. Começou a chorar muito e, além de chorar, você apresentou
uma fungueira. Eu não sei porquê, Simone – minha irmã – estava passando uns dias lá
na casa de mamãe. Lembro-me muito dela me ajudando, te carregando de noite porque
você chorava sem cessar. Então nós levamos você a um médico do IAPSEB. Nem ele,
nem ninguém descobria o que você tinha de fato e, as preocupações cresciam.
Lembrei-me do Dr. Edison Liberato, que era amigo de Oliveiros Guanais,
anestesista e marido de minha irmã Simone. O Dr. Edison tinha cuidado de Andréa,
mas não era do IAPSEB, era médico particular. Por isso que eu não voltei a ele na
segunda gravidez. Mas a pedido de meu cunhado Oliveiros, Dr. Edson me recebeu.
Tudo eu fazia absolutamente sem dinheiro algum.
Dr. Edson, sabendo um pouco da minha vida, perguntou: - você fez o sorológico
de lues? Esse nome soou novo para mim. Eu não tinha feito exame nenhum. Não houve
pré-natal em sua gravidez, diferente da primeira que foi toda acompanhada. O Dr.
Edison era um médico de extrema confiança e competência, além de que eu não precisava
ter nenhuma despesa. Ele começou a me acompanhar. Pediu meus exames e foi ficando
aflito.
Quando os exames ficaram prontos, foi Selma – minha irmã, farmacêutica – que
me deu a notícia. No laboratório de seu marido – Murilo Nascimento – minha irmã
mostrou-se muito assustada com a apreciação dos exames. Chamou-me, levando-me
para uma sala reservada lá no laboratório. Abriu um livro e pediu que eu lesse sobre
sífilis. Aí eu vi que nos exames tinha dado cinco cruzinhas de sífilis em mim (o máximo
194
de gravidade). Portanto, você também havia recebido esta mesma carga de mim, na
gestação.
O Dr. Edison me disse: - É preciso um tratamento urgente para a criança e para
você. Para ela, como é muito pequenininha, pode ser que não resista, porque tem que
tomar uma carga significativa de penicilina. Pode ser que tenha um choque e muito
provavelmente, seqüelas. Mas a gente tem que apelar para isso.
Foi papai quem lhe deu a bezetacil, a penicilina, de 7 em 7 horas. Muito
magrinha, você tomava até no pé. Deitadinha em uma banheira de plástico forradinha,
posta aos pés da cama, era o seu berço. Você chorava aquela horinha, mas reagia.
.
.
.
Rapidinho fiquei boa e exercitei a gratidão pela vida a mim concedida.
Logo me foi ensinado que minha sorte estava na aparente falta de sorte de
minha mãe, que por não ter condições de fazer um pré-natal, teve garantida a
minha vida. Aprendi então a lição de que, quando se descobre que uma criança
vai nascer com grave doença, potencialmente portadora de seqüelas – isto é: a
possibilidade de nascer cego, sem braço, com má formação dentro da cabeça ou
no corpinho – a mãe e o pai dessa criança – apoiados por conselhos e
orientações legais – precisam ter coragem de libertar a criança do infortúnio de
habitar o mundo como um ser anormal.
A impossibilidade do pré-natal me assegurou o direito do viver e, o
milagre da cura me concedeu uma outra chance de habitar o mundo: ser uma
criança normal. No entanto essa questão da normalidade, tão poderosa a ponto de
conceder o direito à vida, me inquietou o viver.
De onde vêm os parâmetros que definem – como um controle de
qualidade – quais pessoas têm o direito de habitar ou não o planeta? Em que se
alicerçava a certeza humana de que as pessoas portadoras de seqüelas seriam
fatalmente infelizes como viventes?
Assim fui crescendo – grata pelos milagres a mim concedidos, mas
incomodada por estranhamentos colados na minha história. Questões que eu
195
não compreendia, visto ser plausível a gratidão pela minha vista perfeita, pelos
meus membros plenos de movimentos, pela minha mente vigorosa.
Mergulhava então, em uma imageria que precisava elaborar.
Se esse conjunto de imagens – sempre se acumulando
e se movimentando em nosso imaginário – não for bem cuidado,
avaliado com autonomia, vasculhado de tantas poeiras que o
moldam e ameaçam mantê-lo conformista, terminamos
aceitando modelos, dos quais discordamos explícita e
formalmente.24
Quando fiz um ano, meus pais se separaram, o que não impediu que
recebesse educação e tivesse um convívio amoroso. Desfeito o casamento, meu
pai desenvolveu uma grande admiração por minha mãe, a qual jamais realçou
para nós reclames ou mágoas do seu casamento, ajudando meu pai a desfazerse de culpas e assumir sua paternidade, no que dizia respeito ao afeto pelas
filhas, já que não se poderia contar com sua ajuda financeira.
Entre Salvador e Rio de Janeiro, Dolores favorecia encontros entre pai e
filhas, pensando nas lacunas que poderiam advir de sua falta. Meu pai
empenhava-se em fazer de sua ligeira presença, intensos e imensos encontros
de amor, e o fez.
Feliz, eu administrava espaços e realidades. Cresci aconselhada a não
contar minha história e quando imaginava fazê-lo a alguma amiga na infância e
na adolescência, percebia que mais esta notícia complicaria a complexa
administração junto às mães de colegas e amigas – das escolas privadas onde
estudei como bolsista até chegar à universidade pública. Famílias da classe
média e alta relutavam em confiar suas filhas como amigas de uma menina,
moradora de um Conjunto Habitacional popular na periferia da cidade, criada
por uma mãe divorciada e, filha de um pai ator.
24 LINHARES, Célia. Bons espelhos custam caros – imagens na produção política de subjetividades docentes. In:
Revista de Educação. AEC nº 130. Ano 33. Jan/ março, 2004. p. 54-75.
196
Questões que, narradas hoje, à primeira vista parecem carregadas de
menos tabus, na década de 70 expressavam exclusões silenciosas e clamantes.
Aprendi a calar-me, para poder brincar e ser uma criança normal entre
amigos e primos. Silenciava minha história e como recompensa, garantia que as
amigas fossem dormir em minha casa, experienciando brincadeiras e
realidades, visto que vivenciar o espaço delas era conquista mais fácil, por
representar maior segurança para suas mães.
Hoje sabemos, adverte Agamben, que, para a destruição da experiência, uma
catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma
grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente.25
É essa impossibilidade de traduzir-se em experiência, que torna hoje insuportável –
como em momento algum no passado – a existência cotidiana, ainda que o cotidiano hoje
seja, possivelmente, tão rico em acontecimentos significativos.26
Silenciava-me em tranqüilidade, visto que por mais que não pudesse
narrar minha história junto aos afetos sociais, vivia seus detalhes intensamente,
naqueles espaços possíveis de fazê-lo com zelo e cuidado. Ao garantir – com
suporte de minha mãe – espaço de convívio com meu pai, via-me acolhida por
ele e por seu grande amigo, que mais tarde, já adolescente e leitora menos
ingênua, mas não menos madura, percebi ser este amigo, a outra parte que –
junto a meu pai – constituía um casal. Percebi então que gostava do ser humano
e, este gostar, redimensionava em mim a possibilidade de acolher formas
plurais de amar.
Hoje percebo ter sido fundamental meus pais não se prenderam à
tentativa de integrarem-se como parte do modelo único e, especialmente, meu
pai – liberto de um padrão que além de não lhe caber, era-lhe impossível – pôde
constituir-se atento às suas escolhas, cuidando em delicadeza, de nossa
formação – minha e de minha irmã.
25
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004.p.21.
26
Idem.p.22.
197
Atento em favorecer a autonomia das filhas, meu pai sinalizava a
importância das escolhas próprias que, segundo ele, não deveriam estar
aprisionadas como repetições das escolhas dos pais. Podíamos ser diferentes –
cada um – enfatizava para as filhas, Andréa e Isabel. Entre cuidados, à sua
maneira, meu pai pôde fazer da relação com as filhas e com a ex-esposa, uma
troca saudável para nós.
Como bem observa a professora Célia Linhares, os modelos únicos e
opressores são signos da negação de um exercício humanizador e se constituem sempre
como uma experiência dolorosa. Mas as grades incomodam em qualquer espaço social, pois
elas significam de alguma maneira uma redução de nossa liberdade, implicando limitações da
convivência com os outros ou de um controle exercido sobre nós, podendo até anunciar uma
ameaça de aniquilamento humano e vital, desde que declinemos de recuperar o exercício de
humanidade – que sempre inclui a autonomia – como um processo contínuo e intransferível. Por
essa razão, ainda quando estamos sob condições de constrangimento, podemos exercitar
movimentos emancipadores, ou seja, podemos exercer a liberdade por a desejarmos,
esforçando-nos pela sua ampliação.27
.
.
.
Descobri-me atriz, educadora e entre tantas construções e trajetórias, já
no trabalho com a Fundação Leão XIII- RJ, em meio ao Seminário realizado pelo
Projeto Buscando Caminhos Através da Arte – em dezembro de 2004 –
ruminava eu, diálogos resultantes das trocas entre os presentes e as mesas
redondas das quais participei como integrante da equipe de educadores do
projeto.
Ainda atenta a reflexões que ressoavam em mim na escuta de colegas,
usuários e funcionários da Fundação, percebo-me sentada na platéia junto ao
senhor Nivaldo – morador da Leão XIII – pessoa que sempre me tocara pela
alegria de viver, que dele emana intensamente.
Senhor dono de voz cheia de seresta..., timbre pleno e sábio, Nivaldo
intui momentos de grifar a alegria em si, na inspiração do bem estar de tantos
27 LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades. In:PGM 2
Currículo e conhecimento. Boletim salto para o futuro. TV Escola.p.15.
198
outros – a seu redor. Bom de prosa, ele vai tecendo relações ali, acolá... Quando
eu – Isabel – sento-me a seu lado, o Sr. Nivaldo faz comentários sobre questões
abordadas no Seminário. Entre conversas, pergunto:
- Sr Nivaldo, como o senhor perdeu a visão?
- Mamãe pegou sífilis de papai e não sabia. Eu nasci assim.
Bastou esta resposta, para Isabel reviver toda a sua história
redimensionando aprendizados de muito tempo. Aprendizados que não se
fizeram estáticos, mas que potencializaram suas re-organizações ao encontrar-se
com o mestre Nivaldo.
Com certeza, a mãe deste senhor não teve direito a tratamento médico e
cuidados por parte do Estado ou da família – que, neste caso, não pôde
substituir o Poder Público nas responsabilidades políticas e sociais.
E como nos alerta Bauman, como podemos viver com essa contradição; e,
sobretudo, por que a maior parte do tempo não a notamos e, quando o fazemos, não ficamos
particularmente preocupados.?28
Tempo depois, pude sentar-me junto ao Sr. Nivaldo na Fundação Leão
XIII e agradecer-lhe por ter firmado aprendizados significativos em mim:
- Quando eu conheci o senhor e me contou que nasceu com sífilis, tendo perdido
sua visão por causa da doença, pensei nas tantas vezes que testemunhei a sua alegria de
viver.
Lembro – para o Sr. Nivaldo – que também nasci com sífilis, conforme
tinha lhe falado no Seminário, e divido com ele reflexões que me acompanham.
- Pensei diversas vezes que, caso a minha mãe soubesse da doença antes do parto,
eu Isabel, poderia deixar de existir pela possibilidade de nascer com alguma diferença em
relação às outras pessoas. O senhor – Nivaldo – também poderia não existir, como
confirmação do decreto que legaliza o aborto a partir da recomendação de atitude fatal
com a vida do outro, no caso de comprovada possibilidade de seqüelas.
28
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000.p.10.
199
E quantos tiveram sua vida decidida como interrupção, antes que pudessem ser
alegres e tristes – como nós – e nesta alegria e tristeza, poderem fazer-se felizes – como
nós?
- A senhora sabe o que é isso? Me pergunta o Sr. Nivaldo. E comenta:
- Olha, o problema dona Isabel, é que a gente tem como obrigação procurar
entender a gente próprio. Se a gente não procurar entender a gente próprio não pode
entender o outro ser humano. Ser útil à gente mesmo. Ser útil a gente mesmo é gostar
da limpeza, é gostar de tomar seu banho, é gostar de cortar suas unhas, é gostar de tirar
sua barba, é a pessoa ser útil a si próprio.
Ser útil a quem precisa de utilidade. Se encontrar uma pessoa defecada, urinada
ou vomitada, não fazer crítica daquela pessoa. O que aconteceu com ela ou com ele...
amanhã pode ser eu.
Nós não compreendamos a gente. A gente para compreender a gente, tem que
estudar a gente próprio. Se não estudar a gente próprio, a gente não pode compreender a
gente. Se nós não se compreendamos, como é que vai compreender o outro? É preciso
que a gente procure puxar pela massa cefálica: pelo ritmo psicologial, filosofial,
categorical, espiritual, mental, social. Usar o seu termo educativo, porque se não usar o
seu termo educativo, a gente não vai ter educação nem para a gente próprio. Como é que
ele vai ter educação para alguém, se não tem educação para ele próprio?
Se seu pensar é mágico ou ingênuo – nos conta Freire – será pensando o seu
pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir
idéias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação.29
- Eu perdi minha visão material – continua o Sr. Nivaldo – mas estou
satisfeito com aquilo que veio para mim. Se nós não tiver calma com a gente mesmo, não
temos calma com alguém. Se eu não sei lidar comigo não vou saber lidar com a senhora.
Tenho que saber lidar comigo.
Saber que eu preciso ser respeitado para saber respeitar os outros. Não criticar,
não zombar de alguém para não ser zombado. Não fazer pouco, nem criticar. E todos
29
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.101.
200
nós, neste planeta terrestre, temos um pedacinho na vida. Descobrir que nós nascemos e
estudamos, aprendemos, mas não aprendemos de tudo que tem neste planeta terrestre.
Só pra mostrar pra a senhora, que tem um monte de coisas que alguém não
conhece. E tem coisas que não estão escritas no livro. Tem perguntas que não estão no
livro.
.
.
.
Conversamos, o Sr. Nivaldo e eu, sobre escolas, professores,
aprendizados e importâncias para a vida: os sentidos que se fazem
significativos em nós.
- Olha Isabel, meu professor é a obra da natureza, conta ele. O meu professor é o
meu bom ritmo categorical. O meu professor é a minha própria consciência. O meu
professor, é como eu digo à senhora, a gente tem por obrigação de se estudar a nós
próprio, certo?
Estudando a nós, podemos e devemos assumir o desafio de fazer com que o
campo da educação também contribua para os múltiplos movimentos de expansão da vida.30
O Sr. Nivaldo, num só fôlego, retoma o rumo da conversa, no sentido de
fazer-me compreender o porquê da sua gratidão à Fundação Leão XIII.
- Eu estou nesta belíssima casa que me tirou de uma lama e me botou numa
cama, há 27 anos. Porque esta casa é como eu disse para a senhora: quando eu bebia a
bebida alcoólica, eu tinha minha casa equipada com televisor, com geladeira, minha
radiola, meu relógio de pulso, o dinheiro no banco. E eu perdi tudo por causa da bebida
alcoólica. Eu perdi tudo quanto eu tinha.
Hoje eu estou com esta bolsinha (bolsa de fezes) por causa da bebida alcoólica. Às
vezes a gente pára de beber, mas ficam as seqüelas. É o que a bebida alcoólica faz: deixa a
LINHARES, Célia; LEAL, Maria Cristina (Orgs.). De uma cultura de guerra para uma de paz e justiça social:
movimentos instituintes em escolas públicas como processos de formação docente. In: Formação de professores:
uma crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.p.117.
30
201
pessoa sem braço, sem perna. Deixa a pessoa muda. Deixa a pessoa atordoada, falando
coisas sem tirar proveito daquilo que fala.
A Fundação Leão XIII para mim é tudo de bom. Por que eu digo isso? Porque eu
tava lá fora eu tinha de tudo e não tinha nada. E aqui dentro? Eu não tenho nada, mas
eu tenho tudo.
Eu tenho a paz.
Eu tenho amor.
Eu tenho carinho.
Eu tenho bom ritmo categorical das assistentes social, dos plantão. E de todos.
Existe uns pedacinhos dessa vida terrestre, que estes pedacinhos a gente precisa
aprender a dominar eles. E sabendo dominar eles, não é com palavra ofensiva.
É com palavra educativa, que domina aquela pessoa que está com palavra
ofensiva. Domina ele – os pedacinho – não é com pancada.
A Bíblia, dona Isabel, capítulo 2, versículo 3, diz: Eliminai uma ovelha ruim,
para não botar o seu rebanho a perder. Mas isto de eliminar uma ovelha ruim, não é
matar aquela ovelha, é ensinar aquela ovelha. É educar aquela ovelha. A ovelha somos
nós.
- Eu sou uma ovelha que quase fui eliminada, comenta Isabel. O que o senhor
acha que pode melhorar – aqui na Fundação – para que a gente não elimine nossas
ovelhas?
- Olha dona Isabel, primeiro educação. Verba que não existe. E outras coisas.
Gente que tenha muito ritmo psicologial, filosofial, categorical, espiritual, mental, social.
Porque nem todos que pega num livro... lê, mas não sabe compreeder o que está escrito
ali. Não tem a condecoração. A condecoração, porque se nós não souber para a gente
próprio, não sabe para alguém.
- O senhor me falou que não foi a cachaça que veio até o senhor, o senhor foi até a
cachaça – assim me contou. O senhor me diz que hoje tem uma paz, ao morar aqui na
Fundação. E essa paz veio de onde?
202
- De mim mesmo porque eu procurei ser gente, que naquela época eu não era
gente.
- E qual o seu segredo para ter uma mente tão plena, Sr. Nivaldo?
- O meu segredo? Eu puxo por mim. Eu procuro ensinar eu mesmo.
Dona Isabel, a dona Isabel não é chamando a senhora de velha. Dona Isabel, é um
respeito na vida material. Nem todas, aceita elas chamadas de fulana de tal. Nem todas
aceita. Então eu uso chamar a senhora de dona Isabel, como a senhora me chama de Sr.
Nivaldo. Aí eu vou dizer: se a senhora me chama de Sr. Nivaldo a senhora não está
zombando de mim. Está me elogiando, me dando um pouco de educação social.
- Se o senhor com seus 75 anos, puder dar um conselho para uma mulher com
37, um conselho precioso que eu possa levar para a minha vida, o que é que o senhor me
diz?
- Olha dona Isabel, nós que estamos neste planeta terrestre que nós estamos
habitando, pisando nele: depois ele é que vai pisar em cima da gente – que é a dona Terra
– ela dá de tudo para a gente comer, depois ela é que come a gente. Não vê a água? Sem
ela nós não existe, mas ela também acaba com a gente. Se beber ela demais, também
passa mal. É igual a comida, se comer demais passa mal, se não comer também passa, dá
vontade de vômito, dá tonteira.
Até o dinheiro demais, dona Isabel, faz mal. E a gente também sem ele, mal
passa. Nós quer comprar uma coisa na vida e não dá. E o dinheiro demais, nós quer
comprar tudo. O dinheiro compra tudo mas não compra nossa vida, dona Isabel. O
dinheiro compra tudo, mas não compra a morte, para ela não levar a gente. Compra?
- O senhor gosta de viver, seu Nivaldo?
- Olha, dona Isabel, eu dou graças a Deus por enquanto, por eu estar vivo.
Tem muitas perguntas, dona Isabel, que não dá para entender. Que não está
escrito. Não está escrito no livro.
Tira a roupa, para poder comer.
Tirar a roupa é o couro do boi.
A senhora sabe o que só se faz com ela?
203
(Isabel pensa e sorri, dizendo que não com a cabeça)
- É a água, dona Isabel, sem a água nós não somos nada, não é? Sem a água a
senhora não toma o banho, não lava a sua roupa, não faz sua comida. Não tem água para
a gente ingerir. Não tem água para fazer nada. Então a gente só faz com ela. Sem ela nós
não somos nada.
Eu vou perguntar para a senhora, o que está sempre molhado na gente, a senhora
sabe o que é que é?
- A língua, diz Isabel.
- A senhora já botou o dedo no céu?
- Já. (e em segredo, lembrei das tantas estrelinhas que a professora Célia
coloca em nossos textos).
- O que é que a natureza te dá duas vezes, e a terceira é o médico?
- Essa aí eu não sei não.
- A nossa dentadura, aqui ó. (mostra a sua própria).
- Quem inventa essas perguntas é o senhor, seu Nivaldo?
- É, de minha autoria.
- Vou fazer uma pergunta para o senhor, agora. Posso?
- Pode.
- Qual é a maior injustiça do Natal?
- Injustiça? Eu sei. A maior injustiça do Natal é ele fazer tudo de bom naquele
dia, tudo de bom. E no outro dia ele não tem nada pra comer. Mas naquele dia ele tem
tudo, compra de tudo. E no outro dia ele tá sem nada. Então eles aproveitam o Natal,
porque o Natal, dia 25 de dezembro, é o dia que nasceu nosso Senhor Jesus Cristo –
Emmanuel Messias. Este é o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, sabia disso?
- Eu não. Estou sabendo com o senhor.
- Então a gente temos por aquela obrigação: comemora-se o Natal, comemora o
carnaval, comemora tudo, mas eu acho que tem um erro da nossa parte. É uma coisa que
204
o nosso planeta Terra pratica isso todo ano. Então ele não se lembra do dia de amanhã.
Lembra só de hoje. Come tudo o que tem hoje e, amanhã a pedir vem.
Desculpe, tem gente, dona Isabel, que só usa a roupa no dia. No outro dia ela dá
aquela roupa para os outros, por quê? Porque tem o dinheiro. Em vez de mandar lavar
aquela roupa, bonitinha, ou ela mesma lavar. Ser útil para ela mesma. Suas peça íntima.
Vai jogar fora? Não. Não tem sabão? Não tem água? Então por que não ter disposição
para lavar para a senhora, ser útil para a senhora mesma? Eu tô errado?
- O senhor está certíssimo. Eu é que não tenho nada para dizer.
Posso brincar um pouco com esta pergunta do Natal? O senhor me falou uma
coisa tão séria. Sábia. Posso brincar?
- Pode.
- A maior injustiça do Natal, é que o peru morre, e a missa é do galo.
(Risos).
- Mas a resposta do senhor sobre qual a maior injustiça do Natal foi ali nas
profundezas.
- É tudo para aquele dia. Mas por quê? A mente dele ficou deteriorada. Não
soube botar na sua massa cefálica; na sua memória; no seu ritmo categorical, que
amanhã é outro dia. Então nós temos que usar o termo educativo. Porque se eu não
tivesse o termo educativo, a senhora não vinha dialogar comigo, vinha?
Não é possível – diz Freire – o diálogo entre os que
querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os
que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se
acham negados deste direito.31
- Se eu fosse uma pessoa estupefática... – continua Sr. Nivaldo – a pessoa
estupefática, dona Isabel, é a pessoa ignorante, que não aceita diálogo com alguém, não
aceita conversar, que está no canto, tristonho, está se martirizando a ele próprio ou ela.
Não tem o diálogo com outra pessoa. Vive tristonho, encabrunhado, então ele entrega o
seu próprio destino de ruindade, para si próprio.
31
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.79.
205
- E o que é que a gente deve fazer com essa pessoa, senhor Nivaldo? Como a
gente deve proceder?
- Deve procurar controlar ele o máximo possível. Vamos dar um passeio ali, o
senhor está muito tristonho. Dar um cafezinho, tomar um refresco. Procurar que ele vá
caminhar ele próprio. A massa cefálica dele em ação. Ele está apagado, ou ela também.
Tem que procurar puxar a mente dele, que ele está com a mente deteriorada. A mente
deteriorada é a mente fraca, a mente cansada. Mente que não tem noção daquilo que
quer, não tem noção daquilo que faz. E não tem noção daquilo que usa. É o que às vezes
a gente diz mente podre, mas não é nada disso, a mente não é podre, a mente é
deteriorada, mente cansada, sem cultura. Não tem nada, é uma pessoa apagada de
espírito. Viu dona Isabel?
- E o senhor costuma fazer o que por essas mentes assim?
- Por essas mentes? É procurar puxar com ele um assunto bonito.
.
.
.
Comovida com a beleza dos significados percebidos, faço-me fortalecida
naquilo que há de mais criador e ético em mim e, revigorada, prossigo em
experiências com estes senhores e senhoras.
Lembro-me então de algumas pessoas que encontro no CRS - Campo
Grande: cabeças caídas com olhares despedaçados no cimento áspero, com
pupilas enevoadas – provavelmente abandonadas de imagens e referências.
Nenhum gesto que pareça intencional. Nenhum murmúrio, posso eu perceber
nessas pessoas que por ali aguardam a única visita certa: a morte. Será isso que
o senhor Nivaldo me alerta quando se refere a pessoas sem cultura?
Reflito e vejo senhores e senhoras que carregam seus pertences pelos
espaços da Fundação. Onde andam – seja no banheiro, no refeitório, no pátio –
carregam sacos e embrulhos. Penso nas vezes que vi funcionários e assistentes
sociais fazendo a limpeza do dormitório desses senhores e senhoras. Os
comentários que escutei, julgavam como absurdo o volume das bugigangas
guardadas debaixo da cama, ou – para aqueles que têm um improviso de
206
armário em seu dormitório – vejo escapar comentários a respeito da quantidade
de lixo, encontrado como guardados.
Assisto funcionários e assistentes sociais deixarem os dormitórios –
nestes momentos de assepsia – carregando sacos de culturas a serem despejadas
em algum depósito, como lixo. Visito a rouparia da instituição, tão organizada e
limpa. Orgulho dos funcionários. Orgulho da Fundação. Escuto belas histórias
como uma funcionária que se desdobra para que tudo esteja perfumado.
Esta senhora me conta que diante do sabão em pó que segundo ela, cai
no fundo da máquina de lavar como um punhado de sal grosso, por ser o sabão
mais em conta encontrado no mercado pelos setores administrativos, para envio
a esta instituição como material de primeira necessidade, ela, a funcionária
responsável pela limpeza das roupas dos usuários, solicita aos colegas
funcionários, a sobra dos sabonetes guardados – pertences presenteados pelos
visitantes que fazem doações em momentos festivos.
Como sabonete faz-se um presente barato e útil, é grande a quantidade
armazenada nos armários dos senhores. São esses sabonetes que a funcionária
derrete e usa como sabão líquido para lavar as roupas que não merecem
punhados de sal.
Me perco na enormidade de peças de roupas, dobradinhas e guardadas
após o perfume de enxágüe, ao mesmo tempo em que sou fisgada por
conversas guardadas em mim. Senhores e senhoras contam-me – por vezes –
que não gostam que suas roupas vão para a lavanderia porque quando
retornam lavadas, suas peças íntimas ganham outros destinos, ali mesmo na
Fundação. E aquele cheirinho do corpo, aquele jeitinho na gola, aquele bolso
gostoso que aquece, não tem pertencimento ou história. Sem falar nos males
que alguns carregam, em necessidade de resguardo.
Me falam estes senhores e senhoras, de cuidados e de identidades – tão
desejados.
As roupas – peças íntimas – têm suas identidades lavadas. Desprovidas
de cheiro e histórias próprias, permanecem acervos? Tudo ali se transforma
207
num acervo institucional. Os armários arrumados sem a participação do dono,
para que seja possível perceber – senhor, senhora, funcionário, assistente social,
psicólogo – o significado e implicações da palavra lixo. O porquê de uma
banana ser guardada em armário, como jóia em caixa forte. O porquê da jóia ser
chamada de lixo, por aqueles que não precisaram guardá-la.
Lembro-me do Sr. Nivaldo a me alertar:
- Se a senhora compra dois pão hoje, guarda aquele pão para amanhã e não joga
aquele pão fora, porque amanhã aquele pão vai fazer falta. Tomara que nunca falte.
Guarda aquele biscoito. Não quer comer hoje, não joga ele fora. Dê para um animal, mas
não jogue aquela comida fora. Guarda para amanhã, amanhã é outro dia. Olha, eu tenho
garrafa de água guardada e eu tenho me dado bem. Sabe por quê? Se faltar água no
outro dia, eu tenho a minha água guardada.
Tudo isto me lembra Bauman, quando diz:
Não iremos longe sem trazer de volta do exílio idéias como a do bem público, da boa
sociedade, da igualdade, da justiça e assim por adiante – idéias que não fazem sentido senão
cuidadas e cultivadas na companhia de outros.32
Como fazer circular com respeito de todos, o que nos acervos nos
constitui como humanos e viventes?
Que faremos sem nossas marcas culturais – acervos apagados pelos
funcionários e pela instituição? Será uma intencional metodologia esta prática,
ou conseqüência de formações superficiais? Poderiam – funcionários,
assistentes, psicólogos – potencializarem construções nesse ato de arrumar
armários e decidir destinos de bens? O que faz com que usuários não
participem dessas ações como espaço de aprendizados e ensinamentos?
O que se faz preciso para que a limpeza aconteça como ato que educa
todos que vivenciam esta história, na ressignificação de referências e
realidades?
32 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000 / Vidas Despedaçadas,
2005.p.16.
208
Como a escola forma seus professores?
Como estes professores formam suas crianças e adolescentes?
Como são formados os profissionais que trabalham com pessoas e vidas?
Penso em minha mãe que, em momento de desespero e dor, procurava
diariamente força para estar comigo, em possibilidade de apoio:
- Isabel, enquanto você tomava a penicilina de 7 em 7 horas, eu voltei à igreja. Ia
à missa todos os dias. Entregava você. Pedia que você ficasse bem. Eu ia ali naquela
igreja perto lá de casa, do Hospital Espanhol. Todos os dias. Rezava muito. E você
realmente ficou completamente boa, E eu também.
- O que você buscava na igreja?, pergunta Isabel.
- Era uma coisa só comigo e com a oração, com a concentração, com a ligação.
Então, aquela coisa de ir todos os dias era para fortalecer essa ligação. Hoje eu digo que é
uma ligação. Conectar com as coisas boas do indivíduo, com as coisas boas do mundo.
Com a nossa força.
- E se você fizer uma relação deste lugar que era a igreja e que possibilitava,
naquele momento, uma religação de você consigo, religação com aquilo que era forte em
você, para que não se dispersasse no sentido de poder estar usando essa força para algo
realmente necessário; qual a relação que você faz com isso que buscava na igreja e com
aquilo que buscava – e busca, hoje com seus 69 anos – no seu espaço profissional, como
por exemplo, a escola?
- Porque, Isabel, eu sempre fui criada dentro da minha casa... sempre me vi
diferente. Como não era uma menina talentosa nos deveres, não apresentava nada de
excepcional, então eu me surpreendia em estar dando certo. Lembro-me que quando a
gente chegava na 4a série na escola, a nossa professora chamava a mãe para dizer se a
gente tinha ou não condições de fazer o exame de admissão em Salvador. Ela sacava isso.
E para mim foi uma surpresa ela chamar mamãe e dizer que eu podia ir, que eu iria
passar. E eu fui, e passei.
Então sempre para mim, era uma surpresa estar dando certo. Eu fazia o possível
para dar, dentro da minha questão, fazia o possível. Diria que sou uma pessoa
209
responsável, compromissada, ligada, mais do que competente – até diria – era essa coisa
da disciplina. De estar ali tentando não ser vadia. Ser responsável. Então, eu acho que
dou certo pela responsabilidade.
Isso foi indo até que eu descobri neste Rio de Janeiro, mais tarde, já formada
como professora, em contato com a Escolinha de Arte do Brasil, eu descobri algo novo:
que realmente eu era diferente. Então aquelas coisas que eu não sabia repetir, do modelo
estabelecido, era realmente algo de especial, e não de diferente para ruim. Era porque eu
tinha algo de sensibilidade, que precisava ser olhado com sensibilidade. E a Escolinha me
olhou com sensibilidade. Foi isso que encontrei na Escolinha de Arte do Brasil, me
fortaleceu de tal forma que até hoje, quarenta e tantos anos depois, este é o meu caminho.
É a minha fé.
Vivemos, na Escolinha, um universo poético.
Essa questão de poder escutar o outro, de tentar compreender o outro, de
respeitar suas manifestações diferentes do modelo. É duro, isso é muito duro, porque a
vida nos impõe modelo para viver, para dar certo. Então, como isso foi uma ginástica
que eu fiz – uma ginástica dolorosa – às vezes fico desejando para as minhas filhas –
Isabel e Andréa – um caminho mais suave do que o meu.
- Quando você diz ginástica, qual foi a sua ginástica?
- A ginástica, Isabel, é essa coisa de ser diferente. Carregar o peso do diferente.
.
.
.
Imersa em reflexões que me dinamizam, lembro-me de Crochík, que nos
convida a instâncias profundas quando diz que numa cultura que privilegia a força, o
preconceito prepara a ação da exclusão do mais frágil por aqueles que não podem viver a sua
própria fragilidade.33
Com as palavras de Dolores e Crochík, volto-me à Fundação Leão XIII
carregada de perguntas que ressoam em mim.
33 CROCHÍK, José Leon. O conceito de preconceito. In: Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Robe,
1997.p.23.
210
Por que me abandono de mim, deixando as unhas ficarem cascudas e a
pele encrespada?
O que leva esses senhores e senhoras a se diluírem em profundezas acres
e severas?
Por que o senhor Nivaldo nos assinala, tantas vezes, a importância do ser
útil a si mesmo, para poder ser útil ao outro quando este precisar de mim?
O que faz com que o Sr.Nivaldo dê um grifo especial ao banho, às unhas
cortadas, como necessidades aprendidas depois que nos tornamos adultos e
idosos?
Quando o Sr. Nivaldo registra a importância de não abandonarmos
aquele que está a abandonar-se de si, ele – Nivaldo – nos conta mais do que,
mais das vezes, pensamos estar ele contando.
- Vem cá fulano – nos ensina Nivaldo – vem tomar um banhozinho que você
está sujo. Vem cá. Ensina a ele tomar um banho, que ele não sabe esfregar seu próprio
corpo. Ensina a ele cortar as suas unhas, que ele não sabe cortar suas próprias unhas. Se
não tiver tesoura, esfrega assim no cimento e corta as unhas. Eu corto minhas unhas
assim. Eu corto minhas unhas no cimento, quando não tem tesoura.
Não há diálogo – lembra Freire – se não há um profundo amor ao mundo e aos
homens.34
Como um vai e vem – imbuída de Nivaldos Freirianos – retorno à
Escolinha de Arte do Brasil entre perguntas que se fazem junto a Dolores:
- O que é que você acha que a Escolinha assegurou em você, que você vê como
fundamental de ser assegurado na escola formal?
- Olha, a Escolinha me mostrou o seguinte: na época [anos 60], havia uma
dicotomia entre a pessoa que tinha talento e a pessoa que não tinha talento. A pessoa que
sabia desenhar e a pessoa que não sabia desenhar. Parece que as pessoas que tinham
34
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.79.
211
esses talentos – que eram os modelos, os parâmetros estabelecidos na sociedade – eram
mais valorizadas.
Por exemplo: minha irmã. Ela tinha boa voz, ela sabia recitar. Sabia todas as
respostas. Então ela representava o modelo. Tinha medalhas. Era aquilo: o modelo é este.
Ao mesmo tempo, isso encolhia aqueles que não tinham aquele poder. E eu não
tinha. Não tinha graciosidade, eu não era bonita. Eu era pequenininha, toda morena,
não era apreciada, era gordinha, peituda. Toda essa coisa. Eu era uma pessoa que não
tava dentro dos padrões. Diferente de minhas irmãs e meu irmão – muito alvos – e
aqueles amorenados traziam olhos verdes, ou azuis.
Quando cheguei no Rio de Janeiro – na Escolinha de Arte – que ninguém sabia
quem era minha mãe e meu pai, então lá as pessoas me viram pela primeira vez na vida
como pessoa. E ao olhar para mim como gente, viram que eu tinha talentos. Ali, eu não
era filha de sicrano ou irmã de beltrano. Eu era gente.
Quando então fui fazer a gravura em metal – ainda na Escolinha – e de repente
fui aceita no Salão Nacional de Arte Moderna, foi um choque para mim. Uma surpresa
muito grande, pelo inesperado da situação.
Já naquela época as pessoas estavam comentando que eu podia ser artista. Eu
estava fazendo coisas bonitas. Mas eu mesma me analisei naquela hora. Será que eu sou
uma artista? Não. Eu sou uma professora que tem o processo criador dentro de mim.
Como foi bom eu descobrir isto. Então eu vou fazer disso minha luta na educação. Poder
fazer esse trabalho para que todos se reconheçam. Porque hoje, sei que Paulo Freire
também mexeu com isso quando ele disse Ser Mais.
Não há também diálogo, se não há intensa fé nos
homens. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar.
Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns
eleitos, mas direito dos homens.35
.
.
.
Volto-me às escolas públicas com as quais tenho interagido no projeto
Janelas Cruzadas e sou levada a recorfar uma situação vivida em uma das
35
Idem.p.81.
212
escolas parceiras. Entre diálogos e visitas a outras escolas participantes do
projeto, percebi ser comum a problemática que trarei aqui e, que a lógica de
lidar com esta questão faz-se uma maneira de muitos.
Em conversa com uma diretora de escola e com uma professora regente,
perguntei sobre a maneira dos pais se fazerem presentes na escola e, de que
forma a escola tem favorecido aproximações com os familiares, responsáveis
pelos estudantes.
Rapidamente, a diretora da escola mostrou desconforto no lidar com
uma criança que apresentava renitente tendência em ficar em cima de árvores
catando bichinhos. Na sala de aula, esse garoto sistematicamente trazia o
mesmo assunto.
A diretora estava bastante preocupada e exaltada com o caso desse
menino, buscando ajuda para mantê-lo em sala atento a outros assuntos
propostos no planejamento didático, que diferia do mundo dos bichos.
Perguntamos como a professora regente lidava, na sala, com essa
demanda do menino. A diretora parecia estar aflita por não ser possível estar
falando de bicho o tempo inteiro na sala de aula e, confessava não saber mais o
que fazer com a criança.
Penso nesse menino curioso. Um pesquisador nato que aponta para essa
escola tão especial – cercada de mar, balanço das ondas e árvores. Criança que
aponta a importância de entrelaçar o entorno da escola à sala de aula,
compreendendo o entorno como quintal da escola.
O que procura o menino quando intui esse espaço institucional como
construtor de saberes e significados?
E quando o menino se internaliza em aquietação profunda, muitas das
vezes, a escola não percebe a voz do silêncio, tão conhecido e respeitado pela
arte e pela poesia.
É a própria vida – suas presenças e ausências – que me leva a
compartilhar com Linhares, quando nos instiga, ao assinalar que no avesso dessas
213
procuras, que fecham na escola e nos professores os saberes docentes, talvez pudéssemos
indagar se nestes não estariam incorporados tanto os saberes dos que já foram à escola, como
daqueles outros que nunca estiveram nela. Tanto os saberes populares, domésticos, familiares,
religiosos e políticos, como os eruditos, científicos, filosóficos, artísticos, tecnológicos...36
Elaborar as complexidades das experiências, parece, muitas vezes, escapar das
preocupações escolares.
Em pergunta à escola sobre como os pais dos estudantes se fazem
presentes e, de que maneiras a instituição favorece e investe na presença dos
familiares responsáveis por essas crianças e jovens que freqüentam a escola,
veio à tona – através da resposta – uma outra questão que preocupa esta e
outras unidades escolares: A bolsinha das crianças de Educação Infantil.
Por vezes, a bolsinha vem arrumada de maneira errada – foi uma das
respostas que, mais tarde, descobrimos ser uma crença de muitos.
Perguntamos o significado do correto e do errado.
Por exemplo: a escola de educação infantil solicita materiais importantes
para as crianças como toalhinha, escova de dente, pasta de dente... mas muitas
vezes na bolsinha das crianças, se fazem presentes coisas que não devem vir para
a escola. Será que isso expressa uma ausência, uma negligência dos pais?
Ao perguntarmos que coisas são estas que não devem estar na bolsa,
tivemos como resposta: carrinhos, bonecas, legos, brinquedos.
Soubemos então que a escola tem brinquedos para as crianças brincarem
na instituição e estas não podem levar seus pertences particulares para a escola
todos os dias. Existe o dia da semana certo para o estudante de educação
infantil trazer seus brinquedos e objetos pessoais. Nesse dia, existe hora correta
para a criança brincar com seus acervos.
Conversando sobre o assunto com outras escolas parceiras, soubemos da
complexidade de lidar com questões, como estas: uma criança quebrar o
36 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. Movimento, R. Fac. Ed.
UFF, Profissão docente: teoria e prática. Niterói: DP&A Ed., no 2, setembro de 2000. Publicação semestral.
214
brinquedo de outra criança; ou perder; ou levar para casa um objeto do colega
etc. Por isso, há um dia determinado para cada um trazer seus pertences
afetuais. Será que lidar com os objetos pessoais dos estudantes diariamente,
significa uma sobrecarga de responsabilidades para ser administrada pela
escola, que já administra tantas questões?
Mas como trabalhar com a educação infantil – nessa perspectiva – se
questões relativas à afetividade, às relações sociais pressupõem a presença de
referências de cada um, no sentido de que os limites individuais e coletivos; as
estéticas e as éticas plurais, possam constituir aprendizados?
Que formação propomos aos docentes e aos estudantes, quando
estipulamos dia da semana e horário certo, para que crianças e adultos se
familiarizem com as singularidades – suas e do outro – ante a possibilidade de
socializar seus objetos simbólicos e experienciar valores?
É possível a escola determinar hora marcada para sermos e para
interagirmos, ao mesmo tempo em que esse espaço institucional se autonomeia
como democrático? Como valorizar a importância das relações sociais, nessa
perspectiva da hora marcada e prenunciada? Como perceber e favorecer ações e
metodologias que façam da educação uma prática significativa para a vida?
Que questões precisam ser reconhecidas como conteúdos constituidores
do espaço escolar?
Ao visitar as escolas parceiras percebemos a complexidade – que afirma e
que exclui – que promove encontros e que desencontra, tal como acontece nos
tantos movimentos dinâmicos do viver. Mas precisamos pensar
conscientemente os desencontros, no sentido de garantirmos a este espaço
institucional a realização de sua função, através de caminhos que favoreçam a
aprendizagem como reconhecimento da nossa responsabilidade pelo passado,
pelo futuro e pelo presente – responsabilidade individual e coletiva – na
superação de organizações disciplinares negadoras da vida.
215
Ocorre-me então trazer algumas questões que podem nos ajudar a
refletir ideologias e metodologias afirmadoras da educação como política pilar
das organizações sociais.
Em algumas escolas com as quais interagimos, percebemos que o acervo
da sala de leitura se encontra trancado em armários, com tempos determinados
para que os estudantes tenham acesso aos livros. Ainda assim, nestas escolas, os
acervos não ficam dispostos de maneira a convidar os leitores, ou futuros
leitores, para a manipulação e circulação dos livros. Todavia, sabemos que em
outras escolas a sala de leitura é organizada de maneira que o estudante possa
facilmente manipular os títulos com desenvoltura e liberdade.
Ao perguntarmos sobre empréstimos de livros, outras questões nos
despertaram certos a cuidados. Os livros rasgados, ou a perda de alguns títulos
emprestados aos estudantes, são entendidos – em algumas escolas – como
responsabilidade dos pais, convidados a colocar um novo título no lugar
daquele que fôra estragado ou perdido pelo estudante.
Quando o familiar não encontra o mesmo título, faz a reposição com um
outro livro. Nos casos daqueles que não podem trazer outro título – por
motivos econômicss – a escola assume essa perda repondo ela mesma um livro
no lugar daquele que fôra estragado ou perdido por uma criança.
Essa questão nos leva a indagar: Será possível trabalhar a
responsabilidade por um bem coletivo sem que no processo de construção de
valores, os objetos manipulados sofram ações, inerentes aos aprendizados?
Como fazermos para que as perdas possam, ao ser reparadas, avivarem
processos de aprendizagens coletivos e individuais?
Ao trazer um livro para substituir o mau uso de bens coletivos, sem que
haja reflexões significativas e ações transformadoras com a participação de
todos, a escola des-favorece a superação das dificuldades e o processo de
aprendizado coletivo.
O que acontece com o desejo pelo livro e pela leitura se o objeto – livro –
representa tensão para as crianças e para seus familiares – não no sentido da
216
livre fantasia e sentimentos naturalmente instigados pelas narrativas – mas no
medo de que algo aconteça com o manuseio do objeto e o temor das
conseqüências daquelas normas impostas – muitas vezes impossíveis de serem
atendidas.
É comum encontrarmos o acervo da escola guardado a chave dentro de
armários, na espera do horário propício, provavelmente vivenciado a partir de
escolhas mediadas por algum adulto.
No reconhecimento do livro como fonte importante para pesquisas,
algumas coordenadoras pedagógicas ou professoras de sala de leitura, em apoio
à equipe docente, selecionam livros de literatura infanto-juvenil, de acordo com
a temática trabalhada em cada momento letivo. O professor recebe os livros
selecionados por tema, como ação facilitadora da escolha dos títulos a serem
usados em sala.
Sem que professores participem dessa pesquisa de acervos e materiais,
será possível favorecer descobertas de possibilidades plurais que se desdobram
e aprofundam no processo de reconhcê-las e buscá-las?
Também não tem sido raro perceber coordenadoras pedagógicas das
escolas parceiras entregarem para a equipe docente um planejamento já
estruturado para o Projeto Pedagógico da escola. Alguns planejamentos com
temáticas já propostas para o ano escolar. Projetos e planos que se diz
representarem necessidades coletivas, desde que seriam organizados após cada
professor opinar na eleição do tema comum, a ser trabalhado por toda a escola.
Após a eleição procedida democraticamente, a coordenadora pedagógica,
ou outro profissional da escola – que trabalha nessa perspectiva, com as
melhores intenções – oferece aos professores o planejamento ou o projeto
estruturado, muitas vezes já apontando desdobramentos de cada temática para
todo o ano letivo. Até que ponto projeto definido garante que não haverá
desvios de foco e de objetivos na metodologia escolar?
Pergunto-me então qual o objetivo do Projeto Pedagógico e da escola que
assume engessá-lo sob perspectivas programáticas fechadas? Trabalhar com
217
contos de fadas? Ensinar lendas e mitos? Resgatar brinquedos populares?
Refletir sobre a importância da água?
Como promover, nas instituições de ensino, experiências de aprendizagem que não se
esgotem sob os limites de moldes, modelos e arranjos, sempre bem menores do que o ímpeto
de fluir da própria vida?37, nos pergunta Linhares.
Como trabalhar conteúdos sem descartarmos caminhos que estudantes
naturalmente apontam, como possibilidades que dialogam com ritmos e
necessidades pessoais e coletivos?
No entanto, nessas mesmas escolas, tantas vezes engessadoras,
encontramos uma carinhosa diretora, na busca atenta de maneiras de convidar
crianças e familiares para convívios amorosos, ricos em sentidos, como
aconteceu num dia das mães realizado na escola, quando mãe e filho comiam
no mesmo prato, juntinhos, a mesma comida do cardápio diário do estudante.
Sutis e profundas delicadezas no coração do cotidiano escolar.
É também nessas escolas que encontramos professoras buscando
caminhos para acolher adolescentes que não conseguem se concentrar, por
terem passado a noite se protegendo de balas que não são doces como as
crianças merecem, mas ácidas e perfuradoras de paredes e móveis. Nessas
mesmas escolas, conhecemos professoras que se desfolham em aprendizado
constante com seus estudantes – aceitando desafios propostos, desmontando
dogmas algumas vezes entranhados, ofertando amor e trocando saberes na
construção de ressignificações de existências sofridas e desamparadas.
Convido a professora regente e adjunta, Eliane Pellegrino, para refletir
conosco essas questões.
Comecei a pensar: eu como professora, como gestora, o que eu sinto no meu
aluno? O que está me trazendo angústia? A primeira coisa que eu pensei foi a
37 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. Movimento, R. Fac. Ed.
UFF, Profissão docente: teoria e prática. Niterói: DP&A Ed., no 2, setembro de 2000. Publicação
semestral.p.50.
218
aprendizagem. Está difícil essa coisa rolar, parece que as crianças estão com dificuldades
cada vez maiores de aprender. Mas por que isso?
E por que que a gente – conversando com as colegas – vai percebendo que está
cada vez mais difícil a aprendizagem do aluno? O que é que essa criança me traz de
dificuldades, de necessidades? A atenção é uma coisa que está cada vez mais difícil de se
ter na sala de aula. As crianças estão cada vez mais desatentas. Em pouco tempo de
atividade, elas já estão fugindo daquilo, dispersando-se rapidamente.
Outras questões vêm passando nas minhas reflexões. A questão do respeito não
só pela figura do professor, mas pela figura do colega também . Está cada vez mais
difícil. As crianças estão se batendo, se agredindo à toa. Por nada. Pega o lápis, vai lá e
dá um tapa. Puxa o colega na brincadeira. A brincadeira está agressiva. Essa criança
está triste muitas vezes – apesar da alegria dela – porque ela chega perto da gente,
abraça e diz: tia, hoje o meu pai sentou no colo da minha mãe e deu na cara dela.
Eu digo: meu Deus, o que é que é isso? O que é que essa criança está passando
pra a gente quando ela me abraça e vem contando essa história? O que é que está
acontecendo com esta minha criança. Que vida é essa? Então ela me diz que o caverão –
carro policial blindado, com buracos para fuzis acertarem alvos que só os
policiais enxergam, visto que estes se encontram protegidos por vidros
especiais, turvadores da visão daqueles que estão nas ruas e janelas – passou a
noite inteira no morro e ela – a criança – não dormiu direito. O que é isso? O que está
acontecendo com essa minha criança, com o meu aluno na escola?
Esse depoimento da professora Eliane se deu num encontro de Formação
de Professores realizado em setembro de 2005 pelo projeto Janelas Cruzadas,
onde 42 educadores representantes de 12 escolas públicas junto à equipe do
projeto e da Secretaria Municipal de Educação se reuniam. Neste encontro a
professora Eliane foi uma das mediadoras das atividades propostas. Para
dialogar com as reflexões trazidas pela professora, trago aqui depoimentos38 de
alguns estudantes de escolas parceiras do projeto, no sentido de nos ajudar a
pensar.
esses depoimentos foram anotados pelas professoras e aqui, mantém a grafia dos modos dos
estudabtes se pronunciarem.
38
219
Coisas de que mais gosto na escola
8/ 9 anos
» Minha professora;
» Recreio;
» Recreio na sala;
» Sala de Leitura;
» Professora de Informática e de Teatro;
» Educação Física;
» Brincar.
Coisas que menos gosto na escola
8/ 9 anos
» A decoração da escola;
» O uniforme.
Coisas que me desagradam
8/ 9 anos
» Brigas;
» Tristeza;
» Amigos do peito que se separam;
» Ficar sem fazer nada;
» Tiroteios da Rocinha;
» Ser zoado;
» Ficar trancado;
220
» Não ser respeitado;
» Falsidades;
» Fazer dever;
» Pessoas que batem nos outros;
» Quando acaba a água;
» Quando mexe nas minhas coisas;
» Fazer cópias;
» Não ter festas.
O que meus pais fazem comigo que eu gosto?
» Quando estou triste eles me abraçam, ficam comigo – 8 anos;
» Perguntar sobre a minha vida e quais são as coisas importantes que eu
faço – 7/ 8 anos;
» Me ensinar e me educar – 7/ 8 anos;
» Me dá valor – 7/ 8 anos;
» Dizem que me amam – 6 anos;
» Cuidam quando me machuco – 6 anos;
» Me apóiam – 8 anos;
» Me compreendem – 8 anos;
» Confiam em mim – 8 anos;
» A comida feita pela minha mãe – 10 anos;
» Festa surpresa – 10 anos;
» Beijar a mãe quando a mãe beija – 10 anos;
» Levam na pracinha – 5 anos;
221
» Fazem bolo – 5 anos;
» Constrói brinquedo – 5 anos;
» Me abraça e beija – 5 anos
» Me amam – 9 anos;
» Me ajudam nas dificuldades – 9 anos;
» Me chamam para ajudar a arrumar a casa – 4 anos;
» Me levam para o circo – 4 anos;
» Me fazem carinho – 4 anos;
» Mamãe me coloca no colo – 4 anos;
» Me coloca na cama pra dormir – 4 anos;
» Meu pai fica feliz comigo – 4 anos;
» Contam histórias – 4 anos;
» Brincam comigo – 6/ 7 anos;
» Me abraçam muito – 6/ 7 anos;
» Quando minha mãe joga vídeo-game comigo – 6/ 7 anos;
» Surpresas – 10/ 11 anos;
» Ficar comigo – 10/ 11 anos;
» Quando ela faz a comida que eu gosto – 10/ 11 anos;
» Quando meu pai me joga para cima – 5/ 6 anos;
» Quando faz aviãozinho comigo – 6/ 7 anos;
» Me tiram do castigo – 9 anos;
» Me deixam ficar acordada até tarde – 6 anos.
» Quando me levam pra o cinema – 6/ 7 anos;
» Me levar pra passear na praia – 5/ 6 anos;
» Deixar passar batom – 4 anos;
222
» Deixa andar de bicicleta – 4 anos;
» Quando me beijam e cantam pra eu dormir e quando acordo meu pai
fala: - bom dia, com amor e carinho – 8/ 9 anos;
» Quando meu pai me dá dinheiro pra comprar biscoito e o troco dou pra
minha avó e ela vai e guarda para mim – 8/ 9 anos;
» Quando não gritam comigo – 8/ 9 anos;
» Me levam à casa da vovó – 8/ 9 anos;
» Quando me leva no chopp – 8/ 9 anos;
» Eu gosto de ajudar minha mãe – 8/ 9 anos;
» Eu gosto quando meu pai e minha mãe dá carinho pra mim e pra o
meu irmão – 8/ 9 anos;
» Eu gosto quando minha mãe me leva para a casa do namorado dela, aí
eu fico andando de bicicleta – 8/ 9 anos;
» Quando minha mãe faz pipoca – 6/ 7 anos;
» Ela cuida bem de mim – 6/ 7 anos;
» Leva para passear de Kombi – Educação Infantil
» Faz suco – Educação Infantil
» Brincam comigo – 7/ 8 anos;
» Me leva na rua – 7/ 8 anos;
» Nada – 5/ 6 anos.
O que eu gostaria que meus pais fizessem comigo?
» Me beijassem quando estou dormindo – 6 anos;
» Que fizessem massagem – 6 anos;
» Jogassem futebol comigo – 6 anos;
223
» Montassem um jardim – 5/ 6 anos;
» Me levassem à praia – 5/ 6 anos;
» Não me jogassem pela janela – 5/ 6 anos;
» Me deixar sair sozinho – 10/ 11 anos;
» Me tratassem bem – 6/ 7 anos;
» Que passeassem junto comigo – 6/ 7 anos;
» Conversar mais comigo – 4 anos;
» Fizessem carinho para dormir – 4 anos;
» Queria que meu pai ficasse mais comigo – 4 anos;
» Que eles acreditassem em mim – 9 anos;
» Que minha mãe vivesse para sempre – 9 anos;
» Me dessem um irmãozinho – 8 anos;
» Deixassem passar Natal com meu pai – 8 anos;
» Me levasse para viajar – 6 anos;
» Me ajudar, para estudar e trabalhar. Para ter um futuro bom e feliz – 7/
8 anos;
» Pintar comigo – 5 anos;
» Nunca me levar para a casa do meu pai – 9 anos;
» Jogar bolinha de gude – 9 anos;
» Que meus pais voltassem a morar juntos e saíssemos nós três - 9 anos;
» Me dessem mais beijos – 4 anos;
» Gostaria que minha mãe contasse histórias para mim – 4 anos;
» Fizessem uma festa para mim – 6/ 7 anos.
» Levar ao parque – turma 1201.
» Me levassem ao cinema – 8/ 9 anos;
224
» Passeassem comigo – 8/ 9 anos;
» Fizessem uma festa de Natal bem bonita e deixassem eu ajudar – 8/ 9
anos;
» Queria que eles me levassem para o chopp – 8/ 9 anos;
» Carinho – 6 7 anos;
» Eu gostaria que ela não me batesse à toa – 6/ 7 anos;
» Gostaria que ela brincasse comigo – 6/ 7 anos;
» Comprasse um chinelo, porque não tenho – Educação Infantil
» Me desse uma toalha, porque só tem uma – Educação Infantil
» Me amar – 7/ 8 anos;
» Me levar na casa da minha tia – 7/ 8 anos;
» Me bata e coloque de castigo – 5/ 6 anos.
O que meus pais fazem comigo que eu não gosto?
» Não gosto quando meus pais não querem me ouvir – 6/ 7 anos
» Me deixar de castigo no banheiro – 5/ 6 anos;
» Manda apagar a luz porque não catou latinhas para pagar a conta – 4
anos;
» Não deixa mexer nos trabalhos dela – 4 nos;
» Quando minha mãe está com raiva e me xinga – 4 anos;
» Não gosto que meu pai e minha mãe briguem para ficar comigo nas
férias – 4 anos;
» Não gosto quando me batem de cinto – 4 anos;
» Quando não me dão atenção – 9 anos;
» Quando minha mãe bebe – 8/ 9 anos;
225
» Meu pai bate em minha mãe, a joga no chão e xinga – 8/ 9 anos;
» Quando não me dão amor – 9 anos;
» Mentir, enganar – 6 anos;
» Quando não deixam eu brincar na frente de casa – 9 anos;
» Quando fazem brincadeira que eu não gosto – 9 anos;
» Quando me obrigam a ir para casa de minha tia – 9 anos;
» Me apertar ou beliscar – 5 anos;
» Deixar sem brincar – 5 anos;
» Falam para os outros o que não quero que falem – 8 anos;
» Puxam meu cabelo – 8 anos;
» Dá um objeto seu sem você saber – 10 anos;
» Manda usar roupa que não gosto – 10 anos;
» Me bate com chinelo – 6 anos;
» Quando fala que vai a um lugar que não vai – 6 anos;
» Não me respeitar e não cuidar de mim – 7/ 8 anos;
» Não me levam para passear – 9 anos.
» Quando minha mãe vai ao baile – 6/7 anos;
» Apanho quando durmo muito – 8/ 9 anos;
» Quando me mandam fazer todos os afazeres de casa: lavar, passar,
arrumar, cozinhar – 8/ 9 anos;
» Quando eu deixo alguma coisa cair e eles brigam comigo – 8/ 9 anos;
» Eu não gosto quando meu pai grita comigo porque eu esbarro no pé
dele. Me dá uma mágua dentro de mim – 8/ 9 anos;
» Quando minha mãe me deixa com meu pai em casa, porque ele me bate
à toa sem eu fazer nada – 8/ 9 anos;
226
» Chegar bêbados em casa e bater na gente – 8/ 9 anos;
» Mandar a gente arrumar a casa e lavar a louça e fazer massagem no pé
dele e molhar as flores e fazer comida e comprar pão e eu falo assim: - ô pai, eu
estou cansada, vai você – 8/ 9 anos;
» Não gosto que meu pai beba cerveja – 8/ 9 anos;
» Não gosto quando eles xingam – 6/ 7 anos;
» Bate com vassoura – Educação Infantil;
» Bate com vara – Educação Infantil;
» Bate com fio – Educação Infantil;
» Bate com pau – Educação Infantil;
» Bate com chinelo – Educação Infantil.
Como professora – nos conta Eliane Pellegrino – dando aula, vendo essa
criança me pedindo socorro: - eu não consigo aprender porque tem tanta coisa na minha
cabeça, eu não dormi a noite inteira... Meu pai batendo na minha mãe. Traficante tava
com a arma e disse: vamos, vamos, vamos... para a escola.
Estava mandando a criança ir para a escola, com um revolver...
Eu tenho que estar pensando isso quando meu aluno não consegue aprender.
Será que eu iria conseguir aprender se eu tivesse passado uma noite acordada? Será que
eu ia conseguir aprender se a minha mãe tivesse apanhado do meu pai que sentou no
colo dela e deu na cara?
Acho que isso a gente tem que refletir ao pensar a questão da aprendizagem. O
que é que está acontecendo com esta escola? O que está influenciando este meu aluno
quando ele entra na sala? O que ele está trazendo para a gente refletir?
Como professora, estou sendo agente dessa mudança, mas também estou sofrendo
essa questão que está acontecendo na sociedade. Até que ponto meus valores como pessoa
estão sendo questionados, estão sendo deixados para lá. Até que ponto tenho que
227
persistir nesses valores. O que acontece? O que eu preciso questionar, o que eu preciso
refletir para fazer um trabalho melhor com a minha criança, com o meu adolescente?
Linhares então, nos fala que precisamos estar atentos ao exercício de casar
aprendizagens com perguntas que não sejam exercícios artificiais, mas que, pelo contrário,
venham da vida, de seus sofrimentos e alegrias, de suas necessidades, urgências e desejos.39
E Crochík continua, ao dizer que a dúvida e o pensamento nem sempre foram
considerados inimigos da ação pois, ao menos na modernidade, a primeira [a dúvida] surgiu
como a possibilidade do segundo [o pensamento].40
Fortalecendo-se, Eliane prossegue.
Eu tenho que receber para poder dar. Tenho que me pensar como pessoa, como
agente transformadora, como professora, mas como pessoa. Como está sendo a minha
relação na escola com as minhas colegas? Estou escutando a minha colega? Estou
ajudando-a a refletir o problema dela que às vezes não é o meu, mas ela está mais
agoniada naquele momento? Como está sendo a minha relação enquanto uma pessoa
administrativa que poderia estar propiciando esta mudança dentro da escola?
Minha palavra eixo no Sumário proposto pelo Janelas Cruzadas é a Cidadania:
ela traz tanta coisa para a gente ir puxando, tem tantos braços. Como eu me dirijo ao
meu aluno? Como me dirijo ao meu colega? Como estão eles se dirigindo a mim?
O Sumário foi proposto a fim de que as professoras e as gestoras
pensassem seu cotidiano escolar, a partir de uma palavra que percebessem
latente, como necessidade de sua escola; de sua turma; dos sujeitos desta escola.
Palavra esta que se desdobra em outras palavras também emergentes. Proposta
essa, vista como um ponto de partir dinâmico, para a construção de projetos
pedagógicos grávidos, sempre abertos aos diálogos com a vida e suas
circunstâncias.
LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades. In:PGM 2
Currículo e conhecimento. Boletim salto para o futuro. TV Escola. Rio de Janeiro: Edição limitada do Salto
do Futuro, 2004. p.17 e 18. Ed. / Cidade / Data?
39
CROCHÍK, José Leon. O conceito de preconceito. In: Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Robe,
1997. p.21.
40
228
O depoimento da professora Eliane, aconteceu num dia de atividade da
Formação Continuada de Professores, dinamizado por ela e por outra
professora sua colega, junto a outros educadores do Janelas Cruzadas.
Nesse dia, foram oferecidos ao grupo elementos utilizados no encontro
anterior, elementos esses que dispostos no espaço onde o grupo se encontrava,
sugeriam convites a experienciações e ressignificações reflexivas.
Materiais catados na escola onde as professoras que dinamizaram o
encontro anterior trabalham (barro, sementes, varetas secas de árvores – agora
transformadas em uma cortina – pétalas de rosas, pedaços de bombril, vagens,
folhas secas, tecidos). Esses elementos foram reorganizando o espaço mediado
pelo próprio grupo e pelas professoras dinamizadoras – Eliane Pellegrino e
Madelon de Medeiros – e por educadores da equipe do Janelas Cruzadas –
Isabel Reis, Risonete Martiniano, Inês do Espírito Santo e Luis Alberto dos
Santos.
Enquanto o espaço era arrumado com os materiais diversos, as
professoras participantes do projeto – todas com olhos vendados e pés
descalços – escutavam melodias feitas por um músico que tocava ao vivo
instrumentos como sax tenor, flauta transversal, instrumentos percussivos e um
especialmente de origem indiana, feito com longo tubo de bambu.
Na organização da ambiência, um dos mediadores instigava o grupo –
ainda de olhos vendados e descalças – convidando as professoras e gestoras das
escolas a mergulharem em seus espaços interiores, na percepção do
mapeamento deste espaço interno que é privativo a cada um.
Músicas, sons, e uma voz que convidava: - se formos mapear o nosso interior
– afetivo, simbólico – percorrendo, desbravando esse mapa que nos desenha, que nos
inscreve...
Há zonas de desconforto neste seu mapa? / Há zonas secretas? / Quais?
Zonas felizes? / Quais?
Há zonas mortas no seu mapa afetivo de si? / Quais?
229
Há zonas de preocupação? / Quais? / Existem zonas silenciosas? / Onde
estão?
Há zonas de conforto no mapa afetivo de si? / Quais? / Zonas de controle? /
Quais? / Zonas sob controle? / Quais?
F O T O de Luizão com instrumento de Bambu
Há zonas de autonomia no meu mapa afetivo de mim? / Quais?
Há zonas de combate no meu mapa afetivo de mim? / Onde estão estas
zonas?
Há espaços silenciosos no meu mapa afetivo de mim? / Onde ficam estes
espaços?
Há alguma área ameaçada de extinção?
Há zonas desérticas; áridas; secretas?
Existe terra rebrotando espontaneamente neste mapa?
Existe reflorestamento planejado?
Existe alguma área sob constante vigilância?
Existem áreas férteis, porém abandonadas?
Existem áreas invadidas? / Quais?
Existem áreas em colapso? / Onde estão?
Existem áreas devastadas em segredo?
Existem áreas sendo recuperadas com ajuda? / Quais são?
Existem áreas compartilhadas?
Dando prosseguimento, convidamos o grupo para que – ainda de olhos
vendados e descalças – se levantasse ao som dos instrumentos, caminhando
230
pelo espaço em diálogo com os materiais presentes – todos, elementos
conhecidos das professoras.
FOTO DO AMBIENTE
Em seguida, convidamos o grupo a retirar suas vendas e caminhar pelo
espaço percorrido anteriormente, ressignificando caminhos e descobertas.
Todos sentados, conversamos sobre as sensações.
Quando os olhos estavam vendados, o pisar em pedaços de bombril
parecia algo muito macio e confortante, como também sentimos ao pisar nas
pétalas de rosas – experiência contrária ao imaginado.
Andar sobre o barro, para algumas professoras, causou estranhamento e
insegurança, para outras, trouxe prazer brincante.
Com as diversas sensações experienciadas pelo grupo: conforto,
estranhamento, desconforto, aconchego, desafio, medo, coragem, ousadia,
susto, recolhimento, pré-julgamento, surpresa – percepções e experiências
distintas a partir de uma mesma situação – fomos entrelaçando estas
experiências com aquelas dos mapas afetuais-simbólicos, na reflexão coletiva da
questão trazida pela professora Elliane: a Cidadania, questão que se entrelaçava
a outra, trazida pela professora Madelon: a Atenção.
Pensamos na importância de refletirmos a categoria – Cidadania – para
além dos direitos e deveres dos cidadãos, na atenção às sutilezas e
complexidades das relações afetuais que sustentam ou afogam aprendizagens.
Para tanto, os encontros anteriores da Formação Continuada de
Professores se entrelaçaram a esse – narrado aqui em parte – no exercício de
reflexões oriundas não apenas das experiências e dos raciocínios lógicos
expressados e percebidos pela cabeça – tão importante – mas, na atenção
centrada à percepção mediada pelas múltiplas maneiras inteligíveis de nos
231
apropriarmos e expressarmos experiências sensíveis – grávidas de sentidos e
significados nem sempre anunciados na oralidade.
Como as linguagens podem favorecer que o experienciar não estrangule
a sensibilidade, limitando-a a uma racionalidade de lógica e texto único?
Como a arte pode ajudar nosso olhar sensível, para que não esqueçamos
que quando as crianças dizem que gostam quando seus pais a jogam para cima,
ou que gostam quando são convidadas a ajudar os pais na arrumação da casa,
ou ainda, que gostam quando seus pais as levam ao chopp, difere
profundamente, das estatísticas que pretendem representar essas mesmas
crianças através de porcentagens classificatórias quando afirmam que 80% das
crianças – por exemplo – gostam de brincar com os pais; que 60% delas, gostam
de participar dos afazeres domésticos com a família e que 45% das crianças,
gostam de ir ao bar ou restaurante com os pais?
Como a problematização através das lógicas do sensório pode nos ajudar
a transcender estéticas e éticas que, ao assumirmos como nossas, cala... engessa
em nós a dimensão dinâmica do criar e do compartilhar?
Como a arte pode instigar o pensar, o se ver, o ver o outro, na produção
de sentidos para a vida?
Como a poética pode nos ajudar na desconstrução da capacidade humana de
produzir tanta desumanidade, como bem nos alerta o colega Ney Luiz de Almeida.
Trago aqui a fábula do cuidado – preservada por Higino (17, d. C.),
bibliotecário de César Augusto – narrativa re-contada por Leonardo Boff, para
que possamos refletir juntos o significado do ethos que cuida e da categoria
Cidadania, ampliada nessa perspectiva do cuidar.
Certo dia, Cuidado tomou um pedaço de barro e moldou-o na forma do ser humano.
Nisso apareceu Júpiter e, a pedido de Cuidado, insuflou-lhe espírito. Cuidado quis dar-lhe um
nome, mas Júpiter lho proibiu, querendo ele impor o nome.
Começou uma discussão entre ambos. Nisso apareceu a Terra alegando que o barro é
parte de seu corpo e que, por isso, tinha o direito de escolher um nome.
232
Começou uma discussão generalizada e sem solução.
Então todos aceitaram chamar Saturno, o velho deus ancestral, para ser o árbitro. Este
tomou a seguinte sentença, considerada como justa:
Você, Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá o espírito de volta quando essa criatura
morrer. Você, Terra, que lhe forneceu o corpo, receberá o corpo de volta, quando essa criatura
morrer. E você, Cuidado, que foi o primeiro a moldar a criatura, acompanha-la-á por todo o
tempo em que viver. E como vocês não chegaram a nenhum consenso sobre o nome, decido eu:
Chamarse-á homem, que vem de húmus, que significa terra fértil.
Leonardo Boff prossegue: O cuidado é anterior ao espírito infundido por Júpiter e
anterior ao corpo emprestado pela Terra. A concepção corpo-espírito não é, portanto, originária.
Originário é o cuidado, ‘que foi o primeiro a moldar o ser humano.’ O Cuidado o fez com
‘cuidado’, zelo e devoção, portanto, com uma atitude amorosa. Ele é anterior, o a priori
ontológico que permite o ser humano surgir. (...)
O ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador. Sana chagas, desanuvia o futuro e
cria esperança. (...)
É o mito do cuidado, e somente ele, que nos permite resistir ao cinismo e à apatia,
doenças psicológicas de nosso tempo.
.
.
.
Esse barro que tantas vezes nos cobra que voltemos à ele... Essa vida que
nos cobra que voltemos a ela, nos perguntam: Qual o sentido que damos a essa
vida, quando construímos e trocamos saberes nas escolas e, em espaços
informais de educação?
Somos cuidantes, continua Boff, quando prestamos atenção aos valores que estão
em jogo, atentos ao que realmente interessa e preocupados com o impacto que nossas idéias e
ações podem causar nos outros. Somos cuidantes quando não nos contentamos apenas em
classificar e analisar dados, mas quando discernimos, atrás deles, pessoas, destinos e valores.
Por isso, somos cuidantes quando distinguimos o que é urgente e o que não é, quando
estabelecemos prioridades e aceitamos processos. Em outras palavras, ser cuidante é ser ético,
pessoa que coloca o bem comum acima do bem particular, que se responsabiliza pela qualidade
233
de vida social e ecológica e que dá valor à dimensão espiritual, importante para o sentido da
VIDA E DA MORTE.41
Como a vida entra e desaparece nas escolas?
Dando forma à argila, ele deu forma à fluidez fugidia de
seu próprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a
matéria, também dentro de si ele se estruturou. Criando, ele se
recriou.42
.
.
.
Que questões se fazem em nós, instigadas por Sr. Nivaldo e tantos outros
moradores da Fundação Leão XIII, senhores e senhoras que estiveram na escola
por pouquíssimo tempo ou até mesmo nem puderam chegar a ela? O que eles
dizem não conflui com as reflexões de professoras e estudantes?
São realidades que nos apontam os estudantes quando trazem à baila
desejos tais como: amor – fantasia – participação nas experiências do outro e a
presença desse outro em suas vivências – escuta – valorização – cuidado –
reconhecimento – brincadeira – festa – acolhimento nos momentos difíceis –
ouvir histórias – alegrias vivenciadas em parceria... sentimentos que expressam
as coisas que mais gostam ou que gostariam que se fizessem presentes na
relação experienciada com seus pais?
Qual alerta o menino – ou menina – nos faz, quando afirma querer como
um desejo, que seus pais o castiguem ou batam nele – filho ou filha?
Que pretendem dizer as crianças e jovens quando falam dos uniformes e
dos murais, como aspectos que menos gostam na escola? Que pessoas e gestos
estão presentes ou ausentes nas uniformizações?
Liberto de ser quem não era, pôde meu pai – Echio Reis – fortalecer-se.
Vigoroso no seu potencial criador, dedicou-se àquilo que lhe retroalimentava e,
como artista e educador, trabalhou em comunidades periféricas e carentes da
Bahia, transformando sua casa num Centro Cultural. Como administrador de
41
42
BOFF, Leonardo. Outras Opiniões. In. Jornal do Brasil. Rio do Janeiro, 25 de julho de 2003. p.A13.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.p.51.
234
um lugarejo chamado Castelo Novo, Echio ensinou crianças, jovens e adultos a
lerem as letras, já que eram leitores vorazes de tantas inscrições de que seu
mundo era feito.
Com sua experiência como carnavalesco de escola de samba no Rio de
Janeiro – além de ator, diretor de teatro e figurinista – montou espetáculos e
escola de samba em Ilhéus, possibilitando aos desvalidos, desdentados,
esquecidos – moradores da periferia – brilhar junto à elite de Ilhéus como iguais
– apresentando enredos, figurinos, cenários produzidos por todos os
integrantes da escola de Castelo Novo, para que leituras de mundo pudessem
ser revisitadas, ressignificadas.
Personagens seriamente brincantes, contavam narrativas esquecidas, em
gestos políticos, na conquista de melhorias de vidas para a localidade da
periferia ilheuense.
Que práticas escolares nos fortalecem, no sentido de podermos dialogar
conosco e com o outro, apesar das dores que silenciam?
A escola – e as demais instituições que lidam com pessoas – precisam
estar atentas às brechas que silenciosamente clamam por serem potencializadas
como possibilidade de reavivar a esperança e a vida, como forças latentes
responsáveis por movimentos éticos, políticos e transformadores.
De mãos dadas à professora Risonete Martiniano – consultora do Janelas
Cruzadas – pergunto:
Como escultores de experiências, que caminhos nossos pés podem esculpir no
favorecimento do encontro do sujeito consigo mesmo, sem que para isso
exterminemos o outro e a nós mesmos?
Ocorre-me a intenção conscientizadora de Portinari, quando na década
de 30, em meio a modelos delgados, leitosos – colonizadores dos cândidos
selvagens espalhados em terras menores – transgredia, com narrativas vindas
de pincéis e tintas libertadores daquelas tantas imagens e palavras guardadas
nos silêncios profundos, nos porões da história.
235
Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés
que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes
aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. Quantas vezes, nas festas e bailes, no
terreiro, que era oitenta centímetros mais alto do que o chão, os pés ficavam expostos e era
divertimento de muitos apagar a brasa do cigarro nas brechas dos calcanhares sem que a
pessoa sentisse. Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os
santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a mesma moldagem
variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e
respeito. Agarrados ao solo, eram como os alicerces, muitas vezes suportavam apenas um
corpo franzino e doente. Pés cheios de nós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e
pacientes.
João Cândido, filho de Portinari, escreve-lhe uma carta – 20 anos depois
que seu pai fôra convocado, pelo mistério da vida, a habitar e trabalhar noutras
dimensões.
Falta você voltar Papa. Voltar com o teu Brasil enorme, generoso e sofrido.
Se, como disse Jorge Amado, “de suas mãos nasceram a cor e a poesia, o drama e a
esperança de nossa gente”, por que tua obra continua escondida dessa mesma gente?
Volta, e traz contigo a nossa gente, “com aquela roupa e aquela cor”, como prometido na
carta de estudante em que você fala com ternura de Palaninho e de Brodósqui. (cidade natal
de Cândido Portinari, em São Paulo).
Traz os nossos músicos, os bailes e os casamentos na roça; o frevo, o carnaval, o
bumba-meu-boi e o São João; o Tiradentes e os cangaceiros; os índios, negros e mulatos;
garimpeiros, camponeses, tintureiros e sapateiros; os espantalhos, o futebol, as pipas, gangorras
e piões; a mula-sem-cabeça, o caipora e o saci; a paisagem, os canaviais, florestas e cafezais; o
tamanduá-bandeira, as onças, a anta e a capivara; as mães, os santos e os artistas de circo; o
bauzinho de folha-de-flandres e a moringa; os meninos de Brodósqui e tua netinha Denise.
Que esta procissão saia da capelinha que você pintou para a noninha vêneta, convoque
o São Francisco da Pampulha e a via-sacra de Batatais; que ela nos transfigure, nos reconstitua
e nos dê forma. Forma emergente de nossas próprias raízes, forma que inclua os retirantes, os
enterros-na-rede e os trabalhadores.
236
Que não se ouça nunca mais ninguém dizer: - Xi, olha os pés que ele fez! O que vão
pensar do Brasil?
Que seja sempre lembrado que estes pés são um pedaço de nós mesmos, que a sua
ausência nos torna menores e alheios.43
Quais ventos levam nossas histórias populares/ tradicionais – mitos;
fábulas; lendas; contos – experiências nossas, milenares – a atravessarem e
habitarem oceanos da contemporaneidade?
Volto-me à fábula trazida por Higino (17, d. C.) e penso no cuidado que
as histórias e cantigas da tradição social trazem como ato do acolher.
Visitada pela imagem da criança no interior do útero materno, penso no
aconchego que ajuda o feto, a vivenciar mistérios embalados pelo calor que
protege.
Creio, ser esse acolhimento, a sabedoria que possibilita a difícil e
necessária passagem para novos espaços – experiências que trazem consigo
outras vivências.
Aconchegados, protegidos, amados – convites para confianças – ouvimos
uma voz doce, sentimos cheiros amorosos e percebemos a continuidade do
embalar que não fora perdido com o corte do cordão que nos fia uns aos outros,
como urdimento de experiências.
Assim fazem as histórias, as brincadeiras cantadas, que nos possibilitam
falar desde cedo sobre aquilo que nos visita, que mora em nós, que nos constrói.
Qual a ambiência criada quando ouço falar do escuro... mistério que me
aflige? Que poder tem o colo amado que nos encoraja a falar de segredos
profundos?
Lembro-me da minha mãe a embalar-me:
43
•
Textos retirados dos murais da Exposição ‘Tempo Portinari’ – Sesc Flamengo/ 2003.
• ROSA, Nereide Schilaro Santa. Mestres das Artes no Brasil. Candido Portinari.. São Paulo: Ed.
Moderna, 1999.
• CÂNDIDO, João. (Org. e consultoria técnica). Portinari – o menino de Brodósqui. 2a edição. São
Paulo, 2001.
237
Vai dormir ô Isabel
Que na casa do vovô
Tem um bicho pegador
Pega menina choradora
I i i - Isabel quer dormir
A a a - Isabel, quer mamar
A roupa de Isabel foi para a fonte lavar
E como é gostoso poder falar dos bichos numa ambiência de doçura e de
cuidados. Leitores que somos, percebemos histórias narradas no movimento do
corpo, na expressão do rosto, na tonalidade da voz.
Nana neném que a cuca vem pegar,
Mamãe foi pra roça e papai foi trabalhar.
Como é bom poder acreditar que ainda que a mamãe vá para a roça e
que o papai vá para o trabalho, eu não estou sozinha, acompanhada que estou
com o balançar, com o respirar da voz que mais uma vez me permite o encontro
com os meus – e seus – segredos e mistérios.
Lembro-me então da brincadeira eu sou pobre, pobre, pobre / eu sou rica,
rica, rica, que na sua ambiência de ludicidade, me presenteia, com leveza, tantos
exercícios de saber e de sabor.
Brincando, não é tão doloroso o não ser a escolhida. Dançando, aguço
meus sentidos na leitura do outro que para ser meu filho – nessa história –
precisa que eu lhe oferte o seu próprio desejo, como ofício de escolha. Aprendo,
com os sorrisos que pululam de mim, a alegrar-me também quando o outro é o
escolhido.
O porvir, faz-se então, grávido de surpresas e mudanças e, quando
menos espero, sou a escolhida também. Vou agrandando em mim o significado
de rico e de pobre.
238
E o que seria de mim, se as histórias não me contivessem como
conteúdos seus?
Qual solidão sentiria, ao pesar-me nos ombros o terror da inveja como
sentimento só meu? Mas acolhida pela história, descubro-me com vínculos, com
pertencimentos a um mundo que me afeta, enquanto também o afeto. E não
mais sozinha, torna-se mais leve e possível outra trilha que se mistura a estas e
aquelas, ressignificando-me.
Deitada, no colo das histórias que me acolhem, organizo-me nomeando
acontecimentos que em mim se dão sem forma ou nome. Se chamo de luto,
tristeza, quietude ou dor de dona Baratinha, não importa, mas ao dar um nome,
aquilo que não sei como dar conta, ganha forma.
Lembro-me de Fernando Lébeis, mestre amado, que redimensionou
minhas órbitas quando certa vez enfatizou:
- Se tem nome, existe!
E com isso, Fernando me ensinou a importância em darmos nomes, como
ação cuidadora e criadora – portanto, dinâmica – que materializa fenômenos
densos/ sutis, na organização e transcendência do nosso imo.
Ensinou-me – este querido mestre louco e lúcido – a importância de
respeitar e reconhecer os lugares do estranhamento, para que ocupe seus
espaços de vida em liberdade – ainda que seja expresso através de nomes
incompreensíveis para aqueles que lêem os fenômenos, com olhos e alma de
referenciais racionais imóveis.
E agora, não mais sozinha, vivencio com mais força a despedida de meu
pai – Echio Reis – que partiu sem avisos, como era seu estilo.
Acompanhada por dona Baratinha e por amigos como Francisco
Gregório, que tantas vezes me recontou história já tão contada, vejo a
personagem segurar meus braços levando meus olhos ao porvir – quando ela –
Baratinha, se põe novamente à janela a cantar, depois que partiu o seu amado
Sr. Ratão.
239
Agradeço a dona Baratinha; aos professores; aos estudantes; aos colegas;
aos amigos; ao senhor Rufino; ao Sr. Nivaldo e outros senhores e senhoras, por
con-fiarem em mim a esperança e crença no amor.
São elas, as narrativas, que se vestem com tantos nomes, expressos em
várias formas e me abrem portas, janelas – brechas ao encontro comigo, ao
encontro com o outro – moradas que me espelham, me acolhem e me ensinam.
O que faz com que desencontros entre funcionários e idosos da Fundação
Leão XIII se repitam em outras roupagens, vestidas – agora e outrora – por
funcionários e estudantes de escolas formais?
Nessa caminhada de estradas, trilhas, pontes, ruelas, avenidas, que se
entrecruzam, tenho os teóricos como encontros que ajudam minhas próprias
ordenações e materialidades, no momento em que consigo diferir a leitura
reflexiva daquilo escrito sobre o papel – que se dá intensamente no campo da
racionalidade – da leitura reflexiva, fundamental, deste escrito que se encontra
no papel, e que, quando entrelaçado à minha experiência, se ressignifica e me
ressignifica ampliando-me como leitora e escritora.
O escrito do papel se faz, para mim, como uma das possíveis
materialidades reflexivas daquilo que encontramos escrito no corpo, na alma,
no afeto, nas células, nas estrelas cadentes, nas rugas, nos mares, nas flores, nos
desertos e vales – textos que nos inscrevem em histórias que começaram antes
de nós e que continuamos a contá-las e a contar-nos, sem data de conclusão à
vista.
Para não concluir, convido então, Fayga Ostrower, Benjamim, Linhares,
Adélia Prado, Agamben, Freire, Bauman, Sai Baba, Larrosa, Adorno, Lourau... –
parceiros de buscas – para ajudar-me a dar aberturas a conceitos fundamentais
que se fazem força motriz da metodologia desta pesquisa e do meu próprio
caminhar.
Penso na motivação do criar – intensa força que se origina da busca do
ser humano por significados e sentidos que se fazem nos processos de
240
ordenaçâo dos fenômenos diversos, experiências que possam ir dando um chão
às existências – coletivas e individuais – como interfaces indissociáveis.
Tensionamos a cada ordenação. Em toda a vida, existem estados de
tensão fundamentais para o criar. A tensão – sempre renovada – possibilita que
os des-semelhantes e que os contrastes se destaquem, ao mesmo instante em
que reforçam o caráter de si e do outro. Tensionar engloba ordens estruturais e
expressivas – portanto, afetuais – e afetados pelos fenômenos que se
configuram, objetividades e subjetividades são ressignificadas em formas
plurais, tornando-se incessantemente, outras configurações.
Essas práticas significantes são ordenações que não se restringem a
formas verbais e imprimem no sujeito, ou expressam pelo sujeito, lógicas que
nem sempre conseguem ser racionalizadas. A criação se dá essencialmente ao
nível do sensível e este nos interliga de forma imediata e visceral àquilo que
acontece em torno de nós.
Penso a sensibilidade como patrimônio de todos os seres vivos – não
como uma particularidade restrita aos artistas – um bem que a faz presente em
cada vivente, em intensidades e maneiras plurais e em diferentes níveis.
Por isso, Sr. Peixoto, morador da Fundação Leão XIII, junta folhas –
diariamente – nos quintais e porões do seu íntimo, como maneira de resistir às
metodologias que se esforçam por destituir dos espaços, a experiência,
fortalecedora dos afetos e dos discernimentos.
Por isso, estudantes parecem fazer nada nas salas de aula, e nesse nada,
trabalham intensidades, resguardando-se de estereótipos massificadores –
enquanto que – com cabeças baixas ou corpos hiper-ativos, nos convidam a
refletir o real sentido das metodologias propostas.
Na experimentação da linguagem, o homem se arrisca – expondo-se ao
inefável e inconexo nonsense – que materializado como linguagem, torna-se
experiência dizível; ou como situava Kant, experiência transcendental, visto que
as materialidades se deixam pensar. Nesse arriscar, o homem prenuncia um
ethos e uma comunidade como possibilidades facilitadoras do viver.
241
Para um ser que fosse sempre falante, não existiria nem conhecimento,
nem memória, nem infância, nem história. Portanto, trazemos aqui a
perspectiva da infância como a origem da linguagem e a perspectiva da
linguagem como a origem da infância, que se descolam, aqui, das amarras das
heranças oriundas de Chronos.
No entanto, ainda que libertos de cronologias, nos fazemos imbricados
ao tempo e ao espaço, que se constituem em nós referências fundamentais para
que nossas ordenações se façam formas simbólicas.
São eles – consciência temporal, espacial e o simbolizar – a nos configurar
em ritmos, densidades, intensidades, que se animam em alegria, entusiasmo,
contemplação, susto, apatia, severidade, hostilidade, amor.
Ao nascermos, nos fazemos imediatamente trabalhadores dessa
orquestra que nos constitui. O ofício – trabalhar – se faz ressonância do tempo e
do espaço, espelhos que nos re-facetam, presentificando em nós a possibilidade
da competência de revisitarmo-nos, reorganizarmo-nos, reavaliarmo-nos e
reconhecermo-nos como comunidades éticas, proprietárias de direitos comuns
às idades da vida – todas – no sentido de ressignificarmo-nos repletos de
sentidos para o viver.
Valorizar a formação do sujeito é valorizar a importância das escolhas,
tão definidoras de caminhos deste vai e vem que somos. Mas como valorizar a
formação, se desvalorizamos a docência como profissão que precisa recuperar
seu status perdido, não como profissão especial, mas como profissão que
precisa redimensionar a responsabilidade de formar trabalhadores inspirados e
como bem ensina Manoel de Barros, inspiração: disposição para o trabalho.
Ao utilizarmo-nos da educação – e todo trabalho – como meio de vida,
nos distanciamos de nossos propósitos fundamentais, naquilo que concerne
nosso comprometimento com as necessidades existenciais – tão distintas
daquelas – artificiais.
242
A educação precisa ser entendida como complexa experiência de vida,
distinguindo-se daquelas instituições-fábrica, que produzem séries de títulos e
certificados esvaziados de sentidos e experiências.
Faz-se então, emergente, repensarmos a relação temporal no desapego
do modelo cartesiano linear que nos aprisiona como materialidades históricas
seqüenciais, separadas por um depois de si e um antes de si, configuradores de
uma história única, verdadeira por deter a história, como derradeira e eterna
possibilidade de contarmo-nos como linearidade incabível da existência.
Qual nome materializa um tempo possível de recuperar o que já não foi,
como sendo nosso e, o que será, como sendo um patrimônio de todos, no sentido
de não nos privarmos da nossa biografia e por conseqüência, da possibilidade
de experienciar?
As histórias nos animam – como psiquê. A força vital que potencializa o
sopro da vida como ato criador, nos move e ecoa em nós – como Aion – tempo
misterioso que dura porque ressignifica experiências na produção de sentidos
para a vida.
Penso então no tempo práxis que, na labuta, nos religa às necessidades
existenciais – que nos integra, nos une – na exigência de uma mudança
qualitativa do tempo que, sabedor de escolhas e éticas, grávido que é de
conseqüências, nos convida, urgentemente, ao sentido vital originado das
densas e delicadas experiências, para que estas nos instituam gestos de
autonomia.
O que me difere do Sr. Nivaldo não é o fato de eu ser princesa e ele sapo,
visto que, em nossas narrativas o Sr. Nivaldo é príncipe e eu, sapo me faço. Mas
o que me difere deste e de outros senhores, senhoras, crianças e jovens, é a
oportunidade que tive e tenho de estudar-me para conhecer-me, como bem ele
diz quando reafirma a importância deste ato.
Estudo mediado por encontros, como é natural que o seja, difere do
estudo feito por esses senhores, pela oportunidade que tenho de lançar os meus
243
sentidos a instrumentos facilitadores da rede de aprendizados que nos fazem
urdidura.
A fluidez deste estudo de vida, tarefa que não é fácil, se renova em mim
por contar com cuidados que intensamente me fortalecem. Revigoro-me
constantemente em encontros com professores e colegas de profissão com quem
troco em agudez e delicadeza; com meus amigos amorosos e sábios; com os
diversos espaços culturais que freqüento como alimento; com a assistência
médica que me ampara com competência – graças a recursos particulares;
revigoro-me com a família – amiga e mestra.
Todas essas experiências são diferenciais, pela certeza que tenho de
reconhecer-me amparada nas minhas necessidades básicas e não me encontrar
confinada em espaços que dizem acolher o ser humano, enquanto na realidade
promovem clausuras que negam e desconhecem singularidades, afetos e
saberes – daqueles ditos marginais – como experiências significativas para a
vida de todos os viventes.
O mistério me leva a espelhos que desdobram o porvir. Penso na mágica
palavra que para mim se faz em oportunidades e, para outros, em faltas
contundentes. Entre aprendizados com o Sr. Nivaldo, marcas se ressignificam
ao mesmo instante em que me alertam para a urgência de pessoas atentas a
tantas urgências caladas.
Lembro-me, das senhoras, moradoras da Cruzada São Sebastião, quando
tantas vezes me contaram a importância de terem suas moradias garantidas no
mesmo bairro, quase na mesma rua, onde moravam em casas de caixas de maçã
e de jornal, queimadas como resultado das tentativas de dizimar a organização
popular que se fazia em pleno bairro do Leblon/ RJ, na década de 50.
Obra polêmica, garantida por decisões e interferências de um grande
líder – D. Hélder Câmara – pôde abrigar 910 famílias na sustentação de seus
vínculos empregatícios, fazendo do porvir, possibilidades.
244
Volto-me aos senhores e senhoras que encontro na Leão XIII, que com
seus barracos desabados e distituidos de trabalhos remunerados, foram
obrigados a peregrinar descalços, descobertos.
Estes senhores e senhoras, espelhos parentes em histórias, tanto se
diferem no agora, das estruturas do antes. As senhoras matronas, provedoras
de grandes famílias, coexistem em meio a complexidades qual pilares
sustentadores de vida. Aqueles senhores e senhoras, esquecidos no profundo de
si, aguardam a visita certa: o tempo que não traz o porvir. O agora, refeito e
diverso, ao mesmo instante se assemelha, nas tantas sabedorias de todas essas
imagens refletidas.
São eles que me convocam, séria e urgentemente, para a importância de
lideranças e micropolíticas transparentes, que possam aqui e acolá, dinamizar
ações que se conjuguem em devires, não somente para uns ou outros herdeiros.
Visto que – tudo que se configura e se organiza, constitui conteúdos
grávidos de significados – para formar sujeitos éticos, a escola precisa investir
na garantia de espaços institucionais que acolham demandas dos educandos e
dos docentes como conteúdos que, na socialização, possam se tornar potentes
promotores de espaços e de relações onde o experiênciar se dê na expansão de
óticas e esperanças que incluam todos como legítimo outro, em todas as fases da
vida.
Impossível nossas histórias – que nos contam e recontam em re-escrituras
– se fazerem libertas de valores, visto que são eles que nos movem como
perguntas e indagações existenciais que somos. Valores dinâmicos que nos
libertam, porque diferem dos preços esvaziados de sentidos e de valores.
E, para não esquecer-me entre afirmativas – que, embora se proponham
abertas e dinâmicas, correm risco de afirmar certezas estáticas – trago aqui
problematizações que tornaram-se formas enquanto tentava este escrito
conclusivo. O texto é o meu parto; a existência, minha gestação. Nasço a cada
instante que me refaço.
245
E como a linguagem a priori não existia – fez-se presente porque
inventada – percebo a sociedade também como uma invenção, e como tal, pode
ser transformada, modificada.
Sou levada então, a indagar...
Como a arte pode instigar reflexões que nos libertem de meras
contestações e descrenças que, mecanizadas, perdem a força dinamizadora de
transformações?
Como a poesia pode favorecer experiências afirmativas de valores, em
movimentos libertos de catequeses e discursos?
Que caminhos a metodologia escolar pode construir para garantir
espaços que possibilitem o estudante e o docente se perceberem como
responsáveis pelas decisões que afetam sua formação – passada, presente e
futura – fazendo-se compromissados com a reflexão de políticas públicas
educacionais e sociais?
Como as escolas materializam suas ambiências em acolhimento às
demandas dos estudantes, para que estes se fortaleçam na garantia de que os
abrigos públicos e as ruas não sejam suas moradas?
Se incapazes de discernir escolhas, como os formandos podem
compreender a sua significação no empenho de assegur de qualidade de vida a
todos, independente de que castas, cor ou credos façam parte ou se
identifiquem?
Como a escola se posiciona quanto à pertinência de enfocar a ação
crítico-reflexiva, no favorecimento da consciência política de seus estudantes e
docentes?
Como a escola pode nos ajudar a discernir o momento em que
experiências vivenciadas por nossos espelhos pedem cuidados, no sentido de
reconhecer o outro, que está ao nosso lado – como pesquisador e autor de
narrativas e saberes – para que o desejo de afirmação e reconhecimento não nos
246
leve a inventar ou omitir nomes como referências negadoras da existência deste
outro: alimento e fonte viva do nosso pesquisar?
Não adianta combatermos retoricamente o pensamento único, se não ousarmos
entranhar-nos com nossas diferenças e pluralidades que deverão, sempre, estranhar-se contra
as variadas formas de desigualdades.23
Fortalecida por Linhares, pergunto-me como podemos buscar
mecanismos aptos a compartilharmos formas instituintes de políticas e
pedagogias mais abertas, atentas para que não se fechem ou se isolem em
verdades estáticas?
Daí, a importância de diálogos com as fendas existentes no pensar e agir
hegemônicos. Brechas que representam espaços resistentes e grávidos, potentes
em possibilidades e experiências.
Mas o que são Experiências? São fatos vividos? São momentos que
favorecem aprendizados? São emoções, afetos, escolhas, imprevisibilidades que
vivenciamos, cada qual em seu modo possível?
Segundo Larrosa24, experiência não é apenas o que nos passa, o que nos
acontece. Ele nos chama a atenção para a escassez de lugares onde esta palavra
se exercite. Na atualidade, época tão marcada por avalanches de informações e
tempos apressados, as aprendizagens esvaziam-se em apropriações superficiais
provocadas por vivências instantâneas, transformam-nos em colecionadores de
informações e de acontecimentos.
Em contraposição, o silêncio e o tempo aguardam serem escutados,
olhados, tocados, vivenciados de maneira a se constituírem em memórias, em
acervos, em experiências. Daí a importância das pausas, que nos possibilitam
sermos marcados. São também elas que nos permitem a interiorização levando23 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. In: Movimento: revista
da faculdade de educação da universidade federal fluminense. Profissão docente: teoria e prática. Niterói:
DP&A Editora, no 2, setembro, 2000. Publicação semestral, p. 50.
24 BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Espanha: Universidade de
Barcelona. Tradução de João Wanderley Geraldi. Universidade Estadual de Campinas – Departamento de
Lingüística.
247
nos a experienciar. As pausas permitem as vivências acontecerem entre nós –
sujeitos sociais coletivos – e conosco – sujeitos sociais – cada qual com seus
processos de individuação e subjetividades.
São estes silêncios que fazem com que as experiências não apenas passem
por nós. Do movimento de integração com aquilo que nos acontece, faz-se
possível a construção e a transformação como resultados de mediações de
vozes, ações, sentimentos, emoções, éticas, estéticas.
Adorno chama a atenção para os estereótipos, os modelos impostos ou
interpostos entre os sujeitos e aquilo a ser experienciado. Ideologias que
despotencializam a necessidade e a importância da experiência.
O silêncio requer um outro posicionamento ideológico da sociedade para
a questão do tempo. Des-aligeirado e livre de imposições rítmicas, o tempo pode
então tecer experiências.
O tempo livre, enfatizado por Adorno, estabelece – a meu ver – encontros
com o silêncio e com o tempo não apressado – este, enfatizado por Larrosa.
Será esse tempo um tempo livre, porque liberto de estereótipos, de
modelos e de pressas que impossibilitam o sujeito de experienciar o mundo e
suas relações? Nessa perspectiva, como e, para quê, assegurar o tempo livre, o
tempo e o silêncio, na formação do sujeito?
Comungo com Larrosa, quando nos fala da forma humana e singular de
estarmos no mundo, lembrando-nos de nosso modo de nos conduzirmos na
construção e afirmação de éticas, modeladas em estilos que implicam estéticas e
escolhas. Assim, cada qual experiencia o mundo de maneira peculiar e singular,
ainda que os contextos, fatos e épocas coincidam.
Neste sentido, entendo educação como Experiências Instituintes que
exigem posicionamentos em consonância com atitudes e gestos de humildade,
na consciência da incompletude dos sujeitos; na consciência de que não são
possíveis verdades únicas e hegemônicas ou modelos replicáveis nesta
sociedade plural.
248
Penso então no instituinte, na instituição, na institucionalização e no
instituído, como palavras que me instigam a intuir e a pesquisar-me, na busca
de significados e sentidos que possam alargar e aprofundar a prática da
reflexão, constituidora do viver.
Percebo instituição, como formas organizacionais a se configurarem em
instâncias potentes de sentidos – instâncias políticas, sociais, éticas, estéticas,
físicas, jurídicas – que se constituem historicamente. Instituição como
organização que não se aprisiona como coisa rígida, observável em forma
descritiva, mas como uma dinâmica – não como sinônimo de idéia – mas como
movimento que se faz historicamente no tempo.
O instituído investe, muitas das vezes, – com competência de silêncio e
de grito – na permanência, na imobilidade sustentadas pela linearidade – esta,
sustentadora de verdades hegemônicas, pensamentos únicos e modelos rígidos.
O instituinte busca tensionar – amorosa e reflexivamente – o ponto de
vista único, a hegemonia, a linearidade, os acontecimentos aparentemente
banais, o nada, atento às sombras e brechas presentes no instituído e no próprio
instituinte, visto que a contradição não é um patrimônio particular do
instituído.
Um e outro se encontram hibridizados, inseparáveis de forma absoluta.
Mas a atitude de acolher, respeitar e lidar com as sempre presentes
contradições, faz com que o instituinte se diferencie, ao perceber – na
contradição – a possibilidade que delas surjam caminhos e reflexões como
exercícios e frutos de práticas e análises experienciadas também coletivamente.
Os objetivos gerais e específicos das instituições, constituem boas
intenções que ao se tornarem materialidades – no constante e dinâmico porvir –
precisam se fazer como eternas perguntas, aptas a nos tornar atentos às
maneiras como essas materialidades se fazem, e que materialidades são estas.
A autogestão – força motriz do instituinte – torna-se materialidade como
processo buscante, criador de dispositivos, de instigações e de convites
249
favorecedores de experiências e de análises éticas-sociais-políticas, como ações
estéticas que possibilitam conceitos serem interrogados; palavras, gestos e
limites – mecanizados – serem acolhidos, tensionados, não como uma
transparência terrorista, mas como exercícios de autonomia para reorganização
das relações sociais.
No reconhecimento da importância de movimentos autogestionários, o
instituinte não cabe em manuais, visto que o dinamismo, o diálogo e a
implicação se estabelecem em articulação com cada movimento organizacional
percebido ou, mesmo com aqueles movimentos invisíveis, que se fazem
presentes, com freqüência, sem que deles nos demos conta.
O instituinte é um movimento aberto, não por isentar-se de sentidos e
parâmetros, mas por ressignificá-los no investimento de podermos trabalhar
responsabilidades – através dos papéis que somos e que exercemos – na
inclusão de vozes plurais aos processos gestionários e, não apenas incluir estas
vozes, mas instigá-las para que se façam presentes, visto que aprendemos
culturalmente lições que nos levam a sermos, constantemente geridos por
outrem.
Entendo o movimento ou força de autodissolução – sempre presente no
instituído e no instituinte – como germe do criar, capaz de dinamizar as
reorganizações. Força presente como latência ou potência, no poder
hegemônico, no pensamento único, no instituído e, presente também, como
força ativa, no instituinte.
A institucionalização é o desejo eterno do instituinte fazer-se – no
exercício e na valorização daquelas micropolíticas que vitalizam espaços e ações
instituintes – como ações políticas passíveis de serem apropriadas por sistemas
complexos formais e informais.
Neste sentido, o projeto Janelas Cruzadas é uma experiência instituinte
que iniciou suas ações em uma escola e em uma comunidade, quando –
chamando-se ainda Janelas de Cada Um – lidava com as peculiaridades do
250
porvir, através das brechas que se faziam possíveis nos diálogos efetuados entre
a escola, a comunidade e o Janelas Cruzadas.
Ao ampliar suas ações para outras 12 escolas da rede municipal da
cidade do Rio de Janeiro e constituir parceria com a Secretaria Municipal de
Educação/RJ e com a 2ª Coordenadoria Regional de Educação/ RJ, o Janelas
Cruzadas manteve diálogo fino com as escolas e com a comunidade parceira,
alargando sua gestão com a presença e com a participação do sistema público
de ensino.
A partir desse momento, o Janelas Cruzadas deu um salto em direção a
institucionalização dessa experiência complexa, visto que agora, as
peculiaridades do porvir não eram mais equacionadas com jeitinhos: soluções
improvisadas por cada localidade e contexto, mas pensadas numa análise mais
sistêmica, de rede, na busca de caminhos para que as experiências, escolhas
metodológicas e ideológicas e até mesmo os improvisos, pudessem ser
incorporadas às escolas, à SME e à CRE, como integradas à política pública.
Para que a institucionalização do Janelas Cruzadas se materialize, será
necessário tempo para que as escolas, a SME e a CRE se apropriem do projeto,
avançando no sentido de não apenas ser uma experiência que dialoga com as
necessidades e demandas dos parceiros, mas para que – mais larga e
entranhada – se exercite como uma experiência de autoria coletiva, gestionada
por todos os participantes.
Entendermos o gesto autoral naquilo que antes era visto pela equipe
como responsabilidade do outro significa tempo para nos refazermos nesta
ótica que vai reorganizando materialidades já instituídas e, na medida em que
cada um vai se pronunciando, as experiências vão se re-corporificando –
democraticamente – em outras formas e dinâmicas.
Então – como observa Adélia Prado num bate papo, quando, em maio de
2006, apresentava seu até então derradeiro livro – a maravilha da arte é essa. Ela é a
coisa mais democrática... igual a flor no pé e banana na feira.
A arte não é assunto. Não é enredo. É a forma.
251
Ela vai além daquilo que todo dia nós usamos o tempo todo, para nos comunicar. Ela
rompe com o estereótipo. Não fica insinuando protótipo. Então é por isso também que fica muito
difícil ter uma obra artística, quando o objetivo dela é com o conteúdo e, não com a forma.
Nós somos tributários da beleza, nós não somos criadores dela. Para mim, a poesia – o
fenômeno da beleza e da poesia – ele existe como existe o Pão de Açúcar, o mar... Eu passo
anos sem ver e, quando vejo, é aquele estrondo assim... O que é aquilo!?
Então a poesia é um fenômeno cósmico. Mistérios da criação.
Eu sei que Deus mora em mim como a sua melhor casa. Sou teus olhos, sou teus
ouvidos. Mas essa letra é minha... só a letra. A gente reverencia a arte, porque ela nos remete a
uma coisa maior que ela, ainda. Ela é referência de algo maior. Tem gente que pára aí. Mas se a
gente der mais um passo, a gente chega mais além ainda e, chega na mística.
Se durar mais um minuto, eu morro. A beleza é fatal. Fatal. Então, Picasso estava certo:
“Eu não procuro, eu acho.”
Que bom que é assim e que é democrático.
Quando você sente uma estranheza diante de alguma coisa, pode ser até um copo
d’água, uma árvore que você passa todo dia a caminho do trabalho – quando aquilo bole com
você, você sente uma estranheza diante daquilo – você por favor agradeça aos céus.
Você está tendo uma experiência de natureza poética e religiosa. Você sente, sentido na
vida com a significação.
A arte é isso. Você não compreende, mas sente nos afetos mais profundos, onde você
sente a fome mais radical da sua vida – que é uma fome de transcendência.
Então esta experiência te remete a algo maior. Você vai atrás disso.
Imagina se nós vivemos sem isso? De jeito nenhum, de jeito nenhum.
O que nos faz feliz?
Ela – a poesia – nos faz feliz por causa disso.
Você pode visitar uma palafita, a favela mais pobre que tiver. Você entra numa casa
dessas e encontra um paninho com um bordado. Uma garrafa de coca cola vazia, com uma flor
de plástico. É um esforço de humanidade daquelas pessoas de dizer: eu sou mais do que isso.
Eu sou humana.
252
É uma busca de significação e sentido para a vida. É o forrinho, é a rosinha dentro da
garrafa. É o quadro da miss Brasil na parede.
Porque nós temos fome do simbólico.
A gente se desespera, se nós não encontrarmos sentido.44
Como bem sugere Adélia, são o amor, a poética e o criar – creio – os
sábios que constituem o método mais eficaz e perfeito, para que a educação nos
convide a cabermos inteiros nas escolas, nas ruas, nos becos, nas praças, nos
quintais – espaços ilimitados que nos re-configuram, nos entrelaçam.
Tocados pela poesia – fenômeno que tem nas circunstâncias, a matéria
impulsionadora do criar – nós, como soma de sensações, de sonhos, de belezas,
somos comovidos pelo acaso e, logo, algo disparado em nós, resulta numa
soltura interna – estado poético libertador – possibilitando outras conecções,
novas estruturações.
Pensando na beleza como dimensão poética e amorosa da vida – que
difere do culto – o que fazemos quando desejamos a escola e a vida belas, o que
entendemos como uma escola encharcada de vida?
O que fazemos por ela?
Para quem caberá e quem caberá nas belezas por nós contempladas e por
nós configuradas?
44
PRADO, Adélia. Entrevista realizada na livraria Letras e Expressões. Rio de Janeiro, maio de 2006.
253
Concluir. É preciso?
capítulo 13.
254
255
O sr. Luis me revela quão quentinha me faço, pelo calor emanado de
todos os interlocutores e co-autores desta pesquisa. Encorajada por sua carta e
esperançosa de vida, penso nas tantas cartas escritas àqueles mestres caros, que
marcam os caminhos de tantos estudantes e de tantas escolas.
Cartas que muitas das vezes escrevemos e guardamos, no aguardo de
um dia enviar. E aqui, é o Sr. Luis quem me dá a importante notícia de não
precisarmos de selos ou correios para que esse envio se faça, visto ser a
simplicidade e a ousadia, o meio mais fácil de entregarmo-nos em
correspondências.
256
Exercito mais este ofício – o da ousada simplicidade – e abro aquela
gaveta que acolhe envelope perfumado de experiências trocadas entre
professores e estudantes, que somos.
Cartas escritas em muitos dos dias nos quais vou bordando questões.
Palavras que dançam, enquanto indagam impressões:
De que maneira, o quente e o frio dos encontros e desencontros, se faz
presente em nossas práticas e metodologias?
Como alimentamos a nós próprios, aos nossos colegas de trabalho, aos
nossos estudantes e familiares e quais alimentos serão estes?
Quais fomes – nossas, de nossos colegas e de nossos estudantes – são
alimentadas por nós e pelas escolas?
De quais pobrezas e riquezas fazemos parte, como educadores, como
companheiros e como amigos?
Como estão aqueles nossos estudantes que têm a escola como único
lugar a recorrer?
Quais ações deste complexo sistema escolar se fazem convites, para que
estudantes e professores se alimentem em gestos de autonomia?
Encorajada pelo Sr. Luiz, correspondo-me através de narrativas de
sujeitos plurais, procurando deixar que a complexidade dos sistemas ao qual
fazem parte, se apresente através do pronunciamento destes atores sociais que
compõem instituições e organizações e, ao mesmo tempo, possibilitam aos
interlocutores e leitores, uma compreensão mais relacional e mais
interdependente do processo de aprendizagem.
Relações que possam preservar, fomentar e potencializar a força vital e
criadora daqueles que resistem à atrofia e à inoperância proposta pelas políticas
esvaziadas de sentidos coletivos.
Penso, nas correspondências entre as escolas formais e as informais,
como os abrigos e as ruas, espaços formativos que podem e que devem
257
promover relações de ensino/ aprendizagem multi-referenciais. Exercícios
complexos de redes de relações interpessoais, interinstitucionais vivenciados e
expressos através de múltiplas linguagens e de lógicas plurais.
Como educadora e pessoa sensível, tento ser mais um elo entre tantos e
tantos organismos vivos e sociais, sempre múltiplos, reverberando essas
reflexões coletivas, que vão refletindo e instigando tantas outras questões.
Movimentos e histórias que convidam o leitor a fazer seus próprios
entrelaces, visto que estas experiências são em si mesmas infinitas. A cada
instante que voltemos nossos sentidos a elas, temos mil possibilidades de rearrumá-las, de re-entendê-las, de re-criá-las, partindo de ênfases outras,
diferentes daquelas aqui grifadas.
Enfatizo, no momento, uma correspondência de portas com as quais
metaforizamos o poder, que fecha e que abre espaços e movimentos de
maneiras muito semelhantes, seja na escola, na rua, em abrigos ou em uma
comunidade popular, por exemplo. Experiências que aqui narradas,
demonstram e exemplificam políticas desejosas de outros tempos e de outros
modos.
Inspirada na história do senhor Wanderley, penso nas histórias dos
mutantes e dos mudantes45 da escola. Como e por que os meninos não se fixam
nesta instituição? É este senhor quem nos diz, entre poesias e aprendizados, que
o esfarelamento social de ontem e da contemporaneidade têm conseqüências
incríveis.
O que faz com que este senhor que tirava notas ótimas quando estava na
escola e hoje expande quadrinhas em poesias de metáforas refinadas, não
consiga constituir uma vida de relações duradouras?
As relações construídas pelo Sr. Wanderley reproduzem o que a infância
deu para ele: vínculos que vêm e vão.
45
Citado por Célia Linhares, referindo-se à Tese do trabalho de Jader Janer, professor da UFF.
258
E nós – educadores, pais, órgãos gestores – que fios escolhemos para
tecer histórias com os meninos e as meninas que entram e que saem da escola?
Como trançamos relações e que vínculos se fazem tecidos entre a escola, os
professores, os estudantes, seus familiares e os colegas de profissão?
Os acontecimentos da vida do sr. Wanderley, não são uma propriedade
particular dele, haja visto a existência de milhões de Wanderleys, que estudam,
que aprendem e que se fazem além de mutantes, o que sempre somos,
mudantes, desenraizados, incapazes de suportar a sordidez (Bauman, 1999) das
consdições que lhes são reservadas como “lixos sociais”. Entrando e saindo de
empregos num carrinho de amendoim que o leva a uma câmara frigorífica entre
camarões, passando por um circo e trabalhando em casa de granfino ou
dirigindo caminhões, este senhor nos apresenta movimentos e aprendizados
que afirmam a potente plasticidade inerente ao ser humano.
Como a gente aprende a ter as instituições e as conquistas como algo
volúvel?
E neste sentido, diante dos tantos trabalhos propostos pela escola e
executados por estudantes, pergunto: como aprendemos a não durar nos
trabalhos?
Como a escola convida e instiga o corpo docente, o estudante e as
famílias, para que o ato de estudar e de pesquisar se faça em gestos de
autonomia e de descobertas instigantes, afirmadoras de vínculos e de
continuidades?
Mas é o próprio Wanderley quem nos mostra que as experiências – por
mais que nasçam em processo de aborto – não são estritamente negativas, visto
que a capacidade de aprender é algo extraordinário diante da nossa
plasticidade capaz de transformar e rissignificar, afirmando e confirmando a
potência da vida, mesmo em condições as mais adversas.
Aprendo com este senhor o sentido do verso de do reverso, que se faz
presente invertendo lógicas.
259
Fortaleço-me também, junto ao senhor Rufino que resiste à crença
daquela escola que se faz à margem das pessoas.
Morador da rua há 40 anos, é ele – o Rufino – quem me confirma a
capacidade de aprendizagem sustentada por vínculos afetuais e, enfatiza a
importância do afeto e da incompletude, tão necessários para a constituição de
laços.
.
.
.
Como a escola nos prepara para as imprevisibilidades da vida, na
constituição de vínculos que se façam acolhedores de nós – sejam estes frouxos
ou cegos – que revisitados, podem se transformar em laços potentes, por nos
ajudar a ressignificar relações e experiências, através de ações e de sentimentos
reestruturadores de caminhos e de metodologias?
.
.
.
Penso nos moradores de ruas e nos estudantes de escolas que têm
cadernos, que aprendem, que falam outros idiomas ampliando a referência da
língua materna, mas que não sabem se inserir na vida.
E mais uma vez me fortaleço junto ao artista Rufino, que vivendo há
tanto tempo na rua, experiencía a dignidade de ser artista considerado e
respeitado por moradores e instituições vizinhas: é a casa ao lado que embrulha
suas obras, envolvendo-as em papel grosso para que não amarrote a gravura; é
o locutor de rádio que o visita, presenteando o colega artista com os registros do
programa preferido – Tabuleiro do Brasil; é o vizinho que guarda alguns de
seus importantes objetos. Considerado por muitos, sr. Rufino constrói um esteio
que o sustenta entre uma densa rede de aprendizados e solidariedades.
Em contradição, penso no menosprezo com o qual muitos olhavam o Sr.
Luis, morador da Leão XIII, que sentado num entulho de pedras como se fora
um monumento, fazia-se rei em seu trono. Com visão ampliada por mirante,
este senhor conseguiu sobreviver a tantas negações e levantar a voz como
reclamação do angu do arroz, que estava um grude, sem proteína.
260
No fundo, é isso que penso afirmarem esses senhores: a capacidade de
vida, mesmo quando as condições são subalternizadoras. A potência da vida se
afirma em condições adversas, mais uma vez como o verso e o reverso.
Quem é o senhor Luiz, que ao comentar o cotidiano da Leão XIII nos
afirma estarmos cada qual por si só? Sem solidariedades. Sem ajudarmos uns
aos outros? O que faz com que este senhor perceba isso como uma realidade?
Quem é o sr. Rufino, que nos afirma existirem brechas afirmadoras e
favorecedoras de exercícios e de redes de solidariedades?
Como pesquisamos nossas próprias questões? Como pensamos as
dificuldades? O que fazemos com elas?
E as professoras; os estudantes; os familiares, como se organizam para
refletir suas questões, visto que são parceiros de uma instituição voltada para a
formação dos cidadãos?
E o sistema escolar – espaço potencialmente politizante – como favorece
a formação desses seus sujeitos, no sentido da autonomia reflexiva e da
responsabilidade coletiva?
Penso na escola – com seus Centros de Estudos, suas reuniões com os
familiares dos estudantes, seus espaços potencialmente brincantes – que envolta
por complexidades, assegura em seus espaços condições mais possíveis que os
telhados de viadutos; as esquinas incertas de criolinas e de balas constantes/
cortantes; os visitantes relâmpagos que arrancam colchões, ateando fogo num
corpo que acorda entre sustos ardidos... O que acontece com a potência da vida
nestas instituições pedagógicas e políticas?
Destaco três questões apontadas pelos interlocutores, no sentido de
refletirmos o uso do poder público.
→ O que as escolas, o sistema educacional e a mídia têm feito para que as
histórias, ao serem contadas, carreguem nas suas plasticidades narradas, mais
do que indícios de nossas experiências plurais?
261
→ O que nos ensinam essas narrativas aqui apresentadas, no sentido de
que as redes de solidariedades se façam em aprendizados dialógicos com as
demandas do próprio viver, ao invés de aprisionar estes mesmos aprendizados
em moralismos artificiais?
→ Como assegurar políticas duradouras, visto que as instituições nunca
conseguem passar um cimento na totalidade dos espaços e dos sujeitos? Como
olhamos esta criatividade que, por ser política instituinte, busca caminhos e
brechas confirmadores da potência de vida?
Ao mesmo tempo faz-se importante sublinhar que os esfarelamentos da
sociedade estão presentes nas instituições.
Como catar nossos cacos espalhados por tantos espelhos estilhaçados?
Lembro-me das senhoras moradoras da Cruzada São Sebastião e ressalto
a importância das práticas sociais que vão nos formando para o amanhã: a
capacidade de resistir – dessas senhoras – potencializada pelas interferências
políticas garantidoras dos direitos humanos, ensina que podemos mudar nossas
práticas e vivenciar os aprendizados que os limites nos possibilitam.
E são estes limites que acionam uma cadeia de positividades, quando
mediados por reflexões coletivas e transformadoras. Experiências que nos
modelam, como barro que somos.
Como fazer desses nós, laçadas que nos conduzam a laços e vínculos?
Todos estes senhores e senhoras, de uma maneira ou de outra, resistem a
esta banalização da vida.
E os professores, os estudantes, os sistemas educacionais – sociais políticos, como têm resistido às banalizações?
Inspirada por Risonete Martiniano, professora que também me promove
tantos aprendizados, pergunto:
262
Quais sutilezas se fazem sábias por nos levar a dar um passo adiante da
disponibilidade ao diálogo, no sentido de que aprendamos a urdir relações, nas
quais, saibamos estar justamente, em estado de diálogo?
263
fontes inspiradoras
capítulo 14.
264
Fontes Inspiradoras
Referências Bibliográficas
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O que a escola da vida dá conta que a escola institucional não dá