1 Isabel Noemi Campos Reis Pontes a ser-viço das margens Dissertação apresentada ao Programa de Pós Mestrado Graduação da Fluminense, para Campo Educação/ Universidade como obtenção de em de requisito grau Confluência: de Federal parcial mestre. Movimentos Instituintes e Políticas Públicas em Educação. Orientadora: Professora Doutora Célia Frazão Soares Linhares Niterói Rio de Janeiro 2006 2 Isabel Noemi Campos Reis Pontes a ser-viço das margens Dissertação apresentada ao Programa de Pós Mestrado Graduação da Fluminense, para Campo Educação/ Universidade como obtenção de em de requisito grau de Confluência: Federal parcial mestre. Movimentos Instituintes e Políticas Públicas em Educação. BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Célia Frazão Soares Linhares – UFF / orientadora Professora Doutora Valdelúcia Costa – UFF Professor Doutor Sílvio Gallo – Unicamp e Unesp Professora Doutora Nanci Nóbrega – UFF 3 Dedicatória 4 Agradecimentos: 5 Resumo Na problematização das narrativas de sujeitos excluídos – que não puderam permanecer ou entrar na Escola formal – e que hoje são idosos, moradores das ruas ou moradores de casas de recolhimento, esta pesquisa intitulada Pontes a ser-viço das margens, busca destacar ligações conectoras de diálogos entre Escolas formais e a escola da vida, através do entrelaçamento de narrativas de sujeitos excluídos e de sujeitos de algumas instituições educacionais formais. Mas como buscar mecanismos de compartilharmos formas instituintes de políticas e pedagogias mais abertas, atentas para que escolas da rede pública não se isolem em verdades estáticas, desconectadas das complexidades da vida? Pensando na importância de refletirmos a escola imbricada com questões complexas do próprio viver, pergunto: Como a Escola foi se constituindo, muitas das vezes, separada da vida? O que faz com que em algumas Escolas, prevaleçam recorrências ao pensamento único e hegemônico? Como fazer dos silêncios dos oprimidos, vozes que nos apontem caminhos para a prevalência de Experiências Instituintes nas escolas formais, em direções de incluir a todos e a todas como sujeitos do pensar, do fazer, do expressar e do ressignificar conceitos, estéticas e óticas como movimentos éticos de criação e de superação, tanto no âmbito da individualidade quanto da coletividade? Essas são algumas questões tencionadas nesta pesquisa, através de reflexões e narrações polifônicas entre sujeitos – e instituições – que estão dentro e que estão fora da Escola. 6 Abstract 7 SUMÁRIO Parte I 10 cap. 1 Rumos iniciais - os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder político no fechamento e abertura das portas sociais. Introdução 29 cap. 2 Soltando as velas, mas para onde ir? Justificativas 55 cap. 3 Alguns portos e um horizonte que se alarga! Objetivos 59 cap. 4 Pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da Escola. Metodologia 79 cap. 5 Companheiros de travessias e de travessuras. Revisão de Literatura Parte II 82 cap. 6 Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo com os sujeitos da pesquisa. 87 cap. 7 Mão na massa, buscando raízes e alvoradas. 100 cap. 8 Buscando caminhos 8 113 cap. 9 Vida em retalhos 125 cap. 10 No tabuleiro do Brasil – entre versos e reversos 149 cap. 11 Outras formações 182 cap. 12 Laços que enlaçam Parte III 253 cap. 13 Concluir. É preciso? 263 cap. 14 Fontes inspiradoras Referências bibliográficas. 78 Parte IV Algo mais Anexos 9 Pontes a ser-viço das margens 10 Rumos iniciais capítulo 1. 11 Os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder no fechamento e na abertura das portas sociais: Introdução Penso nas diversas configurações que constituem a vida social no Brasil, onde há portas que se fecham e portas que se abrem. E nesse fechar e nesse abrir, são produzidas grandes desigualdades que estão nos acompanhando há cinco séculos, dando poucos sinais de serem amenizadas. A última estatística resultante do PNAd (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar), mostrou uma queda na desigualdade sócioeconômica de aproximadamente 18%. Lembro-me dos tantos pesquisadores que vão analisando essas desigualdades do ponto de vista quantitativo, na busca de algumas respostas resultantes da reflexão sobre algumas afirmações. Agradeço a esses estudos, dos quais também me alimento; mas como problematização desta pesquisa, considerando também análises qualitativas, parto de algumas perguntas que têm instigado meu fazer reflexivo, como educadora e como artista que sou. Através desta investigação, proponho um olhar complexo que possa abarcar algumas instituições que, apesar de serem aparentemente diferentes entre si, têm significativas confluências sociais e políticas. Distâncias e aproximações que não se limitam a fronteiras, a pontes físicas e geográficas. . . . Para perceber algumas das portas que se abrem e refletir sobre suas complexidades, escolho como metodologia trazer a narração de experiências capazes de aproximar a instituição pública de ensino a outras instituições que, por serem também responsáveis pela formação do humano, não podem abrir mão dos sonhos passados que alimentam os devires. Neste sentido, parece relevante destacar que um dos aspectos que caracteriza o humano é o fato de que, muito embora um indivíduo tenha 80 12 anos ou esteja até mesmo à beira da morte, é um aprendiz e nessa condição, fazse vida pulsante. Compreendendo-me como pesquisadora aprendente, indago: Como se abrem e se fecham portas na escola? Quais as portas que se abrem e as que se fecham na Fundação Leão XIII – instituição que abriga miseráveis marginalizados? Que portas foram e são abertas e fechadas, na Comunidade Cruzada São Sebastião – favela de asfalto situada em bairro representativo da elite carioca? Existem portas que abrem e que fecham oportunidades para aqueles que estão morando nas ruas? Como reconhecê-las na sua multiplicidade? . . . Ao trazer juntas, experiências da Fundação Leão XIII1; da comunidade da Cruzada São Sebastião, aqui representada por um grupo de senhoras da terceira idade; das 13 escolas da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro e de moradores de ruas dessa mesma cidade – organizações que poderiam não ter relação alguma entre si, busco refletir sobre estas realidades tão específicas, trazidas pelos discursos dos que as habitam –estudantes; educadores; abrigados; cursistas, ou os que falam “fora” das instituições aqui pesquisadas – tentando descobrir confluências e correspondências entre suas falas, suas opressões e, sobretudo, confirmar os inesperados e as ações instituintes, que de todos os lados tecem a vida social. Ou seja, procuro perspectivas comuns dessas inter-relações, na afirmação desses espaços como formadores e, portanto, exigentes de pedagogias e práticas metodológicas afirmadoras da vida. Entrando nesse mar revolto – porque populoso e complexo – busco confrontar algumas instituições sociais, não com o uso de réguas ou armas de Conservatório Brasileiro de Música Centro Universitário - CONDE, Cecília e CHAGAS, Marly. Buscando Caminhos através da arte, Projeto desenvolvido na Fundação Leão XIII - Governo do Estado do Rio de Janeiro. 2002 – 1ª fase; 2003/2004 – 2ª fase. 1 13 instrumentos demolidores, mas através de aproximações da escuta reflexiva e amorosa dos sujeitos que constituem essas organizações. Sabedora de que grandes problemas que estão dentro das escolas não constituem exclusividade delas, ocorreu-me ações que possam ajudar a tensionar essas organizações em suas práticas e realidades complexas, acreditando que ao distanciarmos o olhar através de estranhamentos causados por outros espaços – que também são nossos – será possível voltar aos nossos espaços com um olhar mais desacostumado e, portanto, mais atento, mais perspicaz, menos naturalizado e, portanto, mais sensível. Por essa razão, acredito serem necessárias ações múltiplas que focalizem e articulem a política educacional com as políticas sociais e econômicas: uma intersetorialidade que promova conecções, ligamentos em problematizações produzidas por uma sincronia de esferas que urge serem transformadas. As mídias expressam com euforia a queda do risco país e apresentam os demais indicadores econômicos como favoráveis ao crescimento econômico e social. Qual a lógica que une e que equilibra essas análises, se diante de tantos panoramas otimistas, a desigualdade se corporifica em formas cada vez mais complexas e ambíguas? Que mecanismo é esse capaz de criar equilíbrios assimétricos? O que há com as desigualdades no Brasil? Por que crescemos, enquanto economia, para todos os lados, e as desigualdades sociais crescem conosco? Precisamos de instrumentos que trabalhem, que operem sobre essas dimensões políticas, sociais, educacionais. Será premente fazer suscitar movimentos que viabilizem a equilibração do acesso a portas sociais. Portas políticas. Qual o lugar da escola na perspectiva de ações que favoreçam transformações sociais, no ensejo de um presente e de futuros mais justos e 14 democráticos? Em que aspecto essa instituição pública – que é a escola – tem mostrado resistência à sua recriação democrática (sua e da sociedade)? Existem portas controladoras, mas também existem portas libertadoras nesses mesmos espaços e organizações, de modo que estes movimentos me levam a perguntar: Como as experiências podem nos aproximar das complexidades dessas portas sociais? Há muitos veios; entretanto, através desta pesquisa, estamos precisamente no eixo em que a educação se articula com a arte. Será necessário entrar em sintonia com algumas dimensões que nos levem a perceber mecanismos aprisionadores e libertadores na instituição escolar, para que possamos vislumbrar tempos melhores naquilo que há de mais ético, amoroso e criador. Qual o lugar de importância das instituições escolares nas tantas desigualdades existentes no mundo, mas particularmente no Brasil? Na investigação que fundamenta esta dissertação, a preferência se dá pelo caminho da escuta daqueles que sobraram e que não couberam na escola e, na aproximação a esses sujeitos – em suas diferentes instituições – buscou-se perceber algumas dimensões que possibilitem entender mecanismos opressivos e torná-los públicos, abrindo possibilidades de se criar outras políticas. Propõe-se, portanto, através do confronto de narrativas, o encontro do discurso marginal dos rejeitados com o discurso do professorado atuante na rede pública do ensino fundamental. Partindo de um desconforto, de um mal-estar em relação a essa instituição escolar, que tem como objetivo contribuir para a formação de sentidos para a vida – mas que, com freqüencia expropria a presença da experiência no cotidiano escolar – destaco a importância de refletirmos sobre práticas e relações que tantas vezes se escondem nas dificuldades de transformar, de tocar e de ser tocado. 15 Todavia, ao mesmo tempo, essas mesmas instituições responsáveis pela formação de crianças, de jovens e de adultos, se fazem imersas em contextos de vitalidade que, entre tensões, revelam a existência de movimentos que buscam reconfigurar a escola e a sociedade. Por mais que o discurso pareça estanque e inoperante, um rápido panorama da realidade escolar no país revela um Brasil que se alinha a outros países considerados desenvolvidos, com aproximadamente 90% de suas crianças matriculadas em escolas em idade constitucional. No entanto, de 1991 a 2000, a taxa de mortalidade de jovens entre 15 e 24 anos de idade, por homicídio de armas de fogo, aumentou em 50%, somente na cidade do Rio de Janeiro, segundo dados do Ministério da Saúde – DATASUS – divulgados pelo IBGE no ano de 2004. Nesta mesma pesquisa em que o IBGE divulga uma Síntese de Indicadores Sociais (2003), é possível verificar que na cidade do Rio de Janeiro a taxa de freqüência escolar na área urbana, no ano de 2002, é de 97,1% entre jovens de 7 a 14 anos, de 85,7% entre jovens de 15 a 17 anos, de 54,7% entre jovens de 18 e 19 anos, de 31,2% entre jovens de 20 a 24 anos, enquanto na área rural, a taxa constatada é de 100% entre jovens de 7 a 14 anos, de 100% entre jovens de 15 a 17 anos, de 75% entre jovens de 18 e 19 anos, de 10% entre jovens de 20 a 24 anos. Com base nos limites expressos pelas estatísticas, reflito sobre os possíveis motivos que fazem com que esta criança e este jovem permaneçam na escola até os 14 anos de idade. Como se dá essa permanência e a não permanência? O que precisaria ser reconfigurado nas escolas formais para que possam dialogar com as necessidades sociais desse jovem, que aos 15 anos começa a se evadir do ensino formal? Como bem observa Reguera, a aprendizagem da carência e da desvalorização seriam semelhantes a qualquer outra aprendizagem porque deixam marcas. A criança e o jovem aprendem o que lhes é ensinado socialmente nas relações que se fazem plurais, mas no caso de muitos dos 16 meninos moradores de rua, herdeiros de uma democracia que deprime e que enfraquece, essas marcas esfarelam potencialidades. A aprendizagem da desvalia, da submissão, da desqualificação que deixa marcas geralmente indelévies, leva a pensar nas ações possíveis de parecer espertezas maliciosas para uns, mas que, para o outro que age nesta outra lógica e parâmetro, podem significar maneiras possíveis de sobreviver. Como a escola formal pode contribuir no sentido de que a formação de pessoas se faça sustentada pela ética, pela afetividade, pela curiosidade, pela criticidade e pelo respeito ao outro, como estéticas potencializadoras de experiências? Como essa escola fortalece (ou atrofia) a esperança favorecedora de qualidade de vida? Como conceituar qualidade de vida num espaço democrático e plural? Ainda abraçada a Reguera, penso na importância dos limites, nas fronteiras, como possibilidades de sociabilidade com o outro. Limite não como impotência, mas algo que pode nutrir outras lógicas que tensionem e alarguem verdades até então almejadas ou afirmadas/ sustentadas. Esta dissertação empregou a metodologia da pesquisa-ação e da pesquisa-intervenção, no sentido de problematizar os limites, as fronteiras, os engessamentos, dinamizando-os na abertura de outros devires, lógicas, configurações e demandas. A instabilidade é aqui entendida, como possibilidade de movimento. O ato de acolher o estranhamento, o desconforto, a rejeição etc., como movimentos dos quais podem emergir lógicas e experiências libertadoras de gessos, de vícios, de estereótipos, de verdades e objetivos hegemônicos. E neste sentido, assinala-se a importância de problematizar a instabilidade coletivamente. Destaco, então, o papel da transdisciplinaridade como um sistema aberto, em que o ato de interceder favorece a polifonia, podendo dinamizar e 17 desestabilizar dicotomias como sujeito / objeto; professor / aluno; o saber / o não saber; o específico / a universalidade etc. Não basta articular sujeito e objeto; professor e aluno etc., através de diálogos e trocas. É preciso ir além disso, atentos ao fato de que aquilo que outrora era entendido dicotomicamente, se constitui em processo de implicação: um se faz e se refaz ao estar consigo e com o outro e, este outro pode representar uma situação; pode ser um ou vários sujeitos; pode ser uma ou várias experiências estéticas; pode ser uma experiência conceitual que intervenha em algo ou em alguém, na dinamização daquilo que antes fora adquirido, ou configurado, como organização acomodada. O significado da provocação da provocação do ato de criar como ato do pensar; do fazer; do sentir; do ousar; do perceber; do re-fazer; do estranhar, enfim atos do existir que nos possibilitam o estar consigo mesmo, sem a negação do outro. Daí, propor uma metodologia que apresenta depoimentos e descrições de experiências aqui narradas pelos próprios sujeitos que as vivenciaram, esperando que elas tragam desafios ao pensar. Ao escolher essa metodologia, acredito estar investindo na experiência, embora desde os gregos a ela tenham sido reservados espaços de menor relevância para a elaboração do conhecimento e, ainda hoje, a experiência tem sido atingida pela expropriação dos sentidos. Ao trazer retalhos e materialidades de narrações coloquiais, me entrelaço, também de maneira prosaica, a essas pessoas que estão exiladas, empilhadas em instituições homônimas, e junto a narrativas de instituições escolares, busco brechas, lampejos e forças que ajudem a tecer, de alguma maneira, esperanças de vida. Mostrar os abrigados – desabrigados que são de tantas necessidades – junto com os estudantes e com os professores, em contraste um com o outro, ajuda a perceber como a política, o poder, a violência, o amor, a compartilha, a alegria são dosados de diferentes formas. Mais explícitas ou mais sutis. 18 Na mesma pesquisa já mencionada aqui, divulgada pelo IBGE no ano de 2004, a UNESCO considera como alfabetizada a pessoa capaz de ler e de escrever um bilhete simples, no idioma de seu conhecimento. Considera também que a alfabetização é um parâmetro mais eficaz de medição de aprendizagem que a matrícula, uma vez que reflete um nível mínimo de escolaridade completa bem sucedida. No entanto, essa pesquisa reconhece que o conceito de alfabetizados, adotado pela UNESCO, pode estar considerando – segundo a própria UNESCO – pessoas funcionalmente alfabetizadas como tal. Complementando essas reflexões, o IBGE e a UNESCO destacam o conceito de alfabetizados funcionais, ou seja, pessoas que possuem menos de quatro anos de estudos completos. A afirmação acima pede ressalvas, e é o professor e pesquisador Jader de Britto que me relembra que Aristóteles, por exemplo, em seu realismo crítico enfatiza a construção do conhecimento a partir de experiência, de informação obtida através dos sentidos. Em 2002 – ano dessa pesquisa que expressa a síntese de indicadores sociais do ano de 2003 (IBGE/ 2004), o Brasil apresentava um total de 32,1 milhões de analfabetos funcionais (com 15 anos de idade ou mais) ou 26% da população (nesta mesma faixa etária). Na cidade do Rio de Janeiro – nesse mesmo ano – 23,1% da população domiciliada na área rural e 15,7% domiciliada na área urbana foram considerados analfabetos funcionais. Os índices acima são registrados considerando os indivíduos domiciliados. Mas se estendermos essa mesma pesquisa feita pelo IBGE àqueles que moram na rua, o que acontece à leitura da realidade brasileira? Aqueles que não aparecem nessa pesquisa dão margem à indagação: Quem constitui a sociedade civil brasileira? Como pensar as necessidades sociais, se não são incluídos esses sujeitos que encontramos nas esquinas, nas calçadas, nos viadutos - pessoas que não aparecem nas pesquisas sociais oficiais realizadas pelos censos? Como escutar aqueles que não tocamos? 19 Muitos falam que a escola precisa se aproximar mais da vida de seus sujeitos. Quando se discute essa questão, é sabido que a fonte da ciência, a fonte dos conhecimentos é a própria vida e estes serão tão mais vivos quanto mais entrelaçados às necessidades do próprio viver. A instituição escolar será tão mais efetiva à medida que responder a problemáticas sociais vitais, em diálogos multiformes com as respectivas demandas. Esta pesquisa de mestrado se propõe escutar professores, estudantes, diretores de escola e também aqueles que não tiveram escola (ou escolha) e, quando conseguiram entrar na instituição escolar, passaram por ela rapidamente. Hoje, já adultos, estes senhores e senhoras revelam, nos diálogos que estabelecemos, uma nostalgia da escola. Como essa falta de escola se apresenta na vida dessas pessoas em seus sonhos? Qual a escola sonhada pelos professores e que escola estes professores pavimentam em suas práticas pedagógicas? Proponho o exercício de coletar imagens, nostalgias, sonhos, necessidades que às vezes fragilizam o indivíduo que, por lhe ter faltado a oportunidade de freqüentar a escola, acredita-se muitas vezes como um ser menor. E com esses sonhos, essas esperanças e essas desesperanças, pretendo fazer-me atenta na busca de aprendizados que apontem caminhos possíveis para ajudar a refletir questões sociais e políticas, que possam vir a assegurar a qualidade de vida como um direito para todos e para todas. Não é de uma hora para outra que se produzem instituições, assinala Linhares. Não se institui uma outra infância, uma outra escola de uma hora para outra. Os processos instituintes são históricos, têm percursos, duração, embora – apesar da longa duração – eles possam irromper em determinado momento, mudando seus rumos.2 Através de ações pedagógicas subsidiadas pela escuta sensível, pela transdisciplinaridade, pela intervenção critico/ afetiva e pela restituição da pesquisa aos co-autores que participam desta experiência, espero que estas 2 Reflexão da professora Célia Linhares - orientação coletiva, 2006. 20 experiências se façam em processos reflexivos catalizadores de transformações, no sentido colaborar para a produção de políticas públicas favorecedoras de processos que se exercitem em continuidades não lineares, ainda que se façam entre laços e entrelaces. Como pesquisadora, atriz e educadora busco, através desta pesquisa de dissertação, o exercício de ajudar a emergir e circular os saberes, as éticas, os valores, as estéticas, como convites e reforços para que possamos alavancar espaços, capazes de favorecer exercícios de idéias, de práticas democráticas e inclusivas, em que a esperança se faça para todos, como um sonho que caminha, como bem propõe Aristóteles.3 O que me leva a escutar pessoas moradoras de ruas e de abrigos públicos, que não tiveram oportunidade de escola, pelo fato de que em algum momento de extrema importância, suas questões pessoais não foram consideradas pela instituição escolar como questões coletivas e portanto, políticas e educacionais? Mas como as narrativas dessas pessoas, viventes das beiradas, podem viabilizar caminhos que possibilitem intervir em mecanismos de fechamentos e de aberturas das portas sociais e políticas? Ao mesmo tempo em que me entrelaço a pessoas que moram nas margens, proponho a escuta de professoras da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, tentando uma aproximação de seus conflitos e também de seus sonhos de professoras, que tantas vezes transbordam das burocracias escolares. Essas questões me levam a perguntar: Como pavimentar pontes entre esses Brasis que vivem juntos e muitas vezes não convivem, não trocam? Penso na importância de trazermos o passado para que possamos nos encontrar com o presente. E o presente, como uma filigrana, só se revela quando o olhamos à distância. Aí está o eterno ponto de partida: olhar o 3 In: cartão publicitário – Johnnie Walker, 2003. Distribuição gratuita. 21 passado para que sejamos capazes de nos aproximar do presente. E com os pés no presente, quem sabe, construir hipóteses sobre o futuro. Busco na raiz de minha origem formativa meu esteio metodológico e abraço Brecht, quando propõe o distanciamento como ação fundamental para a instigação da criticidade. Junto à Brecht, entendo--me como artesã que acredita ser fundamental dar passos além do discurso, atenta às maneiras pelas quais configuramos idéias e valores, através de ações geradoras de atividades intelectuais e de atividades imaginárias reflexivas, que se exercitem como produtoras de sentidos para a vida. Nessa perspectiva, asseguro-me ainda junto a esse dramaturgo, diretor teatral e poeta, por acreditar na importância de tensionarmos jogos e dinâmicas das contradições, inerentes aos sistemas sociais. Organizações que se fazem e desfazem em continuidades e descontinuidades que jamais podem ser lidas, ou narradas em linearidade, sob pena de sufocar a complexidade de seus sistemas. E, ainda que a realidade posta pareça aparentemente estática, a imaginação, os sentimentos e os sentidos se movem continuadamente, em movimentos também complexos, o que aponta a emergência de se pensar e repensar o conjunto das relações sociais, para que se possa reorganizar a sociedade, à medida em que cada um se re-organiza como indivíduo único e coletivos. O distanciamento, como categoria social, tem seu efeito politizante à medida em que se retro-alimenta de reflexões que se renovam e que são renovadoras de sentidos. Uma reconstrução política do olhar, que ao se distanciar do vivido, olha este mesmo vivido do qual faz parte, como um espelho que reflete a si mesmo como se fora um outro. Liberto de engessamentos emotivos e plásticos, experienciamos o aprendizado de outros olhares àquela realidade que constituímos e, que nos constitui. Com Brecht, entrelaço-me a Benjamin e busco aproximar-me do presente e do passado, mediada pelo distanciamento critico, como atitude reflexiva de outras ordens e configurações históricas do ontem e do agora, na desconstrução 22 de tantas imagens que tentam reforçar em cada um de nós, o fantasma da inércia, que geralmente se acredita herdar daqueles tantos sujeitos vistos como perdedores. Homens e mulheres afogados pelos avalanches de verdades únicas, silenciadoras de óticas e de experiências plurais, são, anti-heróis necessários para que haja aproximação do presente com outros olhos e, configurando outros sentidos, sonharmos com futuros possíveis, na perspectiva de se incluir todos como atores protagonistas desta história polifônica, de narradores e narradoras. O distanciamento, como possibilidade de reinventar o presente e o passado, ressalta o valor e o sentido da plasticidade humana, na busca de historicizar as estéticas dominantes, tensionando-as e contrapondo-as àquelas vozes e formas escondidas nos porões da história e abafadas nos calabouços dos homens. Quando me utilizo da primeira pessoa do presente do indicativo, o faço em estado de alegria, pela consciência de que as reflexões aqui propostas – sempre em termos de convite – fazem-se através de exercícios coletivos, sustentados e tensionados por encontros. Percebo-me constantemente acompanhada por tantas elaborações reflexivas que teço com a orientadora desta pesquisa - Célia Linhares; com os colegas que se encontram nas orientações coletivas realizadas na Universidade Federal Fluminense e, com tantos outros interlocutores com os quais aprendo a reconfigurar-me, tornando-me leitora mais atenta da amplitude das realidades, à medida em me amplio com outros. Apresento aqui outros companheiros como Freire, Ecléa Bosi, Bauman, com os quais dialogo as tantas questões experienciadas nesses encontros múltiplos. Na busca de reflexão sobre essas várias narrativas, venho me aproximando de 13 escolas da rede municipal do Rio de Janeiro, como co- 23 autora4 e coordenadora de um projeto de formação continuada de professores – Projeto Janelas Cruzadas. O Janelas Cruzadas é um espaço laboratório de experiências que refletem o pensar/ fazer educação no sistema público escolar. Quatro são os pilares do projeto: → a memória; → as múltiplas linguagens; → o processo de problematizar; → a ética/ estética. Tais eixos são trabalhados como elementos pulsantes de todas as ações do projeto. Através de visitas às escolas parceiras e de reuniões com gestores e professores que participam da formação continuada proposta pelo Janelas Cruzadas; questões educacionais que integram o cotidiano das treze escolas se fazem como materiais impulsionadores do planejamento dessa formação. O Janelas Cruzadas convida profissionais da educação, que abordam de forma entrecruzada e transdisciplinar, temas que possam tensionar questões da educação em geral e outras que, mesmo representando especificidades do cotidiano dessas 13 escolas, não se restringem a estas unidades escolares. Outra ação do Janelas Cruzadas é a escuta de um grupo de senhoras, moradoras de um conjunto habitacional popular situado na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro: a Cruzada São Sebastião. Esse conjunto habitacional foi construído a partir da ação instituinte de um líder social, Dom Hélder Câmara, ao possibilitar que famílias fossem retiradas de suas moradias, organizadas até a década de 50 em um lamaçal povoado por casas feitas de caixas de madeiras ou barracos úmidos, que 4 Isabel Reis e Helena Jacobina são autoras do projeto Janelas Cruzadas. 24 constituíam a favela da Praia do Pinto, no Leblon. Estruturas que não contavam com saneamento básico em suas passagens tortuosas, água encanada, luz elétrica ou qualquer outra composição de urbanismo, como ação planejada garantida como direitos pelos poderes públicos. No entanto, um dos diferenciais desta ação instituinte, que felizmente não é única em nossa história, é que a remoção da comunidade efetuou-se para um conjunto habitacional construído destinado à própria comunidade, no propósito de manter seus sujeitos perto do ambiente de trabalho, garantindo a continuidade dos vínculos já conquistados. Que outros diferenciais resultaram dessa experiência instituinte? Haveria indícios que indicassem a possibilidade das senhora habitantes desse conjuntos se fazerem protagonistas de sua história? Como essas histórias compartilhadas podem viabilizar experiências, na afirmação da estética criadora como dimensão ética? Que seria dos moradores da comunidade da Cruzada São Sebastião, se na década de 50 tivessem sido removidos para bairros periféricos que não oferecessem transporte público, estruturas comerciais, atendimentos de saúde e empregos nos arredores? Na Comunidade Cruzada São Sebastião, não é raro os apartamentos de quarto e sala abrigarem gerações e gerações que moram juntas, com famílias de 15 pessoas convivendo num apartamento de um só quarto. Contudo são elas mesmas que agradecem todos os dias pela possibilidade de um teto e de um trabalho – ainda que muitas vezes, estas se façam através de vínculos informais. Como estas experiências podem tornar viável uma escola que se faça mais larga, onde todos e todas possam perceber-se incluídos? Na intenção de colaborar para que a reestruturação da escola se faça como um gerúndio constante, busco maneiras de aproximar-me de pessoas que vivem na rua ou em casas de recolhimento públicas, e através de ações realizadas com esse público, vou problematizando e tensionando suas 25 narrativas com o cotidiano escolar daquelas unidades escolares participantes do projeto Janelas Cruzadas. Esses movimentos me fazem estas perguntas: Como estas ações com pessoas que estão na escola e com pessoas que lá permaneceram por pouquíssimo tempo – ou que nunca estiveram por lá – podem nos ajudar a pensar a escola de hoje e de amanhã? Que questões se fazem presentes nas instituições que abrigam pessoas sem teto, desempregadas, marginalizadas, e que metamorfoseadas, surgem também em instituições públicas de ensino, como questões do cotidiano escolar? Como esta pesquisa pode contribuir para a qualidade do ensino das escolas públicas, mas também para a qualidade das instituições públicas que acolhem pessoas marginalizadas? Como pensar políticas educacionais democráticas, se crianças e jovens que não têm endereço fixo, não podem matricular-se em unidades escolares públicas, visto que se trata de exigência legal para que a matrícula seja efetivada? No propósito de realçar a importância da aproximação a essas pessoas plurais, atenta aos seus modos de existir e de desistir, me proponho a estabelecer diálogos com as narrativas de educadores, estudantes e, também de sujeitos que além de estrangeiros, foram exilados como pessoas que, com freqüência, não tiveram maior significação para a escola e, ainda hoje, enquanto marginalizados, pouco representam para a sociedade. Aproximo-me, então de senhores e senhoras idosos que se encontram confiados ou confinados aos cuidados da Fundação Leão XIII (em abrigos sociais públicos da rede estadual do Rio de Janeiro). Senhores marginalizados sem lugares que lhes assegure o direito a uma vida de qualidade, o direito ao atendimento das necessidades básicas e ao direito de sonhar. Qual o lugar de importância das instituições educacionais nesse quadro de desigualdades sociais e como a experiência se faz presente nessas 26 instituições, visto que não experimentar politicamente é não instituir, como bem assinala a professora Linhares. No sentido de tocar uns aos outros através de experiências com voz própria – e que apresentem estéticas plurais, através de seus modos, suas pausas, suas flexões, suas ênfases e suas linguagens – tento escrever polifonicamente, realidades que são de todos e de todas. E nestes movimentos, contextos plurais com os quais vivencio o complexo ato de pesquisar, reflito questões expressas através da narração de: a) experiências de professores, de diretores, de estudantes e de familiares representantes de 13 escolas da rede Municipal da cidade do Rio de Janeiro; instituições participantes do projeto Janelas Cruzadas; b) experiência de senhoras moradoras da comunidade da Cruzada, também participantes do Janelas Cruzadas; c) experiências de senhores e de senhoras moradores do CRS – Centro de Recuperação Social – unidade Campo Grande/ Fundação Leão XIII; d) experiências de senhores e de senhoras que estão morando nas ruas. Ao encontrar-me mergulhada em um oceano de experiências, perguntome: Como a aproximação e a escuta de questões particulares, podem se fazer exercícios de reflexão das questões coletivas que buscam assegurar uma comum qualidade de vida? Como as conquistas miúdas das relações sociais, podem se fazer presentes na reflexão e na elaboração de políticas públicas? Volto-me para as idéias de Zygmunt Bauman quando afirma a importância de assegurar idéias, caminhos e ações significativas, para que o aniquilamento da miséria e da desigualdade social se faça como um bem público. Valores partilhados que urge serem validados como patrimônios públicos e portanto, como responsabilidades de todos e de todas. O que faz com que práticas sociais desarticulem e fragilizem (ou reforcem) os saberes plurais? 27 Como a aproximação das maneiras complexas de se pertencer socialmente, pode interferir para que a questão da aprendizagem se faça como processo libertador e portanto, criador de sentidos para a vida de todos? Percebo na Fundação Leão XIII a recorrência de pessoas vindas da área rural do Estado do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros. No Brasil, segundo o IBGE (indicadores sociais de 2003), apesar de ter sido constatada uma diminuição da taxa de analfabetismo, na última década, equivalente na área urbana a 26,6% e na área rural a 22,61%, importa destacar que as taxas de analfabetismo nas áreas rurais brasileiras são – em média – quase três vezes maiores que nas áreas urbanas. Realidade que, desde 1992, não se altera. A maioria das pessoas que se encontra nos abrigos da Fundação Leão XIII é oriunda da área rural e, vem confirmar a taxa de analfabetismo brasileira divulgada por pesquisas oficiais (no que se refere à leitura letrada). Mas, sabendo que grande parte dessas pessoas foi moradora de ruas e, portanto não se fez presente nas pesquisas oficiais, indago: Como me aproximar a essas pessoas, na perspectiva de escutá-las e possibilitar que suas reflexões e leituras de mundo sejam validadas como indicadores de caminhos para uma sociedade mais justa, representada por políticas públicas que expressem necessidades emergentes de grupos plurais? Que questões se fazem presentes na cultura social expressa tanto pelas dinâmicas dos moradores de ruas, quanto pelos mecanismos administrativo/ pedagógicos da Fundação Leão XIII e que se repetem, ou se confirmam, na cultura escolar? Como a escola pode ajudar a instigar, a des-engessar, a lubrificar mecanismos sociais e políticos, de modo que aqueles que não exercem direitos políticos passem a exercê-los? Das pessoas com quem tenho interagido nesse abrigo público, fui levada às ruas, no intuito de me aproximar àqueles que resistem a essas instituições sociais que afirmam recuperar pessoas marginalizadas, na busca de integrá-las ao sistema social vigente. 28 Porém, quais os interesses, os objetivos e as maneiras desse nosso sistema social para o qual tantas instituições e tantos profissionais trabalham? Na busca de me aproximar um pouco desses sistemas complexos, trago nesta pesquisa, senhores e senhoras que, apesar de serem vistos pelas pesquisas oficiais como analfabetos ou como alfabetizados funcionais, vivem como leitores perspicazes e sensíveis, que analisam criticamente o mundo que os cerca. Acredito que as leituras plurais de mundo são fundamentais para que possamos aprender a ler o Brasil de maneiras mais amplas e mais complexas. O ponto de partida de toda essa problematização é a minha percepção de que a escola tem sido ‘objeto’ de muitas pesquisas voltadas para políticas educacionais e, muitas vezes, soluções de questões são buscadas em perspectivas centradas somente nas escolas. Longe de mim negar através desta pesquisa – ou de qualquer outra ação reflexiva – a especificidade do trabalho escolar, nem tampouco espero que os problemas escolares se resolvam apenas quando construirmos paraísos territoriais. Mas, por acreditar que a solução dos problemas escolares não depende só da escola – pois são várias as frentes que tecem a infreqüência, a evasão, a reprovação, a não aprendizagem – é que me proponho a apresentar, através desta pesquisa de mestrado, depoimentos e narrativas, recolhidos por mim em algumas instituições nas quais trabalhei como arte-educadora, na busca de pistas que permitam uma aproximação às complexidades da escola, em benefício de uma melhor compreensão daquilo que acontece nas políticas educacionais e nas políticas sociais. Neste sentido, pergunto-me: Como favorecer espaços de experiências para que as histórias possam quebrar nosso desencanto, renovando a esperança? 29 soltando as velas, mas para onde ir? capítulo 2. 30 Soltando as velas, mas para onde ir? Justificativas “A minha escola foi da vida. Eu nunca tive na escola, nunca botei uma blusinha branca com saia azul marinho. Tudo que eu aprendi foi na escola da vida. Aprendi a ler, a escrever, eu faço conta e faço tudo que a escola da vida deu. Na minha opinião a escola da vida é a mais importante. Os gibis, as estórias em quadrinhos que eu ia juntando com os amiguinhos, ia catando as letras, batendo cabeça, ia juntando, e através das histórias em quadrinhos eu fui conhecendo o alfabeto, eu aprendi ali a ler sozinha. Eu e Deus. Fui ficando mais madura e a vida foi me ensinando o resto.” O que aprendemos com essa experiência narrada por Dona Virgínia – 71 anos, moradora da Cruzada São Sebastião – Leblon/RJ? É possível que a Escola escute seus alunos, suas memórias e narrações ou ao tentar fazê-lo, mais das vezes, permanece num monólogo, imbuído de certezas e fechamentos dogmáticos? Como as trocas e os aprendizados construídos pela escola da vida podem se presentificar num diálogo franco na Escola formal? Entendo por escola da vida os processos de ensino e aprendizagem que se dão nas múltiplas relações e interações cotidianas. Escola de tempos e espaços plurais, espaços de convivências educacionais constituídos em rede, sem um seqüenciamento linear ou uniforme - ou seja, sempre disparado por frustração e surpresas e portanto, irrepetível. Espaços que instigam o sujeito nas suas múltiplas potencialidades, nos seus modos de ser e viver. Escola vida, que no seu existir, lida naturalmente com diferentes linguagens entrelaçando-as às tensões e ambivalências do cotidiano. Ao me referir à escola formal, estarei representando-a com ‘E’ maiúsculo, como forma de diferenciá-la de espaços informais de educação. Neste sentido, apresentarei a Escola como instituição, entendendo-a como espaço social de referência educacional que tanto pode instigar o processo criador e 31 proporcionar a socialização na construção de conhecimentos e de superações, como pode alimentar a reprodução e a mesmice. Como instituição, a Escola é sempre cenário possível de ser estremecido por Experiências Instituintes.1 Consciente da existência de tensões nesta instituição, que tem como um dos seus objetivos sistematizar pedagogias de superações dos sujeitos e das realidades que a constituem, pergunto-me: Como a Escola foi se constituindo separada da vida? O que faz com que em algumas Escolas, prevaleçam recorrências ao pensamento único e hegemônico? Apesar de anos de reflexões e propostas formuladas no intuito de garantir legalmente a viabilização de uma sociedade e processos educativos que tenham como parâmetro não o mercado, o capital e interesses internacionais, mas o ser humano, organizações científicas e sindicais dos educadores encontram resistências na participação de reformas educativas – como as Leis de Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação.2 Apesar de sabermos que o patrimônio natural e científico e os processos culturais e educacionais não podem estar subordinados ao mercado e ao capital, mas ao conjunto de direitos que configuram a possibilidade de qualificar a vida de todos os seres humanos, como nos afirma Gaudêncio, vivemos hoje a conseqüência de uma história que se constitui, desde a Grécia antiga, no fortalecimento de articulações políticas e ideologias sustentadoras do bem estar de pequenos grupos de sujeitos privilegiados. Desde épocas remotas, regalias econômicas, benefícios como políticas de educação e saúde, são asseguradas como direitos não democráticos, mas sustentadores de controles potencializadores de dominações. Esta realidade histórica ainda vigente e com força na atualidade, não se dá sem tensões entre contradições, conflitos e movimentos também libertadores. São estes últimos os 1 Entendemos por Experiências Instituintes na educação, como práticas e relações pedagógicas que trabalham no rompimento dos padrões de racionalidade e políticas hegemônicas. Estas Experiências buscam caminhos na educação em prol da construção das solidariedades, da valorização das singularidades históricas, numa concepção de tempo e espaço não lineares. Na contramão dos maniqueísmos; competições; homogeneizações; opressões, as Experiências Instituintes buscam uma educação mais humana e includente.(Resumo realizado a partir de LINHARES, 2002 e de texto de Eugênia Foster, Doutora em Educação pela UFF e integrante do grupo de pesquisa Aleph). 2 FRIGOTTO, Gaudêncio. 2002, p. 58 e 65. 32 responsáveis pela busca de caminhos para a construção de uma sociedade e processos educativos que tenham como foco, não apenas humanizar a Escola, mas revitalizá-la. Esta pesquisa busca caminhos para articular Escola não somente com humanidade em princípios éticos, mas reintegrar a Escola na vida. Neste sentido, porque faz-se importante a aproximação sensível aos sujeitos que não couberam, que não chegaram na escola? Como alimentar e revitalizar a Escola com desejos e necessidades daqueles que estão fora desta instituição? A Escola, como reflexo da sociedade e de sua historicidade, também reflete este mesmo mecanismo de poder do controle na afirmação de verdades hegemônicas; na exclusão de sujeitos que se diferenciam dos modelos únicos impostos socialmente; na não democratização do processo de ensino e aprendizagem com qualidade técnica, científica, ética, estética, criadora e humana; no temor à reflexão crítica e à formação de sujeitos autônomos. Não podemos deixar de nos remeter ao embricamento entre processos e interesses históricos/ políticos e, a educação escolar. Convido Linhares para elucidar este entrelaçamento de lógicas e mecanismos também opressores, quando nos diz que: Revoluções políticas e tecnológicas estouraram na França e na Inglaterra, no final do século XVIII e no início do século XIX, respectivamente, de onde foram espargidas e repatriadas para todo o mundo ocidental. As interdependências das relações sociais iam se tornando cada vez mais complexas e competitivas, e as disciplinas sociais e humanas passaram a constituir importantes estratégias políticas. O projeto de industrialização não podia prescindir do disciplinamento dos saberes, submetendo-os a um regime severo que operava no sentido de uma produção que atingia o corpo, enquadrando-o em tempos e espaços modelados pelos regimes de poder. Uma intensa reciprocidade entre a disciplinarização da sociedade, produzindo a disciplinarização dos saberes e vice-versa, foi se aprofundando e se traduzindo numa 33 organização acumulativa e seqüencial de saberes, submissa a uma lógica fragmentária e hierárquica, ao serviço de controladores de mercadorias.3 A excludência vem crescendo dentre os tempos, ampliando desigualdades históricas no Brasil. Esta concentração de bens culturais e materiais revela os processos de barbárie crescentes com a nossa cultura de controle. Por reconhecer que a situação escolar atual é grave, apresentando expressividade na evasão escolar e na formação de um percentual elevado de alfabetizados funcionais, acredito ser importante a escuta daqueles que estão fora da Escola. Nesta mediação de pontes de comunicação, poder perceber e entender mecanismos de exclusão, assim como mecanismos que freiam a criação, que banalizam o ensino e que massificam professores e estudantes. Esta grave realidade cobra de nós movimentos instituintes, constituintes de uma outra cultura escolar e social, que possibilite aos seus sujeitos a estruturação da autonomia individual e coletiva, como exercício e potencialização da capacidade de criar; de transformar; de inscrever-se e intervir no mundo, em processo de superação de si – como sujeito, e de superação da realidade – esta como reflexo de ideologias, ações, éticas e políticas humanas. Neste sentido, faz-se necessário que a Escola seja um laboratório de experiências vivas e estimulantes, num trabalho contínuo de reflexão e superação de si mesma como instituição e, com os indivíduos que a constituem. Proponho a aproximação a algumas escolas da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, com as quais interajo, na busca de diálogos que apontem caminhos e instrumentos que possibilitem o fortalecimento da escola formal, que nos dias atuais se mantém - muitas vezes - dogmatizada e distante da vida. Como Escolas dogmatizadas e distantes da vida convivem com suas contradições? 3 - LINHARES, Célia Frazão Soares. Setembro de 2000. Publicação semestral. p. 40. 34 Como perceber brechas e fendas existentes no pensar e agir hegemônicos, sobretudo naqueles que irrompem na Escola? Como articular pontes e laços entre duas partes, muitas das vezes, irreconciliáveis: os que estão fora da escola e os que estão dentro da escola e nesta possível comunicação, perceber instrumentos para elaboração de políticas públicas, políticas sociais e políticas educacionais includentes e democráticas? Através de uma metodologia que se propõe interativa, esta pesquisa buscará estar atenta a indícios que possibilitam diálogos entre os que estão dentro e os que estão fora da Escola e, nesta mediação reflexiva e crítica, a pesquisa estará atenta a ações e sinais que apontem caminhos de construção de outras formas de convivências pedagógicas4. Neste sentido, faz-se fundamental a procura de pistas que indiquem ações no asseguramento desta Escola vida, como espaço de aprendizagens, trocas, transformações e superações. Compartilho com Walter Benjamin que nos aponta a necessidade da escuta, atitude fundamental na interação com o outro e, vou me debruçando nas narrativas colhidas nesta escola da vida, na busca de lógicas e espaços múltiplos de construção de conhecimentos e aprendizagens. Saberes de um tempo aberto que vai ao passado e volta ao presente, ressignificando-o e preparando-nos para interagirmos com imprevisibilidades e complexidades. E como nos diz Linhares é urgente aprofundar perspectivas do passado para agrandar o presente.5 Novamente, apoio-me em Benjamin e em Linhares, para falar das tradições esquecidas, dos saberes fecundos no cotidiano interativo e pergunto: Como os movimentos instituintes vêm contribuindo na construção de Escolas mais largas, que desmontem políticas de favores e terrores6, silenciadoras das memórias não hegemônicas? Através das narrativas de adultos e idosos que - em outros tempos e hoje - não conseguem permanecer em escolas formais, vou interagindo na busca de LINHARES, Célia. 2000. Idem. p.30. 6 Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria: Experiências Instituintes em Educação. 4 5 35 pistas, sinais e propostas que em diálogo com sujeitos escolares, possam nos ajudar a localizar e compreender travas e frestas sociais7 por onde podem passar pontes e canais a conectar Escola à vida. Na valorização da escuta e da aproximação de pessoas que não tiveram vez nem voz e fizeram da vida a sua escola de formação crítica, ética, estética, afetiva... busco localizar instrumentos que apontem caminhos para uma Escola maior, de compartilha com os estudantes; os familiares; os professores; os funcionários da escola, trabalhando demandas e necessidades destes sujeitos como conteúdos a serem valorizados e socializados, em troca constante entre comunidade escolar, familiar e social no que estas demandas tem de mais ético e avançado politicamente. Diálogo entre escola formal e escola da vida, como possibilidade de interação nas complexidades vitais e sociais8. Buscar na Escola, espaços de intercâmbios entre os professores, os estudantes e outros grupos. Enfatizar no ambiente escolar, a importância do idoso, sua expressão e voz, como guardiões de conhecimentos - acervos vivos que precisam ser valorizados para que possam ressignificar saberes. Neste sentido, faz-se importante registrar a cidadania como um exercício social que não pode excluir nenhuma fase da vida humana.9 7 Sugestões realizadas pela professora e orientadora Célia Linhares, na orientação coletiva – 2o semestre de 2004. 8 Idem. 9 Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria: Experiências Instituintes em Educação. 36 Ao levantar esta questão das narrativas e da memória entrelaçadas na construção do fazer pedagógico, recorro à minha própria relação com a Escola. Experiência esta que foi se alargando com algumas convivências que tive e tenho tido em espaços educacionais diversos. São muitos os sentimentos e aprendizados, mas trago uma lembrança da minha ‘Escola primária e ginasial’ para impulsionar esta conversa: Viver em família foi a minha primeira escola significativa. Das Escolas que permearam todo este período de infância e adolescência ficam os convívios de amizade, os passeios, os encontros sociais. Às vezes penso que o fazer criativo não esteve localizado para mim, nestes espaços formais de educação. Lembro-me de um professor de matemática que ao explicar uma equação no quadro negro, perguntou se algum aluno tinha dúvidas. Levantei o dedo e quando me foi cedido o direito à palavra, respondi que tinha uma dúvida. O professor rapidamente respondeu que aluno bolsista não podia ter questionamentos. Marcada por ser bolsista, silenciei profundamente sem saber o que faria naquele lugar que me exigia certezas impossíveis e entendimentos imediatos. Como diz Sá de Miranda10, comigo me desavim, e finalmente encontrei possibilidade de transformações na aula de Língua Portuguesa. Ali, em vez de darmos conta de muitas leituras autoritárias, nossa turma convenceu a professora a realizar encenações com os textos que estávamos estudando. Fizemos cenários, dividimos o espaço em ambientes diversos... e os textos literários eram vividos por nós e discutidos de formas múltiplas. Quantos saberes estavam sendo trabalhados neste aprendizado transdisciplinar que o teatro nos permitia, ao lidar com a não fragmentação, podendo nos levar a exercitar a consciência do interligamento e embricamento entre as disciplinas, entre os saberes. Ginzburg me surpreende quando usa o rigor científico nos seus estudos e ao mesmo tempo propõe ser diferente do modelo que acredita na repetição, no 10 MIRANDA, Sá de. Citado por Augusto Rodrigues. 1971. 37 previsível e no distanciamento do sujeito e do objeto. Apresenta então, um rigor científico aberto e confirma o valor da interação, na crença da importância de perseguir sinais; marcas; detalhes; pormenores, em proximidade ao objeto de estudo. São as marcas da minha história, intercâmbios com pessoas e contextos diversos, que me levam a apurar o olhar para que possa estar atenta à leitura de gestos; de silêncios; de falas; de olhares; de pistas; de cartas; de desenhos; de fotografias; de guardados; de textos; etc. Quando propicio que os sujeitos com os quais interajo - na condição de educadora - tragam estes acervos como conteúdos a serem problematizados, intercambiados e ressignificados, percebemos diante de nós, questões escondidas e sutis, que podem se transformar em narrações. Borges, nos fala que nosso passado é nossa memória e essa memória pode ser uma memória latente, ou errônea, mas não importa; está aí. Pode mentir, mas essa mentira já é então, parte da memória; é parte de nós.11 Benjamin, nos provoca a perceber a importância do ato de contar histórias e ressignificá-las, quando nos diz que contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história.12 E assim fortalecida, na condição de caçadora e narradora, não somente com Ginzburg e Borges, mas também com Benjamin e Linhares, continuo a minha história. Como filha de artista/ educador e de educadora/ artista, minha infância e adolescência foram privadas de confortos... de tranqüilidades... mas também enriquecidas de um inundar de processos criativos... conversas desafiadoras... escutas instigantes... convívios antagônicos... e, é claro, preconceitos nas Escolas que freqüentava. 11 12 BORGES. s/d BENJAMIN. 1994, p. 205 38 Através dessas experiências complexas, fui exercendo a sensibilidade e aprendendo a tentar habitar o mundo com um olhar estético e poético, estando atenta à leitura de diferenças, às construções de generosidades, atenta também às desconstruções de imediatismos individuais. Escolher como profissão o teatro - primeira Academia formal - foi importantíssimo por me estruturar; arrumar o meu devaneio sem perder o desejo de criar e conviver com os mistérios da vida. O teatro me possibilitou o exercício da perseverança, da pesquisa, da crença na utopia, fazendo-me crer ser mais possível um impossível crível, do que um possível não acreditado. Como a minha vida inteira tem sido de labuta, e até mesmo a primeira Academia que freqüentei foi a academia da labuta, na Escola de Teatro da UFBA, pude fortalecer este ofício: o de estudar trabalhando e o de trabalhar estudando. Aprendi a trabalhar sendo atriz, pois o ator se põe em luta diariamente, na tentativa de afinar seu corpo, lidando diretamente com suas dificuldades e limites, buscando tornar-se um instrumento expressivo, cada vez mais claro. O ator é movido pela necessidade de expressar-se, de dizer algo significativo de forma não repetitiva. Fugindo ao estereótipo, o teatro ensina que você, ator, fala com alguém e para alguém (o público e o outros atores), promovendo o exercício fundamental do diálogo - daquilo que mesmo trabalhando, burilando, pesquisando, não se fecha. A linguagem teatral, ainda que estruturada entre ensaios e roteiros ou textos dramaturgicos, ao possibilitar o encontro de um sujeito com outro, ainda modifica sua estrutura. Freire me faz lembrar o compromisso e a responsabilidade que assumimos como educadores, participantes de movimentos sociais ou fomentadores de idéias e conceitos, quando enfatiza que falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira. 39 Não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca, como já vimos, não se faz no isolamento, mas na comunicação entre os homens...13 Aprendi também com o ofício de atriz e com o próprio Freire, que dialogamos não apenas com pessoas... mas com objetos... com silêncios... Como nos sinaliza Ginzburg, vou me apurando na busca de tornar-me uma leitora mais atenta a mim e ao outro, às várias óticas e, jeitos de ser e de expressar. Quase sempre sem apoios, sem espaços, sem financiamentos... o ator, como o educador, diversas vezes dá continuidade ao seu ofício por crença e necessidade vital de criar, expressar e transformar. Aprendi então, a perseverar. Ainda em Salvador, aluna da Universidade Federal da Bahia, onde freqüentava o curso de Bacharelado em Artes Cênicas – Interpretação Teatral, fui convidada a realizar oficinas de dramaturgia para adolescentes de uma favela chamada de Saramandaia, projeto realizado pela Prefeitura da Cidade de Salvador/ BA,14 em convênio com a UFBA. Ao chegar na comunidade, o projeto tinha contratado mais professores e planejado mais oficinas do que o espaço físico comportava. Abri mão do uso da sala, que já significava objeto de conflitos e disputas. Sem saber o que fazer com a turma, dialoguei com os estudantes, buscando soluções. Ao ver seus olhinhos brilhando e solicitando que não os dispensasse, perguntei-lhes: O que podemos fazer? Como posso dar aula para vocês? Existe algum lugar, alguém aqui na comunidade que possa nos ouvir, nos ceder um local? Nossas aulas passaram a acontecer a partir desta busca de espaço. Os estudantes tinham 12, 13, 14 anos e eu por volta dos 20, como se fora um deles. FREIRE, Paulo. 2002, p. 57. Este trabalho realizado por mim sobre a orientação da professora de dicção Meran Vargens, foi absorvido pela pesquisa do CNPq – A apreciação do espetáculo teatral como elemento fundamental da Arte-Educação. Na pesquisa citada, obtive orientação do professor Sérgio C. B. Farias. Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia, 1994 e 1995. 13 14 40 A intuição indicava-me os caminhos do diálogo. Somente anos depois, pude ter clareza destas minhas ações como educadora. Na época em que trabalhava neste projeto, sofria conflitos por não estar cumprindo um programa, fugindo à proposta que o projeto previra ao convidar-me para exercer oficinas de dramaturgia. Precisava trabalhar exercícios respiratórios, projeção de voz, consciência corporal, etc. Nossas aulas estavam sendo tomadas pelo cotidiano e se eu não o absorvesse, não conseguiria dar aulas. Neste diálogo conflituoso comigo mesma, fomos de porta em porta, de bar em bar, nas escolas da comunidade e cada aula passou a acontecer num ambiente diferente. Este percurso já era a aula com suas próprias problemáticas, negociações e aprendizados. Se acontecia num bar da comunidade, tínhamos que iniciar a aula fazendo uma faxina para limpar as bebidas derramadas no chão, na noite anterior. Se era na laje da casa de alguém, tínhamos que ter cuidado com nossas encenações, o meio ambiente, o entorno, como por exemplo o neném dormindo na parte de baixo da casa. Com o tempo, este cotidiano foi sendo presentificado nas nossas representações dramáticas. Conteúdos trazidos pelas questões e contextos dos adolescentes, foram sendo encenados. * * * No Rio de Janeiro tenho realizado desde 1998 um trabalho na Cruzada São Sebastião – Leblon, com o Projeto Janelas de Cada Um.15 Através do apoio da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, do Programa Crer para Ver e da Natura Cosméticos, o projeto 15 Projeto Janelas de Cada Um (anos 1 e 2) e Janelas Cruzadas (ano 1 e 2) – autoria de Isabel Noemi Campos Reis e Helena Jacobina Campos. Coordenação dos projetos: Isabel Noemi Campos Reis (1998 2005) e Helena Jacobina Campos (1998 - julho/ 2004). Entre as páginas 12 e 15, os textos referentes ao projeto Janelas de Cada Um e Janelas Cruzadas que se encontrarem em itálico, foram aqui retrabalhados a partir de textos elaborados pelas autoras do projeto para a 1a e 2a proposta do projeto Janelas de Cada Um (em 1998 e 2000 / realização institucional: Grupo Confabulando Contadores de Histórias) e 1a proposta do projeto Janelas Cruzadas (2004 – 2005 / realização institucional: Instituto Pé no Chão - IPC). Os textos referentes ao projeto que se encontrarem sem itálico, foram escritos por Isabel Reis a partir das interações realizadas nas atividades e reuniões com os sujeitos parceiros do projeto. 41 iniciou suas atividades na Escola Municipal Santos Anjos, localizada na cidade do Rio de Janeiro no bairro do Leblon – circunvizinha da comunidade Cruzada São Sebastião. Construída em meio a dois bairros que acolhem os favorecidos – Ipanema/ Leblon, a Cruzada foi idealizada por D. Hélder Câmara [1957], para abrigar os moradores da antiga Favela do Pinto. Considerada uma favela de asfalto, apesar de ter sua estrutura na forma de prédios, totalizando 10 blocos, esta comunidade sofre os mesmos problemas que encontramos nos morros da cidade do Rio de Janeiro. Tráfico, mortes, roubo, famílias atravancadas num só apartamento que não oferece espaço para tantas gerações conviverem juntas, são alguns aspectos que fazem parte da memória e do cotidiano desses moradores. Ao longo de sua história, a Escola Municipal Santos Anjos passou por momentos conturbados na relação com a comunidade. Depredações, insultos e agressões foram constantes nas primeiras gestões da Santos Anjos. Mas já há alguns anos a diretora atual conseguiu modificar a situação e melhorar a qualidade desta relação. Contudo, barreiras foram estabelecidas e acreditamos que o projeto tem ajudado a escola a fortalecer elos que significam ganhos para ambos: escola e comunidade. O primeiro público alvo do projeto foi a Escola Municipal Santos Anjos e seus sujeitos - crianças, professores, funcionários, direção e pais dos estudantes. Trabalhamos o resgate da identidade, na valorização das histórias dos sujeitos participantes do projeto e de seus familiares. Nos grupos de estudos dos professores, refletíamos os retornos que esta abordagem com a memória pessoal e social traz para o dia-a-dia da sala de aula e a importância de utilizarmos as diferentes linguagens artísticas no processo educacional. Os resultados ao fim de um ano do projeto Janelas de Cada Um foram animadores, o número de crianças repetentes tinha caído consideravelmente; foi possível também perceber uma potencialização qualitativa das produções textuais dos estudantes. O uso das múltiplas linguagens e do corpo como linguagem, no processo de pensar e expressar subjetividades em interação com o mundo e com o outro; a reflexão crítica; a afetividade, foram se fazendo presentes na sala de aula e no espaço escolar. O projeto reforçou a relação dos familiares dos estudantes com a Escola, de maneira a favorecer que os pais estivessem mais presentes na vida escolar de seus filhos, também quando refletida no cotidiano familiar e social. 42 Em 1998, iniciamos também ações na comunidade Cruzada São Sebastião com crianças e jovens. Conhecemos, através da Associação de Moradores, a professora Márcia Ferreira, que por ser moradora da comunidade mostrou entusiasmo em trabalhar conosco. Márcia virou nossa agente comunitária e grande parceira ao longo de todo o projeto. Através das crianças matriculadas na Escola Municipal Santos Anjos – moradoras da comunidade – e seus familiares que participavam das atividades realizadas pelo projeto na Escola Santos Anjos, estabelecemos vínculos com a comunidade e iniciamos uma ação dentro deste espaço a partir da doação de uma caixa de livros infantis. Neste momento, inauguramos na comunidade um espaço para atividades que visavam atender às crianças que já conhecíamos da escola, mas principalmente aquelas que não freqüentavam nenhuma escola e que perambulavam pelos blocos, sem rumo certo. Com as atividades propostas na comunidade, crianças e jovens de 1 a 15 anos convivem juntos e nesta socialização entre tensões e aconchegos exercitam aspectos como o respeito ao ritmo, às necessidades, aos valores às maneiras, à cultura, às lógicas de cada sujeito que, integrados a este espaço, convivem exercícios de solidariedades, de respeito às diferenças e de compartilhas. Em 1999 crianças que freqüentaram as ações do projeto na comunidade e não estavam matriculadas em escolas formais foram incluídas em unidades escolares formais. A direção da Escola Municipal Santos Anjos, assim como também a coordenação e algumas professoras da fase inicial do ciclo à 4a série16, assumiram o projeto, como possibilidade de pensar educação, refletindo ideologias e metodologias no entrelaçamento da prática à teoria. Em janeiro de 2000, o projeto deu início na comunidade a um trabalho com os idosos, resgatando a história local e construindo meios que valorizassem e viabilizassem a interação entre jovens e idosos. Janelas de Cada Um, foi um título escolhido como uma metáfora afinal, janelas são espaços que permitem visões múltiplas. Nas janelas nós vemos e Em 1998 a Escola Municipal Santos Anjos ainda funcionava com a referência à CA (alfabetização); 1a e 2a séries. 16 43 somos vistos. Não podemos esquecer que uma só construção pode trazer várias janelas na sua composição. E cada uma delas, ainda que componha um mesmo objeto, guarda ou revela imagens diferentes por não se encontrarem num mesmo ângulo de visão. Foi ouvindo e conversando com freqüência que o projeto foi descortinando algumas janelas dos sujeitos participantes, no exercício contínuo de conhece-los e sintonizar as propostas do projeto aos desejos e necessidades dos sujeitos participantes, sem perder o foco dos objetivos e propostas do Janelas de Cada Um. No intuito de sabermo-nos parte que constitui o mundo, podendo interagir de forma construtiva e respeitosa com o meio, é importante atuarmos como sujeitos, conhecermos nossa história e suas complexidades de relações. Na tentativa de entendermos nosso contexto com suas ambivalências, podemos exercitar na socialização, ações transformadoras; educativas; sociais e políticas. Neste sentido, Benjamim nos chama a atenção para as tensões, para o não esgotamento de significados nas relações e acontecimentos do mundo, que nos exigem olhos atentos para não sucumbirmos ao pensamento único, ao modelo e racionalidade hegemônica. Poeticamente, ele nos diz que a arte do narrador é também a arte de contar, sem a preocupação de ter que explicar tudo; a arte de reservar aos acontecimentos sua força secreta, de não encerra-los numa única versão.17 Foi com este objetivo que desenvolvemos em 2003, com o apoio de doadores individuais e da Fundação Abrinq/ Programa Crer para Ver e Natura Cosméticos, uma publicação na forma de um Almanaque. A valorização dos saberes e da memória dos sujeitos que convivem na Escola Municipal Santos Anjos e na comunidade Cruzada São Sebastião, foi sistematizada num registro que se propõe significativo não somente para aqueles que têm suas histórias narradas e reconhecidas como valorosas, mas por possibilitar que outras pessoas possam se identificar; fazer consultas de questões cotidianas, consultas 17 GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p. 59. 44 históricas como o registro da memória local sob a ótica dos moradores; intercambiar crenças, sabedorias construídas na vida, remédios caseiros, costumes... como também possibilitar que sujeitos diversos relembrem suas próprias memórias, ressignificando-as nos contextos das atualidades. É importante ressaltar que este Almanaque traz registradas histórias dos sujeitos da Escola Municipal Santos Anjos e da comunidade Cruzada São Sebastião e neste sentido, faz-se fundamental, viabilizar a circulação destes acervos, retornando-os para o espaço escolar e para a comunidade, como material pedagógico. A idéia do Almanaque surgiu quando eu cursava uma especialização em Leitura: Teoria e Práticas, sob a coordenação de Eliana Yunes e Vera Souza Lima, na Universidade da Cidade, no ano de 2000/ 2001. Francisco Gregório Filho, orientador da Multigrafia18 – texto de conclusão do curso, sugeriu-me que escrevesse o trabalho final na forma de um Almanaque. Como o tema escolhido para a Multigrafia era o registro reflexivo da experiência com o grupo de idosas da Cruzada São Sebastião através das ações do Projeto Janelas Cruzadas, sugeri ao orientador da pesquisa que escrevêssemos o trabalho de finalização da especialização numa linguagem o mais poética/ reflexiva e simples possível, atentos na organização de um documento que mais tarde seria usado como fonte para a construção do Almanaque, atendendo assim ao nosso desejo de fazer na academia um trabalho que pudesse ser devolvido aos sujeitos co-autores da pesquisa. Sabendo que para realizar o Almanaque necessitávamos de uma estrutura que viabilizasse profissionais para, em equipe, realizar o projeto gráfico, a realização de fotolitos e a impressão, as coordenadoras do projeto Janelas de Cada Um – Isabel Reis e Helena Jacobina – aproveitaram recursos do próprio projeto e doações de amigos, para junto a Francisco Gregório Filho 18 Isabel Noemi Campos Reis propôs ao curso de especialização chamar o trabalho de finalização de curso de Multigrafia, por acreditar que ao refletir e organizar vivências realizadas por um grupo, na forma de um trabalho monográfico, cria-se uma dicotomia entre a afirmação de uma grafia feita por uma única autoria e escrita e, a crença de que ao organizar reflexões coletivas, faz-se impossível localizar a autoria em apenas um nome. Também, a estudante propõe a grafia do texto através de imagens, fotografias, cartas, bilhetes, etc. Daí o termo multigrafia, pela autoria em várias vozes e escrita em diversas grafias. Título do trabalho: Marcas e Marcos – Cruzando a vida de mulheres idosas da Comunidade da Cruzada São Sebastião/ ações de mediar. 45 realizar em 2003 o Almanaque Janelas Cruzadas – no 1, aproveitando textos e reflexões da Multigrafia. Este impresso foi feito numa estética que propõe um movimento interativo entre o leitor e o texto de forma não linear, possibilitando iniciar e retomar a leitura em qualquer página, brincando com os espaços/ tempos não lineares que se fazem corporificados pelos diversos narradores que dialogam óticas, éticas, épocas e estéticas plurais. Também o Almanaque faz parte da vida de muitas das senhoras participantes do projeto. Algumas destas senhoras tiveram neste estilo literário seus primeiros contatos com as letras. O Almanaque lida com diversos assuntos, em diálogo com o cotidiano. Assim, através de jogos, histórias, horóscopos, receitas, memórias... fomos contando a vida, os valores, as crenças, os saberes, os sabores e os des-sabores destas senhoras, dos seus vizinhos da comunidade Cruzada São Sebastião e dos sujeitos da Escola Municipal Santos Anjos. A partir de 2004, o projeto passa a chamar-se Janelas Cruzadas por sua necessidade de cruzar janelas, criando uma rede de interações com o objetivo de proporcionar o fortalecimento do espaço de educação informal na Cruzada São Sebastião e a disseminação da experiência realizada na Escola Municipal Santos Anjos para outras unidades, outras realidades e outras necessidades escolares da rede municipal. Neste sentido, desde 2004 o Janelas Cruzadas tem realizado uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro, fortalecendo uma gestão que se faz na coletividade entre a assessoria Especial da Secretária de Educação do Município do Rio de Janeiro; as Diretorias de Educação Infantil e de Ensino Fundamental e entre a 2a CRE, coordenadoria responsável por 13 escolas municipais parceiras do projeto. Esta gestão se efetiva na interação continua entre projeto, SME, 2a CRE e diretoras, professoras e coordenadoras pedagógicas das escolas parceiras. 46 O projeto Janelas Cruzadas tem como Eixos Referenciais as Múltiplas Linguagens, as Problematizações e a Memória. Estes eixos pretendem permear todas as propostas e ações. Através das Múltiplas Linguagens, buscamos trabalhar diversas maneiras de lidar com problematizações acerca do cotidiano da sala de aula, do cotidiano escolar, do cotidiano da comunidade, do cotidiano familiar e social. A valorização de Linguagens Plurais, como instigação de outras formas de interagir, utilizando o corpo inteiro para pensar, construir idéias, perceber e interpretar o mundo, integrando as Memórias pessoais e sociais ao processo de ensino/ aprendizagem, à construção de conceitos e saberes e ao exercício reflexivo de valores humanos éticos. As múltiplas linguagens como instrumentos potentes no alargamento do olhar às peculiaridades do estudante, das suas produções e suas relações com o outro e com o meio. Linguagens e lógicas plurais que não são acessadas quando se trabalha apenas a racionalidade e as verdades hegemônicas. No exercício de problematizar questões referentes ao espaço escolar; como também problematizar as reminiscências dos atores desta instituição entrelaçando-as ao currículo e construção de conceitos e saberes, buscamos vitalizar a escola e seus sujeitos na busca de ações que reintegrem a escola à vida. Estes três eixos referenciais – Múltiplas Linguagens; Problematizações e Memória – são instrumentos que viabilizam multiplicidades de percepções e expressões através do exercício da escuta, do olhar, do tato, da observação, do olfato... como formas de interagir com a diversidade e com o pensamento plural. A possibilidade do sujeito exercitar - nos seus diversos modos de pensar; expressar; comunicar; refletir - a afetividade; a valorização de si e do outro; a reflexão critica, através da ludicidade e da superação na consciência também de que não escutamos tudo, não olhamos tudo e que cada sujeito tem uma experiência própria ao interagir com o mundo e suas relações. 47 O projeto Janelas Cruzadas busca o fortalecimento dos sujeitos participantes das ações propostas nas Escolas parceiras e na comunidade Cruzada São Sebastião, através da prática da cidadania que remete à tomadas de posições e exercícios de solidariedades. Faz-se importante uma ênfase à formação continuada de professores e educadores, para que atentos às complexidades, às subjetividades e às delicadezas do trabalho com crianças, jovens e idosos de realidades distintas, estes profissionais possam lidar com questões e sujeitos plurais em diálogo constante. Ao referir-me ao professor, considero este quando em exercício de sua plena docência em escolas formais. Ao referir-me ao educador, penso no sujeito da educação quando em exercício da mediação de espaços educacionais informais, como por exemplo as atividades freqüentemente desenvolvidas na comunidade da Cruzada São Sebastião junto às crianças, aos jovens, aos idosos e aos seus familiares. Todas as ações do projeto têm como meta o exercício da autonomia, da criticidade, da afetividade, na formação de sujeitos atentos às complexidades e diversidades da rede social. Acreditamos que essa formação se dá não apenas no espaço da escola, mas também em outros espaços sociais. Ressaltamos então, a importância de espaços educacionais comunitários extra-escolares inseridos em contextos carentes de referências construtivas e positivas, que favoreçam o exercício de aspectos como a ética, incluindo nesta exercícios de solidariedades; de respeito à diversidade, de criticidade; de auto estima; de cidadania. Espaços educacionais não formais que podem também ajudar no processo de inclusão de crianças e jovens em escolas formais, estabelecendo elos entre famílias de crianças e jovens e escolas formais circunvizinhas. Os saberes, para manterem suas vitalidades, nos sinaliza Linhares, não podem isolar-se nem da história das escolas, nem muito menos das práticas sociais, políticas e 48 econômicas e, sobretudo, da vida dos aprendentes e dos ensinantes que, afinal de contas, alternam e confluem posições.19 As ações do projeto Janelas Cruzadas visam estimular professores e educadores a utilizarem a potência dessa pluralidade de linguagens. Torná-los mais íntimos da mediação de práticas transdisciplinares, na reflexão do Como introduzir atividades provocadoras da curiosidade; da criticidade; das múltiplas formas de perceber e expressar a si próprio e ao mundo, num entendimento de sujeito como ser integral. Na consciência crítica do Para quê / Com Quem / Porque / Quando, refletir o Como e potencializar o professor na reflexão de possibilidades do pensar metodologias, planejamentos e projetos que proporcionem à criança; ao estudante; aos familiares; aos idosos; ao educador... o exercício de diferentes formas de pensar, interagir e se expressar. Na comunidade Cruzada São Sebastião, trabalhamos com dois grupos específicos: um grupo de senhoras idosas e um grupo de crianças e adolescentes. Nos primeiros encontros com as senhoras idosas, quando o projeto ainda se chamava Janelas de Cada Um, perguntávamos: Qual o desejo do grupo?20 A resposta era quase uma unanimidade. Aprender a ler e escrever. O grupo foi sendo instigado com questões que o levasse a concretizar o sonho da Escola. Num exercício de constituírem-se sujeitos ativos e emancipadores21, fomos provocando as senhoras para que conseguissem instrumentos favoráveis à realização deste sonho de Escola. O grupo conquistou um espaço e uma professora através da Paróquia da comunidade e há três anos está aprendendo a ler e escrever. LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades, p.18. O grupo dos idosos começou com a presença de 3 ou 4 senhoras que freqüentavam o projeto alternadamente. Hoje são 41 senhoras idosas que convivem em forma de encontros realizados em oficinas diversas. 21 LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades, p. 19. 19 20 49 Mas a questão do projeto Janelas de Cada Um era uma leitura mais ampla. Leitura de mundo, leitura crítica que instiga a participação do sujeito no meio em que vive, com o pronunciamento de sua voz e gesto. É importante registrar que foram estas senhoras que impulsionaram uma nova metodologia ao Projeto Janelas de Cada Um (hoje Janelas Cruzadas) transformando os encontros com as idosas - que aconteciam na sala da Associação de Moradores da Cruzada São Sebastião - em oficinas volantes. Aos poucos, necessidades dessas senhoras emergiram: o brincar, o divertir-se em passeios, ao invés de ‘ficarem presas em uma sala fazendo coisas com as mãos, fechadas e conversando sobre suas lembranças tão doídas.’22 Fomos percorrendo vários espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, visitando centros de cultura e arte não como turistas, mas produzindo conhecimentos, conceitos, ampliando acervos e repertórios, rememorando e ressignificando o passado. Fomos construindo uma escola maior, rica de mundo. O tempo e as experiências foram nos levando a construir novas necessidades: voltar à comunidade da Cruzada para trocar com os jovens, com as crianças da Escola Municipal Santos Anjos. Se reunir para refletir sobre o visto e revisto, nestes encontros perambulantes. Faz-se importante registrar que estas senhoras tiveram em suas histórias de vida, um mediador na pessoa de D. Hélder Câmara. Sujeito atento ao próprio compromisso político e social no papel de líder religioso. Garantiu-lhes a possibilidade de continuarem morando perto de seus trabalhos, no bairro do Leblon, onde elas e seus familiares eram porteiros, costureiras, babás, domésticas das residências da elite/ Leblon e Ipanema. Num momento político em que a intenção era deslocar os moradores da atual Cruzada São Sebastião (antigos moradores da favela Praia do Pinto) para uma periferia distante e sem estruturas, D. Hélder assegurou-lhes a Informações retiradas de depoimentos das idosas, moradoras da Comunidade da Cruzada São Sebastião. 22 50 possibilidade de manter seus espaços de trabalho e de moradia, fortalecendo estes sujeitos também com a democratização e valorização da importância da educação neste projeto de comunidade, desenvolvido e concretizado por ele a partir da construção da comunidade Cruzada São Sebastião, em 1957 e do Ginásio Comercial Papa João XIII - hoje Escola Municipal Santos Anjos. Ações sociais realizadas em parceria da igreja Santos Anjos, onde D. Hélder trabalhava como pároco e líder religioso/ social. A luta de Dom Hélder, em contraposição à negação da possibilidade de trabalho e estudo, me faz pensar na importância de pessoas atentas às problemáticas e necessidades dos sujeitos que representam a classe baixa do nosso país e do mundo, ou dos sujeitos outros que como aqueles, precisam de mediadores para que retomem a potência de suas vozes e inscrevam suas versões em circularidade. Ambivalências que tencionem a realidade hegemônica através de narrativas de experiências sufocadas em mudez e esquecimento. Como educadora e sujeito político, abraço-me a Benjamin e fotaleço-me nas reminiscências de Jeanne Marie Gagnebin, quando nos fala das reflexões de Walter Benjamin: A verdade do passado reside antes no leque dos possíveis que ele encerra, tenham eles se realizado ou não. A tarefa crítica materialista será justamente revelar esses possíveis esquecidos, mostrar que o passado comportava outros futuros além deste que realmente ocorreu. Trata-se para Benjamin, de resgatar do esquecimento aquilo que teria podido fazer da história uma outra história... tirar do silêncio um passado que a história oficial não conta.23 Os males sociais, nos conta Barbier, alguns inexpurgáveis e trágicos, atirandonos para o abismo, imporão aos homens, movidos por esse ‘evangélio de perdição’ (...), estarem cada vez mais preocupados e cada vez mais aptos a trabalharem juntos para reduzi-los, exorcizá-los ou simboliza-los. (...) Eles estarão aí para incomodar os pesquisadores que acreditam poder apreende-los com os seus pobres instrumentos metodológicos e teóricos.24 * 23 24 GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p. 52. BARBIER, René. 2002, p. 63 e 64. * * 51 No ano de 2002, recebi um convite do Conservatório Brasileiro de Música/ Centro Universitário – RJ, para participar do projeto Buscando Caminhos Através da Arte, realizado em algumas sedes da Fundação Leão XIII: localizadas em Campo Grande, Itaipu e Fonseca. São albergues do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que acolhem adultos e idosos provenientes das ruas. O projeto Buscando Caminhos Através da Arte aconteceu entre março e novembro de 2002. Em agosto de 2003, o mesmo projeto retorna a estas três áreas de atuação da Fundação Leão XIII num fortalecimento e continuidade das ações iniciadas em 2002. Este retorno foi uma resposta às solicitações feitas pelos próprios moradores da Fundação. Oficinas de musicoterapia, artes plásticas, dramatização, corpo e narrativas, são planejadas e realizadas em atividades com a coordenação, a direção, os funcionários, os plantonistas e os moradores da instituição ou os exilados de suas origens e histórias. 25 Estas oficinas são propostas de diálogos com a Fundação Leão XIII e o seu funcionamento cotidiano. No projeto Buscando Caminhos Através da Arte, meu trabalho como educadora, artista e contadora de histórias, é trabalhar com a oralidade e as narrativas que se fazem em múltiplas linguagens. A partir de histórias contadas e trocadas, tento estabelecer diálogos com os moradores desses albergues, que se encontram numa realidade desumana e desvitalizada. Muitos desses senhores e senhoras tomam remédios que os deixam com olhos caídos; outros nunca falam e, é comum que não tenham um fazer lúdico ou expressivo no seu viver. Ficam em salas olhando as paredes vazias ou nas áreas abertas com olhares perdidos, sem foco, sem atividade, sem construção. Impotências afirmadas em gestos de solidão, em convívios naturalizados entre tuberculoses, sífilis, aids que não são, em muitos casos, nem reconhecidos, nem medicados ou acompanhados. Assistir à televisão ininterruptamente, sem conversar sobre o visto e o revisto, faz-se como uma rotina. 25 Os funcionários da Fundação chamam os moradores deste estabelecimento de clientes ou usuários. Quando me reportar a eles neste trabalho, estarei localizando-os como sujeitos exilados ou moradores (da Fundação - CRS). 52 Pergunto-me constantemente: O que eles querem na vida? O que quero com eles? Percebo, que quero que eles possam deitar-se e sonhar, trocar com quem está ao seu lado, alimentar-se de humanidade, de vida, de afeto, de expressão, de significações, de respeito e não apenas comer e dormir. Espero vê-los suavizando seus cotidianos, injetando vida naquilo que parece ser uma via de morte. Mas também ajudá-los a reconstruírem a necessidade e vontade do eu caçador de mim26, como um constructor social, histórico – existente como possibilidade em cada um. Ainda que como Fênix, possamos refazermo-nos das cinzas e potencializarmo-nos naquilo que há de mais ético e criador em nós mesmos. O meu objetivo neste trabalho com a Fundação Leão XIII/ Campo Grande, é a interação com estes senhores e senhoras e, com esta instituição que os acolhe ou os recolhe. Dialogar com suas dores e limites. Percebê-los e estar atenta para saber quando introduzir histórias, brincadeiras, músicas, jogos, desenhos, poemas... trabalhando o imaginário, os sonhos... no intuito de que possam fazerem-se orgulhosos de si por recordarem-se construtores de saberes e de vida. O diálogo não é apenas uma técnica para conseguir melhores resultados, não é uma tática para fazer amigos ou conquistar alunos. Isso não seria diálogo e sim manipulação. Para Paulo Freire, o diálogo faz parte da própria natureza humana. Os seres humanos se constroem em diálogo. Para ele, o momento do diálogo é o momento em que os homens se encontram para transformar a realidade e progredir.27 Neste diálogo, faz-se fundamental estar atenta às brechas que possibilitam o encontro da delicadeza com o rigor da não omissão. Tenho aprendido e, confesso ser exercício constante, buscar formas delicadas e firmes de dialogar com esta instituição e estes sujeitos exilados, na tentativa da construção de convívios mais humanos e significativos. 26 27 Referência à canção do compositor Milton Nascimento. GADOTTI. 1989, p. 46. 53 Como educadora e artista, quero realizar um trabalho de educação, onde não só exercite meu olhar, mas empregue meu corpo e sentidos em favor do outro. Um trabalho onde a consciência crítica esteja presente e a transformação seja uma meta. * * * Em 2002, chegou até as minhas mãos uma carta escrita por um andarilho que percorre o bairro de Copacabana, num trajeto entre a rua Hilário de Gouveia e a Av. Atlântica. Este senhor foi criado por uma família judia abastada, estudou em instituições educacionais até certa época e aprendeu com fluência o inglês por ser umas das línguas de uso no convívio familiar. Sr. Luiz, um andarilho que hoje vive nas imediações do bairro de Copacabana, morou também nas ruas de São Paulo, Curitiba e há alguns anos mora nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Dorme na praia durante a manhã, passa as noites acordado e estuda em bibliotecas públicas. Gosta muito de literatura e especialmente de Dostoievski. Diz ser a rua o seu lugar de maior aprendizado. O andarilho, Senhor Luiz, escreveu uma carta para a administração da paróquia que freqüenta: Paróquia de Nossa Senhora de Copacabana – Missão Popular, reivindicando a distribuição de alimentos para os miseráveis e, aproveitou este documento escrito, para oferecer seus serviços como tradutor. Os membros da paróquia lhe ofereceram um lugar em um albergue, para que ele se retirasse da rua. Ele preferiu continuar na sua condição de andarilho a estar em casas de recolhimento. Em anexo, coloco a carta citada. Foi esta correspondência que estabeleceu o primeiro contato direto entre o andarilho e a paróquia. A carta revela formas de viver daqueles que estão na rua e suas necessidades. Traz também o outro mundo, o dos homens civilizados. Lendo o seu texto, identifico uma polifonia de vozes. Lembro-me do autor citado como um de seus preferidos e, penso na complexidade que vivemos. A carta do Sr. Luiz faz com que me volte, numa 54 atitude de escuta, interação sensível e troca, às pessoas que se encontram nas ruas, resistindo aos albergues. 55 alguns portos e um horizonte que se alarga capítulo 3 56 Alguns portos e um horizonte que se alarga: Objetivos Acreditando que a formação de professores não se dá exclusivamente pelas passagens institucionais, volto a me interrogar: Como nossas memórias pessoais e sociais podem nos ajudar a dialogar com a vida e a construir Escolas onde todos e todas possam empenhar-se numa inclusão crescente? O que significa incluir a todos? No avesso dessas procuras, que fecham na escola e nos professores os saberes docentes, talvez pudéssemos indagar se nestes não estariam incorporados tanto os saberes dos que já foram à escola, como daqueles outros que nunca estiveram nela. Tanto os saberes populares, domésticos, familiares, religiosos e políticos, como os eruditos, científicos, filosóficos, artísticos, tecnológicos...28 Pretendo fazer um entrelace entre os interlocutores desta pesquisa que pensam/ vivem educação em seus fazeres profissionais (aqui representados por professores e gestores das 13 Escolas parceiras do projeto Janelas Cruzadas e SME – RJ) e senhores e senhoras que se encontram exilados na Fundação Leão XIII, como também moradores de rua que resistem aos abrigos e casas de recolhimento. Proponho, utilizar-me destas experiências colhidas e construídas em polifonia com estes senhores e senhoras que aqui representam uma das tantas formas de exclusão social, para problematiza-las em textos que possam servir de instrumento de favorecimento, a reflexões referentes ao sistema escolar; à gestão de abrigos públicos e a outros sujeitos e espaços institucionais que possam se interessar por este trabalho aqui sistematizado em reflexões dialógicas. LINHARES, Célia Frazão Soares. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. In: Movimento: revista da faculdade de educação da universidade federal fluminense. Profissão docente: teoria e prática no 2, setembro de 2000. Publicação semestral. P. 37. 28 57 No ensejo de que esta pesquisa possa colaborar na ação de repensar estruturas administrativas, pedagógicas, metodológicas, humanas e políticas em escolas formais e abrigos, proponho debruçar-me às narrativas dos que não puderam entrar ou permanecer na escola formal, atenta a percepção de ambigüidades e contradições, na busca de pontes entre os que estão dentro e os que estão fora da Escola. O que falam estas pessoas excluídas e como suas narrativas podem ser problematizadas de maneira que ecoem reflexões e ações de transformação ética, criadora e inclusiva, nas escolas. Nas frestas da instituição escolar, a Escola procura outros sentidos para se organizar e se legitimar socialmente: A escola da vida, está aí, penetrando e pedindo espaços na Escola.29 Em interação com memórias, acervos, narrativas, reminiscências de sujeitos aqui representantes da exclusão Escolar, estarei à procura de fissuras presentes nesta instituição, na busca de favorecer a construção de propostas e práticas de uma educação inclusiva e plural. E como nos sinaliza Nanci Nóbrega, precisamos estar atentos e cuidadosos com trabalhos que exigem complexidades, já que como educadores/ pesquisadores somos conhecedores de que é um trabalho maldito/ bendito este com acervos: implica competência científica e clareza política. Implica refletir e praticar competentemente a preservação e a organização, aquilo que dá origem aos registros, às marcas do caminhar humano – o atributo técnico deste fazer. E, ao mesmo tempo, refletir e praticar seu potencial modificador, o de transformar a realidade – seu atributo político.30 Nesta interligação entre os que estão fora e os que estão dentro da Escola, busco pistas e caminhos que possam sugerir e apoiar políticas públicas voltadas para a importância da criança e da velhice. Esta, no que diz respeito aos abrigos; aquela, no que diz respeito à Escola. A minha trajetória de vida como educadora, será assumida como um instrumento de mediação deste diálogo em circularidade de vozes. Como apoio reflexivo e critico, estarei atenta a instigações e ponderações provocadas pelos 29 30 LINHARES, Célia. Observações da orientação coletiva/ 2o semestre de 2004. NÓBREGA, Nanci. 2002, p. 127. 58 estudos dos teóricos e pensadores que se fazem presentes nesta pesquisa dialógica. O projeto desta pesquisa tem como objetivo fazer-se escuta, observação, percepção de complexidades, na tentativa de encontrar rumos, direções, pistas que instituam caminhos para outras formas de se educar e de constituir Escolas plurais e includentes, em interação com a vida. Como estas histórias compartilhadas podem flagrar caminhos para o fortalecimento de Experiências Instituintes na educação popular? 59 pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da escola formal capítulo 4. 60 Pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da Escola: Metodologia Quais conectivos me levariam a uma metodologia aberta, plástica; originária do barro por se metamorfosear entre diálogos com os movimentos multiformes e multidirecionais da vida? Procurando respostas para os mistérios da existência, o homem, já na pré-história, caminha e interage com o entorno, movido por uma pergunta primordial que atravessa toda a existência humana. Questão esta, que experienciada entre gerações e gerações, através de modos plurais, se mantém a mesma, por milênios e milênios: Qual o sentido do - por que - e do - como - das coisas? Na tentativa de respondê-la, o homem vai configurando formas e se reconfigurando, através de numerosas tentativas de perceber os sentidos da vida. E são justamente eles – os sentidos – que nos possibilitam contemplar hoje, as obras rupestres feitas há 50.000 anos pelos nossos ascendentes e, percebermo-nos comovidos, tocados e re-ligados em nosso misterioso âmago. Penso na beleza, que ultrapassa os aspectos funcionais mesmo naquelas configurações oriundas das necessidades as mais pontuais. Esta beleza fundamental, como nos diz Ostrower (1998), capaz de redimensionar nossas relações e vínculos. Volto-me às nossas cavernas e galerias, magicamente gravadas por imagens que acreditávamos ajudar-nos na difícil e fundamental tarefa da caça e, inspirada por Fayga, penso na extrema beleza desses registros. A necessidade de o Homo Sapiens capturar o outro como fonte de alimento vital e, a admiração e respeito pelo vigor, pela graciosidade, pelos mistérios e pela força deste outro, dá a estas gravuras, a dimensão da beleza que 61 carrega vínculos, afetos, necessidades, respeitos e mistérios. A beleza que acorda em nós o senso estético, como conseqüência de uma ética. E é apoiada nesta plasticidade que nos re-configura a cada instante, que busco uma metodologia atenta aos sentidos expressos e impressos; escritos e inscritos em mim e, nos sujeitos e espaços com os quais me faço em interlocução. Metodologia aberta porque se metamorfoseia, atenta à importância de refletir a produção dos sentidos, em cada gesto possível de ser reelaborado, resignificado ou afirmado, através de encontros e relações polifônicas. Metodologia que nos convida a entranharmo-nos e a estranharmos os nossos próprios movimentos. Para que isso se faça possível, destaco a importância em nos distanciarmos de nossa emotividade crua, ainda que extremamente ligados a ela, nos façamos ligados ao outro. Mas, através deste distanciamento, a possibilidade de contemplarmos a nós mesmos e ao entorno, na perspectiva da contemplação como uma ação que reflete, que afeta e que se possibilita afetar-se. Neste sentido, como instrumentos metodológicos e pedagógicos, tenho organizado encontros com entrevistas, contação de histórias, bate papos informais e dinâmicas que utilizem múltiplas linguagens como formas de promover interações com os sujeitos interlocutores desta pesquisa, na busca de estimular a expressão do fluxo de rios contidos, onde se coagulam memórias, narrações e vozes de vários tons e matizes.31 Na busca de espaços de interlocução entre as realidades plurais com as quais interajo, proponho-me a interagir com os sujeitos e com os espaços institucionais interlocutores, sustentada em alguns aspectos, tais como: → a importância da memória como possibilidade de historicizar a história oficial, recontada, à medida em que tencionamos verdades e Sugestões realizadas pela professora e orientadora Célia Linhares, na orientação coletiva – 2o semestre de 2004. 31 62 acrescentamos à esta história, narrativas de experiências muitas das vezes desconsideradas como valorosas. → a inclusão, na perspectiva da escuta e do pronunciamento de todos e de todas e, o respeito pelos pontos de vista, experiências, lógicas e demandas plurais, de maneira que as hierarquias sociais possam experienciar seus papeis, em convite para que este outro se faça presente com sua voz, ótica, linguagem e acervos próprios. → o exercício de problematizar o cotidiano, tencionando questões, ações e acontecimentos no sentido de podermos ressignificá-las e a partir delas, estar atentos à importância de se re-configurar metodologias, pedagogias, idéias e procedimentos, alertos às tantas demandas que se nomeiam como importantes e que outrora, eram desapercebidas pela possível imposição de questões que não diziam respeito às demandas reais de cada grupo. → as múltiplas linguagens, como possibilidade de lançar perguntas à nós, ao outro e ao nosso cotidiano, em convite para que as reflexões possam ser feitas através de instâncias que instiguem o sujeito a vivenciar experiências inteligíveis através da suas múltiplas potencialidades sensoriais, ordenando-se e expressando-se em dimensões que expandam o pensar para além da racionalidade. → a importância da estética, como dimensão ética que dá materialidade à sensibilidade ordenadora e significadora do ser humano, em respeito às formas plurais pelas quais são experienciadas a capacidade humana de criar formas expressivas. → a consciência de que a própria natureza do ato de criar é a possibilidade de correr riscos, o que torna imprescindível a compreensão desta categoria do risco como uma intenção primordial: arriscar-se sempre, como um exercício ético frente às implicações do viver. → a incompletude que nos leva a ampliarmo-nos e refazermo-nos com o outro, em convites de aprendizados, de cuidados e de atenções para con- 63 fiarmos na importância dos processos – como construções e devires – e nas pessoas, como relações afetuais imprescindíveis. → os limites como áreas indicativas de urgências e de demandas. Sem eles, talvez se fizesse mais difícil percebê-las, por estarem - estas demandas e urgências – muitas das vezes invisíveis diante das tantas acomodações cotidianas. Também a importância do limite como fonte inesgotável para a criação de outros modos e de outras perspectivas. → as entrevistas ou depoimentos registrados foram reflexos das ações pedagógicas realizadas por Isabel Reis através dos projetos Janelas Cruzadas e Buscando Caminhos Através da Arte e, portanto, foram sempre realizadas após vínculos serem estabelecidos entre a arte-educadora pesquisadora e os interlocutores. No sentido de melhor compreender as complexidades da relação com cada interlocutor, as próprias interações se faziam como indicativos de quais questões poderiam e deveriam ser propostas aprofundamento desses mesmos vínculos. como instigadoras Questões que de indicavam possibilidades de refletir e de tensionar a realidade de cada interlocutor, sempre atenta aos limites indicados pelos interlocutores e pelo espaço do qual fazem parte. Desta maneira, as questões geradoras das entrevistas e das atividades propostas, iam se configurando durantes as próprias ações pedagógicas dos nossos encontros. → a retidão para que a pesquisa de dissertação de mestrado não se faça protagonista, visto que a metodologia desta pesquisa é uma conseqüência dos objetivos de cada ação pedagógica experienciada entre mim, como educadora/ artista e, os espaços nos quais trabalho, através de diálogos polifônicos com os sujeitos interlocutores. E são todos esses, os protagonistas que sinalizam demandas para que a metodologia se re-configure através de formas grávidas de sentidos. 64 → Nesta mesma perspectiva, faz-se imprescindível registrar que, as instituições parceiras e interlocutoras5 se empenharam para que transformações não fossem programadas, mas resultassem de processos transformadores das partes e do todo. Ao invés de programações, deixar que as demandas dos professores; dos estudantes; das instituições; dos senhores e senhoras moradores dos abrigos, das ruas e da comunidade Cruzada São Sebastião e, a própria vida, programassem cada passo metodológico. → atentos à questão da autonomia, os professores; os estudantes; os senhores e senhoras moradores do abrigo CRS e as senhoras moradoras da comunidade Cruzada São Sebastião, tiveram respeitado, o direito de serem os primeiros a terem acesso aos relatórios e aos textos que registravam reflexivamente questões referentes às ações pedagógicas dos projetos Janelas Cruzadas e Buscando Caminhos Através da Arte. Da mesma maneira eram estabelecidas relações com outros interlocutores, como as ações realizadas nas ruas pela educadora Isabel Reis, por serem importantes na ampliação da compreensão da educadora em relação a problemáticas que surgiam nas interações com senhores e senhoras da Leão XIII, ações estas realizadas de forma voluntária independente. Apenas depois que cada uma dessas pessoas – co-autoras – tiveram acesso a cada texto elaborado (a partir dos seus depoimentos) e após os ajustes sugeridos pelo co-autor serem realizados, estes textos, quando liberados por estes co-autores, eram transformados em capítulos para a pesquisa dissertativa ou, em relatórios mensais e semestrais para o projeto Janelas Cruzadas. Somente após este processo se efetivar, os capítulos e relatórios são6 apresentados para as instituições parceiras (Secretaria Municipal de Educação, 2ª CRE, Fundação Leão XIII, Conservatório Brasileiro de Música e UFF). Programa Crer para Ver; Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente; Natura Cosméticos; Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro; 2ª Coordenadoria Regional de Educação-RJ; Conservatório Brasileiro de Música; Fundação Leão XIII e Instituto Pé no Chão 6 Ainda hoje a SME-RJ e a 2ª CRE, aguardam a leitura e reflexão dos relatórios por parte das professoras, para então ter acesso aos mesmos. Em comum acordo com as partes, foi estabelecido um prazo para que a leitura das docentes e possíveis correções e ajustes se façam. 5 65 A cada texto escrito nesta dialogicidade, procuro meios que garantam o respeito à vontade de cada co-autor ter – ou não – ter seus escritos coletivos em circularidade, entre os diversos espaços de interlocução e entre os diversos sujeitos co-autores desta pesquisa. Quando autorizada a circulação, após o intercambiamento e a reflexão dos textos apresentados nos diversos espaços interlocutores se efetivar, eles retornam aos espaços de origem com outros olhares reflexivos que podem se somar ao texto e mais uma vez, circular, na busca de que essas narrativas possam reverberar no cotidiano de cada espaço/sujeito participativo e co-autor. A única exceção foi o Programa Crer para Ver que, antes de todos os demais parceiros, teve acesso aos relatórios mensais e semestrais organizados por mim, na condição de coordenadora do projeto Janelas Cruzadas7. Material este que reúne reflexões dos professores e estudantes, parceiros do projeto Janelas Cruzadas, e de membros da equipe do projeto. Isto se deu, visto que sempre estávamos com as agendas tensionadas por prazos de prestações de contas que caso não fossem cumpridos junto ao financiador, poderia ter interrompido – ainda que temporariamente – o desembolso dos recursos e conseqüentemente, comprometido a realização do projeto. Mas esta exceção foi feita em acordo com as professoras parceiras e com o órgão responsável pelas escolas públicas parceiras do Janelas Cruzadas. Embasada nestes aspectos metodológicos optei por dividir a dissertação em três partes, que se organizam da seguinte maneira: Parte I cap. 1. Rumos iniciais - os que não couberam na escola querem abertura entrar: das relações portas de sociais. poder no Introdução. Coordenação do projeto Janelas Cruzadas: 1º semestre de 2004: Isabel Noemi Campos Reis e Helena Jacobina Campos. 2 semestre de 2004; ano de 2005 e ano de 2006: Isabel Noemi Campos Reis. 7 fechamento e na É apresentada a 66 problematização da pesquisa como proposta de refletir a política educacional brasileira através da aproximação de algumas instituições que lidam com idosos marginalizados - hoje moradores de abrigos públicos e de ruas - na perspectiva de tensionar as complexidades destas organizações com questões hoje presentes no cotidiano escolar. Através do confronto destas realidades, buscar dimensões que ajudem a compreensão de mecanismos opressivos no sentido de abrir portas ou brechas favorecedoras de políticas inclusivas de qualidade. cap. 2. Soltando as velas, mas para onde ir? Justificativas. Reflexões sobre algumas complexidades da escola formal e das escolas que são os movimentos cotidianos da informalidade do viver. A partir da relação da pesquisadora com estes contextos que se fazem como espaços de aprendizagens, são apresentados também o Projeto Janelas Cruzadas e Buscando Caminhos Através da Arte, como espaços que favorecem a interlocução desta pesquisa com educadores e estudantes de 13 escolas da rede Municipal da cidade do Rio de Janeiro, como também com senhores e senhoras moradores de abrigos públicos do estado do Rio de Janeiro; moradores das ruas; e moradores da comunidade da Cruzada São Sebastião, favela situada no bairro do Leblon. cap. 3. Alguns portos e um horizonte que se larga. Objetivos. O porque dessas narrativas plurais como matéria prima fundamental, para refletir a respeito das políticas públicas educacionais. cap. 4. Pontes entre os que estão fora e os que estão dentro da escola formal. Metodologia. A pesquisadora apresenta os pilares metodológicos desta pesquisa e das ações pedagógicas realizadas com os espaços/ sujeitos interlocutores: co-autores desta pesquisa. cap. 5. Companheiros de travessias e de travessuras. Revisão de literatura. São apresentados alguns teóricos que também se farão presentes como interlocutores, dentre os quais: Célia Linhares, Paulo Freire, Zygmunt Bauman, Benjamin, Giorgio Agamben, Ecléa Bosi, Adélia Prado, Carlo Ginzburg, Fayga Ostrower, dentre outros. 67 Parte II caps. 6, 7 e 8. *Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo com os raízes sujeitos e da pesquisa alvoradas / / *Mão *Buscando na massa, caminhos. buscando Narração e problematização de algumas experiências vivenciadas com senhores e senhoras do Centro de Recuperação Social/ Campo Grande - Fundação Leão XIII. caps. 9. Vida em retalhos. Aqui é o próprio sujeito que pega a caneta e narra a sua história que vai deste passagens por escolas, trabalhos informais e formais, até a estada pela rua e pelo CRS (abrigo público), como moradas. caps. 10. No tabuleiro do Brasil – entre versos e reversos. Narrativas de senhores abrigados e de funcionários do CRS – unidade Campo Grande, se entrelaçam no sentido de refletir aspectos políticos referentes a esta instituição. caps. 11. Outras formações. Experiências vividas por um senhor, morador de rua há 40 anos, nos mostra peculiaridades de um sistema precário no que diz respeito às condições básicas de vida, mas que ao mesmo tempo se faz como sistema vanguardista, no que diz respeito à reinvenção de metodologias e de aprendizagens sustentadas pela arte e por redes de solidariedades. Caminhos para escolas e abrigos repletos de pontes, de ruelas de estradas e de vielas entrelaçadas com a vida. Ao mesmo instante, este capítulo traz conversas entre uma educadora e um inspetor policial, revelando estratégias para a formação militar da atualidade, sustentada pelo terror e pelo medo oriundos do poder e influência da cultura do tráfico, que junto a indícios de desejos e possibilidades de uma escola maior, plena de vida e acolhimentos, nos fortalece na busca da afirmação da escola formal como referência fundamental para a formação. caps. 12. Laços que enlaçam. Fazendo-se como um fio que convida entrelaces de experiências como tessituras, a pesquisadora Isabel fia 68 especificidades de sua própria história em consonância com saberes, sabores e dissabores de sujeitos e de instituições plurais, na busca de sentidos para uma conversa polifônica que sonha com a vida como possível para todos e todas. Parte III caps. 13. Para não concluir o bordado. Inspirada por uma carta dirigida a uma igreja e escrita por um morador de rua que reivindica cuidados para os cidadãos moradores das calçadas, a pesquisadora Isabel Reis vai pinçando questões destacadas por este senhor, como urdimento das tantas questões explicitadas pelos interlocutores desta pesquisa, no sentido de debruçarmo-nos a complexidades que envolvem a questão da aprendizagem; da evasão escolar; dos conteúdos escolares; das práticas metodológicas... como vias que nos convidam e nos instigam a estarmos mais alertas, abertos e fortalecidos na pavimentação de outras escolhas que possam configuram outras escolas e pedagogias. . . . Fortalecida por estas experiências polifônicas, debruço-me, como educadora e artista, ao potencial da arte, como instrumento poderoso para tocar as sutilezas do ser, inscritas em seu corpo, alma, espírito e expressas ou impressas no imaginário pulsional32, no imaginário social, no imaginário sacral, como bem nos lembra o Barbier. E é ele mesmo quem me reafirma o sentimento de pertencimento a um grupo – como artista e pessoa do sensível que busco ser – Freud se refere às pulsões sexuais: o recalcamento (defesas do eu / pulsões do eu – pulsões sexuais recalcadas e pulsões sexuais recalcantes); a sublimação (desviar o trajeto da pulsão, mudando seu objetivo: substituição do objetivo sexual ideal – incesto – por outro objetivo, não sexual, de valor social. Ex. as realizações culturais e artísticas, as relações de ternura entre pais e filhos, os sentimentos de amizade e os laços sentimentais do casal) e a fantasia (consiste não numa mudança de objetivo, como no caso da sublimação, mas numa mudança de objeto. No lugar de um objeto real, o eu instala um objeto fantasiado, como se, para deter o ímpeto da pulsão sexual, o eu contentasse a pulsão enganando-a com a ilusão de um objeto fantasiado. Dando seguimento a estas reflexões, Freud mais tarde irá falar das pulsões de vida e pulsões de morte em lugar das pulsões do eu que desaparecem da sua teoria com a descoberta do narcisismo. In Nasio, Juan-David,1999. p. 54-56 e 69-72. 32 69 quando lembra que a poesia, como ressalta Edgar Morin, é palavra do Arqué-Espírito33, liberada simultaneamente do mito e da razão, trazendo em si mesma a união de ambos.34 No intuito de expor um pouco as experiências metodológicas aqui expostas, destaco uma conversa que ocorreu entre mim e Ana Lúcia, a diretora da escola Municipal Júlia Kubitschek – uma das escolas parceiras do Janelas Cruzadas – quando refletíamos sobre o estranhamento de uma atividade vivenciada por professores regentes desta escola de Educação Infantil. Proposta realizada com o enfoque de tensionar ações naturalizadas do cotidiano, através de algumas instigações feitas por jogos e problematizações da linguagem dramática. O estranhamento foi percebido quanto à possibilidade do uso das múltiplas linguagens na metodologia de professores regentes que, não tiveram formação específica em artes. Neste sentido, fomos falando eu e a diretora – Ana Lúcia Machado – sobre conflitos e sobre dúvidas que visitam os professores e os gestores desta escola e, juntas, fomos buscando a aproximações das múltiplas linguagens às relações do cotidiano escolar e especificamente, da sala de aula. Esta conversa surgiu após o projeto Janelas Cruzadas realizar atividades no 2º semestre de 2004, em parceria com a SME-RJ, mediações feitas também por professoras de Artes (regentes), da rede municipal, na dinamização de Grupos de Estudos de algumas Escolas parceiras do projeto. Após a realização de um encontro que enfocou o olhar, trabalhando o corpo na sua totalidade, muitas questões instigaram a diretora e o grupo de professoras da Escola Júlia Kubtschek.35 Ao perguntar a Ana Lúcia qual o motivo das aflições que ela expressava para mim, obtive resposta cuidadosa na 33 Arqué ou arché, segundo Barbier, é palavra grega que significa, segundo Aristóteles, princípio ou fonte ou causa. In BARBIER, René. 2002. p. 70. 34 Idem. p. 70. 35 Márcia Ferreira é professora desta escola e foi a educadora responsável – junto à coordenação do projeto Janelas de Cada Um – pela realização de atividades com crianças, jovens e idosos da comunidade Cruzada São Sebastião na época do projeto Janelas de Cada Um. Ela integra há 10 anos a equipe docente da Escola Municipal Julia Kubtschek e foi a responsável pelos contatos iniciais da gestão do Janelas Cruzadas com esta Escola, quando em 2004 o projeto expandiu suas ações a outras unidades escolares da rede municipal. (coordenação do projeto Janelas de Cada Um: Isabel Noemi Campos Reis e Helena Jacobina Campos. 1998 e 1999 / 2000 e 2001) 70 intenção de afirmar o quanto o grupo docente tinha gostado do trabalho, pela maneira como a mediadora – Patrícia Alves Silva – se integrou com todos e como propôs as dinâmicas. Mas foi também com intensidade, que a diretora da escola foi expondo aflições que não eram apenas dela: - Ficamos pensando ontem o dia todo e, ainda hoje: Como podemos utilizar estas práticas na sala de aula? Também pensamos que o trabalho proposto com o olhar funcionou, porque o nosso grupo tem uma cumplicidade e afetividade muito grandes. Como seria trabalhar esta questão do olhar com um grupo que tem divergências e conflitos de relações? Como tudo isso que vivemos pode ser trabalhado com crianças de Educação Infantil? Para que vivenciamos e como iremos aproveitar essas práticas na sala de aula? Para vocês artistas, tudo isso é natural. Mas vejo essas coisas tão distantes da gente. Foi maravilhoso, mas deixou muitas questões e dúvidas na gente. Então, fomos conversando: o cuidado de enfocar a importância dos conflitos que podem emergir ao vivenciarmos algo que instiga e que desloca algumas questões, de lugares antes acomodados; a importância das dúvidas que sinalizam buscas e inquietações de cada um e do grupo; os desafios das dúvidas promovem diálogos e interações com o proposto e o vivido, experiências que não se esgotam no término da atividade. Também importante pensarmos que nós educadores somos pessoas e, portanto, experienciamos como sujeitos e não como professores que irão aprender práticas a serem replicadas. Sujeitos que são tocados, instigados nas suas complexidades e subjetividades, exatamente como os estudantes nas suas questões peculiares e/ou coletivas. Assim, fomos nos aproximando da questão inicial: “Para que vivenciamos e como iremos aproveitar essas práticas na sala de aula?” 71 E neste sentido, juntas, fomos refletindo a potência destas experiências mexerem e instigarem maneiras diversas de sentir, de ler e de expressar o mundo. Interagir, pensar, criar através de corporeidades antes não exercitadas, ou exercitadas intuitivamente, sem a consciência da sua existência ou importância. Poderão os processos vivenciados durante e após as dinâmicas propostas, fazerem-se presentes nos planejamentos dos professores? Creio que sim, de forma direta ou indireta, nas várias maneiras de cada um se apropriar, fortalecer seus caminhos já traçados, refletir, ampliar horizontes na descoberta de outras lógicas e possibilidades. E sendo tocado, o professor poderá tocar o outro. Mais uma vez salta à conversa, a questão grávida de dúvidas e movimentos: “Como seria trabalhar a questão do olhar, com um grupo que tem divergências e conflitos de relações?” Fomos refletindo sobre o dia a dia da sala de aula e os planejamentos que freqüentemente encontram-se com outras necessidades emergentes, sinalizadas pelo grupo. Esta imprevisibilidade, tão natural no cotidiano do professor, ao mesmo tempo é tratada, às vezes, de forma artificial, forçada; pela maneira do professor e da escola relacionar o planejamento à vida. Acredito que a proposta planejada pela mediadora, que se propõe em trabalhar o olhar, não difere em nada das relações do cotidiano do professor, seja na Educação Infantil; seja no Ensino Fundamental; no Ensino Superior ou no trabalho com outros grupos e instituições que assumam a responsabilidade de dialogar com complexidades da relação humana e do ser individual/ coletivo. Poderia dizer que planejar significa perceber a necessidade de ações e destacar possíveis desdobramentos a serem instigados? Significa pensar objetivos oriundos de necessidades? De onde vêm estas necessidades? 72 Como refletir, atenta às complexidades que trançam demandas e objetivos dos gestores e dos diversos sujeitos que interagem nas instituições de convívios, de aprendizagens e de superações? Como lidar com a proposta planejada e com necessidades que, na socialização, apontam outros caminhos e/ou afirmam caminhos pensados? Volto-me à questão pronunciada por Ana Lúcia, em questionamento da possibilidade de se planejar um trabalho com o olhar - por exemplo - e brinco de imaginar o momento de propor e experienciar a aula, percebendo que o grupo apresenta problemas de divergências e conflitos de relações. Penso ser possível preparar o grupo para que se faça possível experienciar a percepção do olhar. Pode-se também deixar esta proposta para um outro momento. A sensibilidade reflexiva e a atenção do professor ao grupo, como um leitor constante de si e do outro, indicarão maneiras de lidar com o planejamento. Neste sentido, movida pelas instigações trazidas pela diretora desta escola, pergunto: Quais as similaridades: da maneira do gestor lidar com a instituição e com os sujeitos que a compõem; da maneira do professor lidar com a sala de aula/ cotidiano escolar e sujeitos que nela convivem; e da maneira como o mediador/ pesquisador lida com os sujeitos/ objetos de estudo, da pesquisa? Neste sentido, percebo o próprio mediador como objeto. As reflexões da diretora e dos professores regentes desta Escola Municipal ampliaram a vivência com a mediadora que propunha atividades e, assim, os encontros e desencontros vão cumprindo o seu destino, graças à generosidade e comprometimento da gestora da Escola, que não somente constrói con-fiança e afetividade com o grupo, mas compartilha construções também com o projeto Janelas Cruzadas, expondo suas questões e as do grupo que representa, pela crença no movimento. Crença naquilo que constantemente se faz e se refaz através da interação. Neste sentido, percebo ser a metodologia proposta nesta pesquisa de mestrado, reflexo da minha trajetória profissional e de vida, quando ainda 73 adolescente – movida pela intuição, pela crença no diálogo e pela crença na gestão democrática – pude experienciar os primeiros passos daquilo que hoje localizo como pesquisa-ação e como pesquisa-intervenção. Conforme narrado no capítulo anterior a este, ainda adolescente no curso ginasial, em busca de perceber as minhas necessidades de estudante e de conhecer as necessidades dos colegas, fui, junto aos companheiros de turma, negociando com a professora de língua portuguesa outras formas pedagógicas para aquela escola na qual estudava. Sem saber explicitar as razões, exercitava aquilo que hoje se faz vital na caminhada que estabeleço como educadora e artista: imbricar-me aos interlocutores – que por ora apresento aqui como objetos de interação ou sujeitos co-autores desta pesquisa de mestrado – ressignificando-nos em diálogo constante com o viver. Também junto às crianças da favela Saramandaia – experiência narrada também no capítulo anterior – pude não somente dar continuidade a este exercício de percepção fina imbricada à interação entre sujeitos, vida e complexidades, mas fundamentalmente, comecei a processar de maneira consciente, esta metodologia sensível que acredita na importância do desenvolvimento humano tanto no plano individual como no grupal, como nos lembra Barbier36 e, neste sentido, como mediadora, me incluo como eterna aprendiz nos dois planos. É em escuta ao próprio Barbier que me fortaleço, ao saber que a pesquisaação integral de André Morin (1992) trata-se de um tipo de pesquisa por, para, sobre e – sobretudo – com os atores, amplamente implicacional, sem excluir o rigor metodológico. Escrita propositadamente numa linguagem simples, a obra sobre a P-AI [pesquisa ação integral] visa a que os atores de todas as condições sociais possam planejar, organizar e realizar eles mesmos as mudanças de um modo consciente, livre e inteligente com o máximo possível de reflexão37 e de sensibilidade. 36 37 BARBIER, René. 2002, p. 71. Idem. p. 77. 74 Vejo nas múltiplas linguagens, a possibilidade de estabelecer diálogos na tríplice escuta-ação, que enfatiza a importância dos planos científico, filosófico e mitopoético38, na crença do ser humano como ser total, integrado a todos os seus sentidos como potencialidades das linguagens do viver. Numa avaliação constante e permanente, vou estruturando os procedimentos metodológicos ao dia-a-dia, através dos sinais; das respostas; das não respostas, que tanto respondem. Indicadores de caminhos, de maneiras, de necessidades que clamam por serem cuidadas, refletidas, atendidas – no sentido de dar atenção, de debruçar o olhar e a alma de pesquisadora implicada nestas tantas relações e contextos com os quais busco interagir em atitude política; pedagógica; reflexiva e sensível. Como a escuta e a percepção de peculiaridades de cada um destes espaços com os quais interajo, podem representar contribuições para que a escola formal hoje possa constituir-se mais includente, no sentido de não negar o ser humano e de lidar com sua diversidade na forma de ensino, de aprendizado e de superação? Como a escuta (percepção – ação) dos sujeitos que compõem o complexo espaço da Fundação Leão XIII (CRS – unidade Campo Grande), pode significar avanços reais na gestão desta instituição e, no amadurecimento reflexivo das metodologias assumidas pela instituição junto aos abrigados? Como a escuta (percepção – ação) de pessoas que resistem em estar nas instituições responsáveis pelo abrigo de sujeitos considerados como marginais sociais e, também a escuta de pessoas que vivem e convivem em abrigos e casas de recolhimento, pode refletir construtivamente, nas escolas formais, nos abrigos sociais e nas políticas públicas, possibilitando reflexões e ações políticas, ideológicas, sociológicas, metodológicas face à problemática dos sujeitos excluídos? 38 Idem. p. 69. 75 Como a mediação de pontes de diálogos entre os sujeitos interlocutores desta pesquisa, pode fazer-se em polifonia de vozes produtora de sentidos? A metodologia do trabalho que realizo, é uma metodologia aberta, por pretender eixos referenciais e objetivos claros – citados anteriormente – ao mesmo tempo em que se faz e se re-estrutura continuamente no ato da interação com os sujeitos participantes, que são ao mesmo tempo interlocutores e co-autores desta pesquisa. Não é uma interpretação metodológica que proponho – uma metodologia a ser interpretada e aplicada – nem me proponho a estar analisando os sujeitos com os quais interajo. Mas faço-me sim, atenta e disposta a uma reflexão metodológica que se faça sustentada no diálogo com os sujeitos e com os indicativos percebidos. Desta maneira, através da interlocução pautada na troca de experiências em espaços institucionais plurais, proponho uma pesquisa que possa fazer-se um instrumento significativo na política, no poder público, na educação e em cada instituição aqui presente, como convite para uma conversa polifônica transformadora. Como ponto de partida para avaliarmos e refletirmos polifonicamente esta metodologia, convido aqui, algumas professoras das escolas parceiras, quando no primeiro semestre de 2004, o projeto Janelas Cruzadas – após cinco meses de atividades – perguntou num determinado encontro de Formação Continuada de Professores sobre a questão da avaliação. Neste período, as professoras trouxeram questões que têm nos acompanhado, por se fazerem também norteadoras de caminhos reflexivos. O que você avalia como professora? “Sem perder o foco que é a criança, o que se avalia no contexto escolar depende do papel que você exerce na escola.” 76 “Como direção, eu focalizo mais o andamento da escola, o desempenho da escola, meu foco vai para tudo.” “Eu avalio se a criança gosta de estar na escola, se gosta de participar das atividades propostas, se existe entre eles um clima de harmonia, apesar das ‘desavenças’ que acontecem vez por outra! A partir daí, se torna mais fácil perceber porque alguns absorvem mais rapidamente determinados conceitos e outros não. Quando utilizo mecanismos de avaliações maçantes e sinto que algumas crianças não ‘conseguem’, ou melhor, não se sentem bem fazendo uma prova, por exemplo, eu as tranqüilizo mostrando que aquilo é necessário, mas não é o mais importante. É preciso que haja interesse por parte de todos.” “Eu avalio as conversas que ouço entre os alunos, a postura, a movimentação em sala, o olhar, a participação, a escuta, o desenho e outras formas de expressão, a família e a relação do aluno com esta, minha relação com os alunos, meu trabalho, minha idéias e as deles. Avalio também a escola, sua estrutura e as pessoas que direta ou indiretamente influenciam no meu trabalho.” “A própria escola (espaço). As pessoas que trabalham nela. Os alunos: - emocionalmente - socialmente (onde mora, as oportunidades que têm). A família: - se é presente e atuante. E principalmente: os vínculos criados entre esses três vértices (escola – aluno – responsável)” “Estamos o tempo todo avaliando, não só os alunos, mas a nós mesmos. No meu aluno avalio o comportamento, as atitudes e também o conteúdo, para poder estar tentando ajudá-lo, a ser alguém melhor. A mim, avalio se fui justa ou não, se fui 77 compreensiva, se estou dando ouvidos a ele e se estou me tornando uma pessoa melhor a cada dia também.” “Vejo a avaliação como um processo complexo, onde tanto o avaliado como o avaliando são personagens. A resposta desta avaliação servirá de parâmetro para a retomada de novas ações / relações e de abertura de novos caminhos atendendo às perspectivas planejadas.” “Avalio, valorizando o dia a dia. As respostas para as vivências diárias.” “Ouvindo, sentindo, pensando, lendo, fazendo junto, refletindo.” Desdobrando estas questões, o Janelas Cruzadas continuou indagando: O que é um bom estudante? “É aquele que contribui.” Pensando na amplitude da palavra contribuir, algumas palavras saltam na perspectiva de refletir a respeito deste estudante que ajuda à aula se fazer. Creio então que todos nos lançam desafios constantes para que possamos fazer de nossas pesquisas e de nossas propostas metodológicas, diálogos dinâmicos que pavimentem pontes entre a escola e a vida dos sujeitos da escola. E para pensarmos um pouco mais o sentido desta palavra – contribuir – convido as próprias professoras para nos ajudar a tensionar questões como conteúdo, aprendizagem, participação... e estas questões me levam a outras palavras, tais como: concordar; tensionar; silenciar... “Bom aluno é aquele que te faz crescer, que amplia seus horizontes, a partir daquilo que aprende e do que não aprende, porque este último faz com que você não adormeça em seu trabalho, busque alternativas, estude. Enfim, para mim, sinceramente, todos são bons alunos, porque depende deles eu ser boa professora.” “O bom aluno, pode ser aquele que muitas vezes não sai do nosso pensamento.” 78 Penso no que significaria um bom professor, aquele que nos marca e que fortalece em nós o que há de mais ético e criador. Seria o professor que traz todos os estudantes em seu pensamento? Na acuidade de atentarmo-nos às especificidades e maneiras de cada um, destaco mais uma reflexão feita por uma professora parceira que sinaliza para nós que o bom estudante é o aluno participativo, questionador, atento e feliz! Que gosta de estar na escola e que aproveita o tempo, para aprender e também para ensinar. Esta reflexão, me aproxima àqueles estudantes que se mostram infelizes e que, muitas das vezes, questionam os desencontros através de profundos silêncios. São estes sujeitos que me convidam a perguntar: Precisamos aproveitar o tempo para quê? 79 companheiros de travessias e de travessuras capítulo 5. 80 Companheiros de travessia e de travessuras: Revisão de literatura Penso em convidar como interlocutor desta pesquisa Paulo Freire, por acreditar em uma Escola séria, porém alegre e transformadora; pela crença no diálogo; pelos círculos de cultura; pela criticidade; pela ênfase nas trocas de saberes e de poderes; pela aposta na incompletude, na busca de ser mais. Recorro a Bakhtin pela palavra em movimento e pela polifonia de vozes; pelo seu estudo com a ambivalência; a valorização do riso; a dialogicidade, a circularidade, a incompletude. Por acreditar e defender que um dos grandes desejos do ser, é comunicar-se. Junto a Benjamin, quero caminhar no empenho de me aproximar às complexidades no sentido de me fortalecer no possível reconhecimento e enfrentamento às barbáries, sempre presentes nos artefatos culturais. Dar ênfase à valorização das tradições no asseguramento das narrativas, para que estas não morram e, buscar trançar passado, presente e futuro em movimentos não lineares – ricos em experiências e sentidos – que ressignificam valores e saberes em circularidade. Movida pela crença da necessidade de uma escuta sensível e do reconhecimento da arte expressão e reflexão dos momentos históricos e políticos, busco fazer-me atenta à importância dos acervos e coleções. Debruço-me sobre Ecléa Bosi, por seu enfoque à memória não apenas como reminiscências, mas por considerá-la trabalho, que ressignifica as experiências na busca de sentidos para a vida. Aproximo-me de Linhares por suas intensas pesquisas sobre Experiências Instituintes e, pela costura que faz na sua prática como professora, pesquisadora e escritora, às questões aqui trazidas, tensionando diálogos com os teóricos mencionados nessa dissertação e, com tantos outros pensadores também atentos à construção de uma educação instituinte, mais viva e mais humanizadora que se faz afirmativa das singularidades e das diversidades 81 como óticas necessárias para o pronunciamento coletivo, reflexivo e includente. Ressalto a importância da oportunidade de acompanhar suas ponderações prático-teóricas, que se fazem corporificadas em gestos de coerências que amalgamam o pensar e o agir desta professora pesquisadora. Instigada por Ginzburg, exercito o olhar a cada pormenor, na tentativa de aguçar meus sentidos a outras lógicas e, com elas e a partir delas, me aproximar de cada sujeito interlocutor, na busca de melhor entender os contextos diversos, refletindo e re-organizando continuamente cada passo previsto, no diálogo também com a imprevisibilidade. Junto a Barbier e a Regina Benevides, organizo minha intuição e fortaleço-me na linguagem e na ótica das reflexões apresentadas na sistematização da pesquisa-ação e da pesquisa-intervenção, feitas por estes autores. Comungo com Ferreira Gullar que sabiamente, me conduz com leveza e densidade, à importância de voltar não somente o olhar, mas todos os sentidos, na construção e na afirmação de espaços sociais e educacionais democráticos e diversos, quando poeticamente nos diz que: E a história não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz.8 São muitos os nomes que dialogam com as tantas narrações aqui impressas, mas não posso deixar de citar, ainda que brevemente, Zygmunt Bauman e Giorgio Agamben, que aproximara um pouco mais os meus sentidos às tantas dimensões políticas que configuram complexidades sociais. Assumindo a impossibilidade de falar especificamente sobre cada um que me insere nesta dialogia, convido Fayga Ostrower e Adélia Prado por reforçarem o quão vital é para a sociedade, a consciência da autoridade da dimensão poética da vida, que tece mistérios e criações constantes. 8 GULLAR, Ferreira. 1978, p. 15. 82 sujeitos ou sujeitados? aprendendo com os encontros da pesquisa capítulo 6. 83 Sujeitos ou Sujeitados? Aprendendo com os encontros da pesquisa. Sr. Manuel da Silva foi recolhido na Avenida Atlântica, em Copacabana, quando estava sem documentos conversando com amigos, trazendo em seu corpo marcas que o qualificavam como representante da classe popular - faço questão de destacar - dignamente humilde. Mas foi sem dignidade, que um ônibus foi recolhendo pessoas humildes que estavam na madrugada deste dia, dormindo, andando, conversando... E como deixar de comover nossos olhos e nossa alma, na lembrança de Chico Buarque quando canta: É gente humilde, que vontade de chorar... Sr. Manuel a partir deste momento não teve mais acesso ao mundo. Dormiu exilado, convivendo com sujeitos doídos, afastados, esvaziados, marcados, sem voz. Pessoas que muitas vezes já não podem perceber a existência de outros ao lado e vivem mutilados, esquecidos. O que me difere de Sr. Manuel a ponto do meu corpo trazer marcas nas suas composições gestuais e expressivas, impedindo que o ônibus me recolha quando caminho nas noites de Copacabana, bairro em que moro? Porque o meu corpo se impõe sem maiores trabalhos para mim? O que faz com que apenas com um fiapo de voz, não escutada, seja dada a importante notícia que Manuel da Silva tem casa, endereço, mora com a irmã e que, ao menos, esta precisa ser comunicada da sua recolha? Em dezembro de 2003 conheci esse senhor, sentadinho, chorando suave e doidamente num desses espaços onde são levados os sujeitos recolhidos nas ruas. O Sr. Manuel, ao se referir à sua condição, contou que há um ano vivia no meio de horrores. Aproximei-me em escuta, sentada bem próxima e ele revelou que um colega, vizinho de cama, o acusara de ladrão. Chorava por alguém pensar algo assim dele que sempre fora tão honesto. Procurei informar-me melhor e soube que ele ajudava muito, no cotidiano, os outros que estavam em condições semelhantes à sua; fazia serviços 84 de ajuda na cozinha coletiva e na limpeza, por necessidade pessoal em amparar o outro e, não tem hábitos como aqueles de que fora acusado. Soube também que este senhor não bebe, não cheira, não injeta nenhuma droga em seus sonhos ou dores, como fazem muitos dos sujeitos que convivem neste local. Traz ainda olhos doces, fala meiga, com sinais de respeito pelo outro e por si. Ainda surpresa por conhecer a maneira como este senhor chegou à esta condição de exílio e convívio com uma realidade cruel, comunguei a alegria de saber que uma jovem psicóloga, com seus vinte e poucos anos, escutou o Sr. Manuel, que já não mais sabia o que significava uma conversa. E foi em conversa que esta psicóloga soube da presença de Sr. Manuel na Fundação Leão XIII/ Campo Grande, há três meses e, que este senhor tinha casa juntamente com sua irmã. Esta afirmação me levou a indagações. O que faz com que o tempo de exílio para este senhor, seja alterado internamente no seu sentir/ interagir com o tempo real? O que faz com que os três meses vividos neste lugar, sejam experienciados como se fora um ano? Durante a conversa, a jovem psicóloga anotou o nome e o endereço da irmã e foi possível contatá-la. Estava ansiosa por notícias e em dezembro de 2003, o Sr. Manuel40 passou o Natal e Ano Novo com a irmã, em sua casa, no seu próprio quarto, na sua própria cama. No dia em que o conheci, perguntei-lhe qual seria a primeira coisa que iria fazer quando chegasse em casa. Prontamente respondeu-me: conversar com minha irmã, conversar. Esta fala vinha carregada de afetos. Então continuou: eu gostava muito de ir para a Escola. A professora era boazinha comigo. Ela escutava a gente. Estudei até a 1a série. Saí da Escola porque não tinha quem me levar. Minha mãe trabalhava, não podia levar. Tive 40 Quando conheci este senhor em 2003, ele já estava aguardando a data de seu retorno para casa. Este texto foi escrito para um seminário na UFF como resultado da matéria oferecida pela professora Célia Linhares: Experiências Instituintes em Educação. No dia da apresentação do seminário, este senhor voltava para a sua casa. Como não houve tempo para ler o texto para ele em interação e solicitação de autorização para problematizar sua história em texto dialógico, então, por cuidados à sua exposição, o seu nome foi trocado por outro fictício. 85 que sair. Era em São Gonçalo, em Rio Bonito. Eu não estudo hoje que minha vida não dá. Se desse, eu ia acabar de aprender a leitura e depois aprendia outras coisas. Os que não couberam na Escola querem entrar: relações de poder político no fechamento e abertura das portas sociais. Este é o tema deste projeto que desenvolvo no Mestrado em Educação da UFF – Movimentos Sociais e Políticas Públicas, iniciado no ano de 2004. Debruçando-me na fala de Sr. Manuel, mais uma vez pergunto-me: É possível que a Escola escute seus alunos, suas memórias e narrações ou ao tentar fazê-lo, mais das vezes permanece num monólogo, imbuído de certezas e fechamentos dogmáticos? Como as trocas e aprendizados, construídos pela escola da vida, podem se presentificar num diálogo franco na Escola formal? Como os que não couberam na Escola, podem nos ajudar a instituir uma outra instituição escolar, sempre aprendente e, portanto, instituinte? E instigados por Paulo Freire com suas questões: quando a palavra autorizada poderá surgir de todos nós?41 Apoio-me em Sr. Manuel que, sedento de Escola, nos aponta a importância da escuta como definidora de transformações. Volto à pergunta inicial deste capítulo: O que me difere de Sr. Manuel a ponto do meu corpo trazer marcas, que impedem o ônibus de me recolher quando caminho nas noites de Copacabana? Porque o meu corpo se impõe sem maiores trabalhos para mim? O que faz com que Sr. Manuel, apenas com um fiapo de voz - não escutada - dê a importante notícia de que ele, Manuel da Silva tem casa, endereço, mora com a irmã e que ao menos, esta precisa ser comunicada da sua recolha? Anotações feitas nas aulas com Célia Linhares, registrando as reflexões da professora na matéria: Experiências Instituintes em Educação. 41 86 E continuo esta conversa com aquilo que mais me move: as questões. Levanto-as aqui, na espera de compartilhá-las entre colegas, em construção constante. Como estar atento às falas invisíveis que saltam cotidianamente dos professores, alunos, muros e espaços escolares? Como aparecem as relações de poder nestes códigos submersos? Como se dá a cultura do silenciamento42 dentro da Escola e na escola da vida, nesta sociedade capitalista, globalizada, que atravanca as portas para excluir sujeitos e a própria vida? Neste mesmo local onde conheci Sr. Manuel, convivo semanalmente com pessoas não mais caçadoras de si. Pessoas depositadas sobre tetos guardadores de chuvas, que alguém supôs ser importante guardar, para preservar a saúde de pessoas recolhidas na rua. O que acontece para que estes mesmos tetos guardem amores, trocas, sonhos... como tijolos lacrados por cimentos cinza? Então agradeço ao Senhor Manuel e a tantos outros, por me instigarem questões. Nessas buscas de poucas certezas, trago em mim a gratidão pela clareza de que são estes vários mundos que me fazem mais gente a cada dia, ensinando-me a complexidade de ser humana. Cultura do silenciamento é uma reflexão trazida pela professora Célia Linhares nas aulas da matéria Experiências Instituintes em Educação. 42 87 mãos na massa buscando raízes e alvoradas capítulo 7. 88 Mãos na massa, buscando raízes e alvoradas. 43 Como fazer pesquisa com grupos sociais, sempre tão plurais, se as condutas são heterogêneas e os conflitos nem sempre são visíveis? É apoiada em problematizações e através da sensibilidade, que realizo um trabalho em instituições estaduais que exilam e confinam pessoas adultas ou idosas retiradas das ruas; pessoas que tiveram seus barracos desabados, perdendo todos os seus bens; pessoas com problemas com alcoolismo; pessoas que sofreram acidentes com carros, ônibus... e foram removidas de hospitais públicos para estas instituições, permanecendo nestes espaços por 2, 5, 10, 25, 40, 50 anos. Através de histórias; canções; poesias; imagens diversas; brincadeiras, vou me aproximando desses sujeitos – senhores e senhoras – na intenção de favorecer a reconstrução de espaços de afetividade, ao valorizar histórias desses sujeitos. Volto-me a eles no sentido de que suas crenças, saberes, valores possam ser escutados em diálogo. Muitas dessas pessoas vivem, dormem, comem juntas... e estão em absoluto silêncio, pelos cantos da Fundação... fitando e desbotando paredes manchadas de tempo, em solidão. São mutiladas de diversas maneiras: alguns não têm pernas, braços, são bastante doentes... e raras as pessoas que chegam perto deles em escuta ou carinho. Vivem juntas e - muitas das vezes - sem convívios, diálogos ou construções. Penso na gestão desses espaços sociais e junto-me a Ecléa Bosi, em indagação: Por que decaiu a arte de contar histórias? E sintonizando-se com Benjamim, Ecléa afirma:Talvez porque tenha decaído a arte de trocar experiências”44 43 44 Os relatos presentes neste capítulo, foram registrados a partir de encontros realizados em 2004. BOSI, Ecléa. 1994, p. 28. 89 Neste sentido, faz-se fundamental, como educadora, ter um repertório plural que possibilite o diálogo fazer-se significativo, ressignificando o ontem no tempo presente e construindo assim, um hoje e um amanhã mais humanos. Para muitos desses sujeitos, existe o desejo de uma vida perdida há anos. Benjamin, nos alerta para o perigo de permanecermos prisioneiros do passado e nos leva a refletir, ao lembrar que devemos fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, para que possamos inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente e assim, construirmos ligações entre um passado submerso, o presente e o futuro. Isto não significa simplesmente, impedir que a história dos vencidos se passe no silêncio... é necessário, ainda, atender suas reivindicações, preencher uma esperança que não pôde cumprir-se. O passado comporta elementos inacabados, e além disso guardam uma vida posterior, e somos nós os encarregados de faze-los reviver.45 Estas pessoas moram isoladas em instituições e são para mim, como caixas de surpresa: quando em interação com elas através da afetividade, respeito e valorização de seus saberes, muitas vezes voltam a sonhar, a ter brilhos nos olhos ainda esperançosos. Outro dia estava olhando um senhor que fica juntando folhas com um galho de árvore. Todas as manhãs acorda cedo e trabalha, juntando folhas e gravetos até o horário do almoço. Sempre usa o mesmo galho para juntar. São muitos os montinhos de folhas e gravetos que encontro no chão, em frente da casa onde me reúno com os assistentes sociais que também trabalham nesta instituição, já tantas vezes referida anteriormente. Num desses dias, aproximei-me dele enquanto juntava os montes. Tivemos uma conversa, enquanto era realizada esta sua ação cotidiana. Depois soube que ele se mantém bastante discreto. Os assistentes sociais já tentaram aproximação e ele quase não fala. 45 GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1993, p 58; 62 e 63. (referências: parágrafo escrito a partir de) 90 sinais de Sr. Peixoto Trago aqui sabedorias que este senhor de 80 anos trocou comigo, em conversas de voz terna e doce, quase em sussurro. Fala suave em delicadeza, potente em vida e firmeza. Esta conversa aconteceu graças às histórias - puras magias que desemudecem pessoas. Nos conta o Senhor Peixoto: - Já trabalhei muito com as mãos na terra e as mãos na massa e hoje continuo com as mãos na terra e as mãos na massa... [faz menção aos montinhos de folhas e gravetos que costuma catar]. Diz o ditado que o prazer no trabalho aperfeiçoa a obra. Conversamos um pouco... O gesto do Sr. Peixoto me lembrou a infância, quando via senhoras no interior da Bahia varrerem o quintal com vassouras feitas de galhos e folhas. Varrer o quintal significava, na minha infância, juntar as folhas e gravetos que em seguida viravam brinquedos para nós crianças. Esta lembrança me fez recordar a história de um homem que varria um pátio e cantava. Um dia, este homem descobriu que as letras de suas canções tocavam profundamente o coração de muita gente. Estas canções que fortaleciam pessoas eram compostas enquanto ele varria, pensando e elaborando seus conflitos. Conversamos então, eu e o Sr. Peixoto, sobre esta história, sobre a vida... e ele disse: - O livro tem um sentido muito profundo para mim. Em 28 de janeiro de 1983 passei pela triagem46 e passei por um abuso. Me tiraram o livro. 1o livro que eu tive... comprei por acaso. Um sábio disse que o acaso favorece apenas as pessoas de mente bem Triagem é o local onde são enviadas as pessoas retiradas da rua. É lá que é decidido o que fazer e para onde enviar essas pessoas. 46 91 preparadas. O 1o livro. Foi em 29 de maio de 1969, em letras douradas e um outro nome especial em carimbo. A partir da reflexão proposta pelo Sr. Peixoto pergunto-me: Como a Escola, pode ser fiel aos livros imaginários escritos com letras douradas por alimentarem sonhos de liberdade?47 O que serão mentes bem preparadas, como nos situa o Senhor Peixoto? Mentes que dialogam com surpresas e com imprevisibilidades? Estas perguntas me levam a registrar aqui a definição sobre teoria e prática feita por Sr. Antônio48 - outro senhor morador da instituição. Tem 63 anos. Ao indagar-lhe sobre os ensinamentos que a rua lhe proporcionou nos 20 anos vividos entre calçadas, catando papelão cedo para sobreviver com a sua venda, Sr. Antônio prontamente respondeu-me: Não aprendi nada na rua. Se tivesse 1 dia de coisa boa, tive 20 de coisa ruim. Eu não sei tudo. Ainda tem coisas que vou aprender. Você se formou estudando [se refere a mim]. A teoria que aprendi em 30 anos de trabalho... Por exemplo: A prática está mais forte... pois você se formou estudando. O outro [se refere a si próprio] tem a teoria do aprendizado do dia-a-dia na carteira assinada. O senhor Antônio cria uma situação hipotética para explicar-me seu conceito de teoria e prática e me explicita um diálogo ficcional: Nós dois trabalhamos em uma farmácia e atendemos às pessoas. Todo dia aqueles mesmos casos. Mas se vier outro caso diferente daquele que se está acostumado a tratar, só quem tem prática é que pode atender, pois estudou. Eu só saberia atender aqueles casos que me passaram as informações, pois eu [refere-se a si próprio] só tenho a teoria. Este senhor me aponta a importância da teoria estar articulada à prática da vida para que tenha significado de ser revestida de experiência, de autonomia. Sr. Antônio não esquece de registrar o esvaziamento desta mesma LINHARES, Célia. Observações da orientação. 1o semestre de 2005. Quando procurei este senhor para ler o texto que tinha escrito a partir de nossas interações, soube pela assistente social desta Fundação que ele havia evadido. Esta notícia me foi dada como algo que não deveria ter sido feito por parte do senhor, como se fora uma inconseqüência. Pelo motivo de não ter compartilhado com ele esta leitura e por cuidados à sua exposição, o seu nome foi trocado por outro fictício. Também por este motivo não estarei anexando fotografia com seu registro. 47 48 92 teoria quando apenas informativa. Em suas reflexões, me sinaliza a importância da escuta e da observação sensível, para que possa me aproximar de suas lógicas, óticas e necessidades, fazendo do meu trabalho uma construção significativa de aprendizados para mim, para eles e quem sabe, para a instituição. Me sinaliza a possibilidade da teoria se fazer em experiência. Penso então em Morin e na teoria da complexidade, quando nos diz que Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para compreender o ser objetivo.49 Em exercício de abrir meus poros e sentidos na busca de melhor experienciar, compartilhar gestos, silêncios e textos múltiplos como os do Sr. Peixoto que entre gravetos e folhas me aproxima a Ginzburg - na condição de caçadora de pormenores negligenciados - vou agrandando-me em leituras que estabeleço na percepção de óticas e vivências plurais. Então, em diálogo com estes senhores e senhoras, fortaleço-me na busca de compreender seus embates, suas vidas, para estabelecer interações e construções. Debruço-me novamente, em escuta, diante das reflexões do Sr. Peixoto: - A comunidade é outra coisa importante na vida porque a comunidade é terapêutica. A terra e a massa hoje tem um sentido diferente para mim. Diz-se que a massa é homogênea. Ela tem sido homogênea, mas precisa ser mais homogênea e falta muito para ela ser homogênea. A união exterior depende da união interior. A Afetividade e a Efetividade. Juntando as folhas estou sendo Efetivo, mas a Afetividade é mais difícil. Vem boas idéias trabalhando, minha mente fica mais ativa com o trabalho, aí gosto do trabalho mental [se refere à cata de gravetos e folhas como trabalho que faz diariamente]. Antes de vir para aqui eu vivia em uma comunidade. Tive uma reunião na comunidade, no Centro do Rio e a discussão de uma questão muito importante – desemprego. 49 MORIN, Edgar. 2000, p. 51. 93 Em algum momento de nossa conversa permeada de crônicas, canções, lembranças... eu sorri para ele que imediatamente agradeceu-me pelo sorriso e continuou: - De 1974 para cá eu passei a entender a questão de desemprego. O que é o desemprego e o que é o emprego? Naquela reunião com a comunidade não achei graça de nada. Era uma 4a feira, 9 de janeiro de 74. Naquele ano foi a última vez que eu vi as pessoas da comunidade. Dali para cá a coisa mais difícil que tenho é sorrir. Às vezes eu sorrio, mas um sorriso tênue quando estou sozinho. O livro que comprei, em 29 de setembro de 1969, foi o primeiro livro que tive. Passei e comprei por acaso. Eu ia andando pela rua e um conhecido meu me vendeu. Eu estava abonado [faz um gesto como quem recebe uma grana incomum]. E continua: - Da triagem vim para cá. Tinha começado um serviço aqui... naquela obra. [Aponta para uma construção que está sendo feita para melhorar as condições de alojamento de alguns senhores.] Tinha um grilo cantando e isso me sensibilizou, me lembrou o livro. Sentei e fiz um verso: No recanto da Fazenda Um grilo cantava no chão Quando eu meditava Contemplando a solidão Pois faziam 30 anos Que eu entrei no meu sertão Ao comprar por dois cruzeiros Um livro de precisão. - O senhor tem isso escrito? Perguntei-lhe, me referindo ao verso. - Mentalmente. Não sai da minha lembrança... Eu perdi uma coisa de precisão, mas creio que ganhei uma coisa mais preciosa. A preciosidade é mais valiosa que a coisa preciosa. Comparando a preciosidade com a coisa preciosa que é o livro – a pessoa é mais importante que o livro. Tive o livro por 14 anos, até 1983. O livro sumiu na triagem. Eu estava muito ligado a ele. Lembrei do trecho de Maria e José [da Bíblia] e não quis ser rigoroso com o livro. Dia 1o de janeiro de 1983 ele sumiu. Já faz 21 anos este ano. O 94 livro era o testamento. A vida é um diálogo, é um relatório. Muita coisa para falar. A vida é um livro aberto. Sr. Peixoto me leva a um metro de distância, onde estão enfileirados 1 bolsa de papelão e 2 sacos de supermercado cheios de jornais, revistas velhas, algumas peças de roupa e objetos pessoais: - Aqui está meu mundo de atrações... e como ele é rico. É o meu equipamento. A peça mais importante do equipamento é o suporte, onde eu carrego a coisa mais importante: O Livro. Este Livro que guardo é outro: há alguns anos ganhei o livro de um senhor que vinha sempre aqui, mas este senhor já morreu. equipamento e galho utilizado para trabalhar equipamento e gravetos suporte, local onde guarda o Livro Retirou do equipamento uma página pequena e me deu dizendo: 95 - Sabe o que eu achei ali? [apontou para uma árvore perto onde estávamos]. 8 de agosto de 2001, encontrei uma página de livro. Livro de Gênesis. E o mais importante: Era o capítulo 25. Fala de um homem que morreu em ditosa velhice aos 175 anos de idade. Fiquei maravilhado com aquilo. Eu nunca tinha observado esse trecho. Fui observar aqui na Fazenda Velha [Fundação Leão XIII - Campo Grande]. Fui botar mais sentido foi aqui. pequeno trecho das páginas 29 e 30, encontradas por Sr. Peixoto Gênesis 24 / 25 Deu-me o papel para que levasse para casa e lesse. Prometi devolver-lhe outro dia. Ele me agradeceu muito pela conversa, dizendo em sorriso tênue: - Hoje aconteceu um milagre. É muito raro eu me deparar na presença de alguém por tanto tempo. Eu agradeço à senhora. A convivência é um prêmio. A amizade é um privilégio. O senhor Peixoto trabalha constantemente com seus gravetos, pensando, refletindo e como ele próprio diz: com o trabalho, eu tenho boas idéias e vou melhorando a cada dia. Assim como o Sr. Peixoto pôde inventar uma maneira de não sucumbir neste sertão, também uma senhora, chamada Dona Vanda, 74 96 anos, preenche sua vida com bonecos feitos por suas mãos. Cada boneco, um personagem e histórias vividas no mundo fora e dentro da instituição. Dona Vanda vai mostrando os bonecos e falando da vida que se mistura em diversos tempos e espaços. Surge a lembrança da Escola e Dona Vanda destaca dois aprendizados ali construídos: - Primeiro, a Escola me ensinou que a rebeldia que eu tive era adiantamento. Eu tava crescendo. - Segundo, a Escola me ensinou que a pessoa falando demais não sabia de nada. Era melhor ficar calada e ficar na posição de ninguém. Na rebeldia, Dona Vanda me aponta um apelo para o exercício da autonomia. É esta mesma senhora quem sinaliza que sem pensamento critico reflexivo a fala se faz excessiva como uma ação mecânica, como um ativismo reprodutor, uma tagarelice, como diz Heidegger.50 Dona Vanda e Sr. Peixoto, buscam maneiras de permanecerem na posição de pessoas que se reinventam a cada instante através de ações que permitam vida, diante de tanta negação. Estes senhores me levam a pensar na Escola que emudece, que desfalece e nas brechas que clamam por movimentos instituintes. 50 LINHARES, Célia. Observações da orientação. 1o semestre de 2005. 97 Assim como o Sr. Peixoto e a Sra. Vanda potencializam diversas possibilidades de diálogos com a realidade e consigo mesmo, em construção transformadora, penso então neste movimento latente criador, que precisa ser alimentado, instigado e valorizado para que possa germinar não apenas em crianças ou professores, mas em seres humanos. Movimentos que pedem processos sociais, pedagógicos e políticos de com-partilhar. Ao me apresentar seu equipamento, Sr. Peixoto me fala da época em que a instituição recolhia todos os pertences dos senhores e senhoras que convivem neste espaço. Lembrou de cada época que teve seus sacos recolhidos para nunca mais vê-los. Hoje, para onde vai, este Senhor leva consigo seu equipamento – seja no banheiro, refeitório ou entre as árvores, folhas e galhos. Quando conversamos e, sem perceber, nos distanciamos um pouco do equipamento e do suporte, Sr. Peixoto não demora em relembrar e aproximar-se deles, como guardião de suas histórias e referências. Em contato com Sr. Peixoto, lembro-me de uma história chamada Guilherme Augusto Araújo Fernandes. 51 Ela conta que uma senhora de 95 anos, moradora de um asilo, perdera a memória e é um garotinho vizinho e amigo da senhora, quem consegue reavivar a memória de Dona Antônia. Ao escutar uma conversa de adultos, o garoto chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes descobre que sua amiga, Sra Antônia Maria Diniz Cordeiro perdera a memória. Para saber o significado desta nova palavra, o garoto parte em busca da leitura de pontos de vista diversos, ao escutar seus pais e de cada morador do asilo. A partir destes depoimentos, o garoto vai buscando maneiras de presentear Dona Antônia com suas próprias memórias – aquelas mais valiosas em significados e sentidos. Dona Antônia recebe um a um os presentes do amigo e vai ressignificando cada objeto em interação de afetividades atemporais, tecendo um diálogo entre suas próprias memórias e as memórias 51 FOX, Mem. 1995. 98 do amigo. E assim, a memória perdida de Dona Antônia é encontrada, por um menino que nem era tão velho assim. Instantaneamente penso na necessidade que o Sr. Peixoto tem em registrar as datas de cada acontecimento que se faz significativo para ele. Em uma de nossas conversas, comentou que ainda não tinha o calendário de 2004, o que dificultava seus registros mentais. Imediatamente retirei da bolsa um calendário e lhe dei. O Sr. Peixoto, muito grato, falou da importância de marcar as datas para não perdê-las. Volto-me então para a Sra Vanda, com os seus bonecos guardados em uma bolsa de pano. Junto a eles, linhas coloridas, retalhos e agulha. Costuras que mantém vivos o pensar/ refletir/ existir desta senhora e do Sr. Peixoto, que leva consigo seus alinhavos em folhas, gravetos, datas, livros, lembranças... para não perderem-se de suas referências e atos de criar. Como bem nos enfatiza Benjamim, o Sr. Peixoto e a Sra Vanda bem conhecem a força germinativa das sementes.52 São eles próprios que mantém latente e em movimento, através de fazeres significativos, a sua própria existência na busca da superação de si mesmo e dos contextos que os cercam. Neste processo, me encontro com o Sr. Peixoto, o Sr. Antônio, a Sra. Vanda e, tantas outras pessoas com quem converso nesta instituição e que se abrem em falas preciosas, oportunizando que narrativas possam ser intercambiadas em construções que favoreçam a aproximação entre pessoas, instituições e vida. A busca de convívios mais humanos em afetividades e trocas de saberes, nos possibilitam entrelaçar a teoria e a prática, ampliando conceitos, idéias, óticas, ações e políticas. Para levar suas narrativas a outros espaços e interlocutores, sento-me individualmente com cada sujeito com quem interajo e leio o texto tecido entre nossas trocas. Neste momento, eles corrigem detalhes e quando autorizam, trago os textos para a Universidade Federal Fluminense como outra possibilidade de interlocução nas matérias do curso de mestrado e em seminários. 52 BENJAMIN, Walter. 1994. 99 Trabalho conjunto, de várias autorias. Estes senhores e senhoras com os quais dialogo nesta instituição estadual, não são queimados em fogueiras como forma oficial e lícita de silenciar a transgressão que ultrapassa o pensamento único - conforme acontecia no século XVI na Itália, por exemplo, como bem nos coloca Ginzburg. Mas outras são as chamas, que ardem em seus peitos queimados pelo abandono, pela desvalorização e esvaziamento de suas referências e saberes. Formas oficiosas de fogueira, em pleno século XXI. Meu objetivo não se restringe a trazer suas vozes a diversos espaços, mas fortalecêlos para que pronunciem-se sem intermediários e percebam-se autores de idéias, conceitos, valores e saberes. 100 buscando caminhos... capítulo 8. 101 Buscando caminhos... É certo que não temos garantias de que as instabilidades, as desorganizações sejam aproveitadas para mudar o rumo civilizatório. Até mesmo em face dessa reversibilidade, ambivalência e hibridismo que acompanham os movimentos da história, podemos tanto nos endereçar a uma sociedade em que prevaleça um modo mais justo, mais horizontal, mais includente, enfatizando os processos de coesão sobre os de coerção, quanto nos dirigirmos ao oposto de tudo isso, com um agravamento de desigualdades, com a preponderância de pressões e opressões coercitivas. De qualquer maneira, não podemos minimizar esse potencial que faz com que as instituições sociais, tomadas em si ou em seu conjunto, sejam permanentemente confrontadas às dinâmicas instituintes que perigosa e permanentemente as desafiam, com suas ameaças de homogeneizações e continuísmos, mas também, com seus convites por diferir e criar.53 Fortalecida com Linhares, junto-me a Freire em alerta para a função de educadora/ pesquisadora assumida por mim - não somente no trabalho, como principalmente na vida: pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo.”54 Entrar nesta Fundação é uma ação que exige cuidados, delicadezas e, interações com durezas. Exercícios constantes de Ética, Respeito e Compromisso. Sinto-me desafiada a resistir à barbárie que avança e que está presente em muitos. Faço-me conhecedora de uma realidade e de relações políticas que exigem diálogos entre a instituição e seus moradores, entre o poder público e o mundo. Ao mesmo tempo em que me faço ciente das complexidades deste contexto, me misturo a ele com consciência de que há uma extrema confiança LINHARES, Célia. Texto retirado de artigo da Revista eletrônica – produção do grupo Aleph – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/ Ano I – ISSN 1807-6211 http://www.uff.br/aleph/ 53 54 FREIRE, Paulo. 2002, p. 32. 102 depositada em mim pelo gestor desta instituição e uma extrema necessidade de construir diálogos entre os sujeitos que moram neste espaço, os funcionários e a equipe gestora. No ano de 2003, o coordenador da Fundação Leão XIII – sede de Campo Grande, ao abrir suas portas e me possibilitar diálogos com os sujeitos que se encontram confinados neste espaço, autoriza gravações de entrevistas e registros de imagens, ainda que com a ressalva da impossibilidade de se fotografar e a filmar os espaços internos dos alojamentos onde se encontram os moradores deste local. Após algumas conversas entre nós dois, me comprometo em utilizar este material com cuidado e com consciência do poder das informações recolhidas. Comprometo-me, então com a nossa busca - minha como ser humano e educadora; dele, como gestor e como ser humano. Busca de caminhos para uma gestão que possibilite a construção de um espaço de convivência coletiva mais humana. Que esta parceria se dê na procura de reinventar a forma também histórica de luta.55 Numa sociedade que entende luta como cultura de guerra, cultura belicista de estratégias de destruição, aniquilamento, competição... é possível reinventar este processo histórico na construção de lutas entre compartilha, ética, amor, generosidade, escuta? É fácil denunciar e encontrar culpados, mas não é esta a escolha desta pesquisa. Afirmamos uma racionalidade que não encontra na guerra e no enfrentamento raivoso seu único e mais poderoso instrumento, mas acredita e promove ações construtivas e reflexivas que invistam numa crítica à razão e à política hegemônica. Volto-me à Linhares que orienta-me no sentido de buscar caminhos para culturas da solidariedade, da troca, do respeito, da transformação ética e neste percurso nos diz: Como sabemos que a paz nunca se chega pelo terror, recrudescem os movimentos germinadores de uma cultura em que os dissensos necessários e fertilizadores das 55 FREIRE, Paulo. 2002, p. 76. 103 diferenças possam fecundar momentos de consensos, como ações provisórias, políticas. Uma cultura em que a educação nos ajude a diferir, a distinguir, mas também a atuar em conjunto, a amar a vida e os viventes.56 Como repolitizar processos históricos na busca de uma Escola mais includente que reveja práticas, discursos, lógicas e compromissos com a sociedade? Neste sentido, me comprometo a escutar e aproximar-me dos oprimidos desta Fundação (e de outros espaços), atenta às brechas que possibilitam exercícios de diálogos, pequenos exercícios políticos que potencializados podem contribuir na construção de um mundo mais humano, democrático, ético e solidário. E neste sentido faz-se necessário ouvir os oprimidos... Encontrar o olhar daqueles que foram feitos invisíveis.57 É preciso uma atenção constante nestas interações onde vou estabelecendo cuidados. Na minha atuação junto ao referido abrigo, fui pedindo autorização para registrar diálogos e imagens não apenas à coordenação, mas também a cada sujeito com quem eu interajo. Sujeitos que se percebem co-autores desta pesquisa. Fui observando nestes encontros com os senhores moradores da Fundação, que muitos me chamam de senhora, apesar de terem mais do que o dobro da minha idade. Apesar de falar e vestir-me de maneira simples quando encontro-me com eles. Então, interrogo-me: O que representa esta forma de tratamento? Respeito pela minha pessoa? Poder que eu represento? 56 57 LINHARES, Célia. Órfãos de Guerra? A Educação nos labirintos de tempos e espaços contemporâneos. LINHARES, Célia e NAZARET, Maria Trindade (orgs.). 2003, p. 58. 104 Ao ler este capítulo para os senhores Alfredo e José Rosa, este me interrompe a leitura falando: - Eu tenho para mim que é uma educação que o cara tem de chamar a senhora de senhora, de senhor. Eu penso que é um respeito, né? Esta é a ótica do senhor José Rosa. Com estas questões, fui movida a entender o que significa a palavra Poder e Respeito, na ótica destes senhores e, mais uma vez instigada por Paulo Freire, me pergunto: Por que estudo? Em favor de que estudo? Em favor de quem? Em favor da liberdade; da dignidade; do amor; da esperança; do respeito; do direito ao pronunciamento, convido os senhores da Fundação para dialogarem conosco e juntos refletirmos estas questões. Ao me ver passar, o senhor Alfredo me chamou, perguntado se nos reuniríamos naquele dia em grupo. Sentei-me ao seu lado. Ele lembrou algumas histórias, inclusive a do peixe mágico, história que tem como título Pescadinha e que representa meu repertório de infância. Resumo da história Pescadinha: Era um pescador casado com Maninha. Fazia muito tempo que não levava peixe para casa. Um dia ele puxa o anzol e consegue trazer à margem, o rei dos peixes, que promete ao pescador realizar qualquer desejo, se o devolver ao mar. O pescador faz acerto com o peixe, que permite-lhe consultar à esposa qual o desejo a ser atendido. Antes do pescador chegar em casa para ter com sua mulher, aproveito para dar a voz aos senhores e às senhoras. Pergunto-lhes suas opiniões sobre que pedido Maninha irá fazer. 105 Neste instante no qual estava sentada com o senhor Alfredo que relembrou o dia em que contei a história da Pescadinha para o grupo, aproveito para perguntar-lhe quais seriam seus pedidos, se estivesse no lugar do pescador. Conversamos sobre diversas questões a partir da história. Sr. Alfredo segurando seus objetos pessoais para que não se percam - Lembra do peixe? (da história que contei) Você tinha direito a fazer três pedidos para o peixe... você só fez um: voltar para sua casa. Outro pedido que você pudesse fazer para mudar aqui (a Fundação) para melhor, o que você mudava? - Comida boa e remédio. Pessoa para cuidar da gente. Dar banho. Olhar a gente. Cuidar de nós todos. Dela, dele, de mim. Cuidar mesmo, cuidar. Só, mais nada. - E como seria esse cuidar? Pergunto ao Sr. Alfredo sobre o significado do Cuidar para ele. Provocado por esta pergunta, este senhor começa a falar que gosta de cantar, de dançar, de bater palmas... Que sabe tocar piano e que toca várias músicas de ouvido. Conversamos mais um pouco e eu pergunto sobre a Escola. Ele diz que lembra de uma professora, D. Ruth, que já se aposentou e se parece comigo. Perguntei o que ela tinha de especial e ele respondeu: ela tocava piano. Ensinou 106 o senhor Alfredo a tocar chocalho, triângulo, piano. Ao falar da sua professora, este senhor nos remete a Paulo Freire quando afirma: Sonhava-se uma pedagogia alegre, boêmia, como eu, tropical, uma pedagogia de riso, uma pedagogia da pergunta do amanhã pelo hoje, uma pedagogia que acreditava na possibilidade de transformação do mundo, que acredita na história como possibilidade.59 A possibilidade me faz voltar à questão do Poder e, movida a entende-la sob a ótica desses senhores e senhoras, me remeto a Freire quando diz que para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem ‘tratar’ sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível.60 - O que é Poder para você? Pergunto ao senhor Alfredo. - Poder é fé, muita fé. Tem que pedir a Deus. Tem que tomar remédio. - Porque você acha tão importante tomar remédio? - Eu rezo na hora de dormir, na hora de deitar. Muita fé, muita paz, saúde. Só. Poder é fé. Muita fé. Tem que pedir a Deus. Só Deus pode me tirar daqui. Mais ninguém. - Você disse que ajuda muito às pessoas aqui. O que te faz ajudar as pessoas? - Ninguém me ajuda... alguns me ajuda, outros não. Eu ajudo muito. Ajudo. - Se o senhor não tomar remédio, como é que fica? - Eu fico calmo. Tomando remédio ou não tomando. Acho importante tomar o remédio. Ficar bom pra ir embora. Prá mim sair daqui. Tomar remédio mesmo. Todo mundo toma. De manhã e de tarde. De manhã e de tarde, todo dia. 59 FREIRE, Paulo. 1994, p. 145. 60 FREIRE, Paulo. 2002, p. 64. 107 Remédio como promessa de cura? Garantia de saída? Passe para a liberdade? Cura de quê? Estas questões me remetem à Escola. Espaço grávido de esperanças por parte de tantos pais que sonham por futuros melhores, por oportunidades para seus filhos. E outras questões são geradas: A Escola é a promessa da cura? Cura de quê? Precisamos nos curar das diferenças que nos constituem e homogenizarnos em pensamentos únicos? Em favor de quem e do quê? Num convite à reflexão sobre os significados da palavra liberdade, trago um diálogo com o Sr. Alcino, que ao perguntar-lhe sobre o que é Poder, me diz: - O que é Poder. Uma pessoa poderosa. O que é Poder, hoje em dia? Pergunto. - Não sei. - Por exemplo: uma pessoa que manda aqui em tudo, tem Poder. E uma pessoa que vive aqui, tem Poder? O que é Poder? - Tem até um hino que diz: Jesus Cristo tem poder, né? - E o que é Poder? Quem tem Poder? Quem tem Poder tem o que? Prá ter Poder, precisa ter o quê? - Se for procurar muitas coisas, milhões de pessoas não têm poder. A pessoa, principalmente que tem liberdade, ele tem um certo poder. A pessoa que tem riqueza, ele tem um certo poder. A pessoa que é um artista, ele tem um certo poder. Quem não sabe nada, não tem nada. Quem de nada tira nada, é nada. Concorda? - E se eu perguntar para o senhor qual é o seu Poder? Qual é o Poder que o senhor tem? O senhor acha que o senhor tem? - Olha, nós tivemos conversando sobre no tempo da escravidão e eu falei que a princesa Isabel, ela fez uma coisa com Amor e com Poder. Mas quase 108 tudo que ela fez não valeu nada. Sabe por causa de que? Porque a senhora cava uma escravidão aqui e diz: pronto vocês estão livres. Se eu não tenho uma enxada. Se eu não tenho um cavalo. Se eu não tenho terra. Pra quê que eu quero ficar livre? Eu vou fazer o que, livre? Então tinha ser uma espécie de uma reforma agrária, não é isso? Que liberdade é essa? Adianta alguma coisa o cara ser livre? Reforço as reflexões do Sr. Alcino com Paulo Freire, que nos afirma que ou somos agentes da emancipação das pessoas oprimidas, ou agentes de sua domesticação. Não há uma zona neutra.61 Este compromisso que a educação tem com a emancipação do sujeito, nos dá a dimensão da sua importância como ação política, formadora de sujeitos críticos. E para sermos livres, precisamos saber quem somos, para que possamos entender e dialogar com nossos contextos. Precisamos saber do outro, para aprendermos com as diferenças. Precisamos pronunciar nossa voz, para o amadurecimento de nossos diálogos e articulações conosco e com outros. Para dar continuidade a esta conversa, convido mais uma vez os senhores que vivem na Fundação. Senhores que sabem a força da palavra Opressão, por viverem mutilados de maneiras diversas. Mas também sabem o 61 FREIRE, Paulo. 2002, p. 86. 109 poder da palavra Esperança que sustenta tantas pessoas em pé, na busca de brechas para a transformação dos espaços áridos de amor, humanidade e respeito. Senhores trabalhadores, que hoje aos 70, 80, 90 anos de idade, esperam pela prometida aposentadoria. Outro dia, enquanto conversava com o senhor Edvar - um dos tão referidos senhores - passou por nós uma assistente social. Este senhor que dialogava comigo comentou: - Eles falaram que iam vê o dinheiro da gente, a aposentadoria, mas não fazem nada. Pelo tempo que disseram que iam fazer alguma coisa, alguém já tinha que ter recebido. Respondi: - Mas sr. Edvar, as coisas não são tão simples. Elas trabalham muito, mas não depende só do trabalho delas. Existe um processo burocrático que passa por muitas pessoas. As assistentes sociais estão trabalhando e já conseguiram algumas mudanças aqui dentro. Mudanças importantes. Quase em interrupção este senhor me afirmou com veemência: - A gente fala com a coordenação, mas não tô vendo eles fazerem. Porque quando eu trabalhava, diziam que eu precisava pegar um boi. A gente ia lá e trazia o boi. Era complicado. O boi se escondia no mato, corria. Passava por cima da gente e podia matar. Mas a gente tinha que levar o boi vivo. Levava o boi. Não tô vendo eles trabalharem. Este senhor me aponta a existência de vários tempos. O tempo caduco das burocracias que se confirmam entre gerações. O tempo destas jovens assistentes sociais, que conseguem, com árduo trabalho, realizar conquistas que deveriam ter acontecido em outros tempos e, agora, chegam em tempos ainda necessários, mas desumanos e injustos. O tempo de Isabel Reis que não vive diariamente neste contexto, não faz parte dele de maneira oficial e tem consciência de que qualquer deslize seu, pode interromper estes diálogos e interações de construções. O tempo deste senhor, que espera há tantos anos pela escuta das tantas necessidades fundamentais e mínimas, para que o sujeito 110 seja tratado com dignidade. Ele me aponta coisas que mudaria na Fundação caso tivesse o Poder. - O que é Poder? Pergunto. - O Poder é você fazer uma coisa, e aquilo é difícil. E, você que faz aquilo. Então é um Poder . Qualquer um troço é poder, mas só você que faz aquilo. - Se o senhor virasse o presidente daqui da Fundação... - Mas eu não viro. - ... se tivesse poder... - Mas eu não tenho. Ainda mais que isso aqui é péssimo. - Péssimo? - É, isso, eu tô doido pra ir embora. Não quero nem saber de ficar aqui. Quando soltar minha aposentadoria. Eu (gesto de ir embora). - Mas o que é que o senhor acha que a pessoa que tivesse poder aqui dentro, podia estar fazendo para melhorar? - Aqui, ninguém faz nada prá melhorá. Os olho deles aí são grande. Eles querem tudo pra eles. O olho grande deles aqui é demais. - Mas o que é que o senhor acha, que seria importante mudar aqui dentro? O que é que o senhor mudaria aqui dentro? - Mudar aqui dentro? Tem muita coisa pra se mudar, muita coisa mesmo. Por exemplo? A chefia por exemplo, tinha que tá mudando toda ela. A chefia daqui é péssima. - E o que é que a chefia poderia estar fazendo de diferente? Que é que você faria de diferente? - Vir uma pessoa que gostasse da gente e começasse a fazer as coisas pra agradar todo mundo. A pessoa que quer agradar aqui, que quer agradar você, é tudo falsidade. - Outra coisa que precisava mudar. 111 - Imagine você, que aqui você não pode dar um Boa Tarde, que nêgo pode chamar você de bobo. Você pode dar um Boa Tarde, nós conversando assim... pensa que nós tamos fazendo bobiça. Não sabe nem falar com a gente, o pessoal. Eles acham que ninguém aqui sabe nada. Todo mundo é doido, ou tá maluco, ou tá não sei o quê. Se você fala um troço, aí o outro lá já compreende outro troço errado. - Então uma coisa importante é que gostem de vocês, outra coisa importante é que percebam que vocês sabem muitas coisas. - É isso. - E outra coisa importante? - As coisas pra nós. Nós temos que gostar de uns aos outros prá poder o troço engrenar e ir pra frente. Se eu pego pra puxar de um jeito e você pega para puxar de outro, a corda não anda, isso aqui não anda. (...) - E outra coisa importante, que precisava aqui? - Quem que reúne aqui? Junto? Eu pedi pra fazer uma reunião prá que tivesse caneca por exemplo. Eu por exemplo quero a minha separada. Eu gosto de dar o café pra você, mas na sua caneca. Na minha não. Eu tenho esse hábito comigo, eu faço assim. Ninguém quis. Vai fazendo café, vai vindo as caneca pronta. Ali de novo, ali... que nem outra vez. Não é errado isso? Aparece uma doença em uma pessoa lá por causa disso. É porque eu tô doido pra ir embora. Por causa disso, coisa assim não serve. Este senhor vive num espaço onde convivem doentes com aids, tuberculose, sífilis, hepatite... Na sua experiência de convívio neste espaço complexo, este senhor nos aponta questões fundamentais: Que eles sejam amados. Que permaneçam vivos. Que seja de conhecimento de todos que estes sujeitos têm saberes, valores, culturas, idéias e precisam ser ouvidos com respeito. Que a Fundação Leão XIII, precisa assumir-se como órgão responsável por ações de educação social e neste sentido, construir espaços para a interação e pronunciamento político desses sujeitos. 112 Estas reflexões feitas entre sujeitos que pensam seu viver/ construir entrelaçados a uma instituição, nos levam a enfocar a importância dos saberes, convívios, solidariedades, construções de códigos e regras de convívios em grupo. Convido Arendt como ajuda para que eu possa elucidar estas reflexões que me acompanham. Ela me instiga a pensar no ser humano sem esquecer-me da diversidade de culturas, de modos, de etnias, de ideologias, de necessidades como instrumentos mediadores de diálogos constantes com a política pública, no asseguramento de que as necessidades do mundo e seus sujeitos plurais possam e devam ser escutadas, olhadas e transformadas em políticas e ações democráticas e includentes. Neste sentido, afirmo-me com Hannah Arendt quando nos diz que a vida activa, ou seja, a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens, um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente, o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida eremita em meio à natureza, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. 62 A presença de pessoas e culturas heterogêneas aponta necessidades e lógicas plurais que me remetem à Escola e levam-me à seguinte questão: Como assegurar que a Escola possa acompanhar os movimentos do mundo, tornando-se mais larga e includente? 62 ARENDT, Hanah. 1995. p. 31. 113 Vida em retalhos capítulo 9. 114 Trazer a diversidade da vida do sr. Wanderley é uma maneira de narrar a vida de tantas famílias da classe popular, que sustentam a vida aproveitando brechas que materializam possibilidades de sobrevivência, ampliadas como formas de existir. Dinâmicas como estas precisam estar presentes nas escolas, visto que este mundo – veloz e mutante – define, com freqüência, as maneiras de muitos estudantes de instituições públicas constituírem suas redes de aprendizado. Trago aqui o relato do sr. Wanderley em forma densa, por perceber que esta rede de relações – complexa – é bastante comum também, entre os muitos senhores e senhoras que vivem hoje na Fundação Leão XIII. Falar do sr. Wanderley pode significar falar das tantas famílias brasileiras, hoje pais dos estudantes das redes estadual e municipal que, ao se tornarem idosos – em muitos dos casos – exilam-se da família, terminando a vida em abrigos públicos; ou por, a partir de certo momento, não mais conseguirem produzir e corresponder às necessidades impostas pela vida; ou ainda, por terem sido vítimas de imprevisibilidades que lhes tomam barracos, casas, empregos, ou por tantos outros motivos, também emaranhados. Acontecimentos e circunstâncias que na maioria das vezes impõem a delicada decisão de entregar os filhos a quem possa criar, enquanto que os pais, são engolidos por condições de vida negadoras e inviabilizadoras da própria vida. A seguir transcrevo o depoimento do senhor Wanderley Marques, para que ele mesmo, ao se apresentar, narre sua trajetória de apropriação de saberes. 115 Minha Vida em Retalhos Wanderley Marques Quando perdi meu pai, falecido de pneumonia (eu com quase oito de idade), uma parenta distante de minha mãe, que morava no Rio de Janeiro, foi a passeio visitar parentes em Santa Catarina. Minha mãe – D. Otília – ficara viúva. Quatro filhos pequenos e muita miséria. Meu pai, nada me lembro, apenas o que escutei comentar: era magro, alto, funcionário da Prefeitura, trabalhava digamos, como gari, conservava as laterais da estrada, roçando mato e limpando os bueiros. Pois bem, minha mãe, pobre e viúva, filhos para criar e não tinha as mínimas condições. Essa parente, D. Juventina Marques Agostinho, conversando com minha mãe, resolveu levar uma das crianças para criar no Rio de Janeiro e, não sei porque, eu fui o escolhido. Assim, no dia sete de setembro de 1951, partimos. Antes passamos em visita por cidades catarinenses como Lages, Urubici e Campos Novos. Depois, Rio de Janeiro. Recordo que fiz oito anos quando estávamos em Lages. Chegamos no Rio dia 20 de setembro de 1951, exatamente à meia noite, pois o relógio “cuco” da sala anunciou. Eu barrigudo – cheio de vermes – pequenino, agarrado à saia de D. Juventina. Entramos no escuro, sem acender as luzes para não surpreender o marido dela, Sr. Abel Canosa Torres, gordo, com seus cento e tantos quilos, que estava dormindo. Ela acendeu a luz, ele acordou, olhou-a nos olhou e disse: – velha, quem é este homem? Este era o adjetivo usado entre eles – velho e velha – e ela respondeu: – este menino é filho de uma parente viúva e muito pobre, eu o trouxe para criarmos. Ele emendou: – homem na minha casa só come se trabalhar. Então, ela foi para a máquina de costura, fez um mini-macacão para mim e, exatamente às 7 horas da manhã levantamos, tomamos café e fomos para a oficina onde deveríamos estar, pontualmente, às 8 horas. Foi então com oito anos de idade, às 8 horas daquele dia, que comecei a jornada de trabalho que veio a me acompanhar a vida por quase um sempre. 116 De casa até a oficina, era pertinho. Morávamos na Travessa do Mosqueteiro, nº 25, aptº 20, na Lapa e, a oficina logo adiante, na rua Teotônio Regatas 27, também na Lapa. Ele era o proprietário de tudo aquilo que víamos: uma garagem muito grande servia de estacionamento; outro galpão eram as bombas de óleo diesel e gasolina; outro era borracharia e o outro, a oficina mecânica. Vários funcionários corriam pra todos os lados, principalmente, quando chegávamos. No primeiro dia fui instruído que deveria ficar com bastante estopa na mão, para que quando o dono do carro viesse buscar o veículo, eu seria avisado, qual então, eu passaria estopa no carro para ganhar gorjetas e, toda semana – pois o pagamento era semanal – eu também aguardava na fila, minha vez de receber meu pagamento. Não sei exatamente quanto era, talvez uns cinqüenta reais de hoje, mas havia uma condição: estes cinqüenta eram divididos: trinta para ajuda nas despesas de casa e vinte guardados em um cofrinho globo (minha poupança). Fui matriculado na escola pública – Colégio Marechal Deodoro – ali próximo, na Glória. Fiz a primeira e segunda séries. Fiz bom aprendizado com boas notas. Na época, as notas máximas eram 100. Eu tirei no primeiro ano nota 85 (segundo lugar), professora Dona Marina Patti e, no segundo ano, nota 90 (segundo lugar), professora dona Maria da Glória. Sei da pontuação e colocação porque havia na parede o quadro de honra, onde apontava: 1°, 2° e 3° colocados. No período de férias, íamos os três para a estação de águas em Águas da Prata, Cambuquira ou Lindóia; lá nos divertíamos, tirávamos muitas fotos e brincávamos, sem deixar de estudar para o próximo ano. Acontece que, ao terminar o segundo ano, tudo mudou. Dona Juventina tinha sua mãe velhinha, morava sozinha em Magé, Estado do Rio. Fora operada e precisava de companhia para ajudá-Ia a criar seus animais, cachorros, gatos, galinhas, patos, marrecos etc.; então fui morar com ela. Tia Bilica, assim a chamava. Mulher difícil e de pouca fé, metida a curandeira, benzedeira e macumbeira. Tinha um cachorro vira-latas branquinho, chamado Príncipe. De vez em quando íamos os dois pescar siri na praia e, quando saíamos, ela 117 entregava a casa aos cuidados do Príncipe e seus caboclos de macumba. Dizia que sua casa ficava bem guardada; no entanto, quando chegávamos, a casa tinha sido arrombada, levando quase tudo. Muitas vezes, à meia noite, me acordava e íamos fazer despacho nas encruzilhadas, com sapos, punhal virgem, nome da pessoa a quem queria mal (espetado) e uma série de coisas abomináveis, além do livro (O legítimo livro da cruz de caravaca) – livro satânico, que era obrigado a ler todas as noites antes de dormir. Logo que cheguei a Magé fui matriculado na escola pública Grupo Escolar Visconde de Sepetiba, para cursar a 3ª série. Assim, de manhã estudava e a tarde, saía para vender, em um carrinho de mão, frutas e verduras como: banana, alface, quiabo, mandioca, salsa, cebolinha verde etc., que nós dois plantávamos do outro lado do rio, num terreno pertencente à marinha, onde o pessoal cercava uma parte e tomava posse, podendo desfrutar do terreno. Só não podia vender. Assim, era a vida, estudava de manhã e trabalhava a tarde, vendendo as coisas. Não sobrava tempo para brincar; portanto não soube o que é brincar, não tive infância. Era uma criança em regime de adulto. Na escola, sempre fui bem, passei todos os anos: 3ª, 4ª e 5ª séries (admissão ao ginásio) com boas notas. Aí não me recordo as notas, nem os nomes das professoras. Nessa época, houve um caso que bem me recordo: Senhor Abel, além de todos os seus bens, como oficina; carro; apartamento de aluguel, outro no qual morava, sítio em Guapimirim, também tinha um avião teco-teco (quatro lugares) prefixo PP-DMD, código Delta mega Delta, que ficava no hangar do aeroporto de Manguinhos. Uma curiosidade: ele não guardava sua fortuna em bancos e sim em casa, em um cofre, no quarto e, nem dona Juventina sabia o segredo, era muito egoísta e avarento, ou seja: mão de vaca. Em 1954, ele fez uma excursão, que na linguagem dos pilotos se chama de revoada, desta vez para a Argentina. Foi só, em seu avião, na volta trouxe de carona uma mulher de nome Ednéia Bessoni, sua amante. Por infelicidade pegaram uma tempestade muito forte e o avião caiu entre a mata fechada no Paraná, isto aconteceu dia 27 de agosto de 1954, três dias depois da morte de Getúlio Vargas. 118 Ficaram sete dias perdidos, ambos bem machucados, porém vivos. Ele, como era um homem inteligente, bolou um meio de gritar por socorro: com um pedaço de lona fez uma espécie de funil. Então subia nas árvores e gritava socorro, com isso. O eco ia longe no silêncio da mata. Isso repetia todos os dias. Até que no sexto dia, já cansados, famintos e descrentes, à espera da morte, resolveram fazer uma promessa a Nossa Senhora de Aparecida: se fossem salvos, dariam uma vela do tamanho de cada um à Santa. Por coincidência – mesmo dia, mesma hora (18 horas) (hora da Ave Maria) – dona Juventina na casa deles, fazia a mesma promessa. No dia seguinte, o sétimo, de manhã, como de costume, subiu em uma árvore e gritou por socorro. Na terceira tentativa, teve resposta. Tornou a gritar e confirmou, alguém respondia longe e, a cada grito a resposta se aproximava mais. Até que chegou uma canoa com dois pescadores, eram genro e sogro, pescadores que nunca haviam pescado naquelas bandas e, naquele dia, simplesmente resolveram entrar naquele rio que nem sequer dava pesca. Durante aqueles dias, nós no Rio, acompanhávamos as notícias pelo rádio no Repórter Esso, sobre o avião desaparecido com os dois tripulantes a bordo. Dizia: Avião Cesna, PP-DMD - desaparecido desde o dia 27, com poucas chances de haver sobreviventes - esta era a notícia diária. Assim, foram encontrados e levados para o hospital em Curitiba. Depois de alguns dias, já recuperado, voltou pra casa, lembro bem: era um batalhão de repórteres de rádio à sua espera para entrevistá-lo. (detalhe) Pouco tempo depois, foram pagar a promessa em Aparecida do Norte, Sr. Abel, dona Ednéia Bessoni, dona Juventina e eu, todos juntos. Três anos depois houve separação. Então resolveram me levar de volta à minha mãe. Quando cheguei, minha mãe que ficara viúva, já não estava só, havia um padrasto e, uma semana depois, ela me falou que eu não podia ficar em casa porque o Orlando (padrasto), não queria. Assim, eu iria trabalhar em uma casa de família em Biguaçu, cidadezinha próxima e, a partir daí, eu passei a administrar minha vida por conta própria. Neste 119 lugar fiquei pouco tempo, pois tinham dois filhos do casal, maiores, que me batiam. Daí, por volta dos 14 anos de idade, fui pra casa de outro casal, em outro local, para vender doces, cocada, sonho, Mané da Bahia (doce de fubá com coco), roscas e outros, fiz uma freguesia certa – debaixo da ponte Ercílio Luz – onde atracavam navios para carregar madeira e barcos de pesca. Tinha freguês a quem eu vendia até fiado, pois me pagavam direitinho. Feita a freguesia, não retornava com a sobra, pois eu comia tudo para sobrar um tempinho para brincar. O que comia era descontado do meu pequeno salário no fim do mês. Depois fui trabalhar em casa do Salvito Gonzaga, família rica: ele, esposa e uma filha, linda jovem, que fora eleita rainha do clube mais chique do lugar e veio a casar com um cara, dono de uma autorizada - Simca (marca de automóvel da época). O velho senhor Salvito, era médico do INPS e professor de Inglês. O filho Salvito Junior, era delegado de Barreiros, bairro do Continente. Depois, passei a trabalhar em casa de dona Carmem Whendausem de Brito (D. Carminha), viúva, duas filhas moças, sobrinha do senador Celso Ramos, falecido naquela época, se não me engano, em desastre de avião. Nessas casas o que eu fazia era varrer quintal, ir à padaria, quitanda, regar as plantas do jardim etc. Depois, passei a vender sorvete em carrinho, pelas ruas de Florianópolis; aí eu pagava vaga em pensão pra comer e dormir; assim fui até a idade madura. Dos 18 aos 20 anos trabalhei com um carrinho (tipo de pipoca) estacionado na rua Conselheiro Mafra, no Centro da Capital, fazendo e vendendo amendoim (japonês). Ganhava um bom dinheiro, pois vendia bastante e ganhava comissão. A partir daí minha vida mais uma vez mudaria, pois conheci a bela Iza, rainha do bairro Coloninha, no estreito (ainda Florianópolis). Namorávamos mais por minha imposição pois ela era muito bonita, muito disputada pelos rapazes: uma bela morena, olhos azuis, andar provocante, pura tentação. Eu levei a melhor na disputa, porque não cansei de insistir: fazia versos, com rimas de amor e, aos poucos, fui conquistando a beldade, até que resolvemos fugir. Esta era a solução quando os pais da moça não aceitavam o namoro e os pais dela sabiam que eu não tinha condições de casar, vendendo amendoim. Além do mais minha fama não me recomendava, eu vivia na orgia em boates 120 e cabarés. A mãe dela correu comigo várias vezes em que nos encontramos, simplesmente me detestava. Até que um dia convenci a moça e a levei para um hotel próximo a rodoviária. Meu cunhado, o mais moço, nos ajudou na fuga e a carregar mala. No dia seguinte, fomos pra casa de minha mãe em três Riachos. Uma semana depois a mãe dela descobriu onde estávamos e foi atrás, porém depois de muita conversa, ela aceitou nossa relação e se propôs a ajudar-me, tanto que convidou-me a morar em uma parte da casa dela. Arrumou emprego pra mim em uma madeireira (serviço braçal), mas eu era jovem, forte, visto que na época pesava 62 quilos, cheio de saúde. (Hoje, com 62 anos, peso 45 quilos). Logo nasceu minha filha Andréia, hoje com 40 anos, funcionária pública, formada em direito, casada, tem um filho, meu neto Pablo, com 17 anos. Quando saí da madeireira fui trabalhar em um frigorífico embaixo da ponte, chamado La Serena. Camarão congelado. Ali, trabalhava dentro da câmara frigorífica a 20 graus negativos, batendo caixa (pregando as caixas dentro das câmaras). Quando sentíamos estar quase congelados, saíamos pra tomar sol e depois retornávamos. Isso durante oito horas por dia; as mãos entre os dedos em feridas, visto o ácido do camarão e o cheiro muito forte a ponto de ferver as roupas com sabonete. O banho de uma hora debaixo do chuveiro não era suficiente para tirar o mau cheiro que exalava. Andréia tinha 2 anos quando resolvi vir para o Rio de Janeiro tentar melhor sorte, isso era 1966. Aqui chegando, fui trabalhar na padaria da Lapa, juntinho onde morei em 1951. Trabalhando, ali mesmo dormia em cima dos tabuleiros. Almoçava e jantava pão com mortadela, para juntar uns trocados e mandar para Iza e Andréia. Aqui vale lembrar, que tinha no Rio uma cunhada (irmã de Iza), a Olga, que era solteira, morava na Cândido Benício em Jacarepaguá, casa alugada. De acordo, juntei minhas economias e com a ajuda da Olga, trouxemos Andréia e a Iza de avião para o Rio. Fomos morar com a Olga, que contratou uma babá para cuidar de Andréia, para que a Iza trabalhasse no salão de beleza que ela tinha em Cascadura (Av. Ernani Cardoso, 186). Quanto a mim, trabalhei em várias padarias como a São Luiz, no Largo do Machado; Danúbio, na Vila Izabel; Imperato e Bonaza, no Méier, na rua Dias da Cruz; outra na rua Bento Lisboa; outra na rua Marquês de Abrantes, no Botafogo; outra na rua Bolívar, em Copacabana. Em todas essas era balconista, ajudante ou entregador 121 de pão. Por fim, trabalhei na confeitaria Rio 400, nas Laranjeiras; nesta, era gerente no período da tarde: eu fazia o caixa e fechava a casa, além de comandar os funcionários e controlar todo o serviço da confeitaria. Durante esse tempo as coisas tomaram outro rumo. A Iza conheceu outras pessoas e, como não admito traição, tive que deixá-la. A Olga casou-se com o Dr. Jaeder Soares, mudou-se para o Espírito Santo e levou Andréia para criar. Assim sendo, tudo pareceu desmoronar o castelo que havia construído. Fiquei só, fui para Brasília, pouco tempo depois da fundação (cinco anos), mas não consegui emprego em padarias. Então fui para Belo Horizonte tentar uma colocação. Como estava difícil e, as economias acabando, fui trabalhar em um circo que estava armado na Av. Presidente Antonio Carlos, bairro São Cristóvão. Quando entrei no circo entrei como amarra cachorro – serviço braçal – trabalhador de serviços gerais. É bater estaca, fazer limpeza, dar comida aos animais, limpar a jaula dos animais. Igual na construção civil em que o ajudante de pedreiro é o João de Barro. O servente é Cavalo de Aço. Tudo apelido para a função braçal. Trabalhava, ganhando micharia que mal dava pra comer. Mas um ano depois fazia parte do trapézio do Grande Circo Norte-Africano, por intermédio do treinador do trapézio, senhor Pipo, que também era o palhaço Potó, além de dono do circo. Foi ele quem me ensinou, me treinou e me fez estrear na cidade de Montes Claros em Minas Gerais, isto porque eu namorava a filha dele de nome Mércia. Ela era contorcionista e o irmão, Marcos, era malabarista e também trapezista voador. Aí minha vidinha mudou. Porque eu dormia em cima do picadeiro, debaixo daquelas lonas frias, danadas. Como amarra cachorro, comíamos aquela gororoba que a gente fazia embaixo das lonas do circo. Porque se comêssemos lá no restaurante com os artistas, comer um PF, o dinheiro não dava para a janta. Aí, depois que passei para o trapézio já ganhava um ordenado por mês. Já comia no lugar que eles comiam. Já chegava a ficar em uma pensão, um hotelzinho, lugar bom para dormir. Para viajar a mesma coisa. Uma diferença enorme. Daí veio a minha chance de ganhar bem, comer e dormir bem, além de ser muito aplaudido quando nos apresentávamos. Era uma vida cheia de encantos, como viajar bastante e ser assediado pelas meninas. Fiquei no circo por três anos e oito meses, viajei 122 bastante. Cada semana em uma cidade. Só nas capitais é que ficávamos durante um mês. Depois, voltei ao Rio, trabalhei com táxi da frota Santarém, no Engenho de Dentro; em seguida comprei uma Kombi velha e fui fazer frete em uma transportadora em Caxias, de nome Alagoana. Nessa época, morava em Padre Miguel, na Vila Vintém, casa de D. Juventina, mais uma vez. Naquela ocasião havia reatado com Iza, isto por várias vezes, eram idas e vindas continuas. Numa última separação, mudei para São Paulo. Lá trabalhei na construção do metrô em duas estações: Liberdade, com a Camargo Corrêa e a estação do Paraíso, com a Metrag (Consórcio Metropolitana e Andrade Gutierrez), onde era apontador de produção e apropriação. Nesse tempo conheci a Lindomar, mulher com a qual viria a me casar legalmente. Antes da união legal, fomos trabalhar, os dois, com o Ely Barbosa: edições comerciais, cinema e televisão. Ele é irmão do Benedito Rui Barbosa, escritor de novelas. Éramos caseiros, morávamos no próprio local. Eu era motorista, ela, serviços gerais. Aí, foi que – por influência do Ely e sua esposa, dona Teresa – casamos ali mesmo. Ele pagou todas as despesas, inclusive fez festa no próprio estúdio. Ali conheci muita gente da televisão e do rádio. Fui várias vezes nos canais de televisão assistir programas como o do Bozo no SBT; Mulheres em desfile, na Gazeta; Hebe Camargo, na Bandeirantes. Foi lá que conheci o Maguila em início de carreira, entre outros. O Sérgio Reis e Agnaldo Rayol que foram padrinhos de casamento do filho do Benedito e muitos outros, como Jô Soares, para quem fizemos a gravação de um comercial da pinga "oncinha" e muitos mais. Infelizmente só ficamos um ano, pois a Lindomar era muito ciumenta, além de nós dois bebermos. Por isso não ficávamos muito tempo no mesmo lugar: discutíamos hoje, amanhã ela pedia demissão. Dali fomos tomar conta de uma mansão em Caraguatatuba, litoral de São Paulo, mas pelos mesmos motivos ficamos apenas alguns meses. Depois fomos trabalhar, também de caseiros, na firma Playland do grupo do Playcenter: eu motorista. Também saímos. Então desisti dessa função em conjunto; fui trabalhar em uma firma de acrílicos: a Polifibrás. Eu motorista de caminhão, fazia entregas. 123 Nesta época me separei da Lindomar. Dois meses depois conheci Iracy, que era empregada do patrão e, passamos a viver juntos. Na ocasião saí da Polifibras e fui trabalhar com a firma Lombardi, prestando serviço na Caixa Econômica Federal. Fazia malotes (entrega). Ali trabalhei por três anos. Depois fiquei parado pois havia terminado o contrato; no entanto a firma me mandou para casa, aguardar a chamada por seis meses, mas me pagava o salário regularmente. Até que voltei a ser convocado para prestar serviço no Banco do Brasil, como motorista de ambulância, onde fiquei todo o tempo do contrato: três anos. Outros lugares trabalhei, mas sem carteira assinada. Desde 1995 não tive mais um bom emprego. Para finalizar, digo que estou separado da Iracy; com ela tive dois filhos – o Layon, menino de 13 anos e Luara, menina de 10 anos. Vivo só, cheio de saudades das crianças, morando na Fundação Leão XIII e tentando tratar vários problemas de saúde, após ter morado por seis meses na rua. Assim, contei em retalhos, parte de minha vida conturbada. Meu sonho na juventude, era de muitos filhos ter; hoje, os poucos que eu tenho, mal consigo os ver. 124 Depoimento Wanderley Marques Rio, 09/09/2006. Geralmente escrevo por impulso, coisa de momento. É como preparar um prato simples, caseiro: o segredo é o tempero. O fim acontece quando termina a proposta que me veio como um lampejo. Transmito minha escrita da maneira mais simples possível. Linguagem popular e de fácil entender, ou seja: com poucas palavras muito pode ser dito. Não me preocupo em agradar gregos e troianos. O importante é tentar fazer o melhor. Não me considero um poeta, mas devo ter uma veia de inspiração. Tenho pouca instrução, mas faço bom proveito. Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono e, como tal, também sonho um dia ter o nome conhecido, trabalho reconhecido e quem sabe, editado. O ato de escrever é como o ato de amar. Você se deixa levar por inteiro, buscando a amada inspiração. Por isso, a cada trabalho concluído, de mim ganho um abraço, bato palmas para mim mesmo e parabenizo o que faço. Feliz seria, saber que meu modesto escrito ocupa suas mãos e me faço merecedor da atenção dos teus olhos – leitor – que devoram com voracidade cada página virada, pois tudo que fiz foi no intuito de agradar teu seleto bom gosto, aguçando teu paladar apurado. Porventura queiram me contactar, basta este número ligar: 21 2410-7008. Recados para o poeta. 125 no tabuleiro do Brasil entre versos e reversos capítulo 10. 126 Tudo tenho, nada quero, tudo quero e nada tenho, sou como água pouca, que não move engenho. A potência dessas águas que deságuam, versadas pelo senhor Wanderley, se abrem em corredeiras oriundas, muitas das vezes, dos silêncios que desejam brotar, mas acreditando-se poças escorregadias, de limo verde e maduro, nos afugentam com receio das fragilidades. Convites para a desistência. Não foram poucas as vezes em que cheguei nessa instituição como educadora que integrava a equipe do projeto Buscando Caminhos Através da Arte e sentei-me em um batente para observar o que movia os olhos dos outros. Ali ficava um bom tempo, parecendo não fazer nada, para muitos, mas fazia-me atenta a uma folhinha que caía, acompanhada por um olhar comentador; curiosa por uma pedrinha catada, como preciosa e, depois de analisada a sua forma, cor, peso, já polida entre dedos e camisa, percebia que essa mesma pedra aguardava no bolso, embaladinha em papel de bala encontrado no chão: destino de afeto e de lembranças. Assim, também me sentia acolhida por silêncios e olhares quase duros, como aqueles do senhor Célio que assim que me avistava, gritava de sua cadeira de rodas com veemência: - Vai morrer. Você vai morrer! Xingando-me com nomes pesados. Quando eu me encontrava sentada num batente, num meio fio ou numa pedra de construção, conversando, cantando, recitando com alguém com quem construía relação, aquele sr. silenciava seus gritos, em respeito. Mas se meu olhar se descolasse por um instante daquele interlocutor com o qual dialogava e, insinuasse um olhar para o Sr. Célio, ele – que me fitava – virava o rosto enfaticamente, com tamanha precisão e rapidez que definia a 127 impossibilidade de aproximações entre eu e ele, ou de laços tecidos entre olhares. Bastava levantar-me, em despedida daquele momento no qual me encontrava com algum senhor ou senhora, que o Célio gritava e me xingava novamente. Nunca provoquei um embate de olhos, exercitando-me em cuidados para que não alterasse expressões em meu rosto e corpo, mesmo naqueles momentos nos quais fui pega de surpresa com seu falar enfurecido. Continuava meu trabalho, sem evitar passar ao lado do sr. Célio, visto que sua cadeira sempre estava na passagem do caminho. Mas já o conheci assim, havendo eleito esse ponto como seu local preferido para estacionar a cadeira de rodas e banhar-se ao sol. Também exercitava-me para não enfatizar atitudes catadores de brechas favorecedoras de aproximações forçosas. Fui percebendo que, nos encontros coletivos nos quais muitos dos cadeirantes precisavam de ajuda para locomover-se até o local onde nos reuníamos, sr. Célio fazia-se presente cim regularidade. Enquanto eu trafegava com algumas cadeiras de rodas que levava para a sala, era surpreendida com a presença do Célio, sempre imóvel. Atento e circunspeto, participava à sua maneira. Eu não fingia que não o via, mas também não o fitava, por assim intuir que o Célio queria. Mas quando sentia que podia, passava um olhar por ele e, por breves 2 segundos, me permitia – quase que de maneira invisível – assumir uma alegria minha, pela sua presença. Assim passaram-se meses, nos encontros em duplas, volta e meia visitados por suspiros e olhares de vizinhos passantes, ou nos encontros mais amplos, uns e outros banhados por histórias, canções, poesias que acordavam desejos de trocas. Nunca houve uma palavra do senhor Célio, jamais ocorreu uma presença assumida. 128 Até que um dia, caminhando pela Fundação, sua ausência aparente tornou-se forma confiada e com uma voz precisa, me grita: - Hei. Venha cá. Procurei de onde vinha e era o senhor Célio a me chamar. - Hesitei um pouco, precisando confirmar entre gestos, se era para mim o chamado. - Venha cá, confirmou o Célio. Quando perto um do outro estávamos, Célio fez um gesto decidido, levando a mão direita ao peito e, dali retirou um guardado entre as blusas. Trouxe, então, um papel antigo e bem dobrado, apresentando-o a mim. - Tome, rasgue um pedaço, e leve com você. Abri o bilhete como quem abre um segredo e me deparei com alguém – presente no papel – nesse escrito de tempos: Célio, você é um cara muito legal. Dizia o bilhete amigo. Não poderia rasgar, nem levá-lo comigo. Por um impulso, toquei em suas mãos perguntando se poderia levar o bilhete de um outro jeito. Sr. Célio ficou apenas me olhando, aguardando-me. Abri minha bolsa e mostrei-lhe a máquina fotográfica, já bem conhecida dele, visto que sempre a uso nos meus encontros. Pedi permissão para tirar uma foto do bilhete. Isso feito, disse-lhe que também adoraria tirar um retrato no qual ele estivesse presente, para levá-lo também comigo. Sr. Célio posou alegremente. Dias depois, levei lhe a foto que revelava o bilhete e outra foto dele, bem posudo e belo. Sr. Célio guardou a foto na qual posava e hoje, de vez em quando, nos cumprimentamos gentilmente. 129 Quando com ele me encontrei para ler esse escrito, neste ano de 2006, ano e meio após o episódio narrado, ele mostrou gostar do texto. Lembrou-se da época dos gritos e xingamentos e silenciou entre orgulhos serenos e concordantes com o caminhar das palavras lidas. Contou-me que a foto fôra enviada, por carta, para sua mãe, naquela mesma época. E disse-me que autorizava a narrativa, mas que para isso se efetivar, gostaria deste texto impresso em papel também para ele, proporcionando-me importante aprendizado ao falar-me de maneiras diversas, que, ainda que estes senhores e senhoras façam de tudo para que desistamos deles, não podemos fazê-lo. Também, o senhor Célio me mostrou o quanto as experiências podem nos encolher, levando-nos a nos proteger de encontros que possam vir a afirmar e presentificar dores e fragilidades. Descobri, neste senhor – chamado por muitos de cabeção, por seu aspecto físico diferente – um homem doce, risonho. Lembro-me de alguns ensinamentos que recebi quando me dirigi pela 1ª vez à Fundação Leão XIII, unidade de Campo Grande. Recomendações para que não conversasse de perto com os senhores e senhoras; que não ficasse sozinha com nenhum deles; que toques ou apertos de mão nem pensar e que jamais me descuidasse de meus pertences que deveriam estar sempre na mão: eram avisos vindos de toda parte. São estes senhores e senhoras que me ensinam que, ao resolver trabalhar num local como este, faço-me implicada às complexidades presentes e, tornando-se impossível construir relações verdadeiras sem tocar e ser tocada, sem afetar e ser afetada. Relações afetuais ressaltam uma constatação que vem se afirmando, a cada dia, como fundamental nesta metodologia: a necessidade de explorar a dimensão do risco, visto que precisei intencionalmente assumi-lo como imprescindível, fundamental como o risco, por exemplo, de me relacionar com o senhor Célio, de ser enfrentada, agredida por ele. 130 Risco de que preciosidades não possam ser registradas ou mostradas para outras pessoas, se assim for o desejo daqueles que me revelaram reflexões entre trocas con-fiadas. Risco de contrair alguma doença, apesar de cuidar-me atentamente, lavando o rosto, as mãos e os braços, sempre que tenho discreta oportunidade. Risco de ter meus objetos pessoais e instrumentos de trabalho desaparecidos. Mas não posso arriscar-me, jamais, a fazer-me como mais negação uma na vida das pessoas. E neste sentido, o delicado respeito e me silenciar quando a outra parte sinaliza ser a sua possibilidade de convivência comigo. . . . Volto-me então ao senhor Wanderley que, entre conversas, contou-me com orgulho sobre sua estada na escola. - Quando eu cheguei na escola eu era bem caipira, vinha lá de dentro do mato mesmo. Caipira, não sabia nem o que é que ia falar. E as crianças gozavam, me chamavam de caipira, de matuto. E a senhora que me criava comentou com as amigas: - primeiro ano, acho que o Wanderlei não vai nem conseguir passar da primeira série, porque ele não sabe nada. Nada. Absolutamente nada. Matuto, veio lá do mato, lá do interior. Moral da história – conta-me o sr. Wanderley – segundo colocado na primeira série; segundo colocado na segunda série e uma boa colocação na terceira série. Depois fiquei uns seis meses sem ir à escola porque fui morar em Majé, com a tia Bilica. No dia dos exames a senhora Juventina – que me criou – me buscou em Majé e levou ao Rio de Janeiro para fazer os exames de final de ano. Me saí bem e passei em 3º lugar. Pergunto-me se é sempre que esse dito matuto consegue libertar-se dos títulos impostos como rótulos e garantir espaços coletivos onde o fazer, o trocar, o refletir, o amar, o afetar e ser afetado possam se fazer práticas cotidianas. 131 E esse rótulo marcante me traz à lembrança outro senhor, morador da Leão XIII, Luis Carlos pessoa, com quem tive o prazer de conversar algumas vezes. Encontrava-o sempre sentado em um monte de pedras amontoadas como sobras da construção de um pavilhão novo, que estava sendo erguido para melhoras na acomodação dos senhores. Construção que muitos deles afirmam contar com mais de 10 anos de realização, ainda que continuasse em processo de construção em 2005 e em constante promessa de breve inauguração. Neste sentido, certa vez estava procurando o senhor Luis Carlos, quando constatei, pela primeira vez, sua ausência entre as pedras e solicitei ajuda a uma das assistentes sociais – pessoa delicada no trato com os usuários e querida por eles. Foi ela que me noticiou o falecimento do senhor Luis, que se desconhecia estar tuberculoso. Extremamente tocada, contei-lhe que tinha levado uma foto dele sentado em seu mirante, junto a seus pertences e, uma outra foto na qual aparece com um amigo, um fazendo a barba do outro. Levei a foto para presentear-lhe. Atônita, confidenciei à assistente social notícias das últimas vezes que tínhamos conversado – eu e o senhor Luis – comentando sua criticidade aguda. A assistente mostrou-se perplexa, sem acreditar que falávamos da mesma pessoa. Mostrando-lhe a foto, confirmou ser ele mesmo. Ainda surpresa, ela comentou com sentimento carinhoso reflexivo: - Olha só, eu não dava nada por ele. . . . Os senhores Luis Carlos, Wanderley e Célio juntos à assistente social, e tantos outros, me fazem pensar em quantos estudantes são considerados problemáticos em sala de aula, crianças e jovens rotuladas nas escolas institucionais e nas escolas da vida, da mesma maneira inconseqüente. E o próprio sr. Luis Carlos me despertava os sentidos, quando entre conversas, refletíamos. 132 - Sr. Luis, pergunta Isabel, quando eu cheguei aqui o senhor estava comentando alguma coisa, há algo em que eu possa ajudar? - A refeição está péssima. Arroz cola, com um pouquinho de feijão e algumas fatias de tomate. Os funcionários têm que reclamar aos chefes, para os chefes tomar uma iniciativa. Reclamar à sede e a sede fazer o complemento que está faltando. - Que reclamações o senhor acha que deveriam chegar até o chefe e à sede? - A refeição está péssima. Isso não é refeição para um homem, nem para uma senhora. Nem para interno nenhum. Um arroz grude – cola – com um pouquinho de feijão e uns pedaços de tomate. Cadê a carne? - O que significa poder, para o senhor? - Poder é... falarmos da comida... falarmos de tudo e eles têm que agir. Têm que tomar uma iniciativa e botar em dia o que está faltando. - O senhor mora aqui há quanto tempo? - Dessa vez eu faço 51 anos. Já rodei por isso tudo. - Se o senhor pudesse me dizer o que é que o senhor aprendeu aqui nestes 51 anos, o que é que o senhor me diria? - Aqui eu não aprendi nada. Aqui não tem nada para aprender não. Aqui nós temos é que ensinar. - E o que é que o senhor, então, pode estar nos ensinando? - Eu não tô ensinando nada não. Eu só estou falando o que muita gente não tem coragem de falar. Eles morrem passando fome, comendo esse grude horrível e continuam de bico calado. - Que outros assuntos necessitam de mudança, aqui na instituição? 133 - O resto está agindo, tudo andando direitinho. Só aí, está essa graça. Acordar de madrugada para tomar um gole de café frio com biscoito. E agora, na hora da refeição, comer essa cola braba. - Mas se o senhor fosse diretor da Fundação, o único item a ser mudado seria a alimentação? Ou haveria outras questões também? - Ah! teria outras. As coisas iam correr a rigor. Não ia ser esse patriotismo. - O senhor acha que os senhores que moram aqui se ajudam uns aos outros? - Em que sentido? - Aí, eu é que pergunto ao senhor: em que sentido há ajuda? - Ninguém ajuda ninguém aí não. Quando se usa um favor, é como correspondência de um cigarro ou um pacote de fumo. - Quem é que dá o pacote de fumo? - A pessoa que está pedindo o favor. - Não existe mesmo ajuda, por uma vontade de ajudar? - Não. - Então, não seria este, um outro ponto que precisaria estar melhorando, mudando aqui na Fundação: a forma da gente estar se relacionando um com o outro? Silêncio. - Eu tenho 34 anos, o senhor tem 80. Um conselho para a minha vida, qual seria? - Fazer pela sua parte. - O que o senhor acha que pode facilitar esse nosso viver, para que não seja um viver afirmado na negociação, no qual, a fim de fazer alguma coisa para o outro precise estar oferecendo algo material, como um comércio? - Gratuitamente? 134 Não existe isso. Eles querem escravizar os outros com um pacote de fumo. Penso nas palavras, tantas vezes tratadas de modo a falar das representações populistas que permeiam a idéia de Pátria. O que é preciso fazer para que a gente possa lidar com o outro em formas amorosas? Convido Carmélia, funcionária da Leão XIII por 26 anos e, por 22 anos atuando na CRS - unidade de Campo Grande, no sentido de aprofundar algumas questões enfocadas e tensionadas pelo Sr. Luis Carlos e por outros senhores, usuários desse Centro. Carmélia: - Nossos usuários,9 hoje foram população de rua ontem. Totalmente desprovidos de todas aquelas necessidades básicas. Há um descompromisso dos governos que não têm uma política voltada para eles, sem que haja envolvimentos políticos. Eu me lembro de uma colocação que fiz no Seminário que vocês – do projeto Buscando Caminhos Através da Arte – realizaram conosco. Sabe por que que eu fiz essa colocação lá? Porque lá estava toda a maioria dos dirigentes da Fundação. Então, na Fundação, não são os funcionários que respondem, e sim os governantes. A realidade é feia, a ponto dos usuários (os abrigados) passarem fome. Essa é a grande realidade. Choca. Mas choca feio. Aqueles melhores de saúde foram para a vila dos idosos e lá no CRS [Centro de Recuperação Social], na unidade de Campo Grande, ficam os idosos que não podem caminhar, que precisam de fisioterapia. É uma população que te deixa triste. Uma falta total de expressão. Foi este o motivo de eu ter chegado ao ponto da depressão. Eu tive que me afastar agora em 2006, porque o meu psiquiatra exigiu como recomendação médica. Sobre as minhas colocações, eu fiz, faço e farei em benefício deles, porque alguém precisa falar alguma coisa. Porque a partir do momento em que eu me omitir estarei sendo conivente. E eu nunca fui conivente principalmente com este nosso trabalho. Meu Os funcionários da Fundação Leão XIII e os próprios senhores e senhoras moradores dos CRS – Centros de Recuperação Social se referem a esses senhores e senhoras abrigados como usuários. Essa palavra cria me incomoda por levar-me a associá-la, nesse contexto, a pessoas que se utilizam de algo ou de alguém; quando me referir a estes senhores e senhoras, estarei optando por outras expressões como os abrigados, os senhores e senhoras exilados etc. No entanto, sempre que em uma entrevista essa palavra surgir, estarei respeitando a cultura e a implicação daquele que a citou. 9 135 trabalho lá – você percebeu, Isabel, eu me dediquei muito a eles e, se tiver que voltar, vou continuar me dedicando. Porque eles precisam de muita afetividade. Acho que o único recurso que nós temos lá, para trabalhar, é a nossa afetividade. É isso que mantém eles, ainda. Isabel: - E essa afetividade vem de onde, de quem? - Da gente. Do profissional. Mas do profissional que é comprometido. Porque os usuários estão acostumados a conviver muito com a perda e as perdas para eles são muito dolorosas. Esta perda não tem previsão. Acontece de repente. Eu sou contra isso. Porque eles perdem o vínculo repentinamente. As pessoas vão para lá, criam vínculos – vêm profissionais bons como você, como as assistentes sociais, como as psicólogas – a gente cria esse vínculo com o nosso dia-a-dia e, esse dia-a-dia é cortado pela política de alta rotatividade que traz e leva profissionais através de projetos de grande importância para a população e que não podem ser interrompidos, mas, infelizmente, são. Eu sempre questionei isso. Tem que haver projeto não de interesse político, partidário, do momento. Não há verba para realizar atividades com os usuários. O que eu realizava era por conta própria. O improviso também desgasta. O lanche deles, os aniversariantes do mês, eu fazia, com a colaboração de muita gente. Tinha bolo, refrigerante. Tinha tudo. Fazia contatos. Recursos da Fundação não tinha, mas de grupos amigos do CRS. No início do ano de 2005, o que eu fiz: liguei para todos os grupos colaboradores e fiz uma escala, cada mês um grupo assumia, grupos de fora que apóiam. Tem um ex-funcionário que todo ano leva 400 sorvetes. É gente que tem o compromisso com eles. Com a minha saída eu tenho a certeza de que deixei os contatos dessas pessoas lá, tudo organizado. O benefício é para a comunidade. - A gente estava conversando sobre o tempo que eu tenho estado no CRS, de 2002 para cá, e o quanto fico perplexa com a quantidade de coordenadores 136 que presenciei nesse período. Entre 5 e 7 coordenadores em tão pouco tempo. Por que isso?10 - Política. Mas, será preciso atentar para as várias acepções da palavra política. Como politicagem, percebo que pratica a manutenção dos tantos privilégios mediante cargos e remunerações diferenciadas como premiações àqueles que, obedientes, cumprem ordens que se acreditam inquestionáveis e trabalham com afinco para que realidades díspares não sejam refletidas, ou quiçá transformadas no que diz respeito a recursos injustamente alocados, porque massacradores de experiências. Penso na política como sistema também capaz de desmontar limites, reconfigurando ações no investimento de espaços sociais múltiplos, que investindo na criticidade e na participação dos sujeitos sociais, favoreça repensarmos coletivamente os laços de sociabilidade e as práticas configuradoras de inclusões e de exclusões. Política que vislumbra um porvir democrático, porque se acredita como ferramenta favorecedora de que todos e todas possam participar da gestão pública como sistema de decisões e de práticas coletivas. Política que acredita que apenas na participação efetiva da sociedade como agente de reflexão e de decisões coletivas, faz-se possível reestruturarmos sistemas para que todos e todas possam fazer da vida uma experiência duradoura, porque criadora de sentidos que não se fazem como privilégios, mas como direitos, oportunidades e realizações de todos. Pensando a política como práticas complexas, volto a dialogar com Carmélia: - Ter compromisso com a política significa o quê? - Existem uns coordenadores que têm compromisso com a população de usuários, outros que têm compromisso com a política. Quando acontece de ter compromisso com a 10 Isabel trabalhou na Leão XIII dede 2002, como educadora que integrava a equipe do projeto Buscando Caminhos Através da Arte. A partir do ano de 2005, o projeto termina e Isabel continua seu trabalho, mantendo o vínculo com todos os senhores e senhoras com os quais estabeleceu relações, como profissional voluntária. 137 população e enfrenta a política, o coordenador fica por pouco tempo, porque perde o emprego. Começa a incomodar e se incomodar muito... - E ter compromisso com a política, significa mesmo o quê? - Prejuízo para a população carente. Porque a pessoa não está comprometida com o desenvolvimento, mas com a manutenção do seu cargo. A instituição tem que ter compromisso com a população atendida. Através de projetos e de uma equipe séria. Abrir concurso público. Formar uma equipe para não quebrar este vínculo. Tem que haver comprometimento. Por exemplo, eu fiquei muito pouco como coordenadora lá. Minha indicação não foi política. Eu fui praticamente intimada para assumir a coordenação. Mas eu estava com muito gás, hoje estou desgastada devido àquele trabalho lá. Como coordenadora a partir de 1996, eu tive respaldo aqui em baixo, porque o meu diretor – na sede – era da própria Fundação, não era indicação política. Então as decisões que eu tomava no CRS de Campo Grande, havia um funcionário diretor que acatava. Eu não tinha um compromisso político e nem ele, que também era funcionário. Eu fiquei quatro anos e pouco. O vínculo político não passa por uma avaliação. A assessoria legal da Fundação faz uma avaliação para ver se você – funcionário – pode assumir aquele cargo. Uma avaliação séria. As observações de Carmélia me levam a ressaltar a importância da necessidade de ações que possibilitem institucionalizar os vínculos, que oferecem condições a exercícios profissionais comprometidos com as reais demandas sociais. Instigada pelas reflexões, continuo a entrevista: - Carmélia, quando você testemunhou gestões com este vínculo e aprisionamento político, quais foram as marcas desses coordenadores? Quais eram os reais interesses e ações? - Muitos conflitos entre funcionários e usuários. Porque eles vêm com uma cobrança, não em benefício da população e sim no benefício de mostrar um trabalho em 138 que os chefes – cargos de confiança – fiquem cada vez melhores em relação à política, para manter o cargo deles. A política partidária, infelizmente, atrapalha nosso trabalho. - Qual é o objetivo da Fundação Leão XIII, no seu ponto de vista? - Se existe objetivo, ele não se faz. Por que falta tudo. Como estão os funcionários? Completamente desestruturados e doentes. Na Fundação, hoje, nós estamos doentes. A Fundação está morrendo, de acordo com a morte dos funcionários. Eles vão morrendo e a instituição vai morrendo também. Quando eu entrei nós éramos quatro mil e poucos funcionários. Hoje, não chegamos a mil. Não tem concurso interno, externo, não tem nada. Cabide político. Isso é lamentável, isso é muito triste. O objetivo da Fundação, mesmo, é o atendimento às pessoas carentes em regime aberto e regime fechado. O que é regime aberto? Centros Sociais. Unidades fechadas: é abrigar o desabrigado. Mas como não tem mais recurso... - Você disse que houve um período em que foi coordenadora do CRS de Campo Grande e afirmou que teve um respaldo. Como foi essa gestão e que respaldo era esse? - Não era um respaldo financeiro, mas um respaldo de trabalho, por exemplo, de decisões, como eu há pouco mencionei. Eu tomava uma decisão – custava a tomar – mas quando tomava, não deixava que ninguém boicotasse. - Quais as grandes dificuldades que você teve e quais as principais realizações que você conseguiu fazer? - Eu tive todas as dificuldades, a maior responsabilidade foi conseguir levar o trabalho. Mas eu recebi muita ajuda. Eram mil e pouco usuários, sem uma ambulância e nós não tínhamos recurso nenhum. Os funcionários levavam usuários no carro e eu levava no meu quando algum usuário precisava ser hospitalizado em órgão público. Hoje, as coisas são assim: é do Estado é do Estado. É do Município é do Município. Parece que o ser humano tem rótulo, você é do Estado; você é do Município. Eu fiz com que isso não existisse no meu trabalho como equipe gestora. Quando eu assumi o cargo, eram 30 óbitos por mês e fechei o semestre com 34. Eu respeitei o compromisso e tive ajuda. 139 - Hoje a problemática da Fundação continua? - Continua. Está melhor porque a Fundação Leão XIII pegava todo mundo da rua, não tinha um perfil. Hoje tem um perfil. Em Campo Grande, é o idoso. Mesmo assim continua sem recurso. - Hoje, o que é mais urgente na Fundação que precisa ainda ser conquistado? - Alimentação, saúde... Falta tudo. - A metodologia da equipe como se desenvolve? Por exemplo, a limpeza do armário dos usuários, feita sem que eles participem; as roupas que após serem lavadas pela lavanderia da própria sede não retornam ao mesmo senhor ou senhora que estava usando aquelas peças; os objetos deles que são recolhidos e jogados fora, sem o consentimento e participação dos abrigados nas decisões e ações. Seria um processo metodológico consciente e, portanto, a par das implicações desses atos, mas que, no mesmo instante, se finge surpreso com suas seqüelas, como conseqüências inesperadas, até que ponto essas ações seriam atos inconseqüentes ou se trata de uma ingenuidade, de um despreparo nos procedimentos adotados? - Acho que é por ignorar. Mas nesse ponto eu responsabilizo a equipe técnica. Porque nós temos essa visão, mas precisamos brigar por isso. Acho covardia de nossa parte, enquanto profissionais, não bancarmos essas reflexões e o cumprimento delas. Como, por exemplo, as canequinhas individuais, coisa que eles tanto pedem. - Essa questão pedagógica que é tão importante dentro do CRS, se faz como? - Quase não existe. - O que de riqueza você traz em si, considerando como aprendizado constituído nessas experiências na Leão XIII? - Valorizar a vida. Valorizar a família. Valorizar tudo que eu tenho na vida. Quantos idosos morrem lá abandonados no hospital. Vão para o hospital e ficam lá. A 140 gente aqui esperando o comunicado da morte. Isso é o abandono. Tem que ter um olhar mais atencioso com o ser humano. Eu cresci muito na Leão XIII. Recebi muito amor. E venho de uma estrutura familiar de muito amor; então pude dar amor a essa gente. A gente dá o que tem. - Que portas sociais você vê abertas e, que portas você vê fechadas na Fundação? - Difícil. Fechada é a falta de recursos. E a aberta é que tem muita gente querendo ajudar. Com o mínimo de recursos e o mínimo de comprometimento, consegue. - O que você não gostaria que esta pesquisa fizesse? - Prejudicasse eles. Essa pesquisa tem que ser em benefício deles. Se você fizer uma matéria que seja em benefício deles, ficarei feliz. - Uma pesquisa para beneficiar os abrigados, precisa de que? – Bom, eu vou falar do CRS. Primeiro definir o perfil real de lá de Campo Grande: é o idoso. Para fazer um trabalho voltado para o idoso, é preciso contar com fisioterapia, com a alimentação própria para eles. Não é arroz e feijão. Mas uma alimentação voltada para o idoso desnutrido. A parte da saúde é fundamental e eles não têm. Existe um ambulatório que atende entre aspas e quando algum usuário está muito ruim é encaminhado ao hospital para morrer. É preciso ter um compromisso real. É importante o atendimento com psicólogo, com assistente social, com médicos, com terapeutas, com pedadogos. Mas não por estagiários. Musicoterapeutas. Eles – os usuários – adoram cantar. A maior alegria deles é a música. Como eles se sentiram gente no Seminário realizado por vocês do projeto Buscando Caminhos Através da Arte. Se sentiram gente. Gente! Eles falaram tanto. Até hoje eles falam da alegria do Seminário. Primeiro, eles passearam pela cidade; segundo, eles adoram cantar e terceiro, eles tiveram receptividade. 141 Participaram do Seminário na platéia e no palco. Você lembra daquele almoço? As mesas forradinhas. Foi preparado um ambiente. Serviu-se strogonoff, batata palha e arroz. Muitos nem podem comer isso porque são idosos, mas foi tão importante para eles! Estão acostumados com arroz e feijão, sempre. Estão acostumados a pegar uma fila para buscar a comida para almoçar. É um sofrimento. Ficam numa fila ao sol. Lá tem uns que vão às 10 horas da manhã para a fila do almoço. Vão com doença para a fila – aqueles que não são acamados. Os acamados recebem a refeição nos alojamentos. De manhã, às vezes, recebem um cafezinho sem pão. Esperam dar meio dia para comer uma refeição. Pessoas idosas que ficam intervalos longos sem comer alguma coisa. É um sofrimento. Eles esperam ansiosos bater o ferro. Bater no ferro é o nome que eles dão ao sinal feito por um usuário que a gente tem lá, que acha que o trabalho dele é esse: bater num ferro pendurado em uma árvore para sinalizar a todos que já está na hora do almoço, do lanche, do jantar. - A comida dá para todos? - Dá, mas é a política da boa vizinhança, lá também. Os protegidos recebem a comida primeiro. Outros ficam prejudicados, na fila imensa ao sol. Até que entram no refeitório e são servidos. Na falta de funcionários, alguns usuários colaboram nos serviços relativos aos setores e nesses casos, cada usuário recebe do setor, ao qual ajudou, uma gratificação como um lanche melhorado, um pacote de fumo... Mas isso não é uma ação da Fundação Leão XIII, são maneiras internas de lidar com as questões de defasagem funcional. Políticas de Favor e de Terror, expressão utilizada pela professora Célia Linhares, aí tão bem exemplificadas por Carmélia. Aliás, um dos abrigados já havia se referido a esse tipo de política.11 Carmélia prossegue: - O mercado de trabalho não pode ser aqui na Fundação. A Fundação tem que ajudar a eles, inserindo aqueles usuários, que têm condições, no LINHARES, Célia; SILVA, Waldeck Carneiro da. Formação de professores: travessia crítica de um labirinto legal. Brasília: Ed. Plano, 2003. 11 142 mercado de trabalho em algum lugar que não seja o CRS, onde ele mora. Aqui no CRS, é preciso que ele seja igual a todos em direitos e responsabilidades. Não pode haver esse privilégio. - Por que as feridas dos usuários nunca saram, Carmélia? - Diabete. Hoje tem remédio, amanhã não tem. Alcoolismo que tira a noção da necessidade de fazer curativo e corta o efeito de alguns medicamentos. - Aquele pavilhão que em 2002, quando eu entrei no CRS, estava em fase de construção, sendo inaugurado em 2005, mas os usuários vieram a ocupá-lo somente em 2006 e já nesse ano o pavilhão foi embargado por perigo de desabamento. Por que isso? - Aquela obra que se inaugurou em 2005, começou na minha gestão. Em 94. Na gestão anterior à minha, a Leão XIII de Campo Grande estava um caos. Aí eu assumi. Fui lá na televisão e falei a verdade na TV Globo. Houve um impacto. Começou a ir todo tipo de fiscalização lá. Fêz-se o projeto de reestruturação do CRS de Campo Grande, em todos os pavilhões. Fomos buscar a verba, mas você sabe que tudo demora. Isso aconteceu quando eu tinha um ano de gestão. Três anos após a aprovação do projeto, quando já estava acabando o tempo de minha gestão, conseguimos que a verba saísse. Começou nessa época a realização do projeto de reforma dos pavilhões. Eles liberaram verba para um projeto alto. Quando a unidade de Campo Grande foi aberta pela primeira vez em atendimento à população de rua e de pessoas carentes, aquilo lá era horrível. Tinha sido uma granja, um galinheiro, antes de se transformar na Leão XIII. Então a estrutura era de um galpão com camas, beliches, uma sujeira horrível e cheiro forte. Também, os usuários não tinham privacidade nos alojamentos que eram um grande galpão com camas e beliches. Essa reconstrução dos pavilhões foi projetada para dar mais conforto, privacidade e condições higiênicas aos usuários. Você perguntou se a Fundação mudou. Mudou muito, mas precisa mudar mais ainda. Como, por exemplo, essa obra que foi recém-inaugurada e já foi embargada por problemas na qualidade da construção. 143 Aqueles senhores estão hoje esperando a morte. Eles precisam viver, o pouquinho que lhes resta, com dignidade. Teve um projeto da Delegacia Legal – ação do Governo do Estado (a equipe foi embora na semana passada) e, eles não puderam ficar mais que cinco anos trabalhando para não constituir vínculo empregatício. Ai é que vem a falta de compromisso. Esse grupo que saiu documentou gente que estava na unidade de Campo Grande há vinte e tantos anos e não tinha um documento de registro como interno. Não tinha nem prontuário. Esta equipe conseguiu muito benefício para os usuários como, por exemplo, registro tardio; 2ª via de certidão de nascimento e de casamento, através da busca cartorial; documento de identidade e de CPF. Foi um grupo de compromisso. Muito bom. Sem documentos os usuários não conseguem o benefício do LOAS que é uma lei orgânica da assistência social que possibilita a todo idoso acima de 65 anos – quem não recebe nenhum outro benefício ou aposentadoria – a receber um salário mínimo mensalmente como benefício legal. É importante saber que as famílias de crianças e adolescentes deficientes também têm direito a esse mesmo beneficio. Alguns usuários são amparados com esse benefício através de ações do serviço social que assegura o encaminhamento para o LOAS para que seja avaliado o pedido. Mas é preciso estar atento à questão de que quando se tenta o benefício para uns e não se tenta para outros – que estão na mesma situação – cria-se outro problema. Desde que a lei ampare – porque os usuários estão sob a tutela da instituição – faz-se necessário pensar que, ao agirmos em benefício de um, temos que agir em beneficio de todos. Mas esta é uma ação realizada pelos assistentes sociais, não é uma ação própria da Fundação como um procedimento formal. Essa equipe da Delegacia Legal fortaleceu esse tipo de ação que já existia há muito tempo, em ritmo lento, devido à falta de recursos. - Os usuários têm espaço para se expressar criticamente? - Tem o Centro de Referência e o Serviço Social. Eles buscam muito, são os setores em que eles confiam. 144 - Conheci um senhor que ficticiamente chamo de sr. Manuel. Ele estava em Copacabana à noite, passeando sem documentos, o carro da recolha passou e o pegou, levando-o para a triagem que o encaminhou à unidade de Campo Grande. Mesmo avisando que tinha casa e não era mendigo, ele foi levado para o CRS de Campo Grande. Dava seu endereço, seu telefone. Comunicou que morava com a irmã, mas apenas quatro meses depois, quando uma psicóloga estagiária o escutou, descobriu que tudo que ele falava era verdade. Ela mesma checou as informações do senhor e providenciou, com ajudas, o retorno dele para sua residência. Estes senhores não têm o direito de ir e vir? O direito de falar e serem escutados? - O que você contou faz com que alguns usuários em condições parecidas fiquem no CRS por anos e anos, perdendo sua identidade, o vínculo familiar e o direito de viver com suas próprias referências. A triagem é muito importante para que esses senhores e senhoras não sejam prejudicados. Eles não são obrigados a ficar na Leão XIII. A gente tem que respeitar o direito deles de ir e de vir. Aí é que eu falo sobre a falta de compromisso profissional, porque o ato da entrevista inicial é para isso, para você peneirar. Quando eles falam que não querem ficar, que têm para onde ir, que têm família – sendo fantasia ou não – nós temos o dever de checar. - Mas uma coisa é o que deve ser, outra coisa é o que é. - Você, por exemplo, Isabel. Na visão da maioria dos funcionários, quando você está ali conversando com eles, não está fazendo nada. É até uma falta de visão da maioria. A falta de visão não traz a valorização do outro. . . . Aproveito essas análises de Carmélia, para convidar a Luciane, jovem psicóloga que conheci na Leão XIII de Campo Grande. Instigada pelo seu comprometimento e cuidado, pude conhecer o sr. Manuel e sua história, visto 145 que ela, Luciane, foi a pessoa que desempenhou a simples ação de escutar e checar aquilo que o outro contava, como foi o caso desse senhor que, finalmente, pôde ser ouvido quando esta jovem se fez disponível e disposta a entender suas demandas. Luciane, que fazia parte da equipe da Delegacia Legal, conta em seu relato, aspectos importantes dessa experiência, a partir de aprendizados e pontos de vista dela própria. Trajetória na instituição abrigo: da exclusão ao aprendizado Luciane Marequito Instituição fechada, com altos muros, cercada por uma mata e afastada, muito afastada do centro urbano. Em seu interior, 240 pessoas, 240 sujeitos de infinitas multiplicidades. Contrariando todos os esforços de coerção e controle, caracterizados pela atuação dos mais diferentes profissionais, das mais diversas áreas, a diversidade vive naquele espaço. Porém, apesar da diversidade, esse espaço não é diferente daquilo que constitui os abrigos ao longo da história: instituição de afirmação da exclusão dos pobres, dos loucos, dos negros, dos sem residência, dos sem referência, dos sem documentos e dos sem possibilidade de reinserção social. Quando trabalhei na Fundação, através do projeto realizado pela Delegacia Legal, o mau cheiro que exalava dos alojamentos (locais onde os usuários dormiam), as roupas surradas, os pés descalços, o silêncio de alguns, os gritos de outros, a loucura estampada ou velada – nada disso foi capaz de me causar incômodo. O maior incômodo, que posso até chamar de desconforto, tal foi a sensação ruim que senti, me foi causado por pessoas que a princípio cumpririam o papel de – no exercício de suas funções – garantir o bem-estar dos usuários na instituição: os profissionais. Meu desconforto estava em ver dezenas de pessoas sendo medicadas, sem lhes serem oferecidos tratamentos para seus verdadeiros males. O que me incomodava era ouvir de profissionais com atuação de mais de 30 anos na instituição: “Se (determinado usuário) sair da instituição, ele morre!”. E havia uma grande possibilidade desse 146 usuário em questão, vir a falecer mesmo, caso fosse desinstitucionalizado. Nesse caso, quem seria o maior dependente da estrutura do abrigo, o usuário, que se sair morrerá, ou o profissional, que ao longo dos anos construiu essa relação de quase simbiose e não permitiu que esse sujeito se abrisse para as possibilidades que o mundo lhe oferece? Mas, o mundo do abrigo é um mundo de exclusão cotidiana, de crueldade, de negligência, de perversidade e de violência. A ausência de espaço de escuta e o silêncio dos sujeitos, quando tal espaço lhes era oferecido, revelava o medo e a coerção presentes na instituição e que era efeito presente tanto nos usuários quanto nos funcionários. A ausência de políticas me veio como incômodo, a partir da minha atuação em um projeto com população em situação de rua. Projeto de fina elaboração, com objetivos belíssimos e que se propunha a atender às demandas do público-alvo. Nas ruas, ouvi histórias belas e tristes assim como discursos sedentos por respostas que não pude dar, que o projeto não pôde dar. Acredito até que havia uma política, que me incomodava e que prefiro chamar de “politicagem”. Poderia descrever quadros e mais quadros das mais duras e cruéis faces de uma instituição, como este abrigo. Histórias que poderiam até dar origem a livros com infinitas edições e exemplares de infinitas páginas mas, faço a partir deste ponto, uma escolha que me leva por caminhos que percorri, deparando-me com os mais belos quadros pintados pelos usuários e que levarei comigo por toda a minha atuação como profissional e como ser vivente neste mundo de exclusão. Sempre me acompanharão relatos das histórias mais diferentes, cheias de significados e sentidos, de sujeitos que somente tinham o desejo de contá-la. Assim como estará na minha lembrança o agradecimento destes sujeitos pelo meu simples ato de têlos ouvido. Jamais me esqueci de frases sobre a vida, vinda de pessoas que eram tratadas em sua maioria por profissionais da instituição como seres desprovidos de inteligência e que se revelaram para mim como as pessoas mais sábias que já conheci em minha vida. Levarei a experiência de observar a sagacidade de sujeitos que eram tratados como tutelados por funcionários (falo de adultos, em sua maioria idosos tutelados). Tais sujeitos criavam uma movimentação na qual a tutela lhes caía muito bem, para obter o que necessitavam, às vezes com os requintes da sedução. Era como se houvesse uma inversão: os tutores passavam a ser os tutelados. Conheci grandes 147 políticos – pessoas que entendiam os meandros da governabilidade (algo que até hoje não compreendo). Conheci grandes economistas – que criaram e compreendiam novas formas de comércio e monetarização. Conheci excelentes professores que me ensinaram algumas coisas sobre a disciplina mais complexa: a VIDA. Levo quadros com sorrisos sinceros e que mesmo em um ambiente de tanto sofrimento, puderam em determinado momento de nossa convivência, se delinear em alegria. Levo olhares sinceros, que muitas vezes quiseram me dizer que as trocas que havia em nosso relacionamento, seriam importantes e que poderiam até transformar apatia em esperança e às vezes em luta, em mudança. Levo lágrimas de despedidas, porém sempre com um sorriso de esperança ao final do choro. Experiência relevante e importante, sujeitos importantes e inesquecíveis. Aprendizado essencial para o meu viver. . . . Trago aqui o Wanderley que em meio a um denso exílio, lampeja esperança e vida, tão merecidas, ainda que constantemente arrancadas, ultrajadas. Os versos deste senhor, o presenteiam com leveza capaz de tornarlhe firme, fazendo surgir em suas próprias brechas, a perdida esperança, persistente como as tiriricas que quando podadas, apontam novamente a existência de vida – mesmo nos solos mais acanhados ou gastos – re-surgindo aqui ou acolá e se expandindo como força propulsora do ato de transformar. Só, sozinho, solidão; desprezo, desrespeito, sem jeito; desafeto, oco, vazio; sem gosto, desgosto, despeito. Olhar vago, distante; semblante cerrado, franzino; mostra dissabor, amargura; lembrando o tempo perdido. Vê a lua, com inveja; da sua claridade lunar; desdenha do sol que brilha; com seus raios – solar. 148 Das estrelas, não vê o brilho; que o azul do céu ilumina; na distância, lindos, brilhantes; nosso olhar, preso – fascina. É tudo que ele vê; é tudo que ele sente; se inferioriza e menospreza; sua avaliação como gente. Os astros, com sua beleza; seus raios, vêm nos tocar; uns aquecem, outros iluminam; e fazem o céu estrelar. A lua, dizem ter o São Jorge; com o dragão, fogo lançado; arma em punho, lança na mão; com a fera, gladiando. Um lindo dia de sol; uma noite enluarada; salpicada de estrelas; tão lindas e iluminadas. São alvo dos trovadores, poetas; escritores, amantes da natureza; que usam sua importância astral; seu charme, fulgor e beleza. Tudo isso é muito lindo; nos enche de inspiração; para escrever, poetizar; buscar no fundo, a emoção. Veja isso, com bons olhos, subtraia o pessimismo; some ao que há de melhor; e o resultado é o otimismo. Junte todos os ingredientes; mais uma pitada de amor. Que dará várias poções, cheias de aroma e sabor. 149 Outras Formações capítulo 11. 150 Os depoimentos de Luciane Marequito e do sr. Wanderley Marques me convidam a entrelaçar experiências formativas formais e experiências formativas informais, sistematizadas nas ruas, no sentido de vislumbrar – com o apoio dessas múltiplas experiências – caminhos para reinventarmos metodologias que possam se fazer inclusivas, trabalhando com as diferenças na valorização do ser humano e da qualidade de vida – e do viver – para todos e todas, tanto na instituição escolar, quanto em todo e qualquer espaço formativo responsável pelo bem estar comum. De volta da Cruzada São Sebastião – comunidade onde desenvolvo ações junto ao grupo de senhoras idosas, crianças e jovens, participantes do Projeto Janelas Cruzadas e, junto a professoras de uma das escolas parceiras, localizada nessa comunidade – ainda dentro do ônibus que me conduz à minha residência, observo todos os dias que por ali transito, uma cena inebriante na calçada da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Um senhor deitado sob um colchão velho – arrodeado por belíssimos desenhos de delicados e expressivos detalhes – cria quadros que vão sendo expostos ao redor do colchão como uma colcha que aquece os sentidos sociais do Bairro e da Cidade. Por vezes passo de ônibus, e sem perceber, esse senhor me chama o coração. Em maio de 2005 sou arrebatada por este cotidiano, repetido inúmeras vezes; finalmente, salto do ônibus em seu encontro. Seu nome é Antônio Rufino da Silva. Com seus 71 anos de idade, mora na rua há 40 anos aproximadamente. Sr. Rufino me conta que desenhava a turma da Mônica para vender aos turistas, mas quando ia desenhar o cabelo do Cebolinha – personagem das histórias de quadrinhos brasileiros – o cabelo do Cebolinha não queria ser cabelo e... virava peixe. Então Sr. Rufino começava tudo novamente, em outro papel, mas o cabelo do cebolinha só queria ser peixe. Assim foram surgindo os peixes que hoje, junto às complexidades da rua, tornam a vida do Sr. Rufino multicor. Dos peixes, o Sr. Rufino foi se lembrando dos casebres de Palmeiras dos Índios, sua cidade natal, situada em Alagoas, divisa com Pernambuco, de onde 151 saiu há mais de 40 anos. Dos casebres, foi se lembrando das igrejas. E assim, o cabelo do Cebolinha foi levando este senhor... Fio de cabelo que ao ser traçado, convidou gestos a fazerem-se memória, tecendo e re-tecendo seu viver. Sr. Rufino lembra então da Fundação Leão XIII, local onde esteve por diversas vezes, levado pelas pessoas que recolhem aqueles que estão nas ruas... ou quando estava adoentado e internado, precisando de cuidados. Era o próprio hospital público que o encaminhava à Fundação Leão XIII. - De lá, fugi várias vezes , conta o Sr. Rufino. E continua sua fala localizando, para mim, o porque de viver na rua: lá na Fundação não posso trabalhar e vender meus quadros. Do seu trabalho, é possível a compra do papel, das canetinhas, da comida, do colchão, da pilha para o radinho portátil... enfim, das necessidades básicas deste senhor. Deitado no colchão sobre a calçada, Sr. Rufino me conta que, apesar de ter perdido os movimentos dos braços e pernas por causa de uma bala que o achou, desenha todos os dias; e é com a venda de seus quadros que administra suas necessidades ajudando também a muita gente. Ao destacar algumas de suas necessidades básicas, aproveita o ensejo para apresentar-me seus quadros, assinalando a importância do trabalho e da vida presentes na rua... e me conta também as inúmeras relações que tece e administra nessa complexa rede de solidariedades. Morando há mais de 40 anos no mesmo ponto, este senhor vai acompanhando a vida do bairro e um rapaz de 19 anos, que conhecera desde criancinha na rua, é um dos grandes ajudantes do Sr. Rufino. Também uma garota de 16 anos vem do bairro da Rocinha para ajudá-lo, ajeitando seu colchão ao lado da loja de colchões Ortobom. Nesta loja, são guardados pelo gerente e alguns vendedores, alguns pertences do Sr. Rufino como, por exemplo, as canetinhas hidrocor. Numa caixa de papelão, são guardados o dinheiro, o radozinho de pilha e um pouco de água. Na caixa, seus bens podem se ajustar sob os braços do próprio senhor Rufino durante a noite, como um cofre lacrado. Numa sexta feira, pude presenciar o rapaz – hoje engraxate – vindo providenciar a compra de um suco reforçado, um caldinho quente, ou algo mais 152 que atenda ao gosto do sr. Rufino. Estendendo-lhe o lençol sobre o colchão, o rapaz preparava o senhor para a chegada da noite. O jovem atento aparece em tempo de guardar os pertences na loja Ortobom e na caixa cofre. Atenciosamente, sr. Rufino oferece ao rapaz e à garota, que cuidam dele, as mercadorias que recebe de presente. Numa semana bolsas com mantimentos são reservadas para o rapaz, que já sabe que na semana seguinte será a menina a levar os mantimentos. Mas o engraxate, ex-morador de rua, aparece todos os dias, independente de ser a sua semana de levar mantimentos. Já a menina, que mora com sua família, aparece às vezes, quando pode. Enquanto eu conversava com o sr. Rufino, ele recebeu uma sacolinha plástica com um 1 kg de feijão, 2 kg. de arroz, 1 pacote de biscoito bis e 1 caixa de bombons finos. Pude então presenciar o cuidado deste senhor ao avaliar tudo que tinha na sacola, feliz pela fartura que ofereceria aos jovens ajudantes; orgulhoso por poder passar adiante os mantimentos recebidos como presente e conquista. Também pude constatar a paciência e a delicadeza do engraxate atento às necessidades do Rufino, que sabe muito bem o que quer e exige que tudo seja arrumado em detalhes. De madrugada, a 1 hora da manhã, são outros os colaboradores. Alguns porteiros doam baldes de água e outros ajudantes aparecem para dar banho nele, que, ali mesmo, ao lado da loja fechada, se banha. Quando os porteiros não conseguem providenciar os baldes – é ele mesmo, Rufino – quem providencia que os ajudantes comprem garrafas de água com a garantia do banho. Sr. Rufino pergunta onde moro. Ao escutar que somos vizinhos de bairro, me pergunta sobre a chuva repentina da última semana. Comentamos e percebo que aquilo que para mim tinha sido uma chuva rápida, para ele tinha sido um longo martírio. Sr. Rufino comenta que rapidamente a Avenida Nossa Senhora de Copacabana ficou alagada e foi preciso ele ficar em pé, escorado na parede por cinco horas, até que fosse possível alguém arrumar seu colchão e 153 pertences novamente na calçada. É importante lembrar que este senhor tem 71 anos e é com muita dificuldade que fica em pé, sem no entanto conseguir movimentar nenhuma das pernas. Foi com delicadeza que o senhor Rufino me contou brevemente a experiência que vivera com a chuva, como um comentário cotidiano, atento para não me deixar constrangida pelo fato de eu morar em apartamento e, não viver experiências equivalentes. Não houve queixa em nossa conversa, mas diálogo. Conversa na qual posso perceber uma mistura de delicadeza, humor, firmeza e dureza – tão comum a todo ser humano. Mas me chama a atenção a alegria deste senhor que me afirma optar por morar na rua, apesar das intempéries e imprevistos. Questiono se morar na rua é uma opção, quando a outra possibilidade é estar confinado em abrigos. Pergunto-me se essas são as únicas possibilidades de moradia e indago sobre o que estamos fazendo, neste sistema complexo, e o que é possível fazermos para que portas sejam abertas na pavimentação de outros modos possíveis de habitar o planeta. Percebo em cada gesto e fala do sr. Rufino a importância do trabalho, das relações humanas, das solidariedades, da autonomia. De onde vem a força que sustenta o eticamente? Penso na família. Penso na escola. Hoje, a família do senhor Rufino me parece ser as relações afetivas construídas entre os passantes; os moradores da vizinhança que o conhecem há anos; os porteiros; os vendedores das lojas circunvizinhas; os meninos de rua com quem construiu uma relação afetiva de aprendizagens – como o amigo engraxate. Relações complexas que nos revelam outros arranjos de estruturação familiar, organizações favorecedoras do exercício de valores, de éticas, de aprendizagens, de afetos e de trabalhos, apesar de todas as implicações e complicações presentes na rua, quando esta se faz como morada. São outras compreensões de organização familiar que vão sendo resgatadas, inclusive por 154 políticas públicas, no sentido de estar atenta a essas configurações que não se dão restritas aos laços consangüíneos. Conversa vai... conversa vem... e pergunto sobre um professor que lhe tenha marcado a vida. - Me marcou não, me marca, afirma-me Sr. Rufino com rapidez, e continua: É o Geraldo do Norte. Tudo que ele fala acontece na vida da gente. Ontem foi dia de negro e o Geraldo do Norte nos apresentou músicas da escravidão, falou que lugar de comprar escravo era na Praça Mauá. Contou cada coisa que eu nunca escutei na vida... Coisa importante. Ouvi ele dizer que o preto velho era a caneta do patrão. Quando a caneta perdeu a tinta, o patrão mandou o negro embora. A tinta era a força dele. E o negro dizia: O que é que eu vou fazer, meu Deus, sem força pra trabalhar? O Geraldo do Norte vai tirando do baú músicas que a gente nunca ouviu falar. Contou também sobre a construção de Brasília: a escola não aceitou o filho do trabalhador que ajudou a fazer Brasília. Ficou pronta a escola... mas não deixou o filho do trabalhador estudar. A gente vai aprendendo com as histórias, as músicas, as poesias que o Geraldo do Norte vai apresentando. Cada coisa que ele fala, toca num fio de cabelo, porque tudo que ele fala pertence a gente. O negócio dele é a educação. Meu professor, é o Geraldo do Norte. O chefe de todos os violeiros e todos os repentistas. Ele é locutor do programa Tabuleiro do Brasil, na Rádio Nacional. A senhora precisa escutar. Vai aprender muito. É das 4 às 6 horas da manhã, estação 1.140. Eu escuto todo dia músicas de todas terras e todas as cantigas brasileiras que você imaginar. Fala da vida dos cantores, conta piada e histórias com o mesmo assunto da música tocada. A gente aprende muito. A senhora manda um e-mail para ele – eu não tenho, mas o rádio diz – e conversa com ele. . . . Numa outra visita que fiz ao senhor Rufino, encontrei-o emocionado por ter recebido neste mesmo dia o seu mestre, Geraldo do Norte que, ao sair do hospital de onde estava internado por alguns dias, pediu ao motorista do seu carro para estacionar na calçada da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no 155 quarteirão entre a rua Miguel Lemos e a rua Xavier da Silveira, ao lado da loja Ortobom. O poeta e locutor, que já foi pião de obra, queria conhecer o senhor Rufino, de quem já tinha ouvido falar através de um amigo comum, visto que este amigo de 89 anos tem muitos conhecimentos na rádio MEC e é vizinho do sr. Rufino, morando também em Copacabana. O Geraldo do Norte, levou de presente um gravador de fita K7 e uma fita – gravada cuidadosamente por esse amigo – reunindo nesta gravação diversos programas do Tabuleiro do Brasil. O senhor Rufino mostrou-me o gravador e prometeu gravar uns programas do seu professor, preparando – ele mesmo – uma fita para que eu pudesse conhecer o Geraldo do Norte. Mas em 2006, em uma das visitas que fiz, descubri que a fita fora entregue para alguém que pediu emprestada e, nunca mais devolveu. Perguntei-lhe se seria possível eu mesma eu comprar uma fita virgem para ele gravar o programa para mim, conforme ele mesmo tinha sugerido há algum tempo. Ele me falou sobre os arruaceiros que passam nas madrugadas e que, por perigo de assalto, ele escuta o programa num radiozinho velho, guardando o rádio/ gravador presenteado delo Geraldo. Mas me fala de um amigo que pode gravar em estúdio e, orienta-me a comprar a fita e fazer um cartãozinho escrito. Quando retorno com as fitas, leio o cartão no qual me apresento, falando sobre o meu interesse por conhecer o programa Tabuleiro do Brasil. Aproveito para comentar a respeito da fita emprestada e perdida, solicitando também uma cópia gravada para o senhor Rufino. No momento em que leio o cartão em voz alta, fico sabendo por ele, que esse amigo que talvez gravará a fita solicitada por mim é o mesmo senhor que gravou a tal fita perdida. E me diz: – Ainda não te dei uma entrevista. Primeiro a senhora precisa escutar o Tabuleiro do Brasil, e então a gente conversa. Este senhor, mutilado de tantas formas no corpo e na alma, me favorece aprendizados sobre necessidades especiais. 156 De que escola, professor e educação o senhor Rufino nos fala e, como este senhor trata em seu cotidiano a categoria inclusão? São questões que me visitam enquanto dialogo com este morador de rua, que tão bem conhece a importância da metodologia usada pelo Geraldo do Norte. Ao dialogar com seus ouvintes do rádio, me conta o senhor Rufino que o professor Geraldo busca nortes alimentadores de éticas, criticidades, superações e sonhos, semeando com a poesia, a música, as artes, as histórias oficiais e as oficiosas, a escuta de um vasto repertório num convite para a reflexão sobre preconceitos e óticas absolutas em verdades. Instigadas e tensionadas por vozes oriundas de todas as partes e de estéticas, as mais diversas, estas realidades e preconceitos vão re-escrevendo outras histórias. E é Célia Linhares, minha orientadora nesta pesquisa, quem me conta um pouco mais sobre este senhor, que recebe tantas visitas nesta precária morada respeitada por vizinhos e amigos – conquista de um ofício que embeleza a calçada e de um senhor rico em maneiras sábias e delicadas de lidar com os passantes e vizinhos. FOTO - Benjamin fala tanto da pobreza de experiências, nos conta Linhares. E tenho visto moradores de ruas com experiências fantásticas. Eu tenho até um quadro desse Antônio Rufino e quando cheguei lá, adorei ver o orgulho deste senhor quando me contou: (Olhe, a senhora compre porque amanhã chega um navio da Holanda. Não vai ficar nenhum dos meus trabalhos. A senhora pode entrar aqui nessa casa de turismo ao lado e, mandar embrulhar. Porque eles são meus amigos. Eles me pedem favores.) - E ele me disse quais são os favores. Porque, graças a ele, os turistas entram na loja e, enquanto as obras do Sr. Rufino são embrulhadas, os turistas fazem compras na loja. Isso é fantástico. Como ele se reconhece! 157 No momento da compra, ele me ajuda a escolher o quadro e comenta: - Veja esse navio, esse é o único que tem chaminé, de toda a minha obra. . . . São muitas as escolas paralelas em nossa sociedade. Nelas, as queixas e os limites das instituições formais são também expressas. Mas também por aí, nas calçadas, em condições de extrema precariedade, o homem produz e embeleza sua vida, nossa vida. Enfim, seu Rufino dá aulas de como reinventar os abrigos e as escolas, ampliando espaços de liberdade, de autonomia e de vínculos sociais. . . . Na busca de aproximar-me um pouco mais desses outros poderes que são também organizações formativas, convido o detetive Antônio de Souza, no sentido de ajudar a tensionar aspectos que se fazem presentes nas escolas, muitas das vezes por maneiras sutis, quase invisíveis; outras vezes, por maneiras evidentes, mas sempre como formas brutais. Isabel: Hoje é dia 11 de setembro de 2006, eu estou com Antônio Ferreira de Souza, inspetor de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro que trabalha na divisão de fiscalização de armas e explosivos da polícia civil deste Estado. Há quanto tempo você trabalha como policial? Antônio: Mais ou menos uns 16 anos. - Que funções você já exerceu, Antônio? - Quando eu entrei era detetive. Trabalhava na rua, o que a gente chama de ronda. Depois trabalhei em delegacia especializada com o meio ambiente. E atualmente, estou controlando explosivos. - No dia que eu vim aqui trazer alguma coisa para você entregar para Riso, sua esposa – consultora do projeto Janelas Cruzadas e que trabalha em parceria comigo no projeto – eu cheguei em sua sala, vi na sua mesa uma arma e fiquei assim... 158 - Assombrada... deslumbrada, com uma simples arminha. - Por que uma simples arminha? - Porque é uma arma banal, foi apenas uma senhora que tinha uma arma, não queria mais ficar com ela e veio fazer uma doação. Isso é muito comum, as pessoas doam muito. - Então, você me falou justamente puxando por esse fio da simples arminha. E você apresentou outras questões, falando um pouco dessa relação de vocês – polícia civil – com o desarmamento. Você poderia me falar novamente sobre essa questão? - Nós temos um depósito com algumas centenas de milhares de armas, aqui no andar embaixo, aguardando para serem destruídas. Essas armas são todas apreendidas nas ruas, são armas usadas nos crimes. Todo dia há apreensão e entra aqui uma quantidade monstruosa. A mídia dá essa impressão de que os bandidos estão suplantando a polícia, como se nada estivesse acontecendo, mas se você ficar agora lá embaixo, só uns cinco minutinhos, você vai ver a quantidade de armas pesadas que entram. Armas que não estão nas ruas, estão aqui dentro. - O que você chama de arma pesada? - Fuzis, metralhadoras, pistolas, granadas – o que você quiser, lá dentro tem. - De que alcance? - Ah, essas armas são armas de guerra, usadas para batalhas. Para serem usadas em conflitos mundiais. São para destruição em massa. Não é um revólver, uma pistola, uma coisa mais limitada. Estamos falando das armas de grande alcance. São essas as balas perdidas, que o cara dá um tiro no morro e vai atingir alguém há 200, 500 metros. Mas é arma de guerra. Não é arma para ser usada no dia-a-dia. Inclusive temos basuca apreendida aqui também, que é uma arma para destruir tanque de guerra. - E que é que está sendo desarmado com esta ação de vocês? - O que está lá dentro, mais de 99% vêm dos traficantes, de combates nos morros. De uma forma ou de outra é ligado ao tráfico, mesmo quando vem de um assalto a banco. Sempre ligado a alguma coisa violenta. 159 - Mas existem as armas de doação também. - Só que a doação não entra neste grupo. Ela vai direto para o uso, não vai para o depósito. No depósito, as armas vieram de apreensões. Agora tem mais de cem mil armas. Abaixo de cem mil, nunca. Você pode destruir cem mil, que amanhã serão cem mil novamente. Esse tipo de arma entra aqui todo dia, toda. - E porque vocês não reutilizam esse armamento? - Porque são armas pesadas. São armas presas ainda a processos. E quando o processo termina, geralmente mandam destruir e passam aquele rolo compressor para amassar. Atualmente vão para o Exército a fim de serem destruídas. - Como é a ideologia de vocês, a metodologia do policial no uso desse armamento? - O que ocorre é o seguinte: Fuzil é uma arma de guerra. Achar que vai dar um tiro de fuzil na rua, ou numa favela, num morro e que será bala direcionada, restringida com nome escrito na ponta, não será. Porque o bandido está brincando, ele atira de qualquer maneira, não sabe para onde a bala vai. Dá um tiro em um barraco e ele vai atingir lá o 5º barraco, se não encontrar algum obstáculo pela frente. Daí as balas perdidas. Então, o agente policial, tem que fazer de tudo para não usar essas armas. Achar que é bom o uso dessas armas é péssimo. Você não tem o controle de um tiro desses. Então, a gente usa uma arma de curto alcance; o tiro dela a gente chama de stop power, porque tem a capacidade de parar uma pessoa. São os 38, os calibres normais, os revólveres, as pistolas. E não trazem tantos danos quanto um fuzil. - Toda captura do bandido é feita através de armas? - Não. A melhor forma de agir é aquela em que você não dá um tiro. É aquela forma em que você levanta quem é a pessoa que você quer prender, onde a pessoa está e então você faz um plano para prendê-la, de tal forma, que não envolva ninguém. Nenhum transeunte, nenhuma pessoa corra risco. Sendo algo planejado, você pode criar uma situação que favoreça você travar um embate corporal com ele. Esta é a forma melhor. Sem tiro, que é a última coisa a ser feita. 160 - E é uma conduta usual nesse momento, vocês deixarem o bandido fugir pensando nesse entorno, ou o que acontece normalmente é a polícia partir para o tiro? - Este é o bom senso. Se você vê que não tem essa condição de prender a pessoa, vai ter que dar tiro e existe uma multidão, então você é louco se partir para o tiro. Você tem que deixar o cara partir ou seguir até um local, que você sinta que não tenha risco para ninguém. O policial precisa aprender a perder, quando há o risco de comprometer pessoas inocentes. - A mídia nos passa como se o cotidiano da ação policial fosse exatamente esse que não deve acontecer. Então, você que está aqui dentro vendo essa porcentagem representativa do modo de agir, o que é que acontece mais? Essa ação que a mídia divulga ou a ação mais refletida, avaliada? - O que acontece mais é esta ação que você vê na mídia. É o tiro trocado e pessoas feridas. Não que a pessoa tivesse alguma intenção em não proteger os transeuntes, mas acontece que a coisa é muito rápida. - Qual o perfil desse bandido de hoje, pensando em nossos estudantes das escolas públicas? Você acredita que grande parte desses marginais que vocês prendem, seriam pais de estudantes que estão nas escolas públicas? Seriam os próprios estudantes? - A maioria esmagadora é o pessoal de baixa renda. Tem o marginal de colarinho branco, mas a baixa renda é o que engrossa o número desse tipo de público. Muitos deles estudam, são adolescentes que estudam nas escolas públicas. Muitos dos ladrões e dos traficantes. A maioria deles. A maioria dos rapazes de 16 e 17 anos que pegamos estão na escola. De noite ou de dia, dependendo da hora em que ele estuda, está no tráfico ou está roubando carro; praticando assalto e pequenos furtos a mão armada. Usualmente pedidos feitos por traficantes. Isso acontece direto. - Qual a idade mínima que vocês costumam ver com arma na mão? - No tempo em que eu estava na rua e, hoje não muda muito, com arma na mão eu tive oportunidade de ver moleque com 10 anos. Mas hoje em dia a gente pode dizer que a média estaria na faixa de uns 13, 14 anos. Está tudo armado. 161 - Que quantidade de adolescentes e crianças vocês vêm com arma na mão e que tipo de arma eles usam? Qual o tipo de abordagem que vocês fazem com eles? Como vocês diferenciam a abordagem a uma criança armada; a um adolescente armado e a um adulto armado? - Aí está uma coisa interessantíssima. Quando você está diante de uma criança com arma na mão você olha para o camarada com dó, com piedade, porque é criança. É uma coisa instintiva você quer proteger. Não quer abordar. Mas é uma coisa complicada porque esta criança com uma arma na mão, automaticamente passa a ter 18 anos. O efeito do tiro é o mesmo, mata da mesma forma, não há diferença. - A firmeza da criança ao segurar a arma, é como a segurança de um adulto ou ela titubeia? - Ela não tem ainda essa segurança, ela vai talvez por modismo, por querer aparecer diante dos outros. Querer mostrar que já é homenzinho. Então às vezes essas crianças usam requintes demais em crueldade para matar. Dá o tiro, e depois dá diversos tiros para confirmar que morreu. - Isso é feito por criança? - Por criança. Os colegas ficam ao redor incitando e ele vai lá confirmar o ato. Isso dá credibilidade a ele no grupo. - O adulto não faz isso? - Faz também. São relações de poder. Queima o corpo sem que necessariamente ele esteja morto. Isso é uma crueldade e o tráfico vive em cima do terror. Se não inspirar o terror e o medo, ele não é respeitado. Ele vive como uma antiga máfia italiana. Se não houver terror, não há respeito. Então eles precisam instaurar o terror no coração das pessoas, para que as pessoas pensem duas vezes antes de fazer qualquer coisa contra eles. Sem o terror, eles não sobrevivem. - Pensando na sociedade hoje, que é uma sociedade de diversas escolas e de diversos poderes, como é que você acha que se dá a organização e a competência desse sistema complexo que é o tráfico, na instauração de ações 162 voltadas para a formação de crianças e de adolescentes no sentido de afirmar valores e afirmar práticas centradas na valorização do terror? - Eu me lembro de uma propaganda que mostrava uma criança largada, sem atenção e cuidados, até que aparecia uma mensagem escrita: já que vocês não cuidam dele, eu cuido. E aparecia o traficante. Então nós temos uma família hiper carente, uma família esgotada, que bebe, desempregada e com todos os problemas que a gente possa imaginar. O adolescente mal tratado, sem nenhum amparo, vivendo num meio hostil com fuzil passando em sua frente dia e noite, está em um lugar de conflito. Só em paises em guerra há isso. Então é um ambiente totalmente pernicioso. A família não cuida porque passa fome, está cheia de problemas. O traficante está ali para acolher essa criança ou jovem e irá fazer com que ele integre uma das facções. Para isso, vai ter um treinamento. - Como se dá esse treinamento? Quais são as seduções? - As seduções se ligam sempre a essa questão do status. Geralmente eles escolhem aquele garoto que sempre foi preterido. Que não era respeitado. Apanhava dos outros. Um garoto pobre, que nunca teve nada e que quer ter. Então, o garoto vê nesse lugar uma possibilidade de ganhar por dia, o que o pai e a mãe dele não ganham em um mês. O garoto vai ter respeito, em cima do terror, porque pelo terror as pessoas vão passar a respeitá-lo. Eu vi uma vez um garotinho que tinha 5 anos e ninguém tocava nele. Os adultos passavam de lado. Ele tinha 5 anos, o molequinho. Um medo total do garoto e ele era mau. Para você ver o pânico que exerce o tráfico. O nome dele era Boiú. - E ele andava armado? - Não. Mas os traficantes encomendavam serviços e garantiam o respeito dele. As pessoas tinham medo de uma represália deste garotinho. - E que represália um menino de cinco anos pode fazer? - Ele pode arranhar seu carro todo e tacar fogo; ele pode quebrar seus vidros de casa; ele pode pegar uma arma e te dar um tiro: o que der na veneta dele e inspirações não lhe faltam. - E um menino de cinco anos faz isso? 163 - Faz. - Um menino de cinco anos pode ter firmeza na mão para dar um tiro certo? - Pode fazer isso sim, não é uma questão de força. Ele pode ter uma pistola muito macia. Ele pode te espetar com uma boa faca, de corte fácil. O medo daquilo que está por trás, é tanto que o que está na frente já abre todas as portas. Se você tiver o vizinho ligado ao tráfico da redondeza, você não denuncia. Vai ter um respeito imenso só por você achar que ele tem uma ligação. As pessoas estão vivendo de lendas e as lendas estão se aperfeiçoando. - Isso acontece muito ou é uma exceção? - Com uma criança de cinco anos é uma exceção, mas acontece. - Você falou que muitas crianças e jovens envolvidas no tráfico são estudantes das escolas públicas. O que ocorre mais, essas crianças e jovens serem estudantes ou não? - Serem estudantes. Mas a criança e o adolescente que trafica, você não pode dizer que estão na escola, porque tanto estão, como não estão. Faltam muito. Chegam atrasados, são os primeiros a sair. Então têm uma vida escolar muito deturpada. É aquele cara que não faz um dever de casa. Essas crianças e adolescentes representam um volume grande. Eles estão ali para serem pescados. Os pais e o entorno deles é que os oferecem aos bandidos. Não tem ninguém que fique preocupado com o que eles trazem no bolso, qual a hora que chegam em casa ou na escola, a hora que ele sai. Ele quer as coisas e não tem como. Então só resta que alguém o apadrinhe. E quem o apadrinha é o tráfico. - O que é que ainda o mantém na escola, na sua ótica? - Acho que é a cobrança de alguns pais e o garoto precisa de alguma maneira, ainda que frágil, comprovar. É muito difícil achar que ele está indo porque está almejando algo melhor para ele. Ele não se alimenta direito, não tem ninguém para lhe dar auxílio, dorme em condições precárias. Em sonho, ele pode até falar: eu gostaria de ser isso ou aquilo. Mas entre este gostaria e a força para tentar ser efetivamente, o garoto 164 passa por um caminho muito difícil. O tráfico é um veículo mais possível para ele do que a escola. - Então quando esse adolescente ou essa criança sonha com profissões e ofícios futuros, este sonho não tem forças para se sustentar através da escola formal? - É um tecido todo esgarçado. Porque às vezes ele está repetindo coisas que ele ouviu, que ele ouve. Então, tudo para ele tem um valor representativo: eu quero ser médico porque médico ganha muito. Eu quero ser aquilo pelo que aquilo representa. Esses símbolos podem ser substituídos facilmente, para favorecer a realização do sentido que está por traz daquela representação. E aí, ser traficante também ganha muito e é mais possível do que ser médico. O valor é o dinheiro como algo que possibilita fazer coisas. O valor não está em outras questões. O meio, no qual a criança e o jovem vivem, não deixa eles serem formados em outros sentidos, com outros valores. - E você acha que a escola pode estar fazendo um trabalho que crie um vínculo com essa criança e com esse jovem no fortalecimento desse outro desejo? - Ah sim, acho. Mas acho que nos dias de hoje a realidade está muito ligada também com a sorte dessa criança ou desse adolescente ter este ou aquele professor. Se tiver a sorte de pegar um professor sensível, que realmente esteja ligado à realidade dele – um professor compreensivo, que esteja disposto a compreender aquele rompante, aquela diabrura, aquele não faço, aquela maneira dele, aluno, ser e veja neste aluno um determinado potencial, alguma coisa que ele possa desenvolver – se o professor estimular o potencial do aluno, aí sim eu acredito que seja possível. Tendo o ego massageado, eu acredito que ele possa vir a caminhar para outros lados. Mas é muito comum – a gente ouve muito relato sobre alunos que vislumbravam essa possibilidade, tiveram esses professores, mas quando ele voltava para a sua realidade aquilo desabava. Então aquele mundo da escola se torna um mundo de faz de conta, porque quando ele volta para casa, para a realidade, na porta dele é o bandido passando e dando tiro; a polícia dando tiro; o pai dele bebendo; a mãe dele com fome; quando chove cai o telhado em cima dele, dorme no chão frio; não tem o que comer. Então ele vai vender drops no sinal, passa alguém e oferece drogas. 165 É como aprender uma língua: se você passa três horas por semana falando aquela língua e as outras 21 horas fala a sua língua materna, você vai falar a outra língua? Ele passa aquele tempo na escola e as outras tantas horas, muito significativas, ele passa com pessoas batendo nele e dizendo de diversas maneiras: não é nada disso, não é nada disso, a realidade é outra. Se sentindo humilhado e frágil, começa a perder de vista aquele horizonte dele. É um conflito muito grande. Ele tem que sair do meio. Aquela realidade não pode permanecer. O pai dele bebendo e desempregado. A mãe apanhando e com fome, acaba batendo na criança. Isso precisa mudar com um apoio legal. - O que você chama de apoio legal? O que seria fundamental para esse apoio legal acontecer? - Uma realidade estruturada. Se existe a criança, o jovem e o adolescente na escola, o ideal seria que a família dele tivesse o respaldo para poder se estruturar um pouco mais. Possibilitar que estes pais cultivem mais amor pelo seu filho; sejam mais compreensivos; tenham mais responsabilidade com seu filho. Acordar a necessidade desse pai investir nele próprio. Animar os pais a isso. Oferecer tratamento para a bebida, para as drogas. Não tem como a criança chegar em casa com a mochilinha falando do mundo de maravilha da escola e o pai cheirando droga ou estar com uma mulher ou um homem estranho dentro de casa, com armas. - Então, poderíamos dizer que a escola hoje em dia, com a realidade de nossa organização social, ela – a escola – não teria como trabalhar essa criança sem estar trabalhando também essa família? Pensando que a escola não pode ser tutora dessa criança e tirá-la do contexto dela, uma maneira da escola estar ajudando a reorganizar esse contexto seria funcionar em tempo integral e assumir como sujeito escolar o estudante e seus familiares? - Exatamente. Se a escola quiser realmente transformar este problema, precisa adotar os dois. O aluno, a família e aqueles que estão à volta. Tem que haver um jeito de integrar, porque trabalhar com uma ponta é descobrir a outra. Não adianta trabalhar aqui uma coisa e chegando em casa tudo aquilo se desfazer. Tem que haver o interesse das duas partes e este interesse precisa ser trabalhado. Então o Estado, o Município – 166 não estou falando da escola particular – teriam que investir na criança que está na escola, e para cada criança matriculada na escola deveria ter uma assistência que pudesse ir para a casa desse aluno e isso ser condição para a criança estudar. Como uma ação regularizada, este assistente teria a liberdade de ir às casas fazer um acompanhamento junto às famílias e ter um retrato desses lares. Mas ao lado disso, trabalhar com essa família na escola de alguma maneira. Se não for assim, o menino é esculachado em casa e incompreendido na escola, porque a professora não sabe o porque dele não fazer nenhum dever de casa. A mãe bate nele e o traficante está lá de braços abertos para receber e cuidar dele. É isso o que acontece. O que não falta é candidato ao tráfico. Cai um, sobem dez. isto é: morre um e dez assumem postos. Há lista de espera. O que não falta são candidatos, se quisessem poderiam fazer um exército. Não fazem porque precisam dividir o bolão. Quanto mais cabeças, mais pagamentos e gastos, e eles precisam avaliar o retorno desse exército, ao tráfico. É uma empresa que se movimenta através da distribuição de renda, ninguém está lá de graça. . . . Lembro-me de Bauman, quando enfatiza o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas; ou, colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente, de discernir e apontar o que é público nos problemas privados.12 Inspirada em Bauman, vou refeltindo sobre pontes culturais que criam laços entre a vida pública e a privada: penso no tráfico, que atua na sedução de jovens e de crianças, através de desejos instigados. Instigada, pergunto a Antônio: - Esses desejos são realizados, essa criança e esse jovem vivem essas condições que lhes são prometidas? - Aí é que está, em sua ótica – a criança e o jovem –- se iludem com uma suposta respeitabilidade que eles não tinham em casa, não tinham na escola, não tinham com o 12 12 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.p.10. 167 vizinho. Da noite para o dia o camarada passa a ser respeitado, automaticamente. É promovido de simples cidadão, a presidente, na mesma hora. É como ganhar na loteria sozinho, não importa a idade. Isso já dá um afago enorme no ego do camarada. O dinheiro que o pai e a mãe dele ganham em um mês, ele passa a ganhar em uma semana. - Isso acontece de fato? Eles sempre são remunerados? - De fato. Então o cara fica seduzido. Todos são assalariados, quando não ganham em grana, ganham em drogas, mas porque preferem. Eles são organizadíssimos. Sempre têm os caderninhos com registros dos pagamentos e das vendas com nomes e datas em detalhes. É assim que a gente pega um monte de gente. É assim que pegamos os colarinhos brancos. Vem escrito: para o deputado tal, tanto, em tal data. Para o advogado tal: tanto, em tal dia. Todo bando e toda quadrilha têm o livro caixa com tudo. Com o nome deles nos caderninhos, nós vamos investigar. E o cara que consumir algo pelo qual não pague, este será eliminado. O chefe nunca é consumidor. Por exemplo, o Fernandinho Beiramar se usou drogas, não usa mais. Se usar ele irá bobear em algum momento e ele sabe disso. Os chefes não usam drogas e, quando usam, fazem de uma maneira bem controlada. Penso nos chefes de família e nos chefes das escolas que precisam de espaços favorecedores de trocas e, lembro-me de Amélia Bampi, técnica do Programa Crer para Ver que sistematicamente acompanhava o projeto Janelas Cruzadas e, ainda que morasse em São Paulo, fazia-se presente ora por telefone, ora por visitas que de tão significativas pareciam ser constantes há ponto de dissolver distâncias geográficas e alargar o tempo. Convido essa parceira quando nos assinala que hoje, trabalhando no terceiro setor – Programa Crer para Ver (Fundação Abrinq e Natura Cosméticos) – considera que a escola precisa se apropriar das múltiplas oportunidades de dialogar com os mecanismos do entorno – as comunidades – como forma de tornar melhor a qualidade de vida. Fortalecida por Amélia, dou continuidade aos diálogos: 168 - Antônio, pensando nessa pessoa que mora na rua, nessa criança e nesse adulto da rua, o que você acha importante destacar dessa complexidade que é a rua? - Uma vez eu estava conversando com a Riso (esposa) e falei para ela o seguinte: Riso, você sabe qual é a diferença entre o rato que fuça o lixo e a pessoa, o ser humano, que fuça o lixo? Ela falou: não, qual é? Eu disse: é que o rato luta pela sobrevivência e a pessoa desistiu de viver. A pessoa que está na rua, em princípio, ainda que pareça que ela luta pela sobrevivência, dentro dos nossos padrões do que a sociedade oferece é uma pessoa que desistiu de viver. Ela não está mais lutando pela sobrevivência. - O que é viver, para você? - O viver nessa minha perspectiva seria: você usufruir daquilo que a sociedade também lhe oferece de bom. Isto é viver. Você buscar meios para fazer ou ter aquilo. O animal no mato, ele não luta pela sobrevivência, ele simplesmente vive, porque a moda dele viver é: dorme, acorda, está com fome e, mata um animal e come. Aí a gente diz: ele luta pela sobrevivência. Não acredito que ele lute pela sobrevivência, ele está vivendo. Ele vive daquela forma. Sobreviver para ele é outra coisa: é quando acontece uma seca horrível na região onde ele mora e o bicho que ele come desaparece, o mato pega fogo, a água some. Aí ele vai procurar alguma coisa que dê para ele sobreviver. Se você pegar uma pessoa na rua, você vai ver que para ela o mato queimou, a água secou, ela não tem uma caverna para se esconder, está debaixo de uma marquise, está largada no chão à mercê. Tanto, que tem gente que o vê e joga gasolina, executa as pessoas, como na Candelária. - Pensando o viver, ainda nesse desejo de um porvir, de ser mais, essa pessoa da rua, nessa perspectiva, não tem mais desejo de viver? - Ela está sublimada ou está em vias de se sublimar. Por isso que ela se entorpece o tempo todo, bebe. Passa sebo no corpo para não sentir frio, não sentir os bichos. Tem dia que come e dia que não come, então bebe para apagar a fome. Está exposta a doenças várias. Medito então neste não sentir: seja desejos, seja um porvir, seja a presença do entorno... e, mais uma vez, penso na escola, na família e em nossas 169 maneiras de nos organizarmos e nos afetarmos socialmente. Nesse exercício reflexivo, sou visitada por Bauman que nos diz que tanto a nação como a família são soluções coletivas para os tormentos da mortalidade individual. As duas transmitem mensagem semelhante: minha vida, ainda que curta, não foi inútil ou sem sentido se modestamente contribuiu para a durabilidade de uma entidade maior do que eu (ou que qualquer outro indivíduo como eu), uma entidade anterior à minha vida e que sobreviverá a mim, por mais que eu viva; é essa contribuição que confere um papel imortal à vida mortal. Dada a mensagem, parece menos sinistra a questão do que acontece após a minha morte: eu morrerei, mas minha nação, minha família vão permanecer – e permanecerão em parte porque dei a minha contribuição.13 Bauman enfatiza movimentos afirmadores do sentido de pertencer, de estar ligado. Reflito sobre as tantas pessoas aspiradas, como partes do nosso próprio corpo que por não reconhecemos como nossa, separamos de nós. Pessoas e mundos que nos arriscamos a julgar através de movimentos de negação, sem muito buscar formas de aproximação para melhor conhecê-los e, quem sabe, reconhecê-los como universos nossos. Convido o sr. Wanderley para dividir conosco um pouco do seu sentir sobre essa rua, quando se faz como morada de tantos sujeitados: Cidadão Excluído Wanderley Marques Sobre o povo de rua, minha rima tem sentido, por isso dei o titulo, de cidadão excluído. São coitados que vivem na rua, com a sociedade de lado, sem chances no social, e nela ser englobado. Juntando latinha nas praias, nas ruas e calçadão, levam a cascuda14 com eles, pra pedir um arroz e feijão. Nas noites quentes ou frias, e o anoitecer chegar, em cima de um papelão, o coitado vai deitar. 13 14 Idem.p.45. Cumbuca usada para colocar alimento. 170 Geralmente embriagados, homem e mulher ao luar, quando estão já bem mamados, desabam em qualquer lugar. A noite mais um sopão, pela igreja doado, na Serzedelo Correa, sai bem mal alimentado. Correm todo tipo de risco, nesta hora cheios de cana, risco de ser espancado, ou virar uma tocha humana. Depois então procuram, uma marquise, como abrigo, aquele corpo cansado, exposto, correndo perigo. Sim, porque já aconteceu, os bárbaros não têm dó, inclusive com um índio, em Brasília, um patachó. Dia seguinte a mesma coisa, as migalhas procurar, café, almoço e jantar, e nem sempre encontrar. Vivendo em pares na rua, imagine como é, tratam a companheira de esposa e não simplesmente, mulher. Passar fome pra esse povo, sem comer, é rotina, e onde dormiram ontem, hoje, jogaram creolina. Muitos são menores, na idade adolescente, cheiram tiner, cola, esmalte, é claro ficam doentes. Nas ruas de movimento, pedindo esmolas,charcando, implorando uma moeda, conseguindo vêz em quando. Uns, andam a noite toda, nas ruas pra-lá e pra-cá, de dia nas areias da praia, é que tentam descansar. O pouco que conseguem, já sabem como gastar, é pra comprar cachaça, ou maconha pra fumar. De manhã filam o café, na rua real grandeza, às onze um sopão, que irmã zoé serve à pobreza. Esse viver mal viver, todo dia se repete, o mal do mal, continua, e não toca a quem compete. Entre as três e quatro horas, procurando o que almoçar com a cascuda na mão, nun self-service buscar. Esse é o retrato falado, desse mundo conhecido, está a pobreza de lado, à procura dum abrigo. Sobra de comida, que por acaso sobrava, com as sobras dos clientes, sua fome saciava. Quem sabe um dia, acaba esse penar que esse povo viva a vida, e não tenha que mendigar. 171 Tocada pela sensibilidade deste senhor poeta, volto a pensar em casos como o da Candelária e o do índio queimado e pergunto a Antônio: - estes são casos terríveis ou são acontecimentos absurdos que se sucedem? - São muitos os acontecimentos, mas não há divulgação para a maioria. Só quando acontece em uma situação peculiar, como foi o caso na Candelária e em Brasília. Mas nas calçadas da vida, acontece muito isso. A pessoa da rua não vê meios de voltar a qualquer outra realidade. - Se ela não vê, você vê? - Eu acho que tudo que foi criado pelo homem – e essas tragédias foram criadas pelo homem – tudo é reversível. Mas hoje, vivemos uma utopia se imaginarmos um Estado comprometido. Reversível é. O que não pode é a gente perder a esperança. Mas como fazermos para reverter é complexo. Um trabalho de gigante. Este trabalho hercúleo me instiga a trazer Bauman que nos apresenta dois estudiosos em economia – Hans Peter Martin e Harald Schuman – pesquisadores que calculam que se a tendência atual persistir irrefrada, 20% da força de trabalho global (potencial) bastará “para manter a economia funcionando”. (o que quer que isso signifique), o que tornará economicamente supérfluos 80% da população mundial capacitada.15 Tocada por Bauman, continuo a entrevista: - Antônio, você acredita que há possibilidade da política estar fazendo algo? - A política existe para uma minoria que governa. Ela não se interessa por esse cara da marquise, porque essa minoria não mora ali. É como se uma pessoa fosse viajar para a Índia e se comovesse com a pobreza mas, ao retornar, esquece daquilo e quando lembra é como um exemplo: - olha meu filho, você estude para não se tornar aquilo, mas não diz: - olhe meu filho, estude, quem sabe você pode ajudar a reverter aquilo? Esse político voltado para o próprio umbigo vai usar essa realidade como exemplo daquilo que, se o camarada não se esforçar, poderá vir a se tornar. Mas poderia usar como 15 Idem.p.27. 172 exemplo de alguma coisa que precisa de pessoas para ajudar a melhorar essa realidade. A pessoa já cresce na ótica do – eu não quero ser – ao invés de crescer na ótica de: aquilo me tocou, vou me formar para tentar transformar. - Você falou da questão da esperança. Onde você vê essa ação real que trabalha na busca de possibilidades e de mudança? - Eu vejo isso na cobrança da população consciente. Quando há cobrança, a política muda, a gente derruba presidente; senadores caem; deputados são expulsos, quando há a cobrança. Então a população precisa se conscientizar disso. Ainda que ela não haja diretamente, quando ela cobra, os mecanismos públicos podem se sentir cobrados e terão que apresentar algum resultado. Os projetos dos políticos hoje são segurança, saúde e educação. Porque há cobrança da população em relação a essas questões. Eu não vejo os políticos falando em programas e projetos voltados para a população de rua. E esta ainda não é uma cobrança da população. O político trabalha em cima daquilo que lhe é cobrado. Por isso tantos programas investindo na questão da segurança. Eu penso que o dinheiro não deve ser gasto para a segurança. É um equívoco. Para resolver a questão do tráfico, pensam em comprar mais armas, invadir. É o programa da força contra a força. E força contra força vira cabo de guerra. Se houver equidade nestas duas forças vai romper o cabo. - Na perspectiva da polícia, o que significa um preparo mais efetivo no sistema policial. Como deveria ser entendido esse investimento na segurança pública? - Literalmente, a ação ideal da polícia é ficar ociosa. Mas isso, na seguinte condição: que realmente não haja nada para fazer. Nós queremos socorrer gatinho que subiu na árvore e não sabe descer. Dar atenção e socorrer aquele camarada que desmaiou ali na rua com o sol quente. Porque essa questão de dar mais arma à polícia, mais carros e a desgraça continuar, isso não vai mudar nada. Mais armamento para a polícia combater uma quantidade cada vez maior de marginais que surgem? Não acaba nunca. Precisa ir lá no âmago do problema e tentar reverter. Esse dinheiro imenso gasto com armamento precisa ser investido em outro setor. Quanto menos tivermos pessoas caminhando para o crime, mais vamos resolver estas questões. 173 - Então pelo que estou entendendo, você afirma que há um erro quando a política destaca a necessidade de aplicar recursos para armamento? Você está afirmando que o dinheiro público não deve ser investido ferozmente neste setor para assegurar a segurança através de armas? Na tentativa de tentar situar qual a urgente necessidade pública, você concorda que poderíamos investir este recurso que seria gasto para armar o Estado, no sentido de desarmá-lo, através do investimento em ações voltadas para a educação, para a saúde e para as pessoas desassistidas, que estão nas ruas e em abrigos públicos? – Eu acho. Armamento é o pior lugar para se investir o dinheiro público. Quando há uma guerra, um foguete desses que sobe, mata 10 pessoas. Quantos foguetes são lançados e não atingem os alvos? E quando atingem, quem são os alvos? O custo de um foguete desses é 1 milhão de dólares. Quantos foguetes são lançados em uma guerra? Então, em um dia, num país pobre e que não está em conflito de guerra, morrem 100 pessoas por dia. A questão é usar mais a inteligência e, menos a força. A força é a confirmação da desordem. Quando você usa a força, você assume que fracassou. O bandido receber status de presidente da república. Descer do avião e nem algema usar. Nenhum policial poder tocar nele. Ir para o presídio e lá matar não sei quantos – que estão dentro e fora do cárcere – aparecendo todo embecado com pose e exigências absurdas que são atendidas. Então, as pessoas assistem a isso pela televisão e desejam essa condição. O cara precisa ser tratado conforme sua condição de preso, que matou tantas pessoas. A roupa xadrez é importante, porque ninguém quer aquela roupa xadrez, aquele pijaminha que só deixa você andar se for com os pés juntos. Ele precisa ser tratado conforme sua condição, conforme o perigo que representa para a sociedade. Não é tratar com desumanidade. Não é torturar, mas o sistema acaba afirmando um imaginário que ajuda a sustentar toda esta problemática. – Como você pensa a questão do cárcere? – Se você se iludir e achar que devemos jogar os grilhões fora, fechar os cárceres e fazer cerrarias dentro dos presídios para eles trabalharem, só se for para fazerem 174 porretes, para dar na cabeça dos guardas – e deles próprios – porque isso é o que irá acontecer. A gente ainda precisa lidar com esse lado feio. Por enquanto você precisa do presídio, porque a situação é caótica. Esse lado feio existe, precisamos de cárceres sim, mas precisam ser feitas ações concomitantes, numa proporção muito maior. Se você faz um presídio para 1000 pessoas, é necessário que se façam ao mesmo tempo 1000 escolas. É preciso 1000 empregos gerados. É preciso brecar esse crescimento da marginalidade. Hoje, você ainda consegue andar na rua, vir até aqui conversar comigo, porque bem ou mal, a polícia está na rua. Hoje, a marginalidade precisa da polícia em seu imaginário. É a consciência da existência da polícia que ainda possibilita você transitar na rua. Tenha certeza. Quando esse marginal de hoje tirar a polícia do seu imaginário como algo que o amedronta, você tenha a certeza de que não conseguirá mais andar na rua. Porque nesta rua o marginal não se sente à vontade como na casa dele, onde anda com fuzil livremente e é temido por todos. O assalto tem que ser rápido, a arma precisa estar escondida. Por causa desse temor à polícia. – O que você considera como um bom cárcere? – Você deve respeitar os direitos da pessoa, na sua condição humana; mas a pessoa tem que ser detida de acordo com seu grau de periculosidade. O cara que é um chefão de quadrilha, que mesmo preso está controlando todo um sistema criminal do lado de fora e que está liderando mortes, como é que eu vou permitir que esse cara tenha celular porque tem direito de se comunicar? Como é que eu vou permitir que ele receba visitas que levam para ele televisão e roupas das melhores lojas? Esses líderes não comem a comida do presídio, só comem a comida que vem para eles. Tudo especial para o camarada e ele vive lá dentro como rei? Ele errou gravemente e a sociedade cobra dele. A pena é a seguinte: ele não pode ser tratado como se estivesse em sua própria casa. As palavras de Antônio me remetem mais uma vez a Bauman, quando nos afirma que a arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade dos cidadãos; mas é também a arte da autolimitação: a de libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos.16 Antônio continua sua reflexão enfatizando que a mídia confirma toda essa inversão de valores, ajudando a formar o imaginário da criança, do adolescente e do 16 Idem.p.12. 175 adulto com valores distorcidos. Nada disso pode acontecer. As condições têm que ser aquelas dadas pelo governo. Agora, se estas condições precisam ser melhoradas, então vamos recorrer para que seja possível transformar estas condições legalmente. Mas jamais permitir que ele tenha esse acesso fácil com o exterior. Jamais permitir que ele use coisas que não são permitidas pelo Estado.Tem que haver eqüidade entre os presos, senão gera uma hierarquia. O bandidão, anda lá dentro de uma maneira que parece que está indo para a praia. Este bandidão vai ser sempre um espelho afirmando que o crime compensa. Ele tem que ter esse sistema dele desmoralizado, não com tratamentos desumanos, mas com limitações de direitos que façam com que ele tenha consciência de sua condição. Colocar esse tipo de pessoa numa oficina de marcenaria para reintegrá-lo à sociedade, com certeza ele vai roubar o formão para espetar alguém e planejar uma fuga. O cara que não matou, que não é um assassino, não há nem o que recuperar nele, porque ele é um cara bom. Para esse cara, você pode dar a marcenaria, uma horta. Enquanto ele está ali, vai estar melhor, fazendo algo significativo e separado dos bandidos. Esse camarada vai cumprir os anos dele em condições melhores e, vai sair. Mas sair é outro problema, porque não tem emprego para quem está livre e vai ter emprego, nesse nosso sistema, para quem carrega o rótulo de ex-presidiário recuperado? É preciso trabalhar socialmente esses estigmas também. Ladrão de varal, aquele camarada que não tem coragem de matar ninguém, ele por si só já tem uma boa índole. É um descuidista, como a gente diz aqui dentro. - O que é um descuidista? – É aquele ou aquela camarada que se aproveita do descuido do outro. Aquele que se você der uma bobeira, ele está atento e vai lá rapinar. Mas não usa de arma, ele tem uma paixão porque é um bom profissional no que faz. Tem uma habilidade e se vangloria disso. Esse cara pode se contemplar na marcenaria ou em outro ofício que lhe seja oferecido. Ele pode se acordar para um outro fazer. Mas o lado dele do rapinar é muito forte, porque é uma habilidade muito grande. Ele gosta dessa habilidade, dessa adrenalina de fazer, na sua cara, algo quase impossível, sem que você perceba. 176 - Então eu poderia dizer que o sistema carcerário deveria que ter uma inteligência sensível para oferecer ofícios e fazeres que lidem com essas especificidades de cada pessoa? Esta pessoa, por exemplo, que tem uma necessidade da adrenalina do risco no seu fazer e que tem essa habilidade motora extremamente fina, ela precisa ter conhecimento e oportunidade de experienciar outros fazeres que favoreçam que esta realização pessoal e profissional se façam de outras maneiras diferentes do rapinar. Neste sentido, para pensar o sistema carcerário e o sistema escolar será preciso repensar ideologica e metodologicamente o sistema pedagógico e político, em diálogo fino e firme com as complexidades do sistema organizacional da sociedade, tendo como sustentação parâmetros e práticas, o exercício de valores que possibilitem a responsabilidade de todos pelo bemestar individual e coletivo. Então pergunto: - Como possibilitar que esses valores se façam no indivíduo como experiências que, por diferirem da catequese e da repetição de orações morais esvaziadas de sentidos, são capazes de se constituirem em aprendizados fundamentais na formação do caráter? - A pergunta que eu faço é a seguinte: a quem interessa essa situação caótica? Porque deve interessar a alguém. Dinheiro é gasto em quantidade, mas nada que realmente seja voltado para o povo. É possível reverter essa situação, mas desde que seja feito esse trabalho de gigante que é preciso ser feito sem descontinuidades. - Antônio, eu já te falei outras vezes o quanto me toca esta sua inteligência sensível. Então gostaria de perguntar se sua formação policial tem um papel marcante nesta sua característica que integra sensibilidade e inteligência? - A formação policial não te dá isso não, porque ela é meio imposta. É aquilo que você está vendo ali naquele quadro: CÓDIGO DE ÉTICA NA EXECUÇÃO DA LEI. 177 Isso representa o ser policial: jamais farei... tudo que eu fizer será... Mas a formação de todos que usam farda é muito técnica. Não lhe dá muito direito de filosofar. O comportamento é esse e pronto. Então, na formação policial, a maneira como você vai ser enquanto profissional é a seguinte: cada um é de acordo com os valores que traz de berço. O berço é fundamental para a formação de valores que irão fazer com que você reflita certas ordens a serem cumpridas como um ser autômato. Os documentos – ofícios – chegam de alguns juízes assim: é para ser cumprida a ordem e não para ser questionada. Se você tem o berço que te leve a refletir sobre comprometimento com valores, você vai correr o risco de ter que responder pela sua ação de desobedecer a ordem, mas irá refletir. Como policial, nossa formação é feita para que as ordens das autoridades sejam cumpridas e ponto. - Se você fosse escolher hoje a sua profissão, seria um policial? - Bem, sabendo daquilo que eu tenho vivido na polícia, eu com certeza escolheria ser um policial. Mas se eu desconhecesse, fatalmente não escolheria. - Como se deu o fato de você tornar-se um policial? – Um colega me chamou para acompanhá-lo, pois ele iria se inscrever como policial. Eu vim acompanhá-lo. Depois da inscrição desse amigo, ele me falou: - Inscrevi você também. Eu disse: - O quê? A partir daí, para todos os testes e provas eu era levado por ele, porque eu nem me lembrava. Passei e, então pensei: vou ver o que é isso. De início, não simpatizava, mas a minha curiosidade é muito grande e eu fui tendo a oportunidade de ver e fazer coisas que eu jamais faria na vida. Ter acesso a material de pesquisa, a informações que, em outro lugar, eu não teria acesso. Estou dentro de uma panela que me seria escondida. Então é um lugar fantástico. Essa matéria prima que é apresentada em números que nem sempre representam a realidade, é a matéria dessa panela. E ter acesso a isso é muito instigante. Ter acesso às engrenagens que estão por trás é maravilhoso, você passa a ter um outro entendimento das coisas. Mas somente depois de exercer a profissão foi que eu soube o que é essa profissão. Então, eu escolheria ser policial novamente, se eu soubesse realmente o que é essa profissão, que é diferente daquilo que muitas vezes pensam que ela seja. 178 Sempre estou disposto a contribuir com pesquisa. Se eu puder colaborar de alguma maneira com o meu trabalho, eu colaboro. Sou completamente favorável à ciência. Acredito na ciência. Acho que o ser humano precisa da ciência em seus vários aspectos. Ela nos trouxe até aqui e não pode parar. - O que você entende por ciência? - Essa capacidade de buscar no desconhecido, de questionar. Essa coisa de perguntar. A ciência é pergunta. Inspirada no convite do inspetor Antônio, pergunto-me sobre a formação dos profissionais da educação, mas ao fazer este exercício, lembro-me de Carmélia quando lembra o cansaço do improviso, que se repete constantemente, dada a falta de recursos. Penso então, nessa escola cansada, neste professor exausto que precisa romper os espaços da sala de aula, mas com freqüência, se encontra enrolado em estereótipos que, aprisionadores do criar e da produção de sentidos para a vida, fazem desse produzir, um aborto da afirmação da identidade do sujeito e da religação deste com as necessidades existenciais do ser humano. Lembro-me das visitas e convívios experienciados nas unidades escolares parceiras do Janelas Cruzadas e, sou re-visitada pelo encantamento que sentia ao perceber que mesmo sendo escolas pertencentes a um sistema comum, com parâmetros comuns, cada uma delas tem um respirar próprio, uma estética particular, uma identidade como corpo escolar. Penso então nos mecanismos que cada escola escolhe como exercício de éticas e de estéticas e, me vêm à lembrança os diversos modos de gestão que se fazem às vezes compartilhadas, outras vezes de maneira pseudo democrática e ainda outras, assegurando a gestão desse corpo escolar na pedagogia do terror. Lembro-me dos períodos eleitorais e das práticas plurais que desenhavam em cada escola uma história complexa: No convite para que a comunidade escolar refletisse e avaliasse esse corpo escolar, que se reconhecia como patrimônio de todos; 179 Na ameaça a aqueles que se diferiam da decidida perpetuação do poder daquela voz, desejosa de solidão; Na busca da ajuda daqueles que ainda não se reconhecem como grupo de compartilhas responsáveis por decisões. Mas essa complexidade que ora me enternecia; ora me exigia delicada metodologia - que para alguns poderia assemelhar-se a um nada fazer - essa identidade por mim percebida e que afirmava a autonomia de cada corpo escolar, também me levava a pensar nessa mesma autonomia, que tantas vezes urge ser alimentada por maneiras tocantes, possíveis de entrelaçar aprendizagens à vida e respeito à singularidade de cada sujeito. Penso então, nas práticas de formação de professores e me pergunto para quem elas trabalham e qual a sua matéria prima? Inspirada por Antônio, penso na importância do berço como momento formativo potente, presente em todo o viver. Com que cantigas estará a escola embalando nossos sonhos e urgências? Que valores experienciamos neste sonhar? Lembro-me do Sr. Wanderley, quando me confidenciou nunca ter escrito texto grande, visto que antes de encontrar-se na Leão XIII sua escrita fazia-se exclusivamente por quadrinhas. E foi nesse espaço de exílio que encontrou uma pedagoga de nome Neuza, que o convidou a escrever por mostrar-se encantada pelo seu fazer, no mesmo instante em que instigava novas trovas. Foi o próprio Wanderley quem me narrou o acontecido: as quadrinhas expandiram-se e pela primeira vez um texto denso se viu surgindo. Este seu primeiro escrito denso, trazido aqui como abertura do capítulo Vidas em retalhos – quisera eu, que jamais retalhadas – traz à nossa presença um pouco da admirável Fayga Ostrower, quando assinala que o conflito pessoal não pode ser visto como uma condição para o criar, como pensamos muitas vezes, ele pode instigar temas e questões, mas nunca se fazer como metodologia afirmadora de desencontros. 180 Lembro-me do susto que tomei quando vi a arma na mesa do Antônio e penso nas tantas armas vistas, quando estou na Cruzada São Sebastião. Mas por que será que não me faço tão chocada com revólveres sustentados por mãos de moradores e de policiais que transitam pela comunidade e, me desespero quando encontro esta arma na mesa do Antônio? Vejo o Antônio me recebendo em seu trabalho, nas tantas visitas que faço e, recordo-me dos detalhes do prédio barroco, que abriga os policiais. Penso nos vitrais coloridos que convidam matizes a pintar portas, paredes e chão, quando o sol anuncia presença e me percebo em repetida despedida desse amigo, que sempre me acompanha até o elevador panorâmico, patrimônio tombado que nos remete a passeios e histórias, todas estas, contadas pelo Antônio que ao me receber em seu trabalho, atento às belezas do entorno, não dá tempo para que eu lembre a dureza de sua profissão. Nessa ambiência criada por este anfitrião, o revólver me arranca e presentifica instantaneamente uma realidade por ora esquecida, ainda que diante de mim, tantos avisos e placas de explosivos e de bombas se estampem entre vidraças e paredes daquela casa. E mais uma vez, recorro ao senhor Wanderley quando confessa: 181 Casas de Árvores Wanderley Marques No meu morrer, quero sentir o que sente a árvore, quando cortada pela serra elétrica ou pelo machado que freneticamente invade suas entranhas – impulsionado pelas mãos calejadas do lenhador, ou seja: sem dor, sem sangue e sem lágrimas. Simplesmente desabar sobre as outras, que ficarão a perpetuar. Assim sendo, terei fim, mas do fim eu recomeço. Me desmembrarão, me dividirão em tábuas e construirão muitos ninhos de amor. Casas. Casas. Casas... . . . E as casas institucionais que através dos tempos se fazem tão importantes como referências de aprendizados e de trocas, o que elas desejam fazer perpetuar através de suas práticas escolares? O que nos contam as janelas e as paredes de nossas escolas formais? 182 laços que enlaçam capítulo 12. 183 Desde pequena aprendi a reverenciar a vida, visto que me entendia como milagre, não somente dessa magia que é o gestar, mas também por ter recebido a vida por duas vezes, desde muito cedo. Sou filha de dois apaixonados por aquilo que hoje mais movimenta o meu pensar-fazer: o encantamento pelo ser humano, por seu potencial de criar e de fazer-se processo constante de transcender seus limites. E foi essa paixão comum que levou Maria Dolores Coni Campos e Echio Reis a serem convidados em 1963 para integrarem a equipe de educadores do Centro Educacional Carneiro Ribeiro (1950). Projetado pelo professor Anísio Teixeira, o Centro desenvolvia uma proposta de tempo integral que incorporava a expressão artística ao aprendizado formal. Num turno, o da manhã, o educando freqüentava a Escola-Classe, escola regular; em outro turno, o da tarde, esse mesmo estudante participava de oficinas regulares de artes e ofícios que compunham o currículo da Escola-Parque. Inicialmente essa experiência se desenvolveu da 1ª a 4ª série do então chamado curso primário. Posteriormente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 5.692/ 61), implantou-se o 1º grau que, na época, abrangia da 1ª à 8ª série (primário a ginásio), correspondentes ao ensino fundamental. No bairro da Liberdade, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro atendia a 4.000 crianças e jovens da periferia da cidade de Salvador/ BA. O Centro, atribuía especial importância à natureza da experiência em que educandos tinham no currículo oportunidades e meios de empregar os conhecimentos que estavam sendo produzidos nas inter-ações de uma complexa rede de convivências. Ações diversas integravam aprendizados, arte e vida, através de práticas educativas que envolviam teatro, biblioteca, educação física, artes plásticas, jornal, banco e pavilhão de trabalhos/ ofícios. Enquanto Anísio Teixeira ocupava a direção do INEP, sua irmã – Carmem Teixeira – se responsabilizava pela coordenação do Centro Educacional, tendo como ponto alto da metodologia, o investimento na 184 formação continuada dos docentes das Escolas-Classe, bem como das atividades artísticas, esportivas, recreativas e sociais da Escola-Parque. Mediante convênios celebrados com o INEP, o Centro Educacional promovia intercâmbio constante com a Escolinha de Arte do Brasil, em sua fase áurea reunia expressivos profissionais da educação e da arte, como o próprio Anísio Teixeira e outros como Augusto Rodrigues, Helena Antipoff, Noemia Varela, Durmeval Trigueiro, Zoé Chagas Freitras, Osvald Goeldi, Nise da Silveira, Lívio Abramo17, Cecília Conde, Ilo Krugli, Fayga Ostrower, Ferreira Gullar, Laís Aderne, Mestre Vitalino, Darcy Ribeiro, Jader de Britto, Iara Rodrigues18, Maria Lúcia Freire, Silvia Aderne, Bartolomeu Campos Queirós, Maria Bonumá, Pedro Turom, Fernando Lébeis, Paulo Freire19, Isabel Carvalho Vieira, dentre outros inquietos artistas educadores. Era neste cenário que professores do Centro Educacional Carneiro Ribeiro pavimentavam pontes entre Rio e Bahia, empenhados em construir outros caminhos para a educação. Outra referência importante para o Centro Educacional fortalecer a formação do seu corpo docente estava na promoção de intercâmbios com o SESC – RJ, investindo na integração de ofícios às artes. Foi nesse contexto – no início da década de 60 – que a professora Carmem Teixeira, conheceu Maria Dolores Coni Campos, educadora que estagiava e trabalhava na Escolinha de Arte do Brasil, convidando-a a integrar a equipe de professores do Centro Educacional Carneiro Ribeiro. 17 No Paraguai, Lívio Abramo integrava o grupo fundador da Escolinha de Arte junto a Olga Blinder e Maria Adela Solano Lopez, seguindo os mesmos parâmetros da Escolinha de Artes do Brasil/RJ. Em Portugal a fundação da Escolinha de Arte ficou sob responsabilidade de Cecília Menano, dentre outros. VARELA, Noêmia. Fazendo Artes 13. p.7. 18 No Rio Grande do Sul, Iara Rodrigues, junto a Lia Achutti, fundou a Escolinha de Arte do Instituto de Arte da UFRGS, mantendo diálogos freqüentes com Augusto Rodrigues e Noêmia Varella, além continuar freqüentando a Escolinha de Artes do Brasil/ RJ. CAMPOS, Maria Dolores Coni. Encontros hoje, encontros ontem; cartas que vão, cartas que vêm, entre na roda você também. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003. Or.: Edwiges Zaccur. 19 A partir desta experiência na Escolinha de Arte do Brasil do Rio de Janeiro – experiência matriz, Paulo Freire integra equipe fundadora da Escolinha e Artes do Recife. Nos conta Ana Mãe Barbosa: Poucos sabem que Paulo Freire esteve ligado à Arte-Educação desde os inícios de sua ação educacional. Foi presidente da Escolinha de Arte do Recife, nos anos 50 e, sua primeira mulher, Elza Freire, pode ser considerada uma das pioneiras da integração da Arte na Escola pública, dando ênfase às produtivas implicações do fazer artístico do fazer artístico com a alfabetização. BARBOSA, Ana Mãe. Paulo Freire e a arte-educação. In: GADOTTI, Moacir (org.). Paulo Freire – uma bibliografia. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire; UNESCO, 1996.p.637. 185 Cedida por tempo limitado à Escolinha de Arte do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, como funcionária pública do Estado da Bahia, Dolores20 aceitou convite de Carmem Teixeira para integrar a equipe do Centro Educacional em Salvador, visto que, coincidentemente, estava a concluir o 3º e último ano do estágio que cumpria como professora da rede estadual de ensino da Bahia. Maria Dolores retorna a Salvador com o objetivo de levar sua experiência da Escolinha de Arte para o Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Neste Centro, em 1963, Dolores começa a trabalhar na Escola-Parque, em oficinas de desenho que integravam pintura, gravura e outras técnicas, tendo a oportunidade de expandir a experiência vivida na Escolinha de Arte do Brasil. Ela nos conta: Eu trabalhava no pavilhão de trabalho. Este pavilhão tinha a ala masculina e a feminina, mas havia interação. O meu setor ficava no começo da ala feminina, com muitas mesas onde todas as crianças desse complexo educacional passavam por nós para pintar, desenhar, fazer gravura em xilo e metal, expressando-se livremente. As meninas e meninos vivenciavam, escolhiam o que queria fazer. Eram muitas possibilidades de ofícios. Por três meses eles ficavam ali naquele ofício e depois faziam um rodízio de novo. A ala feminina oferecia corte e costura, bordado criador, bordado branco fino, crochê, tapeçaria, confecção de bonecas e almofadas, bordados variados, entre outros fazeres. Os meninos aprendiam o ofício da sapataria, alfaiataria, funilaria, encadernação, marcenaria, cestaria, modelagem em barro e forno, entre outras técnicas. Não tinha o objetivo de formação de mão-de-obra, mas experienciar várias possibilidades para que pudessem se enriquecer com esses diferentes fazeres. O setor artístico era um setor muito bonito, onde se oferecia a esses meninos e meninas música, dança, teatro. A música tinha um coral e havia uma banda de música com um dos grandes maestros da Bahia, Vivaldo Conceição. A parte de teatro era a dramatização e a dicção. A dança era a moderna. Depois tinha um grande pavilhão com Dolores, funcionária pública na Bahia, estava no Rio de Janeiro cedida por três anos em resposta a uma solicitação do professor Augusto Rodrigues – um dos fundadores da Escolinha e seu diretor técnico – através de carta dirigida ao governador da Bahia, no sentido de garantir que a professora tivesse uma estada mais prolongada na Escolinha de Arte do Brasil, a fim de familiarizar-se melhor com sua filosofia e sua prática pedagógica. 20 186 um setor de esportes. Havia uma grande biblioteca e um banco. Padaria. Os meninos administravam tudo. No fim do ano se promovia uma exposição e acredito que o dinheiro da venda da produção feita na Escola-Parque ia para o banco que os meninos ajudavam a administrar. O resultado dos trabalhos dos meninos, nos diferentes ofícios, era oferecido para a população comprar. Uma grande feira, da melhor qualidade. Começamos, nessa época, a entrosar o desenho, a pintura com os diferentes ofícios na modelagem, na tapeçaria, no bordado, na boneca, na marcenaria, no teatro. Às vezes a menina fazia uma boneca que ela mesma tinha desenhado, e ela mesma fazia o vestidinho no corte e costura. Aquele vestidinho que seria bordado – possivelmente por ela – em outra aula. Então havia um entrosamento muito grande dos fazeres e a exposição era extremamente elogiada. O bordado criador, as almofadas, era tudo desenho dos meninos, numa época em que o desenho da criança não era valorizado. Na parte artística, o teatro começou também a nos procurar. Então eu tive um papel muito importante. Os meninos pintavam, traziam os conteúdos que estavam sendo trabalhados e, cenários, adereços, vestimentas, iam tomando forma. Parecia até um milagre. Uma vez eu levei uns desenhos para Arquibaldo que era o chefe do setor masculino e disse: Arquibaldo seria tão interessante se esse desenho fosse ampliado pelos meninos. Na mesma hora ele me apareceu com tudo cerrado pelos estudantes da marcenaria. Tudo grandioso, parte do cenário surgia com as crianças e jovens trabalhando, criando. Havia uma aproximação dos diversos ofícios e fazeres. No Pastoril que nós fizemos – e no bumba meu boi – as roupas eram costuradas no corte e costura, mas os desenhos e pinturas das roupas e cenários eram feitos conosco, para as alegorias e cartazes. A xilogravura presente nessa produção, junto a desenhos e pinturas, se transformariam em convites, folders, cartazes. Era uma coisa esplendorosa. Não faltava material. Eu ficava impressionada porque a Escolinha de Arte do Brasil, no Rio, tinha todo esse ideal, mas não dispunha de recursos para comprar as coisas. Na Parque eu dizia: eu quero isso, e tinha. Um rolo de tinta para cada cor. 187 Era assim na época de Dr Anísio Teixeira. Ele era o idealizador dessa escola, antes de qualquer CIEP, porque CIEP e escola integral foram inspirados nessa experiência de Dr. Anísio. Ele foi o grande realizador. E aí, como diretor do INEP21 – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, conseguia dinheiro. Então a escola Parque era estadual, porque os professores eram do Estado, mas havia um turno federal. Nós recebíamos recursos federais também. Tínhamos um micro-ônibus que ia nos buscar em casa quem morava distante. Fazíamos a refeição lá na Parque. Entre um turno e outro, nós professores tínhamos uma sala com espreguiçadeiras, para descansarmos e começarmos o turno seguinte. Era uma experiência muito inovadora para a época. “Em vida, Dr. Anísio Teixeira foi um grande entusiasta do trabalho que a Escolinha de Arte do Brasil desenvolvia. Era presença constante em cursos, conferências, exposições, almoços, festividades... Fazia parte de um grupo de educadores, artistas, pensadores, pessoas que, inquietas com o processo educacional brasileiro, buscavam alternativas visando a uma educação mais humana que viesse contribuir para uma interação mais harmoniosa entre as pessoas e grupos sociais. Dr. Anísio mobilizava recursos humanos e financeiros a favor da Escolinha de Arte do Brasil, que no Rio de Janeiro, passava por dificuldades constantes. Era necessário ajudá-la para que o seu trabalho não sofresse descontinuidade. Em um de seus pronunciamentos, Dr. Anísio comenta: ‘Na imensa aridez da paisagem das escolas nacionais, paisagem que lembra aspectos de nossos desertos, as escolinhas de arte são oásis de sombra e luz, em que as crianças se encontram consigo mesmas e com a alegria de viver, tão ‘deliberadamente’ banida das ‘escolas’ convencionais de ‘retalhos de informação’, secos e duros como a vegetação habitual das zonas áridas. Mas não é somente a escolinha de arte uma inovação pedagógica. É também inovação do próprio conceito da arte, pois esta já não é a atividade especial de criaturas excepcionais, mas a atividade inerente ao senso humano da vida que, felizmente, ainda se pode encontrar nas 21 Ultimamente passou a chamar-se Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 188 crianças que não foram completamente deformadas pelos condicionamentos inevitáveis da instrução morta e fragmentada das escolas convencionais.22’ Vivemos, na Escolinha de Arte do Brasil e na Escola Parque, uma proposta inovadora de educação e participamos de efervescência de idéias e de estudos onde o foco maior sempre foi a criança, o professor e o potencial criador, inerente à condição humana. Trabalhando nessa perspectiva com aquela meninada do bairro da Liberdade – pessoas marcadas pela pobreza e carências múltiplas – eu testemunhava um outro lado: o da riqueza do poder de expressão dos meninos em suas pinturas, recortes, colagens, desenhos. Nas formas largas, fluentes e nas cores esparramadas, livres, de quem trabalha sem pressão e com alegria.”23 Uma escola em que o presidente da UNESCO ao visitá-la, testemunhou:- faz-se no Brasil o que não se faz no mundo. Também a rainha Elizabeth quando esteve na Bahia quis vê-la. Após a morte de Anísio Teixeira, os recursos federais cessaram, e as pessoas que já eram efetivas ficaram ligadas à reitoria da Universidade. Foi um estímulo. . . . Ao mesmo tempo em que Dolores vivia esta experiência na EscolaParque, artistas baianos que expressavam em Salvador trabalhos de vanguarda – comprometidos com a democratização da cultura e com a valorização da cultura local bem como das diferentes possibilidades de expressão – foram convidados a integrar também a equipe docente da Escola-Parque. Foi assim que Echio Reis se aproximou do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, como professor de teatro. Será importante destacar que Echio – junto a outros quatro atores baianos – tinha rompido, na condição de estudante, com a escola de teatro da cidade de Salvador por discordar da postura dessa escola 22 TEIXEIRA, Anísio. Escolinha de Arte do Brasil. Coordenação de Augusto Rodrigues/INEP/MEC – Série Estudos e Pesquisa 6. Brasília, AGGS – Indústrias Gráficas S/A, 1980.p.64. 23 CAMPOS, Maria Dolores Coni. Encontros hoje, encontros ontem; cartas que vão, cartas que vêm, entre na roda você também. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2003. Or.: Edwiges Zaccur. 189 que, ao adotar uma ideologia elitista, montava textos exclusivamente europeus e convidava atores estrangeiros, internacionais e cariocas, para ocuparem os papéis principais de suas montagens, deixando para os estudantes da escola o exercício constante em papéis secundários. A problemática experienciada na escola de teatro – hoje, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia – levou esses cinco atores a formarem o Grupo dos Novos e construir um teatro em Salvador com recursos oriundos de campanhas populares e apresentações em ruas e praças. Nesses espaços populares o grupo foi ganhando notoriedade, o que possibilitou – com muita persistência e audácia – a construção do Teatro Vila Velha, oferecendo à cidade de Salvador um espaço cultural importante por garantir seu palco para o desabrochar e a afirmação da dramaturgia brasileira, como também, espaço de pesquisa e de expressão de talentos novos, até então desconhecidos pela impossibilidade que tinham de se organizar, produzir e viabilizar a circulação de seus trabalhos artísticos. Com o Teatro Vila Velha, os cinco atores passam a ter espaço livre para suas pesquisas e, no intercâmbio com artistas locais e outros artistas, o Grupo dos Novos desencadeia – através do Teatro Vila Velha e de suas produções – significativas transformações no cenário artístico baiano, além de ajudar a lançar jovens talentos como Tom Zé, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, que encontravam no Vila Velha um espaço aberto para laboratório e pesquisa musical, literária, dramática, política e social. Como artistas de vanguarda que constituíram o Grupo dos Novos e fundaram o Teatro Vila Velha, aceitaram o convite de dona Carmem Teixeira para integrar a equipe da Escola-Parque, onde Echio Reis se responsabilizou, junto a seus companheiros, pelas oficinas sistemáticas de teatro e dicção. No Centro Educacional Carneiro Ribeiro, Dolores Campos e Echio Reis se conhecem e através deles, produções da Escola-Parque estabelecem mais que diálogos, funcionando intensamente integradas. Fazeres e pensares 190 materializavam casamentos entre linguagens e saberes que estendiam pernas e braços pelos muros, pátios, pisos, ares da Parque. Lembra Dolores Campos: Ao ver a estrutura da Parque e do Setor de Trabalho, Echio se entusiasmou com o que acontecia na área de desenho. Volta e meia ele estava lá solicitando alguma coisa. Então passei a trabalhar muito com ele, no teatro. Eu tinha vindo da Escolinha de Arte e trazia comigo seu germe. Então, comecei a fazer os cenários para ele... os nossos meninos e os dele. Nós fazíamos um trabalho de diálogo neste sentido. E as roupas... Echio montou o Pastoril e outras peças com nossa meninada. Foi se entusiasmando. No final do ano, a Escola-Parque tinha o costume de apresentar uma grande exposição de trabalhos e esse peso maior ficava conosco do Setor de Trabalho. Echio descia do setor Artístico para me ajudar. Ele fez Álbuns enormes com os meninos, colocou cordas, uma coisa que eu jamais faria. Uma estrutura pesada, de homem, para reunir todos os trabalhos da criançada. Echio, que também desenhava na sua profissão de artista, parecia estar meio fascinado com a história que estava vivendo e descobrindo, com o desenho espontâneo e livre da criança. . . . O casamento se intensifica durante três anos de parceria no Centro Educacional, até que Echio e Dolores ritualizam este encontro entre bênçãos de amigos e mistérios. Dolores traz Echio ao Rio de Janeiro, apresentando-o à Escolinha de Arte do Brasil e a uma escola particular onde trabalhara – Instituto Silo Meireles. Agora, os dois passavam a dar aulas de artes nessa escola da rede privada, inebriando o espaço e os meninos com o processo criador. Neste mesmo período Caetano Velloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia já moravam no Rio de Janeiro e através das relações estreitadas com Echio no Teatro Vila Velha, os artistas – e outros amigos da época – têm na casa do casal baiano um ponto de encontro de finais de semana, sempre regados com a culinária da Bahia que magicamente surgia das mãos de Dolores, apesar dos parcos recursos de todos. Foi nesse clima, de magia e alegria, que Dolores e 191 Echio foram vivendo também tristezas e desencontros enquanto companheiros de travessia. Os sinais do cotidiano há muito anunciavam o porvir, mas por vezes, é preciso experienciar o viver, como aprendizado de escolhas. Narrar a vida de meu pai e de minha mãe é, para mim – neste instante – narrar a vida de muitos brasileiros, na tentativa de destacar elementos vivos da nossa história coletiva que, por serem significativos para mim, podem elucidar aqui problematizações emergentes de serem tensionadas com a contemporaneidade, na busca de caminhos para uma educação de qualidade, comprometida com ações reflexivas – éticas e políticas – na afirmação de qualidade de vida para todos e todas, em quaisquer fases da vida. Echio e Dolores, em dois anos de casamento, já com uma filhinha – Andréa – quase não se encontravam, ainda que morassem na mesma residência. Surpreendentemente, em meio a desencontros, Dolores que desejava outro filho impactou-se. E é ela quem assume aqui a narrativa, mais uma vez: Andréa tinha dois anos e meu casamento se anunciava não ser um casamento que ia durar. Tinha problemas sérios. E pedi ao Echio que queria um outro filho. Bem, eu sei que engravidei. Para mim foi uma coisa meio milagrosa essa segunda gravidez, porque eu já estava muito distante do meu marido. Sentia-me muito só. Ele tinha a vida dele. E não me procurava, até como mulher. Vivíamos sérios conflitos. Algumas vezes tive que ir trabalhar com óculos escuros para esconder o arroxeado dos olhos. Mas faltou a regra. Naquele momento eu estava bastante debilitada. Debilitada fisicamente. Estava muito magra, sofrida, triste. O sinal, é o da regra. Então, eu não tinha a mínima idéia de que poderia estar grávida. Mas o exame de urina acusou gravidez. . . . Com sete meses, Dolores resolve retornar a Salvador por sentir-se fragilizada, com intenso mal-estar que embora vivido em silêncio, não 192 conseguia ocultar. Sem ter feito nenhum exame pré-natal – em virtude da carência financeira e por não contar com apoio de benefícios de saúde, como professora da rede particular no Rio de Janeiro –, Dolores chega novamente à cidade do Senhor do Bonfim em 1969. A ditadura militar se fazia mais violenta. Porém o que afligia Dolores era sobretudo a reação da família, então, esconde suas dores, como recorda em seu testemunho: Cheguei a Salvador com uma inflamação. Então a primeira coisa que eu fiz foi ir a um médico: Alain. Ele me atendeu sem cobrar – era um excelente médico da família, irmão de meu cunhado. Eu tinha meu plano de saúde como funcionária pública e naquele momento delicado, conseguia usá-lo, o PASEP, sem ter que aguardar datas longínquas, dadas minhas facilidades familiares e urgências reclamadas por meu estado. Allain observou que eu estava com um abscesso no ouvido, necessitando de uma cirurgia, mas como estava grávida, ele não aconselhava tratamento cirúrgico. Então fui obrigada a lancetar o ouvido sem anestesia. Não sei se este fato – o susto – contribuiu para que eu tivesse a criança oito dias depois. Você, Isabel, nasceu de sete meses, o que talvez tenha sido provocado por aquela inflamação ou por aquela dor. Lembro-me que houve então um show no Teatro Castro Alves e Rodrigo Velloso – grande amigo – me convidou para ver o último show de seu irmão Caetano Velloso, antes de se exilar em Londres. Um espetáculo muito bonito. E nesse show eu tive que me levantar algumas vezes porque sentia uma dor atravessada embaixo. No dia seguinte, fiquei deitada, porque quando me levantava, a dor era muito forte. Bastava colocar o pé no chão... era uma coisa violenta. Aí eu me deitava e passava. Naquele mesmo dia, meu pai – Osvaldo – chegou do trabalho, às seis horas da tarde e quando me viu, achou que eu estava em trabalho de parto. Telefonou para um amigo, médico também, o Dr. Antônio Nascimento – que era do PASEP – e pediu que me atendesse com urgência. Papai era médico clínico. Era considerado no interior da Bahia como um grande parteiro. Ele morava no interior e naquele momento se encontrava em Salvador, cidade 193 onde tínhamos um apartamento comprado por mamãe e papai, a fim de que as seis filhas e o único filho homem estudassem em cidade grande. Papai então mais velho, achou que eu estava bem entregue aos cuidados do Dr. Nascimento. Eu fui chegando ao hospital e a criança foi nascendo. Era você, com cerca de 1 quilo e 200 gramas. Você nasceu quase sem dor. Sem precisar de anestesia. Então de certa forma você veio como eu esperava que fosse na primeira filha: Andréa. Um parto natural, sem que precisasse tomar anestesia. Ficou dois dias na encubadeira e fomos juntas, de volta para a casa de mamãe. No primeiro mês você viveu tranqüila. Mas depois de um mês você começou a ter manifestações diferentes. Começou a chorar muito e, além de chorar, você apresentou uma fungueira. Eu não sei porquê, Simone – minha irmã – estava passando uns dias lá na casa de mamãe. Lembro-me muito dela me ajudando, te carregando de noite porque você chorava sem cessar. Então nós levamos você a um médico do IAPSEB. Nem ele, nem ninguém descobria o que você tinha de fato e, as preocupações cresciam. Lembrei-me do Dr. Edison Liberato, que era amigo de Oliveiros Guanais, anestesista e marido de minha irmã Simone. O Dr. Edison tinha cuidado de Andréa, mas não era do IAPSEB, era médico particular. Por isso que eu não voltei a ele na segunda gravidez. Mas a pedido de meu cunhado Oliveiros, Dr. Edson me recebeu. Tudo eu fazia absolutamente sem dinheiro algum. Dr. Edson, sabendo um pouco da minha vida, perguntou: - você fez o sorológico de lues? Esse nome soou novo para mim. Eu não tinha feito exame nenhum. Não houve pré-natal em sua gravidez, diferente da primeira que foi toda acompanhada. O Dr. Edison era um médico de extrema confiança e competência, além de que eu não precisava ter nenhuma despesa. Ele começou a me acompanhar. Pediu meus exames e foi ficando aflito. Quando os exames ficaram prontos, foi Selma – minha irmã, farmacêutica – que me deu a notícia. No laboratório de seu marido – Murilo Nascimento – minha irmã mostrou-se muito assustada com a apreciação dos exames. Chamou-me, levando-me para uma sala reservada lá no laboratório. Abriu um livro e pediu que eu lesse sobre sífilis. Aí eu vi que nos exames tinha dado cinco cruzinhas de sífilis em mim (o máximo 194 de gravidade). Portanto, você também havia recebido esta mesma carga de mim, na gestação. O Dr. Edison me disse: - É preciso um tratamento urgente para a criança e para você. Para ela, como é muito pequenininha, pode ser que não resista, porque tem que tomar uma carga significativa de penicilina. Pode ser que tenha um choque e muito provavelmente, seqüelas. Mas a gente tem que apelar para isso. Foi papai quem lhe deu a bezetacil, a penicilina, de 7 em 7 horas. Muito magrinha, você tomava até no pé. Deitadinha em uma banheira de plástico forradinha, posta aos pés da cama, era o seu berço. Você chorava aquela horinha, mas reagia. . . . Rapidinho fiquei boa e exercitei a gratidão pela vida a mim concedida. Logo me foi ensinado que minha sorte estava na aparente falta de sorte de minha mãe, que por não ter condições de fazer um pré-natal, teve garantida a minha vida. Aprendi então a lição de que, quando se descobre que uma criança vai nascer com grave doença, potencialmente portadora de seqüelas – isto é: a possibilidade de nascer cego, sem braço, com má formação dentro da cabeça ou no corpinho – a mãe e o pai dessa criança – apoiados por conselhos e orientações legais – precisam ter coragem de libertar a criança do infortúnio de habitar o mundo como um ser anormal. A impossibilidade do pré-natal me assegurou o direito do viver e, o milagre da cura me concedeu uma outra chance de habitar o mundo: ser uma criança normal. No entanto essa questão da normalidade, tão poderosa a ponto de conceder o direito à vida, me inquietou o viver. De onde vêm os parâmetros que definem – como um controle de qualidade – quais pessoas têm o direito de habitar ou não o planeta? Em que se alicerçava a certeza humana de que as pessoas portadoras de seqüelas seriam fatalmente infelizes como viventes? Assim fui crescendo – grata pelos milagres a mim concedidos, mas incomodada por estranhamentos colados na minha história. Questões que eu 195 não compreendia, visto ser plausível a gratidão pela minha vista perfeita, pelos meus membros plenos de movimentos, pela minha mente vigorosa. Mergulhava então, em uma imageria que precisava elaborar. Se esse conjunto de imagens – sempre se acumulando e se movimentando em nosso imaginário – não for bem cuidado, avaliado com autonomia, vasculhado de tantas poeiras que o moldam e ameaçam mantê-lo conformista, terminamos aceitando modelos, dos quais discordamos explícita e formalmente.24 Quando fiz um ano, meus pais se separaram, o que não impediu que recebesse educação e tivesse um convívio amoroso. Desfeito o casamento, meu pai desenvolveu uma grande admiração por minha mãe, a qual jamais realçou para nós reclames ou mágoas do seu casamento, ajudando meu pai a desfazerse de culpas e assumir sua paternidade, no que dizia respeito ao afeto pelas filhas, já que não se poderia contar com sua ajuda financeira. Entre Salvador e Rio de Janeiro, Dolores favorecia encontros entre pai e filhas, pensando nas lacunas que poderiam advir de sua falta. Meu pai empenhava-se em fazer de sua ligeira presença, intensos e imensos encontros de amor, e o fez. Feliz, eu administrava espaços e realidades. Cresci aconselhada a não contar minha história e quando imaginava fazê-lo a alguma amiga na infância e na adolescência, percebia que mais esta notícia complicaria a complexa administração junto às mães de colegas e amigas – das escolas privadas onde estudei como bolsista até chegar à universidade pública. Famílias da classe média e alta relutavam em confiar suas filhas como amigas de uma menina, moradora de um Conjunto Habitacional popular na periferia da cidade, criada por uma mãe divorciada e, filha de um pai ator. 24 LINHARES, Célia. Bons espelhos custam caros – imagens na produção política de subjetividades docentes. In: Revista de Educação. AEC nº 130. Ano 33. Jan/ março, 2004. p. 54-75. 196 Questões que, narradas hoje, à primeira vista parecem carregadas de menos tabus, na década de 70 expressavam exclusões silenciosas e clamantes. Aprendi a calar-me, para poder brincar e ser uma criança normal entre amigos e primos. Silenciava minha história e como recompensa, garantia que as amigas fossem dormir em minha casa, experienciando brincadeiras e realidades, visto que vivenciar o espaço delas era conquista mais fácil, por representar maior segurança para suas mães. Hoje sabemos, adverte Agamben, que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente.25 É essa impossibilidade de traduzir-se em experiência, que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana, ainda que o cotidiano hoje seja, possivelmente, tão rico em acontecimentos significativos.26 Silenciava-me em tranqüilidade, visto que por mais que não pudesse narrar minha história junto aos afetos sociais, vivia seus detalhes intensamente, naqueles espaços possíveis de fazê-lo com zelo e cuidado. Ao garantir – com suporte de minha mãe – espaço de convívio com meu pai, via-me acolhida por ele e por seu grande amigo, que mais tarde, já adolescente e leitora menos ingênua, mas não menos madura, percebi ser este amigo, a outra parte que – junto a meu pai – constituía um casal. Percebi então que gostava do ser humano e, este gostar, redimensionava em mim a possibilidade de acolher formas plurais de amar. Hoje percebo ter sido fundamental meus pais não se prenderam à tentativa de integrarem-se como parte do modelo único e, especialmente, meu pai – liberto de um padrão que além de não lhe caber, era-lhe impossível – pôde constituir-se atento às suas escolhas, cuidando em delicadeza, de nossa formação – minha e de minha irmã. 25 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004.p.21. 26 Idem.p.22. 197 Atento em favorecer a autonomia das filhas, meu pai sinalizava a importância das escolhas próprias que, segundo ele, não deveriam estar aprisionadas como repetições das escolhas dos pais. Podíamos ser diferentes – cada um – enfatizava para as filhas, Andréa e Isabel. Entre cuidados, à sua maneira, meu pai pôde fazer da relação com as filhas e com a ex-esposa, uma troca saudável para nós. Como bem observa a professora Célia Linhares, os modelos únicos e opressores são signos da negação de um exercício humanizador e se constituem sempre como uma experiência dolorosa. Mas as grades incomodam em qualquer espaço social, pois elas significam de alguma maneira uma redução de nossa liberdade, implicando limitações da convivência com os outros ou de um controle exercido sobre nós, podendo até anunciar uma ameaça de aniquilamento humano e vital, desde que declinemos de recuperar o exercício de humanidade – que sempre inclui a autonomia – como um processo contínuo e intransferível. Por essa razão, ainda quando estamos sob condições de constrangimento, podemos exercitar movimentos emancipadores, ou seja, podemos exercer a liberdade por a desejarmos, esforçando-nos pela sua ampliação.27 . . . Descobri-me atriz, educadora e entre tantas construções e trajetórias, já no trabalho com a Fundação Leão XIII- RJ, em meio ao Seminário realizado pelo Projeto Buscando Caminhos Através da Arte – em dezembro de 2004 – ruminava eu, diálogos resultantes das trocas entre os presentes e as mesas redondas das quais participei como integrante da equipe de educadores do projeto. Ainda atenta a reflexões que ressoavam em mim na escuta de colegas, usuários e funcionários da Fundação, percebo-me sentada na platéia junto ao senhor Nivaldo – morador da Leão XIII – pessoa que sempre me tocara pela alegria de viver, que dele emana intensamente. Senhor dono de voz cheia de seresta..., timbre pleno e sábio, Nivaldo intui momentos de grifar a alegria em si, na inspiração do bem estar de tantos 27 LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades. In:PGM 2 Currículo e conhecimento. Boletim salto para o futuro. TV Escola.p.15. 198 outros – a seu redor. Bom de prosa, ele vai tecendo relações ali, acolá... Quando eu – Isabel – sento-me a seu lado, o Sr. Nivaldo faz comentários sobre questões abordadas no Seminário. Entre conversas, pergunto: - Sr Nivaldo, como o senhor perdeu a visão? - Mamãe pegou sífilis de papai e não sabia. Eu nasci assim. Bastou esta resposta, para Isabel reviver toda a sua história redimensionando aprendizados de muito tempo. Aprendizados que não se fizeram estáticos, mas que potencializaram suas re-organizações ao encontrar-se com o mestre Nivaldo. Com certeza, a mãe deste senhor não teve direito a tratamento médico e cuidados por parte do Estado ou da família – que, neste caso, não pôde substituir o Poder Público nas responsabilidades políticas e sociais. E como nos alerta Bauman, como podemos viver com essa contradição; e, sobretudo, por que a maior parte do tempo não a notamos e, quando o fazemos, não ficamos particularmente preocupados.?28 Tempo depois, pude sentar-me junto ao Sr. Nivaldo na Fundação Leão XIII e agradecer-lhe por ter firmado aprendizados significativos em mim: - Quando eu conheci o senhor e me contou que nasceu com sífilis, tendo perdido sua visão por causa da doença, pensei nas tantas vezes que testemunhei a sua alegria de viver. Lembro – para o Sr. Nivaldo – que também nasci com sífilis, conforme tinha lhe falado no Seminário, e divido com ele reflexões que me acompanham. - Pensei diversas vezes que, caso a minha mãe soubesse da doença antes do parto, eu Isabel, poderia deixar de existir pela possibilidade de nascer com alguma diferença em relação às outras pessoas. O senhor – Nivaldo – também poderia não existir, como confirmação do decreto que legaliza o aborto a partir da recomendação de atitude fatal com a vida do outro, no caso de comprovada possibilidade de seqüelas. 28 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000.p.10. 199 E quantos tiveram sua vida decidida como interrupção, antes que pudessem ser alegres e tristes – como nós – e nesta alegria e tristeza, poderem fazer-se felizes – como nós? - A senhora sabe o que é isso? Me pergunta o Sr. Nivaldo. E comenta: - Olha, o problema dona Isabel, é que a gente tem como obrigação procurar entender a gente próprio. Se a gente não procurar entender a gente próprio não pode entender o outro ser humano. Ser útil à gente mesmo. Ser útil a gente mesmo é gostar da limpeza, é gostar de tomar seu banho, é gostar de cortar suas unhas, é gostar de tirar sua barba, é a pessoa ser útil a si próprio. Ser útil a quem precisa de utilidade. Se encontrar uma pessoa defecada, urinada ou vomitada, não fazer crítica daquela pessoa. O que aconteceu com ela ou com ele... amanhã pode ser eu. Nós não compreendamos a gente. A gente para compreender a gente, tem que estudar a gente próprio. Se não estudar a gente próprio, a gente não pode compreender a gente. Se nós não se compreendamos, como é que vai compreender o outro? É preciso que a gente procure puxar pela massa cefálica: pelo ritmo psicologial, filosofial, categorical, espiritual, mental, social. Usar o seu termo educativo, porque se não usar o seu termo educativo, a gente não vai ter educação nem para a gente próprio. Como é que ele vai ter educação para alguém, se não tem educação para ele próprio? Se seu pensar é mágico ou ingênuo – nos conta Freire – será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir idéias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação.29 - Eu perdi minha visão material – continua o Sr. Nivaldo – mas estou satisfeito com aquilo que veio para mim. Se nós não tiver calma com a gente mesmo, não temos calma com alguém. Se eu não sei lidar comigo não vou saber lidar com a senhora. Tenho que saber lidar comigo. Saber que eu preciso ser respeitado para saber respeitar os outros. Não criticar, não zombar de alguém para não ser zombado. Não fazer pouco, nem criticar. E todos 29 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.101. 200 nós, neste planeta terrestre, temos um pedacinho na vida. Descobrir que nós nascemos e estudamos, aprendemos, mas não aprendemos de tudo que tem neste planeta terrestre. Só pra mostrar pra a senhora, que tem um monte de coisas que alguém não conhece. E tem coisas que não estão escritas no livro. Tem perguntas que não estão no livro. . . . Conversamos, o Sr. Nivaldo e eu, sobre escolas, professores, aprendizados e importâncias para a vida: os sentidos que se fazem significativos em nós. - Olha Isabel, meu professor é a obra da natureza, conta ele. O meu professor é o meu bom ritmo categorical. O meu professor é a minha própria consciência. O meu professor, é como eu digo à senhora, a gente tem por obrigação de se estudar a nós próprio, certo? Estudando a nós, podemos e devemos assumir o desafio de fazer com que o campo da educação também contribua para os múltiplos movimentos de expansão da vida.30 O Sr. Nivaldo, num só fôlego, retoma o rumo da conversa, no sentido de fazer-me compreender o porquê da sua gratidão à Fundação Leão XIII. - Eu estou nesta belíssima casa que me tirou de uma lama e me botou numa cama, há 27 anos. Porque esta casa é como eu disse para a senhora: quando eu bebia a bebida alcoólica, eu tinha minha casa equipada com televisor, com geladeira, minha radiola, meu relógio de pulso, o dinheiro no banco. E eu perdi tudo por causa da bebida alcoólica. Eu perdi tudo quanto eu tinha. Hoje eu estou com esta bolsinha (bolsa de fezes) por causa da bebida alcoólica. Às vezes a gente pára de beber, mas ficam as seqüelas. É o que a bebida alcoólica faz: deixa a LINHARES, Célia; LEAL, Maria Cristina (Orgs.). De uma cultura de guerra para uma de paz e justiça social: movimentos instituintes em escolas públicas como processos de formação docente. In: Formação de professores: uma crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.p.117. 30 201 pessoa sem braço, sem perna. Deixa a pessoa muda. Deixa a pessoa atordoada, falando coisas sem tirar proveito daquilo que fala. A Fundação Leão XIII para mim é tudo de bom. Por que eu digo isso? Porque eu tava lá fora eu tinha de tudo e não tinha nada. E aqui dentro? Eu não tenho nada, mas eu tenho tudo. Eu tenho a paz. Eu tenho amor. Eu tenho carinho. Eu tenho bom ritmo categorical das assistentes social, dos plantão. E de todos. Existe uns pedacinhos dessa vida terrestre, que estes pedacinhos a gente precisa aprender a dominar eles. E sabendo dominar eles, não é com palavra ofensiva. É com palavra educativa, que domina aquela pessoa que está com palavra ofensiva. Domina ele – os pedacinho – não é com pancada. A Bíblia, dona Isabel, capítulo 2, versículo 3, diz: Eliminai uma ovelha ruim, para não botar o seu rebanho a perder. Mas isto de eliminar uma ovelha ruim, não é matar aquela ovelha, é ensinar aquela ovelha. É educar aquela ovelha. A ovelha somos nós. - Eu sou uma ovelha que quase fui eliminada, comenta Isabel. O que o senhor acha que pode melhorar – aqui na Fundação – para que a gente não elimine nossas ovelhas? - Olha dona Isabel, primeiro educação. Verba que não existe. E outras coisas. Gente que tenha muito ritmo psicologial, filosofial, categorical, espiritual, mental, social. Porque nem todos que pega num livro... lê, mas não sabe compreeder o que está escrito ali. Não tem a condecoração. A condecoração, porque se nós não souber para a gente próprio, não sabe para alguém. - O senhor me falou que não foi a cachaça que veio até o senhor, o senhor foi até a cachaça – assim me contou. O senhor me diz que hoje tem uma paz, ao morar aqui na Fundação. E essa paz veio de onde? 202 - De mim mesmo porque eu procurei ser gente, que naquela época eu não era gente. - E qual o seu segredo para ter uma mente tão plena, Sr. Nivaldo? - O meu segredo? Eu puxo por mim. Eu procuro ensinar eu mesmo. Dona Isabel, a dona Isabel não é chamando a senhora de velha. Dona Isabel, é um respeito na vida material. Nem todas, aceita elas chamadas de fulana de tal. Nem todas aceita. Então eu uso chamar a senhora de dona Isabel, como a senhora me chama de Sr. Nivaldo. Aí eu vou dizer: se a senhora me chama de Sr. Nivaldo a senhora não está zombando de mim. Está me elogiando, me dando um pouco de educação social. - Se o senhor com seus 75 anos, puder dar um conselho para uma mulher com 37, um conselho precioso que eu possa levar para a minha vida, o que é que o senhor me diz? - Olha dona Isabel, nós que estamos neste planeta terrestre que nós estamos habitando, pisando nele: depois ele é que vai pisar em cima da gente – que é a dona Terra – ela dá de tudo para a gente comer, depois ela é que come a gente. Não vê a água? Sem ela nós não existe, mas ela também acaba com a gente. Se beber ela demais, também passa mal. É igual a comida, se comer demais passa mal, se não comer também passa, dá vontade de vômito, dá tonteira. Até o dinheiro demais, dona Isabel, faz mal. E a gente também sem ele, mal passa. Nós quer comprar uma coisa na vida e não dá. E o dinheiro demais, nós quer comprar tudo. O dinheiro compra tudo mas não compra nossa vida, dona Isabel. O dinheiro compra tudo, mas não compra a morte, para ela não levar a gente. Compra? - O senhor gosta de viver, seu Nivaldo? - Olha, dona Isabel, eu dou graças a Deus por enquanto, por eu estar vivo. Tem muitas perguntas, dona Isabel, que não dá para entender. Que não está escrito. Não está escrito no livro. Tira a roupa, para poder comer. Tirar a roupa é o couro do boi. A senhora sabe o que só se faz com ela? 203 (Isabel pensa e sorri, dizendo que não com a cabeça) - É a água, dona Isabel, sem a água nós não somos nada, não é? Sem a água a senhora não toma o banho, não lava a sua roupa, não faz sua comida. Não tem água para a gente ingerir. Não tem água para fazer nada. Então a gente só faz com ela. Sem ela nós não somos nada. Eu vou perguntar para a senhora, o que está sempre molhado na gente, a senhora sabe o que é que é? - A língua, diz Isabel. - A senhora já botou o dedo no céu? - Já. (e em segredo, lembrei das tantas estrelinhas que a professora Célia coloca em nossos textos). - O que é que a natureza te dá duas vezes, e a terceira é o médico? - Essa aí eu não sei não. - A nossa dentadura, aqui ó. (mostra a sua própria). - Quem inventa essas perguntas é o senhor, seu Nivaldo? - É, de minha autoria. - Vou fazer uma pergunta para o senhor, agora. Posso? - Pode. - Qual é a maior injustiça do Natal? - Injustiça? Eu sei. A maior injustiça do Natal é ele fazer tudo de bom naquele dia, tudo de bom. E no outro dia ele não tem nada pra comer. Mas naquele dia ele tem tudo, compra de tudo. E no outro dia ele tá sem nada. Então eles aproveitam o Natal, porque o Natal, dia 25 de dezembro, é o dia que nasceu nosso Senhor Jesus Cristo – Emmanuel Messias. Este é o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, sabia disso? - Eu não. Estou sabendo com o senhor. - Então a gente temos por aquela obrigação: comemora-se o Natal, comemora o carnaval, comemora tudo, mas eu acho que tem um erro da nossa parte. É uma coisa que 204 o nosso planeta Terra pratica isso todo ano. Então ele não se lembra do dia de amanhã. Lembra só de hoje. Come tudo o que tem hoje e, amanhã a pedir vem. Desculpe, tem gente, dona Isabel, que só usa a roupa no dia. No outro dia ela dá aquela roupa para os outros, por quê? Porque tem o dinheiro. Em vez de mandar lavar aquela roupa, bonitinha, ou ela mesma lavar. Ser útil para ela mesma. Suas peça íntima. Vai jogar fora? Não. Não tem sabão? Não tem água? Então por que não ter disposição para lavar para a senhora, ser útil para a senhora mesma? Eu tô errado? - O senhor está certíssimo. Eu é que não tenho nada para dizer. Posso brincar um pouco com esta pergunta do Natal? O senhor me falou uma coisa tão séria. Sábia. Posso brincar? - Pode. - A maior injustiça do Natal, é que o peru morre, e a missa é do galo. (Risos). - Mas a resposta do senhor sobre qual a maior injustiça do Natal foi ali nas profundezas. - É tudo para aquele dia. Mas por quê? A mente dele ficou deteriorada. Não soube botar na sua massa cefálica; na sua memória; no seu ritmo categorical, que amanhã é outro dia. Então nós temos que usar o termo educativo. Porque se eu não tivesse o termo educativo, a senhora não vinha dialogar comigo, vinha? Não é possível – diz Freire – o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito.31 - Se eu fosse uma pessoa estupefática... – continua Sr. Nivaldo – a pessoa estupefática, dona Isabel, é a pessoa ignorante, que não aceita diálogo com alguém, não aceita conversar, que está no canto, tristonho, está se martirizando a ele próprio ou ela. Não tem o diálogo com outra pessoa. Vive tristonho, encabrunhado, então ele entrega o seu próprio destino de ruindade, para si próprio. 31 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.79. 205 - E o que é que a gente deve fazer com essa pessoa, senhor Nivaldo? Como a gente deve proceder? - Deve procurar controlar ele o máximo possível. Vamos dar um passeio ali, o senhor está muito tristonho. Dar um cafezinho, tomar um refresco. Procurar que ele vá caminhar ele próprio. A massa cefálica dele em ação. Ele está apagado, ou ela também. Tem que procurar puxar a mente dele, que ele está com a mente deteriorada. A mente deteriorada é a mente fraca, a mente cansada. Mente que não tem noção daquilo que quer, não tem noção daquilo que faz. E não tem noção daquilo que usa. É o que às vezes a gente diz mente podre, mas não é nada disso, a mente não é podre, a mente é deteriorada, mente cansada, sem cultura. Não tem nada, é uma pessoa apagada de espírito. Viu dona Isabel? - E o senhor costuma fazer o que por essas mentes assim? - Por essas mentes? É procurar puxar com ele um assunto bonito. . . . Comovida com a beleza dos significados percebidos, faço-me fortalecida naquilo que há de mais criador e ético em mim e, revigorada, prossigo em experiências com estes senhores e senhoras. Lembro-me então de algumas pessoas que encontro no CRS - Campo Grande: cabeças caídas com olhares despedaçados no cimento áspero, com pupilas enevoadas – provavelmente abandonadas de imagens e referências. Nenhum gesto que pareça intencional. Nenhum murmúrio, posso eu perceber nessas pessoas que por ali aguardam a única visita certa: a morte. Será isso que o senhor Nivaldo me alerta quando se refere a pessoas sem cultura? Reflito e vejo senhores e senhoras que carregam seus pertences pelos espaços da Fundação. Onde andam – seja no banheiro, no refeitório, no pátio – carregam sacos e embrulhos. Penso nas vezes que vi funcionários e assistentes sociais fazendo a limpeza do dormitório desses senhores e senhoras. Os comentários que escutei, julgavam como absurdo o volume das bugigangas guardadas debaixo da cama, ou – para aqueles que têm um improviso de 206 armário em seu dormitório – vejo escapar comentários a respeito da quantidade de lixo, encontrado como guardados. Assisto funcionários e assistentes sociais deixarem os dormitórios – nestes momentos de assepsia – carregando sacos de culturas a serem despejadas em algum depósito, como lixo. Visito a rouparia da instituição, tão organizada e limpa. Orgulho dos funcionários. Orgulho da Fundação. Escuto belas histórias como uma funcionária que se desdobra para que tudo esteja perfumado. Esta senhora me conta que diante do sabão em pó que segundo ela, cai no fundo da máquina de lavar como um punhado de sal grosso, por ser o sabão mais em conta encontrado no mercado pelos setores administrativos, para envio a esta instituição como material de primeira necessidade, ela, a funcionária responsável pela limpeza das roupas dos usuários, solicita aos colegas funcionários, a sobra dos sabonetes guardados – pertences presenteados pelos visitantes que fazem doações em momentos festivos. Como sabonete faz-se um presente barato e útil, é grande a quantidade armazenada nos armários dos senhores. São esses sabonetes que a funcionária derrete e usa como sabão líquido para lavar as roupas que não merecem punhados de sal. Me perco na enormidade de peças de roupas, dobradinhas e guardadas após o perfume de enxágüe, ao mesmo tempo em que sou fisgada por conversas guardadas em mim. Senhores e senhoras contam-me – por vezes – que não gostam que suas roupas vão para a lavanderia porque quando retornam lavadas, suas peças íntimas ganham outros destinos, ali mesmo na Fundação. E aquele cheirinho do corpo, aquele jeitinho na gola, aquele bolso gostoso que aquece, não tem pertencimento ou história. Sem falar nos males que alguns carregam, em necessidade de resguardo. Me falam estes senhores e senhoras, de cuidados e de identidades – tão desejados. As roupas – peças íntimas – têm suas identidades lavadas. Desprovidas de cheiro e histórias próprias, permanecem acervos? Tudo ali se transforma 207 num acervo institucional. Os armários arrumados sem a participação do dono, para que seja possível perceber – senhor, senhora, funcionário, assistente social, psicólogo – o significado e implicações da palavra lixo. O porquê de uma banana ser guardada em armário, como jóia em caixa forte. O porquê da jóia ser chamada de lixo, por aqueles que não precisaram guardá-la. Lembro-me do Sr. Nivaldo a me alertar: - Se a senhora compra dois pão hoje, guarda aquele pão para amanhã e não joga aquele pão fora, porque amanhã aquele pão vai fazer falta. Tomara que nunca falte. Guarda aquele biscoito. Não quer comer hoje, não joga ele fora. Dê para um animal, mas não jogue aquela comida fora. Guarda para amanhã, amanhã é outro dia. Olha, eu tenho garrafa de água guardada e eu tenho me dado bem. Sabe por quê? Se faltar água no outro dia, eu tenho a minha água guardada. Tudo isto me lembra Bauman, quando diz: Não iremos longe sem trazer de volta do exílio idéias como a do bem público, da boa sociedade, da igualdade, da justiça e assim por adiante – idéias que não fazem sentido senão cuidadas e cultivadas na companhia de outros.32 Como fazer circular com respeito de todos, o que nos acervos nos constitui como humanos e viventes? Que faremos sem nossas marcas culturais – acervos apagados pelos funcionários e pela instituição? Será uma intencional metodologia esta prática, ou conseqüência de formações superficiais? Poderiam – funcionários, assistentes, psicólogos – potencializarem construções nesse ato de arrumar armários e decidir destinos de bens? O que faz com que usuários não participem dessas ações como espaço de aprendizados e ensinamentos? O que se faz preciso para que a limpeza aconteça como ato que educa todos que vivenciam esta história, na ressignificação de referências e realidades? 32 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000 / Vidas Despedaçadas, 2005.p.16. 208 Como a escola forma seus professores? Como estes professores formam suas crianças e adolescentes? Como são formados os profissionais que trabalham com pessoas e vidas? Penso em minha mãe que, em momento de desespero e dor, procurava diariamente força para estar comigo, em possibilidade de apoio: - Isabel, enquanto você tomava a penicilina de 7 em 7 horas, eu voltei à igreja. Ia à missa todos os dias. Entregava você. Pedia que você ficasse bem. Eu ia ali naquela igreja perto lá de casa, do Hospital Espanhol. Todos os dias. Rezava muito. E você realmente ficou completamente boa, E eu também. - O que você buscava na igreja?, pergunta Isabel. - Era uma coisa só comigo e com a oração, com a concentração, com a ligação. Então, aquela coisa de ir todos os dias era para fortalecer essa ligação. Hoje eu digo que é uma ligação. Conectar com as coisas boas do indivíduo, com as coisas boas do mundo. Com a nossa força. - E se você fizer uma relação deste lugar que era a igreja e que possibilitava, naquele momento, uma religação de você consigo, religação com aquilo que era forte em você, para que não se dispersasse no sentido de poder estar usando essa força para algo realmente necessário; qual a relação que você faz com isso que buscava na igreja e com aquilo que buscava – e busca, hoje com seus 69 anos – no seu espaço profissional, como por exemplo, a escola? - Porque, Isabel, eu sempre fui criada dentro da minha casa... sempre me vi diferente. Como não era uma menina talentosa nos deveres, não apresentava nada de excepcional, então eu me surpreendia em estar dando certo. Lembro-me que quando a gente chegava na 4a série na escola, a nossa professora chamava a mãe para dizer se a gente tinha ou não condições de fazer o exame de admissão em Salvador. Ela sacava isso. E para mim foi uma surpresa ela chamar mamãe e dizer que eu podia ir, que eu iria passar. E eu fui, e passei. Então sempre para mim, era uma surpresa estar dando certo. Eu fazia o possível para dar, dentro da minha questão, fazia o possível. Diria que sou uma pessoa 209 responsável, compromissada, ligada, mais do que competente – até diria – era essa coisa da disciplina. De estar ali tentando não ser vadia. Ser responsável. Então, eu acho que dou certo pela responsabilidade. Isso foi indo até que eu descobri neste Rio de Janeiro, mais tarde, já formada como professora, em contato com a Escolinha de Arte do Brasil, eu descobri algo novo: que realmente eu era diferente. Então aquelas coisas que eu não sabia repetir, do modelo estabelecido, era realmente algo de especial, e não de diferente para ruim. Era porque eu tinha algo de sensibilidade, que precisava ser olhado com sensibilidade. E a Escolinha me olhou com sensibilidade. Foi isso que encontrei na Escolinha de Arte do Brasil, me fortaleceu de tal forma que até hoje, quarenta e tantos anos depois, este é o meu caminho. É a minha fé. Vivemos, na Escolinha, um universo poético. Essa questão de poder escutar o outro, de tentar compreender o outro, de respeitar suas manifestações diferentes do modelo. É duro, isso é muito duro, porque a vida nos impõe modelo para viver, para dar certo. Então, como isso foi uma ginástica que eu fiz – uma ginástica dolorosa – às vezes fico desejando para as minhas filhas – Isabel e Andréa – um caminho mais suave do que o meu. - Quando você diz ginástica, qual foi a sua ginástica? - A ginástica, Isabel, é essa coisa de ser diferente. Carregar o peso do diferente. . . . Imersa em reflexões que me dinamizam, lembro-me de Crochík, que nos convida a instâncias profundas quando diz que numa cultura que privilegia a força, o preconceito prepara a ação da exclusão do mais frágil por aqueles que não podem viver a sua própria fragilidade.33 Com as palavras de Dolores e Crochík, volto-me à Fundação Leão XIII carregada de perguntas que ressoam em mim. 33 CROCHÍK, José Leon. O conceito de preconceito. In: Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Robe, 1997.p.23. 210 Por que me abandono de mim, deixando as unhas ficarem cascudas e a pele encrespada? O que leva esses senhores e senhoras a se diluírem em profundezas acres e severas? Por que o senhor Nivaldo nos assinala, tantas vezes, a importância do ser útil a si mesmo, para poder ser útil ao outro quando este precisar de mim? O que faz com que o Sr.Nivaldo dê um grifo especial ao banho, às unhas cortadas, como necessidades aprendidas depois que nos tornamos adultos e idosos? Quando o Sr. Nivaldo registra a importância de não abandonarmos aquele que está a abandonar-se de si, ele – Nivaldo – nos conta mais do que, mais das vezes, pensamos estar ele contando. - Vem cá fulano – nos ensina Nivaldo – vem tomar um banhozinho que você está sujo. Vem cá. Ensina a ele tomar um banho, que ele não sabe esfregar seu próprio corpo. Ensina a ele cortar as suas unhas, que ele não sabe cortar suas próprias unhas. Se não tiver tesoura, esfrega assim no cimento e corta as unhas. Eu corto minhas unhas assim. Eu corto minhas unhas no cimento, quando não tem tesoura. Não há diálogo – lembra Freire – se não há um profundo amor ao mundo e aos homens.34 Como um vai e vem – imbuída de Nivaldos Freirianos – retorno à Escolinha de Arte do Brasil entre perguntas que se fazem junto a Dolores: - O que é que você acha que a Escolinha assegurou em você, que você vê como fundamental de ser assegurado na escola formal? - Olha, a Escolinha me mostrou o seguinte: na época [anos 60], havia uma dicotomia entre a pessoa que tinha talento e a pessoa que não tinha talento. A pessoa que sabia desenhar e a pessoa que não sabia desenhar. Parece que as pessoas que tinham 34 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.p.79. 211 esses talentos – que eram os modelos, os parâmetros estabelecidos na sociedade – eram mais valorizadas. Por exemplo: minha irmã. Ela tinha boa voz, ela sabia recitar. Sabia todas as respostas. Então ela representava o modelo. Tinha medalhas. Era aquilo: o modelo é este. Ao mesmo tempo, isso encolhia aqueles que não tinham aquele poder. E eu não tinha. Não tinha graciosidade, eu não era bonita. Eu era pequenininha, toda morena, não era apreciada, era gordinha, peituda. Toda essa coisa. Eu era uma pessoa que não tava dentro dos padrões. Diferente de minhas irmãs e meu irmão – muito alvos – e aqueles amorenados traziam olhos verdes, ou azuis. Quando cheguei no Rio de Janeiro – na Escolinha de Arte – que ninguém sabia quem era minha mãe e meu pai, então lá as pessoas me viram pela primeira vez na vida como pessoa. E ao olhar para mim como gente, viram que eu tinha talentos. Ali, eu não era filha de sicrano ou irmã de beltrano. Eu era gente. Quando então fui fazer a gravura em metal – ainda na Escolinha – e de repente fui aceita no Salão Nacional de Arte Moderna, foi um choque para mim. Uma surpresa muito grande, pelo inesperado da situação. Já naquela época as pessoas estavam comentando que eu podia ser artista. Eu estava fazendo coisas bonitas. Mas eu mesma me analisei naquela hora. Será que eu sou uma artista? Não. Eu sou uma professora que tem o processo criador dentro de mim. Como foi bom eu descobrir isto. Então eu vou fazer disso minha luta na educação. Poder fazer esse trabalho para que todos se reconheçam. Porque hoje, sei que Paulo Freire também mexeu com isso quando ele disse Ser Mais. Não há também diálogo, se não há intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens.35 . . . Volto-me às escolas públicas com as quais tenho interagido no projeto Janelas Cruzadas e sou levada a recorfar uma situação vivida em uma das 35 Idem.p.81. 212 escolas parceiras. Entre diálogos e visitas a outras escolas participantes do projeto, percebi ser comum a problemática que trarei aqui e, que a lógica de lidar com esta questão faz-se uma maneira de muitos. Em conversa com uma diretora de escola e com uma professora regente, perguntei sobre a maneira dos pais se fazerem presentes na escola e, de que forma a escola tem favorecido aproximações com os familiares, responsáveis pelos estudantes. Rapidamente, a diretora da escola mostrou desconforto no lidar com uma criança que apresentava renitente tendência em ficar em cima de árvores catando bichinhos. Na sala de aula, esse garoto sistematicamente trazia o mesmo assunto. A diretora estava bastante preocupada e exaltada com o caso desse menino, buscando ajuda para mantê-lo em sala atento a outros assuntos propostos no planejamento didático, que diferia do mundo dos bichos. Perguntamos como a professora regente lidava, na sala, com essa demanda do menino. A diretora parecia estar aflita por não ser possível estar falando de bicho o tempo inteiro na sala de aula e, confessava não saber mais o que fazer com a criança. Penso nesse menino curioso. Um pesquisador nato que aponta para essa escola tão especial – cercada de mar, balanço das ondas e árvores. Criança que aponta a importância de entrelaçar o entorno da escola à sala de aula, compreendendo o entorno como quintal da escola. O que procura o menino quando intui esse espaço institucional como construtor de saberes e significados? E quando o menino se internaliza em aquietação profunda, muitas das vezes, a escola não percebe a voz do silêncio, tão conhecido e respeitado pela arte e pela poesia. É a própria vida – suas presenças e ausências – que me leva a compartilhar com Linhares, quando nos instiga, ao assinalar que no avesso dessas 213 procuras, que fecham na escola e nos professores os saberes docentes, talvez pudéssemos indagar se nestes não estariam incorporados tanto os saberes dos que já foram à escola, como daqueles outros que nunca estiveram nela. Tanto os saberes populares, domésticos, familiares, religiosos e políticos, como os eruditos, científicos, filosóficos, artísticos, tecnológicos...36 Elaborar as complexidades das experiências, parece, muitas vezes, escapar das preocupações escolares. Em pergunta à escola sobre como os pais dos estudantes se fazem presentes e, de que maneiras a instituição favorece e investe na presença dos familiares responsáveis por essas crianças e jovens que freqüentam a escola, veio à tona – através da resposta – uma outra questão que preocupa esta e outras unidades escolares: A bolsinha das crianças de Educação Infantil. Por vezes, a bolsinha vem arrumada de maneira errada – foi uma das respostas que, mais tarde, descobrimos ser uma crença de muitos. Perguntamos o significado do correto e do errado. Por exemplo: a escola de educação infantil solicita materiais importantes para as crianças como toalhinha, escova de dente, pasta de dente... mas muitas vezes na bolsinha das crianças, se fazem presentes coisas que não devem vir para a escola. Será que isso expressa uma ausência, uma negligência dos pais? Ao perguntarmos que coisas são estas que não devem estar na bolsa, tivemos como resposta: carrinhos, bonecas, legos, brinquedos. Soubemos então que a escola tem brinquedos para as crianças brincarem na instituição e estas não podem levar seus pertences particulares para a escola todos os dias. Existe o dia da semana certo para o estudante de educação infantil trazer seus brinquedos e objetos pessoais. Nesse dia, existe hora correta para a criança brincar com seus acervos. Conversando sobre o assunto com outras escolas parceiras, soubemos da complexidade de lidar com questões, como estas: uma criança quebrar o 36 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. Movimento, R. Fac. Ed. UFF, Profissão docente: teoria e prática. Niterói: DP&A Ed., no 2, setembro de 2000. Publicação semestral. 214 brinquedo de outra criança; ou perder; ou levar para casa um objeto do colega etc. Por isso, há um dia determinado para cada um trazer seus pertences afetuais. Será que lidar com os objetos pessoais dos estudantes diariamente, significa uma sobrecarga de responsabilidades para ser administrada pela escola, que já administra tantas questões? Mas como trabalhar com a educação infantil – nessa perspectiva – se questões relativas à afetividade, às relações sociais pressupõem a presença de referências de cada um, no sentido de que os limites individuais e coletivos; as estéticas e as éticas plurais, possam constituir aprendizados? Que formação propomos aos docentes e aos estudantes, quando estipulamos dia da semana e horário certo, para que crianças e adultos se familiarizem com as singularidades – suas e do outro – ante a possibilidade de socializar seus objetos simbólicos e experienciar valores? É possível a escola determinar hora marcada para sermos e para interagirmos, ao mesmo tempo em que esse espaço institucional se autonomeia como democrático? Como valorizar a importância das relações sociais, nessa perspectiva da hora marcada e prenunciada? Como perceber e favorecer ações e metodologias que façam da educação uma prática significativa para a vida? Que questões precisam ser reconhecidas como conteúdos constituidores do espaço escolar? Ao visitar as escolas parceiras percebemos a complexidade – que afirma e que exclui – que promove encontros e que desencontra, tal como acontece nos tantos movimentos dinâmicos do viver. Mas precisamos pensar conscientemente os desencontros, no sentido de garantirmos a este espaço institucional a realização de sua função, através de caminhos que favoreçam a aprendizagem como reconhecimento da nossa responsabilidade pelo passado, pelo futuro e pelo presente – responsabilidade individual e coletiva – na superação de organizações disciplinares negadoras da vida. 215 Ocorre-me então trazer algumas questões que podem nos ajudar a refletir ideologias e metodologias afirmadoras da educação como política pilar das organizações sociais. Em algumas escolas com as quais interagimos, percebemos que o acervo da sala de leitura se encontra trancado em armários, com tempos determinados para que os estudantes tenham acesso aos livros. Ainda assim, nestas escolas, os acervos não ficam dispostos de maneira a convidar os leitores, ou futuros leitores, para a manipulação e circulação dos livros. Todavia, sabemos que em outras escolas a sala de leitura é organizada de maneira que o estudante possa facilmente manipular os títulos com desenvoltura e liberdade. Ao perguntarmos sobre empréstimos de livros, outras questões nos despertaram certos a cuidados. Os livros rasgados, ou a perda de alguns títulos emprestados aos estudantes, são entendidos – em algumas escolas – como responsabilidade dos pais, convidados a colocar um novo título no lugar daquele que fôra estragado ou perdido pelo estudante. Quando o familiar não encontra o mesmo título, faz a reposição com um outro livro. Nos casos daqueles que não podem trazer outro título – por motivos econômicss – a escola assume essa perda repondo ela mesma um livro no lugar daquele que fôra estragado ou perdido por uma criança. Essa questão nos leva a indagar: Será possível trabalhar a responsabilidade por um bem coletivo sem que no processo de construção de valores, os objetos manipulados sofram ações, inerentes aos aprendizados? Como fazermos para que as perdas possam, ao ser reparadas, avivarem processos de aprendizagens coletivos e individuais? Ao trazer um livro para substituir o mau uso de bens coletivos, sem que haja reflexões significativas e ações transformadoras com a participação de todos, a escola des-favorece a superação das dificuldades e o processo de aprendizado coletivo. O que acontece com o desejo pelo livro e pela leitura se o objeto – livro – representa tensão para as crianças e para seus familiares – não no sentido da 216 livre fantasia e sentimentos naturalmente instigados pelas narrativas – mas no medo de que algo aconteça com o manuseio do objeto e o temor das conseqüências daquelas normas impostas – muitas vezes impossíveis de serem atendidas. É comum encontrarmos o acervo da escola guardado a chave dentro de armários, na espera do horário propício, provavelmente vivenciado a partir de escolhas mediadas por algum adulto. No reconhecimento do livro como fonte importante para pesquisas, algumas coordenadoras pedagógicas ou professoras de sala de leitura, em apoio à equipe docente, selecionam livros de literatura infanto-juvenil, de acordo com a temática trabalhada em cada momento letivo. O professor recebe os livros selecionados por tema, como ação facilitadora da escolha dos títulos a serem usados em sala. Sem que professores participem dessa pesquisa de acervos e materiais, será possível favorecer descobertas de possibilidades plurais que se desdobram e aprofundam no processo de reconhcê-las e buscá-las? Também não tem sido raro perceber coordenadoras pedagógicas das escolas parceiras entregarem para a equipe docente um planejamento já estruturado para o Projeto Pedagógico da escola. Alguns planejamentos com temáticas já propostas para o ano escolar. Projetos e planos que se diz representarem necessidades coletivas, desde que seriam organizados após cada professor opinar na eleição do tema comum, a ser trabalhado por toda a escola. Após a eleição procedida democraticamente, a coordenadora pedagógica, ou outro profissional da escola – que trabalha nessa perspectiva, com as melhores intenções – oferece aos professores o planejamento ou o projeto estruturado, muitas vezes já apontando desdobramentos de cada temática para todo o ano letivo. Até que ponto projeto definido garante que não haverá desvios de foco e de objetivos na metodologia escolar? Pergunto-me então qual o objetivo do Projeto Pedagógico e da escola que assume engessá-lo sob perspectivas programáticas fechadas? Trabalhar com 217 contos de fadas? Ensinar lendas e mitos? Resgatar brinquedos populares? Refletir sobre a importância da água? Como promover, nas instituições de ensino, experiências de aprendizagem que não se esgotem sob os limites de moldes, modelos e arranjos, sempre bem menores do que o ímpeto de fluir da própria vida?37, nos pergunta Linhares. Como trabalhar conteúdos sem descartarmos caminhos que estudantes naturalmente apontam, como possibilidades que dialogam com ritmos e necessidades pessoais e coletivos? No entanto, nessas mesmas escolas, tantas vezes engessadoras, encontramos uma carinhosa diretora, na busca atenta de maneiras de convidar crianças e familiares para convívios amorosos, ricos em sentidos, como aconteceu num dia das mães realizado na escola, quando mãe e filho comiam no mesmo prato, juntinhos, a mesma comida do cardápio diário do estudante. Sutis e profundas delicadezas no coração do cotidiano escolar. É também nessas escolas que encontramos professoras buscando caminhos para acolher adolescentes que não conseguem se concentrar, por terem passado a noite se protegendo de balas que não são doces como as crianças merecem, mas ácidas e perfuradoras de paredes e móveis. Nessas mesmas escolas, conhecemos professoras que se desfolham em aprendizado constante com seus estudantes – aceitando desafios propostos, desmontando dogmas algumas vezes entranhados, ofertando amor e trocando saberes na construção de ressignificações de existências sofridas e desamparadas. Convido a professora regente e adjunta, Eliane Pellegrino, para refletir conosco essas questões. Comecei a pensar: eu como professora, como gestora, o que eu sinto no meu aluno? O que está me trazendo angústia? A primeira coisa que eu pensei foi a 37 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. Movimento, R. Fac. Ed. UFF, Profissão docente: teoria e prática. Niterói: DP&A Ed., no 2, setembro de 2000. Publicação semestral.p.50. 218 aprendizagem. Está difícil essa coisa rolar, parece que as crianças estão com dificuldades cada vez maiores de aprender. Mas por que isso? E por que que a gente – conversando com as colegas – vai percebendo que está cada vez mais difícil a aprendizagem do aluno? O que é que essa criança me traz de dificuldades, de necessidades? A atenção é uma coisa que está cada vez mais difícil de se ter na sala de aula. As crianças estão cada vez mais desatentas. Em pouco tempo de atividade, elas já estão fugindo daquilo, dispersando-se rapidamente. Outras questões vêm passando nas minhas reflexões. A questão do respeito não só pela figura do professor, mas pela figura do colega também . Está cada vez mais difícil. As crianças estão se batendo, se agredindo à toa. Por nada. Pega o lápis, vai lá e dá um tapa. Puxa o colega na brincadeira. A brincadeira está agressiva. Essa criança está triste muitas vezes – apesar da alegria dela – porque ela chega perto da gente, abraça e diz: tia, hoje o meu pai sentou no colo da minha mãe e deu na cara dela. Eu digo: meu Deus, o que é que é isso? O que é que essa criança está passando pra a gente quando ela me abraça e vem contando essa história? O que é que está acontecendo com esta minha criança. Que vida é essa? Então ela me diz que o caverão – carro policial blindado, com buracos para fuzis acertarem alvos que só os policiais enxergam, visto que estes se encontram protegidos por vidros especiais, turvadores da visão daqueles que estão nas ruas e janelas – passou a noite inteira no morro e ela – a criança – não dormiu direito. O que é isso? O que está acontecendo com essa minha criança, com o meu aluno na escola? Esse depoimento da professora Eliane se deu num encontro de Formação de Professores realizado em setembro de 2005 pelo projeto Janelas Cruzadas, onde 42 educadores representantes de 12 escolas públicas junto à equipe do projeto e da Secretaria Municipal de Educação se reuniam. Neste encontro a professora Eliane foi uma das mediadoras das atividades propostas. Para dialogar com as reflexões trazidas pela professora, trago aqui depoimentos38 de alguns estudantes de escolas parceiras do projeto, no sentido de nos ajudar a pensar. esses depoimentos foram anotados pelas professoras e aqui, mantém a grafia dos modos dos estudabtes se pronunciarem. 38 219 Coisas de que mais gosto na escola 8/ 9 anos » Minha professora; » Recreio; » Recreio na sala; » Sala de Leitura; » Professora de Informática e de Teatro; » Educação Física; » Brincar. Coisas que menos gosto na escola 8/ 9 anos » A decoração da escola; » O uniforme. Coisas que me desagradam 8/ 9 anos » Brigas; » Tristeza; » Amigos do peito que se separam; » Ficar sem fazer nada; » Tiroteios da Rocinha; » Ser zoado; » Ficar trancado; 220 » Não ser respeitado; » Falsidades; » Fazer dever; » Pessoas que batem nos outros; » Quando acaba a água; » Quando mexe nas minhas coisas; » Fazer cópias; » Não ter festas. O que meus pais fazem comigo que eu gosto? » Quando estou triste eles me abraçam, ficam comigo – 8 anos; » Perguntar sobre a minha vida e quais são as coisas importantes que eu faço – 7/ 8 anos; » Me ensinar e me educar – 7/ 8 anos; » Me dá valor – 7/ 8 anos; » Dizem que me amam – 6 anos; » Cuidam quando me machuco – 6 anos; » Me apóiam – 8 anos; » Me compreendem – 8 anos; » Confiam em mim – 8 anos; » A comida feita pela minha mãe – 10 anos; » Festa surpresa – 10 anos; » Beijar a mãe quando a mãe beija – 10 anos; » Levam na pracinha – 5 anos; 221 » Fazem bolo – 5 anos; » Constrói brinquedo – 5 anos; » Me abraça e beija – 5 anos » Me amam – 9 anos; » Me ajudam nas dificuldades – 9 anos; » Me chamam para ajudar a arrumar a casa – 4 anos; » Me levam para o circo – 4 anos; » Me fazem carinho – 4 anos; » Mamãe me coloca no colo – 4 anos; » Me coloca na cama pra dormir – 4 anos; » Meu pai fica feliz comigo – 4 anos; » Contam histórias – 4 anos; » Brincam comigo – 6/ 7 anos; » Me abraçam muito – 6/ 7 anos; » Quando minha mãe joga vídeo-game comigo – 6/ 7 anos; » Surpresas – 10/ 11 anos; » Ficar comigo – 10/ 11 anos; » Quando ela faz a comida que eu gosto – 10/ 11 anos; » Quando meu pai me joga para cima – 5/ 6 anos; » Quando faz aviãozinho comigo – 6/ 7 anos; » Me tiram do castigo – 9 anos; » Me deixam ficar acordada até tarde – 6 anos. » Quando me levam pra o cinema – 6/ 7 anos; » Me levar pra passear na praia – 5/ 6 anos; » Deixar passar batom – 4 anos; 222 » Deixa andar de bicicleta – 4 anos; » Quando me beijam e cantam pra eu dormir e quando acordo meu pai fala: - bom dia, com amor e carinho – 8/ 9 anos; » Quando meu pai me dá dinheiro pra comprar biscoito e o troco dou pra minha avó e ela vai e guarda para mim – 8/ 9 anos; » Quando não gritam comigo – 8/ 9 anos; » Me levam à casa da vovó – 8/ 9 anos; » Quando me leva no chopp – 8/ 9 anos; » Eu gosto de ajudar minha mãe – 8/ 9 anos; » Eu gosto quando meu pai e minha mãe dá carinho pra mim e pra o meu irmão – 8/ 9 anos; » Eu gosto quando minha mãe me leva para a casa do namorado dela, aí eu fico andando de bicicleta – 8/ 9 anos; » Quando minha mãe faz pipoca – 6/ 7 anos; » Ela cuida bem de mim – 6/ 7 anos; » Leva para passear de Kombi – Educação Infantil » Faz suco – Educação Infantil » Brincam comigo – 7/ 8 anos; » Me leva na rua – 7/ 8 anos; » Nada – 5/ 6 anos. O que eu gostaria que meus pais fizessem comigo? » Me beijassem quando estou dormindo – 6 anos; » Que fizessem massagem – 6 anos; » Jogassem futebol comigo – 6 anos; 223 » Montassem um jardim – 5/ 6 anos; » Me levassem à praia – 5/ 6 anos; » Não me jogassem pela janela – 5/ 6 anos; » Me deixar sair sozinho – 10/ 11 anos; » Me tratassem bem – 6/ 7 anos; » Que passeassem junto comigo – 6/ 7 anos; » Conversar mais comigo – 4 anos; » Fizessem carinho para dormir – 4 anos; » Queria que meu pai ficasse mais comigo – 4 anos; » Que eles acreditassem em mim – 9 anos; » Que minha mãe vivesse para sempre – 9 anos; » Me dessem um irmãozinho – 8 anos; » Deixassem passar Natal com meu pai – 8 anos; » Me levasse para viajar – 6 anos; » Me ajudar, para estudar e trabalhar. Para ter um futuro bom e feliz – 7/ 8 anos; » Pintar comigo – 5 anos; » Nunca me levar para a casa do meu pai – 9 anos; » Jogar bolinha de gude – 9 anos; » Que meus pais voltassem a morar juntos e saíssemos nós três - 9 anos; » Me dessem mais beijos – 4 anos; » Gostaria que minha mãe contasse histórias para mim – 4 anos; » Fizessem uma festa para mim – 6/ 7 anos. » Levar ao parque – turma 1201. » Me levassem ao cinema – 8/ 9 anos; 224 » Passeassem comigo – 8/ 9 anos; » Fizessem uma festa de Natal bem bonita e deixassem eu ajudar – 8/ 9 anos; » Queria que eles me levassem para o chopp – 8/ 9 anos; » Carinho – 6 7 anos; » Eu gostaria que ela não me batesse à toa – 6/ 7 anos; » Gostaria que ela brincasse comigo – 6/ 7 anos; » Comprasse um chinelo, porque não tenho – Educação Infantil » Me desse uma toalha, porque só tem uma – Educação Infantil » Me amar – 7/ 8 anos; » Me levar na casa da minha tia – 7/ 8 anos; » Me bata e coloque de castigo – 5/ 6 anos. O que meus pais fazem comigo que eu não gosto? » Não gosto quando meus pais não querem me ouvir – 6/ 7 anos » Me deixar de castigo no banheiro – 5/ 6 anos; » Manda apagar a luz porque não catou latinhas para pagar a conta – 4 anos; » Não deixa mexer nos trabalhos dela – 4 nos; » Quando minha mãe está com raiva e me xinga – 4 anos; » Não gosto que meu pai e minha mãe briguem para ficar comigo nas férias – 4 anos; » Não gosto quando me batem de cinto – 4 anos; » Quando não me dão atenção – 9 anos; » Quando minha mãe bebe – 8/ 9 anos; 225 » Meu pai bate em minha mãe, a joga no chão e xinga – 8/ 9 anos; » Quando não me dão amor – 9 anos; » Mentir, enganar – 6 anos; » Quando não deixam eu brincar na frente de casa – 9 anos; » Quando fazem brincadeira que eu não gosto – 9 anos; » Quando me obrigam a ir para casa de minha tia – 9 anos; » Me apertar ou beliscar – 5 anos; » Deixar sem brincar – 5 anos; » Falam para os outros o que não quero que falem – 8 anos; » Puxam meu cabelo – 8 anos; » Dá um objeto seu sem você saber – 10 anos; » Manda usar roupa que não gosto – 10 anos; » Me bate com chinelo – 6 anos; » Quando fala que vai a um lugar que não vai – 6 anos; » Não me respeitar e não cuidar de mim – 7/ 8 anos; » Não me levam para passear – 9 anos. » Quando minha mãe vai ao baile – 6/7 anos; » Apanho quando durmo muito – 8/ 9 anos; » Quando me mandam fazer todos os afazeres de casa: lavar, passar, arrumar, cozinhar – 8/ 9 anos; » Quando eu deixo alguma coisa cair e eles brigam comigo – 8/ 9 anos; » Eu não gosto quando meu pai grita comigo porque eu esbarro no pé dele. Me dá uma mágua dentro de mim – 8/ 9 anos; » Quando minha mãe me deixa com meu pai em casa, porque ele me bate à toa sem eu fazer nada – 8/ 9 anos; 226 » Chegar bêbados em casa e bater na gente – 8/ 9 anos; » Mandar a gente arrumar a casa e lavar a louça e fazer massagem no pé dele e molhar as flores e fazer comida e comprar pão e eu falo assim: - ô pai, eu estou cansada, vai você – 8/ 9 anos; » Não gosto que meu pai beba cerveja – 8/ 9 anos; » Não gosto quando eles xingam – 6/ 7 anos; » Bate com vassoura – Educação Infantil; » Bate com vara – Educação Infantil; » Bate com fio – Educação Infantil; » Bate com pau – Educação Infantil; » Bate com chinelo – Educação Infantil. Como professora – nos conta Eliane Pellegrino – dando aula, vendo essa criança me pedindo socorro: - eu não consigo aprender porque tem tanta coisa na minha cabeça, eu não dormi a noite inteira... Meu pai batendo na minha mãe. Traficante tava com a arma e disse: vamos, vamos, vamos... para a escola. Estava mandando a criança ir para a escola, com um revolver... Eu tenho que estar pensando isso quando meu aluno não consegue aprender. Será que eu iria conseguir aprender se eu tivesse passado uma noite acordada? Será que eu ia conseguir aprender se a minha mãe tivesse apanhado do meu pai que sentou no colo dela e deu na cara? Acho que isso a gente tem que refletir ao pensar a questão da aprendizagem. O que é que está acontecendo com esta escola? O que está influenciando este meu aluno quando ele entra na sala? O que ele está trazendo para a gente refletir? Como professora, estou sendo agente dessa mudança, mas também estou sofrendo essa questão que está acontecendo na sociedade. Até que ponto meus valores como pessoa estão sendo questionados, estão sendo deixados para lá. Até que ponto tenho que 227 persistir nesses valores. O que acontece? O que eu preciso questionar, o que eu preciso refletir para fazer um trabalho melhor com a minha criança, com o meu adolescente? Linhares então, nos fala que precisamos estar atentos ao exercício de casar aprendizagens com perguntas que não sejam exercícios artificiais, mas que, pelo contrário, venham da vida, de seus sofrimentos e alegrias, de suas necessidades, urgências e desejos.39 E Crochík continua, ao dizer que a dúvida e o pensamento nem sempre foram considerados inimigos da ação pois, ao menos na modernidade, a primeira [a dúvida] surgiu como a possibilidade do segundo [o pensamento].40 Fortalecendo-se, Eliane prossegue. Eu tenho que receber para poder dar. Tenho que me pensar como pessoa, como agente transformadora, como professora, mas como pessoa. Como está sendo a minha relação na escola com as minhas colegas? Estou escutando a minha colega? Estou ajudando-a a refletir o problema dela que às vezes não é o meu, mas ela está mais agoniada naquele momento? Como está sendo a minha relação enquanto uma pessoa administrativa que poderia estar propiciando esta mudança dentro da escola? Minha palavra eixo no Sumário proposto pelo Janelas Cruzadas é a Cidadania: ela traz tanta coisa para a gente ir puxando, tem tantos braços. Como eu me dirijo ao meu aluno? Como me dirijo ao meu colega? Como estão eles se dirigindo a mim? O Sumário foi proposto a fim de que as professoras e as gestoras pensassem seu cotidiano escolar, a partir de uma palavra que percebessem latente, como necessidade de sua escola; de sua turma; dos sujeitos desta escola. Palavra esta que se desdobra em outras palavras também emergentes. Proposta essa, vista como um ponto de partir dinâmico, para a construção de projetos pedagógicos grávidos, sempre abertos aos diálogos com a vida e suas circunstâncias. LINHARES, Célia. Curriculum e conhecimento: Paulo Freire e uma escola sem grades. In:PGM 2 Currículo e conhecimento. Boletim salto para o futuro. TV Escola. Rio de Janeiro: Edição limitada do Salto do Futuro, 2004. p.17 e 18. Ed. / Cidade / Data? 39 CROCHÍK, José Leon. O conceito de preconceito. In: Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Robe, 1997. p.21. 40 228 O depoimento da professora Eliane, aconteceu num dia de atividade da Formação Continuada de Professores, dinamizado por ela e por outra professora sua colega, junto a outros educadores do Janelas Cruzadas. Nesse dia, foram oferecidos ao grupo elementos utilizados no encontro anterior, elementos esses que dispostos no espaço onde o grupo se encontrava, sugeriam convites a experienciações e ressignificações reflexivas. Materiais catados na escola onde as professoras que dinamizaram o encontro anterior trabalham (barro, sementes, varetas secas de árvores – agora transformadas em uma cortina – pétalas de rosas, pedaços de bombril, vagens, folhas secas, tecidos). Esses elementos foram reorganizando o espaço mediado pelo próprio grupo e pelas professoras dinamizadoras – Eliane Pellegrino e Madelon de Medeiros – e por educadores da equipe do Janelas Cruzadas – Isabel Reis, Risonete Martiniano, Inês do Espírito Santo e Luis Alberto dos Santos. Enquanto o espaço era arrumado com os materiais diversos, as professoras participantes do projeto – todas com olhos vendados e pés descalços – escutavam melodias feitas por um músico que tocava ao vivo instrumentos como sax tenor, flauta transversal, instrumentos percussivos e um especialmente de origem indiana, feito com longo tubo de bambu. Na organização da ambiência, um dos mediadores instigava o grupo – ainda de olhos vendados e descalças – convidando as professoras e gestoras das escolas a mergulharem em seus espaços interiores, na percepção do mapeamento deste espaço interno que é privativo a cada um. Músicas, sons, e uma voz que convidava: - se formos mapear o nosso interior – afetivo, simbólico – percorrendo, desbravando esse mapa que nos desenha, que nos inscreve... Há zonas de desconforto neste seu mapa? / Há zonas secretas? / Quais? Zonas felizes? / Quais? Há zonas mortas no seu mapa afetivo de si? / Quais? 229 Há zonas de preocupação? / Quais? / Existem zonas silenciosas? / Onde estão? Há zonas de conforto no mapa afetivo de si? / Quais? / Zonas de controle? / Quais? / Zonas sob controle? / Quais? F O T O de Luizão com instrumento de Bambu Há zonas de autonomia no meu mapa afetivo de mim? / Quais? Há zonas de combate no meu mapa afetivo de mim? / Onde estão estas zonas? Há espaços silenciosos no meu mapa afetivo de mim? / Onde ficam estes espaços? Há alguma área ameaçada de extinção? Há zonas desérticas; áridas; secretas? Existe terra rebrotando espontaneamente neste mapa? Existe reflorestamento planejado? Existe alguma área sob constante vigilância? Existem áreas férteis, porém abandonadas? Existem áreas invadidas? / Quais? Existem áreas em colapso? / Onde estão? Existem áreas devastadas em segredo? Existem áreas sendo recuperadas com ajuda? / Quais são? Existem áreas compartilhadas? Dando prosseguimento, convidamos o grupo para que – ainda de olhos vendados e descalças – se levantasse ao som dos instrumentos, caminhando 230 pelo espaço em diálogo com os materiais presentes – todos, elementos conhecidos das professoras. FOTO DO AMBIENTE Em seguida, convidamos o grupo a retirar suas vendas e caminhar pelo espaço percorrido anteriormente, ressignificando caminhos e descobertas. Todos sentados, conversamos sobre as sensações. Quando os olhos estavam vendados, o pisar em pedaços de bombril parecia algo muito macio e confortante, como também sentimos ao pisar nas pétalas de rosas – experiência contrária ao imaginado. Andar sobre o barro, para algumas professoras, causou estranhamento e insegurança, para outras, trouxe prazer brincante. Com as diversas sensações experienciadas pelo grupo: conforto, estranhamento, desconforto, aconchego, desafio, medo, coragem, ousadia, susto, recolhimento, pré-julgamento, surpresa – percepções e experiências distintas a partir de uma mesma situação – fomos entrelaçando estas experiências com aquelas dos mapas afetuais-simbólicos, na reflexão coletiva da questão trazida pela professora Elliane: a Cidadania, questão que se entrelaçava a outra, trazida pela professora Madelon: a Atenção. Pensamos na importância de refletirmos a categoria – Cidadania – para além dos direitos e deveres dos cidadãos, na atenção às sutilezas e complexidades das relações afetuais que sustentam ou afogam aprendizagens. Para tanto, os encontros anteriores da Formação Continuada de Professores se entrelaçaram a esse – narrado aqui em parte – no exercício de reflexões oriundas não apenas das experiências e dos raciocínios lógicos expressados e percebidos pela cabeça – tão importante – mas, na atenção centrada à percepção mediada pelas múltiplas maneiras inteligíveis de nos 231 apropriarmos e expressarmos experiências sensíveis – grávidas de sentidos e significados nem sempre anunciados na oralidade. Como as linguagens podem favorecer que o experienciar não estrangule a sensibilidade, limitando-a a uma racionalidade de lógica e texto único? Como a arte pode ajudar nosso olhar sensível, para que não esqueçamos que quando as crianças dizem que gostam quando seus pais a jogam para cima, ou que gostam quando são convidadas a ajudar os pais na arrumação da casa, ou ainda, que gostam quando seus pais as levam ao chopp, difere profundamente, das estatísticas que pretendem representar essas mesmas crianças através de porcentagens classificatórias quando afirmam que 80% das crianças – por exemplo – gostam de brincar com os pais; que 60% delas, gostam de participar dos afazeres domésticos com a família e que 45% das crianças, gostam de ir ao bar ou restaurante com os pais? Como a problematização através das lógicas do sensório pode nos ajudar a transcender estéticas e éticas que, ao assumirmos como nossas, cala... engessa em nós a dimensão dinâmica do criar e do compartilhar? Como a arte pode instigar o pensar, o se ver, o ver o outro, na produção de sentidos para a vida? Como a poética pode nos ajudar na desconstrução da capacidade humana de produzir tanta desumanidade, como bem nos alerta o colega Ney Luiz de Almeida. Trago aqui a fábula do cuidado – preservada por Higino (17, d. C.), bibliotecário de César Augusto – narrativa re-contada por Leonardo Boff, para que possamos refletir juntos o significado do ethos que cuida e da categoria Cidadania, ampliada nessa perspectiva do cuidar. Certo dia, Cuidado tomou um pedaço de barro e moldou-o na forma do ser humano. Nisso apareceu Júpiter e, a pedido de Cuidado, insuflou-lhe espírito. Cuidado quis dar-lhe um nome, mas Júpiter lho proibiu, querendo ele impor o nome. Começou uma discussão entre ambos. Nisso apareceu a Terra alegando que o barro é parte de seu corpo e que, por isso, tinha o direito de escolher um nome. 232 Começou uma discussão generalizada e sem solução. Então todos aceitaram chamar Saturno, o velho deus ancestral, para ser o árbitro. Este tomou a seguinte sentença, considerada como justa: Você, Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá o espírito de volta quando essa criatura morrer. Você, Terra, que lhe forneceu o corpo, receberá o corpo de volta, quando essa criatura morrer. E você, Cuidado, que foi o primeiro a moldar a criatura, acompanha-la-á por todo o tempo em que viver. E como vocês não chegaram a nenhum consenso sobre o nome, decido eu: Chamarse-á homem, que vem de húmus, que significa terra fértil. Leonardo Boff prossegue: O cuidado é anterior ao espírito infundido por Júpiter e anterior ao corpo emprestado pela Terra. A concepção corpo-espírito não é, portanto, originária. Originário é o cuidado, ‘que foi o primeiro a moldar o ser humano.’ O Cuidado o fez com ‘cuidado’, zelo e devoção, portanto, com uma atitude amorosa. Ele é anterior, o a priori ontológico que permite o ser humano surgir. (...) O ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador. Sana chagas, desanuvia o futuro e cria esperança. (...) É o mito do cuidado, e somente ele, que nos permite resistir ao cinismo e à apatia, doenças psicológicas de nosso tempo. . . . Esse barro que tantas vezes nos cobra que voltemos à ele... Essa vida que nos cobra que voltemos a ela, nos perguntam: Qual o sentido que damos a essa vida, quando construímos e trocamos saberes nas escolas e, em espaços informais de educação? Somos cuidantes, continua Boff, quando prestamos atenção aos valores que estão em jogo, atentos ao que realmente interessa e preocupados com o impacto que nossas idéias e ações podem causar nos outros. Somos cuidantes quando não nos contentamos apenas em classificar e analisar dados, mas quando discernimos, atrás deles, pessoas, destinos e valores. Por isso, somos cuidantes quando distinguimos o que é urgente e o que não é, quando estabelecemos prioridades e aceitamos processos. Em outras palavras, ser cuidante é ser ético, pessoa que coloca o bem comum acima do bem particular, que se responsabiliza pela qualidade 233 de vida social e ecológica e que dá valor à dimensão espiritual, importante para o sentido da VIDA E DA MORTE.41 Como a vida entra e desaparece nas escolas? Dando forma à argila, ele deu forma à fluidez fugidia de seu próprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou. Criando, ele se recriou.42 . . . Que questões se fazem em nós, instigadas por Sr. Nivaldo e tantos outros moradores da Fundação Leão XIII, senhores e senhoras que estiveram na escola por pouquíssimo tempo ou até mesmo nem puderam chegar a ela? O que eles dizem não conflui com as reflexões de professoras e estudantes? São realidades que nos apontam os estudantes quando trazem à baila desejos tais como: amor – fantasia – participação nas experiências do outro e a presença desse outro em suas vivências – escuta – valorização – cuidado – reconhecimento – brincadeira – festa – acolhimento nos momentos difíceis – ouvir histórias – alegrias vivenciadas em parceria... sentimentos que expressam as coisas que mais gostam ou que gostariam que se fizessem presentes na relação experienciada com seus pais? Qual alerta o menino – ou menina – nos faz, quando afirma querer como um desejo, que seus pais o castiguem ou batam nele – filho ou filha? Que pretendem dizer as crianças e jovens quando falam dos uniformes e dos murais, como aspectos que menos gostam na escola? Que pessoas e gestos estão presentes ou ausentes nas uniformizações? Liberto de ser quem não era, pôde meu pai – Echio Reis – fortalecer-se. Vigoroso no seu potencial criador, dedicou-se àquilo que lhe retroalimentava e, como artista e educador, trabalhou em comunidades periféricas e carentes da Bahia, transformando sua casa num Centro Cultural. Como administrador de 41 42 BOFF, Leonardo. Outras Opiniões. In. Jornal do Brasil. Rio do Janeiro, 25 de julho de 2003. p.A13. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.p.51. 234 um lugarejo chamado Castelo Novo, Echio ensinou crianças, jovens e adultos a lerem as letras, já que eram leitores vorazes de tantas inscrições de que seu mundo era feito. Com sua experiência como carnavalesco de escola de samba no Rio de Janeiro – além de ator, diretor de teatro e figurinista – montou espetáculos e escola de samba em Ilhéus, possibilitando aos desvalidos, desdentados, esquecidos – moradores da periferia – brilhar junto à elite de Ilhéus como iguais – apresentando enredos, figurinos, cenários produzidos por todos os integrantes da escola de Castelo Novo, para que leituras de mundo pudessem ser revisitadas, ressignificadas. Personagens seriamente brincantes, contavam narrativas esquecidas, em gestos políticos, na conquista de melhorias de vidas para a localidade da periferia ilheuense. Que práticas escolares nos fortalecem, no sentido de podermos dialogar conosco e com o outro, apesar das dores que silenciam? A escola – e as demais instituições que lidam com pessoas – precisam estar atentas às brechas que silenciosamente clamam por serem potencializadas como possibilidade de reavivar a esperança e a vida, como forças latentes responsáveis por movimentos éticos, políticos e transformadores. De mãos dadas à professora Risonete Martiniano – consultora do Janelas Cruzadas – pergunto: Como escultores de experiências, que caminhos nossos pés podem esculpir no favorecimento do encontro do sujeito consigo mesmo, sem que para isso exterminemos o outro e a nós mesmos? Ocorre-me a intenção conscientizadora de Portinari, quando na década de 30, em meio a modelos delgados, leitosos – colonizadores dos cândidos selvagens espalhados em terras menores – transgredia, com narrativas vindas de pincéis e tintas libertadores daquelas tantas imagens e palavras guardadas nos silêncios profundos, nos porões da história. 235 Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. Quantas vezes, nas festas e bailes, no terreiro, que era oitenta centímetros mais alto do que o chão, os pés ficavam expostos e era divertimento de muitos apagar a brasa do cigarro nas brechas dos calcanhares sem que a pessoa sentisse. Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados ao solo, eram como os alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente. Pés cheios de nós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e pacientes. João Cândido, filho de Portinari, escreve-lhe uma carta – 20 anos depois que seu pai fôra convocado, pelo mistério da vida, a habitar e trabalhar noutras dimensões. Falta você voltar Papa. Voltar com o teu Brasil enorme, generoso e sofrido. Se, como disse Jorge Amado, “de suas mãos nasceram a cor e a poesia, o drama e a esperança de nossa gente”, por que tua obra continua escondida dessa mesma gente? Volta, e traz contigo a nossa gente, “com aquela roupa e aquela cor”, como prometido na carta de estudante em que você fala com ternura de Palaninho e de Brodósqui. (cidade natal de Cândido Portinari, em São Paulo). Traz os nossos músicos, os bailes e os casamentos na roça; o frevo, o carnaval, o bumba-meu-boi e o São João; o Tiradentes e os cangaceiros; os índios, negros e mulatos; garimpeiros, camponeses, tintureiros e sapateiros; os espantalhos, o futebol, as pipas, gangorras e piões; a mula-sem-cabeça, o caipora e o saci; a paisagem, os canaviais, florestas e cafezais; o tamanduá-bandeira, as onças, a anta e a capivara; as mães, os santos e os artistas de circo; o bauzinho de folha-de-flandres e a moringa; os meninos de Brodósqui e tua netinha Denise. Que esta procissão saia da capelinha que você pintou para a noninha vêneta, convoque o São Francisco da Pampulha e a via-sacra de Batatais; que ela nos transfigure, nos reconstitua e nos dê forma. Forma emergente de nossas próprias raízes, forma que inclua os retirantes, os enterros-na-rede e os trabalhadores. 236 Que não se ouça nunca mais ninguém dizer: - Xi, olha os pés que ele fez! O que vão pensar do Brasil? Que seja sempre lembrado que estes pés são um pedaço de nós mesmos, que a sua ausência nos torna menores e alheios.43 Quais ventos levam nossas histórias populares/ tradicionais – mitos; fábulas; lendas; contos – experiências nossas, milenares – a atravessarem e habitarem oceanos da contemporaneidade? Volto-me à fábula trazida por Higino (17, d. C.) e penso no cuidado que as histórias e cantigas da tradição social trazem como ato do acolher. Visitada pela imagem da criança no interior do útero materno, penso no aconchego que ajuda o feto, a vivenciar mistérios embalados pelo calor que protege. Creio, ser esse acolhimento, a sabedoria que possibilita a difícil e necessária passagem para novos espaços – experiências que trazem consigo outras vivências. Aconchegados, protegidos, amados – convites para confianças – ouvimos uma voz doce, sentimos cheiros amorosos e percebemos a continuidade do embalar que não fora perdido com o corte do cordão que nos fia uns aos outros, como urdimento de experiências. Assim fazem as histórias, as brincadeiras cantadas, que nos possibilitam falar desde cedo sobre aquilo que nos visita, que mora em nós, que nos constrói. Qual a ambiência criada quando ouço falar do escuro... mistério que me aflige? Que poder tem o colo amado que nos encoraja a falar de segredos profundos? Lembro-me da minha mãe a embalar-me: 43 • Textos retirados dos murais da Exposição ‘Tempo Portinari’ – Sesc Flamengo/ 2003. • ROSA, Nereide Schilaro Santa. Mestres das Artes no Brasil. Candido Portinari.. São Paulo: Ed. Moderna, 1999. • CÂNDIDO, João. (Org. e consultoria técnica). Portinari – o menino de Brodósqui. 2a edição. São Paulo, 2001. 237 Vai dormir ô Isabel Que na casa do vovô Tem um bicho pegador Pega menina choradora I i i - Isabel quer dormir A a a - Isabel, quer mamar A roupa de Isabel foi para a fonte lavar E como é gostoso poder falar dos bichos numa ambiência de doçura e de cuidados. Leitores que somos, percebemos histórias narradas no movimento do corpo, na expressão do rosto, na tonalidade da voz. Nana neném que a cuca vem pegar, Mamãe foi pra roça e papai foi trabalhar. Como é bom poder acreditar que ainda que a mamãe vá para a roça e que o papai vá para o trabalho, eu não estou sozinha, acompanhada que estou com o balançar, com o respirar da voz que mais uma vez me permite o encontro com os meus – e seus – segredos e mistérios. Lembro-me então da brincadeira eu sou pobre, pobre, pobre / eu sou rica, rica, rica, que na sua ambiência de ludicidade, me presenteia, com leveza, tantos exercícios de saber e de sabor. Brincando, não é tão doloroso o não ser a escolhida. Dançando, aguço meus sentidos na leitura do outro que para ser meu filho – nessa história – precisa que eu lhe oferte o seu próprio desejo, como ofício de escolha. Aprendo, com os sorrisos que pululam de mim, a alegrar-me também quando o outro é o escolhido. O porvir, faz-se então, grávido de surpresas e mudanças e, quando menos espero, sou a escolhida também. Vou agrandando em mim o significado de rico e de pobre. 238 E o que seria de mim, se as histórias não me contivessem como conteúdos seus? Qual solidão sentiria, ao pesar-me nos ombros o terror da inveja como sentimento só meu? Mas acolhida pela história, descubro-me com vínculos, com pertencimentos a um mundo que me afeta, enquanto também o afeto. E não mais sozinha, torna-se mais leve e possível outra trilha que se mistura a estas e aquelas, ressignificando-me. Deitada, no colo das histórias que me acolhem, organizo-me nomeando acontecimentos que em mim se dão sem forma ou nome. Se chamo de luto, tristeza, quietude ou dor de dona Baratinha, não importa, mas ao dar um nome, aquilo que não sei como dar conta, ganha forma. Lembro-me de Fernando Lébeis, mestre amado, que redimensionou minhas órbitas quando certa vez enfatizou: - Se tem nome, existe! E com isso, Fernando me ensinou a importância em darmos nomes, como ação cuidadora e criadora – portanto, dinâmica – que materializa fenômenos densos/ sutis, na organização e transcendência do nosso imo. Ensinou-me – este querido mestre louco e lúcido – a importância de respeitar e reconhecer os lugares do estranhamento, para que ocupe seus espaços de vida em liberdade – ainda que seja expresso através de nomes incompreensíveis para aqueles que lêem os fenômenos, com olhos e alma de referenciais racionais imóveis. E agora, não mais sozinha, vivencio com mais força a despedida de meu pai – Echio Reis – que partiu sem avisos, como era seu estilo. Acompanhada por dona Baratinha e por amigos como Francisco Gregório, que tantas vezes me recontou história já tão contada, vejo a personagem segurar meus braços levando meus olhos ao porvir – quando ela – Baratinha, se põe novamente à janela a cantar, depois que partiu o seu amado Sr. Ratão. 239 Agradeço a dona Baratinha; aos professores; aos estudantes; aos colegas; aos amigos; ao senhor Rufino; ao Sr. Nivaldo e outros senhores e senhoras, por con-fiarem em mim a esperança e crença no amor. São elas, as narrativas, que se vestem com tantos nomes, expressos em várias formas e me abrem portas, janelas – brechas ao encontro comigo, ao encontro com o outro – moradas que me espelham, me acolhem e me ensinam. O que faz com que desencontros entre funcionários e idosos da Fundação Leão XIII se repitam em outras roupagens, vestidas – agora e outrora – por funcionários e estudantes de escolas formais? Nessa caminhada de estradas, trilhas, pontes, ruelas, avenidas, que se entrecruzam, tenho os teóricos como encontros que ajudam minhas próprias ordenações e materialidades, no momento em que consigo diferir a leitura reflexiva daquilo escrito sobre o papel – que se dá intensamente no campo da racionalidade – da leitura reflexiva, fundamental, deste escrito que se encontra no papel, e que, quando entrelaçado à minha experiência, se ressignifica e me ressignifica ampliando-me como leitora e escritora. O escrito do papel se faz, para mim, como uma das possíveis materialidades reflexivas daquilo que encontramos escrito no corpo, na alma, no afeto, nas células, nas estrelas cadentes, nas rugas, nos mares, nas flores, nos desertos e vales – textos que nos inscrevem em histórias que começaram antes de nós e que continuamos a contá-las e a contar-nos, sem data de conclusão à vista. Para não concluir, convido então, Fayga Ostrower, Benjamim, Linhares, Adélia Prado, Agamben, Freire, Bauman, Sai Baba, Larrosa, Adorno, Lourau... – parceiros de buscas – para ajudar-me a dar aberturas a conceitos fundamentais que se fazem força motriz da metodologia desta pesquisa e do meu próprio caminhar. Penso na motivação do criar – intensa força que se origina da busca do ser humano por significados e sentidos que se fazem nos processos de 240 ordenaçâo dos fenômenos diversos, experiências que possam ir dando um chão às existências – coletivas e individuais – como interfaces indissociáveis. Tensionamos a cada ordenação. Em toda a vida, existem estados de tensão fundamentais para o criar. A tensão – sempre renovada – possibilita que os des-semelhantes e que os contrastes se destaquem, ao mesmo instante em que reforçam o caráter de si e do outro. Tensionar engloba ordens estruturais e expressivas – portanto, afetuais – e afetados pelos fenômenos que se configuram, objetividades e subjetividades são ressignificadas em formas plurais, tornando-se incessantemente, outras configurações. Essas práticas significantes são ordenações que não se restringem a formas verbais e imprimem no sujeito, ou expressam pelo sujeito, lógicas que nem sempre conseguem ser racionalizadas. A criação se dá essencialmente ao nível do sensível e este nos interliga de forma imediata e visceral àquilo que acontece em torno de nós. Penso a sensibilidade como patrimônio de todos os seres vivos – não como uma particularidade restrita aos artistas – um bem que a faz presente em cada vivente, em intensidades e maneiras plurais e em diferentes níveis. Por isso, Sr. Peixoto, morador da Fundação Leão XIII, junta folhas – diariamente – nos quintais e porões do seu íntimo, como maneira de resistir às metodologias que se esforçam por destituir dos espaços, a experiência, fortalecedora dos afetos e dos discernimentos. Por isso, estudantes parecem fazer nada nas salas de aula, e nesse nada, trabalham intensidades, resguardando-se de estereótipos massificadores – enquanto que – com cabeças baixas ou corpos hiper-ativos, nos convidam a refletir o real sentido das metodologias propostas. Na experimentação da linguagem, o homem se arrisca – expondo-se ao inefável e inconexo nonsense – que materializado como linguagem, torna-se experiência dizível; ou como situava Kant, experiência transcendental, visto que as materialidades se deixam pensar. Nesse arriscar, o homem prenuncia um ethos e uma comunidade como possibilidades facilitadoras do viver. 241 Para um ser que fosse sempre falante, não existiria nem conhecimento, nem memória, nem infância, nem história. Portanto, trazemos aqui a perspectiva da infância como a origem da linguagem e a perspectiva da linguagem como a origem da infância, que se descolam, aqui, das amarras das heranças oriundas de Chronos. No entanto, ainda que libertos de cronologias, nos fazemos imbricados ao tempo e ao espaço, que se constituem em nós referências fundamentais para que nossas ordenações se façam formas simbólicas. São eles – consciência temporal, espacial e o simbolizar – a nos configurar em ritmos, densidades, intensidades, que se animam em alegria, entusiasmo, contemplação, susto, apatia, severidade, hostilidade, amor. Ao nascermos, nos fazemos imediatamente trabalhadores dessa orquestra que nos constitui. O ofício – trabalhar – se faz ressonância do tempo e do espaço, espelhos que nos re-facetam, presentificando em nós a possibilidade da competência de revisitarmo-nos, reorganizarmo-nos, reavaliarmo-nos e reconhecermo-nos como comunidades éticas, proprietárias de direitos comuns às idades da vida – todas – no sentido de ressignificarmo-nos repletos de sentidos para o viver. Valorizar a formação do sujeito é valorizar a importância das escolhas, tão definidoras de caminhos deste vai e vem que somos. Mas como valorizar a formação, se desvalorizamos a docência como profissão que precisa recuperar seu status perdido, não como profissão especial, mas como profissão que precisa redimensionar a responsabilidade de formar trabalhadores inspirados e como bem ensina Manoel de Barros, inspiração: disposição para o trabalho. Ao utilizarmo-nos da educação – e todo trabalho – como meio de vida, nos distanciamos de nossos propósitos fundamentais, naquilo que concerne nosso comprometimento com as necessidades existenciais – tão distintas daquelas – artificiais. 242 A educação precisa ser entendida como complexa experiência de vida, distinguindo-se daquelas instituições-fábrica, que produzem séries de títulos e certificados esvaziados de sentidos e experiências. Faz-se então, emergente, repensarmos a relação temporal no desapego do modelo cartesiano linear que nos aprisiona como materialidades históricas seqüenciais, separadas por um depois de si e um antes de si, configuradores de uma história única, verdadeira por deter a história, como derradeira e eterna possibilidade de contarmo-nos como linearidade incabível da existência. Qual nome materializa um tempo possível de recuperar o que já não foi, como sendo nosso e, o que será, como sendo um patrimônio de todos, no sentido de não nos privarmos da nossa biografia e por conseqüência, da possibilidade de experienciar? As histórias nos animam – como psiquê. A força vital que potencializa o sopro da vida como ato criador, nos move e ecoa em nós – como Aion – tempo misterioso que dura porque ressignifica experiências na produção de sentidos para a vida. Penso então no tempo práxis que, na labuta, nos religa às necessidades existenciais – que nos integra, nos une – na exigência de uma mudança qualitativa do tempo que, sabedor de escolhas e éticas, grávido que é de conseqüências, nos convida, urgentemente, ao sentido vital originado das densas e delicadas experiências, para que estas nos instituam gestos de autonomia. O que me difere do Sr. Nivaldo não é o fato de eu ser princesa e ele sapo, visto que, em nossas narrativas o Sr. Nivaldo é príncipe e eu, sapo me faço. Mas o que me difere deste e de outros senhores, senhoras, crianças e jovens, é a oportunidade que tive e tenho de estudar-me para conhecer-me, como bem ele diz quando reafirma a importância deste ato. Estudo mediado por encontros, como é natural que o seja, difere do estudo feito por esses senhores, pela oportunidade que tenho de lançar os meus 243 sentidos a instrumentos facilitadores da rede de aprendizados que nos fazem urdidura. A fluidez deste estudo de vida, tarefa que não é fácil, se renova em mim por contar com cuidados que intensamente me fortalecem. Revigoro-me constantemente em encontros com professores e colegas de profissão com quem troco em agudez e delicadeza; com meus amigos amorosos e sábios; com os diversos espaços culturais que freqüento como alimento; com a assistência médica que me ampara com competência – graças a recursos particulares; revigoro-me com a família – amiga e mestra. Todas essas experiências são diferenciais, pela certeza que tenho de reconhecer-me amparada nas minhas necessidades básicas e não me encontrar confinada em espaços que dizem acolher o ser humano, enquanto na realidade promovem clausuras que negam e desconhecem singularidades, afetos e saberes – daqueles ditos marginais – como experiências significativas para a vida de todos os viventes. O mistério me leva a espelhos que desdobram o porvir. Penso na mágica palavra que para mim se faz em oportunidades e, para outros, em faltas contundentes. Entre aprendizados com o Sr. Nivaldo, marcas se ressignificam ao mesmo instante em que me alertam para a urgência de pessoas atentas a tantas urgências caladas. Lembro-me, das senhoras, moradoras da Cruzada São Sebastião, quando tantas vezes me contaram a importância de terem suas moradias garantidas no mesmo bairro, quase na mesma rua, onde moravam em casas de caixas de maçã e de jornal, queimadas como resultado das tentativas de dizimar a organização popular que se fazia em pleno bairro do Leblon/ RJ, na década de 50. Obra polêmica, garantida por decisões e interferências de um grande líder – D. Hélder Câmara – pôde abrigar 910 famílias na sustentação de seus vínculos empregatícios, fazendo do porvir, possibilidades. 244 Volto-me aos senhores e senhoras que encontro na Leão XIII, que com seus barracos desabados e distituidos de trabalhos remunerados, foram obrigados a peregrinar descalços, descobertos. Estes senhores e senhoras, espelhos parentes em histórias, tanto se diferem no agora, das estruturas do antes. As senhoras matronas, provedoras de grandes famílias, coexistem em meio a complexidades qual pilares sustentadores de vida. Aqueles senhores e senhoras, esquecidos no profundo de si, aguardam a visita certa: o tempo que não traz o porvir. O agora, refeito e diverso, ao mesmo instante se assemelha, nas tantas sabedorias de todas essas imagens refletidas. São eles que me convocam, séria e urgentemente, para a importância de lideranças e micropolíticas transparentes, que possam aqui e acolá, dinamizar ações que se conjuguem em devires, não somente para uns ou outros herdeiros. Visto que – tudo que se configura e se organiza, constitui conteúdos grávidos de significados – para formar sujeitos éticos, a escola precisa investir na garantia de espaços institucionais que acolham demandas dos educandos e dos docentes como conteúdos que, na socialização, possam se tornar potentes promotores de espaços e de relações onde o experiênciar se dê na expansão de óticas e esperanças que incluam todos como legítimo outro, em todas as fases da vida. Impossível nossas histórias – que nos contam e recontam em re-escrituras – se fazerem libertas de valores, visto que são eles que nos movem como perguntas e indagações existenciais que somos. Valores dinâmicos que nos libertam, porque diferem dos preços esvaziados de sentidos e de valores. E, para não esquecer-me entre afirmativas – que, embora se proponham abertas e dinâmicas, correm risco de afirmar certezas estáticas – trago aqui problematizações que tornaram-se formas enquanto tentava este escrito conclusivo. O texto é o meu parto; a existência, minha gestação. Nasço a cada instante que me refaço. 245 E como a linguagem a priori não existia – fez-se presente porque inventada – percebo a sociedade também como uma invenção, e como tal, pode ser transformada, modificada. Sou levada então, a indagar... Como a arte pode instigar reflexões que nos libertem de meras contestações e descrenças que, mecanizadas, perdem a força dinamizadora de transformações? Como a poesia pode favorecer experiências afirmativas de valores, em movimentos libertos de catequeses e discursos? Que caminhos a metodologia escolar pode construir para garantir espaços que possibilitem o estudante e o docente se perceberem como responsáveis pelas decisões que afetam sua formação – passada, presente e futura – fazendo-se compromissados com a reflexão de políticas públicas educacionais e sociais? Como as escolas materializam suas ambiências em acolhimento às demandas dos estudantes, para que estes se fortaleçam na garantia de que os abrigos públicos e as ruas não sejam suas moradas? Se incapazes de discernir escolhas, como os formandos podem compreender a sua significação no empenho de assegur de qualidade de vida a todos, independente de que castas, cor ou credos façam parte ou se identifiquem? Como a escola se posiciona quanto à pertinência de enfocar a ação crítico-reflexiva, no favorecimento da consciência política de seus estudantes e docentes? Como a escola pode nos ajudar a discernir o momento em que experiências vivenciadas por nossos espelhos pedem cuidados, no sentido de reconhecer o outro, que está ao nosso lado – como pesquisador e autor de narrativas e saberes – para que o desejo de afirmação e reconhecimento não nos 246 leve a inventar ou omitir nomes como referências negadoras da existência deste outro: alimento e fonte viva do nosso pesquisar? Não adianta combatermos retoricamente o pensamento único, se não ousarmos entranhar-nos com nossas diferenças e pluralidades que deverão, sempre, estranhar-se contra as variadas formas de desigualdades.23 Fortalecida por Linhares, pergunto-me como podemos buscar mecanismos aptos a compartilharmos formas instituintes de políticas e pedagogias mais abertas, atentas para que não se fechem ou se isolem em verdades estáticas? Daí, a importância de diálogos com as fendas existentes no pensar e agir hegemônicos. Brechas que representam espaços resistentes e grávidos, potentes em possibilidades e experiências. Mas o que são Experiências? São fatos vividos? São momentos que favorecem aprendizados? São emoções, afetos, escolhas, imprevisibilidades que vivenciamos, cada qual em seu modo possível? Segundo Larrosa24, experiência não é apenas o que nos passa, o que nos acontece. Ele nos chama a atenção para a escassez de lugares onde esta palavra se exercite. Na atualidade, época tão marcada por avalanches de informações e tempos apressados, as aprendizagens esvaziam-se em apropriações superficiais provocadas por vivências instantâneas, transformam-nos em colecionadores de informações e de acontecimentos. Em contraposição, o silêncio e o tempo aguardam serem escutados, olhados, tocados, vivenciados de maneira a se constituírem em memórias, em acervos, em experiências. Daí a importância das pausas, que nos possibilitam sermos marcados. São também elas que nos permitem a interiorização levando23 LINHARES, Célia. Saberes docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. In: Movimento: revista da faculdade de educação da universidade federal fluminense. Profissão docente: teoria e prática. Niterói: DP&A Editora, no 2, setembro, 2000. Publicação semestral, p. 50. 24 BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Espanha: Universidade de Barcelona. Tradução de João Wanderley Geraldi. Universidade Estadual de Campinas – Departamento de Lingüística. 247 nos a experienciar. As pausas permitem as vivências acontecerem entre nós – sujeitos sociais coletivos – e conosco – sujeitos sociais – cada qual com seus processos de individuação e subjetividades. São estes silêncios que fazem com que as experiências não apenas passem por nós. Do movimento de integração com aquilo que nos acontece, faz-se possível a construção e a transformação como resultados de mediações de vozes, ações, sentimentos, emoções, éticas, estéticas. Adorno chama a atenção para os estereótipos, os modelos impostos ou interpostos entre os sujeitos e aquilo a ser experienciado. Ideologias que despotencializam a necessidade e a importância da experiência. O silêncio requer um outro posicionamento ideológico da sociedade para a questão do tempo. Des-aligeirado e livre de imposições rítmicas, o tempo pode então tecer experiências. O tempo livre, enfatizado por Adorno, estabelece – a meu ver – encontros com o silêncio e com o tempo não apressado – este, enfatizado por Larrosa. Será esse tempo um tempo livre, porque liberto de estereótipos, de modelos e de pressas que impossibilitam o sujeito de experienciar o mundo e suas relações? Nessa perspectiva, como e, para quê, assegurar o tempo livre, o tempo e o silêncio, na formação do sujeito? Comungo com Larrosa, quando nos fala da forma humana e singular de estarmos no mundo, lembrando-nos de nosso modo de nos conduzirmos na construção e afirmação de éticas, modeladas em estilos que implicam estéticas e escolhas. Assim, cada qual experiencia o mundo de maneira peculiar e singular, ainda que os contextos, fatos e épocas coincidam. Neste sentido, entendo educação como Experiências Instituintes que exigem posicionamentos em consonância com atitudes e gestos de humildade, na consciência da incompletude dos sujeitos; na consciência de que não são possíveis verdades únicas e hegemônicas ou modelos replicáveis nesta sociedade plural. 248 Penso então no instituinte, na instituição, na institucionalização e no instituído, como palavras que me instigam a intuir e a pesquisar-me, na busca de significados e sentidos que possam alargar e aprofundar a prática da reflexão, constituidora do viver. Percebo instituição, como formas organizacionais a se configurarem em instâncias potentes de sentidos – instâncias políticas, sociais, éticas, estéticas, físicas, jurídicas – que se constituem historicamente. Instituição como organização que não se aprisiona como coisa rígida, observável em forma descritiva, mas como uma dinâmica – não como sinônimo de idéia – mas como movimento que se faz historicamente no tempo. O instituído investe, muitas das vezes, – com competência de silêncio e de grito – na permanência, na imobilidade sustentadas pela linearidade – esta, sustentadora de verdades hegemônicas, pensamentos únicos e modelos rígidos. O instituinte busca tensionar – amorosa e reflexivamente – o ponto de vista único, a hegemonia, a linearidade, os acontecimentos aparentemente banais, o nada, atento às sombras e brechas presentes no instituído e no próprio instituinte, visto que a contradição não é um patrimônio particular do instituído. Um e outro se encontram hibridizados, inseparáveis de forma absoluta. Mas a atitude de acolher, respeitar e lidar com as sempre presentes contradições, faz com que o instituinte se diferencie, ao perceber – na contradição – a possibilidade que delas surjam caminhos e reflexões como exercícios e frutos de práticas e análises experienciadas também coletivamente. Os objetivos gerais e específicos das instituições, constituem boas intenções que ao se tornarem materialidades – no constante e dinâmico porvir – precisam se fazer como eternas perguntas, aptas a nos tornar atentos às maneiras como essas materialidades se fazem, e que materialidades são estas. A autogestão – força motriz do instituinte – torna-se materialidade como processo buscante, criador de dispositivos, de instigações e de convites 249 favorecedores de experiências e de análises éticas-sociais-políticas, como ações estéticas que possibilitam conceitos serem interrogados; palavras, gestos e limites – mecanizados – serem acolhidos, tensionados, não como uma transparência terrorista, mas como exercícios de autonomia para reorganização das relações sociais. No reconhecimento da importância de movimentos autogestionários, o instituinte não cabe em manuais, visto que o dinamismo, o diálogo e a implicação se estabelecem em articulação com cada movimento organizacional percebido ou, mesmo com aqueles movimentos invisíveis, que se fazem presentes, com freqüência, sem que deles nos demos conta. O instituinte é um movimento aberto, não por isentar-se de sentidos e parâmetros, mas por ressignificá-los no investimento de podermos trabalhar responsabilidades – através dos papéis que somos e que exercemos – na inclusão de vozes plurais aos processos gestionários e, não apenas incluir estas vozes, mas instigá-las para que se façam presentes, visto que aprendemos culturalmente lições que nos levam a sermos, constantemente geridos por outrem. Entendo o movimento ou força de autodissolução – sempre presente no instituído e no instituinte – como germe do criar, capaz de dinamizar as reorganizações. Força presente como latência ou potência, no poder hegemônico, no pensamento único, no instituído e, presente também, como força ativa, no instituinte. A institucionalização é o desejo eterno do instituinte fazer-se – no exercício e na valorização daquelas micropolíticas que vitalizam espaços e ações instituintes – como ações políticas passíveis de serem apropriadas por sistemas complexos formais e informais. Neste sentido, o projeto Janelas Cruzadas é uma experiência instituinte que iniciou suas ações em uma escola e em uma comunidade, quando – chamando-se ainda Janelas de Cada Um – lidava com as peculiaridades do 250 porvir, através das brechas que se faziam possíveis nos diálogos efetuados entre a escola, a comunidade e o Janelas Cruzadas. Ao ampliar suas ações para outras 12 escolas da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro e constituir parceria com a Secretaria Municipal de Educação/RJ e com a 2ª Coordenadoria Regional de Educação/ RJ, o Janelas Cruzadas manteve diálogo fino com as escolas e com a comunidade parceira, alargando sua gestão com a presença e com a participação do sistema público de ensino. A partir desse momento, o Janelas Cruzadas deu um salto em direção a institucionalização dessa experiência complexa, visto que agora, as peculiaridades do porvir não eram mais equacionadas com jeitinhos: soluções improvisadas por cada localidade e contexto, mas pensadas numa análise mais sistêmica, de rede, na busca de caminhos para que as experiências, escolhas metodológicas e ideológicas e até mesmo os improvisos, pudessem ser incorporadas às escolas, à SME e à CRE, como integradas à política pública. Para que a institucionalização do Janelas Cruzadas se materialize, será necessário tempo para que as escolas, a SME e a CRE se apropriem do projeto, avançando no sentido de não apenas ser uma experiência que dialoga com as necessidades e demandas dos parceiros, mas para que – mais larga e entranhada – se exercite como uma experiência de autoria coletiva, gestionada por todos os participantes. Entendermos o gesto autoral naquilo que antes era visto pela equipe como responsabilidade do outro significa tempo para nos refazermos nesta ótica que vai reorganizando materialidades já instituídas e, na medida em que cada um vai se pronunciando, as experiências vão se re-corporificando – democraticamente – em outras formas e dinâmicas. Então – como observa Adélia Prado num bate papo, quando, em maio de 2006, apresentava seu até então derradeiro livro – a maravilha da arte é essa. Ela é a coisa mais democrática... igual a flor no pé e banana na feira. A arte não é assunto. Não é enredo. É a forma. 251 Ela vai além daquilo que todo dia nós usamos o tempo todo, para nos comunicar. Ela rompe com o estereótipo. Não fica insinuando protótipo. Então é por isso também que fica muito difícil ter uma obra artística, quando o objetivo dela é com o conteúdo e, não com a forma. Nós somos tributários da beleza, nós não somos criadores dela. Para mim, a poesia – o fenômeno da beleza e da poesia – ele existe como existe o Pão de Açúcar, o mar... Eu passo anos sem ver e, quando vejo, é aquele estrondo assim... O que é aquilo!? Então a poesia é um fenômeno cósmico. Mistérios da criação. Eu sei que Deus mora em mim como a sua melhor casa. Sou teus olhos, sou teus ouvidos. Mas essa letra é minha... só a letra. A gente reverencia a arte, porque ela nos remete a uma coisa maior que ela, ainda. Ela é referência de algo maior. Tem gente que pára aí. Mas se a gente der mais um passo, a gente chega mais além ainda e, chega na mística. Se durar mais um minuto, eu morro. A beleza é fatal. Fatal. Então, Picasso estava certo: “Eu não procuro, eu acho.” Que bom que é assim e que é democrático. Quando você sente uma estranheza diante de alguma coisa, pode ser até um copo d’água, uma árvore que você passa todo dia a caminho do trabalho – quando aquilo bole com você, você sente uma estranheza diante daquilo – você por favor agradeça aos céus. Você está tendo uma experiência de natureza poética e religiosa. Você sente, sentido na vida com a significação. A arte é isso. Você não compreende, mas sente nos afetos mais profundos, onde você sente a fome mais radical da sua vida – que é uma fome de transcendência. Então esta experiência te remete a algo maior. Você vai atrás disso. Imagina se nós vivemos sem isso? De jeito nenhum, de jeito nenhum. O que nos faz feliz? Ela – a poesia – nos faz feliz por causa disso. Você pode visitar uma palafita, a favela mais pobre que tiver. Você entra numa casa dessas e encontra um paninho com um bordado. Uma garrafa de coca cola vazia, com uma flor de plástico. É um esforço de humanidade daquelas pessoas de dizer: eu sou mais do que isso. Eu sou humana. 252 É uma busca de significação e sentido para a vida. É o forrinho, é a rosinha dentro da garrafa. É o quadro da miss Brasil na parede. Porque nós temos fome do simbólico. A gente se desespera, se nós não encontrarmos sentido.44 Como bem sugere Adélia, são o amor, a poética e o criar – creio – os sábios que constituem o método mais eficaz e perfeito, para que a educação nos convide a cabermos inteiros nas escolas, nas ruas, nos becos, nas praças, nos quintais – espaços ilimitados que nos re-configuram, nos entrelaçam. Tocados pela poesia – fenômeno que tem nas circunstâncias, a matéria impulsionadora do criar – nós, como soma de sensações, de sonhos, de belezas, somos comovidos pelo acaso e, logo, algo disparado em nós, resulta numa soltura interna – estado poético libertador – possibilitando outras conecções, novas estruturações. Pensando na beleza como dimensão poética e amorosa da vida – que difere do culto – o que fazemos quando desejamos a escola e a vida belas, o que entendemos como uma escola encharcada de vida? O que fazemos por ela? Para quem caberá e quem caberá nas belezas por nós contempladas e por nós configuradas? 44 PRADO, Adélia. Entrevista realizada na livraria Letras e Expressões. Rio de Janeiro, maio de 2006. 253 Concluir. É preciso? capítulo 13. 254 255 O sr. Luis me revela quão quentinha me faço, pelo calor emanado de todos os interlocutores e co-autores desta pesquisa. Encorajada por sua carta e esperançosa de vida, penso nas tantas cartas escritas àqueles mestres caros, que marcam os caminhos de tantos estudantes e de tantas escolas. Cartas que muitas das vezes escrevemos e guardamos, no aguardo de um dia enviar. E aqui, é o Sr. Luis quem me dá a importante notícia de não precisarmos de selos ou correios para que esse envio se faça, visto ser a simplicidade e a ousadia, o meio mais fácil de entregarmo-nos em correspondências. 256 Exercito mais este ofício – o da ousada simplicidade – e abro aquela gaveta que acolhe envelope perfumado de experiências trocadas entre professores e estudantes, que somos. Cartas escritas em muitos dos dias nos quais vou bordando questões. Palavras que dançam, enquanto indagam impressões: De que maneira, o quente e o frio dos encontros e desencontros, se faz presente em nossas práticas e metodologias? Como alimentamos a nós próprios, aos nossos colegas de trabalho, aos nossos estudantes e familiares e quais alimentos serão estes? Quais fomes – nossas, de nossos colegas e de nossos estudantes – são alimentadas por nós e pelas escolas? De quais pobrezas e riquezas fazemos parte, como educadores, como companheiros e como amigos? Como estão aqueles nossos estudantes que têm a escola como único lugar a recorrer? Quais ações deste complexo sistema escolar se fazem convites, para que estudantes e professores se alimentem em gestos de autonomia? Encorajada pelo Sr. Luiz, correspondo-me através de narrativas de sujeitos plurais, procurando deixar que a complexidade dos sistemas ao qual fazem parte, se apresente através do pronunciamento destes atores sociais que compõem instituições e organizações e, ao mesmo tempo, possibilitam aos interlocutores e leitores, uma compreensão mais relacional e mais interdependente do processo de aprendizagem. Relações que possam preservar, fomentar e potencializar a força vital e criadora daqueles que resistem à atrofia e à inoperância proposta pelas políticas esvaziadas de sentidos coletivos. Penso, nas correspondências entre as escolas formais e as informais, como os abrigos e as ruas, espaços formativos que podem e que devem 257 promover relações de ensino/ aprendizagem multi-referenciais. Exercícios complexos de redes de relações interpessoais, interinstitucionais vivenciados e expressos através de múltiplas linguagens e de lógicas plurais. Como educadora e pessoa sensível, tento ser mais um elo entre tantos e tantos organismos vivos e sociais, sempre múltiplos, reverberando essas reflexões coletivas, que vão refletindo e instigando tantas outras questões. Movimentos e histórias que convidam o leitor a fazer seus próprios entrelaces, visto que estas experiências são em si mesmas infinitas. A cada instante que voltemos nossos sentidos a elas, temos mil possibilidades de rearrumá-las, de re-entendê-las, de re-criá-las, partindo de ênfases outras, diferentes daquelas aqui grifadas. Enfatizo, no momento, uma correspondência de portas com as quais metaforizamos o poder, que fecha e que abre espaços e movimentos de maneiras muito semelhantes, seja na escola, na rua, em abrigos ou em uma comunidade popular, por exemplo. Experiências que aqui narradas, demonstram e exemplificam políticas desejosas de outros tempos e de outros modos. Inspirada na história do senhor Wanderley, penso nas histórias dos mutantes e dos mudantes45 da escola. Como e por que os meninos não se fixam nesta instituição? É este senhor quem nos diz, entre poesias e aprendizados, que o esfarelamento social de ontem e da contemporaneidade têm conseqüências incríveis. O que faz com que este senhor que tirava notas ótimas quando estava na escola e hoje expande quadrinhas em poesias de metáforas refinadas, não consiga constituir uma vida de relações duradouras? As relações construídas pelo Sr. Wanderley reproduzem o que a infância deu para ele: vínculos que vêm e vão. 45 Citado por Célia Linhares, referindo-se à Tese do trabalho de Jader Janer, professor da UFF. 258 E nós – educadores, pais, órgãos gestores – que fios escolhemos para tecer histórias com os meninos e as meninas que entram e que saem da escola? Como trançamos relações e que vínculos se fazem tecidos entre a escola, os professores, os estudantes, seus familiares e os colegas de profissão? Os acontecimentos da vida do sr. Wanderley, não são uma propriedade particular dele, haja visto a existência de milhões de Wanderleys, que estudam, que aprendem e que se fazem além de mutantes, o que sempre somos, mudantes, desenraizados, incapazes de suportar a sordidez (Bauman, 1999) das consdições que lhes são reservadas como “lixos sociais”. Entrando e saindo de empregos num carrinho de amendoim que o leva a uma câmara frigorífica entre camarões, passando por um circo e trabalhando em casa de granfino ou dirigindo caminhões, este senhor nos apresenta movimentos e aprendizados que afirmam a potente plasticidade inerente ao ser humano. Como a gente aprende a ter as instituições e as conquistas como algo volúvel? E neste sentido, diante dos tantos trabalhos propostos pela escola e executados por estudantes, pergunto: como aprendemos a não durar nos trabalhos? Como a escola convida e instiga o corpo docente, o estudante e as famílias, para que o ato de estudar e de pesquisar se faça em gestos de autonomia e de descobertas instigantes, afirmadoras de vínculos e de continuidades? Mas é o próprio Wanderley quem nos mostra que as experiências – por mais que nasçam em processo de aborto – não são estritamente negativas, visto que a capacidade de aprender é algo extraordinário diante da nossa plasticidade capaz de transformar e rissignificar, afirmando e confirmando a potência da vida, mesmo em condições as mais adversas. Aprendo com este senhor o sentido do verso de do reverso, que se faz presente invertendo lógicas. 259 Fortaleço-me também, junto ao senhor Rufino que resiste à crença daquela escola que se faz à margem das pessoas. Morador da rua há 40 anos, é ele – o Rufino – quem me confirma a capacidade de aprendizagem sustentada por vínculos afetuais e, enfatiza a importância do afeto e da incompletude, tão necessários para a constituição de laços. . . . Como a escola nos prepara para as imprevisibilidades da vida, na constituição de vínculos que se façam acolhedores de nós – sejam estes frouxos ou cegos – que revisitados, podem se transformar em laços potentes, por nos ajudar a ressignificar relações e experiências, através de ações e de sentimentos reestruturadores de caminhos e de metodologias? . . . Penso nos moradores de ruas e nos estudantes de escolas que têm cadernos, que aprendem, que falam outros idiomas ampliando a referência da língua materna, mas que não sabem se inserir na vida. E mais uma vez me fortaleço junto ao artista Rufino, que vivendo há tanto tempo na rua, experiencía a dignidade de ser artista considerado e respeitado por moradores e instituições vizinhas: é a casa ao lado que embrulha suas obras, envolvendo-as em papel grosso para que não amarrote a gravura; é o locutor de rádio que o visita, presenteando o colega artista com os registros do programa preferido – Tabuleiro do Brasil; é o vizinho que guarda alguns de seus importantes objetos. Considerado por muitos, sr. Rufino constrói um esteio que o sustenta entre uma densa rede de aprendizados e solidariedades. Em contradição, penso no menosprezo com o qual muitos olhavam o Sr. Luis, morador da Leão XIII, que sentado num entulho de pedras como se fora um monumento, fazia-se rei em seu trono. Com visão ampliada por mirante, este senhor conseguiu sobreviver a tantas negações e levantar a voz como reclamação do angu do arroz, que estava um grude, sem proteína. 260 No fundo, é isso que penso afirmarem esses senhores: a capacidade de vida, mesmo quando as condições são subalternizadoras. A potência da vida se afirma em condições adversas, mais uma vez como o verso e o reverso. Quem é o senhor Luiz, que ao comentar o cotidiano da Leão XIII nos afirma estarmos cada qual por si só? Sem solidariedades. Sem ajudarmos uns aos outros? O que faz com que este senhor perceba isso como uma realidade? Quem é o sr. Rufino, que nos afirma existirem brechas afirmadoras e favorecedoras de exercícios e de redes de solidariedades? Como pesquisamos nossas próprias questões? Como pensamos as dificuldades? O que fazemos com elas? E as professoras; os estudantes; os familiares, como se organizam para refletir suas questões, visto que são parceiros de uma instituição voltada para a formação dos cidadãos? E o sistema escolar – espaço potencialmente politizante – como favorece a formação desses seus sujeitos, no sentido da autonomia reflexiva e da responsabilidade coletiva? Penso na escola – com seus Centros de Estudos, suas reuniões com os familiares dos estudantes, seus espaços potencialmente brincantes – que envolta por complexidades, assegura em seus espaços condições mais possíveis que os telhados de viadutos; as esquinas incertas de criolinas e de balas constantes/ cortantes; os visitantes relâmpagos que arrancam colchões, ateando fogo num corpo que acorda entre sustos ardidos... O que acontece com a potência da vida nestas instituições pedagógicas e políticas? Destaco três questões apontadas pelos interlocutores, no sentido de refletirmos o uso do poder público. → O que as escolas, o sistema educacional e a mídia têm feito para que as histórias, ao serem contadas, carreguem nas suas plasticidades narradas, mais do que indícios de nossas experiências plurais? 261 → O que nos ensinam essas narrativas aqui apresentadas, no sentido de que as redes de solidariedades se façam em aprendizados dialógicos com as demandas do próprio viver, ao invés de aprisionar estes mesmos aprendizados em moralismos artificiais? → Como assegurar políticas duradouras, visto que as instituições nunca conseguem passar um cimento na totalidade dos espaços e dos sujeitos? Como olhamos esta criatividade que, por ser política instituinte, busca caminhos e brechas confirmadores da potência de vida? Ao mesmo tempo faz-se importante sublinhar que os esfarelamentos da sociedade estão presentes nas instituições. Como catar nossos cacos espalhados por tantos espelhos estilhaçados? Lembro-me das senhoras moradoras da Cruzada São Sebastião e ressalto a importância das práticas sociais que vão nos formando para o amanhã: a capacidade de resistir – dessas senhoras – potencializada pelas interferências políticas garantidoras dos direitos humanos, ensina que podemos mudar nossas práticas e vivenciar os aprendizados que os limites nos possibilitam. E são estes limites que acionam uma cadeia de positividades, quando mediados por reflexões coletivas e transformadoras. Experiências que nos modelam, como barro que somos. Como fazer desses nós, laçadas que nos conduzam a laços e vínculos? Todos estes senhores e senhoras, de uma maneira ou de outra, resistem a esta banalização da vida. E os professores, os estudantes, os sistemas educacionais – sociais políticos, como têm resistido às banalizações? Inspirada por Risonete Martiniano, professora que também me promove tantos aprendizados, pergunto: 262 Quais sutilezas se fazem sábias por nos levar a dar um passo adiante da disponibilidade ao diálogo, no sentido de que aprendamos a urdir relações, nas quais, saibamos estar justamente, em estado de diálogo? 263 fontes inspiradoras capítulo 14. 264 Fontes Inspiradoras Referências Bibliográficas ALVES, Nilda. Sobre políticas de formação de professoras. In: LINHARES, Célia; GARCIA, Regina Leite (Orgs.). Simpósio Internacional Crise da Razão e Crise da política na Formação Docente. Niterói, RJ: Agora da Ilha; UFF, 2001. p. 95 – 108. ARENT, Hanah. A condição humana. 7. ed revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília/Editora da Universidade de Brasília, 1999. ______, Mikail. Problemas da poética de Dostoiévsk. 2. ed. 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